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Clonagem reprodutivaversus clonagem

terapêutica: avanços elimites

MESA-REDONDA

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CLONAGEM REPRODUTIVA E CLONAGEM TERAPÊUTICA: QUESTÕES JURÍDICAS*Luiz Fernando Coelho

RESUMO

Esboça um paralelo histórico-cultural vivido pela humanidade ao longo de gerações, especificamente no que concerne aos direitos humanos, com ênfase na questãoda bioética, consubstanciada na prática efetiva da clonagem humana, bem como seus prováveis reflexos junto à sociedade, seja no âmbito filosófico, religioso,científico ou econômico.Acredita o autor que, na sociedade biotecnológica, o fim justifica os meios e que essa ideologia vem sendo legitimada por nova racionalidade instrumental e novo critériode legitimidade funcionalista, razão pela qual entende que os procedimentos técnicos de manipulação genética serão legitimados em função de seus objetivos técnicos,tal como já ocorre na engenharia genética destinada à produção de alimentos.

PALAVRAS-CHAVEGenética; gravidez; clonagem; fecundação in vitro; biotecnologia; bioética; Constituição; princípio da dignidade da pessoa humana.

____________________________________________________________________________* Conferência proferida no Seminário Internacional Clonagem Humana: Questões Jurídicas.

1 A REVOLUÇÃO GENÉTICA E OBIODIREITO.

No evoluir da humanidade, cer-tos acontecimentos revestem-se de simbolismo historiográ-

fico tão importante que os tornamemblemáticos da própria história. Onascimento de Jesus Cristo divide ahistória, tal como a Revolução France-sa marca o início de nova fase damodernidade, a da civilização tecno-lógica. Após a transição do pós-guer-ra, que vai até os anos 60, passamos avivenciar a chamada “pós-moder-nidade”, a qual tem sido definida comoa era da informação.

Este turbulento período da his-tória, vivido por minha geração, carac-terizado ademais pela vitória aparen-temente definitiva do capitalismo e daética liberal, conjugado com o triunfodos ideais da democracia, do Estadode Direito e da defesa intransigente dosdireitos humanos, parece desvanecer-se com os atentados terroristas do dia11 de setembro nos Estados Unidos.

Com efeito, tal como a derruba-da do muro de Berlim assinalou o fimda utopia comunista, a destruição dastorres gêmeas do World Trade Centerde Nova Iorque aponta para o desva-necimento de uma civilização basea-da no dinheiro e no lucro a qualquerpreço.

Mas é também o início de novaera, a qual vai muito além da pós-modernidade. Em outro lugar1, deno-minei os tempos atuais como “transmo-dernidade”, caracterizada por algunsfatores especialmente importantes: aglobalização, o domínio da informação,a afirmação generalizada do capitalis-mo neoliberal e a idéia do fim da histó-ria. A essa caracterização vem agora

somar-se novo fator, a revolução ge-nética.

Assim, às revoluções sucessiva-mente industrial, tecnológica e infor-mática, que conduziram à pós-moder-nidade, temos agora a revolução ge-nética, capaz de conduzir a humani-dade para algo ainda desconhecido,mas que está a repercutir na socieda-de contemporânea de maneira tãocontundente, que praticamente atransforma em novo tipo de socieda-de, a qual pode ser definida como“biotecnológica”.....

Assistimos ao desenvolvimentosem precedentes da genética, não so-mente como ramo da biologia, estudodas leis da transmissão dos caractereshereditários nos indivíduos e das pro-priedades das partículas que assegu-ram essa transmissão, como tambémtecnologia da intervenção humana nacriação e desenvolvimento da vida, pri-meiramente vegetal e animal e, agora,da vida humana. A clonagem humana,ainda que esteja para concretizar-secomo acontecimento científico devida-mente comprovado, é o marco dessanova revolução.

Ligados à revolução genética,assiste-se ao desenvolvimento de no-vos ramos do saber, os quais, mais doque catalizadores de uma interdisci-plinariedade acadêmica, são transdis-ciplinares, pois nesta matéria nenhumenfoque científico, técnico ou filosóficopode circunscrever-se aos fundamen-tos epistemológicos de determinadoramo do saber, mas nucleia a totalida-de da ciência, da filosofia, da moral edo Direito. Esses novos ramos têm avida por denominador comum, enfa-tizando o homem não somente comoreprodutor de sua espécie, mas comoseu principal fator de aperfeiçoamento,

podendo chegar a uma atividade cria-dora da própria vida, realizando-se oque um eminente psicanalista definiucomo pecado, uma teomania ou de-sejo de ser criador2. Refiro-me àbiociência, que é muito mais abran-gente que a tradicional biologia, e tam-bém à bioengenharia, à bioética e aobiodireito3, os quais valem-se dabioinformática.

Diante do que até o momentotem sido divulgado, e também pelodestaque que o assunto tem merecidona mídia nacional e internacional, es-pecialmente depois que se anunciou oinício da prática efetiva da clonagemhumana reprodutiva, podemos concluirque já não se trata de mera hipótesecientífica, mas de uma realidade queocorre em laboratórios de todo o mun-do, sendo objeto de intensos e apaixo-nados debates envolvendo aspectosfilosóficos e religiosos, além dos deba-tes científicos sobre seus limites e pos-sibilidades.

No que tange ao biodireito, so-mos levados a refletir sobre aspectosque transcendem, e muito, os limitesda discussão dogmática e repercutemde forma avassaladora em todos osquadrantes do saber jurídico. Com efei-to, dissertar sobre os aspectos jurídi-cos da clonagem humana é muito maisdo que examinar o tema sob o pontode vista das normas positivas, é fixarseu alcance jusfilosófico, é “ubicá-lo”nas fronteiras da inexorável passagemda ideologia jurídica atual para novamentalidade que tende a afirmar-se adespeito da resistência que o novosempre suscita.

Fica, portanto, definido o propó-sito deste estudo: “ubicar” o tema daclonagem humana como o marco datransição, nada fácil e até mesmo

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conflituosa, entre a concepção de Di-reito que impregna a imagem que te-mos de nós mesmos, da sociedade edo universo, e a ideologia que a cria-ção do primeiro clone humano tende aengendrar.

2 CLONAGEM HUMANAREPRODUTIVA E TERAPÊUTICA:

INÍCIO DE UMA NOVA ERA.

Desde o advento da insemi-nação artificial e da fertilização in vitro,desenvolveram-se terapias bastanteavançadas para o tratamento dainfertilidade.

A fertilização in vitro surgiu em1978 e revolucionou a tecnologia dareprodução humana. Naquela ocasião,os médicos Patrick Steptoe e RobertG. Edwards misturaram óvulos de umamulher e espermatozóides de seu ma-rido numa proveta de laboratório, con-seguiram a fertilização depois de doisou três dias e implantaram os embriõesno útero da mulher. Um dos embriõesveio a ser Louise Brown, primeiro bebêde proveta do mundo.

Em 1992 surgiu o processo deinjeção intracitoplasmática, abrindo-seum leque enorme de possibilidades deexperimentos em biologia molecular.Num desses experimentos, retirava-sedo testículo de um homem a célula maisprimitiva do desenvolvimento do esper-matozóide, a espermatogônia, a qualera inoculada no testículo de outro ho-mem, fértil, ou até mesmo de um ani-mal, oferecendo-se assim condiçõesdentro de um testículo fértil para oamadurecimento da espermatogônia.Essa célula, que não é atacada imu-nologicamente, passa a desenvolver notestículo hospedeiro os esperma-tozóides do doador primitivo, que nãoconseguia amadurecê-los em seu pró-prio testículo. A experiência terminavacom a colheita dos espermatozóidesassim produzidos, os quais poderiamfertilizar o óvulo da mulher do doadornão-fértil.

O mesmo princípio levou pes-quisadores a trabalharem com óvulosde mulheres que, com o advento damenopausa, tinham perdido a capaci-dade de fertilização. Estudou-se assima possibilidade de se transferir partedo citoplasma do óvulo de uma mulherjovem para o citoplasma do óvulo deuma mulher de idade avançada, paraver se seus óvulos ganhariam maiorpotencial de gestação.

A clonagem destinada à repro-dução de indivíduos humanos é, por-tanto, o resultado de profundo avançona medicina reprodutiva. Mas ela tem,sobretudo, finalidades terapêuticas,

entrevendo a superação do problema,hoje agudo, da doação de órgãos paratransplante. Trata-se do uso de célu-las-tronco, que podem se transformarem quaisquer partes do corpo huma-no, inclusive neurônios.

Teoricamente, tais células po-dem restaurar o tecido cardíaco danifi-cado em caso de enfarto e, conformese informa nos cenáculos médicos, atéparalíticos poderão andar, à medidaque as células-tronco terão a possibili-dade de substituir os parafusos imper-feitos ou danificados da medula es-pinal. O desenvolvimento dessa tec-nologia tem sido encarado como agrande via para a medicina do séculoXXI, porque torna possível a cura dedoenças degenerativas, tais comoAlzheimer e Parkinson.

Se acompanharmos a mídia in-ternacional, tomaremos conhecimentode que, na Grã-Bretanha, já se esperao nascimento do primeiro bebê espe-cialmente concebido para garantir queseu sistema imunológico seja compa-tível com o de seu irmão, doente deleucemia. O fato em si nada tem deextraordinário, não fosse a circunstân-cia de que o embrião do futuro bebê

resultou da escolha, entre embriõessaudáveis, de um que fosse portadorde determinadas características aptasa assegurar com maior probabilidadesua finalidade terapêutica. Assim queo bebê nascer, células-tronco serãocolhidas de seu cordão umbilical e con-geladas para uso futuro. Ou seja, trata-se de um bebê projetado em laborató-rio para finalidades eminentemente te-rapêuticas.

Esse avanço suscitou oposi-ções, dentre as quais a da Igreja Cató-lica que, desde 1987, já condenava aspráticas de inseminação artificial e re-produção assistida. Os argumentospara tal atitude consideravam a ocor-rência de fatos totalmente contrários àmoral cristã, tais como a destruição deembriões humanos não-utilizados paraimplantação e o deslocamento da re-produção para fora do contexto conju-gal, principalmente diante da possibi-lidade de fertilização por um doadorque não fosse o marido. Considerandoo matrimônio uma união indissolúvelentre homem e mulher, um sacramen-to, a Igreja opunha-se, como ainda seopõe, terminantemente, à eliminaçãode um elo essencial entre o ato conju-gal e a procriação.

No Brasil, os entraves éticos le-varam o Conselho Federal de Medici-na a baixar normas para a utilizaçãodas técnicas de reprodução assistida.Entre outros dispositivos, dispõe-seque a doação de gametas ou pré-em-briões não tenha caráter lucrativo oucomercial; que os doadores não devemconhecer a identidade dos receptorese vice-versa; que a doação temporáriade útero “barriga de aluguel” não po-derá ter caráter lucrativo ou comercial;e que as doadoras temporárias do úte-ro devem pertencer à família da doa-dora genética4.

A reprodução laboratorialmenteassistida tem constatado inúmeros ca-sos de gravidez múltipla, embora issotambém possa ocorrer na reproduçãonatural. Casais com dificuldade parater filhos têm seus óvulos e esperma-tozóides reunidos em laboratório parafertilização in vitro, transferindo-se de-pois para o útero os embriões obtidos.

A transferência para o útero deuma quantidade maior de embriõesaumenta a chance de sucesso do pro-cedimento, mas em contrapartida au-menta o risco de gravidez múltipla,com maiores riscos para a mãe e parao filho. Uma mulher que espera maisde um filho enfrenta maior probabilida-de de hipertensão arterial, disfunçõesrenais e risco de parto prematuro. Tudoisso pode refletir-se nos bebês, inclusi-ve como causa de problemas mentais.

Com efeito, dissertarsobre os aspectosjurídicos da clonagemhumana é muito maisdo que examinar otema sob o ponto devista das normaspositivas, é fixar seualcance jusfilosófico, é“ubicá-lo” nasfronteiras dainexorável passagemda ideologia jurídicaatual para novamentalidade quetende a afirmar-se adespeito daresistência que o novosempre suscita.

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Por isso mesmo, o Conselho Fe-deral de Medicina determina que nomáximo quatro embriões sejam trans-feridos, mas casos recentes de quín-tuplos no Brasil indicam que essa nor-ma pode não estar sendo respeitada.Argumenta-se que “quatro” é umaquantidade máxima que pode evitar agravidez múltipla, pois é raro que umamulher com dificuldade de engravidarmantenha todos os embriões implan-tados.

Para evitar a gravidez múltiplana fecundação in vitro há duas opções:pode-se reduzir o número de embriõesa serem implantados, ou tentar a técni-ca da redução embrionária, que con-siste na eliminação de embriões do úte-ro da mãe quando esta espera mais deum filho.

A redução embrionária, que emprincípio ocorre nos laboratórios, aca-ba por transformar-se em problemabastante agudizado no países pobres,onde se tem demonstrado estatistica-mente maior tendência a grande nú-mero de filhos, seja por ignorância, fal-ta de informação, ou simplesmente pelacarência de condições mínimas decontrole de natalidade. Mas a decisãoda escolha do embrião que vai sobre-viver representa autêntica “escolha deSofia”.

O extraordinário avanço dessanova ciência da vida faz suscitar inú-meras questões, as quais devem serenfrentadas pela bioética e pelo bio-direito, com repercussão na atualnormação jurídica de todos esses te-mas correlacionados, inclusive a clona-gem conjugada com a reprodução as-sistida, problemas que já haviam sidoaventados com relação ao aborto e àeutanásia.

Na redução embrionária, ocorrea eliminação de embriões tal como naclonagem terapêutica, pois as células-tronco são retiradas de embriões comapenas algumas horas de vida, no má-ximo aos quatro dias, e, para isso, tor-na-se necessária a produção de em-briões humanos mediante clonagem,pois é praticamente impossível de-tectá-los no início do processo de gra-videz. E a pergunta que se faz é se adestruição de embriões não equivaleao assassinato de um ser humano.

Outro problema é o do uso co-mercial das descobertas da biociência,como o do patenteamento de genes eo da criação de novos medicamentosligados às descobertas biocientíficas.

Há pouco tempo, assistimos noBrasil ao embate entre o Governo Fe-deral e laboratórios estrangeiros deten-tores de patentes de medicamentoscontra a aids. Está bem presente a ati-

tude do governo canadense de que-brar a patente da produção de antibió-ticos contra vírus utilizados na atualguerra biológica, problema que afetatodos os países e que se agudiza nosEstados Unidos.

Se os investimentos na área daprodução de remédios devem gerarlucros que estimulam novas pesquisas,não se pode olvidar que os financia-mentos, os subsídios governamentaise todo o conjunto econômico queviabilizou tais pesquisas não são resul-tados de esforços isolados, mas daeconomia de todos os povos que, dire-ta ou indiretamente, ainda mais no atu-al estágio do capitalismo global, con-tribuíram para que uns sejam mais ri-cos e poderosos e, por conseguinte, emmelhores condições de promover apesquisa médica e farmacológica. Etodos os povos têm igual direito aosresultados desta pesquisa, isto é,quaisquer descobertas que possambeneficiar a humanidade incorporam-se ao direito comum de todos os po-vos. Em suma, a necessidade de lucronão pode servir de pretexto para quepopulações inteiras permaneçam mar-ginalizadas, excluídas dos benefíciosdo progresso científico.

Mas o fato é que o patentea-mento e comercialização de genesvêm somar-se aos grandes problemaséticos do século XIX, relacionados àexploração, ao autoritarismo, às desi-gualdades sociais e à exclusão.

3 A SISTEMATIZAÇÃO ANALÍTICA DODIREITO E A DIMENSÃO JURÍDICA

DA CLONAGEM HUMANA

Uma visão, ainda que superfi-cial, do modo como, na maioria dos paí-ses, o assunto é tratado pelo Direitopositivo, revela certa oposição, quaseintolerância, para com as pesquisascientíficas e laboratoriais atualmenteem andamento, no objetivo da clona-gem humana e outras experiênciascorrelatas.

Tal intolerância advém, em pri-meiro lugar, da áurea de sacralidadecom que as legislações dos povos cer-cam o tema da vida e dos direitos hu-manos, herança da tradição judaico-cristã do mundo ocidental. Em segun-do lugar, pelo caráter analítico dosordenamentos jurídicos dos povosmodernos, que levam a uma preva-lência dos princípios sobre os fatos daexperiência.

Assim, certas exigências éticasimpostas pelas religiões, pelas tradi-ções ou simplesmente pela moral so-cial, são transformadas em princípioséticos, os quais são incorporados nas

normas jurídicas fundamentais da so-ciedade. E pretende-se que os fatos daexperiência sejam subsumidos a essasnormas jurídicas fundamentais, bemcomo direta ou indiretamente àquelesprincípios éticos.

Tal é a lógica consagrada na tra-dição jurídica da nossa velha dogmá-tica ocidental, que vê nas questões ju-rídicas o problema principiológico, aoinvés de “ubicá-las” entre as questõessociais. Entende-se a ordem jurídicasob a forma lógica piramidal, de mo-delo kelseniano, onde as normas jurídi-cas se apóiam analiticamente umasnas outras, formando um sistema lógi-co encimado pela constituição. Estapor sua vez é um repositório de princí-pios hauridos na experiência culturaldos povos.

Dentro dessa perspectiva, nota-se nitidamente uma hierarquia de prin-cípios relacionados diretamente como problema da clonagem humana. Naanálise desses princípios, nosso refe-rencial é o Direito brasileiro, mas o quefor observado vale para os outros siste-mas jurídicos ocidentais, ao menospara os pertencentes ao sistema roma-nista.

O primeiro deles é a declaraçãoconstitucional de que a dignidade dapessoa humana é um dos fundamen-tos da República Federativa do Brasil,como cláusula pétrea, ao lado da so-berania, da cidadania, dos valores so-ciais do trabalho e da livre iniciativa, edo pluralismo político5.

Essa “ubicação” do princípio dadignidade da pessoa humana no mes-mo patamar axiológico de valor supre-mo da nação é conseqüência de umamudança no horizonte axiológico doDireito, que se verifica em todos os sis-temas jurídicos do modelo ocidental.

Sabe-se que o conceito jurídicode “pessoa” desligou-se de seu con-teúdo ético, romanístico e medieval,que o identificava com o ser humano, epassou a absorver a conotação civi-lística, engendrada no contexto da filo-sofia jurídica alemã do século XIX, maisespecificamente, pelo historicismopandectista germânico, de sujeito deDireito. Mais ainda, a partir da pre-valência do Direito civil como juscommune, e da noção pandectista de“conceito jurídico fundamental” comoo núcleo universal da juridicidade, oconceito de pessoa ficou impregnadode conteúdo patrimonial, pois os direi-tos subjetivos de que a pessoa seriatitular eram traduzíveis em termos devalor econômico. E mesmo o patri-mônio passou a ser definido como re-flexo econômico da pessoa.

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Hoje em dia, entretanto, obser-va-se o resgate do conceito ético origi-nário da pessoa como ser dotado deespecial dignidade. Ainda que as leisnão apresentem um conceito jurídicode “dignidade”, entende-se-a em fun-ção de um conteúdo jusnaturalístico,como valor-fonte de direitos “obceca-dos” acima e além das disposições ju-rídicas do Estado.

Esse retorno à dignidade dapessoa humana, embora filosoficamen-te lance suas raízes no Iluminismo, par-ticularmente na Escola Clássica do Di-reito Natural, de caráter racionalista eque superou o antigo jusnaturalismometafísico que nos legara a antigüida-de greco-romana, no que tange à suaincorporação aos direitos positivos domundo ocidental, representou parado-xalmente uma reação à barbárie dostotalitarismos do século XX, uma res-posta aos crimes cometidos pelos na-zismos, fascismos, ditaduras e despo-tismos, surgindo daí a noção de quecertos delitos, além de se voltarem con-tra suas vítimas individualmente consi-deradas, atentavam contra a espéciehumana: eram crimes contra a huma-nidade.

Nesse contexto, a dignidade dapessoa humana é erigida à condiçãode princípio constitucional absoluto namaioria das constituições modernas,inclusive a brasileira de 1988, bemcomo nos mais expressivos documen-tos internacionais, sendo exemplo aDeclaração Universal dos Direitos doHomem, das Nações Unidas, de 1948.Entretanto, registra-se o antecedentehistórico da Declaração Universal dosDireitos do Homem e do Cidadão, daRevolução Francesa, de 1789, que foiincorporada à Constituição de 1958 apartir de 1971. Em ambos, declara-seque a vida e a saúde são bens jurídicosessenciais da existência humana.

Na Alemanha, a Lei Fundamen-tal de 1949 declara que a dignidadedo ser humano é inatingível. Na Itália, aConstituição de 1947 refere-se aos di-reitos invioláveis do homem. Em Portu-gal, a Constituição de 1976 igualmen-te declara que a dignidade da pessoahumana é uma das bases da Repúbli-ca.

Daí a questão jurídica basilarque se apresenta: como conciliar apesquisa científica relacionada ao em-brião humano com as exigências derespeito à dignidade da pessoa huma-na? Este é o problema nuclear dabioética, como também do nascentebiodireito.

Na Constituição Brasileira de1988, há também outro fator a ser con-siderado: a invocação de Deus, no pre-

âmbulo, que responde a um profundosentimento religioso que consideraDeus criador. Impossível deixar de in-terpretar a expressão “dignidade dapessoa humana” sem relacioná-la coma invocação de Deus, criador e prote-tor.

Assim, a grande pergunta é se oembrião humano, criado em laborató-rio ou não, é pessoa humana. Está im-plícito que a pessoa é criada por Deus.Ainda que se tenha desejado atribuirconotação meramente retórica à decla-ração do preâmbulo da Constituição,de que os constituintes se reuniam soba proteção de Deus, ainda que tal de-claração tenha sido meramente políti-ca, para preservar uma tradição, comose apregoou à época, ela na verdadeespelha os sentimentos e a crença damaior parte da população brasileira napresença de um Deus criador. Se inter-pretarmos sistematicamente a Consti-tuição, articulando o preâmbulo comos conteúdos normativos referidos àdignidade da pessoa humana, somoslevados a concluir que ao homem évedado suprimir a vida doada por Deus.

O segundo princípio encontra-mos nas normas de hermenêuticaestabelecidas na nova Lei de Introdu-ção ao Código Civil6, normas que im-põem o acatamento aos princípios ge-rais de Direito na colmatagem de lacu-nas.

Na medida em que constata-mos a existência de lacunas axio-lógicas no ordenamento jurídico, poisa clonagem humana é tema dos diasatuais – segundo o pressuposto daplenitude –, somos levados a consi-derar o princípio da dignidade da pes-soa humana na solução dos eventuaislitígios.

O terceiro princípio é a inserção,no sistema geral do Código Civil, deexpectativas de direitos inerentes aonascituro e, por obra da jurisprudên-cia, dos direitos da personalidade, taiscomo, a proteção à intimidade, à ima-gem, ao nome, ao próprio corpo, combase nos anteprojetos de Código Civile, mais recentemente, com embasa-mento no Projeto de Código Civil de1975. Embora seja resultado de cons-trução jurisprudencial, eis que os cha-mados “direitos da personalidade” nãoconstam do Código Civil, eles se achaminscritos no art. 5º, caput, da Constitui-ção Federal, quando se refere à “invio-labilidade do direito à vida”. E o direitoà vida compreende certamente o di-reito à concepção, à descendência eao nascimento.

Dentro dessa sistemática analí-tica é que se insere uma legislaçãoeminentemente protecionista dos direi-tos humanos do embrião.

Nessas considerações, restrinjo-me à clonagem reprodutiva, já que aclonagem terapêutica, inclusive osxenotransplantes, ou seja, a transferên-cia de órgãos de animais para sereshumanos, não oferecem os obstáculoséticos da primeira.

Levando-se em conta que o pro-gresso científico nessa área é irre-versível, que os países que não desen-volverem sua investigação estão con-denados ao atraso tecnológico, o maiorproblema que se apresenta é equa-cionar as necessidades da pesquisacientífica com a proteção jurídica dosdireitos individuais e, principalmente,dos direitos humanos.

Diante de princípios como os dainviolabilidade da vida, da dignidadehumana e da individualidade, já surgi-ram campanhas mundiais para quetodos os países instituam leis que proí-bam a clonagem de seres humanos.

Na Alemanha, a lei disciplina aproteção aos embriões e prevê oito cri-mes e uma infração administrativa,

(...) a grande pergunta ése o embrião humano,criado em laboratório ounão, é pessoa humana.Está implícito que apessoa é criada porDeus. Ainda que setenha desejado atribuirconotação meramenteretórica à declaração dopreâmbulo daConstituição, de que osconstituintes se reuniamsob a proteção de Deus,ainda que tal declaraçãotenha sido meramentepolítica, (...) ela (...)espelha os sentimentose a crença da maiorparte da populaçãobrasileira na presençade um Deus criador.

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qual seja, conservar um embrião ou umóvulo humano sem ser médico. Ecomina pena de cinco anos de prisãopara o delito de criar um clone huma-no e implantá-lo no útero de uma mu-lher. A punição é de cinco anos de pri-são.

No Brasil, considera-se crime amanipulação genética de célulasgerminais humanas e a intervenção emmaterial genético humano in vivo,exceto para o tratamento de defeitosgenéticos, respeitando-se os princípioséticos, tais como o princípio da auto-nomia da pessoa e o princípio de be-neficência, e com autorização préviada Comissão Técnica Nacional deBiossegurança. Para ambos os tipospenais, a pena é de detenção de trêsmeses a um ano. Se a prática do crimeresultar em morte, a pena é de 6 a 20anos de reclusão. Igual penalidade éaplicada a quem produza, armazeneou manipule embriões humanos desti-nados a servir de material biológicodisponível7.

Além disso, a lei veda, com penade detenção de três meses a um ano,a intervenção in vivo em material ge-nético de animais, excetuados os ca-sos em que tais intervenções se cons-tituam em avanços significativos napesquisa científica e no desenvolvi-mento tecnológico, respeitando-seprincípios éticos, tais como o da res-ponsabilidade e o da prudência, comaprovação prévia da referida Comis-são.

Proíbe-se, portanto, a manipu-lação genética de células germinaishumanas e a intervenção em materialgenético humano vivo, seja na própriapessoa, em embrião ou célula, excetopara o tratamento de defeitos genéti-cos.

Não obstante, a experiênciatem demonstrado que a lei penal nun-ca é suficientemente eficaz, pois sem-pre há alguém que a transgrida. Porisso, é ilusão pensar que pela restriçãomoral e penal não tenhamos no futurouma experiência com seres humanos.

Compreende-se, portanto, asrazões pelas quais aflora cada vez maisconvincentemente o sentimento deque essa legislação, bem como a men-talidade de quem a inspirou têm deser mudadas.

A esta altura já estão sendo es-tudadas respostas a esses questio-namentos bioéticos, e já se verificamopiniões favoráveis ao abrandamentodas proibições e a uma flexibilizaçãodas leis penais incidentes.

Alguns países já se adiantamnessa flexibilização. Na Grã-Bretanha,por exemplo, desde dezembro de

2000, acha-se alterada a legislação nosentido de permitir a criação de embri-ões humanos para fins de investigaçãocientífica, sendo a clonagem humanaconsiderada um dos métodos paraessa criação. E nos Estados Unidos, en-contra-se vivo o debate sobre a possi-bilidade de financiamento público paratais experimentos. Em ambos os casos,o argumento teleológico prevalecenteé a obtenção de células-tronco.

Entretanto, a pesquisa tem de-monstrado que células-tronco podemser obtidas de órgãos de indivíduosadultos, com igual eficiência às obtidasdo embrião, o que agudiza os debatessobre a busca de alternativas menostraumáticas.

4 A CLONAGEM HUMANA E OFUTURO DAS INSTITUIÇÕES.

Mas a sociedade biotecnoló-gica produzida pela revolução genéti-ca ora em formação oferece alguns as-pectos que deverão exigir mudançasnos critérios de legitimidade da ordemsocial e jurídica, quando não superaros atuais critérios consagrados pela tra-dição jurídico-política. Embora sejacedo para previsões, duas transforma-ções importantes já se apresentamcomo inerentes à nova sociedade: a li-bertação da mulher e a intervenção ci-entífica no processo natural da evolu-ção.

Se, na década de 60, a elabora-ção da pílula anticoncepcional signifi-cou a libertação da mulher de umautoritarismo consuetudinário que aobrigava a permanecer virgem até ocasamento, estigmatizava as que per-maneciam solteiras, submetia-a ao des-potismo do pai, do marido e até dosfilhos, guardiões de sua honra, e a im-pedia de ter acesso ao trabalho fora dolar, a clonagem humana representa umasegunda libertação, que podemos de-finir como uma revolução uterina. Amulher da sociedade biotecnológica,além de poder gerar filhos sem neces-sidade da união sexual, não precisarámais engravidar, suportar os inconveni-entes das transformações do corpo,para gerar filhos sadios.

O que na verdade ocorre é umaampliação do espaço jurídico do sujei-to de Direito, que transborda os limitesdo Estado e invade os setores mais re-cônditos da vida humana, tais como oespaço cibernético, dominado peloscomputadores, e o espaço bioético,dominado pelos laboratórios de bioen-genharia. Daí que o biodireito deve en-frentar a emergência dos novos sujei-tos de Direito, o embrião humano.

A ampliação do espaço jurídi-co, de forma a abranger os direitosbioéticos, repercute desde logo no con-ceito de família, pois antevê-se a pos-sibilidade de filiação a partir de umsujeito individual ou mesmo de um ca-sal homossexual.

Abrem-se também perspectivaspara novas formas de discriminação,pois o futuro nos possibilita admitir aexistência de crianças, adolescentes eadultos geneticamente melhorados,os quais devem competir na escola, nasociedade e no mercado de trabalho,com crianças, adolescentes e adultosnaturais. Isso agravado pelo fato deque a possibilidade de escolha doscaracteres genéticos de um filho serámais um privilégio reservado a quemtenha dinheiro para custear a biotec-nologia necessária.

Tal reflexão sobre novas formasde exclusão que podem decorrer dabioengenharia vem a propósito do queno Brasil atualmente se constata quan-to a uma forma de exclusão tão dissi-mulada quanto perversa que ocorre emnosso sistema de ensino superior.

No Brasil, as vagas das institui-ções de ensino superior mantidas comrecursos públicos, isto é, com o dinhei-ro dos contribuintes, tais como univer-sidades federais, estaduais e munici-pais, dedicadas ao ensino público egratuito, são reservadas preferencial-mente para os filhos da classe média edos mais abastados economicamen-te, isto é, para aquelas crianças e jo-vens que foram bem alimentados naprimeira infância, cursaram os melho-res colégios, tiveram professores parti-culares para suprir eventuais deficiên-cias educacionais, freqüentaram cursosde idiomas estrangeiros, participaramde intercâmbios estudantis etc., por-que seus pais tiveram dinheiro. E es-ses filhos privilegiados disputam asvagas do vestibular com os filhos dosoperários e da baixa classe média, as-salariados ou desempregados que maltêm dinheiro para comer, quanto maispara custear um ensino de qualidade.O que dizer então dos futuros jovensgeneticamente melhorados? Jovenscujo coeficiente intelectual (QI) tenhasido melhorado pela bioengenharia,custeada por seus pais?

A possibilidade de mapea-mento genético da pessoa entrevê tam-bém repercussões na área do Direitosecuritário, pois pessoas que apresen-tem características genéticas conside-radas desvantajosas para as empresasde seguros poderão ser discriminadas,seja mediante impedimento de contra-tar, seja pelo acréscimo nos valores dosprêmios.

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Quanto à segunda transforma-ção que se entrevê no atual horizonteda sociedade biotecnológica, vislum-bramos a intervenção racional, atravésda ciência, no processo da evolução.Trata-se da introdução de novos pro-cessos de seleção para aperfeiçoa-mento da espécie humana, na esteirado evolucionismo de Darwin.

Até agora, convivemos com arealidade da seleção natural, impostapela natureza.

Ainda que tenha havido inúme-ros desvios que comoveram a consci-ência ética da humanidade, podemosreconhecer o fato de que, à semelhan-ça de outras espécies, a humanidadeparece estar submetida a um proces-so de seleção, no qual têm participa-ção as ações conscientes dos próprioshomens.

Cada tipo de cultura pratica asações de seleção humana com um es-tilo especial, que às vezes se tem refe-rido como disponibilidade da força fí-sica, em outros casos se tem apontadopara a preferência dos mais aptos inte-lectualmente etc.

Em nossos dias, a cultura oci-dental impulsiona o mundo para a novaera da biotecnologia, na qual as possi-bilidades de seleção da espécie hu-mana parecem acercar-se a uma viaantes inimaginável, a modificação ge-nética pela atuação do homem.

Embora essa perspectiva re-pugne à consciência da humanidade,ainda estarrecida ante a memória doscrimes do nazismo, o fato é que podemser introduzidos novos processos deseleção para o aperfeiçoamento daespécie humana.

Isso envolve um lado perigoso.Ainda que relegado a um passado quea humanidade procura sepultar, o fan-tasma do racismo poderá reaparecer,dissimulado sob teses que ressuscitamo velho darwinismo social e o racismocientífico da eugenia.

O darwinismo social, aplicaçãoda teoria da seleção natural, apresen-tada por Charles Darwin em 1859, navida e na sociedade humana, foi en-gendrado por Spencer, que criou a ex-pressão “sobrevivência dos mais ap-tos”, ao considerar que a vida na socie-dade é uma luta natural, sendo, por-tanto, normal que os mais aptos a ven-çam, ou seja, tenham sucesso, rique-za, acesso ao poder social, econômicoe político; da mesma forma, é normalque os menos aptos fracassem, semacesso a qualquer forma de poder.

Na verdade, o darwinismo soci-al serviu à época para legitimar ideolo-gicamente a sociedade capitalista, aele vinculando-se desde logo ideolo-

gias eugenistas e racistas.A eugenia foi fundada em 1883

por Galton. Preconizava a formação,pelo Estado, de uma elite genética pormeio do controle científico da procria-ção humana, em que os menos aptosseriam ou eliminados ou desencora-jados a procriar. Visava aperfeiçoar araça. Muitos países adotaram medidasde esterilização, endossadas por inte-lectuais eminentes, sendo que só osEUA esterilizou, entre 1900 e 1940,quase 36 mil doentes mentais, margi-nais, vadios etc. Hitler fundamentou-seem boa parte no darwinismo social, naeugenia e no racismo científico, provo-cando o genocídio que estarreceu ahumanidade.

O primeiro teórico do racismo foiGobineau, que defendeu a superiori-dade da raça ariana, na obra Ensaiosobre a desigualdade das raças huma-nas, de 1853. Sabe-se que Gobineaufoi embaixador da França junto ao Im-perador brasileiro, Pedro II, e que seulivro foi escrito a partir de suas obser-vações da sociedade do Rio de Janei-ro à época, e demonstrou profundo pre-conceito contra os negros e mulatos,então reduzidos à escravidão no Brasil

imperial. As ligações do darwinismosocial com o racismo, que se preten-deu “científico”, foram estabelecidaspelo antropólogo De Lapouge, o qualtentou demonstrar correlações entre asituação social dos indivíduos e suaidentidade biológica ou racial. Nestedesiderato dividiu as raças em doisgrupos: raças superiores, constituídaspelos arianos, e inferiores, englobandoos negros, os judeus e outros. Como sevê, Hitler teve importantes cientistas afornecerem critérios para sua trágicaexperiência.

5 A “POIÉTICA” DO DIREITO E OENIGMA DA ESFINGE

Quando ocorrem mudançassignificativas na história humana, comcapacidade para amoldar comporta-mentos individuais e coletivos, sempresurgem novas doutrinas e ideologiasque se encarregam de fornecer o ne-cessário respaldo de legitimidade àsnovas posturas.

Assim ocorreu na Antigüidade,quando as leis da cidade eram consi-deradas como manifestações das leisdo cosmos. As regularidades que osgregos viam no universo, o movimentodas estrelas, a sucessão dos dias, dasnoites e das estações do ano tinham amesma natureza das leis da cidade.

Na Idade Média, a doutrina dopoder divino dos reis espelhava alegitimação religiosa do poder sobe-rano e a organização hierárquica dasociedade – que estabelecia escalõesde nobreza até o rei – refletia-se na cren-ça em uma corte celestial, o reino deDeus e sua corte de santos, cercadopelo exército de anjos, arcanjos, queru-bins e serafins.

Nos tempos atuais, a organiza-ção política da sociedade é legitima-da pela crença no caráter racional dasleis e na neutralidade do Estado, quese diz democrático e de Direito, prote-tor da liberdade e da igualdade e en-carregado de semear a justiça entre oscidadãos, por meio do Poder Judiciá-rio, igualmente neutro.

Se considerarmos que todosesses fatores se impõem inexoravel-mente como realidade histórica atuale que a velha ideologia principiológica,com sua conseqüente organizaçãoanalítica abstrata, atua como entraveao livre desenvolvimento da investiga-ção científica nessa área, é lícito inda-gar qual a ideologia que a nova era vaiengendrar, quais as idéias, doutrinasfilosóficas, teorias científicas e concep-ções filosófico-jurídicas que vão forne-cer o necessário sustentáculo de legi-timidade.

E as normas jurídicasque tratarem de regulara clonagem humana,bem como osjulgamentos que foremsuscitados porcidadãos que sesentirem prejudicadosem seus direitos, terãode levar em conta, alémdos princípios jurídicos,o fato de que o espaçobioético do Direito seconfunde com oambiente doslaboratórios, onde oscriadores deFrankenstein datransmodernidadepodem exercer acontento o papel deaprendiz de feiticeiro.

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Mas a ideologia não se insinuasomente pelo labor teórico, ela se valedos instrumentos de manipulaçãoideológica para tornar aceitáveis, pelaopinião pública, as novas práticas de-correntes do avanço científico e tecno-lógico e a nova sociedade engendra-da pela revolução genética. Compre-ende-se por conseguinte, que o temada clonagem humana vai aos poucossendo banalizado, em virtude de suadivulgação para o grande público atra-vés de meios de acesso que tenhammaior penetração entre as camadasmais simples da população, tais comonovelas de televisão e revistas de sa-bor popular8.

Na verdade, as profundas trans-formações a que assistimos repercu-tem na ordem jurídica de modo tãoavassalador que até mesmo o concei-to de ordenamento jurídico, Estado eJustiça são afetados, com repercus-sões na própria ideologia do Direito9.

Em primeiro lugar, as exceçõesaos princípios sempre existiram e sem-pre foram legitimadas por considera-ções metajurídicas.

Não me refiro às excepcionali-dades criminais que justificam atos eatitudes que constituiriam delitos,como a legítima defesa, o estado denecessidade e o exercício regular deum direito ou dever, mas às modifica-ções em curso no próprio conceito deordem jurídica, que minimizam o cará-ter dogmático dos princípios, relativi-zando-os em função de novos critériosde juridicidade.

A primeira dessas modificaçõesdiz respeito à transformação da normajurídica em norma técnica. O Direito écada vez mais técnico, e isso significaque ele perde aos poucos seu caráterprincipiológico, regido por uma racio-nalidade analítica que fundamenta avalidez e a legitimidade em normas su-periores. Sendo de caráter técnico, asleis se transformam em regras “anancás-ticas”, equivalentes às regras do jogo,regidas por outro tipo de racionalidade– a instrumental, de meios afins. Vale oobjetivo a atingir, não o princípio quedeve ser preservado. Já o juiz OliverWendell Holmes, da Suprema Corteamericana, dizia que o Direito existe pararesolver concretos problemas sociais,não para manter princípios. Esta consi-deração tópica da norma jurídica estácada vez mais presente na mentalida-de dos legisladores, administradores,governantes, empresários e até mesmojuízes. Isso na medida em que as rela-ções sociais se tornam cada vez maiscomplexas, numerosas e diversificadas,o que aumenta a lacunosidade da or-dem jurídica.

Outra modificação é a atinenteao conceito de ordem jurídica. Ela dei-xa de ser uma estrutura lógico-formal,analítica, segundo o clássico modeloda pirâmide kelseniana, e passa a serconfigurada como uma reunião demicrossistemas, o familial, o empresa-rial, o tributário, o ambiental, o socio-laboral, o bancário, o “consumerista”etc., referidos e envolvidos por um am-biente que é o próprio macrossistemadas relações sociais. Cada um dessesmicrossistemas normativos, por suavez, articula-se com outros microssis-temas sociais, como o político, o eco-nômico, o médico-sanitário, o educa-cional etc., e, ao mesmo tempo em quese diferenciam do ambiente macrossis-têmico, o reproduzem.

O modelo para essa nova com-preensão da ordem jurídica é a teoriados sistemas “autopoiéticos”, deLuhmann.

Entretanto, a "autopoiese" é tão-somente um aspecto parcial do fenô-meno jurídico, que evidencia a aptidãoda própria sociedade para manter seusinstrumentos de controle social, institu-cionalizados ou não, dos quais anormatividade jurídica é, se não o maiseficiente, pelo menos o mais sofisticadoproduto que é de elaboração racional.

Na verdade, paralelamente aoconjunto das regras de Direito, a socie-dade mantém outros conjuntos norma-tivos, todos voltados para sua própriareprodução organizacional, os quaissão pensados, repensados e exercita-dos dentro de certos critérios deracionalidade prática que constituema economia, a política, a religião, a ciên-cia e a filosofia. Trata-se no fundo demanter a ordem social, com um míni-mo tolerável de dissenso.

Mas deve-se levar em conta que,entre todos os conjuntos normativos, odo Direito tende a absorver os demais,pois, ao final dos processos de organi-zação setorial, na medida em que es-tes pretendam eficácia, tendem a re-vestir-se das formas de expressão en-gendradas pelo saber jurídico e con-solidadas na práxis do Direito positivo.Daí que, se o caráter “autopoiético” doDireito é fato empiricamente compro-vável, o pensamento crítico tem de-monstrado que essa "autopoiese" éapenas um aspecto da "juspoiese", ouseja, o Direito é fenômeno muito maiscomplexo, cujo ser se exaure em suaprópria hermenêutica. Ou, como diriaHeidegger, cuja interpretação se iden-tifica ontologicamente com seu sujei-to, com seu próprio objeto e com o pro-duto do ato de interpretar10. O Direitose transforma na medida das necessi-

dades da transformação social, e es-tas o antecedem enquanto fenômenosocial.

Pode-se, portanto, concluir queas necessidades oriundas da adapta-ção da sociedade à revolução genéti-ca acabarão por envolver o próprio Di-reito, cuja “poiética” manifesta a"poiese" da sociedade mesma.

Poiesis em grego significa ação,mas também criação, e a poiesis jurídi-ca importa reconhecer no fenômenojurídico uma espécie de ontocriação.Ou seja, o Direito é mais do que“autopoiético”, ele é “monopoiético”,porque tende a absorver todas as for-mas de controle social da condutaintersubjetiva; é “alopoiético” porque,em as absorvendo, igualmente delasse alimenta e se retroalimenta; e é fi-nalmente “ontopoiético”, no sentido deontocriativo, pois ele se autocria e re-cria juntamente com a ontocriação deseu espaço ontológico, a sociedade.

Em suma, o Direito da futura so-ciedade biotecnológica deixa de serprincipiológico e passa a ser tecno-lógico. Como isso repercute na com-preensão de nosso objeto de estudo, otema da clonagem humana?

Se considerarmos que na socie-dade biotecnológica o fim justifica osmeios, e que essa ideologia vem sendolegitimada por nova racionalidade ins-trumental e novo critério de legitimida-de funcionalista, espécie de legitimida-de “ontopoiética”, temos que os proce-dimentos técnicos de manipulação ge-nética serão legitimados em função deseus objetivos técnicos, a produção demedicamentos, a cura de enfermidadese o prolongamento da vida humana, talcomo já ocorre com a engenharia gené-tica destinada à produção de alimen-tos. E as normas jurídicas que trataremde regular a clonagem humana, bemcomo os julgamentos que forem susci-tados por cidadãos que se sentirem pre-judicados em seus direitos, terão de le-var em conta, além dos princípios jurídi-cos, o fato de que o espaço bioético doDireito se confunde com o ambiente doslaboratórios, onde os criadores deFrankenstein da transmodernidade po-dem exercer a contento o papel deaprendiz de feiticeiro.

Temos de ter presente o enigmada esfinge: decifra-me ou devoro-te. Oudeciframos o enigma da vida ou ela noshá de devorar.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000.

2 KEPPE, Norberto. O reino do homem. SãoPaulo: Proton, 1983;

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_________ . Psicanálise da sociedade.São Paulo: Proton, 1976;_________ . A Libertação. São Paulo:Próton;_________ . Contemplação e ação. SãoPaulo: Proton, 1981.

3 CIURO-CALDANI, Miguel Ángel.Globalización/Marginación: implosióndemográfica? Bioética e Biodireito, Rosário,n. 5, 2000.

4 Resolução n. 1.358/92 do ConselhoFederal de Medicina.

5 Constituição da República Federativa doBrasil, art. 1º.

6 Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942.7 Lei n. 8.974, de 6 de janeiro de 1995.8 No Brasil, uma novela de televisão

apresenta a clonagem como algo extre-mamente desejável nas circunstânciasfictícias suscitadas pelo trabalho literário.Refiro-me à novela O Clone, cujo enredoenvolve o trabalho de um médico queprocura clonar o afilhado morto emacidente. O ator que representa o médico,em entrevista, defende a criação de cópiasde seres humanos, alegando que isso podecorrigir a trajetória dos seres humanos. Parao ator, a religião justifica a clonagem, comoimplicação da solidariedade que todas asreligiões pregam. Ou seja, conclui que areligião combina com tudo o que forbiologicamente desejável. Tais opiniões, emnome próprio e não no do personagem,partidas de pessoa amplamente conhecidapelo povo, tem o efeito ideológico de atraira simpatia popular para um problema atéagora restrito aos meios acadêmicos.

9 V. COELHO, Luiz Fernando. Saudade dofuturo, ob. cit.

10 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídicae(m) Crise. 3. ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2001.

ABSTRACT

The article presents the historical andcultural parallelism lived by Humanity, in thecourse of several generations, with respect tohumans rights, stressing the problems ofbioethics relating to the practice of humancloning, as well as its probable effects in society– philosophical, religious, scientific or economic.

The author believes that in thebiotechnological society the means are justifiedby the end, an ideology that has beenlegitimized by a new instrumental rationality andthe new standards of functional legitimacy.

For this reason the author thinks thatprocedures of genetic handling will be legitimizedin function of their technical objectives, as it isalready the case of genetic engineering relatedto food production.

KEYWORDS – Genetics; pregnancy;cloning; in vitro fecundation; biotechnology;bioethics; Constitution; principle of the dignityof the human person.

Luiz Fernando Coelho é Professor de Filosofiado Direito em São Paulo e Procurador daFazenda Nacional.