Memória e usos do passado: Um Só Coração , a construção...

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Memória e usos do passado: “Um Só Coração”, a construção da

metrópole paulistana em tempos hipermodernos.1

Humberto Júnio Alves VIANA2

Christina Ferraz MUSSE3

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG

Resumo

Em 6 de janeiro de 2004 estreava na Rede Globo a minissérie “Um só Coração” com o

propósito de presentear a cidade de São Paulo pelos 450 anos de sua fundação. Esta, trazia

às telas a encenação da história da cidade na primeira metade do século XX. O texto que

se segue pretendeu analisar a narrativa desenvolvida pela minissérie a fim de articular o

contexto de produção e o universo imagético do passado recriado. A pesquisa consistiu-

se em duas etapas. Inicialmente, desenvolveu-se um debate acerca das principais

características das minisséries brasileiras e o seu papel enquanto um lugar de memória.

Em seguida, através da análise geral das cenas disponíveis em DVD, objetivou-se

compreender como o passado foi rememorado em tempos hipermodernos. Concluiu-se

que, a narrativa diz respeito de sua contemporaneidade e aponta, por fim, para uma

intervenção no presente.

Palavras-chave: Mídias audiovisuais; Memória; Usos do passado; Hipermodernidade;

Teledramaturgia.

Introdução

No dia 25 de janeiro de 2004, a cidade de São Paulo completou 450 anos de sua

fundação. Na iminência desta data, que foi considerada importante pelos departamentos

comercial e de entretenimento da Rede Globo (RAUS, 2006), esta, se articulou a fim de

desenvolver uma narrativa seriada que pudesse homenagear a cidade.

1 Trabalho apresentado no GT História das Mídias Audiovisuais integrante do 11º Encontro Nacional de História da

Mídia.

2 Mestrando do Curso de Comunicação da UFJF, membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Cidade e Memória, e-

mail: [email protected].

3 Orientadora do trabalho. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFJF e líder do Grupo de

Pesquisa Comunicação, Cidade e Memória, e-mail: [email protected]

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Tal contexto é de fundamental importância, pois articula-se, nesta pesquisa, o

presente de produção com o universo imagético do passado levado às telas através da

minissérie. Além disso, buscou-se identificar como o contexto hipermoderno

(LIPOVETSKY, 2004) e as suas necessidades de rememoração influenciaram a narrativa do

passado recriado.

Com esse propósito desenvolveu-se um quadro teórico que permite situar a minissérie

como um lugar de memória (NORA, 1993). E, posteriormente, caracterizou-se o contexto

contemporâneo impregnado pelas lógicas superlativas para entender sua necessidade de

raízes e marcos temporais.

Discussão teórica

No Brasil, ao longo do século passado, assistiu-se à consolidação de novas e

complexas formas de comunicação verbal e audiovisual mediadas pela tecnologia. Dentro

desse quadro, a linguagem televisiva ocupa lugar de destaque, isso porque a televisão é o

meio de comunicação de maior penetração no país. Segundo dados disponibilizados em

2015 pelo IBGE, dos 68 milhões de domicílios, 66,1 milhões (97,1%) possuíam aparelho de

televisão, porcentagem maior que a de geladeiras (92%) ou mesmo de casas atendidas com

abastecimento de água (83,9%) e rede coletora de esgoto (52,5%) (IBGE, 2016).

Os dados permitem compreender o quanto a televisão, através de sua abrangência,

exerce influência na vida cultural do país e, nesse sentido, ressalta-se a necessidade contínua

de estudos de seus produtos informativos e de entretenimento, em especial as suas narrativas

ficcionais.

Contudo, os acadêmicos demoraram cerca de três décadas para começar a delimitar

o lugar ocupado pela telenovela no campo cultural brasileiro e na vida cotidiana dos

receptores. "Muito se debateu a respeito dos perigos de manipulação, evasão e alienação que

emanariam dos enredos melodramáticos. Havia, ainda, entre os anos 70 e 80 certo preconceito

acadêmico em relação à telenovela." (BORELLI, 2011, p. 5).

Nesse sentido, o presente trabalho busca trilhar “o caminho das pedras”, encara as

telenovelas, especificamente as de caráter histórico, como narrativas que são fruto de uma

época, construtoras de identidade, pertencimento e memórias.

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A ficção televisiva é um gênero originário do teatro popular francês, já em fins do

século XVIII, designado “melodrama”. Este era voltado para a distração das massas, com

textos claros e apelo ao sentimental, pautando-se pela busca de moralidade. Além disso,

utilizavam-se de personagens e enredos estereotipados, tratavam de assuntos populares com

uma intensa carga de exagero, o que, historicamente, garantiu o seu sucesso e a conquista

de grandes públicos.

Ao longo do tempo, a ficção seriada televisiva consolidou-se como um dos suportes

fundamentais do tripé que sustenta a base de funcionamento da televisão brasileira:

telejornalismo, variedades e teledramaturgia. Dentro dessas narrativas seriadas, fatos e

personagens da história, há muito, são incorporados e representados. No caso brasileiro, a

narrativa televisiva da história se realiza há mais de três décadas na programação ficcional

da Rede Globo.

Ao longo deste tempo, na faixa das 22 horas, a Rede Globo exibiu seriados

destinados a um público bem informado e exigente, por isso, este horário foi pretensamente

destinado a inovações temáticas, estéticas e discursivas. Outra característica importante

dessas obras é a narrativa desenvolvida a fim de narrar a história recente do Brasil (RAUS,

2006).

Entre 1982 e 2017 foram exibidas, ao todo, 91 minisséries marcadas por grandes

orçamentos, elevada qualidade e requintada produção. Estas se constituíram como produtos

que podem ser apresentados como comemorativos de datas importantes: aniversário de 20

anos da Rede Globo (“Tenda dos Milagres”, “O Tempo e o Vento” e “Grande Sertão:

Veredas”), cem anos do regime de escravidão (“Abolição”), cem anos da proclamação da

república (“República”), quinhentos anos do “descobrimento” do Brasil (“A Muralha”, “A

Invenção do Brasil”, “Aquarela do Brasil”) e aniversário de fundação da cidade de São

Paulo (“Um Só Coração”). (MUNGIOLI, 2009).

Alguns trabalhos acadêmicos desenvolvidos por MOTTER (2001), KORNIS

(2001) e LOPES (2002) abordaram essas produções, bem como a pesquisa realizada por

BARBOSA (2006), em que se analisou a memória construída por essas narrativas. Além

disso, tem fundamental importância para este trabalho, a dissertação de mestrado defendida

por RAUS (2007). Entretanto, dada a importância dessas produções enquanto narradoras

da história do Brasil, salienta-se existir, ainda, um amplo campo a ser pesquisado.

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Minisséries brasileiras: um lugar de memória

Desde a década de 1980, a memória vem sendo encarada como uma das

preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. No rastro da explosão

de informações e das novas tecnologias, no mundo contemporâneo, o medo do

esquecimento e do desaparecimento tornou-se generalizado.

Na cultura contemporânea, obcecada como ela é pela memória e o trauma,

o esquecimento é sistematicamente malvisto. É descrito como falha de

memória: clinicamente, como disfunção; socialmente, como distorção;

academicamente, como uma forma de pecado original; em termos de

vivência, como um subproduto lamentável do envelhecimento

(HUYSSEN, 2014, p. 155).

Essa disseminação da memória é ampla, tanto geográfica quanto politicamente,

podendo inclusive ser usada, por exemplo, como mecanismo de legitimação, na

“americanização do holocausto” (Idem, 2000), ou no discurso narrativo da minissérie

analisada por esse trabalho.

A partir dessas considerações iniciais, é importante, a fim de delimitar o conceito

de memória, amparar-se nas discussões estabelecidas por dois autores principais:

HALBWACHS (2006) e NORA (1993).

De acordo com Halbwachs (2006, p. 33), “para evocar seu próprio passado, em

geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de

referência que existem fora de si, determinados pela sociedade”. A memória passa a ser,

então, encarada por ele como um fato social que pode ser demarcado por padrões

comportamentais. Ou seja, a memória individual está atrelada aos diversos grupos sociais

que circundam uma pessoa e é a combinação eventual dos diferentes meios dos quais o

indivíduo sofre influência.

Segundo ele, existem motivos para distinguir duas memórias, uma interior e a outra

exterior, uma memória pessoal e a outra social.

A primeira receberia ajuda da segunda, já que afinal de contas a história de nossa

vida faz parte da história em geral. A segunda, naturalmente, seria bem mais extensa

do que a primeira. Por outro lado, ela só representaria para nós o passado sob uma

forma resumida e esquemática, ao passo que a memória de nossa vida nos

apresentaria um panorama bem mais contínuo e mais denso. (HALBWACHS, 2006,

p. 34)

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Enquanto Halbwachs vai evocar a incorporação das memórias pela história

conforme estas fossem deixando de existir, gradualmente, com o desaparecimento dos

grupos que as sustentavam, Nora (1993) defende o que chama de “metamorfose

contemporânea” em que a categoria memória deixou de existir e a história sobrepõe-se à

memória de maneira ampla.

Segundo Nora (1993, p. 7), “fala-se tanto de memória porque ela não existe mais”.

Ou seja, o que se vê na contemporaneidade, em contraste com a sociedade que vivia sua

memória de forma espontânea, é o estabelecimento de lugares de memória com o propósito

de encarná-las e resguardá-las do possível esquecimento.

Uma sociedade onde o medo da fragmentação memorialística leva ao domínio do

patrimônio. Nesse sentido, “se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos

necessidade de lhe consagrar lugares” (NORA, 1993, p.7).

No caso das narrativas ficcionais televisivas, as minisséries históricas se situam

neste quadro. Essas produções narram a história recente nacional como forma de resguardar

memórias ameaçadas pelo decorrer do tempo. Por isso, a minissérie “Um Só Coração” pode

ser entendida como um lugar de memória que busca parar o tempo e bloquear o trabalho do

esquecimento da história da cidade de São Paulo na primeira metade do século XX.

Além disso, é importante perceber que os discursos, cronologicamente situados no

passado, constroem o presente, uma vez que “a linguagem que articula e sustenta a

memória, já por si só inoculadora de valores institucionais, é modelada para reelaborar o

passado através do presente” (MOTTER, 2001, p. 2). Dessa forma, a minissérie de

reconstituição histórica estimula uma memória nacional, que não é espontânea, já que todos

os traços, os esquecimentos e os silêncios revelam mecanismos de manipulação da memória

coletiva.

Nesse sentido, é importante perceber que a memória é um dos elementos chave na

construção de identidades, porque é ela que dá o sentimento de continuidade e coerência

aos indivíduos. Por isso, Le Goff (2003, p. 141) afirma que “tornar-se senhores de memória

e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos

que dominaram ou dominam as sociedades históricas”.

Tanto a memória quanto a identidade podem ser negociadas, no sentido de

construídas. Quando a Rede Globo desenvolveu uma minissérie que pudesse homenagear

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a cidade de São Paulo, os telespectadores que lhe assistiram tiveram contato com um

passado recriado à luz de um contexto de produção, um passado fruto de memória e não da

história.

“Um Só Coração”: o passado e seu contexto de produção

A minissérie “Um Só Coração” foi produzida ao longo do ano de 2003 e exibida

originalmente pela Rede Globo entre seis de janeiro e oito de abril de 2004. Foi elaborada em

homenagem aos 450 anos de fundação da cidade de São Paulo, retratando-a entre os anos de

1922 e 1954.

Sinteticamente, a minissérie abordou períodos importantes da história de São Paulo,

tais como, a Semana de Arte Moderna de 1922, a revolução de 1924, a crise de 1929, a

revolução de 1932, o Estado Novo de 1937 e os ecos do fascismo e da segunda guerra

mundial. Além disso, as tramas de “Um Só Coração” foram desenvolvidas sob o ponto de

vista cultural, procurando mostrar como os movimentos artísticos tiveram papel decisivo no

desenvolvimento da cidade.

A direção foi de Marcelo Travesso, Ulysses Cruz e Gustavo Fernandez, a direção

geral foi de Carlos Araújo, o núcleo de produção de Carlos Manga e o roteiro de Alcides

Nogueira e Maria Adelaide Amaral com a colaboração de Lúcio Manfredi e Rodrigo Arantes

do Amaral.

Integralmente a minissérie teve 54 capítulos, porém, para esta pesquisa, os objetos

analisados foram as cenas disponíveis através dos DVDs editados pelos autores e lançados

também em 2004. Estes têm uma duração inferior à do conteúdo original e contêm 22 horas

de vídeo.

A partir desta caracterização e das proposições iniciais, os anos de 2003 e 2004,

contexto em que a minissérie foi produzida e lançada em DVD, serão preponderantes nesta

etapa do trabalho, pois, observou-se o contexto de produção e as suas características

contemporâneas.

O século XXI: uma São Paulo hiperbólica

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Este subtítulo é paradigmático da São Paulo produtora e telespectadora da

minissérie. Por isso, considerou-se importante transcrever um trecho do livro lançado pela

editora Globo em 2004 com o título São Paulo através da minissérie “Um Só Coração”:

Aos 450 anos de idade, a memória de São Paulo quase se perde no tempo. Quem

hoje circula pela metrópole já não vê o Vale do Anhangabaú como um belo cartão

postal urbano, a Estação da Luz como um símbolo do progresso, o Teatro Municipal

como palco de grandes ousadias culturais. A cidade pulsa acelerada num quase

esquecimento, embora todos os seus jardins, museus, teatros e monumentos, por

onde circulam milhares de pessoas famosas ou anônimas, estejam sempre ali,

entregues ao olhar de quem saiba enxergá-los”. (NUNES, 2004, p. 11)

Tanto o livro, quanto a minissérie apresentam pretensões significativas e

características da sociedade contemporânea dos anos de 2003 e 2004 de acordo com suas

transformações sociais, culturais e políticas.

Por que os indivíduos do século XXI têm compulsão por evitar o esquecimento e

necessidade desenfreada de memorização? Qual a identidade desses indivíduos? Que tipo

de memória é produzida neste contexto?

Para responder a essas questões é essencial perceber o novo estado cultural das

sociedades desenvolvidas a partir da queda do muro de Berlim e o fim da dicotomia

mundial. A sociedade, alicerçada em fins dos anos 1980, pode ser caracterizada como uma

modernidade de novo gênero calcada na rápida expansão do consumo e da comunicação

de massa; no enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; no surto do

hedonismo e do psicologismo, na tecnologia genética, na globalização liberal e, acima de

tudo, na perda da fé num futuro revolucionário (LIPOVETSKY, 2004).

Nesse sentido, “a lógica dos meios de comunicação na contemporaneidade é

marcada pela aceleração, de tal forma que aceleração, velocidade e mudança passam a ser

espécies de palavras-síntese da ação midiática” (BARBOSA, 2006, p. 13).

Além disso, o contexto abordado por Lipovetsky é impregnado por três princípios

básicos: mercado, eficiência técnica e individualização. As mudanças deste acontecem a

partir da escalada aos extremos, de uma dinâmica ilimitada e hiperbólica. Portanto, não uma

pós-modernidade e sim uma hipermodernidade, “hipercapitalismo, hiperclasse,

hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais

não é hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa? ”

(LIPOVETSKY, 2004, p. 5).

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Somam-se a isso, como se vê no trecho do livro temático da minissérie, uma

redução do tempo social e a ascensão de tensões inéditas ligadas ao ajustamento temporal

dos indivíduos. Nesse sentido, é possível perceber porque, segundo NUNES (2004),

milhares de pessoas passam pelos principais cartões postais da cidade de São Paulo de

forma acelerada, esquecendo-se da sua representatividade enquanto portadores da memória

coletiva e histórias paulistanas.

Produtores e telespectadores: indivíduos hipermodernos

Assim como nos outros domínios sociais, os indivíduos são, consequentemente,

dominados pela engrenagem do extremo, da normatização técnica e do desligamento social.

Segundo Stuart Hall, "a partir da segunda metade do século XX, o sujeito foi

deslocado de sua identidade e, por conseguinte, foi descentrado. Isso significa dizer que as

transformações associadas à modernidade destruíram os apoios estáveis que os indivíduos

tinham nas tradições e nas estruturas”. (HALL, 2002, p. 10).

Sob a égide das liberdades e da volatilidade, há a desestabilização do eu e o

indivíduo se mostra aberto e cambiante. “Quanto menos as normas coletivas nos regem nos

detalhes, mais o indivíduo se mostra tendencialmente fraco e desestabilizado.”

(LIPOVETSKY, 2004, p. 13).

Enquanto o sujeito sociológico construía sua identidade a partir da interação entre

o eu e a sociedade, tornando ambos mais unificados e previsíveis, o sujeito hipermoderno

não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. Esta se torna uma celebração móvel

que adquire contornos segundo as formas como são representados ou interpelados pelos

sistemas culturais que os rodeiam.

Nesse sentido, a identidade hipermoderna é definida circunstancialmente de forma

utilitarista e a mídia, destacadamente, apresenta, de forma contínua, uma multiplicidade de

identidades possíveis. E estas mudam conforme o sujeito é interpelado ou representado. A

identificação não é automática, mas pode ser ganha ou perdida ao longo da sua existência

histórica.

O passado e a memória em tempos hipermodernos

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Quando foi citado que tanto a memória quanto a identidade dos sujeitos podem ser

negociadas no sentido de construídas e que a primeira dá o sentimento de coesão e coerência

aos indivíduos, se afirmava a existência de uma completa interdependência entre esses dois

conceitos.

No contexto dos anos de 2003 e 2004, o que se vê, muito além de um presente

trancado em si mesmo, é o reavivamento do passado. Há uma busca ilimitada do que é

histórico, patrimonial e comemorativo. “Em suma, a memória se tornou uma obsessão

cultural de proporções monumentais em todos os pontos do planeta.” (HUYSSEN, 2000,

p. 3).

A sociedade hipermoderna é o nascedouro do “tudo-patrimônio” e do “todo-

comemorativo”. Celebra até o menor objeto do passado, remobiliza as tradições e se

estrutura sobre bases contraditórias, um presente que não para de desenterrar o passado. E,

de acordo com Barbosa (2006), a celebração apresenta-se como um acontecimento aliando

passado e presente como forma de modelar uma realidade diferente.

“Dizem de brincadeira que abre um museu por dia na Europa e já se perdeu a conta

das comemorações de aniversário dos grandes e nem tão grandes acontecimentos

históricos.” (LIPOVETSKY, 2004, p. 14). O que se vê é novamente o reinado do infinito,

de um presentismo excessivo em conformidade com o deslocamento da memória à

hipermemória. Ou seja, esta, caracteriza-se como uma vontade exacerbada de rememoração

calcada na busca desenfreada de raízes e ancoragem nos tempos idos.

As obras do passado já não são contempladas em recolhimento e silêncio, e sim

devoradas em segundos, funcionando como objeto de animação de massa, espetáculo

atraente, uma maneira de diversificar o lazer e matar o tempo de forma instantânea. Acima

de tudo, na sociedade hipermoderna, o antigo e o nostálgico se tornaram argumentos

comerciais e ferramentas mercadológicas. E, “fazem parte de um processo de construção

de poder, no qual o interesse político de dominar o tempo assume papel primordial”

(BARBOSA, 2006, p. 18).

De acordo com Huyssen, não é mais possível pensar em qualquer trauma histórico

como uma questão ética e política séria, sem levar em conta os múltiplos modos em que ele

está agora ligado à mercadorização e à espetacularização em filmes, museus, docudramas,

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sites na internet, livros de fotografia, histórias em quadrinhos, ficção, até contos de fadas e

música popular (HUYSSEN, 2000).

Quando se fala do contexto de produção da minissérie “Um Só Coração”, é preciso

ter em vista que o passado recriado é renovado, reciclado, mas, segundo as normas

contemporâneas, explorado com fins comerciais. Um mero olhar para o passado, um

objeto-moda, com valor apenas estético, emocional e lúdico. “O passado nos seduz; o

presente e suas normas cambiantes nos governam” (LIPOVETSKY, 2004, p. 18).

O passado aparece, então, como um adorno, um referencial da vida com qualidade

ou com segurança. Assim, este surge como um lugar fundador de marcas que se desejam

preservar (BARBOSA, 2006). Lembrar-se da São Paulo ainda intimista ao longo das

primeiras décadas do século XX, em face da megalópole superpovoada e insegura da

contemporaneidade, é reflexo da busca de um efeito tranquilizador. É a força de um desejo

de salvaguardar as antigas paisagens e os bons e velhos tempos.

Por fim, a sociedade contemporânea, dominada pela fragmentação, assiste a um

fortalecimento de referenciais que remetem ao passado e de uma necessidade de

continuidade entre este e o presente, porque preocupa-se em dotar-se de raízes e de

memória.

“Um Só Coração”: a construção de uma metrópole e de sua identidade

A análisa da narrativa desenvolvida pela minissérie proposta por esta pesquisa é,

antes de tudo, pontual e busca perceber a mediação, exercida pela televisão, da memória

brasileira ou, mais especificamente, da memória paulistana.

Neste trabalho pretendeu-se fazer uma análise macro a partir da construção de

personagens, das estratégias comunicativas, do contrato cognitivo e, por fim, das

metanarrativas da minissérie.

Como resultados, constatou-se que a televisão não cessa, por sua própria natureza,

de reciclar o legado histórico, transformando-o. A exemplo do que acontece com a notícia,

com a publicidade, com o entretenimento em geral, a história passou a fazer parte do show

cotidiano da TV (BUCCI, 2004, p. 206).

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Por isso, serão ressaltados nas próximas páginas alguns apontamentos que dirão

respeito às personagens, aos fatos históricos e à confusão entre o regional e o nacional

presentes na minissérie.

“Um Só Coração”: resultados de análise

Assim como o lema da cidade, "Non ducor, duco", frase latina que significa "Não

sou conduzido, conduzo", a produção televisiva nacional acontece a partir do eixo Rio-São

Paulo. O que não ocorre por acaso, mas, sim, de acordo com as lógicas do sistema

comercial.

E também utilizando o lema, metaforicamente, a São Paulo que é retratada na

minissérie é o “Brasil condensado”, estão ali os grandes feitos revolucionários, os grandes

personagens históricos nacionais, a cultura, a arte e a sociedade brasileiras. Evidencia-se a

todo tempo o ufanismo daqueles que conduzem, dos paulistanos à frente de seu tempo,

encarregados de forjar a nova cara do Brasil moderno.

Com relação ao conjunto de 113 personagens, entre fixos e participações especiais,

que foram abordados pela minissérie, cabe destacar que muitos representaram pessoas reais

da época.

Dessa gama de personagens, a grande maioria pertencia à elite paulistana advinda

do cultivo e exportação de café. Serão esses indivíduos os responsáveis pelo desenrolar dos

acontecimentos influindo na existência de todos os outros núcleos.

A própria Yolanda Penteado, protagonista da história, é descendente e dona de uma

fazenda de café. Além disso, mostra-se constantemente como essa elite foi a responsável

pela urbanização e crescimento da cidade de São Paulo, isto é, a elite econômica é

representada de forma positiva, eliminando-se qualquer conflito inerente à sua história.

Ainda sobre os personagens, são preponderantes na narrativa os artistas paulistanos,

principalmente os modernistas. Será através da vida de Mário de Andrade (1893 – 1945),

Oswald de Andrade (1890 – 1954), Paulo Prado (1869 – 1943), Anita Malfatti (1889 –

1964), Menotti del Picchia (1892 – 1961), Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), Tarsila do

Amaral (1886 – 1973), dentre outros, que se desenvolverão os movimentos artísticos da

primeira metade do século XX na cidade (RAUS, 2007).

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Estes serão mostrados em vários momentos da minissérie como os responsáveis

pela manutenção da cultura brasileira. Tanto no movimento modernista, a partir de 1922,

quanto na antropofagia cultural, há uma seleção de artistas/personagens que são mostrados

constantemente como os fundadores da autêntica arte brasileira, com isso, a arte produzida

na metrópole São Paulo ganha o status de síntese da identidade artística brasileira.

Assim como num telejornal, toda e qualquer notícia passa, necessariamente, por

uma série de filtros antes de ser veiculada, dos quais destacam-se: a linha editorial do grupo

proprietário; a influência das empresas anunciantes; as fontes de informação; e a ideologia

dos profissionais da área de comunicação. Os elementos (personagens, período histórico,

sonoplastia, cenários, etc.) da minissérie também vão ao encontro dessa lógica.

Aliás, a lógica da história construída pela minissérie é a de homenagear a cidade de

São Paulo pelos seus 450 anos de fundação. O termo homenagem deve ser, inclusive,

salientado aqui como algo oferecido a alguém como reconhecimento, prova de respeito,

admiração ou veneração.

Em última instância, com relação aos personagens, é importante ressaltar a busca

dos autores em mostrar a pluralidade de fisionomias e sotaques da cidade. Entre os

quatrocentões paulistanos, convivia-se com uma heterogeneidade populacional formada

por italianos (Madiano e Ciccillo), libaneses (Sálua e Samir), portugueses (Avelino e

Joaquim), alemães (Frida e Ana), espanhóis (Lola e Soledad), japoneses (Kazuo e Harumi),

judeus (família Rosemberg) e os migrantes advindos da região nordestina (Raimundo e

Magnólia). A cidade de São Paulo ganha o valor positivo com o qual tem se tentado

caracterizar a cultura brasileira, isto é, uma cultura nascida da tolerância, da cordialidade,

sem disputas e sem conflitos, o que, certamente, não corresponde à realidade histórica, mas

às narrativas que, durante alguns séculos, foram usadas para amalgamar um tipo de

identidade nacional.

Sinteticamente, os personagens agregam valor ao objetivo de homenagear a cidade

de São Paulo. São pessoas à frente de seu tempo, guerreiros, plurais e, acima de tudo,

representantes da cultura e sociedade brasileiras. Esta é a seleção estabelecida pelos

produtores da minissérie, de outra época, da mesma cidade, porém saudosos de um passado

em quase esquecimento.

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Por fim, “Um Só Coração” apresentou ao Brasil a história da cidade de São Paulo

entre as décadas de 1920 e 1954. Porém, aos receptores, constantemente, pode ter ficado a

impressão de estar assistindo à história do Brasil. A seleção de fatos históricos enfatiza esse

conflito. Embora alguns dos eventos fossem nacionais ou até mundiais, tais como a

Revolução de 1930, a Revolução de 1932, o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial,

estes, aparecem na narrativa como marcos determinantes da história da cidade, enquanto

portadora do Brasil.

Considerações finais

Quando se optou por pesquisar a minissérie “Um Só Coração”, na realidade,

buscava-se pesquisar a relação interdependente da atualidade, impregnada pelas lógicas

comerciais e pelo presentismo, e a mídia televisiva que é, ao mesmo tempo, fruto e difusora

desse sistema.

A minissérie poderia ser qualquer uma que retratasse o passado, o interessante foi

perceber como as categorias temporais (passado, presente e futuro) apresentam relações de

reciprocidade. Seguindo as ideias de Koselleck (2006), as distinções entre estas categorias

temporais resultam num determinado “tempo histórico”.

E é esse “tempo histórico” do indivíduo produtor da minissérie “Um Só Coração”,

que nos interessa aqui. Impregnado por seu contexto social, os produtores de narrativas

históricas televisivas reconstroem a memória coletiva ou o passado segundo as suas lógicas

de vivência. O importante foi perceber que essas lógicas superlativas da contemporaneidade

influem na reconstrução do passado.

E, de forma preponderante, os meios de comunicação se utilizam deste passado e

mostram uma gama de temporalidades que se entrecruzam e produzem uma determinada

imaginação na qual traços memoráveis e traços do esquecimento são reencenados. De

acordo com Barbosa (2008) isso é uma problemática pois a televisão supre parte da função

imaginativa dos telespectadores.

A finalidade de homenagear a cidade de São Paulo pelos seus 450 anos de fundação,

na minissérie, estava claramente ligada a lógicas comerciais por sua representatividade

atual. Mas o alerta aqui é para o tipo de história que “homenageia”.

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As ficções históricas são, desde a década de 1980, comuns no cenário brasileiro.

Elas podem e são constantemente usadas pelos indivíduos como referenciais históricos e

como forma de ter acesso àquele passado que não existe mais. Sem qualquer conhecimento

das lógicas implícitas na linguagem audiovisual, estes entram em contato com uma história

que, segundo BUCCI (2004), passa longe da mão e da cabeça do historiador.

Dessa forma, a história é empregada segundo as leis do espetáculo fundindo fato e

ficção com imagens voltadas para o consumo e para o gozo. O telespectador que assistiu à

minissérie “Um Só Coração” deparou-se com uma metrópole carro-chefe da nação, terra

dos desbravadores do Brasil, cidade do café, da indústria, do imigrante, constitucionalista,

vanguarda artística e, acima de tudo, cidade à frente de seu tempo. Nesse sentido, muito

além do povo pobre e dos operários, o importante para presentear a cidade de São Paulo foi

destacar sua elite cafeeira, responsável pelo desenvolvimento do Brasil e seus artistas,

incumbidos de forjar a identidade nacional.

REFERÊNCIAS

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Douby Digital Estéreo. São Paulo: TV Globo LTDA, 2004. 6 DVDs (22h16min), FULL

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