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MEMÓRIAS DA TENDA ESPÍRITA PAI JOAQUIM DE ANGOLA EM SÃO JOÃO DEL REI MINAS GERAIS RAFAEL TEODORO TEIXEIRA * RESUMO: Quais as memórias que guardam um terreiro fechado? Essa é umas das perguntas que faço quando passo em frente a “Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola”, o terreiro chama atenção dos transeuntes por sua suntuosidade, uma pequena ponte leva para entrada do terreiro, sua fachada caiada, portas e janelas azuis, instiga ainda mais a curiosidade dos que passam, no topo uma pequena torre, contendo a imagem de Iemanjá e sobre a torre uma cruz, mostra a imponência desse terreiro. Outro aspecto interessante do terreiro é que ele fica localizado próximo ao centro histórico da católica e tradicional São João del- Rei, e nos faz indagar ainda mais, sobre as histórias e memórias que estão por trás dessas paredes. Levando em consideração esses aspectos, temos como proposta para esse trabalho, seguir a lógica das religiões de matriz afro-brasileira, usar da oralidade que as mantém, para conhecer as histórias e memórias do terreiro do Pai Joaquim de Angola. Nesse sentido, os entrevistados escolhidos para esse trabalho, tiveram uma relação direta ou indiretamente com as atividades do terreiro, portanto iremos debater a relação dessas pessoas com a memória do terreiro e também com a memória da cidade. Palavra-chave: Memória, Espaços de Memória, Umbanda, Cultura Negra. * UFSJ, Mestrando em História, apoio Capes

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MEMÓRIAS DA TENDA ESPÍRITA PAI JOAQUIM DE ANGOLA

EM SÃO JOÃO DEL REI – MINAS GERAIS

RAFAEL TEODORO TEIXEIRA*

RESUMO:

Quais as memórias que guardam um terreiro fechado? Essa é umas das perguntas que faço

quando passo em frente a “Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola”, o terreiro chama atenção

dos transeuntes por sua suntuosidade, uma pequena ponte leva para entrada do terreiro, sua

fachada caiada, portas e janelas azuis, instiga ainda mais a curiosidade dos que passam, no topo

uma pequena torre, contendo a imagem de Iemanjá e sobre a torre uma cruz, mostra a

imponência desse terreiro. Outro aspecto interessante do terreiro é que ele fica localizado

próximo ao centro histórico da católica e tradicional São João del- Rei, e nos faz indagar ainda

mais, sobre as histórias e memórias que estão por trás dessas paredes. Levando em consideração

esses aspectos, temos como proposta para esse trabalho, seguir a lógica das religiões de matriz

afro-brasileira, usar da oralidade que as mantém, para conhecer as histórias e memórias do

terreiro do Pai Joaquim de Angola. Nesse sentido, os entrevistados escolhidos para esse

trabalho, tiveram uma relação direta ou indiretamente com as atividades do terreiro, portanto

iremos debater a relação dessas pessoas com a memória do terreiro e também com a memória

da cidade.

Palavra-chave: Memória, Espaços de Memória, Umbanda, Cultura Negra.

* UFSJ, Mestrando em História, apoio Capes

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INTRODUÇÃO:

Quais as memórias que guardam um terreiro fechado? Esse indagação, nos faz refletir

inicialmente, sobre a relevância de pensar a história de um terreiro, dentro de uma cidade onde

a maioria de sua população se declara católica1. Elevada a vila em 1713 e a cidade em 1838,

São João del- Rei, foi um importante polo comercial da Comarca do Rio das Mortes, trazendo

para sua localidade e região um número significativos de escravos, para trabalhar nas lavouras,

no comércio e na extração de ouro (BRÜGGER, 2017: 26). Além de seu passado escravista, a

cidade também é conhecida por manter viva as suas tradições religiosas que referenciam a essa

época, como os rituais católicos, que estão presentes no cotidiano do são-joanense, através das

procissões, semana santa, orquestras e também pela linguagem dos sinos espalhado pelas igrejas

existentes no município.

A memória que envolve a cidade está distante de contar as histórias dos terreiros, essas que

estão presentes nas margens da narrativa da memória e nas periferias de São João del- Rei, a

partir desta perspectiva, Michel Pollak (1989), nos faz pensar nas memórias que não são

contadas como oficiais, aquelas não ditas em livros, museus ou em placas comemorativas2, as

memórias dos terreiros são marginais e estão na

Fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em

nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou

de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem

que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLAK.

1989:09)

Essa imposição de uma memória oficial dominante, se dá através da falta de “registros escritos,

no interior dos inúmeros terreiros fundados ao longo do tempo em quase todas as cidades

brasileiras” (SILVA. 2005:13), esse fato também não é muito diferente nos terreiros existentes

em São João del- Rei, pois no desenvolver de minha pesquisa, pude constatar, que a maior parte

desses templos, não contém documentações ou registros, sejam eles escritos ou fotográficos.

1 Segundo o Censo de 2010 em São João del- Rei conta com 90.263 habitantes, destes 72.048 se declaram católicos,

7.271 Evangélicos e 1.580 Espíritas. (https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/sao-joao-del-rei/panorama) 2 Em São João del- Rei, até o presente momento, nenhum órgão oficial da cidade reconhece os terreiros e também

não há uma preocupação com a preservação da memórias desses espaços.

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Nesse sentido, o interesse de pesquisar as memórias do Terreiro do Pai Joaquim de Angola3,

parte do projeto de mestrado intitulado “A voz dos atabaques na cidade onde os sinos falam:

trajetória de mães e pais de santo em São João del- Rei”, que está sendo desenvolvido no

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del- Rei e sob

orientação da professora doutora Silvia Maria Jardim Brügger. O projeto de pesquisa tem como

um dos objetivos fazer o levantamento e a catalogação dos terreiros de São João del- rei. E é a

partir desse trabalho que percebemos a importância da história da Tenda Espírita Pai Joaquim

de Angola, para algumas mães e pais de santo da cidade, e também para outros adeptos da

religião, que fizeram parte da história do “Pai Joaquim”.

Para encontrarmos essas pessoas fizemos um levantamento, usamos uma metodologia chamada

“bola de neve”, que “pressupõe que há uma ligação entre os membros da população dada pela

característica de interesse, isto é, os membros da população são capazes de identificar outros

membros da mesma” (DEWES, 2013 p. 10), dessa forma, fomos identificando, membros que

pertenciam à Tenda Espírita.

“Agora eu vou para o terreiro”

Localizada na entrada do bairro São Judas Tadeu, a Tenda Espírita do Pai Joaquim de Angola,

chama a atenção das pessoas que por ela passam, um muro baixo branco que já está perdendo

a sua cor, devido ao tempo, delimita o terreiro entre a calçada e a Rua Henrique Benfenatti, no

centro encontra-se um pequeno portão azul, já na entrada do terreiro ao lado esquerdo, a casa

de força4 e ao direito, um pé de café é de outras plantas que provavelmente eram cuidadas e que

hoje crescem sem rumo, em ambos os lados, são elas: espada de São Jorge, Guiné, Abre

Caminho e algumas trepadeiras, a maioria dessas folhagens são importantes para os rituais das

religiões de matriz afro-brasileira.

Continuando a nossa entrada, uma ponte localizada no meio do terreno nos leva a principal

entrada do terreiro, a ponte passa sobre um rio, que outrora era limpo, e hoje o mal cheiro se

faz presente por causa da poluição, no meio da ponte que é cercada por grades azuis, ainda estão

os vasos de flores com as espadas de São Jorge, mas o que chama atenção dos transeuntes, é a

fachada da Tenda do Pai Joaquim.

3 No corpo do texto irá surgir alguns substantivos referindo a Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, uma vez que

os entrevistados denomina como: Tenda, Pai Joaquim, Tenda do Pai Joaquim, Terreiro, Tenda Espírita. 4 No terreiro do Pai Joaquim de Angola, a casa de força tem aproximadamente um metro e meio de altura e um

metro de largura, esse local é reservado para os exus, guardiões do terreiro. As casas de força em cada terreiro,

tem tamanhos e formatos diferente, não existe um padrão.

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Ao centro do prédio situa-se uma porta de vidro, e nas duas laterais vitros em formato de

obelisco compõem a arquitetura, na parte proeminente da fachada, estão presentes alguns

pontos riscados, que são atribuídos aos exus e pretos-velhos5, esses pontos estão presente do

lados esquerdo e direito do frontispício e são separados por um letreiros onde se vê escrito,

“Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola”, acima do letreiro, uma pequena torre, contendo ao

meio a imagem de Iemanjá e sobre a torre uma cruz, que nos mostra a imponência desse terreiro.

Outro aspecto interessante desse terreiro é a sua localização, além de estar na entrada de um

bairro de classe média, ele também está relativamente próximo ao centro histórico de São João

del- Rei, onde se encontram as setecentistas igrejas barrocas. Entretanto, essa proximidade não

é habitual entre os outros terreiros existentes na cidade, pois a geografia que cerca a construção

do centro histórico, é marcada pela separação das culturas, dominantes e a não dominante

(COSGROVE, 1989: 226, 227). Nesse sentido, os geógrafos que estudam o desenvolvimento

urbano de São João del- Rei, nos mostram as marcas da delimitação histórica do centro da

cidade.

O centro histórico de São João del- Rei guarda hoje as formas em que a cidade foi

concebida, representada, assim como, o registro de práticas sociais cotidianas que

marcaram a racionalização do seu espaço. Neste espaço construído, lugar onde a

vida acontecia integrada à economia, à política, à cultura, às normas e

regulamentações institucionais havia uma centralidade, uma unidade, a partir da

qual as diferenciações espaciais da cidade iam se tornando desigualdades com a

constituição de uma divisão social e territorial do trabalho intra e interurbana, nos

séculos seguintes. (SANTOS & AGUIAR: 2016: 65, 66)

5 Quem nos esclareceu os significados dos ponto-riscados foi o zelador de santo, Cláudio Márcio do Carmo,

filho de santo da casa.

Imagem 1: Foto da fachada da Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, ano de 2017, Localizada através do Google Street View.

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Apesar da tenda espírita estar localizado hoje em dia em uma área central da cidade, a edificação

do prédio é anterior a esse processo de crescimento da urbe, que hoje se faz presente ao redor

do terreiro. Ressalto essa particularidade, pois na pesquisa, pudemos observar que a maioria

dos terreiros estão distantes do centro da cidade e aqueles mais próximos passam por

despercebidos, algo que acontece ao contrário com a Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola,

que atrai olhares daqueles que passam em sua frente, fazendo a sua identificação, como um

templo religioso de matriz afro-brasileira.

O bairro São Judas Tadeu, anteriormente era conhecido como “Caieiras”, quem nos relata um

pouco sobre a história do bairro é Eunice Ferreira Alves de Oliveira, 78 anos, uma das

moradoras mais antigas do bairro, sua casa de estilo colonial, fica também na entrada do bairro,

em frente a Tenda do Pai Joaquim de Angola, na fachada de sua residência encontra-se ainda

uma placa indicando o antigo nome do bairro, “Vila Caieiras”.

Moradora do bairro a mais de quarenta e cinco anos, Dona Eunice, nos descreve como era o

bairro na década de 1960, período da construção do terreiro.

Quando eu mudei para cá, não tinha prédio, não tinha nada dessas coisas aqui, só

tinha a minha casa. Meu marido que comprou essa casa. [...]. Quando eu mudei para

cá tinha também a Escola Padre Sacramento, mas esses prédios, isso tudo, tinha nada

disso. Caieira!? Tinha nada disso, só tinha a casa da Márcia, onde morava o Dão, o

sargento, ele que doou o terreno para o terreiro. Olha vou te contar isso aqui não

tinha nada, era tudo pelado, tinha uma lagoa, tinha um campinho, onde os meninos

jogavam bola. [...], aqui só tinha uns casebres, quando você chegava na cidade, olha

pra aqui, você enxergava nada, era pasto, isso daqui tinha nada. [...] o terreiro

também já existia. (Entrevista Cedida por Eunice Ferreira Alves de Oliveira a Rafael

Teodoro Teixeira no dia 22 de fevereiro de 2018)

A partir do depoimento de Dona Eunice, podemos perceber a mudança da paisagem ao longo

do tempo. Onde tinha poucas casas e era um lugar cercado de campo e lagoas, hoje localiza-se

na mesma região da Tenda do Pai Joaquim, a Superintendência Regional de Ensino de São João

del- Rei - MG, a Seicho-No-Ie e a Unidade de Pronto Atendimento - UPA, além dos comércios

e prédios que estão espalhados ao redor. Outro ponto que devemos salientar é a história do

antigo nome do bairro, Caieira, que foi substituído para homenagear o santo padroeiro da

comunidade, São Judas Tadeu, entretanto o velho nome ainda está presente no cotidiano dos

são-joanenses.

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Ali no pedaço do Veloso tinha umas cobertas, não tinha aquele prédio, tinha nada

ali, eu lembro, quando eu era menina, ali tinha umas cobertas, fincava uns moirões e

põe umas folhas de zinco em cima, eu lembro do cal, assim nos cantos, [...] é por isso

que aqui chama Caieira, por causa da fábrica de cal (Entrevista cedida por Eunice

Ferreira Alves de Oliveira em 22 de fevereiro de 2018.)

Esse também é um dos motivos que denuncia que a edificação do terreiro, foi feita em um lugar

marginal, ou seja, afastado do centro histórico da cidade e também da elite local, uma vez que

a produção de cal, espalhava resíduos de calcário, fumaça de poeira e também vapor, no

perímetro da fábrica, pois a mesma ficava situada poucos terrenos atrás do Pai Joaquim.

Ao lado esquerdo foi construída posteriormente uma casa de apoio que era anexa ao terreiro,

nela morava o Sr. Antônio Neri Damaso, mas todos chamavam de Sr. Toninho, ele era o Pai de

Santo do Terreiro e tinha como mentor o Pai Joaquim de Angola, junto com ele morava sua

esposa, Srª. Antônia Maria Damaso que era conhecida como Dona Glorinha, que futuramente

veio tomar frente do terreiro6, a casa é descrita assim pela entrevistada, “essa casa, ela veio

depois do terreiro, era dois quartos, um quartinho pequeno, um quarto maior, uma sala e uma

cozinha.” (Entrevista cedida por Eunice Ferreira Alves de Oliveira em 22 de fevereiro de 2018.),

pela casa tinha acesso ao terreiro, pois na mesma era preparada as comidas das festas de

comemoração aos Orixás e também das entidades da Umbanda como os pretos-velhos, caboclos

e erês.

6 Os Zeladores espirituais que passaram pela história do Pai Joaquim, foram, Sr. Antônio Neri Damaso, Sr. Antônia

Maria Damaso, Nem do Aticrino ou Nem do Cachimbo, como era conhecido pela maioria das pessoas, esse

primeiro grupo, consiste na formação inicial do terreiro, depois o terreiro foi coordenado pelo Sr. Domingos e por

final Dona Maria Pintada.

Imagem2: Em pé da esquerda para Direita Dona Maria Andreza, Antônio Neri Damaso - Sr. Toninho e Antônia Maria Damaso - Dona Glorinha. Acervo: TEPJA

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Nesse sentido, podemos ver quão significativo é o espaço da Tenda Espírita Pai Joaquim de

Angola, como um lugar de memória para o bairro e também para a cidade de São João del- rei,

pois ele não traz só as memórias das religiões de matriz afro-brasileira, ele carrega consigo a

história do local que ocupa.

Esses espaços também estão abertos para o imaginário preconceituoso que ronda essas

religiões, particularmente, já ouvimos de inúmeras pessoas, dizendo histórias que envolvem o

terreiro, essas memórias ligadas ao desconhecimento das práticas religiosas de matriz africana.

Para os adeptos das religiões de matriz afro-brasileira, um terreiro também é espaço de

memória, onde ele pode encontrar com a sua ancestralidade, a partir dos rituais, que em muitos

envolve transes “místicos”, cânticos, danças e sacrifícios. Nesse sentido, Pierre Nora (1993),

evidencia que esses lugares de memória, mesmo que fechados em sua identidade, estão abertos

para receber inúmeros significados.

Mas o que faz os lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam da

história. Templum: recorte no indeterminado do profano - espaço ou tempo, espaço

e tempo - de um círculo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa.

Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado

sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade; e recolhido sobre o seu nome, mas

constantemente aberto sobre a extensão de suas significações. (NORA, 1993,p. 27)

Imagem 3: Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, ao lado esquerdo a casa dos zeladores e ao fundo o bairro São Judas Tadeu/Caieira, 31/03/1972 – Acervo: TEPJA

Imagem 4: Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, ao lado esquerdo a casa dos zeladores e ao fundo o bairro São Judas Tadeu/Caieira, 18/04/2018 – Acervo: Pessoal

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Significados estes que a princípio são regados de discriminação, conforme visto nos

depoimentos recolhidos para este trabalho, como de Aparecida dos Santos Silva, 61 anos, que

antes de frequentar assistência do terreiro as histórias sobre ele a assombrava.

O que eu lembro de lá, estava construindo, ali era puro mato, era uma caieira, e a

gente tinha medo de passar ali, negócios de espiritismo, falavam que os espíritos

iriam aparecer para a gente, a gente era criança. [...] tinha uma estradinha de terra,

que a gente ia para o grupo e passava correndo na porta do terreiro, para o espírito

não pegar a gente. [...], ai quando eu tinha uns 15 anos, eu fui levar o meu irmão,

que estava dando muito trabalho, ai ele começou a namorar uma moça, ai toda a

quarta-feira a gente ia na sessão, a mãe xingava muito, brigava, nos batia, mas dava

sete horas estava nós três lá no Pai Joaquim, mas nós íamos mesmo. (Entrevista

cedida por Aparecida dos Santos Silva em dia 09 de abril de 2018.)

Esse é um dos exemplos que podemos citar sobre o imaginário que envolve a tenda e das

religiões, além de outras histórias que faziam e ainda fazem parte do cotidiano do Pai Joaquim.

Outro exemplo é dado a partir do testemunho de Vinicius de Carvalho, 31 anos, que nunca

acompanhou os trabalhos do terreiro, “quando a gente estava entrando na Caieira, se tivesse do

lado da calçada do terreiro, a gente parava, atravessava a rua e passava do outro lado da calçada,

só para não passar na mesma calçada do terreiro, eu fiz isso a minha infância e adolescência

toda” (Entrevista cedida por Vinicius de Carvalho em 10 de abril de 2018). Esse imaginário é

impregnado pela falta de conhecimento e sobretudo pelo preconceito que era gerado pela igreja

católica, que aconselhava seus fiéis a ficarem distantes de lugares onde fazem feitiçarias, apesar

da tenda não sofrer ataques físicos, outros terreiros da Umbanda mais distantes, sofriam esse

tipo de ameaça em São João del- Rei7.

“Dim dim dim dim/ Vamos saravá Pai Joaquim”

O subtítulo é um trecho de um ponto cantado, entoado na Tenda Espírita Pai Joaquim de

Angola. Hoje se repete em sua homenagem no Ilê Axé Omolocô Ti Oxóssi Ogbani. Zelado por

Cláudio Márcio do Carmo, 41 anos, ele começou a frequentar o terreiro ainda criança, ná década

de 1980, acompanhando sua mãe, Maria Isabel do Carmo, filha do terreiro do Pai Joaquim e

trabalhava de empregada doméstica para o Sr. Toninho e Dona Glorinha, zeladores da tenda

espírita.

7 Quem nos relatou esses atos de violência e preconceito, contra as religiões de matriz africana em são João del-

Rei foi o Sr. Domingos Ramos Sobrinho.

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Através de seus depoimentos Cláudio nos relata sobre a formação do terreiro, inicialmente

percorreu as ruas de São João del- Rei, para então situar na entrada do bairro São Judas

Tadeu/Caieira. Outro depoente que também nos revela a trajetória do terreiro é Domingos

Ramos Sobrinho, 73 anos, sobrinho de Dona Antônia Maria Damaso, a Dona Glorinha, junto

com sua tia e o esposo ele pode acompanhar até o ano de 1972 o crescimento do terreiro do

“Pai Joaquim”.

Este centro ou Pai Joaquim de Angola, eu comecei a frequentá-lo, como fala aqui em

Minas, rapazinho! Lá na Rua Santo Antônio, o grupo que era envolvido ali, era o meu

próprio padrinho, o Nem do Aticrino8, Dona Maria Andreza, Guilherme Neves,

evidentemente a Tia Glória e outros que eu não me lembro no momento. Mas como a

frequência começou a ficar muito significativa, logo foi feito um movimento, para

arrumar um local adequado, porque lá era uma casa adaptada ao terreiro.

(Entrevista cedida por Domingos Ramos Sobrinho, em 20 de abril de 2018)

Maurice Halbwachs (2006) nos diz que “a nossa impressão pode se basear não apenas na nossa

lembrança, mas também na dos outros, nossa confiança na exatidão será maior”

(HALBWACHS. 2006: 28). Nesse sentido, colocamos em diálogos os depoimentos do Sr.

Domingos Sobrinho e do Zelador Cláudio Carmo para entendermos melhor a trajetória da

Tenda Pai Joaquim de Angola.

O que me parece mais consensual, porque eu sei por histórias dos médiuns mais

antigos, e que ele se originou da necessidade de ter um lugar próprio, porque eles

alugaram uma casa, aliás, eu não vou dizer que a casa era alugada, porque eu não

sei qual era a condição da casa, se era própria ou não, eu acho que era alugada,

porque se precisa-se às vezes sair, tudo indica que era aluguel, que era na Rua Santo

Antônio, onde eles faziam os trabalhos [...], de lá eles tiveram uma temporada na Rua

São João, acredito mais pela influência do senhor Nem, que tinha uma casa na Rua

São João, desse momento, eles começaram a construir a sede do Pai Joaquim, onde

é até hoje, então foi Rua Santo Antônio, com uma Passagem na Rua São João e depois

eles já construíram o terreiro. (Entrevista cedida por Cláudio Márcio do Carmo,

concedida em 16 de abril de 2018).

Antes da fundação do terreiro, o grupo se denominava como Nossa Senhora da Guia, só

posteriormente com construção do prédio que veio chamar Tenda Espírita Pai Joaquim de

Angola, no entanto os entrevistados não entram em detalhes, pois a memória sobre esse

8 Nem do Aticrino, também é identificado pelos entrevistados como Nem do Cachimbo ou Sr. Nem.

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processo é muito superficial, a mais coerente entre os depoimentos é o aumento da frequência

de adeptos da religião, que se resultou na necessidade de ter um local apropriado para o grupo.

Com a edificação da sede, o número de pessoas a procura do terreiro teve um aumento

significativo, atraindo pessoas da cidade e da região, além de novos membros para a casa.

O centro, realmente foi evoluindo, o mais frequentado, era o “Maracanã” da

Umbanda aqui. [...] era a “Meca” da Umbanda na região, então vinha pessoas de

vários lugares, visita de outras casas de Umbanda, pessoas de outras cidades, aqui

realmente você tinha que agendar para ser atendido, notadamente, nas sextas-feiras,

era mesmo superlotado. (Entrevista cedida por Domingos Ramos Sobrinho em 20 de

abril de 2018)

Além do Sr. Domingo, quem nos relata também sobre esse movimento do terreiro é Regina dos

Santo Chagas, 58 anos, ela foi ogã9 e médium do terreiro, começou seus trabalhos espirituais

também criança, no início de 1970, e permaneceu no terreiro por mais de 30 anos.

Muita gente, procurava o terreiro do Pai Joaquim, era muito famoso, era o terreiro

mais famoso que tinha, e olha eu vou te falar, ajudaram muitas pessoas, lá lotava, lá

enchia de mais, era tanto os bancos do lado dos homens e das mulheres, que os bancos

ficavam todos já ocupados, que as pessoas ficavam em pé atrás. A Toninha10 ajudou

muitas pessoas, a minha preta velha ajudou muitas pessoas, não só os meus, todos lá

de dentro ajudavam, enchia muito, toda segunda, quarta e sexta, você nunca via o

terreiro vazio, muitos assistentes11, muita gente, conseguiu muita graça lá. A gente

ia para as cachoeiras, todo dia oito de dezembro, porque pra gente que é umbanda

pura, o dia de Iemanjá, para nós a gente comemora no dia oito de dezembro, então a

gente ia para alguma cachoeira, podia ser a de Tiradentes ou alguma outra. A gente

se reunia a cinco horas da manhã na porta do Pai Joaquim, ai saia dois ônibus, a

gente ficava o dia inteiro trabalhando, o tempo todo trabalhando aí vinha preto velho,

caboclo, baiano, criança, exu, pomba gira, tudo, as entidades desciam todas, a gente

vinha embora a noite. [...] era muitos médiuns, tinha mais ou menos uns vinte

médiuns, mais um pouquinho. A ogã tinha Jorge, que era o chefe das ogãs, tinha mais

cinco tocando atabaques e sete mulheres catando os pontos, e ficava nenhum minuto

sem cantar ponto, tinha também os cambonos,12 cada preto velho tinha um cambono.

(Entrevista cedida por Regina do Santo Chagas em 18 de março de 2018)

9 Ogã no Candomblé cargo reservado aos homens, para tocar os atabaques, na Umbanda o ogã, poder ser homem

ou mulher, além de tocar os atabaques, auxilia a mãe ou o pai de santo. 10 Entidade criança, chamada dentro da religião afro-brasileira, como erê. 11 Assistência ou assistentes são as pessoas que irão se consultar com as entidades da Umbanda 12 Pessoa responsável de auxiliar o pai ou mãe de santo e também os médiuns incorporados.

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Dona Eunice, também relata que as filas para entrar no Pai Joaquim, dobravam a esquina e que

era tudo muito regrado, o modo de organização do terreiro é descrita por Regina, Cláudio e

Domingos da seguinte forma, os homens ficavam sentados nos bancos do lado esquerdo e a

mulheres do lado direito, as crianças também ficavam juntos com as mulheres, também se

respeitava essa composição dentro do congá13.

A estrutura física do terreiro também era dividida, em ambos os lados continha um banheiro,

um filtro de água e um lavatório, destinados a assistência. Para os filhos da casa, eram

reservados três vestiários, todos com banheiro, um para as mulheres, outro para os homens e

um pequeno quarto para os ogãs.

Durante o desenvolvimento deste trabalho, tivemos acesso ao interior da tenda, dessa forma,

conseguimos ter uma visibilidade melhor da estrutura. Abrindo a porta principal, uma bancada

com uma parede azul atrás, impede a visão dos passantes, sobre a bancada encontra-se três

imagens grandes, sendo uma de São Jorge, a outra de São Lázaro e do Pai Joaquim de Angola,

passando deste ponto, tanto do lado esquerdo e quanto do direito, largos bancos brancos de

encosto, ficam em fileiras no salão da assistência, no meio deste salão, próximo ao espaço

reservado ao congá, um pequeno cruzeiro com as insígnias de Cristo em seus pés imagens de

pretos velhos, caboclos e erês compõe a aura do ambiente.

A divisão entre o salão da assistência e o salão do congá, é feita por uma grade azul, indicando

a entrada e saída dos assistidos, um portal de pedras São Thomé indica o espaço reservado para

congá, sobre esse portal uma coluna vertical pintada de azul, sobre o azul, um letreiro pintado

de prata, fazendo as homenagens aos chefes espirituais da casa e a saudação de boas-vindas a

todos os visitantes.

Apoiado nessa coluna, três casinhas de João de barro, duas do lado direito, uma no lado

esquerdo acompanhado de um alto falante, Cláudio Carmo nos esclareceu que antes de começar

as giras, os participantes da sessão, ficavam ouvindo pontos cantados de um toca-discos, no

meio desta coluna a imagem de um caboclo.

Emoldurado neste portal o salão do congá, ao lado esquerdo uma varanda interna separava os

ogãs dos médiuns da casa, centralizado na parte superior do salão um triângulo com areia

branca, onde se encontra o fundamento do terreiro a força espiritual de sustentação, em frente

o congá propriamente dito, todo revestido de pedras, nele está depositado, imagens de caboclos,

pretos velhos, alguns santos católicos e de Jesus Cristo, ao lado esquerdo uma porta leva para

13 Altar central dos terreiros de Umbanda, onde é depositado imagens de pretos velhos, caboclos e também de

santos católicos.

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o vestiário feminino, já no direito lado uma porta leva para o masculino, uma outra porta do

mesmo lado da acesso a uma gruta artificial, com uma cascata d’água e sobre ela a imagem de

Nossa Senhora de Lourdes.

Conclusão:

Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, foi um dos terreiros mais conhecidos na cidade e na

região de São João del- Rei. Além disso, ele é responsável pela formação da maioria das mães

e pais de santo, chefes de terreiros da cidade. Entretanto, no início dos anos 2000, o Pai Joaquim

fechou suas portas, ficando mais de 15 anos com seus tambores silenciados.

Mas no dia 30 de março de 2018, o Zelador Cláudio e outros filhos da casa, que tem ligações

afetivas com o terreiro, tiveram acesso as chaves a Tenda, através da intervenção do congadeiro

Luthero Castorino, amigo da família da última zeladora do terreiro, Dona Maria Pintada.

Atualmente o terreiro está passando por um processo de restauração, um terreiro que no passado

era sinônimo de conhecimento das práticas religiosas, hoje encontra-se com bancos quebrados,

imagens em estado de deterioração, assoalho podres, sem os atabaques, sem os tambores e sem

vida.

A partir desse processo de reabertura, tivemos acesso a um armário, contendo atas, fotografias,

cadernos de presença dos médiuns e cambonos, nessa vasta documentação, mostra que o

terreiro tinha um corpo administrativo, para cuidar da manutenção e das burocracias. Ao

contrário de alguns terreiros de São João del- Rei, a Tenda Espírita, de alguma forma,

preocupava com a sua memória. Essa documentação está em fase de análise e também de

higienização, pois o armário onde estava alocado, encontrava-se úmido e deteriorado. Nesse

sentido, escrever sobre a memória da Tenda Espírita Pai Joaquim de Angola, no atual momento

em que o Brasil está passando, com o crescimento do conservadorismo e ataques em terreiros,

é um ato de resistência aos anos de silenciamento que as religiões de matriz afro-brasileira

sofreram dentro da história do Brasil.

Referências:

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