MESQUITA JR. - Os Judeus e a Idade Média – Crises e Estabilidades

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    Os Judeus e a Idade Média – Crises e estabilidades Nelson Célio de Mesquista Jr.

    Introdução A população judaica ocupa uma posição ao mesmo tempo única e precária durante

    a Idade Média. Ao mesmo tempo em que sofrem o preconceito e a violência por parte doscristãos, os judeus são parte necessária e essencial da sociedade da Europa Medieval.Uma das maiores importâncias do povo judeu reside no fato de que a Bíblia proíbe aoscristãos a “usura”, ou seja, o empréstimo de dinheiro. Como esta proibição não se estendeao povo judaico, todo o resto da sociedade depende dos empréstimos dos agiotas judeus.Se um nobre necessita de fundos para erguer um castelo ou armar um exército, ou se umcamponês precisa reconstruir sua choupana que foi derrubada pela tempestade, ambos

     procuram um banqueiro judeu.

    Uma das outras grandes importâncias do povo judeu, e pelo qual é muitoreconhecido, está na habilidade dos judeus como médicos e curandeiros. Tanto para os judeus quanto para os cristãos, o corpo de um finado é sagrado e merece um enterro digno.Para os judeus, porém, não é proibido o estudo dos cadáveres, contanto que estes sejamenterrados de modo completo e seguindo seus ritos sagrados. Através desta permissão, os

     judeus puderam recolher e documentar na língua hebraica um vasto conhecimento sobreo funcionamento do corpo humano, o que os torna médicos sem par durante a IdadeMédia. Muitos reis e nobres, ao perceberem que seus curandeiros são incapazes de tratardas doenças dos quais estão acometidos, buscam os serviços de um médico judeu.

    As escrituras judaicas mais sagradas são a Torah. Escrito sempre em hebraico,

    este texto corresponde basicamente, apesar de algumas diferenças, ao Antigo Testamentodos cristãos. A crença judaica, da qual praticamente toda a doutrina cristã se originou,afirma que quando a humanidade estiver pronta, Deus enviará o Messias ao mundo, parasalvar a todos os homens. Quando este dia chegar, todos os que vivem e que já viveramretornarão ao mundo dos vivos, e este será um mundo perfeito, como Deus o haviaimaginado antes do Homem ter-lhe desobedecido no Jardim do Éden. Os cristãos, poroutro lado, acreditam que o Messias já veio ao mundo na forma de Jesus Cristo, que sesacrificou para salvar ao seu rebanho. Os judeus perguntam, então, por que, se o Messias

     já veio ao mundo, ainda existe dor, fome, sofrimento, violência, morte? Com certeza,quando a humanidade receber seu Messias, toda esta maldade será superada. Ou, alguns

    afirmam, o Messias apenas virá quando a humanidade, por si só, for capaz de superá-la.Como os judeus acreditam que a humanidade ainda não foi salva, não podem reconhecerque o Messias já tenha vindo ao mundo.

    O outro grupo de escrituras que compõe a liturgia judaica é o Talmud . O Talmudreúne as orações que um judeu deve desempenhar no seu dia-a-dia, além de ser umconjunto de instruções feitas pelos antigos sábios para que os fiéis tenham uma vida maissaudável e mais respeitosa das tradições. No Talmud existe um conjunto de leis queconcernem à alimentação dos judeus, chamado de Kosher . A alimentação Kosher proíbeo consumo de carne de porco e o consumo de carne e leite na mesma refeição, entre outrasregras.

    A maioria dos judeus possui uma cópia do Talmud para seu uso diário. Já a Torah,

     porém, é um livro sagrado, e não pode sair do recinto da sinagoga, o templo judaico.Apenas o rabino,  o sacerdote, pode manuseá-la, e ele a lê em voz alta para toda a

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    congregação judaica na cerimônia do Shabat , toda Sexta-Feira ao anoitecer. O Shabat éum das práticas mais sagradas do Judaísmo, e consiste basicamente na proibição aos

     judeus de realizar qualquer trabalho aos Sábados.A população em geral da Europa Medieval responsabiliza, erroneamente, o povo

     judeu pela crucificação de Cristo; e isto os torna os perfeitos bodes expiatórios quando

    algum governante precisa direcionar a fúria de camponeses revoltosos. Com certeza, omodo de vida ao qual os judeus estão submetidos é dos mais precários. Por volta do ano70 d.C., os romanos expulsaram os judeus de sua terra sagrada, a Terra de Canaã, e osespalhou ao redor do mundo, num episódio chamado de Diáspora. Portanto, durante aIdade Média, o povo judeu vive espalhado por todos os cantos da Europa, e costumaconstituir pequenas aldeias nas zonas rurais, ou comunidades maiores nas grandescidades.

    As autoridades cristãs, ao perceber o crescimento das populações judaicas, passaram a isolá-los em bairros apertados e superlotados nas partes mais desfavorecidasdas cidades. Estas partes recebem o nome de “gueto”, e o gueto judaico de Praga é umdos maiores e mais conhecidos da Europa Oriental. Neste gueto, duas comunidades

     judaicas de origens diferentes convivem em condições precárias e insalubres. AosSábados, como os judeus não trabalham, a guarda da cidade tranca os portões do bairro

     judaico para que eles não possam sair. Algumas vezes, grupos de “desordeiros” invademo gueto, matando, estuprando e queimando tudo o que encontram pelo caminho. Estainvasão violenta do gueto recebe o nome de pogrom; apesar das autoridades a proibirem,também não fazem nada para impedi-las, abandonando os judeus à própria sorte.

    Apesar de viverem em uma situação precária, os judeus são, talvez, o povo maisescolado, e, além disto, eles também gozam de uma longevidade muito maior que a médiados camponeses. A tradição judaica presa muito a cultura, e os garotos, ao atingirem amaioridade com treze anos de idade, ou aprendem um ofício, ou são levados parauma yeshivah, uma escola judaica. Numa yeshivah, os jovens aprendem o hebraico, astradições de seu povo, as escrituras, a prática da medicina, e, algumas vezes, os segredosda Kabalah. A Kabalah é um conjunto de crenças místicas desenvolvidas por um conjuntode sábios, ao longo da Idade Média, baseadas na Torah. Ela consiste basicamente emdecifrar a verdadeira natureza da criação de Deus, através de 22 elementos, quecorrespondem às 22 letras do alfabeto hebraico, na qual a Torah foi escrita. Atribuindo

     para cada uma das letras um valor numérico, a Kabalah busca compreender o significadode todas as coisas através do valor numerológico de seus nomes. Alguns dizem que oskabalistas, ao serem capazes de decifrar o valor de todos os elementos do Universo, sãocapazes de compreender as forças que o compõem e controlá-las.

    Enfim, a situação em que vive o povo judeu na Idade Média é, no mínimo,

    ambígua. Por um lado, desprezados pelo resto da sociedade; por outro, indispensáveis para a mesma. Se existe uma verdade sobre a vida dos judeus nesta época é que elarealmente é muito difícil.

    1. Visão geral  Na extensa introdução da monumental obra Israel Ba-Golá, Israel na Diáspora, o

    renomado historiador judeu polonês Ben Zion Dinur (1884-1973), baseando-se nas ideiasdos historiadores modernos, faz uma divisão entre os diferentes períodos da HistóriaJudaica.[1] Para Dinur, idealizador do Museu do Holocausto, Yad Vashem, emJerusalém, os diferentes tempos da nossa História devem ser analisados por meio de doisgrandes blocos ou categorias: épocas de estabilidade, criatividade e desenvolvimento

    social-cultural e econômico e épocas de crise, repressão e diminuição do processo criativodo povo judeu.

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    Para realizar tamanha tarefa, apenas comparável com a polêmica tese da ascensãoe queda das civilizações do historiador britânico Arnold Toynbee (1852-1883), Dinurdefiniu as principais características de cada categoria, determinando a existência de oito

     períodos históricos, quatro de estabilidade e quatro de crise; criando-se, assim, umaespécie de gráfico de contrastes, com fluxos e refluxos, alternando-se assim tempos de

    altos e baixos no decorrer da História Judaica.

    Segundo Dinur, estes oito blocos cronológicos compõem a História do Povo Judeudurante sua longa permanência na Diáspora, ou seja, após a trágica destruição do SegundoTemplo de Jerusalém: O primeiro período de estabilidade, de 636-1096; o período decrise, de 1096-1215; o segundo período de estabilidade, de 1215-1348; o segundo períodode crise, de 1348-1496; o terceiro período de estabilidade, de 1496-1648; o terceiro

     período de crise, de 1648-1789; o quarto período de estabilidade, de 1789-1881; e oquarto período de crise, de 1881-1948.

    O primeiro período de estabilidade, de 636 a 1096, inicia-se com o surgimento doIslamismo e a liderança de Maomé e vai até a saída da Primeira Cruzada rumo aJerusalém. Nessa época, existiam duas grandes forças emergentes que disputam àhegemonia mundial: o Islã e seus califados instalados na Síria e no Egito, a partir de 711também na Espanha; e o Cristianismo do Sacro Império Romano Germânico de CarlosMagno. Os judeus participaram desse momento de várias formas, dentro das forçasemergentes na Europa. Para Dinur, eles atuaram na maioria das vezes como: agentescolonizadores e construtores urbanos; comerciantes, intermediários e negociadores comoutros povos; administradores e funcionários de califas e réis; cientistas, tradutores emestres em várias áreas de pesquisa científica; difusores dos estudos talmúdicos. São

    lideranças presentes nas comunidades: Rosh Há-Golá, Nessyim, Gueonim e RasheiIeshivot. Exemplo: Rabi Guershom Meor Há-Golá e suas “Taqanot”, Regras, para os judeus da Europa central e R. Saadia Gaon nas comunidades de Oriente.

    O primeiro período de crise, que ocorre de 1096 a 1215,  inicia-se nos massacresdos cruzados em Jerusalém, e encerra-se com a publicação da legislação antijudaica doPapa Inocêncio III no Quarto Concílio Laterano. O período se caracteriza por manter umconflito permanente entre o Ocidente, Cristianismo, e o Oriente, Islã. As Cruzadas

     juntamente com a Reconquista dos territórios da Espanha, são acontecimentos centraisnessa luta pela hegemonia da Europa e do mundo. Há, também, uma forte tensão internadentro do próprio mundo cristão, travando-se as famosas Guerras das Investiduras entre

    os Reis e o Papado.Para Dinur, o status dos judeus ficou marcado essencialmente pelo choque cultural

    no encontro dos judeus com culturas que não os aceitam como tais; pela falta de segurança pessoal e consequentemente perca do patrimônio material do elemento judaico; pelaopressão religiosa com fortes restrições e proibições definidas na legislação local, sejamnos fueros espanhóis ou no corpus jurídico de cada nação européia; pelo libelo de sangueque já aparecera na época helenística, alcançará sua forma máxima e mais destrutiva nasfalsas acusações de roubos e profanações de hóstias para rituais mágicos, como nosdistúrbios organizados pela irada população cristã. A primeira acusação de derramamentode sangue cristã foi feita contra os judeus de Norwich na Inglaterra em 1144, ocorrendocasos famosos em Gloucester, 1168, em Blois na França, 1171, em Viena, 1181, e emZaragoza, 1182.

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     Nas zonas rurais procura-se, constantemente, um bode expiatório pelos males que prejudicam a sociedade, como ser: secas, epidemias, pestes, fome. O elemento judaicoserá o bode expiatório, ao qual irão direcionadas a maioria das acusações. Testemunha-se um enfraquecimento das lideranças comunitárias judaicas tanto em Ocidente como noOriente, e uma considerável diminuição dos contatos entre as diversas comunidades.

    Diante do perigo das conversões forçadas, aumenta proporcionalmente o clima deefervescência messiânica, uma forte vontade da vinda de um redentor, da estirpe do reiDavi, que resgate a todos os judeus de uma realidade adversa e opressora.

    A palavra de ordem na época é Kidush Hashem, ou seja, “Santificar-se em Nomede Deus”. O maior exemplo é o movimento místico-asceta dos Chassidei Ashkenazdurante as Cruzadas. Esse movimento se difundiu rapidamente pelas comunidades daFrança e Alemanha; ganhando fortes traços do pensamento martiriológico judaico. Nessaépoca, a pergunta diária do judeu era: vale mais ganhar o mundo terreno ou obter o mundovindouro?

    O principal personagem e líder do mundo judaico na Europa será R. Moshé benMaimón, Maimônides ou Rambam, 1138-1204, um sábio construtor de respostas paratodos os interrogantes da época. Maimônides era um especialista em Halachá, leisreligiosas, completamente emaranhadas na vida intelectual contemporânea de então,cujos escritos envolviam tanto as tradições como as ciências judaicas. Sua reputação eautoridade se encontram sustentadas em dois trabalhos: seu código de compilação da lei

     judaica ou Mishné Torá, e seu tratado Guia para os Perplexos ou Morá Nebochim, umescrito destinado a comprovar que toda a tradição judaica é filosoficamente defensável.

    O segundo período de estabilidade, de 1215 a 1348, inicia-se com a legislaçãoantijudaica de Inocêncio III e encerra-se com as trágicas consequências da Peste Negrade 1348. Dentre os acontecimentos mais significativos, ressaltem-se uma busca pelahegemonia da Igreja Católica na Europa e um aumento do fanatismo no mundo islâmico.

    Em relação ao status dos judeus o período se caracteriza pela sua caracterizaçãocomo servi camerae, servos da corte, ou seja, pertencem ao governante de turno e devemobedecer cegamente as leis do país. Os judeus adotam o conceito hebraico de Dina de-Malchutá Dina, As Leis do Reino são as leis que prevalecem.

    Também pela exigência de uma tributação alta e, assim sendo, os impostos permitirão a sobrevivência da comunidade. A coleta de impostos é comunitária e cabe acada judeu cumprir com esta obrigação para garantir a existência comunitária. Em outras

     palavras, um judeu é responsável pelo outro; havendo um destino, desígnio, coletivo.

    O comportamento judaico deve, ainda, atender à legislação da Igreja e do Papadoque, por sua vez, encaminham suas vontades religiosas aos governantes de turno. OsPapas do período usavam concílios da Igreja para decretar leis que afetavam os judeus.Os judeus foram proibidos de ter empregados cristãos, de negociar com cristãos, dehabitar na vizinhança cristã e inclusive o testemunho de um cristão prevaleceria ao de um

     judeu. O passo mais decisivo neste sentido foi dado pelo Quarto Concílio Latrão (1215)

    que criou a odiada insígnia judaica (estrela amarela) que rotulava cada judeu como um proscrito vergonhoso. Ele também decretou a separação por bairros entre judeus e cristãos

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    como também a proibição aos judeus de ocupar cargos públicos. A queda de Acre peloscruzados em 1291 e a conquista do Oriente pelos mongóis contribuíram para que o judeuse torne parte inseparável do mundo islâmico.

    Mesmo limitado pela legislação cristã ou pelas leis dos Dhimi, súditos protegidos,

    os judeus continuam a participar de forma ativa da vida social e econômica da Europa.Durante domínio do Islã, especificamente, judeus vivem sob o status de Dhimi e suasituação social é definida por um conjunto de regras conhecidas como o Pacto de Omar.Sob essas leis, as vidas e as propriedades ficavam garantidas e a prática de sua religiãotolerada em troca do pagamento de impostos especiais. Judeus não poderiam construirnovas sinagogas ou consertar as velhas, carregar armas ou andar a cavalo, além disso,deviam ainda usar roupas que os distinguisse dos muçulmanos. Para Dinur, entre 1215 e1348, é possível falar em termos de “estabilidade servil” ou “estabilidade de subjugação”.O judaísmo criaria, assim, uma espécie de espiritualismo a partir do sufismo, umafilosofia árabe de caráter racionalista. Desenvolve também uma mística e um pensamentoesotérico baseado nas idéias da Kabalá, difundidas na região da Catalunha, no leste da

    Espanha e no sul da França.

    O segundo período de crise, que ocorre de 1348 a 1496, inicia-se com os trágicosdesdobramentos da Peste Negra na Europa, em 1348, e encerra-se com as expulsões dos

     judeus da Espanha, em 1492, e o batismo forçado imposto por Manuel I de Portugal em1496. A Peste Negra aterrorizou a Europa dizimando 1/3 de sua população, semdiscriminar judeus e cristãos. A multidão em pânico expressava e procurava minorar seumedo pelo fervor religioso extremado. Num clima de total histeria, circulou o rumor deque os judeus haviam causado a peste, envenenando poços de água potável. Centenas decomunidades foram destruídas em violentos distúrbios. Os judeus, aos poucos, voltaram,

    mas suas vidas tornaram-se restritas, miseráveis e instáveis. No curso do século 15, foramexpulsos dos Estados alemães, da Europa central e da Espanha.

    É esse, também, um período de violentas conversões forçadas, shemadot, emhebraico, e massacres originários pelas Inquisições hispana e lusitana. Os fatos de maiorrepercussão foram, na opinião de Dinur, os massacres das comunidades de Castela em1391, Guezerot Kana, e a política antijudaica estabelecida pelo rei D. João II de Portugal.O conflito entre Ocidente e Oriente fica acentuado, pois turcos lutam contra cristãos emConstantinopla em 1453, enquanto a Espanha trava uma luta de unificação contra o Islãem Granada, 1492, o último reduto árabe no Ocidente.

    Os judeus estão cercados por duas forças: o Cristianismo, que converte, expulsa ereprime os judeus, confiscando seus bens; abrindo-se assim o tempo da Inquisição, e,além disso, após a Disputa de Tortosa, 1412-1414, o Judaísmo sefaradita perde sábios

     para o Cristianismo, enquanto outros abandonam definitivamente a Espanha; oIslamismo, que, por sua parte, tolera os judeus como súditos protegidos por ter livrossagrados, porém, os humilha de diferentes formas, basicamente exigindo às comunidadesdo Egito, Síria e Iêmen o pagamento de uma pesada carga tributária.

    Há uma queda quantitativa e qualitativa de sábios e as comunidades ficam semlíderes, totalmente desamparadas, sem rumo e mergulhadas em profundas crises. A

     pergunta do judeu é: de que maneira deve o individuo de fé mosaica receber a sentençade conversão, Guezar Ha-Shemad? O Rambam já falecido nesses tempos é

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    frequentemente lembrado no seu Iggeret Teiman, Epístola dos Judeus do Iêmen, em queaborda o tema da conversão a outra religião, concluindo que todo judeu que se afastou dorebanho, por pressões ou não, continua sendo parte do Povo de Israel.

    Surgem, nessa época, idéias e tendências fortemente escatológicas e messiânicas

     para implorar a redenção final, Gueulá, do povo judeu. Um exemplo de sábio sefaraditaque abordará em seus textos a “Profecia do fim dos tempos” será o rabino IsaacAbravanel, autor de uma trilogia sobre o Messias.

    O terceiro período de estabilidade, que vai de 1496 a 1648, inicia-se nas expulsõesdos judeus de Espanha e Portugal ocorridas de 1492 a 1496, e encerra-se nos terríveismassacres ocasionados em 1648 pelos cruéis cossacos de Bogdan Chemelnitzki. Osacontecimentos dessa época testemunham, também, a queda das comunidades judaicasna Ucrânia, e o inicio do desmembramento da Polônia e da Turquia. Devemos mencionartambém as guerras de religião na Europa, a Reforma e Contra-Reforma, além da rápidaexpansão da Espanha, de Portugal e da Holanda como potências marítimas na era doMercantilismo.

    O status dos judeus ficou determinado primeiramente pela outorga de privilégiose proteção a judeus por parte dos governantes, os Reis da Polônia e os Sultões da Turquia,havendo uma aceitação em lugares religiosamente mais tolerantes como na Holanda

     protestante, Amsterdã, em países e regiões que oferecem melhores possibilidades decrescimento econômico, sul da França, Países Baixos, Hamburgo; pela expansão decomunidades como resultado da dispersão hispano-portuguesa que levou inúmeros judeusexilados à Europa e ao Novo Mundo, a América Espanhola e a América Portuguesa; pelosurgimento das comunidades judaicas em várias regiões da Polônia, cada uma com suas

    respectivas instituições comunitárias, cujo Judaísmo polonês, que chegou a ter mais detrês milhões adeptos, foi destruído por Adolf Hitler no Holocausto, 1939-1945, durante aSegunda Guerra Mundial; pelo florescimento do centro espiritual de Safed na Terra deIsrael sob domínio turco-otomano, 1517-1917, o maior centro do misticismo judaico,Kabala, desenvolvido principalmente pelo rabino Isaac Luria, Ari Hakadosh, no século16; pelo crescimento da efervescência messiânica como resposta à dor e ao sofrimento do

     povo judeu durante o período inquisitorial, assim, na Espanha e em Portugal surgem doisfalsos messias: David Reuveni e seu discípulo Salomão Molcho à procura da redenção,mas ambos são desmascarados e tidos como verdadeiros impostores; pela aparição de

     judeus na corte da Itália, mecenas de inventores e artistas famosos fez parte doRenascimento. Na Itália funcionava o principio de privilégio chamado de condotta, ou

    seja, onde havia necessidade de capital para investimento, comunidades de judeusrecebiam a condotta para disponibilizarem o capital para empreendimentos maiores. Essadelicada situação social é o cenário da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare.

    O terceiro período de crise, de 1648 a 1789, inicia-se com os massacres doscossacos nas comunidades da Polônia e encerra-se com a outorga de igualdade de direitosaos judeus durante a Revolução Francesa em 1789. O fato que marca esse período é aqueda de todas as estruturas feudais que ainda prevaleciam na Polônia e na Turquia, e osurgimento de estruturas burocráticas amparadas em elementos da burguesia.

    Em relação aos judeus assistimos a uma diminuição na segurança e no statussócio-econômico das várias comunidades polonesas e turco-otomanas; ao aumento da

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    segurança e da inserção sócio-econômica em países que estimulam um progresso socialcomo França e Alemanha; à crise e à dispersão de centros urbanos nos quais se concentraum número elevado de comunidades como resultado da crise ocasionada pelo falsomessias de Esmirna, Shabatai Tzevi; ao aumento da pobreza em comunidades da Polônia,1700, como consequência do surgimento do Chassidismo de R. Israel Eliezer Baal Shem

    Tov; e ao surgimento de disputas internas nas comunidades judaicas da Europa central, principalmente na Alemanha, sobre a real função a ser preenchida pelo Iluminismo judaico.

    O quarto período de estabilidade, de 1789 a 1881, inicia-se na igualdade dedireitos reivindicada pelos judeus, durante a Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte eo Sinédrio, e encerra-se com os massacres promovidos contra judeus pelo regime czaristaentre 1881 e 1882. Há um estímulo de governos para iniciativas privadas e atividadeseconômicas, existindo um crescimento cultural na população. Na Europa, nota-se,também, uma união entre os povos, sempre sob o olhar de regimes social-democratas,exceto na Rússia.

    Para Dinur, nesse período, o status dos judeus sofre modificações notórias comoa permissão de uma igualdade do elemento israelita perante a lei, possibilitando-se aabertura de um despertar econômico parcial, controlado pelos regimes maisdemocráticos; na Rússia, estão presentes os fortes contrastes dentro das própriascomunidades judaicas, existindo algumas divergências religiosas e culturais com os não-

     judeus; a maioria do judaísmo asquenazita vive no schtetel, vilarejo judaico, lugardensamente povoado que leva a uma situação de pobreza e inclusive miséria, retratado naarte de forma magnífica pelo pintor Marc Chagall, e na literatura pelo escritor IsaacBaschevis Singer.

    A opção secular leva a um aumento das atividades sionistas. Surgem assim os jovens “Amantes de Sion”, Chovevei Tzion, e a idéia de retorno à pátria milenar. O sonhosionista recebe um forte apoio da filantropia judaica por meio de indivíduos, Sir MosesMontefiore e Edmond de Rotschild, ou por intermédio de instituições filantrópicas comoa Aliança Israelita Universal, Kol Israel Chaverim, fundada em Paris, em 1860, com filiaisnas diversas comunidades da Diáspora.

    Acentua-se cada vez mais a diferença entre os judeus que moram no Ocidentedaqueles que habitam no Oriente. Os primeiros, europeus, conseguem criar uma cultura

     para levar as comunidades a um renascer nacional, o Movimento da Haskalá, enquanto

    os últimos não produzem nenhum movimento cultural.

    O quarto período de crise, de 1881 a 1948, inicia-se nos pogroms da Rússiaczarista, com as Leis de Maio de 1882, e encerra-se na criação do Estado de Israelreconhecida pela ONU em 14 de maio de 1948, após 30 anos, 1917-1947, de MandatoBritânico na Palestina. O período se caracteriza por uma enorme vontade em afastar portodos os meios o judeu da sociedade. Essa realidade acarretou o aumento doantissemitismo na Europa. O fortalecimento dos nacionalismos levou a lutas entre povose nações pela fixação de fronteiras definitivas, gerando confrontos como a Primeira e aSegunda Guerra Mundial.

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    Segundo B.Z. Dinur, os judeus entendem que são tidas como pessoas pouco gratasnas sociedades, devido ao forte ódio e à declaração de guerra total contra o Judaísmo,atingindo o auge desse sentimento no extermínio de seis milhões de judeus pela Alemanhanazista entre 1933 e 1945.

    O Holocausto levou os judeus a se unirem em torno de um único ideal: a obtençãode um Estado nacional próprio, livre e soberano. A luta por um lar foi travada pelo ishuv(comunidade de judeus na Palestina) e, paralelamente, por uma campanha massiva de

     judeus norte-americanos.

    Seria, assim, necessário, recriar valores nacionais revitalizados anteriormente,dentre eles garantir a língua hebraica como idioma oficial do Estado de Israel; aumentaro movimento migratório judaico (1881-1920) rumo à Palestina e aos Estados Unidos deAmérica; estabelecer instituições judaicas que pudessem apoiar e concretizar as ideias donovo Estado nacional dos judeus.

    O clima de renascimento nacional poderia ser sintetizado, assim, nas palavras do poeta Naftali H. Imber, na letra do Hatikva, o hino do Estado de Israel: “Ser um povolivre em nossa terra, a terra de Sion, Jerusalém”. Hoje, pode-se perceber também:estabilidade ou crise.

    A diáspora, por sua vez, continuará com sua própria contagem. Caberia indagar,seguindo a teoria de Dinur, em qual época vivemos atualmente? Um período deestabilidade e criatividade ou um período de crise, produto do recrudescimento doantissemitismo no mundo?

    Há aqueles que pensam na primeira opção. O Judaísmo, para eles, vive uma erade ampla estabilidade e criatividade, pois afinal, o lar nacional já deixou de ser um sonho,convertendo-se numa realidade indiscutível. O jovem Estado de Israel foi reconhecido

     pela família das nações, superou suas dificuldades, consolidou uma sociedade pluralistae democrática; atingindo um crescimento cultural e tecnológico digno de uma potênciade primeiro mundo. é difícil pensar na possibilidade que o Estado judeu alguma vez deixede existir. No entanto, é o sionismo cultural ou espiritual de Achad Haam e SimonDubnov aquele que prevaleceu, pois, segundo eles, sempre haverá dois centros judaicos,um na Diáspora e outro em Israel.

    Por outro lado, há aqueles que, mesmo cientes que a criação do Estado de Israel pode ser considerada uma vitória; ainda pensam que hoje estamos atravessando por umcomplicado período de crises e pressões externas. Para estes, a fundação do Estado

     judaico aliviou a situação, mas ainda não deixou os judeus tranquilos. Problemas deconvivência com os vizinhos árabes, principalmente com os palestinos, não foramtotalmente resolvidos. Isso demonstra que não há nenhuma garantia de estabilidade esossego. Para os defensores dessa ideia, devemos lembrar a escalada antissemita e anti-israelense de uma Comunidade Européia judeofóbica e pró-árabe.

    O problema do exílio ou da denominada diáspora forçada, que definiu a HistóriaJudaica e determinou o caráter do Judaísmo durante séculos, foi resolvido. Agora já existe

    um Estado judeu. Novamente o judeu pode redefinir sua identidade judaica em termos decidadania. Como qualquer israelense, um judeu da Diáspora pode falar a língua nacional,

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    celebrar as festividades e viver em meio aos restos físicos de um passado remoto judaico,entre cidadãos de antecedentes históricos similares. Esse judeu não precisa se agarrar aqualquer conjunto de crenças ou comportamentos tradicionais para ser considerado umisraelense. Para esses judeus da Diáspora, a religião toma seu lugar entre os muitosaspectos da cultura nacional. No entanto, esse judeu que habita fora de Israel pode

    observar práticas religiosas judaicas, se assim escolher, ou pode abandoná-las, como amaioria dos israelenses fez, sem chegar a comprometer sua identidade judaica.

    Para os judeus da Diáspora, hoje é mais fácil e mais aceitável ser um cidadão judeuem um país não judeu do que jamais o foi no curso inteiro da História Judaica. Asdemocracias ocidentais garantem direitos civis a todos os cidadãos, seja lá qual for suareligião. O antissemitismo, que permeia a teoria de Dinur, pode não ter sido eliminadonos âmbitos mais altos e mais baixos da sociedade, mas na maioria dos regimes políticosos judeus são plenos cidadãos com todos seus direitos civis e religiosos.

    O maior problema pelo qual atravessam os judeus na Diáspora, hoje, não foilembrado na teoria de Dinur. Trata-se da facilidade com que judeus abandonam acomunidade, agora que têm liberdade para isso. De um modo geral, o Judaísmo sempremostrou uma tendência de se definir mais como uma religião do que como uma identidadenacional.

    Cabe, pois, a cada judeu comprometido com o futuro da sua própria comunidade,debater nas instituições essa importante questão. A resposta não é nada fácil, masformular a pergunta já é uma forma de acreditar que estamos cientes da importância dotema. Israel e a Diáspora enfrentam na atualidade novos desafios, mas nunca houve umaépoca melhor para fazer parte da História Judaica.

    2. Judeus e cristãos na época medieval Tornado povo errante desde que começara a diáspora no século II, os judeus

    tiveram que habituar-se a viver como minoria no seio de sociedades estranhas e hostis aeles.[2]

    Convivendo com muçulmanos e cristãos Quando, a partir do século VII dC, a maré muçulmana cobriu o norte da África e,

    em seguida, espalhou-se para a península Ibérica, os islamitas autorizaram que os judeusque lá viviam mantivessem sua fé desde que pagassem aos califas o dhimmi, ou jizya, umimposto obrigatório para quem não seguisse a religião do profeta Maomé.

    O problema maior do convívio dos judeus com os gentios deu-se com os cristãoseuropeus, pois a nova fé que tomara conta do Império Romano decadente, e que depoisconverteu os bárbaros germanos recém chegados, os odiava por terem repudiado JesusCristo.

     Não só isto, um dos seus discípulos mais próximos, Judas, traíra o Messiasentregando-o aos romanos por 30 dinheiros. Agravava-se assim a imagem do judeu comoalguém passível de traição, gente não merecedora de nenhuma confiança e que por um

     punhado de ouro ou prata punha em perigo quem o acolhia e dava abrigo. Ou como delesdisse um Papa: “é o rato no bolso, a serpente em torno da cintura”.

    Diáspora – êxodo dos judeus de Israel 

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     Sefarditas – Norte da África, Itália, Espanha e Portugal (depois para Holanda).Convívio com muçulmanos, católicos e calvinistas.

     Asquenazis – Alemanha, Polônia, Estados Bálticos, Ucrânia e Rússia. Convíviocom luteranos, católicos e cristãos ortodoxos.

    As sanções antijudaicas Este arraigado preconceito de origem religiosa, fez com que diversas sanções eregulamentos fossem impostas ao então dito “povo da nação” ao longo da Idade Média.

     Não podiam ser proprietários de terras, lhes era vedado andar a cavalo ou assumir funções públicas. Casar com cristãos foi-lhes expressamente proibido em quase todos os reinoseuropeus.

    Em algumas cidades, para evitar uma aproximação com os gentios, obedientes aoquarto Concilio de Latrão, de 1215, exigiram que eles andassem nas ruas com uma rodelaamarela (cor da traição) ou com o símbolo da estrela de Davi fixada no braço ou na lapelados casacos, e, por vezes, com chapéus cônicos. Tornaram-nos os párias do medievoeuropeu, em “intocáveis”.

    Houve naqueles tempos uma intensa diabolização deles e um aumentosignificativo da crença de uma conspiração semita visando “a ruína do cristianismo”.

    Qualquer boato passou a ser uma ameaça à vida e aos bens dos judeus. Isto explicao motivo de muitos deles aceitarem o batismo cristão, quando se acirrava a política dasconversões forçadas.

    Exatamente por serem considerados indignos é que lhes permitiram dedicar-se à prática dos negócios, especialmente do empréstimo a juros (a usura) e dos penhores,

    atividades proibidas aos cristãos. Mas esta sempre foi uma função exercida por umaminoria.

    Tirando-se os “judeus da corte” e os arrecadadores de impostos, a larga maioriados assentamentos e dos lugarejos judaicos era composta por pequenos profissionaismuito pobres (alfaiates, ferreiros, sapateiros, marceneiros, ourives, vendedoresambulantes, etc.).

    Sendo que alguns mais dotados exerciam a medicina (os médicos judeus como ofilósofo Maimônides foram famosos na Idade Média) ou tornavam-se rabinos, guiasespirituais da comunidade.

    O ódio que a plebe cristã lhes reservava vinha do fato de serem eles os únicosemprestadores de dinheiro aos quais podiam recorrer, em troca de um penhor, num tempoem que os poucos bancos que atuavam estavam reservados aos ricos e aos reis.

    A política da separação Estavam, pois, por força das leis cristãs, obrigados a viver apartados da

    comunidade.

    Como assegurou Maria J.Ferrero Tavaraes:

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    ‘Por razões de segurança e de vida coletiva, as comunidades judaicas localizaram-se sempre nos centros urbanos, independentemente de uma ou outra família poder residirnas zonas rurais. A comuna cujo centro era a sinagoga, erguia-se no espaço municipal etinha a sua existência conferida pela concessão de uma carta de privilégios, onde seencontravam nomeados todos os seus usos, costumes, e liberdades. A permissão para

    abrir ou construir uma sinagoga era dada a um mínimo de dez famílias, residentes numalocalidade, pelo rei com o beneplácito do bispo, uma vez que a religião mosaica eratolerada na cristandade, com o objetivo de os seus crentes poderem vir a converter-se aocristianismo’ (in  Linhas de Força da História dos judeus em Portugal das origens aatualidade).

     Na Ibéria, desde 1412, seus aglomerados eram denominados de Juderias, naAlemanha de Judenhof  ou Judenviertel  e na Itália de ghetto.

    Todavia, o rancor antijudaico somente adquiriu foros marcadamente violentos a partir das Cruzadas contra os infiéis (a primeira começou em 1096; a segunda em 1147;e a terceira em 1189).

     Naquela oportunidade, o papa Urbano II fez uma conclamação em Clermont-Ferrant para que os cavaleiros cristãos marchassem unidos para a Terra Santa a fim delibertá-la da presença profanadora dos turcos seldjúcidas, convertidos recentes à fé deMaomé. “Deus quer!” dissera o papa. Uma onda de fervor religioso e febre fanática entãotomaram conta da cristandade.

    A sensação que atingiu a maioria dos cristãos que aderiram à Guerra Santa proposta pela Igreja Católica foi de que não poderiam partir para rincões distantesdeixando a retaguarda à mercê dos pérfidos judeus.

     No exterior o inimigo era o Islamismo, no fronte interno era o Judaísmo. Foi entãoque uma onda de horror atingiu os pequenos conglomerados judaicos espalhados pelaEuropa Ocidental.

    Primeiros pogroms [3] No fatídico verão de 1096, seus bairros viram-se atacados por turbas de

    desordeiros e pilhadores, quando não os próprios cavaleiros cruzados, antes demarcharem para os Santos Lugares, desejavam experimentar suas espadas nas costas dos

     judeus.

    O historiador Steve Runciman observou que:

    ‘Para um fidalgo saía custoso equipar-se para a Cruzada; se não tinha terras nem possessões penhoráveis, via-se forçado a pedir um empréstimo aos judeus. Mas, era justoque ao marchar para lutar pela Cristandade tivesse que cair nas garras dos indivíduos daraça que havia crucificado a Cristo? O cruzado pobre já tinha dividas com os judeus. Era

     justo que se visse impedido dos seus deveres como cristão por obrigações contraídas comalguém de raça ímpia? Para alguns deles os judeus eram ainda piores do que osmuçulmanos a quem iriam dar combate’.[4]

    Os destrutivos ataques que começaram a fazer aos bairros judeus foram muitasvezes estimulados pelas crescentes histórias que circulavam que diziam serem eles os

     promotores de sacrifícios infantis – de martirizarem crianças cristãs na época da Páscoa

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    Muitas das medidas reais de exclusão foram revistas, mas, em geral, a política de perseguição empurrou os judeus em direção ao Leste europeu, fixando-osmajoritariamente na Polônia, Ucrânia, Rússia e Moldávia.

    A Inquisição 

    Durante setecentos anos, de 711 a 1492, a Espanha foi palco de uma intermitenteguerra entre os cristãos e os invasores muçulmanos. A partir do século XII, tornou-se,com mais intensidade ainda, uma das fronteiras sangrentas das Cruzadas contra o Islã,sendo que os espanhóis em diversas batalhas contaram com o auxilio de cavaleiroscristãos vindos de outras partes da Europa.

     Neste cenário, os judeus sefarditas, pelo menos entre os séculos XI e XIII, não passaram de todo mal (o período foi apontado como o século de ouro da cultura judaicae da literatura ladina na Espanha), até que os cristãos conseguiram a vitória final com atomada de Granada, a última cidade muçulmana a cair nas mãos dos reis católicosFernando e Isabel, em 1492.

    Os sinais perigosos de antijudaísmo da parte dos cristãos já haviam sidoanunciados um século antes quando se deram pogroms [5] insuflados pelos padres.

     No primeiro dia de Tamuz 5151 do calendário hebraico (4 de junho de 1391)ocorreram tumultos em Sevilha. Os portões da judería foram incendiados e muitas

     pessoas morreram. As sinagogas foram convertidas em igrejas e os bairros judeus preenchidos com colonos cristãos.

    Instigados pelo sermonista São Vicente Ferrier, pregador apocalíptico, líder dos“Flagelantes”, as desordens ampliaram-se para outros locais da Espanha, como Valência,Madri, Cuenca, Burgos e Córdoba, quando o fogo tomou conta dos templos, das oficinas

    e das lojas depredadas por turbas católicas enlouquecidas.

    Ao propósito da unificação política da península Ibérica liderada pela MonarquiaCatólica, associou-se a Igreja Católica, ambos convencidos em por um fim à diversidadereligiosa que até então imperava na Espanha. Quem não aceitasse a fé oficial deveriadeixar o reino.

    O Decreto de Alhambra ou Édito de Granada, assinado pelos Reis Católicos em31 de março de 1492, colocou os judeus na alternativa da conversão forçada ou do exílio(desde que deixassem seu patrimônio nas mãos do tesouro real). O grão-rabino IsaacAbravanel ainda tentou inutilmente demover suas majestades, mas elas foram

     pressionadas pelo inquisidor-mor D. Tomás de Torquemada a não voltar atrás. Milharesde judeus escolheram a apostasia para continuar morando em solo onde de há muitoviviam, mas um número considerável dele teve que deixar o país para sempre. [6]

    A polícia da consciência Autorizada pelo Papado a funcionar desde 1480, a Inquisição Espanhola (a de

    Portugal é de 1536) tornou-se uma poderosa máquina de perseguição político-religiosa projetando uma sombra grotesca e triste sobre a história da península Ibérica.

    Além de ser uma policia da consciência, o assim designado Tribunal do SantoOfício foi uma arma eficaz para assegurar o monopólio da fé católica sobre a populaçãoem geral e fixar o predomínio dos cristãos velhos “de sangue limpo” sobre todos osdemais.

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    A sua justificativa de ser era a desconfiança. Com tantos judeus (ditos, marranos)e mouros (ditos, mouriscos) forçados a se converter ao cristianismo, era natural quelevantassem suspeitas quanto à sinceridade daquela adesão aos mandamentos de Jesus.Era preciso, pois, vigiá-los para ver se, secretamente, não cometiam crimes “contra a fé”.

    Uma crescente burocracia, ordenada segundo as Instruções de Torquemada, entãofoi instituída para controlar os passos dos ditos cristãos-novos, isto é dos conversos.Bastava uma simples denúncia anônima para que os suspeitos se vissem presos àsengrenagens do Santo Tribunal.

    Detidos e encarcerados, os réus eram submetidos à sistemática tortura do potro,da polé ou do garrote, até que algum tipo de confissão lhes fosse arrancada. Por vezes,

     bastava a simples exposição visual dos instrumentos de tortura – in conspectatormentorum – para que ocorresse a auto-incriminação.

    Dependendo da magnitude do crime apurado, o suspeito era acusado e após tersido julgado e seus bens expropriados era submetido a um auto-de-fé: uma cerimônia

     pública de expiação.

    Conduzido pelas ruas trajando um sanbenito com um ridículo chapéu cônico àcabeça, com cartazes infamantes pendurados no peito e nas costas, apupado pelamultidão, era levado até uma praça para que todos pudessem assistir os tormentos que oherege devia obrigatoriamente padecer.

     Nos casos mais graves – comprovada a prática de “coisa judaizante” – eracondenado à morte na fogueira como exemplo de expiação dos seus pecados. Os que porum acaso conseguiam escapar eram executados em efígie, isto é, em imagem.

    Entre 1485-1501, em Toledo, 250 foram entregues ao “braço secular”, isto é,

    executados em público e 500 outros em efígie. No mesmo período, em Valência, 643sucumbiram no patíbulo enquanto 479 o foram simbolicamente. Até na aprazível ilha deMaiorca 120 foram supliciados até a morte e 107 o foram em efígie. [7]

     Nem aqueles que se refugiavam nas colônias dos impérios ibéricos estavam asalvo. A Inquisição, com certa regularidade, enviava Visitadores do Santo Oficio para o

     Novo Mundo para caçar os fujões. Sendo que na cidade de Lima, capital do vice-reino doPeru, o Santo Oficio se estabeleceu em caráter permanente, assim como na cidade doMéxico, cujo tribunal foi inaugurado em 1569, conquanto que um terceiro foiestabelecido em Cartagena das Índias, Colômbia, em 1610.

    Poucos anos depois desta política de extermínio de uma religião, a presença

    milenar da comunidade dos judeus sefarditas praticamente deixou de existir na PenínsulaIbérica, pondo fim definitivo ao convívio das três etnias (a espanhola, a judaica e a moura)e das três religiões (a cristã, a mosaica e a islâmica) que até então a caracterizara.

    3. Os Judeus e o Cristianismo Oriental 

    A Judéia sob o domínio bizantino [8]As tensões continuaram a aumentar na Judeia entre cristãos e judeus. Foi a política

    cristã oficial que converteu judeus ao cristianismo, e os líderes cristãos usaram o poderoficial de Roma nas suas tentativas. Em 351 dC. os judeus se revoltaram contra as

     pressões acrescidas de um mau governante chamado Gallus. Gallus sufocou a revolta e

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    destruiu todas as grandes cidades da Galiléia, onde a revolta começou. Tsipori e Lida(lugares de duas das principais academias jurídicas) nunca se recuperaram.

    Enquanto os judeus da Judeia lutaram contra a pressão cristã, a própria Romasofria cisões e crises. Havia já dois reinos. Um deles, o reino do Ocidente, tinha sua capitalem Roma. O segundo, o reino do Leste, tinha sua capital em Constantinopla. Ambos os

    reinos foram flagelados pela inflação, guerras civis, o governo de corruptos e saqueadores bárbaros que continuaram tentando conquistá-los.

     Nessa época, em Tiberíades, Hillel II, fez um ato revolucionário. Ao invés demanter o controle político sobre o resto do mundo judaico, insistindo em quea diáspora aguardava a cada mês do calendário para a verificação da Judéia, ele criouum calendário oficial, que não precisava de avistamentos mensais da lua. Os meses foramcriados, e o calendário não precisava de nenhuma outra autoridade da Judeia. Issoefetivamente mudou a autoridade judaica legal da Judeia para a Babilônia. Assim, os

     judeus babilônicosnão eram mais dependentes da Judeia para nada.Por volta do mesmo tempo, a academia de Tibério começou a escrever todas as

     partes da Mishná [9]combinando explicações e interpretações desenvolvidas por geraçõesde estudiosos que estudaram a filosofia de vida, após a morte de Judah. Eles organizarameste grande trabalho de acordo com a ordem da Mishná. Cada parágrafo da Mishná foiseguido por uma compilação de todas as interpretações, histórias e as respostas associadasa essa Mishná. Este texto é chamado o Talmud de Jerusalém.

    Os judeus da Judeia tiveram uma breve pausa em 363 dC, quando Juliano oApóstata, tornou-se imperador do Reino Oriental. Ele tentou retornar ao reinode helenismo e encorajou os judeus a reconstruir Jerusalém. Os judeus estavam emêxtase, mas sua alegria foi de curta duração; Juliano foi assassinado, e os imperadorescristãos assumiram, para nunca perder o controle novamente.

    Em 476 dC, o reino ocidental de Roma foi conquistado pelas hordas bárbaras(como eram carinhosamente chamados pelos romanos). O Reino do Leste(chamado Bizantino) sobreviveu ao ataque e manteve a posse de suas terras, incluindo aJudeia. Os “bárbaros” estabeleceram-se no Império do Ocidente e tornaram-se cristãos.Tal como nunca tinha sido antes, Roma caiu, a estrutura bizantina política foi fortementeinfluenciada pela Igreja, e os judeus da Judeia continuaram a sofrer.

     No início do século V, o imperador Teodósio determinou que, considerando os judeus na qualidade de um grupo de pérfidos, e que haviam negado a Jesus, fossem perseguidos. Os judeus não podiam possuir escravos (tornando a agricultura difícil paraeles). Eles não podiam construir novas sinagogas. Eles não podiam ocupar cargos

     públicos. Os tribunais dos judeus não podiam julgar casos entre um judeu e um não-judeu.

    Casamentos entre judeus e não-judeus eram uma ofensa capital, era como se um cristãose convertersse ao judaísmo. Além disso, Teodósio acabou com o Sinédrio e aboliu ocargo de “Nasi”.[10] Os judeus receberam uma carga fiscal extra também.

    A Igreja representada pelo governo bizantino estava lutando com sua própriaidentidade. Acabar com a heresia dentro da Igreja ocupou grande parte da energia doslíderes da Igreja. Com ele veio um virulento anti-semitismo. Os judeus eram acusados detodos os males imagináveis. João Crisóstomo, falando em Antioquia, emitiu uma série desermões que se tornaram a fonte medieval cristã do anti-semitismo. Com Justiniano ascoisas ficaram piores para os judeus. Ao manter os éditos de Teodósio, Justinianoacrescentou alguns detalhes para a lista em dois editais. Regulamento 37 proibiu osJudeus de ocupar o Norte de África. O edital mais escandaloso, porém, foi o Regulamento

    146, criado em 553 dC. Os judeus foram proibidos de ler a Torá ou qualquer outro livroem hebraico. Apenas a versão grega (Septuaginta) poderia ser usada. O “Shemá “era

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     proibido. O estudo da Mishná foi proibido. Justiniano encorajou os cristãos a destruirsinagogas, lojas e casas de judeus.

    Felizmente, Justiniano e os bizantinos tiveram problemas fora da província daJudeia, e não havia tropas suficientes para cumprir estes regulamentos. Como resultado,ironicamente, o século VI viu uma onda de novas sinagogas serem construídas com belos

     pisos de mosaico. Judeus assimilaram em suas vidas as formas de arte da cultura bizantina. Encontram-se nessas construções mosaicos que mostram pessoas, animais,menorahs, zodíacos, e personagens bíblicos.

    Excelentes exemplos destes pisos em sinagoga foram encontrados em BeitAlpha (que inclui a cena deAbraão sacrificar um cordeiro em vez do seu filho Isaac,

     juntamente com um lindo zodíaco), Tibério (não é uma surpresa, era o centro da vida judaica), Beit Shean e Tsipori.

    Os cristãos, entretanto, também fizeram a construção e sedimentação na Judeia.Apesar de seus mais importantes centros cristãos ficarem em Jerusalém e Cesareia, e issofoi por um motivo diferente: o monaquismo.

    Copiando-se diretamente da seita dos Essênios, do judaísmo, ordens monásticasforam estabelecidas no Cristianismo. Citando o mesmo texto bíblico de Isaías: “A voz dequem clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor”. Os cristãos fundaram mosteiros,e em todos são percebidos provavelmente em toda a Judeia. Há um magnífico mosteiroem Jericó, o mosteiro de São George que foi inspirado por Wadi Kelt; Mar Saba está nodeserto da Judeia, no meio do nada, e grandes mosteiros foram construídosemAvdat, Masada e Zohar.

    Igrejas foram estabelecidas em locais tradicionais (via do dedo real de Helena) demilagres na vida de Jesus. Tavcha tem um belo mosaico no chão cheio de pássaros eflores. Há um lindo mosteiro no alto do Monte Tabor, que comemora a transfiguração de

    Jesus perante seus discípulos.

    Todos estes mosteiros, igrejas e sinagogas foram construídas durante os reinadosanti-semitas, os imperadores pró-cristãos do Império Bizantino.

    4. Os Judeus sem Pátria Judaísmo, ruptura e continuidade [11]

    Jean Delumeau fala-nos de uma ruptura, ou melhor, de uma sequência de rupturase continuidades. A presença ou ausência do templo, materializada em destruição eedificação, aparece como um fator determinante na vida política e religiosa dos judeus. É

    interessante olhar para o ponto de continuidade, exarado no texto da Torá, ofertada porDeus aos judeus, mesmo antes de lhes ser provido um espaço nação, assim como aimportância que a Torá continuou a ter mesmo quando eles perderam o seu espaçonovamente. Como afirma Paul Johnson: “As reformas de Josias, o exílio, o regresso doexílio, a obra de Esdras, o triunfo dos Macabeus, a ascensão do farisaísmo, a sinagoga, asescolas, os rabis – todos esses acontecimentos haviam sucessivamente primeiroestabelecido, depois gradualmente consolidado o absoluto domínio da Torá na vidareligiosa e social judaica.”Ao olhar para a terra santa, uma conquista no dizer deDelumeau. Foi verdadeiramente uma conquista nos dias de Josué, uma oferta nos dias deAbraão, um reapropriar nos dias de regresso do cativeiro em Babilônia, uma luta pelamanutenção nos dias dos Macabeus e uma perca nos dias de Tito.Daí a tentativa de tentarse conciliar estas três dádivas: a Torá, a Terra Santa e o Templo; percebendo-se o fato deque quando se afastaram da Torá perderam o resto e nunca mais conseguiram

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    apropriarem-se como nos dias de Salomão ou de Ezequias. Apesar dos avisos de Jeremias,foi o esforço de Ezequiel, com um texto tão prodigioso, quanto enigmático e complicadoque trouxe os judeus de volta à Torá.A ruptura apresentada e à qual se dedica um poucomais de atenção foi despoletada pela destruição que o general Tito infligiu à cidade deJerusalém, no ano 70 da nossa era, destruindo por completo a cidade incluindo o Templo.

    Os seus habitantes foram dispersos. Sem templo e sem terra necessitavam de um novoincentivo religioso que não deixasse a sua fé desaparecer, sendo as sinagogas uminstrumento basilar permitindo que o povo pudesse intensificar os seus estudos, exercitara oração e a caridade, mesmo sem os sacrifícios do templo, em qualquer altura e emqualquer parte do mundo onde se encontrassem.Realmente não foi a primeira vez que o

     povo ficou sem templo, pois o primeiro tinha sido construído por Salomão, destruído peloexército Babilônico nos dias dos profetas Ezequiel e Jeremias, reconstruído no tempo dos

     persas, “é também chamado de templo de Zerobabel.” e destruído no tempo de AntiocoEpifâneo, “sua insaciável avareza fez com que ele não temesse violar-lhes também a fé,despojando o templo das muitas riquezas de que, sabia ele, estava cheio… afinal nada ládeixou”. Este templo que ficou tão desprezado e maltratado pelo novo uso que lhe foi

    dado, pois “mandou também construir um altar no templo e ordenou que lá sesacrificassem porcos…”, foi reconstruído por Herodes, o grande, sem o derribar, sendoacrescentados sucessivos melhoramentos pelos seus sucessores.

     Nos dias de Tito existia o templo, festas religiosas, sacrifícios, sacerdotes, aimponente Jerusalém e vários partidos que disputavam não só o poder, mas a forma comoo judaísmo deveria ser seguido. Com a investida de Tito tudo veio a mudar.

    Se começarmos pelas sinagogas, falamos de instituições providas de um edifícioque existiram em simultâneo com o templo e continuaram depois deste ter sido reduzidoa cascalho. “Quando o judaísmo foi finalmente constituído, em todas as comunidades

     judaicas da palestina, da Diáspora e em Jerusalém, até ao lado de Templo, havia edifíciosonde não se celebrava nenhum culto sacrificial, mas onde havia reuniões para oração e

     para leitura dos ensinamentos da Lei, essas são as sinagogas”. Este equipamento servia omeio para pôr em prática a mensagem de Ezequiel: “só havia salvação através da purezareligiosa.” Este ensaísta de viver sem templo, exilado, sem pátria e sem sacrifícios,explicou à sua posteridade que isso era algo possível.

    Assim por todos os lugares onde os judeus andavam dispersos, a sinagogarepresentou um elo de coesão do judaísmo, visto que divulgou entre os pagãos a crença eo culto monoteísta. Com a implantação da sinagoga numa cultura gentílica, estarepresentava mais do que um lugar de culto. Era a escola, o lugar de convívio, um espaçoonde se mantinha viva a língua hebraica, onde se tratava do apoio social aos órfãos eviúvas. Era um pouco de Jerusalém noutro qualquer lugar do planeta. Tito acabou com o

    Templo, com os sacrifícios, com todo o staff do Templo, contudo não acabou com asorações e estudos da Torá, que permaneceram pelos séculos como meio de interligaçãoentre os judeus, dando-lhes uma identidade enquanto nação, mesmo que sem pátria eenquanto religião. Poderemos resumir com a expressão o judaísmo adaptou-se,mantendo-se fiel à Torá.

    Aparece à parte das sinagogas o trabalho de ensinar e preservar a Lei. Com aurgência de estudar, copiar e ensinar a lei durante e após o exílio babilônico, surge umanova classe de eruditos, apelidados de escribas, como encontramos no livro de Esdras:“… este Esdras subiu de Babilônia. E ele era escriba hábil na lei de Moisés, que o SenhorDeus de Israel tinha dado; e segundo a mão do Senhor seu Deus, que estava sobre ele, orei lhe deu tudo quanto lhe pedira…”.

    Agora longe da sua terra, muitos anos depois de Esdras eram necessários mais doque a tradição oral para passar às gerações vindouras os ensinos da Torá e os preceitos

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     judaicos. Claro que a Torá continuou a ser para os judeus a palavra revelada de Deus, seuvalor era inquestionável, mas era necessária a sua interpretação e adaptação ao quotidianoatual, bem diferente do quotidiano de Moisés no deserto. Foram desenvolvidos doisTalmudes, o primeiro por volta de 400 a.C. e o outro por 500 ou 600 a.C., em Israel e naBabilónia respectivamente. Estes documentos não são fruto de um dia, mas o juntar do

    trabalho de estudiosos ao longo de muitos anos, constituindo-se numa ajuda àscomunidades judaicas desejosas de praticar a verdadeira religião e que por isso sedirigiam frequentemente às sinagogas espalhadas pela diáspora para aprender.

    Se Tito não tivesse oferecido aos judeus este momento duradouro de ruptura, elescontinuavam sectarizados entre os seus partidarismos como: os saduceus, os fariseus, oszelotes e os essênios; acrescentados de alguns outros que, entretanto surgiriam. Cada umdisporia da sua ideia, de forma déspota, lutando pela preponderância no Templo e diantedo povo, discutindo mais problemáticas secundárias do que a essência da sua própriadoutrina, centrando a sua crença no sacrifício de inúmeros animais de forma continuada,nos sacrifícios do Templo, não se alienando das festividades inerentes.

    Provavelmente os anos teriam roubado a atenção da essência da prática do

    Pentateuco e também se concentrado sob qualquer pormenor dos rituais do templo nahistória dos judeus.

     Não é tão fácil perceber a filosofia da história quando se estár vivendo asexperiências estáveis ou instáveis. Assim, olhando para trás e vendo a história do povo

     judeu é que se percebe o quanto foi útil a dispersão. O mundo pôde ser enriquecido coma cultura e a religião judaica.

    5. O Problema da Xenofobia Xenofobia e racismo [12]

    As recentes revelações das restrições impostas há mais de meio século, àimigração de negros, judeus e asiáticos durante os governos de Dutra e Vargas chocaramos brasileiros amantes da democracia. Foram atos injustos, cometidos contra estessegmentos do povo brasileiro que tanto contribuíram para o engrandecimento de nossanação.

    Já no Brasil atual, a imigração de estrangeiros parece liberalizada e imune àsmanchas do passado, enquanto que no continente europeu marcha-se a passos largos nadireção de conflitos raciais onde a marca principal é o ódio dos radicais de direita aosimigrantes.

     Na Europa, a história se repete com o mesmo enredo centenário: imigrantes são

     bem-vindos para reforçar a mão-de-obra local em momentos de reconstrução nacional oude forte expansão econômica; após anos de dedicação e engajamento à vida local,começam a ser alvo da violência e da segregação.

    Assim vem sendo na Inglaterra, onde os recentes distúrbios na cidade de Bradforddeixaram transbordar todo o ressentimento dos imigrantes paquistaneses e bengalesesque, nos anos 70 e 80, contribuíram para o boom da indústria têxtil local e que hoje, emum momento de recessão e fechamento das fábricas, têm dificuldade para encontrar novosempregos.

     Nesta cidade inglesa, os imigrantes chegam a representar 15% da população total,enquanto que em toda a Inglaterra é de 5% o total das minorias étnicas.

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    O partido Frente Nacional, pertencente à direita radical, vem pregandoabertamente, em violentas manifestações públicas, que os asiáticos sejam repatriados.

    Também na Áustria, onde os imigrantes turcos tiveram papel preponderante nareconstrução pós-guerra do país, o líder racista Joerg Haider, cujo partido recebeu quase

    um terço dos votos num país com apenas 4% de desemprego, continua fazendo suas pregações xenófobas, estimulando o ódio aos turcos, que estariam supostamente tirandoos empregos dos nativos.

    O mesmo clima de intolerância é encontrado na França, berço de uma revoluçãoque pregava a liberdade, a igualdade e a fraternidade. O líder ultradireitista Le Pen

     promete aos seus eleitores que, se levado ao poder, deportará imediatamente três milhõesde imigrantes, incluindo os filhos destes nascidos em solo francês. Uma recente pesquisamostrou que 67% dos franceses são declaradamente xenófobos.

    A hipocrisia atual foi acentuada nesta semana,[13] com a notícia de que aAlemanha necessita admitir urgentemente 50 mil novos imigrantes por ano paracompensar a baixa taxa de natalidade no país (a estimativa é de que a populaçãogermânica irá sofrer uma contração de 25% nos próximos 50 anos, reduzindodrasticamente o total de 82 milhões de habitantes atuais).

    O anúncio oficial já traz embutidas as condições para o ingresso em territórioalemão: ser jovem e ter conhecimento profissional. Imediatamente após a divulgação do

     plano governamental, os líderes de direita lançaram um slogan por todo o país: “Kinderstatt Inder” – “Crianças ao invés de indianos”, conclamando o governo a aplicar osrecursos na educação das crianças alemãs ao invés de fomentar a imigração. A Alemanharegistrou um crescimento de 59% nas manifestações radicais de direita, crimes racistas e

    anti-semitas no ano 2000.

    Todas as manifestações na Europa são, todavia, superadas em crueldade eindignidade pelo que vai acontecendo na Itália, onde se transformaram em uma praganacional, com destaque para os estádios de esportes. As recentes cenas transmitidas poruma cadeia mundial de TV, durante uma partida de futebol, revelaram a que ponto podechegar os extremistas raciais. Quando um jogador negro dominou a bola, uma verdadeirachuva de bananas foi jogada no campo aos gritos de “fora, negros” e “bananas para osmacacos”. Um exemplo de intransigência são os torcedores do Lazio, que se transformamem verdadeiros filhos de Hitler quando assistem às partidas de seu time. As ofensas eagressões morais extrapolam até para agressões físicas. Algumas raras reações de

     jogadores indignados com os acontecimentos podem ser registradas. Por exemplo, asreações dos jogadores do time Treviso, que pintaram o rosto com graxa preta de sapatoem solidariedade ao companheiro negro nigeriano Schengun Omolade, que foi ofendido

     pela própria torcida de seu clube com faixas que diziam: Não queremos um jogador negroem nosso time.”

    A imprensa brasileira noticiou uma proposta milionária do Lazio da Itália, que pretendia adquirir o passe do zagueiro Juan por 10 milhões de dólares. Este é o time cujatorcida já agrediu o jogador brasileiro Antônio Carlos, do Roma, e perdeu o mando decampo por incitamento racista em pleno estádio.

    O tal do anti-semitismo [14] 

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    Os cerca de 400 delegados presentes ao encontro que celebrou em Nova Iorque ononagésimo aniversário da Liga Anti-Difamação da B`nai B`rith, em fins de 2003,ouviram de Abraham Foxman, presidente da instituição, um alerta de extrema gravidade.Segundo ele, as ameaças à segurança do povo judeu são hoje “tão grandes – se nãomaiores – quanto as dos anos 30.” Assustou uma plateia composta, em sua maioria, por

     pessoas idosas, que viveram os horrores do nazismo.

    Foxman não está sozinho nesta análise. Vários livros têm surgido, especialmentenos Estados Unidos, apontando a vigência de uma espécie de guerra contra os judeus.Phyllis Chesler, por exemplo, escreve em The New Anti-Semitism (citado por Brian Klugno artigo “The Myth of the New Anti-Semitism”, The Nation, 02/02/04): “Serei clara: aguerra contra os judeus está sendo travada em muitas frentes – militar, política,econômica, propagandística – e em todos os continentes.” Estende esta ameaça para todaa civilização ocidental. Avi Becker, secretário geral do Congresso Judaico Mundial, jádissera, em 2002: “Estamos vivendo os piores momentos de anti-semitismo na Europadesde o final da Segunda Guerra Mundial.”

    Também no Brasil repercutem as advertências. Em carta recentemente enviada ao jornal O Pasquim 21, o presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro,Osias Wurman, refere-se a uma “onda de anti-semitismo que temos presenciado em todoo mundo.”

    Há, realmente, uma ressurgência generalizada do ódio anti-semita? Em caso positivo, que circunstâncias teriam levado a isso? Em caso negativo, por que estariasemeada esta impressão em muitos formadores de opinião?

    Antes de mergulhar no tema, um esclarecimento. O anti-semitismo é velhoconhecido dos judeus e tem demonstrado enorme resistência ao longo da História.

    Camaleônico, vestiu roupagens diferentes e mesmo antagônicas. Seria tolice ignorar ouescamotear estas evidências. É um inimigo ardiloso, que precisa ser enfrentado, nomínimo, com inteligência política, persistência pedagógica e conhecimento histórico.

     Neste artigo, entretanto, não se trata de reconhecer ou rejeitar a existência do anti-semitismo, o que seria uma discussão surrealista. Ele será focalizado como fenômenosocial, com raízes localizáveis, e não como uma fatalidade genética. Veremos, com baseem pesquisas e análises de diversas fontes, se está em curso um surto agudo de

     perseguição aos judeus, diferente e/ou mais intenso dos que aconteceram em outros períodos.

    O documento mais completo que já se produziu sobre o assunto veio à luz em

    março de 2003 (“Manifestations of Anti-Semitism in the European Union”, Viena). Foiuma extensa pesquisa conduzida pelo Centro Europeu de Monitoração do Racismo e daXenofobia em quinze países, recolhendo dados referentes ao primeiro semestre de 2002.As principais conclusões foram as seguintes:

    1. Desde a eclosão da chamada Intifada de al-Aksa, em outubro de 2000, houveum incremento acentuado de incidentes anti-semitas em alguns países europeus. Eles seintensificaram na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos,após os quais se espalhou também uma histeria antiislâmica. Os pesquisadoresressaltaram a pouca credibilidade estatística de muitas fontes de informação, na medidaem que, por exemplo, muitos casos de críticas legítimas e respeitosas às políticas dosgovernos israelenses acabavam rotuladas como anti-semitismo. Também não há, entre os

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     países pesquisados, uma definição homogênea de anti-semitismo, o que dificulta umaanálise criteriosa dos dados levantados.

    2. É historicamente impróprio considerar a recente escalada de incidentes anti-semitas como a pior desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Anthony Lerman, ex-

    diretor executivo do Institute for Jewish Policy Research, de Londres, pondera que “é umerro pensar que um aumento de incidentes implica necessariamente numa piora geral doclima de anti-semitismo”. Os pesquisadores alertam que se, além do número deincidentes, outros indicadores forem considerados, como atitudes antijudaicas, sucessoeleitoral de grupos de extrema-direita, discriminação social e legal dos judeus etc., oresultado não indica um aumento geral do anti-semitismo e, além disso, mostra clarasdiferenças entre países pesquisados.

    3. O clímax dos incidentes aconteceu entre o fim de março e meados de maio de2002, paralelo a uma violenta escalada no conflito palestino-israelense. Nos meses

     posteriores, com poucas exceções, houve um declínio acentuado, aproximando-se dosíndices médios observados nos países europeus em outros períodos.

    4. Na França, Bélgica, Holanda e Inglaterra os ataques contra judeus e instituições judaicas foram mais graves. Alemanha, Espanha, Áustria, Itália, Grécia, Dinamarca,Suécia, Portugal, Irlanda, Luxemburgo e Finlândia registraram números muito menores.

     Não existiu, portanto, uma onda, no sentido do encadeamento crescente e contagioso deeventos.

    5. Poucas vezes os agressores são identificados. Quando isso ocorreu com algumgrau de exatidão, verificou-se que as agressões foram cometidas por militantes da

    extrema-direita e muçulmanos radicais, a maioria de origem árabe, que, ironicamente, sãovítimas potenciais da nunca eliminada xenofobia européia. Na França, por exemplo,depois de interrogar 42 suspeitos (jovens imigrantes do norte da África e da região doMagreb), a polícia concluiu que eles eram “predominantemente delinquentes semideologia, motivados por uma hostilidade difusa contra Israel, exacerbada pelarepresentação do conflito do Oriente Médio na mídia (…), conflito que eles percebemcomo uma reprodução do quadro de exclusão e fracasso do qual são vítimas”.

    6. Houve casos em que as posições da extrema-esquerda se aproximaram das deextrema-direita. Isso foi particularmente visível em manifestações pró-palestinas eantiglobalização, quando caricaturas anti-semitas acabavam se confundindo com slogans

    antiisraelenses. Eis aqui um elemento fundamental: a presença do fator político (ligado àquestão do Oriente Médio) como detonador de ranços preconceituosos, que generalizam“culpas” e desconhecem a variedade de posições políticas dos judeus, dentro e fora deIsrael.

    7. Com muito poucas exceções, a chamada grande imprensa européia nãoveiculou material anti-semita. Este ficou confinado aos pasquins da extrema-direita e a

     páginas racistas da Internet. Alguns meios de comunicação ligados às comunidades árabee muçulmana têm conclamado à luta não apenas contra Israel mas também contra todosos judeus. É importante destacar que isso é repudiado pelas lideranças institucionais

    destes grupos. Na França, onde a população muçulmana totaliza 5 milhões de pessoas, os principais líderes comunitários advertiram contra a estigmatização do povo judeu,

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    condenaram os ataques contra judeus e pediram moderação nas manifestações desolidariedade aos palestinos. Naser Khader, membro do parlamento dinamarquês, HannaZiadeh, presidente do Conselho de Integração de Copenhagen, e Mahmoud Issa,historiador, todos palestinos residentes na Dinamarca, escreveram uma carta aberta nodiário Politiken, apelando a seus companheiros palestinos para que não deixassem que

    “suas críticas justas ao governo israelense se transformem em ódio a todos os judeus”.Enfatizaram que “nossa batalha é política e nada tem a ver com religião e etnicidade”. Oartigo foi impresso em dinamarquês e árabe.

    8. As velhas relações carnais entre Israel e EUA respingam sobre os judeus emtodas as partes. O ódio à política imperial praticada pelo presidente George W. Bushacaba resvalando para seus aliados israelenses e, por caminhos enviesados, para os judeus.Acrescenta-se: a luta antiimperialista arrasta setores equivocados da esquerda a umageneralização descabida. Estes setores desprezam o fato de que muitos judeus eorganizações judaicas se colocam abertamente contra as políticas de governos israelensese eventualmente até contra os fundamentos do Estado judeu. Com isso, perdem aoportunidade de ampliar as alianças contra os verdadeiros inimigos quais sejam, a

    exploração capitalista em todas as suas dimensões, o preconceito e o colonialismo.

    9. As populações judaicas são vistas como intimamente associadas ao Estado deIsrael e à sua política. Assim, estes judeus acabam se tornando reféns involuntários dasdecisões e atitudes dos governos israelenses. Os números da tabela abaixo, referentes à

     proporção dos entrevistados que duvidam da lealdade dos judeus a seus países, sãoesclarecedores.

    (% dos que concordam com a declaração) 

    Declaração  Bélgica  Dinamarca  França  Alemanha  Holanda 

    Os judeussão maisleais aIsrael doque ao paísondemoram

    50 45 42 55

    48

    Inglaterra  Espanha  Itália  Áustria 

    34 72 58 54

    De todas estas informações, pode-se concluir claramente que não está havendouma escalada generalizada de incidentes anti-semitas na Europa. Houve, num curtointervalo e em dimensões variadas, um recrudescimento de atos contra judeus, paralelo àagudização do confronto armado entre israelenses e palestinos. Assim, em vez dotradicional leitmotiv anti-semita (conspiração judaica para dominar o mundo, sovinice,culpa de deicídio etc.), aparece um elemento político externo a países onde os judeus

    estão social, econômica e culturalmente integrados. Nas palavras de Henri Wajnblum, ex- presidente da União dos Judeus Progressistas, da Bélgica: “É certamente verdade que

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    observamos um aumento de incidentes anti-semitas no passado recente: grafitagens,depredações, que são preocupantes. É, entretanto, errado falar de uma onda de anti-semitismo varrendo a Europa. O que estamos vendo é o crescimento da hostilidade contraIsrael, particularmente entre os imigrantes árabes solidários aos palestinos. É a políticaisraelense no Oriente Médio que está provocando, em grande medida, este incêndio e,

    neste sentido, o governo de Ariel Sharon tem parte da responsabilidade (…). O senhorSharon quer mais judeus em Israel, ele quer tomar a dianteira na questão demográfica.Acaba explorando, ao menos em parte, os temores dos judeus europeus para persuadi-losa emigrar.” (“Viewpoints: Anti-Semitism and Europe”, www.bbc.co.uk , 03/12/03)

    A hostilidade contra o Estado de Israel é necessariamente uma manifestação deanti-semitismo? A resposta é um redondo não. Verifica-se a palavra do professor deCiência Política da Universidade Hebraica de Jerusalém Yaron Ezrahi: “A direita emIsrael descreve qualquer crítica ao país como uma forma de anti-semitismo. É muitoconveniente para o atual governo – o mais direitista da História israelense e encabeçado

     por um primeiro-ministro que não tomou a menor iniciativa diplomática em favor do processo de paz – acusar tudo de anti-semitismo (…). Quando Itzhak Rabin liderou o

     processo de paz, o comportamento popular na Europa foi extremamente positivo. Eramuito raro ouvir falar de incidentes anti-semitas naquele período.” (do site da BBC citadono parágrafo anterior)

    O sionismo não é um mandamento divino. Trata-se de uma doutrina política ecomo tal deve ser tratado, analisado, apoiado ou rejeitado. Sua versão moderna surgiu noséculo XIX, em resposta ao anti-semitismo dos nacionalismos europeus. Assim, como

     bem lembra Uri Avnery no boletim do movimento pacifista Gush Shalom de 22/11/03, o preconceito antijudaico está em sua certidão de nascimento e sem ele é muito provávelque não existisse o Estado de Israel. Avnery descarta a continuidade histórica do desejo

    da volta a Sion, lembrando que essa vontade sempre ficou circunscrita às orações. Dar-seum exemplo clássico: ao ser expulsos da Espanha, há cerca de 500 anos, a grande maioriados judeus procurou refúgio em países do império otomano, onde foram bem recebidos.Só uns poucos rabinos se dirigiram a então Palestina. Isaac Deutscher (O Judeu Não-

     Judeu e Outros Ensaios, Civilização Brasileira) observou que a maioria dos judeuseuropeus foi hostil ao sionismo até a Segunda Guerra Mundial. Cairíamos, aí, numasituação esquizofrênica se igualássemos anti-semitismo a anti-sionismo: a maior parte do

     povo judeu teria sido anti-semita. Por fim, crer-se ser absolutamente legítimo questionara viabilidade de um Estado democrático fundado numa supremacia demográfico-étnica

     perpétua.Muitas lideranças comunitárias judaicas, e o Brasil não é exceção, tratam de

    montar blindagens em torno de Israel, evitando qualquer tipo de crítica e criando umaimagem idealizada do país. Ajudam a satanizar inimigos, reais ou imaginários, ecomportam-se como ministros da propaganda de todos os governos israelenses, com osquais mantêm relações privilegiadas e aos quais atribuem todas as virtudes. Constatandoeste tipo de afinidade incondicional, o público tem a impressão de que as comunidades

     judaicas são indiferenciadas, abrindo caminho para distorções graves e preconceitos. Afalta de isenção torna essas lideranças, ironicamente, cúmplices indiretas da animosidadeanti-semita.

    Alguém há de perguntar onde está a idealização. É preciso ater-se a um exemplo:a tão difundida ideia de que Israel é a única sociedade democrática do Oriente Médio.

    Democrática para quem? Não para os árabes israelenses, um milhão e 300 mil,discriminados em quase todos os aspectos da cidadania: dotação orçamentária inferior à

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    da população judaica (implicando em pior atendimento nas áreas de habitação, educação,saúde e cultura), restrições severas ao direito de adquirir terras e morar em locais de livreescolha e banimento de todas as esferas administrativas (ver editorial do

     jornal Haaretz de 18/12/03). Também não para os 3 milhões e 500 mil palestinos quevivem sob brutal ocupação militar e cujas condições de vida são catastróficas. O que dizer

    da situação dos quase 400 mil trabalhadores estrangeiros, muitos deles clandestinos, quesão extorquidos por patrões inescrupulosos e vivem a permanente insegurança dadeportação? Resumo da ópera: direitos apenas para a população comprovadamente

     judaica, ou seja, aquela que teve o nihil obstat  do establishment religioso. Emnossoishuv o assunto é sonegado e o debate em torno dele simplesmente inexiste.

    A miopia patrioteira leva a erros monumentais. Entre nós, um caso tristementeconhecido foi o do escritor Luiz Fernando Veríssimo. Este doce gaúcho ousou criticar ogoverno Sharon, na mesma linha elegante que usa em seus textos. Foi o suficiente paraser taxado de anti-semita por judeus raivosos. Respondeu numa crônica admirável(“Heranças dilapidadas”, O Globo, 06/4/03), acusando seus detratores de desonestidadeintelectual, opondo-a à boa tradição humanista de uma parte do povo judeu. Felizmente,

    Veríssimo não embarcou na onda dos provocadores.Estamos longe do isolamento e da indiferença que facilitaram, nos anos 1930, o

    trabalho sujo dos nazistas. Também não há hordas destruindo propriedades e vidas judaicas na proporção que pregam oportunisticamente, os alarmistas. A violência deveser enfrentada se e onde ocorrer, mas suas causas imediatas devem ser identificadas paraque a estratégia de combate seja eficiente. Hoje, o foco do mal-estar antijudaico está noOriente Médio e é claramente político. Quanto mais se caminhar na direção de umasolução justa para o conflito palestino-árabe-israelense, menor será a fogueira anti-semita.

    Conclusão 

    É de esperar uma conclusão, ainda que seja em um trabalho tão conciso, retratar ahistória do povo judeu de modo tão entusiástico. É assim porque no período medieval os judeus se perpeturam pela Europa e chegarm às diversas partes do mundo, com suareligião, tradição e cultura.

    Em meio a crises e estabilidades o povo judeu não se desapegou de suas práticasculturais, sendo pereservados pelo valor dado à sua tradição. Com isso, ganhouestabilidade e status, vivendo entre duas potências mundiais: a Igreja e os Islam. Todasas pessoas que procuravam um médico ou um banqueiro judeu para suprir as suasnecessidades, quer em termos de saúde ou econômicos, podiam encontrar certamente umapoio, ainda que lhes custasse bem caro.

    Por que tanto ódio dos judeus? Por que uma xenofobia? É bem verdade que os judeus foram e são descumpridores da Lei de Deus, deixando de fazer o que a Lei ensina,caminhando por caminhos estranhos, mas mesmo assim continua sendo o provo que Deususa como sinal de sua presença no mundo. Foi justamente desse povo que veio o SenhorJeus Cristo, o Messias. E, por serem trabalhadores e estudiosos, bem como grandesempreendedores, foram perseguidos e maltratados.

    Podemos aprender muito com o povo judeu. Um povo que foi perseguido emaltratado na Idade Média, mas sempre procurou superar as adversidades, pelo valor àfamília, à comunidade, à religião e ao trabalho. Não é sem méritos que os judeusocuparam e ocupam todos os segmentos das sociedades onde estiveram e onde estãoinseridos.

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    [1] Cf. FAINGOLD, Reuven. Estabilidade e crise: na história judaica: umareflexão em torno da teoria de B. Z. Dinur. O autor é Doutor em História e HistóriaJudaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Professor do Colégio Iavne e no cursode pós-graduação de Artes Plásticas na FAAP em São Paulo e Ribeirão Preto, é aindasócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil  e membro doCongresso

     Mundial de Ciências Judaicas em Jerusalém. Cf. as seguintes referências bibliográficas:BARON, S. W. A Social & Religious History of the Jews. New York: ColumbiaUniversity Press, 1952-1976. BARON, S. W. History & Jewish Historians: Assays &Addresses. Philadelphia: Jewish Publication Society of America, 1964. BEN SASSON,H. H. (Ed.). History of the Jewish People. Cambridge, Massachusets: Harvard UniversityPress, 1976. (Hebrew: Toledot Am Israel. 3 vols., The Hebrew University, Jerusalem

    1969). BEN SASSON, H. H & Ettinger, S. (Ed.). Jewish Society Throughout the Ages. New York: Shoken Books, Inc., 1969. DINUR, B. Z. Israel Ba-Golá. Introdução a umacoleção de documentos de História Judaica. Tel Aviv 1958.FINKELSTEIN, Louis (Ed.). The Jews: Their History, Culture & Religion. New York:Harper & Row Publishers, 1960.GOITEIN, S. D. A Mediterranean Society: The Jewish Communities of the Arab Worldas Portrayed in the Documents of the Cairo Genizah. 3 vols. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1969-1974. MARGOLIS, Max L. & MARX, Alexander. A History ofthe Jewish People. Philadelphia: Jewish Publications Society of America, 1927.PARKES, James. Antisemitism: A Concise World History. New York: Quadrangle-The

     New York Books Company, 1964. RIVKIN, Ellis. The Shaping of Jewish History: A

    Radical New Interpretation. New York. Charles Scribner’s Sons, 1971.[2] SCHILLING, Voltaire. Judeus e cristãos na época medieval. Cf. a vasta

     bibliografia: Benanassar, Bartolomé – Historia de los Espanõles. Siglos VI- XVII Barcelona: Editorial Crítica, vol I, 1989. Caro Baroja, J. Los judíos en la España Moderna y Contemporánea,. Madri: Istmo, 3 vols. 1978, 2.ª ed. Poliakov, León –  Históriado anti-semitismo, – I De Cristo aos judeus da Corte. São Paulo: Editora Perspectiva,1979. Rios, José Amador de los – Historia Social, Política y Religiosa de los Judíos de

     España y Portugal ,. Madri:, Imprenta de T. Fortanet, 1875. Runciman, Steven – Historiade las Cruzadas. Madri: Alianza Editorial, vol I , 1973. Kamen, Henry – A Inquisição na

     Espanha. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1966. Villanueva, Joaquim P. eBonet, Bartolome E. – Historia de la Inquisicion em España y America. Madri :Biblioteca de Autores Cristianos, 2 vols.,1993.

    [3] Pogrom  (do russo погром) é um ataque violento maciço a pessoas, com adestruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos).

    [4] RUNCIMAN, Steve – Historia de las cruzadas, vol I, pag. 137.[5] Pogrom  (do russo погром) é um ataque violento maciço a pessoas, com a

    destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos).[6] As provas arqueológicas indicam que presença judaica na Ibéria remonta ao

    ano de 482, por conseguinte muitos deles descendiam de famílias que já estavam lá hámil anos.

    [7] Cf. KAMEN, Henry – A Inquisição na Espanha, pág.. 361.

    [8] Source: JewishGates.org Fonte: JewishGates.org

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    [9] A Mixná ou Míxena, também chamada de Mishná, é uma compilação deopiniões e debates legais. As declarações contidas na Mixná são tipicamente concisas,registrando as opiniões breves dos rabinos debatendo algum tópico, ou registram apenasum veredito anônimo, que aparentemente representava uma visão consensual. Os rabinosregistrados na Mixná são chamados de Tannaim. Na medida em que suas leis estão

    ordenadas pelo assunto dos tópicos, e não pelo conteúdo bíblico, e a Mishná discute cadaassunto, individualmente, de maneira mais extensa que os Midrash, e inclui uma seleçãomuito maior de assuntos haláquicos. A organização da Mishná tornou-se, desta maneira,a estrutura do Talmud como um todo. Porém nem todos os tratados da Mishná possuemuma Guemarácorrespondente. Além disso, a ordem dos tratados do Talmud difere, emmuitos casos, da do Mishná.

    [10] Política de privacidade.[11] Cf. Bloco de Notas do Pr. Samuel Antunes que faz uma síntese muito

    importante acerca da temática – Bibliografia: JOHNSON, Paul. História dos Judeus, 2ªed, Rio de Janeiro, Imago editora, 1995; COLEMAN, William. Manual dos tempos eCostumes Bíblicos, 1ª ed, Belo Horizonte, Editora Betânia, 1991; VAUX, R.

    de. Instituições de Israel no Antigo Testamento, São Paulo, Editora Teológica, 2003;JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus- De Abraão à queda de Jerusalém – Obracompleta, 11ª ed, Rio de Janeiro, CPAD, 2007; HERZOG, Chain e Gichon. Mordechai,As grandes Batalhas da Bíblia – Uma história Militar do Antigo Israel, Porto, Fronteirado Caos editores, 2008; CHAMPLIN, R. N. Ph.D. Enciclopédia de Bíblia Teologia eFilosofia, 5ª ed, São Paulo, Editora Hagnos, 2001

    [12] WURMAN, Osias, jornalista Artigo publicado em O GLOBO, dia 13/07/01.[13] Na data em que o artigo foi escrito.[14] Por GRUMAN, Jacques. Diretor da ASA- Associação Scholem Aleichem de

    Cultura e Recreação, do Rio de Janeiro. Abril de 2004.