Merlin anos perdidos_cap1

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I U M O LHO V IVO Estou sozinho sob as estrelas. O céu inteiro se incendeia como se um novo sol estivesse nas- cendo. As pessoas gritam e fogem correndo. Mas eu fico ali, inca- paz de me mexer, incapaz de respirar. Então, vejo a árvore, mais escura do que uma sombra contra o céu em chamas. Os galhos que queimam se contorcem como serpentes mortais. Eles se estendem na minha direção. Os galhos em chamas se aproximam. Tento escapar, mas minhas pernas são feitas de pedra. Meu rosto está queimando! Escondo os olhos. Grito. Meu rosto! Meu rosto está queimando! Acordei. O suor irritava meus olhos. A palha da cama arranhava meu rosto. Piscando, inspirei profundamente e esfreguei as mãos na face. Estas pareciam frias de encontro ao rosto. Ao coçar os braços, senti novamente a dor entre as omo- platas. Ainda presente! Queria que a dor passasse. Por que isso ainda me incomodava agora, mais de cinco anos desde o dia em que apareci na praia? Os machucados na cabeça haviam sarado fazia muito tempo, embora ainda não me lembrasse de nada da minha vida antes de ser jogado contra as pedras. Então por que esse machucado deveria durar tan- Merlin__Anos_Perdidos.indd 31 05/07/2013 12:58:16

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I

U M O LH O V I VO

Estou sozinho sob as estrelas.

O céu inteiro se incendeia como se um novo sol estivesse nas-

cendo. As pessoas gritam e fogem correndo. Mas eu f ico ali, inca-

paz de me mexer, incapaz de respirar. Então, vejo a árvore, mais

escura do que uma sombra contra o céu em chamas. Os galhos que

queimam se contorcem como serpentes mortais. Eles se estendem

na minha direção. Os galhos em chamas se aproximam. Tento

escapar, mas minhas pernas são feitas de pedra. Meu rosto está

queimando! Escondo os olhos. Grito.

Meu rosto! Meu rosto está queimando!

Acordei. O suor irritava meus olhos. A palha da cama arranhava meu rosto.

Piscando, inspirei profundamente e esfreguei as mãos na face. Estas pareciam frias de encontro ao rosto.

Ao coçar os braços, senti novamente a dor entre as omo-platas. Ainda presente! Queria que a dor passasse. Por que isso ainda me incomodava agora, mais de cinco anos desde o dia em que apareci na praia? Os machucados na cabeça haviam sarado fazia muito tempo, embora ainda não me lembrasse de nada da minha vida antes de ser jogado contra as pedras. Então por que esse machucado deveria durar tan-

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to tempo assim? Dei de ombros. Assim como tantas outras coisas, eu jamais saberia.

Comecei a enfiar um pouco de palha solta de volta ao colchão quando meus dedos encontraram uma formiga que arrastava o corpo de um verme várias vezes maior do que ela. Fiquei observando, quase rindo, enquanto a formiga tentava escalar a montanha de palha em miniatura. Ela podia facil-mente ter dado a volta por um lado ou pelo outro, mas não; algum motivo misterioso levava a formiga a tentar, rolar de costas, tentar novamente, rolar outra vez. Por vários minu-tos, eu assisti ao desempenho repetitivo.

Finalmente, fiquei com pena da pequenina. Estiquei a mão para pegar uma das patas, depois me dei conta de que poderia arrancá-la, especialmente se a formiga se debates-se. Então, em vez disso, peguei o verme. Conforme eu já esperava, a formiga se manteve agarrada a ele e se debateu freneticamente.

Levei a formiga e sua presa sobre a palha e pousei com delicadeza do outro lado. Para minha surpresa, quando sol-tei o verme, a formiga fez o mesmo. Ela se virou para mim, sacudindo as antenas freneticamente. Fiquei com a nítida impressão de estar levando uma bronca.

— Desculpe — sussurrei, rindo.A formiga me repreendeu por mais alguns segundos. De-

pois abocanhou o verme e começou a arrastar a carga pesada e ir embora. Para seu lar.

Meu sorriso desapareceu. Onde eu poderia encontrar meu próprio lar? Eu arrastaria esse colchão todo, a cabana inteira se necessário, se ao menos soubesse aonde ir.

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Ao virar a cabeça para a janela aberta, vi a lua cheia que brilhava tão intensamente quanto um pote de prata der-retida. O luar entrava pela janela e, através dos buracos no teto de palha, pintava o interior da cabana com seu pincel reluzente. Por um instante, o luar quase disfarçou a pobre-za do ambiente ao cobrir o chão de terra com uma camada de prata, as paredes rústicas de barro com centelhas de luz, a forma ainda adormecida no canto com o brilho de um anjo.

No entanto, eu sabia que era tudo uma ilusão, não mais real do que meu sonho. O chão era apenas terra, a cama somente palha, a moradia uma mera choupana feita de ra-mos unidos por barro. O cercado coberto para os gansos que ficava ao lado tinha sido construído com mais capricho! Eu sabia porque às vezes me escondia ali quando o grasnar dos gansos parecia mais agradável do que a gritaria e falatório das pessoas. O cercado era mais quente do que a cabana em fevereiro e mais seco em maio. Mesmo que eu não mereces-se algo melhor do que os gansos, ninguém questionava que Branwen merecia.

Eu observava seu corpo adormecido. A respiração, tão su-til que mal levantava o cobertor de lã, parecia calma e serena. Porém, eu sabia a verdade. Embora tivesse paz ao dormir, isso não acontecia quando ela estava acordada.

Branwen se remexeu enquanto dormia e rolou o rosto na direção do meu. Sob o luar, parecia ainda mais linda do que o normal, a face sedosa e a testa completamente relaxa-das, do jeito que ficavam apenas nas noites em que dormia profundamente. Ou nos momentos de prece silenciosa, que ocorriam cada vez com maior frequência.

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Franzia a testa para Branwen. Se ao menos ela falasse. Se me contasse o que sabia. Pois se sabia algo sobre o nosso passado, ela se recusava a discutir o assunto. Se fazia isso por realmente não saber ou simplesmente por não querer que eu soubesse, eu jamais seria capaz de dizer.

E, nos cinco anos em que dividimos esta cabana, ela re-velou pouco a respeito de si mesma. Exceto pelo toque cari-nhoso de sua mão e pela tristeza sempre presente no fundo dos olhos, eu mal a conhecia. Só sabia que não era minha mãe, como ela alegava.

Como eu podia ter tanta certeza de que Branwen não era minha mãe? De algum modo, no fundo do coração, eu sabia. Ela era distante demais, reservada demais. Com certeza uma mãe, uma mãe de verdade, não esconderia tantas coisas do próprio filho. E se eu precisasse de mais convicção, bastava olhar para o rosto de Branwen. Tão lindo — e tão diferente do meu. Não havia sinal de negritude naqueles olhos, nem de pontas nas orelhas! Não, eu era tão seu filho quanto os gansos eram meus irmãos.

Eu tampouco podia acreditar que o nome dela era Branwen e que o meu era Emrys, como ela tentara me con-vencer. Fossem quais fossem os nomes que nós tínhamos antes de sermos cuspidos pelo mar sobre as rochas, de algu-ma forma eu achava que não eram aqueles. Por mais que ela me chamasse de Emrys, eu não conseguia afastar a sensação de que meu verdadeiro nome era... outro. No entanto, eu não fazia ideia de onde procurar a verdade, exceto talvez nas sombras agitadas dos meus sonhos.

Branwen, se é que esse era realmente seu nome, somente exibia um traço da verdadeira personalidade nas ocasiões

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em que me contava histórias. Especialmente as dos anti-gos gregos. Aqueles contos eram claramente seus favori-tos. E meus, também. Quer ela tivesse noção disso, quer não, uma parte de Branwen parecia ganhar vida quando falava de gigantes e deuses, monstros e jornadas nos mitos gregos.

Verdade seja dita, ela também gostava de contar histórias dos druidas curandeiros ou do milagreiro da Galileia. Mas as histórias sobre os deuses e deusas gregos davam uma luz especial aos olhos cor de safira. Às vezes, eu quase tinha a impressão de que contar aquelas histórias era a maneira que Branwen tinha de falar sobre um lugar que acredita-va realmente existir — um lugar onde criaturas estranhas perambulavam pela terra e grandes espíritos se misturavam aos humanos. Toda aquela ideia parecia tola a meu ver, mas aparentemente não para ela.

Um súbito clarão de luz na garganta de Branwen inter-rompeu meus pensamentos. Eu sabia que era apenas o luar sendo refletivo no pingente, ainda pendurado no cordão de couro em volta do pescoço, embora o tom de verde pareces-se mais intenso hoje à noite do que jamais esteve. Percebi naquele momento que jamais tinha visto Branwen tirar o pingente, nem mesmo por um instante.

Algo bateu na terra atrás de mim. Eu me virei e vi um monte de folhas secas, delgadas e prateadas sob o luar, pre-sas por um ramo de grama. Devia ter caído da viga acima, que sustentava não apenas o telhado de sapê mas também dezenas de ramalhetes de ervas, folhas, flores, raízes, nozes, lascas de caule de árvore e sementes. Isso era apenas uma parcela da coleção de Branwen, porque havia muitos rama-

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lhetes pendurados no caixilho da janela, atrás da porta e na mesa bamba ao lado do seu colchão.

Por causa dos ramalhetes, a cabana inteira cheirava a to-milho, raiz de faia, semente de mostarda e mais. Eu adorava os aromas. Exceto o de endro, que me fazia espirrar. A casca do cedro, minha favorita, me elevava como se eu fosse um gigante, as pétalas de lavanda faziam cócegas nos pés, e a alga marinha me lembrava de alguma coisa que eu não con-seguia recordar exatamente.

Ela usava todos esses ingredientes e apetrechos para fa-zer pós, pastas e cataplasmas de cura. A mesa continha uma enorme variedade de tigelas, facas, trituradores, pilões, coa-dores e outros utensílios. Frequentemente, eu via Branwen triturar folhas, misturar pós, espremer plantas ou aplicar uma mistura de remédios na ferida ou verruga de alguém. No entanto, eu sabia tão pouco a respeito de seu trabalho como curandeira quanto a seu respeito. Embora Branwen me permitisse assistir, ela não conversava ou contava histó-rias; simplesmente seguia trabalhando, geralmente enquan-to entoava um ou outro cântico.

Onde ela havia aprendido tanto sobre a arte de curar? Onde havia descoberto as histórias de tantas terras e épocas distantes? Onde tinha encontrado pela primeira vez os ensi-namentos do homem da Galileia que cada vez mais ocupa-vam seus pensamentos? Ela não revelava.

Eu não estava sozinho quando me irritava com o silên-cio de Branwen. Geralmente os aldeões cochichavam pelas costas dela e se perguntavam a respeito de seus poderes de cura, da beleza fora do comum, dos estranhos cânticos. Ouvi até mesmo as palavras feitiçaria e magia negra uma vez ou

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outra, embora isso não parecesse desencorajar as pessoas a procurá-la quando precisavam tratar um furúnculo, curar uma tosse ou afastar um pesadelo.

A própria Branwen não parecia preocupada com os cochichos. Desde que a maioria das pessoas pagasse pela ajuda, de maneira que pudéssemos continuar a sobreviver, Branwen não parecia se importar com o que elas pudessem pensar ou dizer. Recentemente, ela atendera um velho mon-ge que escorregara nas pedras molhadas da ponte do moi-nho e cortara o braço. Enquanto enfaixava a ferida, Branwen proferiu uma bênção cristã, o que pareceu deixá-lo satisfeito. Quando ela entoou a seguir um cântico druídico, porém, o monge a repreendeu e a alertou sobre blasfêmia. Branwen respondeu calmamente que o próprio Jesus foi tão dedicado a curar os outros que poderia ter sido bem capaz de se valer da sabedoria dos druidas, assim como a de outros agora cha-mados de pagãos. Naquele momento, o monge arrancou a bandagem com raiva e foi embora, mas não sem antes dizer para metade da vila que ela estava fazendo o trabalho de demônios.

Eu me voltei para o pingente. Parecia brilhar com a pró-pria luz, não apenas a da lua. Pela primeira vez notei que o cristal no centro não era apenas uniformemente verde, como aparentava a distância. Quando me aproximei, desco-bri tons de violeta e azul que fluíam como córregos debaixo da superfície, enquanto lampejos vermelhos pulsavam como milhares de pequeninos corações. O pingente quase parecia um olho vivo.

Galator. A palavra surgiu subitamente na minha mente. Ele é chamado de Galator.

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Balancei a cabeça, confuso. De onde veio aquela palavra? Eu não conseguia me lembrar de já tê-la ouvido. Devo ter escutado na praça do vilarejo, onde vários dialetos — celta, saxão, romano, gaélico e outros ainda mais estranhos — co-lidiam e se misturavam a cada dia. Ou talvez de uma das próprias histórias de Branwen, que eram repletas de pala-vras dos gregos, judeus, druidas e outros grupos ainda mais antigos.

— Emrys!O sussurro agudo me assustou tanto, que dei um pulo.

Encarei os olhos profundamente azuis da mulher que divi-dia a cabana e as refeições comigo, porém nada mais.

— Você está acordada.— Estou. E você estava olhando de maneira estranha

para mim.— Não para você — respondi. — Para o pingente. — Em

um impulso, acrescentei — Para seu Galator.Branwen arfou. Com um gesto rápido, enfiou o pingen-

te dentro do robe. Depois, enquanto tentava manter a voz calma, falou:

— Essa não é uma palavra que eu me lembre de ter dito para você.

Arregalei os olhos.— Você quer dizer que é a palavra de verdade? A palavra

certa?Ela me observou de maneira cautelosa, quase começou a

falar, depois se conteve.— Você deveria estar dormindo, meu filho.Como sempre, eu ficava arrepiado quando ela me chama-

va assim.

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— Eu não consigo dormir.— Será que uma história ajudaria? Eu podia terminar

aquela sobre Apolo.— Não. Agora não.— Posso preparar uma poção para você, então.— Não, obrigado. — Balancei a cabeça. — Quando você

fez isso pelo filho do telhador, ele dormiu por três dias e meio.

Um sorriso surgiu nos lábios de Branwen.— Ele bebeu a dose de uma semana de uma vez só, pobre

tolo.— Está quase amanhecendo, de qualquer forma.Ela recolheu o cobertor rústico de lã.— Bem, se você não quer dormir, eu quero.— Antes que você durma, pode me contar mais sobre

aquela palavra? Gala... Ah, como é mesmo?Aparentemente sem me escutar, ela se envolveu no costu-

meiro manto de silêncio enquanto se cobria com o cobertor de lã e fechava os olhos novamente. Em segundos, Branwen parecia estar dormindo outra vez. No entanto, a paz que eu tinha visto em seu rosto parecia ter ido embora.

— Pode me contar?Ela não se mexeu.— Por que você nunca me ajuda? — reclamei. — Eu pre-

ciso da sua ajuda.Ainda assim, ela não se mexeu.Eu a observei com tristeza por um tempo, depois rolei

para fora do colchão, fiquei de pé e joguei água de uma grande tigela de madeira ao lado da porta no rosto. Olhei novamente para Branwen e senti uma onda de raiva renova-

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da. Por que ela não me respondia? Por que não me ajudava? No entanto, enquanto eu a olhava, senti uma pequena pon-tada de culpa por nunca ter sido capaz de chamá-la de Mãe, embora soubesse como isso iria deixá-la contente. E, no en-tanto... que espécie de mãe se recusaria a ajudar o filho?

Peguei o puxador de corda da porta. Ela raspou a terra ao se abrir, e eu saí da cabana.

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