MESTRADO EM DIREITO - TEDE: Página inicial Graciela... · Pontifícia Universidade Católica de...
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Nayara Graciela Sales Brito
ANÁLISE CRÍTICA DA ESPECIAL SITUAÇÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI A PARTIR DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA FALTA
DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO BRASIL
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO 2012
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Nayara Graciela Sales Brito
ANÁLISE CRÍTICA DA ESPECIAL SITUAÇÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI A PARTIR DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA FALTA
DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO BRASIL
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito das Relações Sociais sob a orientação do Prof. Doutor Dirceu de Mello.
SÃO PAULO 2012
Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Agradecimentos se fazem necessários para muitos, dentre os quais destaco:
A Deus, por estar sempre presente, ora ao meu lado, ora me carregando em seus braços, deixando seu par de pegadas na areia dos caminhos da minha vida.
Ao Professor Doutor Dirceu de Mello, estimado orientador, pelos sólidos conhecimentos jurídicos e metajurídicos transmitidos ao longo dos anos em que fui sua aluna e orientanda, pessoa que honra todas as funções assumidas. Nada seria possível sem a sua inestimável ajuda. O convívio fez crescer a minha admiração, sentimento que permanecerá, ainda quando a cidade de São Paulo transformar-se em doces lembranças.
A meu pai, pelo incentivo e amor incondicional. A minha mãe, fonte de inspiração, por me ensinar a acreditar na vitória por meio do esforço incansável e honesto, associado à leveza do agir ético e solidário.
Aos meus irmãos, Diego e Nataly, pelo carinho e ajuda constantes, e a certeza de que seremos companheiros para sempre.
A Ricardo, cujo companheirismo e compreensão fizeram mais suportável o estudo que poderia parecer inesgotável, mas, aos olhos do amor, exteriorizava-se em paciência e alegria pelas metas conquistadas.
À Professora Doutora Alessandra Greco, orientadora de um pensar atual, arrojado e inteligente, que muito contribuiu para o aperfeiçoamento deste trabalho.
Ao Professor Doutor Oswaldo Henrique Duek Marques, sempre buscando os novos desafios do conhecimento, muito agradeço pela valiosa orientação e pelas aulas que me fizeram amadurecer ideias importantes para esta pesquisa.
Ao Doutor Gilberto Passos de Freitas, pelas luzes seguras da sua doutrina, que despertaram a minha atenção quanto à relevância da questão ambiental.
À Doutora Cleonice Souza Lima, inteligência ímpar que abrilhanta o Ministério Público baiano, agradeço pelas pertinentes observações ao meu trabalho, como também pelas palavras de incentivo.
Aos funcionários da biblioteca do IBCCRIM, em especial, Cintia Aparecida e Alex Victor da Silva, sempre educados e solícitos quando demandados.
Às minhas amigas em terras paulistas, Aldléia Brocanelli, Ryanna Veras, Ana Maria Ferreira, Greice Füller, que fizeram menos árdua essa difícil tarefa de permanecer tanto tempo longe dos familiares e amigos da calorosa Bahia.
A todos, enfim, que de alguma forma colaboraram, com a amizade, sugestões, correções e torcida, dentre muitos que aqui gostaria de citar, Gabriel Marques, Maria de Lourdes Siqueira e Fabíola Souza
“Ninguém ignora tudo.
Ninguém sabe tudo.
Todos nós aprendemos alguma coisa.
Todos nós ignoramos alguma coisa.
Por isso, aprendemos sempre.”
Paulo Freire (1921-1997)
RESUMO
Esta dissertação tem como escopo a análise da especial questão do desconhecimento da lei penal, partindo-se do estudo histórico da responsabilidade criminal e do erro até o advento das teorias da culpabilidade e os respectivos tratamentos sobre a consciência da ilicitude. Examina-se a evolução da culpabilidade e do erro de proibição no Brasil, sobretudo por meio do estudo dos diversos diplomas penais, como também de alguns projetos de lei. Expõem-se o desenvolvimento teórico sobre o objeto da consciência da ilicitude e a posição majoritária da doutrina brasileira no sentido de considerá-lo como sendo a contrariedade à ordem comunitária. Justifica-se o trabalho pela complexidade e relevância do tema, tanto para a teoria do delito, quanto para a pragmática jurídica, mormente em se considerando a edição de inúmeras leis que ingressam no ordenamento jurídico pátrio, muitas delas advindas do período pós- industrial, como meio de se acompanhar os riscos da sociedade globalizada e tecnológica. O percurso teórico filia-se à linha histórico-cronológica, sem a pretensão de esgotar as abordagens relativas ao assunto, nem oferecer soluções para todas as correntes de pensamento expostas. Apresentam-se as concepções sobre a culpabilidade: psicológicas, normativas, finalistas e as visões funcionalistas de Claus Roxin e de Günther Jakobs. Em seguida, o estudo perpassa pelas teorias formal, material e intermediária do objeto da consciência da ilicitude, para se alcançar um posicionamento crítico da inescusabilidade da ignorância da lei penal em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Direito Penal, culpabilidade, falta de consciência da ilicitude, desconhecimento da lei penal.
ABSTRACT
The scope of this study is to examine the ignorance of the law issue beginning with a historical study of criminal liability and mistake, moving on to the birth of culpability theories and the approaches to the knowledge of unlawfulness. This study addresses the development of culpability and mistake of law in Brazil, mainly through the study of Brazilian criminal statutes and bills. To this end, this study shows the development of the theory around the object of the knowledge of unlawfulness, and the prevailing opinions of Brazilian jurists in the sense of considering it to be in opposition to the established order of the community. This study is justified by the complexity and importance of the topic, both to crime theory and legal pragmatics, especially when one considers the numerous statutes enacted in Brazil, many of which date from the post-industrial period, as a means of keeping up with the risks posed by a global and technological society. The theoretical framework follows the historical and chronological line, and is not intended to exhaust the approaches to the subject nor is it aimed at offering solutions to all the lines of thought herein mentioned. This study covers different conceptions of culpability: psychological, normative, finalist, and the functional views of Claus Roxin and Günther Jakobs. Next, formal, material and intermediary theories of the object of the knowledge of unlawfulness is addressed in order to attain a critical view of inexcusable nature of the ignorance of the law defense in the face of the dignity of the human person. Keywords: Criminal Law, culpability, lack of knowledge of unlawfulness, ignorance of the law
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................ 11
CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE PENAL, DO ERRO SOBRE A ILICITUDE DO FATO E DA IGNORÂNCIA DA LEI
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................... 14
1.2 A RESPONSABILIDADE PENAL NA VIDA PRIMITIVA E A DESCONSIDERAÇÃO DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ...................................................................................... 20
1.2.1 A mentalidade do povo primitivo................................................ 21
1.2.2 A responsabilidade penal objetiva nas comunidades primevas 24
1.2.3 A desconsideração do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei............................................................................. 26
1.3 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ORIENTAL E A IRRELEVÂNCIA DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ...... 27
1.3.1 O Código de Hamurabi................................................................... 27
1.3.2 A Lei Mosaica.................................................................................. 30
1.3.3 O Código de Manu.......................................................................... 31
1.3.4 A desconsideração da falta de consciência da ilicitude do fato e da ignorância da lei no Direito Oriental ..................................... 31
1.4 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO GREGO ................ 32
1.4.1 A consciência da ilicitude para Aristóteles .................................. 33
1.5 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ROMANO .............. 34
1.5.1 A questão da falta de consciência da ilicitude: dicotomia “erro de fato – erro de direito” e o critério desculpável do erro..........
36
1.6 A RESPONSABILIDADE PENAL NA IDADE MÉDIA E A CULPABILIDADE ............................................................................. 42
1.6.1 A questão da consciência da ilicitude no Direito Germânico e no Direito Canônico........................................................................ 44
1.6.2 A falta de consciência da ilicitude no direito estatutário intermédio....................................................................................... 45
1.7 A RESPONSABILIDADE PENAL E A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO PERÍODO DAS LUZES ........................................... 46
CAPÍTULO II TEORIAS DA CULPABILIDADE E OS RESPECTIVOS TRATAMENTOS SOBRE A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
2.1 O SISTEMA CLÁSSICO E A TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE ............................................................................. 50
2.1.1 A ação causal.................................................................................. 51
2.1.2 Culpabilidade como categoria autônoma do delito.................... 52
2.1.3 A imputabilidade como precedente da culpabilidade................. 53
2.1.4 O dolo e a culpa.............................................................................. 54
2.1.5 Críticas ao conceito psicológico da culpabilidade..................... 55
2.2 A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE ..................... 58
2.3 SISTEMA NEOCLÁSSICO DO DELITO E A TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE ....................... 60
2.3.1 Influências....................................................................................... 60
2.3.2 Reinhard Frank e a Normalidade das Circunstâncias Concomitantes................................................................................
60
2.3.3 Goldschmidt e a distinção entre norma jurídica e norma de dever................................................................................................ 63
2.3.4 Berthold Freudenthal e a inexigibilidade de conduta diversa..... 64
2.3.5 A concepção normativa de Edmund Mezger............................... 66
2.3.6 Teoria psicológico-normativa e a dignidade da pessoa humana............................................................................................ 69
2.4 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DO DOLO......................................................................................... 70
2.4.1 Teoria estrita do dolo..................................................................... 71
2.4.2 Teoria limitada do dolo.................................................................. 72
2.5 O SISTEMA FINALISTA E A TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE............................................................................. 74
2.5.1 Precursores do sistema finalista.................................................. 74
2.5.2 Hans Welzel e o sistema finalista.................................................. 76
2.5.3 Críticas ao sistema finalista.......................................................... 81
2.5.3.1 A ontologia como fonte do Direito .................................................... 82
2.5.3.2 O livre-arbítrio em Hans Welzel e o “poder atuar de outro modo” .. 83
2.5.4 A distinção entre erro de tipo e erro de proibição ............................. 85
2.6 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DA CULPABILIDADE............................................................................. 88
2.6.1 Teoria extremada e teoria limitada da culpabilidade.................. 88
2.7 O FUNCIONALISMO NO DIREITO PENAL ..................................... 98
2.7.1 Culpabilidade e erro de proibição em CLAUS ROXIN................. 103
2.7.2 Culpabilidade e erro de proibição em GÜNTHER JAKOBS......... 110
2.8 A POSIÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NA TEORIA DO DELITO PARA O FUNCIONALISMO............................................... 115
CAPÍTULO III
A CULPABILIDADE E O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
3.1 O DIREITO PENAL INDÍGENA À ÉPOCA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL....................................................................................... 118
3.2 HISTÓRICO DA CULPABILIDADE E DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO ............................... 121
3.2.1 A responsabilidade penal no Livro V as ordenações Filipinas.. 121
3.2.2 A Constituição do Império de 1824............................................... 125
3.2.3 Código Criminal de 1830................................................................ 126
3.2.4 Código Penal de 1890..................................................................... 130
3.2.5 Projeto de Virgílio de Sá Pereira................................................... 132
3.2.6 Código Penal de 1940..................................................................... 135
3.2.7 Anteprojeto de Nélson Hungria e o Código Penal de 1969 como tentativas de substituição ao Código Penal de 1940........ 139
3.2.8 Reforma da parte geral de 1984.................................................... 141
CAPÍTULO IV
DESCONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO E DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL
4.1 OBJETO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ................................... 146
4.1.1 Critério formal ................................................................................. 147
4.1.2 Critério material.............................................................................. 149
4.1.3 Critério intermediário: “Valoração Paralela na Esfera do Profano”.......................................................................................... 159
4.2 RELAÇÃO ENTRE OS TRÊS CRITÉRIOS E A INSUFICIÊNCIA DE CADA UM DELES...................................................................... 163
4.3 O “DEVER DE INFORMAR-SE” DE HANS WELZEL ....................... 164
4.4 MEIOS DE ACESSO À CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE .................. 167
4.5 TEORIA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL............................................ 168
4.6 O PRINCÍPIO DA INESCUSABILIDADE DA IGNORÂNCIA DA LEI PENAL VERSUS O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE .................... 177
CONCLUSÃO................................................................................................. 183
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 186
11
INTRODUÇÃO
No dia 23 de junho de 2000, na localidade de Planaltina, o lavrador Josias
Francisco dos Anjos foi preso pela Polícia Florestal por raspar a casca de uma
árvore com o intuito de fazer chá para a sua esposa, que sofre da doença de
Chagas. No momento de sua prisão, manifestou grande surpresa, dizendo que, em
sua ignorância, não sabia ser “[...] crime tirar raspa de árvore, que foi Deus que fez,
para dar chá para minha mulher [...]”.1 Além deste caso emblemático, há notícia de
condenações efetivas no âmbito penal, impondo aos réus o cumprimento de pena
em situações envolvendo, por exemplo, o uso de aparelho sem fio de longo alcance,
tipificado como atividade clandestina de comunicação; comercialização de
agrotóxicos em determinadas condições; assim como certos casos de crimes contra
a fauna, dentre outros. Tal contexto pode conduzir, concretamente, a injustiças
flagrantes, servindo de mote para o desenvolvimento desta pesquisa, voltada para
analisar, criticamente, de que modo o desconhecimento da lei repercute na seara
criminal e quais os consectários da falta de consciência de ilicitude no Brasil.
Os problemas da falta de consciência da ilicitude e da ignorância da lei penal
revelam-se, nos dias hodiernos, como essenciais para o estudo do Direito Penal,
levando-se em conta a complexidade da sociedade contemporânea, multicultural e
globalizada, que tem por consequência o surgimento de inúmeras leis penais
extravagantes na tentativa de acompanhar os riscos sociais. Há crimes que não
correspondem à noção de ilícito social, moral ou ético. Além disso, não são todas as
pessoas que têm uma escolarização básica e a viabilidade de acesso aos meios de
informação, para que se possa delas exigir o esforço pela busca de instrução com o
fim de alcançarem a consciência profana do caráter ilícito do fato.
Questiona-se sobre o tratamento mais adequado para a aplicação do princípio
da inescusabilidade da ignorância da lei penal, revelando-se necessária a defesa da
natureza relativa deste em face do respeito ao princípio da culpabilidade e da
dignidade da pessoa humana a ele inerente.
O Estado Democrático de Direito reclama a eficiência na persecutio criminis
para o julgamento dos responsáveis por condutas tipificadas na legislação penal,
1 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u3083.shtml. Último acesso em 16 fev. 2012, às 22:03 hs.
12
prestigiando a observância da proteção aos direitos fundamentais dos investigados e
acusados e, por conseguinte, enxergá-los como indivíduos dentro do contexto social
em que estão inseridos. Desse modo, relevam-se as condições pessoais, tais como
o grau de letramento e a possibilidade de acesso à informação, a fim de efetivar-se a
justiça possível nas decisões judiciais.
Com o título “Análise crítica da especial situação do desconhecimento da lei a
partir do estudo da evolução doutrinária da falta de consciência da ilicitude no
Brasil”, desenvolve-se este trabalho mediante pesquisa exploratória, buscando-se
subsídios em autores, legislação e jurisprudência brasileiros, trazendo como
referencial teórico as obras de Galdino Siqueira, Alcides Munhoz Netto, Francisco de
Assis Toledo, Juarez Cirino dos Santos, dentre outras, bem como a doutrina
estrangeira, com as obras de Juan Córdoba Roda, Francisco Muñoz Conde, Hans
Welzel, Claus Roxin, Günther Jakobs, pretendendo-se, tão somente trazer à baila
essa importante discussão, sem esgotar o assunto, que continua a necessitar de
luzes para o seu aprimoramento, visando à efetivação da justiça penal.
Na procura de alternativa que atendam a princípios éticos e jurídicos,
empreendeu-se esta pesquisa, tendo como método o hipotético-dedutivo, por meio
do qual se percorre os contornos dos institutos do erro sobre a ilicitude do fato e do
desconhecimento da lei penal, para se chegar à constatação, mediante o estudo
histórico, da evolução do tratamento do primeiro e do retrocesso do segundo nos
dias atuais, comparando-se ao antigo direito romano. Como técnica, utilizou-se,
primordialmente, a pesquisa bibliográfica e documental, focada, esta, em
jurisprudência colacionada, pontualmente, dos tribunais estaduais sobre o assunto.
Intenta-se demonstrar, com este trabalho, a evolução do tratamento do
instituto do erro sobre a ilicitude do fato, por meio do desenvolvimento das teorias
sobre a culpabilidade, em contraposição à especial situação do desconhecimento da
lei penal, já que continua a ser apregoada a sua inescusabilidade, mas, atualmente,
sem qualquer fundamentação material.
No primeiro capítulo, enceta-se um escorço histórico da responsabilidade
penal, a qual percorreu um longo caminho, da responsabilidade objetiva à
responsabilidade arrimada na ligação subjetiva entre o autor e o fato delituoso,
perpassando-se pelo estudo do erro sobre a ilicitude do fato e do desconhecimento
da lei penal.
13
Em seguida, no segundo capítulo, faz-se uma abordagem da culpabilidade
como categoria do delito, haja vista que é nela que se situa a consciência da
ilicitude, abordando-se as teorias causalistas, neokantistas, finalistas e funcionalistas
da culpabilidade, como também os respectivos tratamentos sobre a consciência da
ilicitude.
No terceiro capítulo, analisam-se a culpabilidade e o erro de proibição no
Direito Penal Brasileiro, desde o descobrimento do Brasil até o Código Penal de
1940, com a posterior Reforma Penal de 1984, examinando-se, ainda, o Projeto de
Virgílio de Sá Pereira, de 1927, bem como o Anteprojeto de Nélson Hungria e o
Código Penal de 1969 (que sequer começou a vigorar).
No quarto capítulo, realiza-se o estudo específico do desconhecimento da
ilicitude do fato e da lei penal, destacando-se o tema do objeto da consciência da
antijuridicidade, o qual pode ser agrupado em três principais critérios, a saber:
formal, material e intermediário, revelando-se todos insuficientes. Também é
abordada a questão do dever de informar-se para obter a consciência do injusto,
bem como dos meios de acesso à informação. Menciona-se o posicionamento
tradicional da doutrina brasileira no tocante ao objeto da consciência da ilicitude, do
qual se utiliza para concluir, por incongruência lógica, que o desconhecimento da lei
penal é sempre inescusável. Anota-se, outrossim, o equívoco de decisões dos
tribunais brasileiros que, apesar de entenderem a falta de consciência da ilicitude e o
desconhecimento da lei penal como conceitos diversos, posicionam-se no sentido de
que não há erro de proibição em razão da obrigatoriedade do conhecimento da lei
penal. Por fim, afirma-se a necessidade de considerar o princípio da
inescusabilidade da ignorância da lei penal, ante o fato posto em julgamento,
sobretudo em relação ao princípio da culpabilidade.
14
CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE PENAL, DO ERRO SOBRE A ILICITUDE DO FATO E DA IGNORÂNCIA DA LEI
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Desde o momento em que o homem passou a conviver com outrem, surgiram
os conflitos e, consequentemente, a criminalidade. O delito se manifesta em todas
as sociedades, tanto nas ditas mais primitivas, quanto nas consideradas civilizadas.
A título ilustrativo, a Bíblia é um documento do qual se pode extrair o
reconhecimento de que a história do fato punível acompanha a da humanidade.
Conforme a versão bíblica, em Gênesis, o primeiro pecado foi cometido por Adão e
Eva, ao comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.2
Eles haviam sido advertidos de que a execução de tal feito teria como punição
a morte, como se verifica no trecho transcrito a seguir: “E o Senhor Deus lhe deu
essa ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,
certamente morrerás”.3 Desconsiderando a admoestação, houve a prática do
referido ato e, por conseguinte, o homem foi condenado a conhecer o bem e o mal.
Consoante ensinamento de Santo Agostinho, tal pecado assumiu tamanha
gravidade que, “em virtude dele, a natureza humana piorou e se transmitem aos
descendentes o próprio pecado e a necessidade da morte”. Para ele, o pecado
original consubstancia-se na fonte da vida carnal e das paixões viciosas.4
A propósito desse assunto, entende-se que o homem foi condenado à morte
espiritual e desenvolveu a consciência de pecado e o sentimento de culpa, os quais
acarretam ideia de reparação. Afirma Dirk Fabricius que os sentimentos de culpa,
2 “Embora, do ponto de vista religioso, essa conduta seja considerada pecado, do ponto de
vista humano, marca o início da liberdade e o nascimento da razão.” (MARQUES; MINERBO, 2011, p. 46-54). No sentido de que o pecado original constitui a condição que concede ao homem o conhecimento de sua humanidade, ensina Maria Zelia de Alvarenga: “Todavia, a ultrapassagem do interdito é a condição que confere humanidade, pois somente ela dá ao homem a condição de saber-se humano. Humanidade e mortalidade dão a cada um de nós competência para atualizarmos mudanças, ou seja, tornarmo-nos seres humanos em contínua e crescente transformação [...]”. (ALVARENGA, 2009, p. 121).
3 Livro de Gênesis- capítulo 2, versículos 16 e 17. 4 AGOSTINHO, 1990, p. 131.
15
segundo observação comum na psicanálise, alertam-nos “para o fato de que
magoamos alguém. Eles levam à fuga, para fugir da vingança, mas também à
reparação”. Nessa perspectiva, a culpabilidade considerada como objeto dos
sentimentos de culpa, é vista como um mal infligido, bem como uma razão para a
reparação.5
Ora, diante da constatação de que a existência do fato punível está
relacionada à da humanidade, surge a questão do conhecimento da natureza
humana.6 Nesse contexto, recorde-se a frase inscrita na entrada do templo de
Delfos, na Grécia: “conhece-te a ti mesmo”, a qual serviu de inspiração para a
filosofia de Sócrates e que expressa, até os dias hodiernos, uma relevante e difícil
questão, dada a grande complexidade física, biológica, moral e psíquica dos seres
humanos, as suas diferenças, aspirações, as múltiplas formas de expressão dos
sentimentos bons e ruins, etc.
Como consabido, o homem está sujeito a cometer erros, evidência
corroborada pela máxima latina “errare humanum est”. Além do erro, outra falha
humana é o desconhecimento ou a ignorância de determinado objeto, já que é
impossível ao homem alcançar o conhecimento sobre todas as coisas. Dessarte, o
Direito Penal não poderia deixar de cuidar das inúmeras falhas humanas e as suas
consequências no âmbito da responsabilidade penal.
Etimologicamente, o vocábulo “erro” provém do latim ërror, öris e significa
desvio, engano, falta. Já a palavra “ignorância” advém do latim ignorantĭa e traduz-
se em falta de conhecimento, falta de saber.7
Os termos “ignorância” e “erro” consubstanciam-se em fenômenos
psicológicos diversos.8 A ignorância é a ausência total do conhecimento de
determinado objeto. Por outro lado, o erro é o falso conhecimento do objeto e, na
visão de Aníbal Bruno, impede o sujeito de alcançar a representação real do fato.9
Distingue Alcides Munhoz a ignorância do erro, de acordo com a lição de
Carnelutti, do seguinte modo:
5 FABRICIUS, 2009, p.21. 6 Nesse aspecto, cumpre citar a frase de Magalhães Noronha: “a história do Direito Penal é
a história da humanidade. Êle surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou”.(NORONHA, 1959, v.1, p.32).
7 HOUAISS, 2001, p.1190; 1568. 8 GARCIA, 2008, p. 386. 9 BRUNO, Aníbal, 1959, p.109.
16
Constituem dois estados metafisicamente distintos: a falta de qualquer conhecimento sobre um objeto e o seu falso conhecimento. Assim, enquanto a ignorância apresenta-se desacompanhada de qualquer percepção da realidade, o erro é determinado por uma percepção desconforme àquela. Entre ambos existe a mesma distância que separa o não ver do ver mal.10
Dessa feita, o erro pode ser caracterizado como um estado positivo e a
ignorância traduzida como um estado negativo.11
No entanto, no atual Código Penal brasileiro, “erro e ignorância quase sempre
se equivalem; assim, quando ele faz referência ao erro (por exemplo, nos arts. 20,
caput, 21 etc), está também se referindo à ignorância”.12
Insta traçar, outrossim, a distinção entre os dois termos acima expostos com a
palavra “dúvida”. Segundo Alcides Munhoz Netto, a ignorância difere da dúvida, já
que aquela pressupõe a ausência de qualquer representação e, na dúvida, há mais
de uma representação, sendo que uma delas está conforme a realidade. Além disso,
a dúvida não se confunde com o erro, pois a “perplexidade ou incerteza entre as
várias previsões que a caracterizam é incompatível com a formação de um
convencimento em contraste com a realidade, que é da essência do erro”. Munhoz
Netto também assinala que, diferentemente do que ocorre com o erro, a dúvida não
vicia a vontade.13
Em Direito Penal, a falta de consciência da ilicitude (real ou potencial), a qual
consiste no cerne deste trabalho, consubstancia-se em uma das modalidades de
erro, a saber, o erro de proibição. Dessa forma, quando o autor age sem saber que
sua conduta está proibida pelo ordenamento, atua em erro de proibição, que poderá
afastar a própria culpabilidade.
Em se considerando o “erro de proibição”, alguns doutrinadores afirmam que
não se pode confundi-lo com o “erro sobre a ilicitude”, porque aquele é mais amplo
10 CARNELUTTI, 1952 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.01. 11 GARCIA, 2008, p.386. 12 GOMES, 2001, p.24.
Segundo Pulitanò, todo erro supõe ignorância, porque quem erra, desconhece, total ou parcialmente, o objeto do conhecimento. Mas nem toda ignorância supõe o erro: pode existir ignorância sem erro. Tem-se feito uma distinção entre a ignorância pura, consistente na simples e absoluta ausência de conhecimento, de uma ignorância-erro, em que o desconhecimento provoca uma falsa representação da realidade. (PULITANÒ, 1976, p.10-11 apud COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, 1999, p.660).
13 MUNHOZ NETTO, 1978, p.04. Note-se que o tratamento jurídico dos casos de dúvida resolve-se no âmbito da estrutura que se outorgue ao dolo, à culpa e, especialmente, ao dolo eventual. Cf. COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, 1999, p.660.
17
do que este. A expressão “proibição” abrange também a ignorância ou engano sobre
a lei, e não apenas o desconhecimento ou engano sobre a ilicitude. Assim, todo erro
sobre ilicitude é erro de proibição, mas nem todo erro de proibição é erro sobre a
ilicitude.14
Note-se que a maioria da doutrina brasileira afirma que a falta de consciência
da ilicitude de um comportamento e o desconhecimento da norma legal “são coisas
completamente distintas”.15
Essa distinção também pode ser inferida do disposto no atual Código Penal.
Com efeito, reza a primeira parte do caput, do art. 21, que “o desconhecimento da lei
é inescusável”. Em seguida, acerca do erro sobre a antijuridicidade, dispõe o
referido diploma que “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se
evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”. A ignorância da lei serve
apenas como circunstância atenuante genérica, segundo dispõe o art. 65, II, do
estatuto penal.16
Constata-se, pois, ser a opinião majoritária da doutrina no nosso país, bem
como as posições legal e jurisprudencial adotadas as de que o desconhecimento da
lei constitui erro de proibição irrelevante. Saliente-se, por oportuno, que a despeito
de entendermos como institutos diversos, muitas vezes, principalmente quando se
está diante da legislação extravagante, quando o agente erra sobre o conteúdo
proibitivo da norma, em verdade, não conhecia a própria lei.
Importante destacar-se, ainda, que a Lei de Contravenções Penais, no art. 8º,
dispõe sobre a relevância do desconhecimento da lei: “No caso de ignorância ou de
errada compreensão da lei, quando escusáveis, a pena pode deixar de ser
aplicada”.17Assim, verifica-se que a referida lei cuida de uma exceção ao princípio da
inescusabilidade da ignorância da lei penal e que, ao nosso ver, baseia-se na menor
censurabilidade das condutas ali previstas. Mas os atos que não são objeto de
14 BRODT, 1996, p.65. Não se pode olvidar, nesse aspecto, do chamado erro sobre os
pressupostos fáticos de uma causa de justificação, o qual, conforme veremos ao longo desta exposição, refere-se à antijuridicidade dos fatos, mas foi considerado pela teoria limitada da culpabilidade, atualmente adotada pela doutrina majoritária e pela legislação no Brasil, como excludente do dolo, e não da culpabilidade. Assim, chama-se, majoritariamente, a essa modalidade de erro de “erro de tipo permissivo”. Trata-se, portanto, de uma espécie de erro sobre a ilicitude que não se consubstancia em erro de proibição. Então, nem todo erro de proibição é erro sobre ilicitude e vice-versa.
15 Pela maioria, cf. BITENCOURT, 2006, p.462. 16 GOMES, 2010, p.270, 280. 17 Ibidem, p.536.
18
censura social não se esgotam nas contravenções, já que há muitos crimes sem
reprovação ética, moral e social.
Ante o depreendido, a presente exposição cuida do tema da falta de
consciência da ilicitude, mas não apenas centrada no erro sobre a ilicitude, como
também trata da questão da ignorância da lei penal, sem a pretensão de exaurir
todos os problemas relativos aos aspectos que envolvem tema tão complexo, que é
o erro de proibição direto em Direito Penal.
Vale mencionar, preliminarmente, que o legislador pátrio da reforma penal de
1984 preferiu, seguindo a orientação de Assis Toledo, utilizar-se da expressão
“ilicitude” ao tratar, no artigo 23 do Código Penal, da “exclusão de ilicitude”, para
referir-se à relação de contrariedade entre o ato e a ordem jurídica, como também o
fez no artigo 21, ao cuidar do “erro sobre a ilicitude”.18
Ocorre que, antes da referida reforma da parte geral, o Código Penal usava o
tradicional termo “antijuridicidade”, assim como era consagrado na maioria dos
países europeus, com exceção de Portugal.19 No entanto, atualmente, não apenas a
legislação, bem como muitos autores brasileiros acolheram o entendimento segundo
o qual a infração penal constitui-se em um fato jurídico, tendo em vista que sua
prática provoca efeitos no campo jurídico. Desse modo, haveria uma incongruência
afirmar-se que um fato jurídico é, ao mesmo tempo, antijurídico. Essa posição
encontra respaldo na lição de Carnelutti, como também nos ensinamentos de Assis
Toledo.20
Impende traçar, por fim, a distinção entre dois vocábulos que são, muitas
vezes, considerados sinônimos, a saber, ilícito e injusto. O ilícito é a contradição
entre o fato típico e o ordenamento jurídico. Já o injusto consubstancia-se na
oposição entre o fato típico e a compreensão social. Como ensina Bitencourt, com
arrimo na lição de Welzel, a antijuridicidade é um predicado e o injusto constitui-se
em um substantivo. Segundo Bitencourt, o “injusto é a forma de conduta antijurídica
propriamente: a perturbação arbitrária da posse, o furto, a tentativa de homicídio etc.
A antijuridicidade é uma qualidade desta forma de conduta”, ou seja, a contradição
em que se encontra com a ordem jurídica.21
18 GOMES, 2010, p.270-271. 19 BITENCOURT, 1999, p.277. 20 CARNELUTTI, 1933 apud TOLEDO, 1977, p.70-71. 21 BITENCOURT, op. cit., p.276.
19
Por conseguinte, um fato típico pode ser ilícito, mas considerado justo e
também admitido pela sociedade. Diferentemente do fato ilícito, o injusto é
caracterizado por graus, a depender da intensidade de reprovação social causada
pelo comportamento penalmente ilícito.
Não obstante a relevância das distinções tecidas pelos doutrinadores entre
“antijuridicidade”, “ilicitude” e “injusto”, cumpre notar que o presente estudo
apresentará os termos como sinônimos, sobretudo em virtude da invocação de
autores estrangeiros, que empregam com bastante frequência a terminologia
“antijuridicidade” e “injusto” em seus textos.
Por meio de um estudo histórico, verifica-se que as questões da falta da
consciência da ilicitude e do desconhecimento da lei penal já eram consideradas
desde a Antiguidade, especialmente na obra de Aristóteles, apesar de o filósofo
posicionar-se pela irrelevância de seus efeitos jurídicos. No direito romano,
estabeleceu-se a distinção entre erro de fato e erro de direito, a qual perdurou por
muitos séculos, constituindo-se na “pedra fundamental de toda a teoria do erro nos
quadros do Direito Penal”.22 Todavia, entendemos que referida distinção, no antigo
direito romano, não era determinante para a relevância ou não do erro, tendo em
vista que os romanos já consideravam o caráter desculpável da falta de consciência
da ilicitude e do desconhecimento da lei penal, conforme veremos mais adiante.
Não obstante o avanço do antigo direito romano, o tema do desconhecimento
da ilicitude do fato permaneceu, durante muito tempo, relegado a segundo plano em
todo o mundo, com poucas perspectivas de ser acolhido na prática jurisdicional,
sempre temerosa de que o criminoso pudesse, de maneira fácil, furtar-se à
responsabilidade penal. Verifica-se, então, que prevaleceu a dicotomia “erro de fato
e erro de direito” para se estabelecer a relevância daquele e a irrelevância deste,
não havendo qualquer preocupação com o caráter censurável ou não do erro.
Como consequência, ao desconhecimento da antijuridicidade e da lei,
negava-se qualquer tipo de relevância, inclusive meramente atenuatória da
responsabilidade, apesar de o princípio da culpabilidade, referente à exigência de
Aponta Cleber Masson (2010, p.352.) como exemplo de fato típico, ilícito, mas justo, a receptação relativa à aquisição de discos musicais derivados de pirataria, com violação de direitos autorais (CP, art. 1 84).
22ALBUQUERQUE, 1968 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.55.
20
dolo ou culpa para fundamentar a responsabilidade penal, já havia sido admitido no
plano doutrinário, jurisprudencial e, ainda que, com certo atraso, legislativo.23
O princípio error juris nocet, ou seja, de que o erro de direito prejudica, não
mais poderia se sustentar em razão da exigência do juízo de culpabilidade para a
imposição da pena, caso contrário, haveria uma violação ao princípio da
culpabilidade. Assim, percebe-se que a questão do erro de proibição envolve a
contraposição entre a efetividade do Direito Penal e o respeito ao princípio da
culpabilidade.
Dessarte, verifica-se a necessidade do estudo da evolução histórica do erro
sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei penal, destacando-se sua estreita
relação com o caminho gradativo da responsabilidade penal objetiva em direção à
responsabilidade penal arrimada na culpabilidade. Cumpre, desde já, observar que a
questão da consciência da ilicitude foi considerada muito antes do surgimento da
culpabilidade como categoria autônoma do delito.
Impõe-se ressaltar que, neste primeiro capítulo, trataremos do histórico da
responsabilidade penal e, mais especificamente, do erro sobre a ilicitude do fato e
da ignorância da lei penal, desde a vida primitiva até a moderna. Já a distinção entre
erro de tipo e erro de proibição será cuidada no capítulo segundo, referente à
evolução das teorias da culpabilidade, tendo em vista que essa dicotomia adveio há
pouco tempo, sob o influxo do sistema finalista e da teoria normativa pura da
culpabilidade.
1.2 A RESPONSABILIDADE PENAL NA VIDA PRIMITIVA E A DESCONSIDERAÇÃO DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Para melhor compreensão da responsabilidade penal na cultura dos povos
primevos, importa atentar à análise da mentalidade do homem primitivo, sobretudo
em comparação com a do homem considerado civilizado, conforme será realizado
no tópico seguinte.24
23 Prólogo de Francisco Muñoz Conde na obra de Cezar Roberto Bitencourt (1996, p.08). 24 Duek Marques explica que o estudo dos mitos de castigos oriundos das comunidades
primitivas tem como objeto não apenas os antigos documentos, mas também o sistema de regras dos selvagens de hoje, que deve guardar semelhança com o do homem arcaico no que tange à forma de controle social. (MARQUES, 2008, p. 06). Nessa linha de raciocínio, posiciona-se Enrico Ferri (1998, p.33), ao destacar a necessidade de se
21
1.2.1 A mentalidade do povo primitivo
Ocorre que os primitivos vivem, pensam, sentem, movem-se e agem num
mundo que, sob numerosos aspectos, não coincide com o nosso,25 especialmente
levando-se em consideração as peculiaridades da sociedade atual, marcada pela
intensa velocidade nas comunicações e aprofundado grau de integração entre os
povos.
Lévy-Bruhl aponta que, entre as diferenças que separam a mentalidade das
sociedades consideradas inferiores à nossa, há uma que desperta a atenção de um
grande número de estudiosos que as observaram em condições mais favoráveis, ou
seja, antes que tivessem sido modificadas por um contato prolongado com os
brancos. Tal característica essencial das comunidades primevas é a decidida
aversão pelo raciocínio, por aquilo que os lógicos chamam de operações discursivas
do pensamento.26
Essa repulsão ao raciocínio do homem primevo não provém de uma
incapacidade radical ou de uma falta natural de poder de compreensão, mas se
explica, sobretudo, por todos os seus hábitos de espírito.27
A mentalidade selvagem, consoante pontua Lévy Brhul, é “mística e pré-
lógica”. Ao contrário, a do homem moderno é regida pela lei da causalidade.28
Doutra banda, João Bernardino Gonzaga entende como incorreta a asserção
de que o homem primitivo possui mentalidade pré-lógica, no sentido de falta de
recorrer à observação da vida nos selvagens contemporâneos. Já Aníbal Bruno ressalta a percepção crítica que se deve ter ao aplicar às sociedades arcaicas das primeiras idades fatos perpetrados pelos selvagens da atualidade, já que estes possuem uma cultura influída por longa experiência histórica e um contato eventual com homens e fatos da vida civilizada (1959, p.54-55).
25 Em sua versão original: “[...] les primitifs vivent, pensent, sentent, se meuvent et agissent dans um monde qui sur nombre de points ne coincide pas avec le nôtre”(LÉVY-BRUHL, 1947, p.47).
26 No original: “Parmi les différences qui séparent la mentalité dês societés inférieures de la nôtre, Il em est une qui a arrêté l‟attention d‟um grand nombre de ceux qui les ont observées dans les conditions les plus favorables, c‟est-à-dire avant qu‟elles eussent été modifiées par um contact prolongé avec les blancs. Ils ont constate chez les primitifs une aversion décidée pour le raisonnement, pour ce que les logiciens appellent les operations discursives de la pensée” (Ibidem, p.01).
27 “[...] ils ont remarque em même temps que cette aversion ne provenait pás d‟une incapacite radicale, ou d‟une impuissance naturelle de leur entendement, mais qu‟elle s‟expliquait plutôt par l‟ensemble de leurs habitudes d‟esprit”. (LÉVY-BRUHL, loc. cit).
28 “J‟ai exposé ailleurs les raisons qu‟il y a de considérer cette mentalité comme „mystique‟ et „prélogique‟” (Ibidem, p.47).
22
harmonia e síntese na sua cultura. Para ele, esse homem não vive à margem da lei
da causalidade.29
Explicando a distinção entre a mente do homem arcaico da mentalidade do
cientista, Gonzaga preleciona sobre a diferença entre magia e ciência, de maneira
que a segunda não se consubstancia no desenvolvimento da primeira e demonstra
que o universo do primitivo também é governado por leis causais, embora irreais. A
afetividade representa o ponto de partida da cultura primeva, por meio da qual há
um raciocínio que se desenvolve de forma coerente, senão vejamos:
Magia e ciência não se justapõem numa relação de começo e fim, isto é, de sucessivos graus de conhecimento, a segunda representando um desenvolvimento da anterior. São, ao contrário, dois moldes culturais, duas estruturas de pensamento distintas, ambas intrinsecamente coerentes e completas, que trabalham em posições paralelas. Assim, o rústico, com sua fantasia criadora, concebe também um universo harmônico e lógico, do mesmo modo que o cientista. Universo regido por ligações causais, ainda que ilusórias. É que, não dispondo de meios para localizar o encadeamento das coisas – só possível de compreender através de dados que não estão ao seu alcance, - sua afetividade o leva a conceber o mundo à imagem e semelhança dos próprios sentimentos, das suas emoções projetadas no ambiente externo. O ponto de partida da cultura primitiva está, pois, nessa afetividade, sobre a qual entretanto repousa um raciocínio que se desdobra coerentemente. As conclusões que tira são lógicamente válidas. As premissas de que partem é que se revelam falsas.30
Dessarte, distingue-se o homem civilizado do primitivo, no sentido de que
aquele dispõe de muitas informações que lhe dão uma compreensão da causalidade
dos fenômenos naturais. Já os primitivos vivem perdidos entre mistérios e perigos
reais ou imaginários, para os quais não dispõem de explicações racionais. Falta-lhes
segurança, tendo em vista que não possuem consciência das próprias forças.31
Assinala Oswaldo Henrique Duek Marques que o pensamento primitivo “é
simbólico e desse prisma deve ser analisado”. As tradições, os tabus e os totens
29 GONZAGA, [19--], p.72. O autor apresenta um estudo da atividade repressiva dos tupis,
habitantes do Brasil, no século XVI, tendo como base a pesquisa das fontes quinhentistas atualmente disponíveis. Gonzaga justifica a escolha do exame dos tupis por constituírem-se em grupo dominante e porque a eles se referem, sobretudo, as observações deixadas pelos cronistas. (Ibidem, p. 14).
30 GONZAGA, loc. cit. 31 Ibidem, p.71.
23
restam impregnados na mente do povo primevo, que a eles obedece de maneira
natural e inconsciente.32
Importa aduzir, a título de esclarecimento, o conceito de totem, no entender
de Sigmund Freud :
Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras).33
Já o significado de tabu diverge em dois sentidos. Significa, por um lado,
“sagrado”, “consagrado”; por outro, quer dizer “misterioso”, “perigoso”, “proibido”,
“impuro”. Como assinala Sigmund Freud:34
Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes ocorre levantar a questão. Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural e estão convencidos de que qualquer violação terá automaticamente a mais severa punição.
Desse modo, o termo “tabu” traduz um sentido de algo que não se pode
abordar, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Coincide, muitas
vezes, com nossa acepção de “temor sagrado”. As proibições dos tabus não
possuem fundamento e têm origem desconhecida, embora, para aqueles por elas
dominados, como os indígenas, sejam vistas como algo natural.35
Observa-se, assim, que a relação dos povos indígenas com o sobrenatural,
com os mitos e tabus, os seus rituais, seu modo de se vestir, de se pintar, de curar
as doenças, são bem distintas das sociedades consideradas civilizadas e traduzem
outra forma de compreender o mundo, a qual se reflete no Direito Penal.
32 MARQUES, 2008, p.08. 33 FREUD, 1999, p.13. 34 Ibidem, p.31. 35 Freud acrescenta: “Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes
ocorre levantar a questão. Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural e estão convencidos de que qualquer violação terá automaticamente a mais severa punição.” (Ibidem, p.28;31).
24
A organização jurídica primitiva era baseada no denominado vínculo de
sangue, “representado pela recíproca tutela daqueles que possuíam descendência
comum”, do qual se originava a chamada vingança de sangue.36
Luis Jiménez de Asúa ensina que a diferença entre a privação da paz e a
vingança de sangue, para os primitivos, arrima-se no fato de o autor pertencer ou
não à mesma tribo contra a qual praticou a infração. Quando o agente cometeu o
ilícito no interior e contra a sua tribo ou algum de seus membros, a pena se
apresenta, sobretudo, como a sua expulsão da comunidade de paz, estabelecida
pela própria tribo.37
Já no caso de o autor, não pertencente à tribo, perturbá-la ou cometer
qualquer ato contra um ou vários de seus membros, a pena se constitui,
principalmente, como um combate contra o estrangeiro e seus familiares. Cuida-se
de uma vingança de sangue que se exerce de tribo contra tribo, ou seja, uma
vingança coletiva, a qual termina com o desaparecimento de uma das partes
contendoras.38
Enuncia Enrico Ferri que a vingança não constitui apenas um direito, mas um
dever, imperioso na moral primitiva, porquanto a moral humana consagra e impõe
sempre o que é útil à conservação da espécie.39
Após a análise da mentalidade primitiva, verificaremos, no tópico a seguir,
como os povos primevos consideravam alguém ou algo responsável por algum
acontecimento ou por, até mesmo, algum fenômeno puramente espiritual.
1.2.2 A responsabilidade penal objetiva nas comunidades primevas
No que tange à responsabilidade penal, cumpre mencionar que, no direito
primitivo, não havia a noção de imputabilidade, culpa, causalidade objetiva.40 A
repressão penal atuava até contra o mero pensamento. Nesse esteio, Fauconnet
preleciona: 36 MARQUES, 2008, p.10. 37 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1992, p.242. 38 JIMÉNEZ DE ASÚA, loc. cit. 39 FERRI, 1998, p.33-34.
Nessa linha de intelecção, afirma Fragoso que a vingança de sangue é um dever sagrado, visando aplacar a ira da divindade e, dessa forma, a pena se constitui em expiação religiosa. (FRAGOSO, 1995, p.26).
40 GONZAGA, [19--], p. 96.
25
Um fenômeno puramente espiritual pode ser suficiente para gerar a responsabilidade. Há por certo um ato, mas ato interno; o corpo não intervém e nenhuma mudança se produz no mundo exterior. O agente é a vontade; seu ato consiste em adotar, face a um imperativo, atitude de atenção e obediência, ou, ao contrário, de insatisfação e revolta. Podemos chamar essa responsabilidade de subjetiva pura e de intervenção voluntária no ato interno à situação que a engendra.41
Na mentalidade arcaica, a existência de qualquer mal, inclusive decorrente
de fenômenos da natureza, constitui causa para a busca de um responsável. Nas
palavras de Kelsen:
O homem primitivo faz decorrer os eventos que quer compreender não de elementos da mesma espécie, mas de elementos de espécie diversa, não de um objeto, mas de um sujeito, não de uma coisa, mas de uma pessoa. Quando quer explicar algo, não pergunta: “Como ocorreu isto?”. Mas: “Quem o fêz?”. Por exemplo, em épocas de seca, não procura o que, mas quem impede a chuva de cair.42
O homem primevo não se importa, dessarte, com a intenção do agente. A
infração gera suas consequências independentemente da vontade do autor do
fato.43 Acerca de tal constatação, Sigmund Freud preleciona sobre a violação
involuntária e suas consequências automáticas:
Ouvimos histórias dignas de fé como qualquer violação involuntária de uma dessas proibições é de fato automaticamente punida. Um transgressor inocente, que, por exemplo, tenha comido um animal proibido, cai em profunda depressão, prevê a morte e em seguida morre de verdade. Essas proibições dirigem-se principalmente contra a liberdade de prazer e contra a liberdade de movimento e comunicação.44
E não é apenas isso. A ausência de intenção constitui uma circunstância
agravante, ao invés de uma escusa, tendo em vista que, para os povos primitivos,
coisa alguma sobrevém por acaso. Na circunstância de uma ação involuntária, o
agente já deve ser vítima de um poder oculto, ou objeto de uma cólera que se deve
dissipar, salvo – hipótese ainda mais grave - se ele contiver dentro de si, sem o seu
conhecimento, algum princípio do mal.45
41 FAUCONNET, 1928 apud GONZAGA, [19--], p.96. 42 KELSEN, 1953 apud GONZAGA, [19--], p.99-100. 43 Tradução livre do texto citado por Lévy-Bruhl, em seu original: “D‟abord, l‟infraction à la
règle engendre ses conséquences indépendamment des intentions de l‟agent, et d‟une façon pour ainsi dire automatique.” (LÉVY-BRUHL, 1947, p.308).
44 FREUD, 1999, p.31. 45 Conforme o estatuído em sua versão original: “Si la fausse a été accidentelle, les choses
se passent exactement de la même manière. Mais il y a plus. L'absence d'intention, chez
26
Para o homem arcaico, a verdadeira causa da infração pertence sempre ao
mundo invisível. O homem é, ao mesmo tempo, culpado e vítima. As duas noções
não se distinguem na mentalidade primitiva. Se referida causa consiste num
princípio que habita no homem, ele é um azarado, um feiticeiro e a acusação fatal
não tardará a ocorrer.46
Assim como a condenação criminal independe dos nexos de causalidade
objetiva e subjetiva, também não importa o requisito da imputabilidade para o
homem primitivo. É irrelevante o fato de o agente se achar, no momento do crime,
privado de discernimento e vontade.47
Os primitivos não consideram os estados de coação, de embriaguez, os
distúrbios emocionais, bem como a idade ou o sexo dos agentes. As crianças, por
exemplo, sempre foram responsabilizadas nas sociedades pré-letradas, até em
razão do pensamento de que nelas podia estar encarnado algum adulto já falecido.48
Por fim, registre-se que a vingança de sangue, sem qualquer controle, gerava
guerras intermináveis entre as famílias, em prejuízo da própria comunidade, que
restava enfraquecida, mormente diante de guerras externas.49 Por isso, a vingança
passou a ser regulamentada e administrada por um poder central e o seu caráter
primitivo e privado passou a ser substituído pelas penas públicas.
1.2.3 A desconsideração do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei
Nas mais remotas formas de vida social e, por conseguinte, nas mais antigas
manifestações de Direito Penal, não há qualquer prova da existência do juízo de
celui qui se rend coupable d'une infraction, constitue plutôt une circonstance aggravante qu'une excuse. En effet, rien n'arrive par hasard. Comment se fait-il donc que cet homme ait été ainsi amené à commettre sa faute sans le vouloir et sans le savoir? Il faut qu'il soite déjà victime d'une puissance occulte, ou l'objet d'une colère qu'il faudrait apaiser, à moins-hypothèse encore plus grave - qu'il ne recèle en lui-même, à son insu, quelque principe malfaisant.”(LÉVY- BRUHL, op. cit., p. 308-309).
46 No original: “La vraie cause appartient donc toujours au monde invisible. Si elle s'exerce du dehors, l'homme est à la fois coupable et victime, (les deux notions ne se distinguent pas pour la mentalité primitive comme pour nous). Si elle consiste en un principe qui habite en lui, il est un porte-malheur , un sorcier, et l'accusation fatale ne tardera pas à se formuler” (Ibidem, 309-310).
47 GONZAGA, [19--], p.103. 48 O autor ainda destaca que a vingança dos silvícolas se exerce até contra animais, plantas
e quaisquer coisas inanimadas, em razão da lei da compensação e da crença de que tudo, na natureza, pode ter uma alma. (Ibidem, p. 103-104).
49 MARQUES, 2008, p.11.
27
culpabilidade entre os povos. Ao revés, o que há são provas da existência de uma
responsabilidade meramente objetiva, principalmente arrimada em “tabus”,
dominantes na mentalidade primitiva. Portanto, as primitivas formas de reação ao
crime não atendiam ao conteúdo subjetivo, atendo-se apenas aos seus aspectos
exteriores.
Nos antigos clãs, a imposição da perda da paz inspirava-se na preocupação
de livrar o grupo da ira da divindade ofendida pelo delito de um de seus membros.
Ademais, para a vingança de sangue e para a compositio, o decisivo era o resultado
fixado pela medida.50
Ante todo o exposto, verifica-se, também, não haver qualquer registro de que
os primitivos emprestavam valoração jurídica ao problema da ignorância ou do falso
conhecimento da antijuridicidade ou da regras costumeiras e, consequentemente,
não se dispensava qualquer relevância ao tema do erro no Direito Penal.51
1.3 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ORIENTAL E A IRRELEVÂNCIA DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Após a exposição sobre a responsabilidade penal objetiva na sociedade
primitiva, cabe traçar breves apontamentos acerca do direito no antigo Oriente, já
que considerou a existência de atos intencionais e não intencionais, tratando-se,
portanto, dos primeiros lineamentos da concepção de culpa em seu sentido estrito.
Apresentaremos, a seguir, o Código de Hamurabi, a Lei Mosaica e o Código de
Manu.
1.3.1 O Código de Hamurabi
O Código de Hamurabi é um dos mais remotos conjuntos de leis escritas de
que se tem conhecimento, no qual há duzentos e oitenta e um preceitos.52 Há
estimativas de que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi, também conhecido por
Kamu-Rabi, aproximadamente, em 1700 a.C.
50 MUNHOZ NETTO, 1978, p.23-24. 51 Ibidem, p.23. 52 Não há o 13º (décimo terceiro) artigo no Código, provavelmente em razão de ter sido
considerado um número de azar ou sacro.
28
Tal estatuto foi descoberto por uma expedição francesa, em 1901, na região
da antiga Mesopotâmia correspondente à cidade de Susa, atual Irã. Famoso por ser
o primeiro corpo de normas com base no princípio da lei de talião, segundo o qual
deve haver equivalência da punição em relação ao crime.53
No tocante ao talião como um progresso na antiguidade, vale destacar a lição
de Ferri:
O talião, que atualmente nos povos civilizados é símbolo de ferocidade bárbara, foi na humanidade primitiva um grande progresso moral e jurídico, justamente porque impôs um limite, uma medida à reação pela vindicta defensiva (olho por olho, dente por dente).54
Pela leitura dos preceitos da legislação de Hamurabi, encontram-se, neste
Código, aspectos de Direito Civil, Administrativo e Penal.55 Percebe-se a atenção
dispensada, sobretudo, à proteção da propriedade, da família e da honra. Apesar da
existência de severas punições às condutas, bem como da distinção da pena em
relação à classe social, nota-se que já havia a previsão de institutos muito próximos
aos atualmente vigentes no nosso ordenamento jurídico, a exemplo do direito à
herança, da adoção e da reparação do dano causado por erro médico.56
Insta também referir-se à responsabilidade decorrente da prática da profissão,
mormente a do exercício da Medicina, tão antiga quanto a própria vida, constatando-
53 O termo talião tem origem no latim, cujo significado é tal ou igual, do qual advém a
expressão "olho por olho, dente por dente". 54 FERRI, 1998, p.34. 55 Sobre a previsão de matéria penal no Código de Hamurabi, afirma Sebastian Soler: “[...]
en el cual se encuentra el caráter público del derecho penal firmemente estabelecido, pues la protección del Rey sobre los súditos se extiende minunciosamente a todos los bienes” (SOLER, 1951, p.57).
56 Direito à herança disposto nos artigos 162 e 163: “162º - Se um homem tomou uma mulher como esposa e ela lhe gerou filhos, e depois essa mulher morreu, seu pai não poderá reclamar o dote. O dote é de seus filhos; 163º - Se um homem tomou uma esposa e ela não lhe deu filhos, e depois essa mulher morreu, se seu sogro lhe devolveu o preço que o pai do noivo pagou ao pai da noiva, seu marido não poderá reclamar o dote dessa mulher. Seu dote é da casa de seu pai.” Direito à adoção: “185º - Se um homem adotou uma criança desde o nascimento e a criou, essa criança adotada não poderá ser reclamada; 186º - Se um homem adotou uma criança e, depois que a adotou, ela continuou a reclamar por seu pai ou sua mãe, essa criança adotada deverá voltar à casa de seus pais”. Responsabilidade do médico, vg: “218º - Se um médico fez uma incisão difícil com lanceta de bronze em um homem livre ou se lhe abriu a região superciliar, e destruiu o olho do homem, eles cortarão a sua mão; 219º - Se o médico fez uma incisão difícil com lanceta de bronze no escravo de um homem vulgar e causou a sua morte, deverá restituir um escravo idêntico ao escravo morto; 220º - Se ele abriu a região superciliar com lanceta de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço .” (VIEIRA, 2000, p.30, 34; 37).
29
se que, do estudo da historicidade acerca da responsabilidade dos médicos, não se
observa qualquer dispositivo referente à perquirição sobre um elemento subjetivo do
comportamento, vigorando a responsabilidade objetiva. Nessa linha de preleção,
anota Miguel Kfouri Neto:
Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal. Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção cirúrgica, o médico o matou – e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com uma certa satisfação profissional, como o faz hoje: a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto.57
Outrossim, com relação à seção dos delitos, disposta no citado Código
(artigos 196 a 214), não se vislumbra a exigência de uma relação subjetiva entre o
fato e seu autor, mas apenas a preocupação com a proporcionalidade da pena em
relação ao ato perpetrado, com exceção dos casos em que a vítima pertence a uma
classe social inferior.58
Segundo preceitua Nilo Batista, a “responsabilidade penal, pois, estava
associada tão-só a um fato objetivo e não se concentrava sequer em quem
houvesse determinado tal fato objetivo. Era, pois, uma responsabilidade objetiva e
difusa”.59
Malgrado a existência de pena sem culpabilidade no Código de Hamurabi,
observam-se elementos subjetivos em alguns de seus preceitos, a exemplo do
termo “negligente” nos artigos 55 e 125, inferindo-se que já havia a distinção entre
atos intencionais e não intencionais.60 Nesse sentido, Sebastian Soler considera
57 KFOURI NETO, 2001, p.38. 58 Por exemplo: “196º - Se um homem destruiu um olho de outro homem, destruirão o seu
olho; 197º - Se quebrou o osso de um homem, quebrarão o seu osso; 198º - Se destruiu o olho de um homem vulgar ou quebrou seu osso, pesará uma mina de prata; 199º - Se destruiu o olho do escravo de um homem ou quebrou o osso do escravo, pesará a metade do preço”. (VIEIRA, 2000, p. 35-36).
59 BATISTA, 1999, p.102. 60 Insta transcrever os dispositivos citados para um melhor entendimento do assunto: “55º -
Se um homem abriu seu canal para irrigação, foi negligente e as águas carregaram o campo do vizinho, ele medirá o grão correspondente ao de seu vizinho”; “125º - Se um homem deu em custódia qualquer coisa sua e lá onde depositou, desapareceu, quer por
30
como avanço considerável do Código a distinção entre atos intencionais e não
intencionais.61
Há, também, a previsão de atos resultantes de caso fortuito, conforme se
detecta, por exemplo, nos artigos 45 e 48 do diploma sob apreço.62
Sobre a previsão de atos voluntários, decorrentes de imprudência ou
negligência, bem como dos resultantes de caso fortuito nas leis de Hamurabi:
“Nelas, todavia – escreve Alimena, se distinguem, de maneira bastante clara, o fato
voluntário, doloso, do ocasionado por imprudência ou negligência ou do resultante
de caso fortuito”.63
1.3.2 A Lei Mosaica
O direito do povo israelita encontra-se exposto no Pentateuco, conjunto dos
cinco primeiros livros do antigo testamento (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio), atribuídos a Moisés. Cuida-se de 613 (seiscentas e treze)
disposições, ordens e proibições.
Diferentemente da legislação de Hamurabi, no Pentateuco, o direito tem um
caráter marcadamente religioso, a pena é dotada de um sentido expiatório e é
imposta por ordem da divindade.
Impende informar que a Legislação Mosaica diferenciava o homicídio doloso
do imprudente, dado que o cometimento daquele era sancionado por meio de certas
formas de vingança privada, enquanto que o homicida culposo era julgado e
confinado, apenas podendo ser morto pelo parente da vítima no caso de ruptura do
confinamento.64
uma brecha, quer por uma escalada de muro, qualquer coisa sua juntamente com qualquer coisa do dono da casa, o dono da casa, porque foi negligente, deverá substituir tudo que lhe foi dado em custódia e desapareceu e restituir ao dono dos bens. O dono da casa procurará sua propriedade perdida e a retomará do ladrão”. (VIEIRA, 2000, p.20; 26, grifo nosso)
61 SOLER, 1951, p.57. 62 “45º - Se um homem arrendou o seu campo a um agricultor e já recebeu a renda de seu
campo, e, depois disso, o campo foi inundado fortuitamente, o prejuízo será do agricultor” [...]; 48º - Se um homem tem sobre si uma dívida e o seu campo foi inundado, ou a torrente carregou ou por falta de água não cresceu grão no campo; naquele ano ele não dará grão a seu credor, ele anulará o seu contrato e não pagará os juros daquele ano” (VIEIRA 2000, p.19).
63 ALIMENA, 1910 apud MACHADO, 1943, p.10. 64 SOLER, op. cit., p.58.
31
1.3.3 O Código de Manu
O Código de Manu é a legislação mais antiga do mundo indiano e estabelece
o sistema de castas na sociedade Hindu. Foi escrito entre os séculos II a.C. e II d.C.
No estatuto sob exame, as sanções variam de acordo com a casta à qual
pertencem o transgressor e a vítima, conforme pode ser detectado, por exemplo, no
art. 264, do título XIV, que trata das injúrias: “Um ksatriya, por ter injuriado um
Brâmane, merece uma multa de cem panas; um Vaisya, uma multa de cento e
cinquenta ou duzentos, um Sudra, uma pena corporal”.65
Acrescentem-se a isso diversas formas de elemento subjetivo, a exemplo dos
termos “negligente” e “culpa” nos artigos 291 e 292, respectivamente:
Art. 291. Se o cocheiro é capaz de conduzir bem, mas negligente, ele merece a multa; mas, se o cocheiro é desasado, as pessoas que estão no carro devem cada uma paga cem panas. Art. 292. Se um cocheiro, encontrando no caminho animais ou outro carro, vem a matar por sua culpa seres animados, deve, sem nenhuma dúvida, ser condenado à multa, conforme a regra seguinte.66
Nesse direito, assim como no restante do direito oriental, ainda não se mostra
possível buscar formas de verdadeira individualização da responsabilidade e da
pena.67
1.3.4 A desconsideração da falta de consciência da ilicitude do fato e da ignorância da lei no Direito Oriental
Cabe aduzir que o direito do Oriente não se ocupou do tema do erro, quer
seja sobre os elementos do tipo penal, quer seja sobre a ilicitude do fato. Outrossim,
não houve preocupação com a ignorância da lei penal.
Nessa direção, anota Munhoz Netto, “A pena sacral recaía sobre atos
praticados ou não, em condições de imputabilidade, de sorte que seria indiferente a
circunstância do sujeito conhecer ou não, a proibição”.68
65 VIEIRA, 2000, p.80. 66 Ibidem, p.83. 67 SOLER, 1951, p.58. 68 MUNHOZ NETTO, 1978, p.24.
32
1.4 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO GREGO
Tendo em vista as diversas cidades-Estado gregas independentes umas das
outras, havia inúmeras legislações na antiga Grécia, mas delas restaram apenas
fragmentos, a exemplo das leis espartanas de Licurgo, das leis atenienses de
Dracon e Solon.
Aponta Sebastian Soler dois passos fundamentais do povo grego na história
das instituições jurídicas, a saber: a redução do poder político a um poder humano
livre das bases teocráticas tipicamente orientais e a gradual elevação do indivíduo à
autoconsciência de seu valor pessoal.69
Os filósofos e dramaturgos gregos nos legaram diversos princípios relativos
aos fundamentos e fins da pena, como também o reconhecimento da relevância da
vontade no embasamento e na graduação das sanções penais.70 Não se pode
olvidar a influência do pensamento de Sócrates, de Platão e de Aristóteles para a
política e o direito.
Apesar de alguns autores afirmarem que os gregos conceberam unicamente
a responsabilidade objetiva71, informa Luiz Luisi que, nas Leis de Solon, por
exemplo, havia diversas formas de homicídio, nos termos expostos a seguir:
As Leis de Solon, - segundo pesquisas feitas por Alessando Levi, previam diversas formas de homicídio. O voluntário, punido com pena de morte, e julgado pelo Areópago. O involuntário punido com pena de exílio temporário, se não tivesse havido uma transação em que todos os parentes próximos da vítima estivessem de acordo quanto ao valor da indenização. O justificado, em legítima defesa, - era julgado pelo Delfinio.72
69 Na versão original: “Pero el genio de este pueblo se deben dos pasos fundamentales para
la historia de las instituciones jurídicas: la reduccion del poder político a un poder humano liberado de las bases teocráticas típicaente orientales, y la gradual elevación del individuo a la autoconciencia de su valor personal. Ambas evoluciones no se cumplieron sino en el curso de varios siglos” (SOLER, 1951, p. 59).
70 LUISI, 2003, p.33. 71 Neste sentido: MUÑOZ MARTÍNEZ, Nancy Yanira. Teoría Alemana de la culpabilidade,
p.01 apud MACHADO, 2010, p.35. 72 LUISI, loc. cit.
33
No entanto, vale ressaltar que, além da responsabilidade individual, existiu,
por muito tempo, a responsabilidade coletiva no antigo direito grego, sobretudo nas
ofensas de caráter público e religioso.73
1.4.1 A consciência da ilicitude para Aristóteles
Aristóteles apresentou a ideia de livre arbítrio, exercendo considerável
influência no Direito Penal do Ocidente, mormente no que se refere à culpabilidade
penal.74
Decerto, Aristóteles pressupunha que os seres humanos podem, segundo sua
razão, eleger entre o bem e o mal, razão por que só lhes podem ser imputadas as
ações executadas livremente. Então, deve-se considerar involuntário todo
comportamento levado adiante sem o conhecimento do concreto significado
normativo do atuar. No entanto, contrariamente ao que se poderia inferir, o filósofo
descartou a relevância ao error iuris a partir de uma perspectiva teleológico-objetiva
que unia ética e direito, afirmando que o ser humano devia agir, por natureza, em
favor da comunidade, pois, caso contrário, não é ser humano. A infração grave da
norma há de ser imputada à sua má vontade.75
Assim, verifica-se que Aristóteles, sem embargo de ter se preocupado com o
tema da ignorância da ilicitude, considerava inadmissível a escusa dela decorrente.
Apesar de reputar contrário à natureza das coisas o conhecimento geral das leis,
considerava que a ignorância não poderia ser invocada de forma eficaz, já que
haveria a culpa, ante o dever e a possibilidade de conhecê-las.76
73 Neste sentido, estatui Sebastian Soler: “Es de transcendente interés, sobre todo, el paso
de la responsabilidad colectiva del genos a la responsabilidad individual. En general, desde antiguo, para los crímenes comunes, el derecho griego no castigaba sino al autor. Pero son numerosas las ofensas de carácter público y religioso en las cuales se mantuvieron sanciones colectivas durante bastante tiempo. Los traidores y los tiranos sucumbían con toda su familia, hecho éste que no puede ser explicado solamente como el resultado de la acción tumultuaria, sino también como aplicación de la ley” (SOLER, 1951, p.59).
74 “A idéia de culpabilidade, através do livre arbítrio de Aristóteles, deveria apresentar-se no campo jurídico, após firmar-se no terreno filosófico e ético. Já com Platão, nas Leis, se antevê a pena como meio de defesa social, pela intimidação – com seu rigor – aos outros, advertindo-os de não delinquirem” (NORONHA, 1959, p.34).
75 RIGHI, 2003, p.20. 76 MUNHOZ NETTO, 1978, p.24.
34
Cabe, por fim, citar as palavras de Aristóteles sobre a ignorância das
prescrições legais:
Punimos igualmente as pessoas que ignoram quaisquer [1114 a] prescrições das leis que a todos cumpre conhecer, e podem facilmente conhecer, e do mesmo modo em todos os casos em que a ignorância seja atribuída à negligência, pois presumimos que dependa dos culpados o não ser ignorantes, uma vez que poderiam ter-se informado de uma maneira mais zelosa.77
A justificativa de Aristóteles para a obrigatoriedade do conhecimento das leis
baseava-se na facilidade de se obter tal conhecimento. Nota-se que, àquela época,
era realmente mais fácil de conhecer o direito do que nos dias atuais, haja vista que
não havia o mesmo número de leis, como também a sociedade não era tão
complexa e multicultural.
1.5 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ROMANO
O direito romano passou por uma longa evolução, tendo em vista que durou
cerca de dez séculos, podendo ser dividido em várias épocas, de acordo com as
características sociais, políticas e econômicas da sociedade.78
Nos primórdios, a vontade do autor do delito já funcionava como fundamento
da pena, dado que a Lex Numa dos tempos do Rei Numa Pompílio, ou seja, no
século IX antes de Cristo, diferenciava duas formas de homicídio: o parricídio
intencional, ao qual se aplicava a pena de morte, e o homicídio imprudente, cuja
sanção consubstanciava-se no oferecimento de um carneiro aos parentes da
vítima.79
77 ARISTÓTELES, 2004, p.66. 78 Pode-se distinguir os períodos do direito romano em quatro fases, quais sejam: I) O
período régio, da data convencional da fundação de Roma (754 a.C) à expulsão dos reis (510 a.C). O governo é de forma monárquica patriarcal, baseada em princípios tradicionais de natureza prevalentemente religiosa. Fonte do direito neste período é sobretudo o costume; algumas leges regiae se atribuem aos reis Rômulo, Numa Pompílio e Sérvio Túlio.II) O período da República, de 510 a.C até a instauração do Principado por obra de Otaviano Augusto em 27 a.C. A este período pertence a Lei das XII Tábuas, de 450 a.C. mais ou menos. III) O período do Principado, de Augusto até o imperador Diocleciano (anos 27 a.C – 284 d.C). IV) O período da Monarquia absoluta, da ascenção ao trono de Diocleciano, em 284 d.C., à morte do imperador Justiniano, em 565. (CORREIA; SCIASCIA, 1949, p. 07-08).
79 LUISI, 2003, p.33.
35
A Lei das Doze Tábuas (em latim: Lex Duodecim Tabularum ou Duodecim
Tabulae), considerada como “uma grande lei fundamental do Estado”80 do antigo
direito romano, estabeleceu a igualdade legal entre patrícios e plebeus, bem como
delimitou as atribuições do Poder Judiciário, que eram exercidas pelos cônsules. A
partir desta legislação, estabelece-se a diferença entre delitos públicos e privados.
Registre-se que os dez primeiros códigos foram formulados em 451 a.C. por
um decenvirato (um grupo de dez homens) e, em 450 a.C., o segundo decenvirato
concluiu os dois últimos. As Doze Tábuas, então, foram promulgadas e inscritas em
doze tabletes de madeira, os quais foram afixados no fórum romano, de modo que
todos pudessem ter o seu conhecimento.
Nessa legislação, há a exigência do dolo em várias figuras delituosas, tais
como nos crimes de magia, infidelidade do patrono, infidelidade do tutor, injúria,
dentre outros.81
Contudo, tanto o conceito de culpa, quanto o de dolo não estavam expostos
na legislação. Referidas definições foram desenvolvidas por meio da interpretação
científica das leis. A culpa, para os romanos, fundava-se não apenas no critério da
previsibilidade, mas também no da prevenção, conforme acentua Raul Machado.82
No entanto, no direito romano, a culpa não representou uma forma particular
de criminalidade. A noção de culpa dos romanos não coincide com a hodierna
concepção dela. Vale dizer que o direito romano, em todas as fases de sua história,
não conheceu o crime culposo, propriamente dito.83
Acresça a esses aspectos, os dolus bonus e dolus malus, distinção feita pelos
romanos. O primeiro é o que o próprio agente emprega para se defender dos
ataques injustos de outrem, ou com outro fim lícito. Já o dolus malus, ou dolus
simplesmente, existe sempre que, ciente e deliberadamente, procura-se prejudicar
outrem com fraude ou por qualquer outro meio contrário à lei.84
80 FARIA, 1906, p.61. 81 LUISI, 2003, p. 33. 82 MACHADO, 1943, p.15. 83 MOMMSEN, 1848, p.98; 15. 84 FARIA, op. cit., p. 358. O autor ainda cita como exemplo do dolus bonus a hipótese de
alguém ocultar a verdade para impedir que um furioso pratique o que lhe seria prejudicial, ou aos outros.
36
Escreve Assis Toledo que o dolus malus dos romanos se constituía, com
nitidez, do elemento anímico-intencional e de um plus: “a sua valoração como algo
mau, perverso, ilícito. Era, pois, um dolo valorado, normativo, adjetivado de „mau‟”.85
A imputabilidade era relevante no direito romano, porque havia inúmeros
textos que excluíam a responsabilidade penal dos insanos e dos menores.
Entretanto, com o transcorrer do tempo, passou-se a admitir uma responsabilidade
atenuada do impúbere.86
Diante do exposto, verifica-se que os romanos não conceberam uma teoria
geral da culpabilidade, mas trouxeram uma grande contribuição para o Direito Penal,
por meio do desenvolvimento do estudo do dolo e da culpa em seu sentido estrito e
da imputabilidade penal.
Dessarte, no que se refere ao estudo da responsabilidade penal, não
podemos concordar com a famosa afirmação de Carrara, segundo a qual os
romanos foram gigantes em direito civil e pigmeus em direito penal87. Embora não
tenha havido idêntico grau de desenvolvimento em ambas as esferas, pode-se notar
a consideração, pelos romanos, de aspectos relevantes também no âmbito da
Dogmática Penal.
Além disso, destaque-se que os romanos traçaram a distinção entre erro de
fato e erro de direito, dando maior relevância àquele, já que a regra era da
inescusabilidade do error iuris, apesar das inúmeras exceções, conforme
verificaremos no tópico a seguir.
1.5.1 A questão da falta de consciência da ilicitude: dicotomia “erro de fato – erro de direito” e o critério desculpável do erro
Como foi afirmado no presente trabalho, os romanos dirigiram suas atenções
ao tema da existência da vontade na formação delituosa, uma vez que havia
inúmeras figuras dolosas e culposas em suas legislações. Como se não bastasse,
também desenvolveram o estudo da imputabilidade e do erro.
85 TOLEDO, 1994, p.220. 86 “Um texto de Gaio sustenta que quem está próximo à puberdade é capaz de furtar. E
Ulpiniano sustenta que embora impúbere se pode imputar um fato delituoso, desde que seja „capaz do dolo‟” (LUISI, op.cit., p. 34).
87 ZAFFARONI, 2009, p. 165.
37
Observe-se que os romanos não construíram regras gerais sobre o dolo, a
culpa, a imputabilidade e o erro, mas sim, resolveram questões particulares, as
quais foram comentadas pelos escritores, tornando-as fortes o bastante para
adquirirem o valor de princípios absolutos.88
Os romanos distinguiram o erro de fato do erro de direito, já que aquele se
refere ao erro do agente sobre as circunstâncias do fato criminoso ou sobre uma
circunstância justificante. Por outro lado, o erro de direito diz respeito ao erro do
agente sobre a “obrigação de respeitar a norma por ignorância da antijuridicidade de
sua conduta, baseada no desconhecimento da lei penal que proíbe ou que ordena
agir, ou sem ignorá-la absolutamente, dela só tem notícia imperfeita que o conduz a
uma apreciação falsa”.89
Ocorre que os termos “erro” e “ignorância”, para os romanos, tinham o mesmo
significado e eles usavam, originalmente, as expressões ignorantia facti e ignorantia
juris.90
Importa mencionar que, consoante grande parte da doutrina, o antigo direito
romano atribuiu relevância ao erro de fato, como se observa em algumas passagens
do Digesto, tais como: “não comete delito de adultério a mulher que crendo o marido
morto, convola novas núpcias, desde que o seja desculpável”; “não responde por
furto quem como herdeiro se apropria de coisa de alguém considerado morto”. 91
No entanto, quanto ao erro de direito, valia a máxima contida na lei 9, do título
VI, do Digesto: “regula est juris quidem ignoratiam cuique nocere, facti vero
ignorantiam non nocere”92, a qual expressa que a ignorância do direito prejudica, a
do fato não.
Aponta-se como razão da regra da inescusabilidade do erro de direito o fato
de que o ordenamento de então era constituído por “um conjunto de normas
expressas e bem definidas, pelo que seria mais fácil o conhecimento das leis do que
os extremos de fato de um crime”. Além disso, dispõe Jiménez de Asúa que o motivo
para a irrelevância do erro de direito é encontrado na 2a lei do título “De juris et facti
ignorantia” do Digesto, já que Neracio dizia não tratar do mesmo caso a ignorância
88 DORADO, 1895; FERRINI, 1899 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.24-25. 89 GOMES, 2001, p.43; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.20-21. 90 CORREIA; SCIASCIA, 1949, p.60. 91 Exemplos extraídos do livro de LUISI, 2003, p.34. 92 DIAS, 2007, p.532-533; MUNHOZ NETTO, 1978, p.27.
38
de direito e a de fato, porque o direito pode e deve ser limitado, já a interpretação do
fato engana, muitas vezes, aos prudentíssimos.93
Note-se que essa mesma regra aparece também indicada, ainda que como
um preceito particular, na 11ª lei do título II, Des his qui notantur infâmia, do Livro III,
do Digesto: “ignorantia enim, excusatur non juris sed facti”. 94
No entanto, verifica-se que a regra da inescusabilidade do erro de direito
possuía numerosas exceções, não sendo pacífica a opinião de que um enunciado
genérico relativo à irrelevância do erro de direito possa ser encontrado nas fontes.
De fato, as decisões particulares, no Corpus Iuris, concluem tanto pela irrelevância
do erro de direito, quanto por sua relevância.95
A maior parte das exceções à regra acima exposta encontra-se assinalada de
uma maneira casuística e espalhada em todo o Corpo de Direito. Amor Neveiro
apresentou uma divisão em quatro categorias dos casos em que a ignorantia iuris
servia como escusa, a qual foi exposta por Jiménez de Asúa: a) quanto à natureza
da lei ignorada; b) quanto à natureza do ato contrário à lei; c) quanto à qualidade das
pessoas que a ignoram; d) quando concorrem várias das circunstâncias anteriores
reunidas.96
No que tange à primeira categoria de escusa da ignorantia iuris ou erro de
direito, referente à natureza da lei ignorada, havia a distinção entre as leis
puramente positivas e as fundadas diretamente no Direito natural. A questão reside
em saber se a ignorância de direito serve como desculpa quando se trata daquelas
leis que o Direito romano denominava “civis”, ou seja, as que não tinham
fundamento natural.97
Para Teodoro Mommsen, a ignorância de direito no que concerne às leis
“civis” não escusa, salvo em favor das mulheres e dos rústicos.98 Doutra banda,
Ferrini sustenta que, quando se cuida dessas normas de mera criação jurídica, é
admissível (com algumas exceções) a plena ignorância da norma e a consequente
eliminação do dolo.99 Já para Amor Neveiro, não se pode estabelecer como regra
absoluta, nem como regra geral, que a ignorância de uma lei dessa classe pudesse
93 MUNHOZ NETTO, 1978, p.27; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27. 94 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27. 95 MUNHOZ NETTO, 1978, p.29. 96 NEVEIRO, 1914 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27-30. 97 JIMÉNEZ DE ASÚA, op. cit.,p.28. 98 MOMMSEN, 1848, p. 100 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.28. 99 FERRINI, 1905 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.28.
39
servir como escusa para o seu descumprimento. Mas Neveiro reconhece casos
excepcionais, mais numerosos do que aqueles admitidos por Mommsen.100
Relativamente à segunda categoria, que diz respeito à natureza do ato
contrário à lei, explica Jiménez de Asúa, com base na lição de Amor Neveiro, que
são aqueles casos em que a natureza legal ou real do ato objetivamente punível
exigia o conhecimento da lei proibitiva. A falta deste conhecimento eximia o agente
de pena total ou parcialmente. Um exemplo contido no Digesto é o do magistrado
que sentenciava contra o direito e era castigado se agisse com dolo. Se o seu ato
fosse decorrente de imprudência do assessor, ficava o magistrado isento de pena, a
qual recaía apenas sobre aquele.101
Quanto à terceira categoria, segundo a qual a escusa decorre das qualidades
pessoais, entendia-se que, em certos casos, o erro de direito só beneficiava as
mulheres, os menores, os rústicos ou os soldados.102
Por último, no que propende à escusa da ignorantia iuris decorrente da
reunião de várias circunstâncias, pode-se apontar o exemplo do incesto, que era
proibido pelo Digesto, bem como pelo direito das gentes. O erro de direito poderia,
excepcionalmente, servir de escusa às mulheres se o incesto fosse iuris civilis, não
gentium, isto é, praticado com colaterais e não com ascendentes ou descendentes.
Além disso, aos menores do sexo masculino, o erro de direito, em matéria de
incesto, poderia valer, com as mesmas limitações.103
Ressalte-se que há diversidade de tendências entre o direito clássico e o pós-
clássico. No primeiro, admitia-se a ignorantia iuris em certos casos particulares, já no
direito pós-clássico e justianeu, havia concessões em favor dos menores e das
mulheres. Acrescente-se que era admitida a escusabilidade da ignorância e do erro
de direito no que tange a relações de direito extrapenal, como também a qualquer
erro de fato, seja conexo ou não a noções jurídicas. Nos casos em que a lei
100 NEVEIRO, 1914 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29. 101 NEVEIRO, 1914, p.09- 10 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29; Digesto, título II, do
Livro II, apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29. 102 MUNHOZ NETTO, 1978, p.32. 103 §§2,4 y7, ley 38, tít.V, lib.XLVIII del Digesto apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.30;
Digesto, XLVIII,V, apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.33.
40
extrapenal fosse o fundamento prévio da norma punitiva, a ignorância dela era
equiparada ao erro de fato, eliminando, assim, o dolo.104
Conforme foi afirmado no tópico anterior, os romanos distinguiram o dolo em
dolus bonus e dolus malus. Infere-se que este último se constituía da vontade aliada
a um mau propósito, ou seja, a vontade associada à consciência da antijuridicidade.
Daí se poder afirmar que, para os romanos, o dolo tinha um elemento naturalístico,
que era a vontade e um elemento normativo, qual seja, a consciência da
antijuridicidade.105
Nessa linha de preleção, Binding defendeu que, em direito penal romano, o
“conhecimento da norma violada” era pressuposto irrenunciável do dolus malus,
tornando o tema do erro relevante para a culpa, uma vez que o erro de direito
também importaria para a não imputação do comportamento doloso.106
Note-se que esse posicionamento vai de encontro à doutrina romanista
tradicional, mas que, ao nosso modo de ver, revela-se como o mais correto. Havia
diversas decisões considerando o erro de direito relevante para o fim de excluir o
dolo do agente e imputar a sua conduta apenas a título de culpa. O que tornava o
erro relevante era o seu critério desculpável ou não.
Diante das inúmeras exceções, tanto no direito clássico, quanto no pós-
clássico, à regra pauliana que apregoava a irrelevância do error iuris, conclui
acertadamente Jorge de Figueiredo Dias no sentido de que não era a natureza
intrínseca do erro, ou seja, ser de fato ou de direito, que fundamentava a delimitação
ou a solução do problema da falta de consciência da ilicitude, mas sim o seu caráter
desculpável ou não. No entendimento do autor, “o que se pretendeu
fundamentalmente foi regular, de forma unitária, o âmbito do erro desculpável de
uma parte e o do indesculpável de outra parte, e portanto afirmar, em via de
princípio, a relação entre o erro e a culpa do agente na actuação”.107
Dessa maneira, percebe-se, de acordo com os novos estudos sobre os textos
romanos, que o fator determinante para os efeitos atribuídos a cada modalidade de 104 GIOFFREDI, 1970 apud TOLEDO, 1977, p.32; MANZINI, Trattato di Diritto Penale
Italiano. 4 ed. Torino: UTET, 1961, v.II, p.19-20 apud TOLEDO, 1977, p.32; MUNHOZ NETTO, 1978, p.34.
105 Observe-se que o elemento é chamado de naturalístico porque está presente na natureza humana, e não uma criação do direito. Por outro lado, o elemento normativo caracterizava-se pelo juízo de valor, realizado pelo pretor, o qual qualificava a vontade como má. (BRANDÃO, 2010, p.227-228).
106 BINDING, 1914 apud DIAS, 2009, p.30-31. 107 DIAS, 2009, p.35.
41
erro era a relação entre o erro e a culpa, e não a natureza do erro em si (se de fato
ou de direito).
Nesse ponto, verifica-se que o antigo direito romano estava à frente do nosso
direito penal brasileiro, já que, nos dias hodiernos, ainda há a tendência de se
relacionar o problema da responsabilidade do autor pelo seu comportamento com o
princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal.
Não se considera, atualmente, se o erro de proibição ou a ignorância da lei
penal é desculpável ou não, para se atribuir a responsabilização penal do sujeito.
Estabelece-se a distinção entre erro de proibição e ignorância da lei penal,
atribuindo-se a exclusão da culpabilidade para aquele, no caso de ser inevitável, ou
diminuindo-se a pena, caso ele seja evitável. Em se tratando da ignorância da lei
penal, nega-se qualquer tipo de relevância desta para a culpabilidade, ainda que
seja inevitável o desconhecimento da norma. A ignorância da lei penal funciona
apenas como uma atenuante genérica, disposta no art. 65, II, do nosso diploma
penal. Referida atenuante independe da evitabilidade ou não da ignorância.
Verifica-se, pois, que o atual princípio da inescusabilidade da ignorância da lei
penal possui relação com a regra pauliana da irrelevância do erro de direito.
Segundo preleciona Figueiredo Dias, a completa identificação das duas questões só
foi possível em épocas em que o pensamento jurídico se guiou pelo dogma do
positivismo legalista, pois que referida ligação só é admissível mediante uma prévia
redução do direito à lei.108
Desse modo, ultrapassado o dogma positivista acima mencionado,
entendemos que não deveria haver um tratamento diferenciado do problema da
delimitação da falta de consciência da ilicitude e do princípio da irrelevância da
ignorância da lei penal, tendo em vista que, mesmo no antigo direito romano,
embora a regra de Paulo determinasse a irrelevância do erro de direito, o que, em
verdade, delimitava a irrelevância ou não do erro era o seu caráter desculpável.
Assim, atualmente, deve-se considerar, conforme apresentaremos mais adiante, que
a ignorância da lei também pode se apresentar como relevante em determinados
casos.
108 DIAS, 2009, p.53-54.
42
1.6 A RESPONSABILIDADE PENAL NA IDADE MÉDIA E A CULPABILIDADE
O direito canônico e o direito comum, na Idade Média, mantêm a exigência do
dolo e a noção da culpa nas formas de negligência e imprudência. Entretanto,
subsistiu uma forte presença da responsabilidade objetiva, com o advento do
princípio “versari in re ilícita” (literalmente significa: tratar com coisa ilícita), segundo
o qual há responsabilidade por fatos causados por uma conduta ilícita, mas que não
foram previstos e nem queridos, como também não haviam sido previsíveis.
Portanto, havia responsabilidade decorrente de caso fortuito ou força maior.
Saliente-se que foi nessa fase histórica do direito que surgiu o dolo indireto ou
eventual, por meio do estudo desenvolvido por Diego Covarrubias.109
Cabe mencionar que Santo Agostinho, no início da Idade Média, mais
precisamente no século IV, compreendia que a responsabilidade penal tinha como
pressupostos a inteligência e a vontade.
Sobre a vontade tratada por Santo Agostinho, escreve Brandão que ela é
“fundamental no homem, porque a construção da ordem do ser é dinâmica e é
formada pelo livre-arbítrio da vontade. É a vontade que possibilita ao homem fazer
uso das coisas, pelo agir.”110 Vale citar o pensamento de Santo Agostinho sobre o
livre-arbítrio:
Ou ter-se-á esquecido de que, quando investigamos cerca das realidades que se conhecem por meio da razão, reconheceste também que é pela razão que reconhecemos a própria razão? Portanto, se é pela vontade livre que fazemos uso de tudo o mais, não te deves admirar que seja também pela própria vontade que dela possamos fazer uso. De algum modo, é a vontade que, quando faz uso de tudo o mais, faz uso também de si mesma, tal como a razão, que conhece tudo o mais, também se conhece a si mesma.111
São Tomás de Aquino, no início do século XIII, também expõe a
responsabilidade penal fundada na vontade e na liberdade do homem.
Conforme assevera Cláudio Brandão, a origem da atual noção de pessoa
como ser humano deita suas raízes na Idade Média, tendo como base a filosofia
cristã. Nas palavras do autor:
109 LUISI, 2003, p. 35. 110 BRANDÃO, 2004, p.173. 111 SANTO AGOSTINHO, 2001, apud BRANDÃO, 2004, p.173-174.
43
não se reconhecerá o ser humano por ele integrar a atividade política do Estado, mas por ele ser uma criatura feita à imagem e semelhança de Deus e ser o objeto do amor divino. Deve-se ressaltar, contudo, que a extensão temporal deste período - durou cerca de mil anos – fez com que a relevância atribuída à pessoa humana estivesse ligada a um processo de avanços e retrocessos, onde ora se reconheceria essa dignidade, ora se fazia concessões – movidas provavelmente pelos interesses políticos da Igreja Católica – que atenuam a relevância da figura humana considerada em sua dignidade.112
Ressalte-se, por oportuno, que foram os pós-glosadores e os práticos
italianos, nos fins da Idade Média, que cunharam um conceito comum abrangente do
dolo e da culpa. Não obstante constituírem-se em duas espécies diversas, a culpa
passou a ser considerada um conceito geral, no qual se encontram o dolo e a culpa
em sentido estrito. Portanto, deve-se aos comentaristas e aos práticos do século XVI
a compreensão da culpabilidade como reprovação ou repreensibilidade.113
Nesse aspecto, profere Jescheck que as raízes da teoria da culpabilidade se
encontram na ciência do Direito Penal italiano da Baixa Idade Média e na doutrina
do Direito Comum elaborada nos séculos XVI e XVII. Com efeito, o Direito Natural,
cujo reconhecido representante é Samuel Puffendorf (1634-1694), expõe a primeira
estrutura da teoria da culpabilidade, por meio do conceito de imputação como a ação
livre que se reputa pertencente ao autor e, por conseguinte, fundamento de sua
responsabilidade.114
Sobre o Direito Natural, Garofalo afirma que as normas tinham como base a
moral, os costumes e os sentimentos altruístas, conceituando o delito natural da
maneira abaixo descrita:
A ofensa feita a parte do denso moral formado pelos sentimentos altruístas de piedade e de probidade – não, bem entendido, à parte superior e mais delicada deste sentimento, mas a mais comum a que considera patrimônio moral indispensável de todos os indivíduos em sociedade. Essa ofensa é precisamente o que nós chamaremos de delito natural.115
112 BRANDÃO, op. cit., p.172. 113 LUISI,2003, p. 35. 114 JESCHECK, 1981, p.577; Expõe no mesmo sentido: BITENCOURT, 2006, p. 416-417. 115 GAROFALO, 1997, p. 29.
44
Em se pensando na culpabilidade como imputação e, por conseguinte, como
vontade livre e responsabilidade moral, convém ler este excerto de Ronaldo Tanus
Madeira:116
As primeiras manifestações teóricas a respeito da culpabilidade confundiam-na com o conceito de imputação ou imputabilidade, no sentido de atribuibilidade. Assim, a imputabilidade significava atribuir ao ser humano a causa de seu ato. [...] Imputar a alguém um fato criminoso é considerar, segundo a ótica de Punfendorf, que esse fato não decorreu de caso fortuito ou força maior. Imputabilidade significava vontade livre e responsabilidade moral.
No entender de Pufendorf, assim, a liberdade do agir humano constitui-se em
pressuposto fundamental para a existência de um mundo moral. O conceito de
culpabilidade relacionado à imputação corresponde a uma concepção do livre
arbítrio absoluto no século XVII, em razão do desenvolvimento do jus-naturalismo
associado a influências ainda marcantes do tomismo. Ocorre que, à concepção de
imputação como atribuição da responsabilidade da ação livre ao seu autor,
seguiram-se outras, como a dos hegelianos, segundo os quais a imputação subjetiva
se dava em razão de o indivíduo, livremente, por sua vontade particular, afastar-se
da vontade geral, ou seja, da lei.117
No tópico a seguir, cuidaremos do tema do erro na Idade Média, para o direito
germânico, o direito canônico, bem como para o direito italiano intermédio.
1.6.1 A questão da consciência da ilicitude no Direito Germânico e no Direito Canônico
No Direito germânico, os problemas da ignorância da lei e do erro eram
totalmente desconhecidos.118 Já no Direito Canônico, inicialmente, preponderou o
princípio da irrelevância do erro sobre a lei. Posteriormente, reaparecem as diversas
classes de ignorância e erro. Com Graciano, estabeleceu-se a distinção entre
ignorantia iuris naturalis e ignorantia iuris civilis. A ignorância de direito natural
prejudicava todos os adultos. Todavia, na “Summa Coloniensis”, estão excluídos
116 MADEIRA, 1999, p.59. 117 BITENCOURT, op. cit., p.417; No mesmo sentido: JESCHECK, loc. cit. 118Nesse sentido, Diritto penale germânico rispetto all’Italia, en Enciclopedia di Diritto
penale, dirigida por Pessina, vol. I, Milán, 1995, p.462 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.31.
45
expressamente da obrigação de conhecimento da lei os jovens, os surdos, os mudos
e os enfermos da mente.119
Com o transcorrer do tempo, a doutrina canonista passou a atenuar o rigor do
princípio da irrelevância do error iuris. A ignorância de normas locais, emanadas de
bispos, tornou-se escusável, se ela não decorresse de negligência crassa e supina.
Posteriormente, estendeu-se esse critério a todas as leis penais. Mesmo nos casos
em que o desconhecimento da lei não decorresse de negligência crassa e supina, o
erro era considerado se, para determinado delito, fosse exigido efetivo conhecimento
jurídico.120
1.6.2 A falta de consciência da ilicitude no direito estatutário intermédio
No direito estatutário intermédio, o erro sobre o direito natural e divino era
inescusável, tendo em vista que todos deviam conhecer as suas leis. Do mesmo
modo, não se admitia a ignorância do direito romano, ou seja, do direito comum a
todas as gentes. Todavia, em algumas leis e de acordo com muitos escritores,
admitia-se a escusabilidade do erro no que concerne às leis locais, especialmente
em se tratando de forasteiros. Os estatutos do Sena e das florescentes cidades de
Lombardia, por exemplo, declaravam expressamente a eficácia da ignorância das
leis locais quanto aos forasteiros. Outrossim, para o Direito Civil, prevaleciam as
exceções romanísticas relativas às mulheres, aos menores, aos soldados e aos
rústicos.121
Ocorre que o direito estatutário intermédio, quanto ao erro, inspirou-se no
direito romano e no direito canônico. Da mesma maneira que no antigo direito
romano, no direito italiano intermédio, o que determinava a relevância ou não do erro
era o critério de ele ser ou não desculpável, haja vista que o error iuris naturalis ou
quasi naturalis não escusava porque era indesculpável ou vencível, já o error iuris
civilis escusava sempre que fosse desculpável ou invencível.122
119MUNHOZ NETTO, 1978, p.36. 120 Ibidem, p.36-37. 121 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.32-33. 122 MUNHOZ NETTO, 1978, p.38-39; No mesmo sentido anota Dias (2009, p.39).
46
Sem que haja pretensão de exaustividade, impende realizar uma breve
análise das contribuições (ou não) do Iluminismo para a questão da culpabilidade e
do erro, o que será versado no tópico constante a seguir.
1.7 A RESPONSABILIDADE PENAL E A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO PERÍODO DAS LUZES
Vale destacar, primeiramente, o pensamento do contratualista racional do
século XVII, Thomas Hobbes. Assinala Hobbes que, no estado natural, os homens
são egoístas, então, é necessário um poder comum para que não haja “uma guerra
de todos contra todos”. Cumpre ressaltar que “a guerra não é apenas a batalha, o
ato de lutar, mas o período de tempo em que existe a vontade de guerrear”.123
Além de ter explanado sobre a natureza humana e a necessidade de
governos e sociedades, o filósofo inglês se preocupou com o tema da ignorância da
lei, afirmando que ela somente é admitida como desculpa se a lei civil do próprio
país não tiver sido amplamente divulgada para que todos tomem conhecimento e se
o ato perpetrado não for de encontro à lei natural. Segundo o autor, em qualquer
outro caso, o desconhecimento da lei civil não é razoável, já que a punição consiste
na consequência da violação da lei, em qualquer Estado.124
Percebe-se que o filósofo apenas se preocupou com o tema da ignorância,
mas não apresentou avanços em relação ao que já se entendia no antigo direito
romano, trazendo como novidade o fundamento contratualista da obrigação de
conhecimento das leis.
123 O filósofo inglês elenca três causas principais de disputa, inerentes à natureza humana, a
saber: competição, desconfiança e glória. A competição estimula os homens a se atacarem para adquirir algum lucro, a desconfiança assegura-lhes a segurança, enquanto a glória garante-lhes a reputação. Segundo Hobbes, a primeira causa conduz os homens a servirem-se da violência “para se apossar do pessoal, da esposa, dos filhos e do gado de outros homens”, a segunda os leva ao uso da violência para defender esses bens, a terceira os faz utilizarem-se da força por razões insignificantes, “como uma palavra, um sorriso de escárnio, uma opinião diferente da sua ou qualquer outro sinal de subestima direta de sua pessoa, ou que reflita sobre seus amigos, sua nação, sua profissão ou o nome de sua família”. Outrossim, o filósofo traça alguns pontos de diferença entre os homens e algumas criaturas vivas, como abelhas e formigas, destacando-se, por exemplo, o fato de que estas criaturas não competem entre si em busca da honra e da dignidade, como o fazem os seres humanos. É justamente em razão deste fator que surge, entre os homens, a inveja e o ódio e, finalmente, a guerra. (HOBBES, 2009, p. 95; 125).
124 HOBBES, 2009, p.207.
47
O Iluminismo não trouxe grandes mudanças no que toca à culpabilidade,125 a
despeito das suas inúmeras contribuições para o Direito Penal, a exemplo da
consolidação do princípio da humanidade das penas, como reação às violações aos
direitos do homem, verificadas, sobretudo, nas monarquias absolutas instauradas na
era moderna.
Oportuno mencionar a obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonesana,
mais conhecido como o Marquês de Beccaria, tendo em vista o seu influxo para o
processo de humanização das penas. Tal livro foi escrito há mais de dois séculos,
mas “nele já se proclamavam e defendiam os direitos do homem”126 e influenciou
diversas legislações estrangeiras, no sentido de as penas serem específicas e
variadas, além da necessidade de proporcionalidade na relação entre o crime e a
pena, dentre outras contribuições.
Beccaria estabeleceu as bases que serviram, mais tarde, para construir uma
ciência criminal orientada pela ideia de criar um sistema de garantias para o sujeito
e, ao mesmo tempo, de legitimar a intervenção repressiva do Estado.127
Entanto, o marquês sustentou a maior importância do dano causado pelo fato
delituoso do que a vontade do agente:
As precedentes reflexões dão-me o direito de afirmar que a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação, errando, assim, os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete. Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedente disposição do espírito. Elas variam de homem para homem, e, em cada homem, com a velocíssima sucessão das ideias, das paixões e das circunstâncias [...] Às vezes, os homens, com a melhor das intenções, causam o maior mal à sociedade. Outras vezes, com a maior má vontade, causam o maior bem.128
Romagnosi, em sua obra “Gênese do Direito Penal”, defendeu que imputar
um ato a alguém é afirmar que um seu agir próprio, impossível de ser atribuído a
outrem, foi sua causa.129 Assim, percebe-se que não houve significativo acréscimo à
imputação moral de Pufendorf, tratada no tópico 1.5 deste trabalho.
125 LUISI, 2003, p. 35. 126 LINS E SILVA, 1991, p.02. 127 RAMÍREZ, 2005, p.122. 128 BONESANA, 2011, p.45. 129 TANGERINO, 2009, p.49.
48
Aponta Luiz Luisi, entretanto, a existência de iluministas que enfatizaram a
relevância da vontade do agente na configuração do crime, tais como Gaetano
Filangieri e Pascoal de Melo Freire.130
Cumpre esclarecer que o problema do erro sobre a consciência da ilicitude
não foi tratado de forma unitária na Idade Moderna. Na Alemanha, por exemplo,
havia a ideia de proteger os indivíduos, ainda que tivessem atuado com a mais reta
consciência, por ignorarem leis que estavam fora do alcance do conhecimento, ou
seja, escritas em linguagem confusa, de interpretação difícil e de aplicação arbitrária.
Além disso, havia uma reação contra os excessos legislativos do estado autoritário.
Assim, foi preservada a relevância do erro de direito e impediu-se a propagação do
princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal.131
Entretanto, em outros países, como na França, na Itália e em Portugal, a
questão do erro de direito caminhou progressivamente em direção à máxima “nul
n‟est censé ignorer la loi pénale” (não é desculpa ignorar a lei penal), em razão da
convergência de alguns fatores. Por um lado, havia o silêncio dos autores sobre o
assunto. Conforme já explicitado, Beccaria negou relevância à intenção do agente,
estabelecendo como questão fundamental o dano produzido pela conduta. Diante
disso, contata-se que o marquês de Beccaria não tratou do problema do erro em
Direito Penal.132
Além da doutrina, o Código Penal francês de 1810 silenciou sobre o tema do
erro, como também a jurisprudência dos países supracitados elevou o princípio da
inescusabilidade da ignorância da lei penal à categoria de máxima intocável.133
Nesse contexto, as grandes codificações do Direito Penal acolheram a regra
da inescusabilidade da ignorância da lei no direito positivo, com algumas
concessões, a exemplo dos “crimes de direito positivo” no Direito Penal francês.134
Observe-se que, almejando a superação das injustiças decorrentes do
entendimento de que o erro de direito é inescusável, a doutrina, principalmente a
italiana, passou a distinguir o erro de direito penal do erro de direito extrapenal. O
primeiro, referente à ignorância da lei penal, não escusa. Já o erro de direito
130 TANGERINO, 2009p.35. 131 DIAS, 2009, p.43. 132 DIAS, op. cit., p.43-44. 133 DIAS, loc. cit. 134 MOTTA, 2009, p.36.
49
extrapenal, que incide sobre normas extrapenais é escusável, aplicando-se o
mesmo tratamento oferecido ao erro de fato.135
Atualmente, tanto na Alemanha quanto na Itália, a jurisprudência e a doutrina,
em sua maioria, entendem que a antiga dicotomia “erro de fato – erro de direito” (ou
a atual distinção “erro de tipo-erro de proibição”) não funciona como fundamento
para a relevância ou não do erro, mas sim como mera justificativa formal de
soluções. As decisões sobre a relevância do erro pautam-se, no fundo, por
considerações de culpa e de justiça material.136
Para um melhor entendimento sobre a atual distinção entre erro de tipo e erro
de proibição, relevante, no Brasil e em diversos outros países, para a delimitação de
seus efeitos jurídicos, mister se torna a análise da evolução do conceito de
culpabilidade, a qual será tratada no próximo capítulo.
135 MOTTA, 2009, p.36. 136 DIAS, 2009, p.49.
50
CAPÍTULO II
TEORIAS DA CULPABILIDADE E OS RESPECTIVOS TRATAMENTOS SOBRE A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
2.1 O SISTEMA CLÁSSICO E A TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE
Na segunda metade do século XIX, ocorre uma mudança no panorama do
pensamento europeu, dado que as ciências particulares galgam um lugar de
destaque em prejuízo das ideias metafísicas e filosóficas.
Merece destaque o positivismo jurídico, que determinava a atuação do jurista
restrita ao Direito Positivo e à sua interpretação, excluindo-se as valorações de
ordem filosófica. Caracterizava-se, outrossim, por uma perspectiva extremamente
naturalista, razão pela qual apenas se centrava no mundo físico, tendo nítida
preferência pela cientificidade, relegando os conhecimentos psicológicos e sociais.
Em consequência, a teoria da liberdade de vontade ficou enfraquecida, tornando-se
inadmissível o conceito de culpabilidade concebido pelo Direito Natural.
Importa destacar que a análise específica do positivismo jurídico será
realizada em momento posterior do presente trabalho, ocasião em que se buscará
cotejar a vertente doutrinária aos estudos concernentes ao desconhecimento da lei
como causa de redução de pena.
A partir do momento em que Franz Von Liszt iniciou o desenvolvimento da
moderna teoria do delito, arrimada na distinção entre antijuridicidade e culpabilidade,
surgiram diferentes concepções de culpabilidade, as quais correspondem às
diversas fases da evolução da teoria do crime.
O sistema clássico de delito (ou causal-naturalista), no qual se integra a teoria
psicológica da culpabilidade, foi desenvolvido na Alemanha, nas últimas décadas do
século XIX, por Franz von Liszt e difundido na Europa por Ernst von Beling,
principais representantes da Escola Positivista-Naturalista137, cuja influência
encontra-se no positivismo jurídico e no naturalismo.
Franz von Liszt foi o primeiro expositor da concepção psicológica. Porém, foi
Beling quem contribuiu decisivamente para a sua difusão, razão por que ela é
137 Não se pode confundir com a Escola Positiva, também denominada Positivismo
Criminológico, da qual se destacam os estudos de Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo.
51
conhecida como sistema Liszt-Beling. Vale aduzir que foi von Beling quem
desenvolveu um componente estrutural para a teoria do delito, a saber, a tipicidade,
a qual se juntou à antijuridicidade e à culpabilidade na formação do conceito
tripartido de crime. Comenta Córdoba Roda que o tipo, em Beling, alheio à influência
própria da filosofia dos valores, tem um caráter puramente neutro e descritivo, por
representar um simples deslocamento ou tradução da realidade para o conceitual.
Entre a ação e o tipo havia uma simples relação de subsunção.138
Hans Welzel denomina o sistema clássico de delito de Liszt-Beling-Radbruch,
por Radbruch ter defendido o conceito causal de ação, o qual exige unicamente a
causalidade da vontade em relação ao fato, e que remete completamente à
culpabilidade o problema de qual era o conteúdo do querer.139
Diante do exposto, deve-se sempre ter em mente que o sistema causalista
corresponde à ideia da ciência do Direito em seu tempo e espaço, bem como se
identifica com os aspectos íntimos de um povo e sua cultura. De fato, esse
pensamento jurídico-penal foi construído sob a influência do positivismo, para o qual
ciência consitui apenas aquilo que pode ser mensurável, ou seja, apreendido pelos
sentidos. Observaremos, então, que os conceitos referentes aos elementos do delito
e sua estrutura foram construídos com essa base de cunho positivo-naturalista.
2.1.1 A ação causal
Para a concepção causalista, a ação é a produção de um resultado mediante
o uso de forças físicas, perceptível do ponto de vista material, “devida à tensão
muscular, no delito comissivo e ao descanso físico, no delito omissivo”.140
A ação era concebida como puro processo causal externo, desprovida de
valor, dado que o anímico, o psíquico era uma questão relativa à culpabilidade. Daí
se conduziu a um sistema bipartido, no qual identificava no crime um elemento
objetivo e um subjetivo.
Por essa razão, a teoria clássica do delito desenvolveu-se pela divisão da
infração penal em partes separadas pela percepção dos sentidos: a externa e a
interna. A parte externa refere-se à antijuridicidade, enquanto a parte interna atribui-
138 CÓRDOBA RODA, 1963, p.13. 139 WELZEL, 1993, p.46. 140 MAURACH, 1966, p.23.
52
se à culpabilidade. Esta se apresenta como o conjunto de elementos subjetivos do
fato.141
Além disso, a ideia de causalidade consubstanciava-se em elemento definidor
fundamental do delito. Assim como o injusto é definido a partir do conceito de
causalidade, como causação de um ato lesivo, a culpabilidade se concebe como
uma relação de causalidade psíquica, como o nexo entre a mente do sujeito e o
resultado. O delito aparece, assim, como resultado de uma dupla vinculação causal:
a relação de causalidade material dá lugar à antijuridicidade e a conexão de
causalidade psíquica consiste na culpabilidade.142
Nessa ordem de ideias, lecionam Zaffaroni e Pierangeli:143
culpabilidade era a relação psicológica que havia entre a conduta e o resultado, assim como a relação física era a causalidade. O injusto se ocupava, pois, dessa causalidade física – causação do resultado -, enquanto à culpabilidade cabia a tarefa de tratar a relação psíquica. O conjunto de ambas as relações dava por resultado o delito.
2.1.2 Culpabilidade como categoria autônoma do delito
Com efeito, até o surgimento da concepção psicológica, ilicitude e
culpabilidade confundiam-se, não havendo diferenciação em seus conceitos que
faziam parte, assim, de uma categoria única na estrutura do delito. Foi com a teoria
psicológica que a culpabilidade se firmou como categoria lógico-jurídica autônoma,
desvinculada da ideia de ilicitude. Para a doutrina naturalista ou causal da ação,
destarte, a culpabilidade consiste na ação psicológica entre o fato e o seu agente.
Franz von Liszt apresenta a culpabilidade, em seu sentido mais amplo, como
a responsabilidade do autor pelo ato ilícito que tenha realizado. O juízo de
culpabilidade expressa a consequência ilícita que traz consigo o fato cometido e o
atribui à pessoa do infrator. No sentido estrito, o penalista aduz que a culpabilidade é
tão somente a relação subjetiva entre o ato e o autor.144
De maneira minuciosa, conceitua Aníbal Bruno a culpabilidade em seu estrito
sentido, segundo a teoria psicológica, como “uma situação interior, fase subjetiva do
141 MIR PUIG, 2002, p.517. 142 MIR PUIG, loc. cit. 143 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p.523. 144 VON LISZT, 1999, p.387-388.
53
crime – vontade consciente dirigida no sentido do ato criminoso, ou simples falta ao
dever de diligência, de que provém um resultado previsível de dano ou de perigo”.145
Pode-se destacar como grande defensor desta teoria, no Brasil, Basileu
Garcia:146
A culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu autor. Reveste, no Direito Brasileiro, as formas de dolo e culpa. [...] Decomposto idealmente o delito nos seus dois elementos – o subjetivo, também chamado psíquico ou interno, e o objetivo, também denominado material, físico ou externo – a culpabilidade integra o primeiro desses elementos, coincide com ele.
Na América Latina, um dos seguidores dessa concepção foi Sebastian Soler,
nada obstante entender equivocada a sua denominação. Para o autor, a concepção
psicológica da culpabilidade é extremamente vantajosa, do ponto de vista teórico,
sobretudo por sua simplicidade pedagógica. Entretanto, segundo Soler, não há
teoria da culpabilidade que represente um psiquismo puro. Além da conexão
psicológica com o resultado, deveria haver uma relação do sujeito com as normas e,
portanto, uma valoração normativa. O sujeito não é apenas dotado de psiquismo,
mas também partícipe da ordem jurídica, inserido em suas valorações.147
2.1.3 A imputabilidade como precedente da culpabilidade
Para a teoria psicológica da culpabilidade, a imputabilidade constitui-se em
elemento precedente necessário da culpabilidade,148 sendo também chamada de
“capacidade de culpabilidade”. Não se trata, portanto, de elemento da culpabilidade,
mas de requisito necessário para a sua análise. Para que a culpabilidade mereça
145 BRUNO, 2005, p.15. 146 GARCIA, 2008, p. 349-350. 147 O autor afirma: “Nuestro ponto de vista pone de manifesto que, si bien la culpabilidad
como hecho es algo psíquico, el concepto de culpabilidad no es puramente psicológico, pues sólo puede hablarse de culpas cuando las acciones son referibles a uma esfera de normas. La naturaleza de la culpabilidad está dada por el modo de referencia de la personalidad a las normas.” (SOLER, 1951, p. 72.)
148 Vale mencionar que Franz von Listz diferencia dois elementos da imputação contida no juízo de culpabilidade: a) A imputabilidade do autor, a qual se dá com aquele estado psíquico do autor que o garanta a possibilidade de conduzir-se socialmente, ou seja, com a faculdade que tem o agente de determinar-se, de um modo geral, pelas normas da conduta social, da religião, da moral, etc; b) A imputação do ato, a qual se dá quando o autor conhecia a significação antissocial de sua conduta ou quando podia e devia conhece-la; ou seja, quando o agente , no caso concreto, não tenha sido determinado pelas normas de conduta social (LISZT, 1999, p.389).
54
consideração do Direito, importa que o sujeito tenha capacidade de compreender o
caráter ilícito do fato ou de orientar sua conduta de acordo com esse entendimento.
Essa teoria, portanto, contém um aspecto importante centrado na pessoa do agente
transgressor, sua capacidade, sem a qual não pode haver a correspondente
responsabilização.
Expõe Aníbal Bruno três momentos da posição do agente perante a lei penal,
segundo a teoria sob apreciação, a saber: “imputabilidade, culpabilidade e
responsabilidade penal. Imputabilidade que é a capacidade de entender e de querer;
culpabilidade, que é aquele vínculo psíquico suficiente para prender o agente,
imputável, ao fato, como seu autor; e responsabilidade, que é o dever jurídico que
incumbe ao imputável, culpado de determinado fato punível, de responder por ele
perante a ordem de Direito”.149
2.1.4 O dolo e a culpa
O dolo e a culpa são considerados não apenas como espécies da
culpabilidade, mas também a sua totalidade, tendo em vista que são formas
concretas pelas quais se pode revelar o vínculo psicológico entre o autor e a
conduta perpetrada.150
Trata-se de uma evolução no estudo da responsabilidade penal, haja vista
que a responsabilidade penal passa a ser subjetiva, por meio do exame do dolo e da
culpa do agente, e não apenas da causação do dano.151
No que tange à consciência da antijuridicidade, insta notar que o tratamento
não era uniforme. Havia divergência quanto à autonomia da consciência da ilicitude
entre os próprios sistematizadores da teoria causal-naturalista: von Liszt rejeita-a e
Beling confere-lhe relevância. Dessa forma, o dolo era natural ou psicológico para os
autores que não consideravam a consciência da ilicitude. De outra parte, para os
149 BRUNO, 2005, p.15-16. 150 Assis Toledo critica a teoria psicológica, comparando-a com o entendimento do dolo no
direito romano. Para o autor, “o conceito de dolo entre os romanos não era puramente psicológico. Ao contrário, apresentava-se mais complexo e enriquecido”. Ademais, o penalista explica que a “noção psicológica do dolo tem apoio na interpretação de preceitos do Código italiano (o famoso Código Rocco).” (TOLEDO, 1994, p.221).
151 GOMES, 2001, p.37.
55
que admitiam a consciência da antijuridicidade, o dolo era normativo ou, tal como
denominavam os romanos, “dolus malus”.152
Demonstradas as bases do conceito psicológico da culpabilidade, torna-se
necessário examinar as principais críticas formuladas em seu desfavor.
2.1.5 Críticas ao conceito psicológico da culpabilidade
A concepção psicológica da culpabilidade mostrou-se insuficiente, pois que
não explica as questões da culpa inconsciente, do doente mental, do estado de
necessidade exculpante, do erro de proibição, da coação moral irresistível, dentre
outras.
De fato, na culpa inconsciente, o resultado, conquanto previsível, não foi
sequer previsto pelo agente e, assim sendo, não houve ligação psicológica entre o
autor e o fato delituoso.
Diante dessa incongruência, alguns doutrinadores pensaram que a culpa
inconsciente não seria um problema de direito penal. Não representava a
culpabilidade, mas sim uma “contravenção culpável de diferentes classes de
normas”.153 Outros, tal como Radbruch, sustentaram a unidade do dolo e da culpa.
Jiménez de Asúa ensina que, para Radbruch:
El concepto de culpa pertenece unicamente la exigência de la imprudência, de la no previsión del resultado previsible. La valuación debe ser, pues, eliminada y sólo queda el hecho, consecuencia de lo cual es que, entonces, se podrá facilmente llevar la culpa junto al dolo, bajo um concepto único que les abarque.154
Percebe-se, portanto, a falta de coerência da teoria sob análise ao definir a
culpabilidade como algo exclusivamente psíquico e incluir a culpa como uma das
suas espécies, notadamente no que se refere à culpa inconsciente, visto que na
culpa não há a vontade, ou seja, falta-lhe nexo de correspondência com o resultado
e, na culpa inconsciente, sequer há a previsão do resultado delituoso por parte do
agente.
Em se referindo à questão do doente mental, para a maioria dos defensores
da teoria psicológica, por ele ser inimputável torna-o inculpável e, dessa forma,
152 TAVARES, 1980, p.25. 153 BRUNONI, 2010, p. 141. 154 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1956, p.286.
56
como a imputabilidade é um pressuposto da culpabilidade, sequer se chega à
valoração da existência de dolo ou culpa. Contudo, decerto que ele age com uma
relação psicológica, razão por que não se poderia afastar a existência do delito em
sua conduta.
Diante do entrave, expõem Zaffaroni e Pierangeli as duas correntes que
tentaram contorná-lo, mas que não lograram êxito; uma, já acima exposta, no
sentido de a imputabilidade servir como pressuposto da culpabilidade; a outra,
minoritária, defendendo a inimputabilidade como causa de exclusão da pena, mas
não do delito:
Alguns tentaram contornar este inconveniente, afirmando que a imputabilidade é um pressuposto da culpabilidade, o que, evidentemente, não é correto, porque o mais frequente será que o doente mental aja com capacidade para uma relação psicológica, isto é, para o dolo. Outros, em franca minoria, são mais coerentes quanto ao sistema que defendem e afirmam que a inimputabilidade é uma simples causa de exclusão da pena, mas não do delito. O certo é que o problema da culpa, tal como o da imputabilidade, não podia ser satisfatoriamente resolvido dentro desta concepção.155
Ademais, registre-se que a concepção psicológica não explica
adequadamente as hipóteses do estado de necessidade exculpante,156 da coação
moral irresistível, nem a do erro de proibição. Nesses casos, para a teoria
psicológica, a inculpabilidade decorre da ausência de dolo, já que este pressupõe
uma vontade livre e consciente. No entanto, nota-se que há, nos casos apontados,
um vínculo psicológico entre o ato e seu autor e, desse modo, a culpabilidade não
poderia ser excluída pela falta do dolo.
Ronaldo Tanus Madeira aduz que o dolo e a culpa, para a teoria sob exame,
são frutos da criação do legislador, possuindo uma existência apenas jurídica:
155 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p.523. 156 No estado de necessidade exculpante, o sujeito atua dolosamente e, mesmo assim, não
é considerado culpável, por sacrificar um bem jurídico de igual valor ao preservado, representando, dessa forma, um entrave para a aceitação da teoria psicológica. Ressalte-se que o tema do estado de necessidade exculpante é bastante discutido na doutrina brasileira, já que a legislação não é expressa quanto à ponderação de bens, como também não define a natureza dos bens em conflito. A maioria dos doutrinadores orienta-se no sentido de que o art. 24 do Código Penal apenas cuida do estado de necessidade como excludente de ilicitude. Assim, o entendimento majoritário é o de que direito brasileiro acolheu a teoria unitária, segundo a qual o estado de necessidade exclui sempre a ilicitude, e não a teoria diferenciadora, a qual preceitua que o estado de necessidade pode excluir tanto a ilicitude (quando se preserva um bem maior em sacrifício de um bem menor) quanto a culpabilidade (no caso em que há o sacrifício de um bem jurídico igual ao preservado).
57
Para a teoria psicológica da culpabilidade, os menores, os doentes mentais e os que atuam sob coação moral irresistível ou em estado de necessidade não atuam dolosa nem culposamente. Isto porque, a teoria psicológica da culpabilidade, de cunho eminentemente formal, dá ao dolo e à culpa um conteúdo existencial puramente jurídico. O dolo e a culpa são uma criação do legislador, possuindo uma existência puramente jurídica.157
Ressalte-se, ademais, a crítica de Welzel sobre a teoria psicológica porquanto
também existem elementos subjetivos nas causas de justificação, sendo impossível
fazer a separação entre a parte externa e a interna.158
Por fim, observa-se que a concepção psicológica não permite a graduação da
culpabilidade, em razão da rigidez de suas categorias sistemáticas. A culpabilidade
puramente psicológica passou, atualmente, a chamar-se de aspecto subjetivo do
tipo.
Ante os problemas elencados, restou demonstrada a impossibilidade de se
conceituar a culpabilidade de forma totalmente psicológica, tornando-se
imprescindível a existência de caracteres normativos para a sua definição. Inclusive,
vale destacar que o principal articulador da teoria psicológica, Franz von Liszt,
modificou o seu entendimento, na 25ª edição de Lehrbruch, passando a posicionar a
culpabilidade no esquema normativista, se bem que com um elemento estranho,
qual seja, o caracterológico. Para o penalista, a culpabilidade não apenas supõe a
comprovação do distanciamento entre a conduta do agente e a exigência jurídica,
como também “suscita o problema do porquê o processo de motivação foi
defeituoso, acarretando, então, na valoração do caráter do autor e no
reconhecimento de sua perigosidade, isto é, na disposição anti-social do sujeito”.159
Não se pode negar o aspecto positivo da teoria psicológica no que se reporta
à clara sistematização, nem tampouco o benefício que trouxe para o Direito Penal,
em razão da defesa de uma imputação pessoal e subjetiva.
Sucede que toda concepção de culpabilidade está ligada a seu tempo e ,
nesse período, o direito era considerado como qualquer outra ciência exata ou da
natureza. Assim, referida concepção não pôde subsistir devido às inúmeras
incongruências já expostas, como também ao problema de que, segundo aduz
157 MADEIRA, 1999, p.61. 158 WELZEL,1993, p.130. 159 MACHADO, 2010, p.48.
58
Reale Júnior, “[...] a culpabilidade psicológica não respondia, na verdade, ao
imperativo de individualização e eticização da responsabilidade”.160
De fato, foi apenas com a admissão dos elementos normativos na
culpabilidade, conforme veremos mais adiante, que se passou a atender, de melhor
forma, ao princípio da individualização da pena e à responsabilidade penal subjetiva.
2.2 A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE
Conforme já exposto no primeiro capítulo, a plasticidade das soluções, no que
concerne à ignorância da antijuridicidade, adotadas pelo direito romano, canônico e
pelo direito italiano intermédio, desapareceu com as primeiras codificações no
Direito Penal. A preocupação com a obrigatoriedade da lei preponderou em relação
ao critério da culpabilidade e passou-se, portanto, a adotar a regra da absoluta
inescusabilidade da ignorância do ilícito por erro de direito.161
O dolo, conforme já exposto no presente trabalho, compunha-se apenas de
dois elementos, a saber, um intelectivo, constituído pela representação do resultado
e um volitivo, referente à manifestação de vontade. Note-se que a consciência da
antijuridicidade, como elemento normativo, foi afastada do conceito de dolo pela
maioria da doutrina que perfilhava o sistema causalista de ação.
Nesse sentido, Franz von Listz enunciou que “o dolo, pois, deve definir-se, em
primeiro lugar, como a representação do resultado, que acompanha a manifestação
de vontade”,162 não havendo necessidade da consciência da antijuridicidade.
Também segue essa linha de preleção Manzini, ao aduzir que a noção de delito
doloso decorre da consciência e da voluntariedade, uma vez que o agente deve
prever e querer a consequência de sua ação. Já a consciência da antijuridicidade
“não é necessária para a existência do dolo; se fosse, implicaria uma investigação
que, muitas vezes, invalidaria os preceitos penais”.163
No entanto, alguns doutrinadores propugnavam pela presença da consciência
da antijuridicidade no dolo. Carrara, por exemplo, conceituava o dolo como “intenção
160 REALE JUNIOR, 2000, p.129. 161 MUNHOZ NETTO, 1978, p.42. 162 LISZT, [19--], p.410 apud BRANDÃO, 2010, p. 229. 163 MANZINI, 1948, p.159 apud BRANDÃO, loc cit.
59
mais ou menos perfeita de praticar um ato que se sabe contrário à lei”, sendo
exigido apenas o conhecimento da lei em sua forma potencial.164
Há uma incongruência, ao nosso modo de pensar, em se aceitar a existência
do “dolus malus”, carregado de elemento normativo, de valoração e, ao mesmo
tempo, defender-se uma teoria psicologicamente neutra da culpabilidade.
De fato, prevaleceu o entendimento de que o dolo passa a ser considerado
natural, não mais sendo composto pela consciência da antijuridicidade, mas apenas
pela previsibilidade aliada à vontade da realização do fato. Há um abandono,
portanto, do conceito de dolo formulado pelos romanos.165
Para a teoria psicológica da culpabilidade, portanto, a causalidade se
encontrava caracterizada na tipicidade e na antijuridicidade. Por outro lado, o vínculo
subjetivo constituía a essência da culpabilidade. Desse modo, havia uma concepção
puramente objetiva do injusto.
Seguindo essa tendência, o sistema causal-naturalista acolheu, com base em
von Ihering, o conceito de antijuridicidade objetiva e, dessa concepção, alguns
adeptos do sistema, a exemplo de von Liszt, concluíram pela irrelevância do erro de
direito. Em se admitindo que a antijuridicidade é objetivamente determinada, por
meio de falso silogismo, conclui-se que são inadmissíveis erros incidentes sobre a
ilicitude.166
Entretanto, posteriormente, houve a descoberta de elementos subjetivos do
injusto, apontados por Hegler e Max Ernest Mayer, bem como desenvolvidos por
Mezger. Assim, a clássica bipartição do delito em parte objetiva (injusto) e parte
subjetiva (culpabilidade) não mais poderia ser sustentada.167
Perecebe-se, pois, que, à época da teoria psicológica da culpabilidade,
prevaleciam a antiga dicotomia romana “erro de fato-erro de direito” e o princípio
romano “error iuris nocet”, ou seja, o erro de direito era inescusável, com a exceção,
admitida em alguns países, ao erro de direito sobre lei extrapenal, que então era
equiparado ao erro de fato, tal como ocorria, por exemplo, na França, na Espanha e
na Alemanha.168
164 CARRARA, 1956 apud BRANDÃO, 2010, p. 230. 165 BRANDÃO, 2010, p. 230. 166 GOMES, 2001, p.41; 43. 167 Ibidem, p.40. 168 Ibidem, p. 42-44.
60
2.3 SISTEMA NEOCLÁSSICO DO DELITO E A TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE
Desde o seu surgimento, a dogmática jurídico-penal vem evoluindo de modo
a atender às exigências sociais de cada época. Assim, como as regras da natureza
já não mais satisfaziam as soluções de todas as questões, o sistema neoclássico
desponta com as regras de valores, influenciado pelas ciências humanas.
2.3.1 Influências
Como reação às concepções causais-naturalistas fundamentadoras do
sistema Liszt-Beling, exsurge a teoria teleológica do delito, ligada à teoria do
conhecimento da filosofia do neokantismo, revigorando o método da significação e a
valorização das ciências hermenêuticas. Cuida-se do abandono do naturalismo ou
positivismo para a inserção, no Direito Penal, do normativismo axiológico.169
Assim, verifica-se que o neokantismo, com base na supervalorização do
dever ser, por meio da introdução de considerações axiológicas, acaba por substituir
o positivismo-naturalista. A ciência do Direito, diferentemente das ciências naturais,
preocupa-se com os “fins” e não com as “causas”. Em razão disso, há uma
independência entre elas. Ao lado das ciências naturais, mas separadamente delas,
cabe ao Direito promover e construir uma ciência de fins humanos.170
Sucede que as questões da vida em sociedade não mais poderiam ser
solucionadas pelas leis da natureza. O sistema neoclássico do delito visa a
compreender os fatos, atribuindo-lhes finalidades e valores. Sendo assim, a conduta
passou a ter um significado social, e não um mero movimento corporal.
2.3.2 Reinhard Frank e a Normalidade das Circunstâncias Concomitantes
Reinhard Frank é considerado o fundador da teoria normativa da
culpabilidade,171 também denominada de psicológico-normativa, por ter concebido,
169 GOMES, 2001, p.60. 170 MASSON, 2010, p.72. 171 BITENCOURT, 2006, p.420; TOLEDO, 1994, p.223.
61
no início do século XX, a culpabilidade como reprovabilidade da conduta típica e
ilícita.
Entretanto, Frank também admitiu a culpabilidade como relação psíquica
entre o agente e o resultado delituoso, por meio dos elementos psicológicos
traduzidos no dolo e na culpa. Sendo assim, a culpabilidade passa a ser tida como
uma relação psicológica e um juízo de reprovação.
O dolo e a culpa, por conseguinte, deixam de ser espécies da culpabilidade,
para se tornarem elementos dela, insuficientes para completarem o seu conceito, já
que também se exigem a imputabilidade e a normalidade das circunstâncias
concomitantes do fato punível. Além disso, o dolo exige a consciência da
antijuridicidade, constituindo-se em elemento psicológico-normativo da culpabilidade.
O dolo, para a teoria psicológico-normativa, é considerado como “vontade e
previsibilidade aliadas ao elemento normativo consciência da antijuridicidade”.172 Há
uma censura ao fato em razão de o indivíduo ter podido conhecer a ilicitude de sua
vontade. Assim, o dolo se constitui não apenas pela consciência e vontade de
realizar os elementos integrantes do tipo, mas também pela consciência atual do
injusto.
Não se pode olvidar que a obra de Frank de 1907 (Sobre a estrutura do
conceito de culpa) refletiu a tendência da dogmática penal, desde o início do século
XX, da superação do positivismo-naturalista pela metodologia neokantiana do
chamado “conceito neoclássico do delito” e da substituição de conceitos
naturalísticos e descritivos por conceitos normativos e valorados da culpabilidade.173
Reinhard Frank inicia o seu trabalho criticando a concepção psicológica da
culpabilidade e aduz que o posicionamento de von Liszt traduz-se num círculo
vicioso, tendo em vista que, à indagação de quando uma pessoa é penalmente
punível por seu comportamento, responde-se: quando seu comportamento é
culpável. E à pergunta sobre quando seu comportamento é culpável, responde von
Liszt: quando a pessoa é responsável por seu comportamento.174
Frank adverte que deve ser observado o uso da linguagem cotidiana em
comparação com o significado jurídico e nos oferece o exemplo de um caixa de uma
casa comercial e de um carteiro encarregado de fazer entrega de um dinheiro, os
172 BRANDÃO, 2010, p.231. 173 FRAGOSO, 1995, p.195; BITENCOURT, 2006, p.422. 174 FRANK, 2000, p. 26.
62
quais cometem, separadamente, o delito de apropriação indébita. Ocorre que o
primeiro dispõe de boa condição financeira, não tem família e tem custosas
amantes. O segundo recebe um módico salário, sua mulher está enferma e tem
vários filhos pequenos. Apesar de ambos saberem que se apropriam ilicitamente de
dinheiro alheio e de não haver diferença alguma com relação ao dolo, todos dirão
que a culpabilidade do caixa é maior.175
Percebe-se, por essa passagem, a preocupação de Frank com os valores
sociais, com o que o povo concebe como culpabilidade, diferentemente da
culpabilidade do sistema causalista, que era considerada de acordo com as regras
da natureza. Para Frank, importam as regras sociais, ou, melhor dizendo, da cultura.
Segundo o autor, a linguagem comum e o fato de os tribunais considerarem
as circunstâncias concomitantes, para atenuar ou aumentar a culpabilidade, a
normalidade das circunstâncias em que atua o agente também deve integrar o
conceito de culpabilidade. Frank também critica a concepção de que imputabilidade
seja pressuposto da culpabilidade, porque um enfermo mental pode querer a ação e
concretizar o delito (agir com dolo). Nessa medida, Radbruch já discordava do
entendimento segundo o qual a imputabilidade seria pressuposto da culpabilidade.
Radbruch considerava a imputabilidade não como culpabilidade, mas como
capacidade de pena, segundo preleciona Frank.176
Diferentemente de Radbruch, entende Frank que a imputabilidade faz parte
da culpabilidade e aponta como uma das vantagens dessa interpretação a doutrina
da participação, visto que o inimputável partícipe da infração penal é inculpável em
razão de sua inimputabilidade. Porém, sua atuação é considerada no sentido
jurídico, por ter praticado o fato delituoso com dolo ou culpa.177
Diante do expendido, verifica-se que, para Reinhard Frank, a culpabilidade se
forma pela concorrência dos seguintes elementos: a) dolo ou culpa; b)
imputabilidade; c) normalidade das circunstâncias em que atua o agente.
Apesar de Frank ter estruturado o conceito de culpabilidade de forma
condizente com o juízo de valor negativo sobre o autor, ou seja, de acordo com uma
concepção normativa, nota-se que não houve um desenvolvimento detalhado do que
175 FRANK, 2000, p. 28. 176 Ibidem, p.35. 177 Ibidem, p.36.
63
seja “reprovabilidade”, como também o termo “normalidade das circunstâncias
concomitantes”178 é dotado de muita vagueza.
Ademais, Frank recebeu críticas da doutrina alemã, no sentido de que o
elemento “circunstâncias anormais” é estranho ao agente e, por isso, não pode ser
considerado na normatização da culpabilidade. Ante tais críticas, Frank modificou a
sua concepção, “excluindo a normalidade das circunstâncias como elemento da
culpabilidade, substituindo-a pela relação entre as circunstâncias e o agente, o efeito
delas sobre este”.179 Então, a denominada “normalidade das circunstâncias” passou
a ser chamada de “normalidade da motivação”.
James Goldschmidt tece críticas à admissão da “motivação normal” ou
“circunstâncias concomitantes” como elemento normativo da culpabilidade.
Segundo o autor, a “motivação normal” é um elemento psíquico da culpabilidade,
assim como a imputabilidade, o dolo e a culpa. Para Goldschmidt, a característica
“normativa” da culpabilidade deve ser sempre uma vinculação normativa do fato
psíquico.180
Assim, Goldschmidt não apenas criticou o conceito de culpabilidade de Frank,
no sentido de que não era puramente normativo, como também trouxe uma
definição de reprovação com base na violação de uma norma de dever, conforme
traçaremos no tópico seguinte.
2.3.3 Goldschmidt e a distinção entre norma jurídica e norma de dever
Goldschmidt desenvolveu a teoria psicológico-normativa, fundamentando o
conceito normativo de culpabilidade na diferença entre “norma jurídica” e “norma de
dever”. Para o autor, norma jurídica relaciona-se com a antijuridicidade, é de caráter
objetivo e geral. A norma de dever é independente da norma jurídica e se vincula à
culpabilidade, sendo de caráter subjetivo e individual. Segundo ele, “ao lado de cada
norma de direito que determina a conduta exterior, há uma norma de dever que
exige uma correspondente conduta interior”. Assim, o autor traz a vontade contrária
178 Impende informar que Frank, na 8ª – 10ª edição de sua obra modifica a expressão
“circunstâncias normais concomitantes” para “motivação normal” apud GOLDSCHMIDT, 2002, p.84).
179 REALE JUNIOR, 2000, p.132. 180 GOLDSCHMIDT, 2002, p.87-88.
64
ao dever para a construção do conceito de culpabilidade. A norma de dever impõe
ao indivíduo motivar sua conduta conforme a representação que tenha da
possibilidade de ela estar proibida pela norma jurídica.181
Note-se que, no tocante aos elementos da culpabilidade traçados por Frank
(dolo ou culpa, imputabilidade e “motivação normal”), Goldschmidt considera-os
como pressupostos da culpabilidade. Esta se dá apenas em razão da vontade
contrária ao dever.182
No que diz respeito à doutrina brasileira, Reale Júnior critica a dicotomia
estabelecida por Goldschmidt entre norma de direito e norma de dever, assinalando
que a norma jurídica não se refere apenas a comportamentos exteriores, já que ela
se impõe como um valor, um dever ser. A imperatividade da norma constitui a sua
própria razão de ser, senão vejamos:
O direito impõe valores e se impõe como valor. Assim sendo, a norma jurídica não proíbe apenas comportamentos exteriores, nem a determinação à obediência pode ser fixada autonomamente, pela norma de dever, que deve coexistir ao lado da norma jurídica. A imperatividade da norma não é autônoma, mas constitui a sua própria ratio essendi.183
2.3.4 Berthold Freudenthal e a inexigibilidade de conduta diversa
Berthold Freudenthal foi o terceiro autor que contribuiu para a elaboração da
teoria psicológico-normativa, pois que elencou a inexigibilidade de conduta diversa
na formulação do juízo de censura. Para Freudenthal, a exigibilidade de um
comportamento conforme o direito era o elemento que diferenciava a culpabilidade
da inculpabilidade.
O autor, assim como fez Reinhard Frank e com base num sistema teleológico
referido a valores, compara a culpabilidade na linguagem dos leigos com a dos
juristas e, segundo Freudenthal, aqueles consideram insuportável a condenação de
um inocente. Porém, algumas vezes, os juristas declaram culpável o sujeito que, na
linguagem do povo, nada poderia ter feito, ou seja, agiu como qualquer outro teria
feito no seu lugar. Para Freudenthal, o povo aceita tais condenações porque lhe são
inacessíveis os conceitos técnicos do Direito Penal, que se converte em uma ciência
181 GOLDSCHMIDT, 2002, p.90-91; BITENCOURT, 2006, p.421; BRUNO, 2005, p.17. 182 GOLDSCHMIDT, op. cit., p.86. 183 REALE JUNIOR, 2000, p.135.
65
oculta. Contudo, tal aceitação não pode ser feita pelo Estado e cabe aos juristas
evitar o deplorável abismo entre o povo e o Direito.184
Nesse sentido, pode-se dizer que o instituto do erro de proibição pode ser
apontado como um exemplo específico, por vezes, do descompasso existente entre
a produção normativa e a sua recepção pelos destinatários. Relação que será mais
bem explorada em posterior análise a ser efetuada no bojo deste trabalho.
Retomando a exposição, constata-se que Freudenthal buscou diminuir a
distância entre a consciência popular e a legislação por meio do elemento normativo
da exigibilidade de conduta conforme o direito quando o agente deveria e poderia
agir de outra forma.
Freudenthal aponta decisões do Tribunal Supremo da Alemanha, nas quais
seus membros declararam que o pressuposto da admissão da culpa reveste-se na
dúplice comprovação: por um lado, objetiva, respeitante ao cuidado devido; por
outro, referente à evitabilidade subjetiva. Além disso, comenta decisões segundo as
quais a exigibilidade de não execução do fato é questão que tem de ser estabelecida
em concreto, de maneira individualizada.185
Para o autor, a sua teoria não é mais do que a concretização do princípio
impossibilium nulla est obligatio (nula é a obrigação impossível) no âmbito da
doutrina jurídico-penal do dolo.186
A concepção de Freudenthal foi objeto de muitas críticas, em razão da
vaguidade do critério para se determinar a exigibilidade ou não da conduta, tais
como a consciência popular e os valores sociais, contrariando a segurança da
ordem jurídica. Nessa linha de intelecção, cumpre transcrever o pensamento de
Aníbal Bruno no sentido de que a aplicação indiscriminada da inexigibilidade de
conduta diversa como causa de exclusão da culpabilidade pode contrariar a
capacidade humana de resistir à pressão dos fatos e, por fim, vai de encontro à
segurança da ordem jurídica:187
O princípio de não exigibilidade, se aplicado com tal indiscriminação, adquiriria amplitude incompatível com os fundamentos do Direito Penal, resultando, por fim, um critério anárquico, contrário à necessária segurança da ordem jurídica. Devemos concordar com MEZGER em que o Direito exige necessariamente esforços e
184 FREUDENTHAL, 2003, p.63-64. 185 Ibidem, p.92-94. 186 bidem, p.98. 187 BRUNO, 1959, p.105. Neste sentido: REALE JUNIOR, 2000, p.136.
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sacrifícios para que se evite a prática de crimes. A não exigibilidade de conduta diversa supõe que a ocorrência excede a natural capacidade humana de resistência à pressão dos fatos, pois se o Direito não impõe heroísmos, reclama uma vontade anticriminosa firme, até o limite em que razoavelmente pode ser exigida de um homem normal.
2.3.5 A concepção normativa de Edmund Mezger
Edmund Mezger, a partir de 1923, tornou-se adepto da teoria normativa da
culpabilidade e foi quem forneceu os contornos definitivos à concepção normativa.188
Mezger conceitua a culpabilidade como “o conjunto daqueles pressupostos da pena
que fundamentam, frente ao sujeito, a reprovabilidade pessoal da conduta
antijurídica. A ação aparece, por isso, como expressão juridicamente desaprovada
da personalidade do agente”.189
Assim, apresenta Mezger a culpabilidade como um juízo valorativo sobre a
situação fática da culpabilidade. Esse juízo refere-se à concepção normativa da
culpabilidade. Segundo o autor, o juízo sobre a situação fática da culpabilidade é
externo à psique do agente, ou seja, cuida-se de um juízo de referência, que se
traduz na imissão de uma valoração sobre o fato praticado. A soma da situação
fática da culpabilidade com o juízo de valor consubstancia-se na culpabilidade como
reprovabilidade. Cumpre trazer à colação os dizeres de Mezger sobre a concepção
normativa da culpabilidade:
A culpabilidade jurídico-penal é, antes de tudo, uma determinada situação de fato, de ordinário psicológica (situação fática da culpabilidade), na qual se conecta a reprovação contra o autor e, consequentemente, a pena que tem de lhe ser aplicada. Neste sentido, a culpabilidade significa um conjunto de pressupostos fáticos da pena situados na pessoa do autor; para que alguém possa ser castigado, não basta que tenha procedido antijurídica e tipicamente, mas é preciso também que sua ação lhe seja pessoalmente reprovada [...] Todavia, a culpabilidade é também, ao mesmo tempo e sempre, um juízo valorativo sobre a situação fática da culpabilidade (a chamada concepção normativa da culpabilidade) [...] A culpabilidade não é, portanto, apenas a situação fática da culpabilidade, mas esta situação fática como objeto de reprovação da culpabilidade [...] Este reconhecimento de que a culpabilidade jurídico-penal não é uma situação de fato psicológica, mas uma situação fática valorizada
188 TOLEDO, 1994, p.223. 189 MEZGER, 1949, p.01-02.
67
normativamente, se designa com o nome de concepção normativa da
culpabilidade.190
Dessa maneira, percebe-se que Mezger traça a culpabilidade a partir de um
ponto de vista puramente normativo, e não por dados de caráter ético ou subjetivo. A
definição de culpabilidade baseia-se na reprovabilidade de dado comportamento do
agente, isoladamente considerado.
Em se referindo à ação, segundo a lição de Mezger, ela é ontológica e
finalística, mas que deve ser valorada na culpabilidade, e não na tipicidade. Assim,
Mezger, em momento algum, nega que a ação, ontologicamente considerada, seja
um ato de vontade dirigida a um fim. Porém, para o autor alemão, o conteúdo da
vontade (ou seja, o que o sujeito quer conseguir com sua ação) somente deve ser
objeto de valoração na culpabilidade, sendo formas desta o dolo ou a culpa, com
exceção de alguns tipos delitivos, em que o legislador tenha interesse em dar
relevância penal à conduta, ante a presença de dadas finalidades, motivações ou
desejos.191
Nessa medida, responde Assis Toledo, com base na concepção de Mezger,
às perguntas “o que é a culpabilidade?” e “onde ela se encontra?” da seguinte
maneira:
a)culpabilidade é um juízo de valor sobre uma situação fática de ordinário psicológica; b)os seus elementos psicológicos (dolo ou culpa) estão no agente do crime, mas o seu elemento normativo está no juiz, não no criminoso.192
Esse trecho do texto de Assis Toledo representa uma das grandes críticas à
concepção de Mezger, haja vista que o autor alemão retirou a culpabilidade do
psiquismo do réu para situá-la na cabeça do juiz.193
Realmente, cabe ao juiz realizar a valoração normativa da culpabilidade,
entendida como uma situação fática objeto de reprovação, apesar de os elementos
psicológicos estarem no agente. Reprova-se a situação, e não o homem por ter
cometido a conduta delituosa.
Insere Mezger o dolo e a culpa como duas formas ou elementos de
culpabilidade, e não mais como espécies dela, tal como pretendia Frank.
190 MEZGER, 1949, p.03-05. 191 MEZGER, 1958, p.87-89; MUÑOZ CONDE, 2001, p.82-83. 192 TOLEDO, 1994, p.224. 193 Rosenfeld e Antolisei apresentaram críticas neste sentido (TOLEDO, loc. cit).
68
Juntamente com o dolo ou a culpa, integram a culpabilidade: a imputabilidade e a
ausência de causas de exclusão da culpabilidade.194
No que concerne ao dolo, aduz Mezger que “actúa dolosamente el que
conoce las circunstancias de hecho y la significación de su acción y ha admitido en
su voluntad el resultado”.195 Dessa forma, há uma formação dupla do dolo, com um
elemento emocional, qual seja, o querer, e um elemento intelectual, que é a
consciência da antijuridicidade da ação.
Mezger prescreve que o então vigente artigo 59 do Código Penal alemão
exige apenas o conhecimento dos pressupostos do delito e não as consequências
dele. Assim, para o autor, não é necessário conhecer a punibilidade da ação para
que haja o dolo. Basta o conhecimento da significação antijurídica da ação, pois,
segundo a lição de Mezger, “sólo comete dolosamente la acción el que há captado
totalmente, por completo, la significación de la misma; y a ello pertenece sin duda el
saber la significación que la atribuye, al castigarla, el ordenamento jurídico”.196
No que tange à culpa, apenas existente nos casos dispostos em lei, leciona
Mezger que “actúa culposamente el que infringe un deber de cuidado que
personalmente le incumbe y puede prever la aparición del resultado”.197
Além do dolo ou da culpa, para que uma conduta seja culpável, exige-se a
imputabilidade e, segundo Mezger, “es imputable el que posee al tempo de la acción
las propriedades personales exigibles para la imputación a título de
culpabilidade”.198
Explica o autor que a pena deve adaptar-se às peculiaridades da pessoa do
sujeito da infração penal. Ressalte-se que há alguns pressupostos da
imputabilidade, a saber: a) que o sujeito tenha completado quatorze anos no
momento da execução da ação; b) que o jovem maior de quatorze, mas que ainda
não tenha completado dezoito anos, seja capaz, ao tempo do ato, de acordo com
seu desenvolvimento intelectual e moral, de dar-se conta do caráter contrário à lei de
sua conduta e de conformar sua vontade a referido conhecimento; c) que todo autor
194 Nas palavras de Mezger: “Según el Derecho positivo, actúa culpablemente 1. El
imputable que 2. Actúa dolosa o – em los casos especialmente determinados – culposamente y 3. Em cuyo favor no existe ninguna causa de exclusión de la culpabilidade.”( MEZGER, 1949, p.37).
195 Ibidem, p.91. 196 Ibidem, p.139-140. 197 Ibidem, p.171. 198 Ibidem, p.58.
69
de uma conduta tipicamente antijurídica, quer seja jovem, quer seja adulto,
encontre-se, ao tempo da execução do ato, em um estado de “consciência e de
saúde de espírito” que garanta sua livre determinação de vontade.199
Igualmente, a culpabilidade, para Mezger, exige que o agente não tenha
atuado sob o amparo de uma das causas de exclusão de culpabilidade, que poderão
ser as causas específicas de exclusão reconhecidas pela lei, a exemplo do excesso
de legítima defesa, e do estado de coação. Além das causas dispostas em lei,
constitui-se em causa geral que exclui a culpabilidade a inexigibilidade de conduta
distinta da realizada.200
Por fim, cumpre mencionar que, tentando resolver o problema prático da
responsabilidade dos criminosos habituais, criou Mezger o conceito de
“culpabilidade pela condução de vida”, a fim de possibilitar a atribuição de culpa
àquele que agisse dolosamente, mas sem ter tido a atual consciência da ilicitude. O
sujeito responde criminalmente em razão de sua culpa na formação do caráter, do
modo de condução da sua vida.
A tentativa de Mezger para solucionar a questão dos criminosos habituais ou
por tendência deve ser rechaçada, em razão de ele ter retomado a culpabilidade
exclusivamente do autor, por meio da qual se busca reprovar o agente, e não o fato,
considerando sua vida anterior ao ato delituoso e analisando a sua personalidade.
Ou seja, pune-se o agente pelo que ele é, não pelo que ele fez.
2.3.6 Teoria psicológico-normativa e a dignidade da pessoa humana
Apesar das sérias críticas dispensadas às ideias dos penalistas que
desenvolveram a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, como também ao
fato de que essa concepção encontra-se superada, tanto no mundo, quanto no
Brasil, cumpre mencionar seus influxos positivos.
Ocorre que a referida teoria contribuiu decisivamente para a construção de
um conceito de culpabilidade com base na dignidade da pessoa humana, como se
infere da ideia de reprovabilidade de Frank; a inserção da violação à norma interna
de dever, de Goldschmidt; a inexigibilidade de Freudenthal; assim como da
revalorização da consciência da ilicitude. Conforme preleciona Sebástian Mello, as 199 MEZGER, 1949, p. 59. 200 Ibidem, p.191-205.
70
citadas concepções “exigiam o valor da justiça na imposição da pena a um indivíduo
concreto, permitindo uma individualização da imputação, ao revés do que ocorria
com o positivismo de von Liszt, que negava o livre arbítrio e fundamentava a pena
na defesa social”.201
No entanto, aduz o autor que tais postulados não são suficientes para a total
concretização da dignidade humana no âmbito penal, em virtude, principalmente, de
suas concepções generalizantes, as quais se fundam na ideia de homem médio:
Portanto, percebe-se que o normativismo neokantiano – sobretudo Frank, Goldschmidt e Freudenthal – representa um avanço na consideração da pessoa; além disso, ela cumpre uma missão individualizadora da culpabilidade, revelando uma valorização do indivíduo perante o Estado. No entanto, seus postulados ainda são insuficientes para a concretização plena da dignidade humana em Direito Penal, sobretudo em suas concepções generalizantes, que fundam o juízo de censura e de poder atuar de outro modo na abstração representada pelo homem médio.202
De fato, vivemos numa sociedade multicultural, na qual deve haver um
respeito às diferenças entre as pessoas e não reduzi-las a uma identidade,
infringindo a dignidade da pessoa humana e a própria noção do princípio
constitucional da igualdade, cuja aplicação deve adotar como ponto de partida a
desigualdade. Atualmente, no Direito Penal do Estado Democrático de Direito, a
discussão dos limites da intervenção penal deve ter como ponto fulcral a dignidade
da pessoa humana, fundamento do Estado Brasileiro constante no artigo 1º, inciso
III, da Constituição Federal de 1988.
2.4 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DO DOLO
A consciência da ilicitude ganha especial relevo para a estrutura do delito com
a visão psicológico-normativa da culpabilidade, por meio do desenvolvimento de
duas teorias do dolo: a estrita e a limitada, explicitadas a seguir.
201 MELLO, 2010, p.153. 202 Ibidem, p.154.
71
2.4.1 Teoria estrita do dolo
Segundo a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, conforme já
afirmado, o dolo, que se situa na culpabilidade, é normativo, ou seja, a consciência
da ilicitude consubstancia-se em parte integrante do dolo, e não em elemento
autônomo da culpabilidade (tal como ocorre atualmente). Desse modo, o sujeito
apenas pode atuar de forma dolosa se tiver consciência da ilicitude de sua conduta.
Daí surge a teoria estrita, extrema ou extremada do dolo.
Para essa concepção, o erro adquire um tratamento unitário, a saber,
constitui-se em causa excludente do dolo. A antiga dicotomia “erro de fato-erro de
direito” não mais subsiste em suas consequências, já que tanto o erro de fato quanto
o erro de direito excluem o dolo, o primeiro por faltar ao agente a consciência e a
vontade de perpetrar o fato previsto em lei como crime, o segundo por faltar ao
agente a consciência da ilicitude. Não mais prevalece, então, o princípio de que o
erro de direito é irrelevante. Assim, se o erro for inevitável, não há responsabilidade
penal; se for evitável, pode haver a condenação por culpa.203
Conforme a teoria estrita do dolo, o conhecimento da antijuridicidade deve ter,
do ponto de vista psicológico, o mesmo caráter e intensidade que o conhecimento
de qualquer outro dado configurador do fato delitivo, quer seja um simples elemento
descritivo do tipo, quer seja um elemento normativo ou um pressuposto objetivo de
uma causa de justificação. O conhecimento de todos esses dados, incluindo o da
antijuridicidade, tem que ser atual e referente ao momento do fato.204 Assim, o
elemento normativo do dolo é a atual e real consciência da ilicitude da conduta
perpetrada pelo agente.
A teoria estrita do dolo trouxe a importância da consciência da ilicitude para
a responsabilidade penal, tal como fizeram os antigos romanos, com a diferença de
que, agora, trata-se de uma sistematização teórica, e não apenas de resolução de
questões particulares. Como bem expõe Muñoz Conde, não se pode discutir o
mérito dessa teoria de ter sido a primeira a colocar em relevo a necessidade, por
considerações intrassistemáticas e político-criminais evidentes, de exigir o
203 MOTTA, 2009, p.41-42. 204 MUÑOZ CONDE, 2003, p.25.
72
conhecimento da antijuridicidade como requisito imprescindível para a imposição de
uma pena.205
No entanto, a teoria estrita do dolo contém inúmeras falhas. O seu principal
problema consiste na lacuna decorrente de algumas hipóteses de erro de proibição
evitável. No caso de o erro de proibição ser evitável, haveria a exclusão do dolo,
mas subsistiria a responsabilidade penal a título de culpa, se houvesse a previsão
da figura típica culposa.
Todavia, como cediço, nem todas as infrações penais possuem a modalidade
culposa expressamente estabelecida. Nesses casos, em razão da falta de
conhecimento atual da ilicitude e da ausência de previsão da figura típica culposa,
haveria a impunidade do autor, mesmo em se tratando de erro plenamente evitável.
Além disso, delitos de maior gravidade poderiam ficar sem resposta penal, em
virtude da ausência dos correspondentes tipos culposos.
Outra relevante objeção apontada à teoria estrita do dolo diz respeito ao
inconveniente de se demonstrar a atualidade do conhecimento da antijuridicidade. O
delinquente habitual ou o profissional que faz da delinquência seu meio de vida, por
exemplo, apenas em raras ocasiões, leva em consideração a antijuridicidade de seu
ato no momento de realizá-lo, ainda que tenha uma consciência geral da
“anormalidade” de sua forma de vida. A aplicação coerente da teoria estrita do dolo
conduziria, também nestes casos, a impunidades improcedentes.206
2.4.2 Teoria limitada do dolo
Diante das inúmeras críticas dirigidas à teoria estrita do dolo, seus próprios
defensores, a exemplo de Mezger, ampliaram seus conceitos, com o propósito de
solucionar os problemas práticos existentes. Surge, então, a teoria limitada do dolo,
que trouxe, na verdade, restrições à teoria estrita do dolo. Entretanto, grande parte
dos problemas já existentes na teoria extremada do dolo permaneceu sem solução
na teoria limitada.
205 MUÑOZ CONDE, p.26. 206 Ibidem, 2003, p.32.
73
Vale notar que a teoria limitada do dolo encontra seu ponto de partida no
Projeto Gürtner de 1936, cujo texto declarava:207
Atua dolosamente quem leva adiante o fato com consciência e vontade, sendo consciente de praticar o injusto ou de infringir a lei [...] O erro é irrelevante se se baseia em uma atitude que é incompatível com uma concepção sana de Direito e injusto [...] Atua por culpa o sujeito que desconhece que sua conduta é antijurídica ou antilegal [...]
Mezger, defensor da teoria limitada do dolo, introduziu o “estado de inimizade
ou de cegueira ao direito” para corrigir a impunidade decorrente da teoria estrita.
Para a teoria limitada, o erro evitável exclui o dolo, subsistindo a responsabilidade a
título de culpa, com a exceção de o erro derivar de uma cegueira jurídica, já que,
neste caso, subsiste a responsabilidade a título de dolo. Trata-se, portanto, de um
dolo fictício.208
Posteriormente, a teoria limitada do dolo passou a considerar que a
consciência da ilicitude não mais precisaria ser atual ou real, sendo suficiente a
potencial consciência da ilicitude para a reprovação do erro do agente sobre a
ilicitude dos fatos.
Segundo dispõe Muñoz Conde, o conceito de “inimizade ou cegueira jurídica”
é impreciso e pouco adequado para descobrir a atitude mais ou menos
despreocupada que muitos delinquentes demonstram em relação às normas
jurídicas.209 Além disso, nota-se que a presunção do dolo nas hipóteses de “cegueira
jurídica” cria uma espécie da denominada “culpabilidade pela condução da vida”, a
qual se incompatibiliza com a culpabilidade pelo fato.
Ocorre que o Direito Penal moderno passou a girar em torno do fato
perpetrado pelo agente, e não de sua personalidade, significando uma grande
conquista da humanidade, pois longo foi o período durante o qual a pessoa
respondia mais pelo que era do que pelo fato que cometeu. Referida mudança se
deveu, principalmente, ao princípio da culpabilidade, o qual preceitua que o indivíduo
apenas pode ser considerado culpado em relação a determinado fato ilícito.
Ademais, a teoria limitada do dolo não preencheu as lacunas de punibilidade,
especialmente as que decorrem da ausência de disposição legal da modalidade
culposa quando há o erro de proibição evitável.
207 CÓRDOBA RODA, 1962, p.108-109. 208 MOTTA, 2009, p.43. 209 MUÑOZ CONDE, 2003, p.33.
74
Verifica-se, então, que as teorias do dolo não lograram êxito, tendo em vista
que a sua aplicação resulta em muitos casos de impunidade e, por conseguinte, de
injustiça.
O desenvolvimento da doutrina finalista da ação desencadeou na formulação
das teorias da culpabilidade, as quais passam a considerar a consciência da ilicitude
como elemento autônomo do juízo de culpabilidade. Portanto, faz-se oportuno o
estudo sobre o sistema finalista de ação e as suas conseqüências para a teoria do
delito, especialmente para o desenvolvimento do conceito de culpabilidade.
2.5 O SISTEMA FINALISTA E A TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE
Na segunda metade do século XX, a teoria finalista rompe com a tradição do
Direito Penal, com o abandono do conceito causal de ação para a defesa de um
conceito final e a consequente retirada de todos os elementos subjetivos da
culpabilidade que a integravam até então, principalmente em decorrência dos
estudos desenvolvidos por Alexander Graf zu Dohna, Hellmuth von Weber e Hans
Welzel.
2.5.1 Precursores do sistema finalista
Graf zu Dohna e Hellmuth von Weber foram os precursores da teoria finalista
da ação, mas expuseram manifestações isoladas, das quais não se pode extrair
resultados dogmáticos para a construção de um novo sistema jurídico penal. Mas foi
Hans Welzel quem sistematizou e divulgou a teoria finalista da ação.210
Dohna apresenta a famosa distinção entre objeto da valoração e valoração do
objeto. Para o autor, a vontade de ação (dolo) é o objeto da valoração. Já o juízo de
antijuridicidade e o juízo de culpabilidade são encontrados ante o resultado de uma
valoração.211 Assim, Dohna reduz o conceito de culpabilidade e o de antijuridicidade
à valoração do objeto; e o de dolo ao objeto de valoração. Verifique-se o
ensinamento do autor:
210 JESCHECK, 1993, p.191 apud PACHECO, 2009, p.113. 211 TOLEDO, 1994, p.230; MACHADO, 2010, p.69.
75
Primordialmente, todo delito é uma ação, pois unicamente uma ação humana pode ter, hoje, como conseqüência, uma pena. Não se pode chegar a determinar o conceito de delito sem referir-se à característica „ação‟. Até que ponto a afirmação de que o delito é ação necessita ser retificada resultará de posteriores considerações. Do ponto de vista da valoração do objeto, apresentar-se-á, como segunda característica geral do delito, a antijuridicidade; como terceira, a culpabilidade. Com isso, chegamos ao seguinte resultado sintético: delito é ação antijurídica e culpável.212
Porém, não nos parece ter sido apenas essa a contribuição trazida por Graf zu Dohna. O autor também apresentou a ação como concreção de vontade, porquanto não são as características exteriores que determinam o delito como uma ação, tendo em vista que há delitos de pura atividade, que se traduzem em um movimento corporal sem resultado. Além disso, há os delitos de comissão por omissão, os quais produzem um resultado sem atividade corporal. Para o autor, a vontade da ação pode ser dirigida a produzir ou evitar a atividade corporal, conforme se depreende da sua lição:
Não é essencial ao delito um aspecto exterior perceptível pelos sentidos. Isso falta nos autênticos delitos de omissão. Por outro lado, os delitos de pura atividade se traduzem em um movimento corporal sem resultado, os delitos de comissão por omissão em um resultado sem atividade corporal e a grande massa dos delitos de resultado em uma associação de movimento corporal e resultado. Não são características exteriores as que fazem afirmar que o delito é ação, pois ação é concreção de vontade. Essa vontade pode ser dirigida a produzir ou a evitar a atividade corporal. Tomadas nesse sentido, ação e omissão são formas de manifestar-se a ação.213
Hellmuth von Weber concebe uma interpretação unitária do normativismo na
culpabilidade. Para ele, a reprovabilidade permanece na antijuridicidade da ação, ou
seja, “reprovamos o autor que se tenha comportado antijuridicamente”. O ato
culpável é caracterizado como o agir antijurídico de quem poderia ter se comportado
conforme o direito.214
Percebe-se a relevância do conceito de poder para definir a estrutura da
culpabilidade, por meio da evitabilidade do atuar antijurídico. Enquanto a
antijuridicidade corresponde a uma nota de dever, a culpabilidade refere-se a uma
212 Tradução livre do seguinte trecho: “Primordialmente, todo delito es uma acción, pues
unicamente uma acción humana puede hoy tener por consecuencia una pena. No se puede llegar a determinar el concepto del delito, sin referirse a la característica “acción”. Hasta qué punto la afirmación de que el delito es acción necessita ser rectificada, resultará de posteriores consideraciones. Desde el punto de vista de la valoración del objeto (IB), se presentará, como segunda característica general del delito, la antijuridicidade; como terceira, la culpabilidade. Com ello llegamos al siguiente resultado sintético: Delito es acción antijurídica y culpable”. (DOHNA, 1958, p.14.)
213 DOHNA, 1958, p.18. 214 QUINTANO RIPOLLÉS, 1959 apud MACHADO, 2010, p.71.
76
característica de poder, mais detalhada que a simples diferenciação entre o
elemento objetivo e o subjetivo. Ressalte-se que a noção de poder na evitabilidade
da conduta gira em torno das questões do livre-arbítrio e do determinismo, mesmo
porque só se pode evitar algo quando se é livre.215
2.5.2 Hans Welzel e o sistema finalista
Com o término da II Guerra Mundial, Welzel voltou a estudar a filosofia
finalista, que houvera iniciado na década de 30, e transformou a concepção de
tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade, por meio do conceito de ação final,
conforme verificaremos nesta exposição.
O sistema finalista não está fundamentado na causalidade, mas na vontade
humana, que dirige o resultado a um objetivo criminoso. Dessa forma, a “finalidade”
aparece como a pedra de toque do sistema penal, diferentemente do sistema
causal. A premissa objetiva (causal) deu lugar a um ponto de partida subjetivo
(vontade final humana). Não obstante a idealização oposta de ambas as
concepções, deve-se notar que elas se igualam por possuírem uma base
ontológica.216
A concepção de ação lastreada na atividade final humana não nasceu do
pensamento de Welzel, porquanto já havia sido considerada por Samuel von
Pufendorf (1636-1694) e suas raízes remontam a Aristóteles. Com efeito, Pufendorf
não entendia como ação humana qualquer movimento proveniente de um homem,
mas apenas aquele que é dirigido pelas específicas capacidades humanas, a saber,
o intelecto e a vontade.217
O finalismo concebeu que, ao tipo legal, pertence a vontade final reitora, na
forma de dolo, além de “outros elementos subjetivos requeridos pelo tipo respectivo,
tais como as intenções, tendências etc”.218
Sobre o conceito finalista de ação, aponta Maurach que sua origem se deve a
diversas causas, contudo aduz que ela se baseia em duas raízes ou troncos, uma
215 MACHADO, loc. cit. 216 OLIVÉ, 2011, p.46. 217 WELZEL, 1993, p.45. 218 MAURACH, Reinhart, 1966, p.31. O autor ainda anota que “A parte subjetiva do tipo
forma seu componente, a parte objetiva é seu componente causal, sendo o componente causal dominado e dirigido pelo componente final”.
77
de caráter psicológico-filosófico; a outra, de perfil dogmático jurídico-penal. Senão
vejamos:
A primeira raiz é de caráter filosófico e psicológico. É a reação contra o conceito naturalista ou causal da ação desenvolvido por LISZT e seus adeptos, que prosseguiu desenvolvendo-se sob a designação de “conceito social de ação”. Para apresentá-lo de forma exagerada, pode dizer-se que este conceito de ação não era em absoluto um conceito de ação, mas sim um “processo de causação”: “ação é igual à causação de um resultado típico”. A segunda raiz é produto do desenvolvimento da dogmática tipicamente jurídico-penal e, especialmente, da evolução necessária da doutrina do “tipo” inaugurada por BELING (1907).219
A teoria da ação final apresentou, então, um conceito ontológico de ação, já
que esta se consubstancia no processo dos fins propostos, como o estabelecimento
final das relações causais naturais. A tipicidade não se esgota na causalidade, mas
na atividade humana. O finalismo surge com base no entendimento de que o direito
deve, primeiramente, estudar a realidade, por meio de uma análise fenomenológica
para, depois, trazer considerações jurídicas. No que tange à estrutura ontológica da
ação, comenta Winfried Hassemer sobre a influência da filosofia fenomenológica:
Invocando a Filosofia fenomenológica (Hartmann, Scheler) ele baseou o sistema do fato punível na Ontologia, isto é, em uma estrutura compreensível do existente, do mundo. Esta estrutura não é resultado de uma “constituição da realidade”, nem resultado da intervenção humana, nem é constituída por pré-compreensões; ela está além do conhecimento humano e é acessível a este, e a verdade do conhecimento humano pode ser determinada nela.220
Para Welzel, o dolo não pode estar situado no juízo de culpabilidade, haja
vista que toda ação humana é dirigida a um fim e deve ser dotada de seu elemento
característico, ou seja, a intencionalidade, o seu finalismo, conforme se evidencia a
seguir:
Ação humana é exercício de atividade final. A ação é, por isso, acontecimento „final‟, não somente „causal‟. A „finalidade‟ ou o caráter final da ação se baseia em que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, obter, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade,
219 MAURACH, Reinhart, 1966, p.23. 220 HASSEMER, 2005, p.303. Note-se que, para Luiz Régis Prado, com base na obra
Introducción a la filosofia Del Derecho, de Hans Welzel, a origem do pensamento finalista é oriunda do filósofo Richard Hönigswald, bem como nos trabalhos dos psicólogos Karl Bühler, Theodor Erismann, Erich Jaensch, Wilhem Peters, e dos fenomenologistas P.F Finke e Alexander Pfänder, e não em Nicolai Hartmann, apesar de este ter contribuído, em momento posterior, na reformulação do seu pensamento. (PRADO, 2000 apud MACHADO, 2010, p.72). Já Maurach aponta a influência filosófica de Honigswald e Nicolai Hartmann para o trabalho de Welzel (MAURACH, 1966, p.26).
78
conforme seu plano, à consecução destes fins. Em virtude do seu saber causal prévio, pode dirigir os distintos atos de sua atividade de tal modo que oriente o acontecimento causal exterior a um fim e o determine finalmente.221
Retirou-se o dolo e a culpa strictu sensu da culpabilidade e os inseriu no
conceito de ação. Como corolário lógico, tais elementos passaram a se localizar no
tipo legal, tendo em vista que este é a descrição da ação proibida. Outra
consequência da posição de Welzel foi a de que os tipos passaram a ser
considerados como tipos dolosos ou tipos culposos.222
Importante mencionar que o finalismo excluiu a consciência da ilicitude do
dolo e a inseriu, como elemento autônomo, no conceito de culpabilidade, pondo
término ao antigo dolus malus dos romanos, o qual, segundo ensina Assis Toledo,
“já vivera muito e não mais correspondia às necessidades de um direito penal
moderno, impregnado de contribuições valiosas da criminologia”.223
Configurando a consciência da ilicitude como núcleo central da culpabilidade,
sintetiza-nos Jescheck:
Consciência do injusto configura o núcleo central da culpabilidade, pois a decisão de cometer o fato, com pleno conhecimento da norma jurídica a ele relativa, caracteriza, de modo mais claro, a deficiência que o autor sofre em sua atitude jurídica interna.224
Acentuando, também, a relevância da consciência da ilicitude, disserta
Jiménez de Asúa:
Resulta evidente que a exigência do conhecimento da injustiça do ato – entendida pelo agente como dever – é absolutamente imprescindível em qualquer teoria da culpabilidade, mas muito mais na normativa. Não poderíamos reprovar alguém que não tivera
221 Tradução livre do trecho da obra do autor: “Acción humana es ejercicio de actividad final.
La acción es, por eso, acontecer „final‟, no solamente „causal‟. La finalidad o el carácter final de la acción se basa em que el hombre, gracias a su saber causal, puede prever, dentro de ciertos límites, las consecuencias posibles de su actividad, ponerse, por tanto, fines diversos y dirgir su actividad, conforme a su plan, a la consecución de estos fines. En virtude de su saber causal prévio puede dirigir los distintos actos de su actividad de tal modo que oriente el acontecer causal exterior a um fin y así lo sobredetermine finalmente.” (WELZEL, 1993, p.39.)
222 Sobre os tipos dolosos e culposos, com base na lição de Hans Welzel, escreve Jiménez de Asúa que os dolosos são “auténticas acciones finalistas que desde la preparación del acto buscan su objetivo, y culposas que, si bien son um acontecimento „causal ciego‟, pueden y deben reputarse „acción‟ porque su efecto es „evitable finalmente‟” (JIMÉNEZ DE ASÚA, 1950, p.197.)
223 TOLEDO, 1994, p.228. 224 Tradução livre, JESCHECK, 1993, p.408.
79
consciência de que seu ato é contrário ao dever de respeitar a norma [...].225
No entanto, não foi apenas isso. O finalismo reelaborou o conceito normativo
e transformou a consciência da ilicitude em consciência potencial da ilicitude.
Segundo a visão finalista, para se atribuir reprovação a um ato, é suficiente que seu
autor tenha a possibilidade de saber que ele vai de encontro ao ordenamento
jurídico. De acordo com o ensinamento de Tavares, “esse conhecimento potencial é
representado pela capacidade concreta de o autor informar-se acerca da proibição
ou determinação jurídica com base em suas condições pessoais, onde, inclusive,
deve-se levar em conta seus defeitos e limitações”.226
A teoria normativa pura da culpabilidade, afastando o dolo da culpabilidade e
destituindo daquele a consciência da ilicitude, resultou, por exemplo, na
possibilidade de um inimputável praticar uma conduta dolosa. Foi também com a
teoria finalista de ação que a participação passou a ser possível somente em
condutas dolosas.
Ante o exposto, depreende-se que Welzel está, em princípio, de acordo com
todos os elementos da teoria psicológica e da teoria normativa da culpabilidade, mas
os considera mal distribuídos na estrutura do crime.227
Dessa feita, nota-se a grande contribuição da teoria finalista para a extração
dos elementos subjetivos da culpabilidade, dando origem a uma concepção
normativa pura.
De fato, houve um verdadeiro intercâmbio entre os elementos estruturais do
crime, tal como enunciou Assis Toledo.228 Para a teoria psicológico-normativa, a
culpabilidade pressupõe a imputabilidade e se forma pelos seguintes elementos: a)
dolo e culpa strictu sensu; b) possibilidade e exigibilidade de outra conduta; c)juízo
de censura ao autor, por não ter exercido, nas circunstâncias, a possibilidade. O
dolo, para essa concepção, compõe-se de: voluntariedade; previsão do fato;
consciência atual da ilicitude. Por seu turno, para a teoria normativa pura da
culpabilidade, esta se compõe de: a) imputabilidade; b) consciência potencial da
225 Tradução livre, JIMÉNEZ DE ASÚA, 1956, p.463. 226 TAVARES, 1980, p.83. 227 TOLEDO, 1994, p.226. 228 TOLEDO, loc. cit.
80
ilicitude; c) possibilidade e exigibilidade de conduta diversa; d) juízo de censura ao
autor por não ter exercido, quando podia, este juízo.229
Cabe asseverar que o sistema finalista coaduna-se tanto com um conceito
bipartido de crime (fato típico e ilícito), quanto com uma concepção tripartida (fato
típico, ilícito e culpável), sendo esta a atualmente mais aceita pelos penalistas e a
mais condizente com um Direito Penal do Estado Democrático de Direito. Ressalte-
se que a adoção da teoria bipartida de crime implica aceitação do conceito finalista
de conduta, tendo em vista que, na teoria clássica, o dolo e a culpa encontram-se na
culpabilidade e, desse modo, um sistema clássico e bipartido seria a consagração
da responsabilidade objetiva.
Pode-se afirmar que a teoria finalista funda-se na noção filosófica de que a
pessoa, em razão de sua condição de ser humano, possui um projeto de ação
orientado a determinados fins. Por esse motivo, há o reconhecimento do homem
como pessoa responsável, com dignidade, ou seja, possuidor de um valor intrínseco
mínimo que deve ser preservado, tais como a defesa da vida, da liberdade, do
patrimônio, dentre outros direitos.230
A culpabilidade compreendida como “reprovabilidade pessoal”, nos termos da
teoria normativa pura, obteve grande repercussão e acolhida pelos penalistas do
mundo e do Brasil, constituindo-se, até o momento presente, na concepção
dominante na doutrina.231 Menciona Hirsch que, atualmente, a teoria do injusto
229 Cuida-se dos elementos traçados por Assis Toledo (1994, p.226). Cumpre notar que a
maioria dos autores brasileiros trata a culpabilidade como sendo composta por três elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
230 Nesse sentido, leciona Fábio Guedes Machado (2010, p. 73) que de Welzel é a ideia “que o reconhecimento do homem como pessoa responsável é o pressuposto mínimo de uma ordem social que não quer se fazer valer do poder, destarte, ressalta com esta colocação a dignidade da pessoa humana.”
231 Enrique Bacigalupo afirmou sobre a aceitabilidade do finalismo na Argentina, com citação da obra de Ortega y Gasset: “Creo que, em este sentido, en la Argentina es posible hablar de uma generación del finalismo que, como diría ORTEGA Y GASSET, comenzaba en aquel tempo a vivir um momento de „iniciación y beligerância constructiva‟” (BACIGALUPO, 2006, p.70). Também Maurach referiu-se à ampla receptividade da teoria na Alemanha: “Pode-se dizer que, hoje em dia, aproximadamente um têrço dos penalistas alemães sustentam o conceito finalista de ação” (MAURACH, 1966, p. 22). Maurach ainda profere que “embora grande parte dos penalistas alemães não se mostre claramente a favor ou contra o conceito finalista de ação, estão absolutamente dispostos a reconhecer as consequências resultantes da nova doutrina” (MAURACH, loc cit.). Na Espanha, aponta José Cerezo Mir (2007, p.863) diversos adeptos desta concepção, tais como Córdoba Roda, Francisco Muñoz Conde-M García, Mir Puig, dentre outros.
81
pessoal é dominante na Alemanha, enquanto a “teoria da ação causal” é
majoritariamente rechaçada.232
Importante é a lição de Cláudio Brandão sobre a culpabilidade como juízo de
reprovação pessoal:233
Quando se diz que a culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal, diz-se que a mesma é um juízo que recai sobre a pessoa. Por isso dizer-se que a culpabilidade é o elemento mais importante do crime, porque o Direito Penal há muito abandonou a responsabilidade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva, para debruçar-se sobre a responsabilidade pessoal.
Assim, a culpabilidade está relacionada a uma visão do homem como pessoa. Para a
concepção finalista, o homem é visto como o ser capaz de decidir sobre a conduta que será
realizada. Parte-se, portanto, do pressuposto da liberdade de vontade humana para que se
alcance o juízo de reprovabilidade.
Sob a bandeira da teoria do injusto pessoal, tem sido aplicada,
principalmente, a classificação do dolo típico como elemento do injusto do delito
doloso e da contrariedade ao cuidado como elemento do injusto do delito culposo,
como também têm sido aceitas as teorias da participação e do erro de proibição
desenvolvidas pelo finalismo.234
Por fim, torna-se necessária a análise de algumas críticas desferidas ao
sistema finalista, objetivo do tópico seguinte.
2.5.3 Críticas ao sistema finalista
A despeito da relevância das contribuições oferecidas pelo sistema finalista
da ação em relação ao sistema causal, impende mencionar, ainda que, de maneira
perfunctória, a existência das principais objeções que lhe foram direcionadas, no que
diz respeito às suas consideráveis interpretações, tanto no que se reporta aos
elementos, como ao fundamento material da culpabilidade.
232 HIRSCH, 2007, p.84. 233 BRANDÃO, 2010, p.223. 234 Ibidem, p.223
82
2.5.3.1 A ontologia como fonte do Direito
A primeira grande objeção verbera que o finalismo pretende derivar decisões
jurídicas da ontologia, ou seja, a ontologia teria sido elevada à categoria de fonte do
direito. Tratar-se-ia o finalismo, segundo os críticos, de uma espécie de
representação jusnaturalista. Afirmam os críticos que “As soluções somente podem
ser extraídas das valorações, e não de meras considerações do Ser”.235
Essa objeção é combatida por Hans Joachim Hirsch, discípulo de Welzel.
Afirma Hirsch que o finalismo exige a observância às estruturas e ao conteúdo
concreto dos objetos aos quais está vinculado o ordenamento jurídico. Cuida-se,
aqui, apenas parcialmente de descobertas ontológicas, como, por exemplo, dos
conceitos de ação e de causalidade. Também são considerados os fenômenos
sociais gerais, a exemplo da culpabilidade.236
Considera Hirsch que, por essa razão, a concepção finalista de ação não
traça uma oposição entre o ontológico e o social-normativo, mas sim uma relação
entre as estruturas da matéria de regulação e o direito. O direito não inventa a
realidade que pretende regulamentar, todavia regula uma realidade dada. Welzel
nunca sustentou a fundamentação, usual entre os jusnaturalistas, de que os
resultados obtidos por sua metodologia derrogam os preceitos de direito positivo.237
Pode-se afirmar que, para Welzel, as elaborações científicas, enquanto
soluções corretas, mostram a necessidade eventual de reforma da legislação. Na
defesa do finalismo, assevera Hirsch que, se, da análise científico-dogmática, for
entendido que um preceito legal é objetivamente incorreto, em virtude da errônea
matéria de regulação, não significa para os finalistas que o preceito, em questão,
seja inválido, mas sim que a ciência reclama sua retificação.238
235 OLIVÉ, 2011, p.47. 236 HIRSCH, 2007, p.86. 237 Ibidem, p.86-87. 238 HIRSCH, loc. cit.
83
2.5.3.2 O livre-arbítrio em HANS WELZEL e o “poder atuar de outro modo”
O Direito Penal hodierno é baseado em uma ótica de liberdade normativa
pura, de modo que o indivíduo é considerado como detentor de uma liberdade de
autodeterminação.
Note-se que a concepção material de livre-arbítrio, segundo a qual o sujeito é
culpável quando, analisando-se de forma retrospectiva, poderia ter atuado de outra
maneira, é bastante criticada pelos penalistas nos dias atuais. Assim, o sujeito é
culpado quando pratica um ilícito penal à medida que poderia, no caso concreto, ter
dirigido sua vontade em conformidade ao direito, porém não o fez.
Em se referindo ao aspecto antropológico, cumpre observar que a liberdade
existencial é uma característica positiva e decisiva do homem, segundo o
entendimento de Hans Welzel. A capacidade de realizar ações finais é o primeiro
requisito essencial do homem e nela residem os pressupostos biológicos da
desvinculação dos impulsos.239
Hassemer argumenta que a Teoria Final da Ação, em sua origem, tem
relação com a ideologia nazista, tendo em vista que o conceito pessoal de ação e de
antijuridicidade, núcleos do pensamento finalístico, encontra um correspondente
contemporâneo e distorcido do “Direito Penal da vontade” criado pelo pensamento
penal nazista.240
Desde a década de 60 do século XX, momento em que as bases da teoria
normativa pura já tinham sido acolhidas pelos Tribunais da Alemanha, já havia
críticas e se buscava uma alternativa, no campo doutrinário, à tese de liberdade de
Welzel e o seu “poder atuar de outro modo”.
Uma das principais objeções ao livre-arbítrio de Welzel refere-se à falta de
demonstração empírica da possibilidade de alguém atuar de uma ou de outra
maneira. Nessa diretriz, Roxin propugna pelo fracasso dessa concepção, haja vista
que o pressuposto de uma liberdade de decisão, teoricamente concebível como um
“poder atuar de outro modo” do indivíduo não seria suscetível de constatação
científica, conforme veremos mais adiante neste trabalho.241
239 WELZEL, 2004, p.135-136. 240 HASSEMER, 2001, p.44. 241 ROXIN, 1997, p.799.
84
Buscando tratar a culpabilidade de modo diferente do exposto por Welzel e
evitando o problema do indemonstrável livre arbítrio humano, Roxin apresentou um
conceito funcionalista da culpabilidade, associando a necessidade da pena a uma
finalidade predominantemente preventiva, de acordo com o que apresentaremos em
tópicos adiante.
Sobre o assunto, Oswaldo Henrique Duek Marques e Marion Minerbo
desenvolveram um interessante estudo acerca da noção de liberdade sob o ponto
de vista da Filosofia do Direito e da Psicanálise.
Os autores iniciaram o artigo com a afirmação de que a experiência cotidiana
parece nos deixar em dúvida sobre a capacidade de o homem realizar escolhas
essenciais durante sua vida, já que muitas decisões são determinadas por pressões
externas ou por desejos inconscientes. A ausência de liberdade absoluta se afigura
ainda mais reduzida nos casos em que o indivíduo possui transtorno mental, quando
age sob coação psíquica, ou nas situações em que se encontra, na comunidade em
que vive, tolhido para desenvolver suas aptidões e sonhos. Segundo Duek e Marion,
a falta de uma absoluta liberdade “parece ser condição inerente à existência
humana”.242
Duek e Marion posicionam-se no sentido de que deve existir uma
conscientização da perspectiva ontológica de liberdade, não normativa, para que
haja não apenas novos enfoques sobre a culpabilidade, sobretudo no que se
relaciona à inexigibilidade de conduta diversa como causa excludente de
culpabilidade, como também para a humanização do Direito Penal, sem o
enfraquecimento das almejadas funções preventivas e ressocializadoras.243
Diante dos problemas insolúveis decorrentes da falta de demonstração
empírica da liberdade de atuar de outro modo, tornou-se necessário o
desenvolvimento epistemológico da culpabilidade, principalmente representado pelo
funcionalismo penal. Trataremos dessa dogmática jurídico-penal mais adiante neste
trabalho, após a análise da falta de consciência da ilicitude pela concepção finalista,
a qual ainda é a dominante nos dias atuais.
242 MARQUES, 2011, p.48. 243 Ibidem, p.52.
85
2.5.4 A distinção entre erro de tipo e erro de proibição
A teoria finalista da ação influenciou decisivamente para a distinção legislativa
entre erro de tipo excludente do dolo e o erro de proibição excludente da
culpabilidade (em hipóteses de inevitabilidade). A falta de direcionamento da ação
exclui o dolo, mas a falta de consciência do injusto na direção intencional (final e
dolosa) do curso causal apenas pode recair sobre a existência ou quantidade de
reprovação.244
Conforme leciona Assis Toledo, a teoria normativa pura trouxe uma grande
contribuição para o tema do erro, uma vez que ela está estreitamente ligada à
admissibilidade da escusabilidade de algumas hipóteses do antigo erro de direito:
“ou se aceita a culpabilidade normativa e, com ela, a escusabilidade de algumas
formas do erro de direito, ou se permanece sustentando a inescusabilidade do erro
de direito e, com isso, se rejeita uma das maiores conquistas da moderna ciência
penal”.245
Welzel, então, traçou a distinção entre erro de tipo e erro de proibição, no
sentido de que o primeiro se dá sobre uma circunstância objetiva do fato do tipo
legal, seja de caráter fático (descritivo) ou normativo. Erro de tipo é não apenas o
erro sobre a coisa, o corpo, a causalidade, mas também sobre o “caráter lascivo”,
“coisa alheia”, “documento”, “funcionário”. Exclui-se o dolo da realização típica,
havendo a possibilidade de que o agente seja castigado pelo ato culposo quando
para este havia previsão legal.246
Por outro lado, o erro de proibição é aquele que se dá sobre a antijuridicidade
do fato, com pleno conhecimento da realização do tipo. Se inevitável, exclui a
culpabilidade. Já o erro de proibição evitável funciona como causa de diminuição da
culpabilidade. No dizer de Welzel:
El error de tipo es el error sobre uma circunstancia objetiva del hecho del tipo legal: excluye el dolo de la realización típica (dolo de tipo). El autor puede ser castigado por hecho culposo, cuando este está sancionado com pena.
244 OLIVÉ, 2011, p.46. 245 TOLEDO, 1994, p.222. 246 WELZEL, 1993, p.197.
86
Error de prohibición es el error sobre la antijuridicidad Del hecho, com pleno conocimiento de la realización del tipo (luego, com pleno
dolo de tipo).247
Assim, o erro de tipo é aquele que recai sobre qualquer elemento constitutivo
do tipo, independente de sua natureza. Por sua vez, o erro de proibição é o que
incide sobre o caráter ilícito do fato.248 Verifica-se que a distinção entre erro de tipo e
erro de proibição tem por fundamento a diferenciação entre tipo e ilicitude, e não a
antiga oposição entre a situação de fato e o conceito jurídico.249
Não se pode confundir o antigo erro de fato com o atual erro de tipo, nem o
antigo erro de direito com o erro de proibição. Como vimos, o erro de fato teve sua
origem na dicotomia romana “erro de fato-erro de direito”, adotada, posteriormente,
pela teoria psicológica da culpabilidade. Essa modalidade de erro diz respeito àquele
que recai sobre a situação fática de um tipo penal. Já o atual erro de tipo possui uma
abrangência de significado maior, pois faz parte de seu contexto um erro que recai
não somente sobre os elementos fáticos, contidos no tipo penal, mas também sobre
os elementos normativos do tipo. Estes últimos são os que exigem um juízo de valor
(jurídico, ético, cultural, etc) para serem conhecidos. Na época em que prevalecia a
antiga dicotomia romana, o erro sobre os elementos normativos do tipo era tido
como erro de direito.250
Sobre o erro de tipo como abrangente dos elementos normativos do tipo, e
não apenas das circunstâncias de fato do tipo legal, comenta Bacigalupo, com base
nos ensinamentos de Welzel, o assunto de acordo com a previsão no Código Penal
argentino:
Lo que falsearia el sistema de la ley es afirmar que el error mencionado en el art. 34, inc. 1º, es um error limitado solo a lo fáctico, o sea, que no alcanzaría a los elementos normativos del tipo. En este sentido caben algunas reflexiones en torno a la significación del concepto de neutralidad valorativa del tipo. La “realidad del mundo social del obrar humano es una realidad de significaciones y no una realidad indiferente al sentido, como lo es la realidad de las ciências natrurales”.251
247 WELZEL, 1993p. 196. 248 BRODT, 1996, p.59. 249 WELZEL, lop. cit. 250 WELZEL, loc.cit.; Também apresenta a referida distinção: MOTTA, 2009, p.53. 251 WELZEL, comentário al fallo del BGH, 28/10/52, n“JZ”, 52, p.120 y siguientes apud
BACIGALUPO, 2002, p.104.
87
Por seu turno, o erro de proibição se distingue do antigo erro de direito, pois,
além de trazer novas situações, a exemplo da existência ou limites da legítima
defesa, abrange uma série de hipóteses antes consideradas como erro de direito.252
A teoria da culpabilidade normativa, de Welzel, ofereceu uma saída prática
para a problemática do erro de proibição existente na Alemanha após a Segunda
Guerra Mundial. Nesse período, parecia já insustentável manter o rumo tomado pela
jurisprudência do antigo Tribunal Supremo alemão (Reichsgericht – RG),
especialmente no que se refere à irrelevância do erro invencível de proibição, haja
vista a sua incompatibilidade com o princípio da culpabilidade.253
Percebendo a inconveniência da antiga doutrina do Tribunal Supremo alemão
do RG (sobre a absoluta irrelevância do erro acerca da significação antijurídica do
fato), a jurisprudência alemã efetuou uma radical mudança em seus
posicionamentos com a decisão do Tribunal Supremo Federal (Bundesgerichtshof-
BGH), de 18 de março de 1952, que tem sido um marco para as decisões
jurisprudenciais até a atualidade.
Nela se adotou a distinção entre erro de tipo e erro de proibição. A
consagração da referida modificação de postura se deu com a entrada em vigor da
nova Parte Geral do StGB (Código Penal alemão), em 1975, o qual dispôs sobre o
erro de proibição no §17: “Error de prohibición . Si, al cometer el hecho, le falta al
autor la comprensión de estar realizando um injusto, actúa sin culpabilidad si no
podía evitar ese error. Si el autor podía evitar el error, la pena puede atenuarse
conforme al § 49 párr.1”.254
Referida modificação de posicionamento sobre o erro também foi acolhida na
maior parte dos modernos estatutos penais; por exemplo, no Código Penal suíço
(art. 20); no austríaco de 1975 (arts. 9º, 34, 41); no português de 1982 (art. 17); no
Código penal peruano (art. 14); no novo Código penal colombiano de 2000 e, como
não poderia deixar de mencionar, na nova Parte Geral do Código Penal brasileiro de
1984 (art. 21).255
252 BITENCOURT, 2003, p.84. 253 FELIP I SABORIT, 2000, p.39. 254 Ibidem, p.45. 255 CEREZO MIR, 2007, p.976-977. O autor também menciona que, no art. 15 do Código
penal peruano, há regulação do erro de compreensão culturalmente condicionado, o que se explica pela diversidade cultural do Peru: “El que por su cultura o costumbres de su acto comete um hecho punible sin poder comprender el carácter delictuoso de su acto o
88
Uma questão importante e bastante criticável sobre a decisão do tribunal
alemão BGH, de 18 de março de 1952, foi a posição adotada para o fundamento em
virtude do qual o erro vencível de proibição pode ser sancionado: a existência de
uma obrigação genérica de conhecer o direito, que constrange os cidadãos a
esforçarem sua consciência ou a procurarem informação com o fim de comprovar se
seu comportamento estaria de acordo, em todo o momento, com o ordenamento
jurídico. Trata-se do critério intermediário sobre o objeto da consciência da ilicitude,
atualmente o mais aceito na Alemanha, e que será exposto, com mais detalhes, no
capítulo IV deste trabalho.
Verificaremos, a seguir, que a distinção entre erro de tipo e erro de proibição
deve-se à adoção da teoria da culpabilidade (referente à posição sistemática da
consciência da antijuridicidade), a qual separa: consciência (e vontade) do fato; e
consciência da antijuridicidade do fato. A primeira constitui o dolo; a segunda é o
elemento da culpabilidade.
Assim, o erro de proibição é aquele incidente sobre a antijuridicidade do fato,
ou seja, sobre a natureza proibida da ação típica: o autor sabe o que faz, mas
erroneamente pensa que é permitido, quer seja por crença positiva na permissão do
fato, quer seja por falta de representação da valoração jurídica do fato.
2.6 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DA CULPABILIDADE
Após a apresentação sobre o sistema finalista, apenas em seus aspectos
relevantes para os fins deste trabalho, conveniente se torna o estudo acerca das
teorias da culpabilidade para compreender a atual posição majoritária a favor da
teoria limitada da culpabilidade e vislumbrar suas possíveis falhas diante dos
inúmeros casos concretos.
2.6.1 Teoria extremada e teoria limitada da culpabilidade
A teoria extremada da culpabilidade adveio da concepção finalista de delito, a
qual considera o dolo como elemento integrante do tipo penal e a consciência da
determinarse de acuerdo a esa comprensión, será eximido de responsabilidad. Cuando por igual razón, esa posibilidad se halla disminuida, se atenuará la pena”.
89
ilicitude como elemento autônomo da culpabilidade. Diante dessa alteração, há uma
modificação completa no tocante às hipóteses de erro e suas consequências.
Com a concepção em análise, ao se cuidar do dolo e do conhecimento do
injusto separadamente, entendendo-se que ambos possuem naturezas autônomas e
diversas, conclui-se que também podem ser tratados de modo distinto, não se
exigindo o mesmo grau de consciência. Requer-se não mais a atual consciência da
ilicitude, mas um potencial conhecimento, bastando que o indivíduo tenha tido a
possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato, posto que, no caso concreto, não
tenha alcançado referido conhecimento.256
A teoria estrita, extrema ou extremada da culpabilidade foi defendida por
Welzel, Maurach e outros.257 Com a adoção dessa concepção, afasta-se o
tratamento unitário do erro, como causa excludente do dolo (teorias do dolo), para
dividi-lo em duas modalidades: erro de tipo, que afasta o dolo, e erro de proibição,
que exclui ou atenua a culpabilidade conforme seja inevitável ou evitável,
respectivamente.
Note-se que, para essa teoria, todo erro sobre a antijuridicidade do fato
consubstancia-se em erro de proibição. Para a concepção extrema da culpabilidade,
então, há erro de proibição até nos casos de erro sobre as causas justificantes
(descriminantes putativas), com a consequência de excluir ou atenuar a
culpabilidade, sem afetar o dolo do tipo.258 Assim, o erro sobre a existência, os
limites ou os pressupostos fáticos de uma causa de justificação constitui erro de
proibição.
É justamente nesse ponto que a teoria limitada da culpabilidade se distancia
da teoria extremada. De acordo com a concepção limitada, atualmente dominante na
literatura e jurisprudência, na hipótese de erro sobre os pressupostos fáticos de uma
causa de justificação, em que o autor quer agir conforme o direito, mas não o faz por
desconhecer a realidade fática (imagina situação de fato que não existe, mas que,
acaso existisse, tornaria sua ação legítima), o agente do fato atua sem dolo e, dessa
forma, seu erro é equiparado ao erro de tipo.
Por essa razão, denomina-se o erro sobre os pressupostos fáticos de uma
causa de justificação de “erro de tipo permissivo”. Pode-se apontar como exemplos
256 MUÑOZ CONDE, 2003, p.34. 257 Ibidem, p.22. 258 GOMES, 2001, p.93.
90
de pressupostos fáticos de uma causa de justificação: a agressão ilegítima, na
legítima defesa; situação de necessidade, no estado de necessidade.259 Assim, a
legítima defesa putativa, por exemplo, constitui erro sobre os pressupostos fáticos
de uma causa de justificação e exclui o dolo, para a teoria limitada da culpabilidade.
O conceito de erro de tipo permissivo tem suas raízes na teoria dos
elementos negativos do tipo, segundo a qual, a tipicidade ocasiona obrigatoriamente
a antijuridicidade. Todo fato típico já traz em si a ilicitude e, como consequência, a
incidência de uma causa de justificação afastaria sempre a tipicidade. Cuida-se da
ideia de um tipo total de injusto.260
Nessa linha de pensamento, afirma Cirino dos Santos:
A sugestiva teoria das características negativas do tipo – contra a qual, na verdade, não existe nenhum argumento sério -, resolve o problema do erro sobre a situação justificante de modo idêntico à teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferentes: considera os componentes do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por conseqüência, define o erro sobre a situação justificante como erro d e tipo – excludente do dolo – e, por extensão, do tipo -, se inevitável, admitindo imprudência, se evitável.261
Pode-se afirmar, então, que a teoria dos elementos negativos do tipo
influenciou a teoria limitada da culpabilidade no tratamento das hipóteses de erro
nas descriminantes putativas, mas elas possuem estruturas bastante distintas. De
fato, a Teoria Limitada da Culpabilidade pauta-se na concepção de tipo desenvolvida
por Ernest Mayer e adotada pelo sistema finalista, que entende serem tipicidade e
ilicitude conceitos totalmente separados e independentes. A configuração de um fato
típico nada mais é do que um indício da ilicitude da conduta.262
Assim, na hipótese de erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de
justificação ser inevitável, não há responsabilidade penal por ausência de tipicidade
da conduta e, em sendo o erro evitável, subsiste a punibilidade na modalidade
culposa, caso haja previsão do tipo culposo.
Por seu turno, o erro incidente sobre a existência ou sobre os limites de uma
causa de exclusão da ilicitude consubstancia-se em erro de proibição: se inevitável,
259 MUÑOZ CONDE, op. cit., p.41. 260 RODRIGUES, 2010, p.119. 261 SANTOS, 2000, p.231. 262 RODRIGUES, loc. cit.
91
exclui a culpabilidade; mas quando evitável, pune-se por crime doloso, com
possibilidade de atenuação da pena.
A teoria limitada da culpabilidade apresenta, assim, o erro de proibição em
três categorias:
a) O erro de proibição direto, que tem por objeto a norma, considerada do ponto de vista da existência, da validade e da eficácia, exclui a reprovação de culpabilidade; b)o erro de tipo permissivo, que tem por objeto os pressupostos objetivos de justificação legal, existe como errônea representação da situação justificante – incide, portanto, sobre a verdade do fato - , e exclui o dolo (igual a um erro de tipo); c) o erro de permissão (ou erro de proibição indireto), que tem por objeto os limites jurídicos de causa de justificação legal, ou a existência de causa de justificação não prevista em lei, exclui a reprovação de culpabilidade, conforme as regras do erro de proibição direto.263
Muñoz Conde, com quem concordamos neste ponto, posiciona-se a favor do
tratamento dos pressupostos fáticos de uma causa de justificação como causa
excludente do dolo, haja vista que, nestes casos, o agente almejaria algo permitido
pela lei, sendo “fiel ao direito”, enquanto o autor que erra quanto aos limites ou
existência de uma causa de justificação deseja algo não permitido pela lei, ainda que
imagine estar permitido. Realmente, não se pode tratar da mesma forma, por
exemplo, um médico que realiza um aborto porque crê erroneamente que a
indicação econômico-social está admitida pelo ordenamento jurídico como causa de
exclusão da ilicitude e um médico que realiza um aborto porque crê que se dão os
pressupostos objetivos da indicação eugênica (graves defeitos físicos ou psíquicos
no feto).264
Para entender melhor esse exemplo apontado por Muñoz Conde, deve-se
considerar que, no Código Penal espanhol (diferentemente do que ocorre no Código
Penal brasileiro), no art. 417 bis, admite-se expressamente o aborto eugênico, desde
que estejam presentes os requisitos estritos. Já o aborto em razão da condição
econômico-social não é permitido pela legislação espanhola.
Preleciona Cirino dos Santos que o tratamento diferencial para os
pressupostos fáticos de uma causa de justificação se explica por critérios objetivos
de valoração do comportamento:
263 SANTOS, 2000, p.229-230. 264 MUÑOZ CONDE, 2003, p.41.
92
a)Se o comportamento real é orientado por critérios iguais aos do legislador, os defeitos de representação do autor tem por objeto ou a situação típica (erro de tipo) ou a situação justificante (erro de tipo permissivo): ambas hipóteses excluem o dolo e admitem a possibilidade de punição por imprudência; b) se o comportamento real é orientado por critérios desiguais aos do legislador,os defeitos de representação do autor somente podem ter por objeto a valoração jurídica geral do fato (erro de proibição), com o efeito de exluir ou de reduzir a culpabilidade conforme a natureza inevitável ou evitável do erro.265
De todo o exposto relacionado às teorias do dolo e da culpabilidade, verifica-
se que elas apresentam diferenças sistemáticas profundas, mas todas consideram a
relevância do elemento da consciência da ilicitude, já que o exigem para o
aperfeiçoamento do delito.266
Na prática, entendemos que as teorias da culpabilidade respondem de melhor
forma a situações que podem resultar em lacunas de punibilidade, a exemplo dos
casos de erro de proibição evitável em que não haja previsão da figura típica
culposa, bem como não faz uso das categorias estigmatizantes, tal como “cegueira
jurídica”, de Edmund Mezger, na teoria limitada do dolo. Ademais, no tocante à
teoria extremada do dolo, vale lembrar que ela exige o conhecimento atual da
ilicitude, incorrendo no problema de os tribunais recorrerem a ficções para tornar
possível a aferição de tal requisito.
Pois bem, com a teoria da culpabilidade, o conhecimento da antijuridicidade
passa a converter-se em um conhecimento potencial e, com isso, num dado
psicologicamente diverso do autêntico conhecimento, pois uma potencial
consciência não é, em verdade, um conhecimento que possa ser comprovado como
qualquer outro dado psicológico. Cuida-se de um conceito normativo.267
Não obstante ser atualmente a concepção mais aceita, inclusive no Brasil,
bem como entendermos como a mais adequada, mormente do ponto de vista
265 SANTOS, 2000, p.230-231. 266 TOLEDO, 1977, p.26. Afirma Muñoz Conde que o conhecimento da antijuridicidade,
como elemento do delito e como pressuposto da pena, bem como a eficácia exculpante ou atenuante do erro sobre a pena, não é uma máxima que goze de aceitação universal e indiscutível, tanto em nível técnico, como prático. Sem embargo, parece um princípio cuja realização plena pode estimar-se como desejável, já que, entre outras coisas, supõe um avanço notável na linha evolutiva que tende a dar maior proteção aos direitos fundamentais do cidadão, também do cidadão delinquente, frente as excessivas intromissões do poder do Estado. (Tradução livre, MUÑOZ CONDE, 2003, p.24).
267 MUÑOZ CONDE, 2003, p.37.
93
político-criminal, a teoria limitada da culpabilidade também apresenta falhas em sua
sistematização, das quais decorrem soluções injustas na prática.
Primeiramente, uma das objeções dirigidas às teorias da culpabilidade
(extremada e limitada) refere-se à impossibilidade sistemática da distinção entre
dolo e consciência da ilicitude, como também da diferença entre erro de tipo e erro
de proibição, principalmente no que concerne aos elementos normativos do tipo e às
normas penais em branco.268
Também afirmam que a teoria da culpabilidade nada mais é do que um meio
termo entre a tese tradicional de irrelevância plena do erro de proibição e a teoria do
dolo. No fundo, trata-se de uma hábil manobra para introduzir, na prática, a
exigência do conhecimento da ilicitude, mas, apenas em poucos casos, a
jurisprudência considera a existência do erro de proibição. É o que tem ocorrido na
jurisprudência alemã, que impõe exigências mais elevadas para a admissão da
evitabilidade do erro de proibição do que para a configuração do delito culposo. A
relevância prática da possível atenuação da pena, com o erro de proibição evitável,
é praticamente nula.269 Note-se que diferente não é o posicionamento da
jurisprudência brasileira, que dificilmente admite o erro de proibição evitável (e,
muito menos, o inevitável), conforme veremos mais adiante.
Um grande inconveniente da teoria limitada da culpabilidade, ao nosso ver,
diz respeito ao tratamento do erro de proibição incidente sobre normas penais
desconexas com as opções valorativas da sociedade. De fato, há infrações penais
que não correspondem com a noção de ilícito moral, social e ético, e que estão
presentes, sobretudo na legislação extravagante, a exemplo dos crimes ambientais,
econômicos e tributários. Os erros aparecem com maior frequência neste último
âmbito do que no direito penal nuclear, em que a regra para o erro de proibição
direto tem pouca aplicação prática.
Cabe citar exemplos brasileiros da previsão de “delitos especiais”, cuja tutela
se atribui à atuação do “moderno Direito Penal”, caracterizado pela proteção de
268 No tocante aos elementos normativos do tipo, aponta Muñoz Conde (2003, p.39) o
exemplo do erro sobre a existência ou a quantia da dívida tributária no delito fiscal, que pode ser tanto um erro de tipo quanto um erro de proibição, pois esse elemento do delito em questão é, ao mesmo tempo que elemento normativo do tipo, um elemento integrante da antijuridicidade.
269 MUÑOZ CONDE, 2003, p.38.
94
novos bens, ante os riscos decorrentes do desenvolvimento técnico e científico,
conforme sintetiza Mariana Ortiz:270
Delitos societários (art. 177 do Código Penal, originário da Lei federal 6.404, de 15 de dezembro de 1976), a quase totalidade dos delitos contra o sistema financeiro nacional (Lei federal 7.492, de 16 de junho de 1986), o crime de concorrência desleal (art. 195 da Lei federal 9.279, de 14 de maio de 1996), bem como algumas figuras típicas da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (v.g., art. 168 da Lei federal 11.101, de 09 de fevereiro de 2005).
Vale notar que um setor da doutrina se afasta dos postulados da teoria
limitada da culpabilidade no que tange ao Direito Penal especial e administrativo. De
fato, alguns autores defendem a aplicação da teoria do dolo aos erros incidentes na
proibição que se produzem sobre normas pertencentes a esse âmbito de regulação.
O motivo para essa distinção baseia-se na falta, para grande parte das normas
desse âmbito de regulação, de uma correspondente norma moral que goze de
reconhecimento social. No entanto, ainda prevalece o conceito unificador do erro de
proibição para o tratamento do erro em todos os âmbitos do Direito Penal.
Cerezo Mir indaga se não seria mais conveniente adotar, tanto na regulação
dos delitos monetários como no âmbito do Direito Penal administrativo em geral, a
teoria do dolo, tal como tem proposto um setor da moderna Ciência de Direito penal
alemã. Todavia, o autor posiciona-se contra a adoção da teoria do dolo no Direito
penal administrativo, entendendo que basta a previsão da possibilidade de
atenuação considerável da pena para o erro de proibição vencível nesses casos; no
máximo, poder-se-ia prever uma regulação específica do erro de proibição no âmbito
dos delitos monetários e, em geral, no âmbito do Direito Penal administrativo.271
Assim, por exemplo, muitos doutrinadores consideram que, nas infrações
fiscais, somente se pode afirmar que houve atuação dolosa quando o autor conhecia
seu dever frente à Fazenda Pública. Também diversas decisões, na Alemanha, no
campo das infrações administrativas, seguem esta mesma linha, como, por exemplo,
270 ORTIZ, 2011, p.29. A autora apresenta o conceito de delitos especiais como “aqueles
cujos moldes típicos teriam sido desenhados pelo legislador a fim de limitar o círculo de sujeitos ativos a um grupo determinado de pessoas, conforme qualidades especiais descritas ou pressupostas na fórmula legal, como a condição de pai ou mãe, de funcionário ou agente público, de autoridade, advogado, médico, sócio, gestor de instituição financeira, entre outras”. (Ibidem, p.104).
271 CEREZO MIR, 2007, p.292.
95
a consideração do erro sobre a obrigação de obter uma permissão ou autorização
para poder desempenhar certas atividades como erro de tipo.272
Outros autores suavizam os efeitos desta teoria, conferindo uma ampla
margem de atuação da inevitabilidade do erro de proibição, chegando alguns,
inclusive, ao extremo de considerar que esses erros seriam sempre inevitáveis.273
Entendemos que não é necessário um tratamento legal distinto para o erro de
proibição incidente no âmbito de regulação do Direito Penal especial, mas que se
deva levar em conta o grau maior de incidência da inevitabilidade do erro no que
tange a essas infrações penais.
Dessarte, pensamos que a norma jurídico-penal desconhecida e infringida
pelo autor tem fundamental importância para a determinação do erro de proibição.
Trata-se de um “grande personagem da história”, tal como enunciou Nieto Martín.274
Mas não apenas importam as normas que consagram valores e interesses distintos
272 PORTO, 1999, p.35-36. 273 Aponta Yamila, ainda, os autores que entendem que tais erros devem ser considerados
sempre invencíveis e os que se posicionam a favor de uma maior generosidade na apreciação da inevitabilidade dessa classe de erro, como também aqueles que propugnam por uma regulação específica, senão vejamos: “BAJO FERNÁNDEZ, en BAJO FERNÁNDEZ; SUÁREZ GONZÁLEZ; PÉREZ MANZANO (eds.), Manual de Derecho penal. Parte Especial. Delitos patrimoniales y económicos, 2ª ed., 1993, p. 586 (entre otras obras). Sin llegar al extremo de declarar el error de prohibición invencible en todo caso, propugnan una mayor generosidad en la apreciación de la invencibilidad de esta clase de error BAUMANN/WEBER/MITSCH, AT, 11ª ed., 2003, § 21, nm. 42; MAURACH/ZIPF, AT, t. I, 8ª ed., 1992, § 37, nm. 12; ROXIN, AT, t. I, 4ª ed., 2006, § 21, nm. 39 y ss.; el mismo, en DANNECKER et al. (eds.), FS–Tiedemann, 2008, p. 389. En España destaca la propuesta de lege ferenda de CEREZO MIR, «La regulación del error de prohibición en el Código penal español y su trascendencia en los delitos monetarios», en ADPCP, 1985, p. 284, con base en la cual se propone una regulación específica del error de prohibición en el ámbito del llamado Derecho penal administrativo que obligara a atenuar la pena en uno o dos grados cuando el error fuera vencible, o a eximir de responsabilidad cuando el error fuera difícilmente evitable (sin cursiva en el original). A un resultado similar llega NIETO MARTÍN, El conocimiento del Derecho. Un estudio sobre la vencibilidad del error de prohibición, 1999, quien insta a tener en cuenta la profesión del sujeto para determinar la vencibilidad del error en lo que este autor denomina «delitos artificiales», recibiendo la consideración de invencibles «los errores en los que incurren los profanos que actúan ocasionalmente en campos penales muy específicos», salvo en los supuestos de conocimiento de la antijuridicidad, en los que sí que habría necesidad de pena (pp. 185 y s.). DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, «El error de prohibición: pasado, presente y futuro», en CEREZO MIR et al. (eds.), El nuevo Código Penal: presupuestos y fundamentos. Libro Homenaje al Profesor Ángel Torío López, 1999, p. 359, se pronuncia igualmente a favor de la ampliación de los supuestos invencibilidad (cfr. asimismo pp. 364 y s., 368). También OLAIZOLA NOGALES, El error de prohibición. Especial atención a los criterios para su apreciación y para la determinanción de su vencibilidad e invencibilidad, 2007, pp. 138, 140.” (GÓMEZ, 2009, p. 12-13)
274 NIETO MARTÍN, 1999, p.160.
96
dos considerados pela consciência social para a maior incidência do erro de
proibição, mas também outros critérios, a exemplo do grau de determinação da
norma e do seu tempo de vigência.
Nessa esteira de intelecção, Nieto Martín destaca o grau de determinação da
norma para se aferir a existência do erro de proibição e defende que o erro deve ser
o instituto a impedir a crescente indeterminação que caracteriza o Direito Penal
atual, para que não haja um peso que recaia sobre o cidadão. Também deve ser
levada em conta a ausência de publicação efetiva da norma por parte do legislador.
Finalmente, deve ser considerada a “idade” da norma. O erro será mais facilmente
invencível, segundo bem pontua Nieto Martín, nas normas “jovens”, já que, por seu
pouco tempo de vigência, ainda não foram assimiladas pela consciência social e,
mesmo nas normas “anciãs”, deve ser considerado o erro quando haja lacuna entre
a consciência social e os valores ou interesses tutelados.275
Note-se que, na Alemanha, o desenvolvimento do tema que se tem produzido
pela jurisprudência demonstra que a preferência por uma ou outra teoria, quanto à
posição da consciência da ilicitude na estrutura do delito, não oferece testemunho
claro acerca de qual delas seria a mais correta. O Tribunal Supremo Federal alemão
nunca rechaçou, de maneira fundada, a teoria do dolo em favor da teoria da
culpabilidade. A decisão tem dependido mais de qual das teorias conduz, no caso
concreto, a um resultado mais adequado.276
275 NIETO MARTÍN, 1999, p.161. 276 PORTO,1999, p.32.
No que concerne à polêmica do erro sobre as circunstâncias que servem de base a uma causa de justificação como um erro de tipo ou erro de proibição, a nova Parte Geral do Código alemão não resolveu expressamente o problema. Segundo Cerezo Mir, as decisões do Tribunal Supremo alemão incorreram, durante muito tempo em contradições, seguindo, em geral, a teoria da culpabilidade restrita, salvo no caso do erro sobre as circunstâncias que servem de base ao estado de necessidade como causa de justificação, em que se aplicava a teoria da culpabilidade pura. Mas, ultimamente, aplica-se, em caráter geral, a teoria da culpabilidade restrita. (CEREZO MIR, 2007, p.979). -se que, em muitos casos, a matéria de proibição não está descrita totalmente por meio de elementos objetivos. Segundo Roxin, nos delitos de comissão dolosos, nem todos os tipos são fechados. Nestes casos, deve-se investigar a antijuridicidade mediante a comprovação dos “elementos do dever jurídico”. Assim, nestas situações, Roxin defende um duplo caráter das circunstâncias abarcadoras da antijuridicidade, ou do elemento por ele definido de “contrariedade ao dever”. O erro sobre um elemento do dever jurídico é um erro de tipo na medida em que a falsa representação se refira ao elemento descritivo e determinante do injusto. Ao contrário, haverá um erro de proibição quando o autor, com completo conhecimento das circunstâncias decisivas para o injusto, erra sobre a proibição da ação. (Cf. ROXIN, 1979, p.209-220).
97
Ante a constatação de que tanto as teorias do dolo, quanto as teorias da
culpabilidade apresentam falhas e que nenhuma das teorias tem condições de
oferecer resultados satisfatórios para todos os inúmeros casos concretos, devemos,
então, verificar qual é a solução que se coaduna, da melhor forma, a um Direito
Penal do Estado Democrático de Direito, no qual a dignidade da pessoa humana se
estabelece como ponto central.277
Sobre a possibilidade de conhecimento do caráter injusto do fato, posiciona-
se bem Cirino dos Santos no sentido de que ela não deve ser medida por critérios
rigorosos, incompatíveis com a vida social, mas sim de acordo com múltiplas
variáveis, tais como a posição social, a capacidade individual, as representações de
valor do autor, bem como por critérios normais de reflexão ou de informação.278 Para
o autor, a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitável:
A certeza ou, mesmo, a existência de fundamentos razoáveis sobre a permissibilidade do fato seriam argumentos suficientes, porque ninguém pode conhecer a infinidade das proibições da lei penal: se o dolo de tipo, em grande parte dos crimes dolosos do direito penal comum, e na maioria dos crimes dolosos do direito penal especial, aparece desacompanhado da consciência da antijuridicidade, então a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitável e, assim, perdoável.279
Pois bem, entendemos que não se pode estudar o tema da consciência da
ilicitude do fato sem se levar em consideração o grau de socialização do
indivíduo,280 bem como a importância social de sua conduta, sob pena de incorrer
em resultados injustos, sobretudo diante da “sociedade do risco”281 na qual vivemos
e das novas formas de criminalidade. Para superar a polêmica entre teoria final e
teoria causal, surgiu uma terceira concepção, que chama a atenção sobre a
relevância social do comportamento humano.
Ante o esposado, verifica-se a necessidade de expormos alguns aspectos da
nova concepção científico-penal, a saber, o denominado funcionalismo penal.
277 Afirma Teresa Manso Porto que um dos principais motivos por que em nenhum caso em
que se aplica a teoria do dolo ou da culpabilidade se chega a resultados satisfatórios, constitui na existência de uma regulação diferenciada para o erro de tipo e para o erro de proibição, em que não se pergunta pelas razões do erro, mas se determina a punibilidade atendendo apenas à existência de um fato psíquico. (PORTO, 1999, p.35-36).
278 SANTOS, 2000, p.237. 279 Ibidem, p. 238. 280 QUEIROZ, 2010, p.225. 281 Expressão lançada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck(1998) ao tratar da configuração
social da pós-modernidade.
98
Ressalte-se que não se trata de uma construção teórica tão inédita quanto possa
parecer, pois que foi edificada no início dos anos 70, tendo como principais
precursores Claus Roxin e Günther Jakobs. Ocorre que a dogmática penal se
projeta frente a um novo processo metodológico. Em vez do modelo rígido e
individualizado, de natureza lógico-construtiva, passou a desenvolver-se sobre um
sistema de maior flexibilidade. Há uma real integração do Direito Penal com as
exigências do contexto social.282
2.7 O FUNCIONALISMO NO DIREITO PENAL
A evolução histórica da dogmática penal demonstra que o naturalismo e o
delineamento ontológico não proporcionaram uma fundamentação sólida para nossa
ciência, porquanto se pautam num paradigma rígido, distante da realidade social.283
A racionalidade individual como fonte principal de elaboração normativa não mais
atendia às necessidades de sistemas edificados por um Estado Democrático de
Direito.284
Nas últimas três décadas do século XX, surgiram as correntes funcionalistas
em matéria penal, por meio de uma aproximação às ciências sociais. Ressalte-se
que não existe um único funcionalismo, mas diversos.285 O funcionalismo penal se
desenvolveu com base em novas correntes filosóficas: o funcionalismo evidenciado
pelos pensadores Parsons e Luhman, adaptado ao sistema de Direito Penal por
Günther Jakobs; e a corrente doutrinária de política criminal de Roxin, que
demonstra a necessidade de comunicação entre as normas jurídico-penais com a
realidade social, por meio de referências teleológicas.
Essa nova concepção científico-penal encontra-se, atualmente, em discussão
e visa a modificar pontos da dogmática penal que possuíam uma orientação
inflexível, dificultando a operacionalidade do Direito Penal para questões concretas,
a exemplo das novas concepções de culpabilidade.
Os adeptos do funcionalismo, não obstante inúmeras divergências entre eles,
concordam em recusar as premissas sistemáticas do finalismo, partindo do
282 BREIER, 2010, p.579. 283 Cf. MIR PUIG, 1992 apud BREIER, 2010, p.578-579. 284 BREIER, op. cit., p.579. 285 GRECO, 2000, p.131.
99
entendimento de que a construção sistemática jurídico-penal deve ser guiada por
finalidades jurídico-penais, e não por dados prévios ontológicos (ação, causalidade,
estruturas lógico-reais, etc).286
Nota-se a importância da teoria dos fins da pena para o sistema funcionalista.
Rechaça-se a pena retributiva, para a admissão de uma pena puramente preventiva,
tanto pela prevenção geral positiva ou de integração (possui o fim de reafirmar a
legitimidade do direito penal para aplicar sanções aos infratores.); quanto pela
prevenção especial, quer seja positiva (atua na pessoa do delinquente para
ressocializá-lo ou reeducá-lo), quer seja negativa (impedir que o indivíduo cometa
novos delitos, mantendo-o preso). Afasta-se também a prevenção geral negativa ou
de intimidação, no sentido de impedir que o indivíduo cometa novos delitos.
Os autores funcionalistas entendem que a principal finalidade legitimadora da
pena é a prevenção geral positiva, que gera efeitos sobre a população respeitadora
do direito, tanto para a confirmação da vigência fática das normas, quanto para a
reafirmação dos bens jurídicos protegidos.
Claus Roxin adota a teoria unificadora preventiva dialética, entendendo que
deve haver uma combinação das concepções preventivas da sanção, e não a
justaposição entre elas. Por seu turno, defende Jakobs a função preventiva geral
positiva da pena, de modo a manter a confiança geral nas normas, conforme
apresentaremos mais adiante.
Criticando o caráter retributivo da pena, afirma Roxin que uma execução da
pena somente pode alcançar êxito quando tenta corrigir as falhas sociais que
tenham levado o condenado a delinquir, ou seja, quando se apresenta como
execução ressocializadora de caráter preventivo especial. Para o autor, a missão do
Direito Penal não pode se basear na retribuição, mas apenas na ressocialização e
nas inevitáveis exigências de prevenção geral.287
Vale notar que o atual Código Penal pátrio, no art. 59, estatui que a sanção
penal deva ser estabelecida segundo os critérios da necessidade e suficiência para
a prevenção e reprovação do delito. Portanto, não se pode aduzir que há, na
legislação penal brasileira, a determinação da pena com caráter retributivo.
Malgrado a existência de inúmeros funcionalismos, destacaremos apenas
alguns aspectos dos funcionalismos de Roxin e de Jakobs. O funcionalismo
286 ROXIN, 2002, p.205. 287 ROXIN, 1981, p.44.
100
estrutural de Roxin define o sistema social como um sistema fechado rígido,
regulamentado por normas orientadas por valores, cuja função é a estabilidade do
meio social. Os valores de convivência são considerados como aqueles que se
integram entre os indivíduos, podendo, com o transcorrer do tempo, ser modificados
de acordo com as exigências do próprio sistema.288
A característica marcante do sistema de Roxin é a sua tonalidade político-
criminal. Para Roxin, política criminal e direito penal devem interagir, trabalhar juntos
de maneira que o Direito Penal corresponda à forma por meio da qual as valorações
político-criminais podem ser transferidas para o modo de vivência jurídica. Segundo
ensina Luis Greco, o dogmático deve identificar a valoração político-criminal para
cada conceito da teoria do delito e funcionalizá-lo, ou seja, “construí-lo e desenvolvê-
lo de modo a que atenda essa função da melhor maneira possível”.289
Por seu turno, o funcionalismo sistêmico se fundamenta em expectativas de
relações, sendo que a norma exerce um fator de estabilização na relação sistema-
ambiente. Contrariamente ao funcionalismo estrutural, o estratégico não tem uma
natureza rígida, pois que a norma surge a partir de uma flexibilização em seu sentido
estrutural. O sistema não está fixado por orientação da consciência humana, mas
sim em sistemas expressos pelos fenômenos sociais.290
Ocorre que, diferentemente de Roxin, Jakobs funcionaliza não apenas os
conceitos, dentro do sistema jurídico-penal, mas também este, dentro de uma teoria
funcionalista-sistêmica da sociedade.291
Impende destacar a influência da teoria sistêmica de Niklas Luhmann para o
pensamento jurídico segundo o qual é necessária a interligação de diversos
sistemas sociais, sobretudo para o funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs.
Referida teoria visa a “inserir elementos de fora do direito para informar sua
atualização e configuração”.292
De acordo com a teoria sistêmica, o Direito, assim como a sociedade na qual
se insere, consubstancia-se em um sistema autorreferencial e autopoiético, que se
integra de expressões de sentido, de comunicações.
288 BREIER, 2010, p.580. 289 ROXIN, 1973 apud GRECO, 2000, p.135. 290 BREIER, op.cit., p.580-581. 291 GRECO, 2000, p.139. 292 Idem, 2011, p.27.
101
Vale notar que o termo “autopoiese” se deve ao biólogo chileno Humberto
Maturana e a seu discípulo Francisco Varela. Designa, originariamente, o modo
operativo de autorreprodução dos sistemas vivos. Ditos sistemas se caracterizam
pela capacidade de produzir e reproduzir, por si mesmos, os elementos que os
integram, definindo sua própria unidade, organização e estrutura. Este modo de
autorreprodução é levado adiante por células, que são elementos integrantes dos
sistemas vivos, e que se realiza no interior do mesmo sistema.293
Disserta Niklas Luhmann que a comunicação, em razão da forma de
organização da pópria autopoiese, não pode perceber, nem produzir percepções. A
comunicação pode apenas comunicar sobre as percepções, a exemplo de quando
alguém diz: “eu vi que [...]”. Nas palavras do sociólogo:294
La comunicación, con sus propias recursiones, anticipa y retorna a más comunicación: únicamente de esta manera – es decir, em la urdimbre de lacomunicación autoproducida – puede producir los elementos del próprio sistema: las comunicaciones. De este modo se conforma um sistema autopoiético próprio, em sentido estricto – y no solo metafórico – del concepto. Precisamente, em razón de esta forma de organización de la propia autopoiesis, la comunicación no puede ni percebir ni producir percepciones. Es evidente que la comunicación puede comunicar sobre las percepciones, por ejemplo, cuando alguien dice “he visto que”[...].
Jakobs incorporou as ideias de Luhmann no sentido de que o Direito é um
sistema social caracterizado pela autopoiese e que adota a comunicação como
prestação dotada de sentido, que além de expressar algo na sociedade, contribui
para manter a estrutura social. Vejamos a explicação de Polaino-Orts sobre o
assunto:
O Direito como um sistema social significa que se caracteriza pelo modo operativo de autorreprodução, isto é, autopoiético, o qual adota a comunicação, a expressão de sentido. Por essa razão, para Jakobs, tanto a infração da norma, quanto a pena reafirmadora da vigência da norma são expressões de sentido, a saber: comunicações (prestações dotadas de sentido), que expressam algo na sociedade e contribuem para a manutenção da estrutura social. No caso da pena, ademais, tal prestação desempenha o papel de reafirmar a identidade da sociedade e, portanto, funcionalmente representa uma prestação para a manutenção do sistema jurídico.295
Ressalte-se que Luhmann não propugna pela necessidade de que o Direito
Penal tenha de receber influências externas, mas apenas atesta esse fato. Na seara
293 JAKOBS; POLAINO-ORTS, 2010, p.86. 294 LUHMANN, 2005, p.24-25. 295 LUHMANN, loc. cit.
102
jurídica, sua teoria presta aos autores que defendem que o Direito deve ser um
sistema aberto, permeável às influências do meio no qual atua, respondendo aos
influxos sociais de modo mais direto e evidente.296
Com base em Luhmann, afirma Jakobs que o Direito Penal confirma a
identidade social. O delito não é tido como princípio de uma evolução nem tampouco
como evento que deva ser solucionado de modo cognitivo, mas como falha de
comunicação, sendo imputada essa falha ao autor como sua culpa. Para o penalista,
a sociedade mantém as normas e nega-se a conceber a si mesma de outro modo.
Assim, a pena constitui-se na própria manutenção da identidade social, e não
apenas um meio para mantê-la.297
Importa abordar, posto que de maneira sucinta, a questão da sociedade do
risco existente no mundo atual, para compreendermos melhor o desafio do
desenvolvimento de uma dogmática jurídico-penal que acompanhe as rápidas
mudanças do tempo da pós-modernidade.
Ocorre que o desenvolvimento da ciência e as inovações tecnológicas,
caracterizadores da sociedade pós-industrial, criaram uma série de novos riscos. No
século XX, os riscos eram majoritariamente decorrentes da natureza, tais como
doenças e acidentes naturais. Nos dias hodiernos, cuida-se de riscos decorrentes da
própria ação do homem e que, de forma contraditória, encontram-se fora de alcance
do próprio controle humano.298
Nesse particular, observa-se que a criminalidade da era da globalização não
mais envolve apenas uma relação individual, mas alcança a coletividade. Todavia, o
legislador e os operadores do Direito não apresentam soluções eficazes para o
aumento de práticas de novos crimes. Ao revés, há uma expansão simbólica de
normas criminalizadoras, ocasionando uma deslegitimidade do Direito Penal, bem
como uma sensação social de insegurança.299 Silva Sánchez anota que a sociedade
atual pode ser melhor definida como “a sociedade da „insegurança sentida‟ (ou como
296 GRECO; RASSI, 2011, p.27. 297 JAKOBS, 2003, p.04. 298 GRECO; RASSI, op. cit., p.28. Os autores apontam como exemplo de novo risco a
utilização de alimentos transgênicos. De fato, diante da insuficiência de alimentos para suprir a fome de todas as pessoas do mundo, a utilização dos transgênicos revela-se como uma necessidade, a despeito de ainda não haver estudos conclusivos sobre os malefícios que esses alimentos podem ocasionar. Mas entre a falta de comida e a existência de comida transgênica, assume-se o risco de produzir esta. (Ibidem, p.31).
299 CAMARGO, 2002, p.125-127. Nesse sentido: SOUZA, 2007, p.21.
103
a sociedade do medo)”.300 O autor explica sobre a insegurança como uma forma
mais forte de viver os novos riscos:301
Tanto é assim que a própria diversidade e complexidade social, com sua enorme pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a falta de critérios para a decisão sobre o que é bom e o que é mau, sobre em que se pode e em que não se pode confiar, constitui uma fonte de dúvidas, incertezas, ansiedade e insegurança.
Desse modo, verifica-se como tentativa de resolver esses riscos, o acréscimo
do número de leis, a melhoria nos aparatos de segurança pública, a criação de
novas figuras delituosas e o aumento das penas das infrações já existentes.
Referidas mudanças no panorama mundial e, em especial, brasileiro, tornam o tema
do erro de proibição ainda mais relevante.
Ressalte-se que os defensores da teoria do risco, em sua maioria, não
propugnam que o Direito Penal se apresente como a solução para o controle de
riscos, nem que o direito deve servir como meio de controle para a produção desses
riscos. O que resolve tais problemas “é a criação de políticas públicas de
esclarecimento e prevenção de riscos, com vistas a minimizar os impactos da
modernidade.” No entanto, há casos em que não se podem controlar os riscos,
independentemente do que se faça, a exemplo de experimentos científicos
nucleares.302
Assim, percebe-se que, apesar de o Direito Penal não servir como meio de
controle dos riscos e da produção destes, deve considerar e adaptar-se à existência
dessas transformações ocorridas na realidade social contemporânea diante do
fenômeno da globalização econômica.
Apresentaremos, a seguir, a culpabilidade sob as visões de Jakobs e Roxin,
tendo em vista a relevância do assunto para o alcance de um melhor entendimento
da consciência da ilicitude sob a ótica funcionalista.
2.7.1 Culpabilidade e erro de proibição em CLAUS ROXIN
Primeiramente, cumpre notar a diferença feita por Roxin entre culpabilidade e
responsabilidade. Esta última consubstancia-se em uma nova categoria dentro da
300 SILVA SÁNCHEZ, 2011, p.40. 301 Ibidem, p.41. 302 GRECO; RASSI, 2011, p.30.
104
estrutura da teoria do delito. No entender do autor, responsabilidade corresponde a
“uma outra valoração que se segue à ilicitude e, em regra, desencadeia a
punibilidade”.303
Roxin não pretende retirar a culpabilidade da estrutura do delito, nem
substituí-la pelo elemento da responsabilidade. Para ele, compõe-se a
responsabilidade de dois dados, a saber: a culpa do agente e a necessidade
preventiva de uma sanção penal.304 Percebe-se, portanto, que, por meio do conceito
de responsabilidade penal - que é mais amplo e abrange o de culpabilidade -, Roxin
aproxima a dogmática jurídico-penal à política criminal.
Essa responsabilidade baseia-se, portanto, na política criminal pela teoria dos
fins da pena. Note-se que o autor alemão não admite a culpabilidade como
fundamento da pena, mas apenas como limitação da aplicação penal, de modo a
proteger o indivíduo de que, por razões puramente preventivas, haja uma redução
de sua liberdade pessoal maior do que sua correspondente culpabilidade.305 Desse
modo, verifica-se a necessidade de se limitar a intervenção estatal a fim de se
prevenirem abusos.
Ressalte-se que as limitações da responsabilidade em razão das
necessidades preventivas da pena, posto que o comportamento seja culpável,
somente podem ser extraídas da lei (Código Penal ou Constituição), e não por
qualquer critério arbitrário do juiz, no caso concreto.306
Aduz Alessandra Greco que o direito penal, segundo a concepção de Roxin,
inspira-se pela política criminal e, assim, o sistema deve admitir brechas. Mas o
critério de política criminal defendido pelo autor alemão é o legal, e não o feito pelo
juiz.307
No que tange à culpabilidade, o autor entende que ela não deve ser entendida
como “reprovabilidade”, já que se trata de um conceito abrangente, mas vazio de
conteúdo, não se refere ao substrato material da reprovação (o que se está, afinal,
reprovando subjetivamente). A culpabilidade se define, ao expor de Roxin, como a
303 ROXIN, 1991, p.503. 304 ROXIN, op. cit., p.504 305 Idem, 1981, p.21. 306 Idem, 2006, p.91. 307 GRECO, 2004, p.78-79.
105
“realização do injusto apesar da idoneidade para ser destinatário de normas e da
capacidade de autodeterminação que daí deve decorrer”.308
Ocorre que a concepção funcionalista de Roxin, diferentemente do finalismo,
independe da constatação do livre-arbítrio e do “poder agir de outro modo” do
indivíduo, impassíveis de comprovação. Afastando-se da polêmica questão da
existência ou não da liberdade, apresenta o doutrinador um elemento decisivo para
a afirmação da culpabilidade: a acessibilidade normativa.
O autor determina que somente a “capacidade para ser destinatário de
normas” é passível de verificação empírica e aduz que a aferição das condições de
compreender a ilicitude do agir do sujeito, bem como da redução ou prejudicialidade
da capacidade de autocontrole pode ser feita através de métodos psicológicos ou
psiquiátricos. Até mesmo o leigo, após uma intensa bebedeira, pode constatar a
redução de sua orientação intelectual e de sua capacidade de autodeterminação.309
Nessa perspectiva, a exclusão da culpabilidade se funda não apenas na
ausência ou redução da culpabilidade, como também em considerações preventivo-
gerais e especiais sobre a isenção de pena, ocasionando efeitos significativos na
prática, a exemplo da questão do erro de proibição. Verifica-se, destarte, que a
solução apresentada por Roxin, quanto à culpabilidade, a qual se assenta na falta de
uma necessidade preventiva geral ou preventiva especial atende de melhor forma ao
conceito de justiça, tendo em vista os casos práticos da sociedade atual.
Para Roxin, o “poder atuar de outro modo”, núcleo tradicional da
culpabilidade, não pode delimitar o critério da evitabilidade do erro. Invoca o autor
alemão o §17 do StGB (Código Penal alemão) , que dispõe sobre o erro de proibição
inevitável, para arguir que, à primeira vista, parece indicar que efetivamente tem-se
em conta o simples poder atuar de outro modo. Apenas quem não podia conhecer,
em absoluto, o ilícito de seu fazer, deve ser excluído da reprovação da pena do
delito doloso. Não há lugar para considerações político-criminais. Sob a influência
dessa rigorosa concepção da culpabilidade, a jurisprudência tem fortalecido tais
tendências ao exigir, para admitir a inevitabilidade do erro de proibição, mais do que
o exigido para a observância do dever de cuidado necessário no momento de excluir
a culpa.310
308 GRECO, op. cit., p.138. 309 ROXIN, 2006, p.146. 310 ROXIN, 1981, p.160.
106
Em se levando a sério essa posição, segundo bem anota Roxin, seria
praticamente impossível aplicar essa causa de exculpação. Os erros de proibição
seriam sempre evitáveis se as pessoas tivessem que extremar sua consciência ou o
cuidado em seu dever de informar-se até o ponto que exige a jurisprudência.311 De
fato, o Tribunal Supremo Federal alemão tem sustentado um ponto de vista extremo.
Todas as circunstâncias de todos os fatos constituem razões para se pensar em sua
antijuridicidade. Assim, seguindo essa concepção, o simples atuar já constitui uma
razão para pensar na antijuridicidade. Bacigalupo conclui que, em se partindo de
uma exigência tão rígida, “a vida social se paralisaria”. 312
Para Roxin, uma proibição que não possa ser conhecida suficientemente
seria já ineficaz por razões jurídico-constitucionais; mas se a proibição pode ser
conhecida, seu desconhecimento não poderia ser objetivamente evitável.
Certamente existem pessoas que, subjetivamente, são menos avisadas (a exemplo
dos estrangeiros) que outras.313
No expor de Roxin, nenhum erro de proibição é absolutamente inevitável, em
se considerando os casos práticos, pois que, em teoria, sempre se poderá utilizar os
dados de mais um perito, até que as eventuais dúvidas sobre a licitude da conduta
venham à tona. A jurisprudência, por uma interpretação rigorosa, quase nunca
admite o erro de proibição inevitável. No entanto, segundo Roxin, com quem
concordamos, atende mais à razoabilidade, do ponto de vista político-criminal, a
defesa de uma concepção que atenue os rigores da teoria da culpabilidade, não
exigindo do agente mais do que a medida normal de fidelidade ao direito presente
numa pessoa integrada socialmente.314
Assim, deve-se considerar inevitável o erro quando o cidadão desconhece a
norma, apesar de ter cumprido as expectativas que decorrem de um grau normal de
fidelidade ao direito. Nestas situações, a ausência de sanção não provoca comoção
alguma na consciência jurídica do resto dos membros da sociedade, ou seja, não
existe necessidade preventivo-geral da pena. Nem tampouco o autor manifesta uma
posição contrária ao direito que justifique a pena atendendo a necessidades
311 ROXIN, 1981, p.161. 312 BACIGALUPO, 2002, p.130-131. 313 ROXIN, op. cit., p.161. 314 Idem, 2006, p.159.
107
preventivo-especiais, já que atuou pensando que seu comportamento estava
permitido, em virtude de razões dignas de consideração.315
Concordamos com o autor ao afirmar que não se deve exigir um nível tão
elevado de evitabilidade como o que se deduz da formulação clássica do princípio
de culpabilidade. É desnecessária tamanha exigência, do ponto de vista preventivo,
em uma sociedade tão complexa como a atual, em que existem regulações
minuciosas de muitas facetas da atividade humana.
Dessarte, entendemos que a postura de Roxin, quanto ao erro de proibição,
atende de melhor forma à questão de se aferir a sua existência, bem como a
evitabilidade ou não, em relação à concepção finalista, já que ele considera a
atuação humana no contexto social, atendendo a aspectos preventivos gerais e
especiais da pena e, desse modo, procura ir ao encontro do sustentáculo do Estado
democrático de direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Assim, há uma
maior incidência da inevitabilidade do erro de proibição.
No entanto, o autor comete uma falha, ao nosso ver, quando exige um juízo
de valoração não sobre o erro ou o autor, mas sobre a natureza dos motivos. Para
Roxin, não é relevante o “estado mental” do autor, isto é, se tem ou não
efetivamente dúvidas, mas sim as razões que possam ser consideradas razoáveis
pela sociedade para provocar um estado de dúvida. Roxin não considera relevante a
capacidade intelectual ou cultural do autor.316
O autor alemão sistematiza em três grupos os motivos capazes de provocar
reflexão do agente sobre a antijuridicidade de seu comportamento, ou seja, que dão
origem ao erro de proibição evitável. O primeiro grupo refere-se aos casos em que
existem dúvidas. Em segundo lugar, um erro de proibição é evitável quando o autor
conhece que o setor no qual atua está regulado e não adota qualquer medida de
modo a alcançar os conhecimentos jurídicos necessários. Em terceiro e último lugar,
o erro é também evitável quando o autor é consciente de que seu comportamento
atinge outra pessoa ou a coletividade.317
Desse modo, entendemos que as dúvidas não devem ser consideradas
razoáveis apenas de acordo com o que entende a sociedade como um todo,
devendo-se considerar a capacidade intelectual e cultural do autor. Deve haver uma
315 PG, §21, marg. 38 y 39 apud NIETO MARTÍN, 1999, p. 138. 316 NIETO MARTÍN, 1999, p.139. 317 PG, §21, marg. 56 apud NIETO MARTÍN, op. cit., p.140-141.
108
margem maior de incidência da inevitabilidade do erro de proibição, principalmente
em se considerando a irrelevância do comportamento social do indivíduo e a sua
integração à sociedade contemporânea. Nesse aspecto, cabe citar o exemplo dos
índios no Brasil. É comum, por exemplo, a prática sexual entre eles na mais tenra
idade. Diante disso, deve-se tomar em consideração se o indivíduo se encontra
integrado às normas da dita “cultura civilizada”, e não tomar em conta o padrão do
“homem médio”, para que haja a imputação do crime disposto no artigo 213 do
Código Penal (“estupro contra vulnerável”).
Com efeito, vivemos num país continental, com estatísticas assustadoras a
demonstrar o nosso fracasso no combate ao analfabetismo, sem contar os
chamados analfabetos funcionais, e este mesmo país exige de seus filhos, do
Oiapoque ao Chuí, que conheçam todas as suas leis, todas, devem ser conhecidas
e assimiladas por todos os cidadãos brasileiros, sob pena de serem culpados dos
mais diversos tipos penais, que necessariamente desconhecem por completa falta
de acesso à informação.
Suponha-se que um cidadão analfabeto e faminto, residente no interior da
Bahia, cace e mate um tatu para alimentar sua família. Seus avôs caçaram, seus
pais caçaram e ele, quando tem fome, mata um ou outro animal que encontra para
comer. Suponha, agora, que alguém o denuncie e ele é processado e vai, perante o
juiz, confessar sua suposta prática reiterada de crimes contra o meio ambiente,
afirmando que, até o momento em que foi chamado perante o Poder Judiciário, não
sabia que caçar para saciar a fome fosse crime. Fatalmente, será condenado, a se
admitir que não possa alegar o desconhecimento da lei em sua defesa.
Muitas decisões dos tribunais brasileiros não levam em consideração a
pessoa integral e seu núcleo de direitos fundamentais ao afirmar que o
desconhecimento da lei não é relevante. Ocorre que a dignidade da pessoa humana
não pode ser desprezada em qualquer situação, impondo-se aos intérpretes do
Direito o dever de tê-la como referência, norte, no momento em que se defronte com
uma demanda individual ou coletiva.
Vale citar algumas decisões que demonstram como a jurisprudência
brasileira, majoritariamente, não admite o erro de proibição sem uma análise mais
profunda da relevância da conduta no contexto social, nem da posição do
delinquente na sociedade. Aponta-se como fundamento da inexistência do erro,
muitas vezes, apenas a obrigatoriedade do conhecimento da lei:
109
Ementa: Apelação Criminal - Exposição à venda, com finalidade lucrativa, de CDs e DVDs obtidos com violação de direito autoral.Materialidade delitiva comprovada por boletim de ocorrência, auto de apreensão, laudo pericial e prova oral.Autoria comprovada pela confissão do réu e pelo depoimento do policial que participou da apreensão dos bens falsificados.Erro de tipo e erro quanto à ilicitude do fato não reconhecidos- O réu conhecia a lei e a falsidade dos bens, vendendo-os mesmo assim.Impossibilidade de redução da pena porque as circunstâncias atenuantes e o erro evitável sobre a ilicitude do fato não ocorreram.Recurso desprovido. (APL 990101075989 SP. 6ª Câmara de Direito Criminal.Public. 29/11/2010).
Ementa: Penal. Processual Penal. Apropriação indébita praticada em razão de emprego. Materialidade e autoria incontestavelmente comprovadas. Presença de animus REM sibi habendi. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Ausência de vetores. Erro de proibição não evidenciado. Potencial consciência da ilicitude do fato. Condenação mantida. Dosimetria. Circunstâncias judiciais totalmente favoráveis. Pena base no mínimo legal. Impossibilidade de fixação de pena abaixo do mínimo legal em razão de atenuantes. Causa de aumento de pena. Acréscimo na fração única estabelecida (1/3). Ausência de prejuízo. Regime aberto. Substituição por restritiva de direitos. Recurso desprovido. (APR 961047020098070001 DF 0096104-70.2009.807.0001. 2ª Turma Criminal. Julg. 02/02/2012). Penal. Porte de arma. Artigo 16, parágrafo único, inciso IX da Lei n. 10.826/2003. Erro evitável. Ilicitude do fato. Atipicidade da conduta. Substituição da pena por restritiva de direito. Possibilidade. 1. Desconhecimento da lei é inescusável. Assim, o erro
inescusável não justifica a redução de pena de porte ilegal de arma de fogo quando não resta evidenciado o fundamento do desconhecimento de legislação em comento [...] (APR 99872320078070009 DF 0009987-23.2007.807.0009.2ª Turma Criminal. 18/06/2010). (grifo nosso).
Há raras decisões admitindo a inevitabilidade do erro de proibição com base
na posição social do autor, podendo-se citar o seguinte exemplo que, apesar de
tratar da comercialização de CD pirata, conduta amplamente divulgada como
criminosa pelos diversos meios de comunicação, considera a existência do erro de
proibição no caso concreto, senão vejamos:
EMENTA: Violação de direitos autorais. CD pirata - O princípio constitucional da legalidade é a garantia de que todo cidadão só poderá ser condenado criminalmente se houver lei prévia que permita a ele saber - ainda que potencialmente - que a conduta é crime no ordenamento jurídico. A expressão "violar direitos autorais" é demasiadamente vaga e até mesmo especialistas em Direito Penal não poderiam precisar o seu âmbito de significação, quanto mais um vendedor ambulante sem educação jurídica. O desconhecimento da lei é escusável se
110
esta não for suficientemente clara para permitir que qualquer um do povo possa compreender - ainda que potencialmente - o seu significado - Recurso provido. (TJMG- Apelação 1.0172.04.910501-5/001(1). Relator Des. Erony da Silva. Publicado em 11 de fevereiro de 2005). (grifo nosso).
Também cumpre citar a decisão de Vladimir Passos de Freitas admitindo o
erro de proibição inevitável tendo em vista a situação concreta:
PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. RECEBIMENTO INDEVIDO DE PENSÃO POR MORTE. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. ERRO DE PROIBIÇÃO. ART. 21 DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO. - Incide a excludente de culpabilidade - erro de proibição, se a acusada não alcançou a consciência de ilicitude da sua conduta, supondo inexistir irregularidade na continuidade do recebimento de pensão após a sua maioridade e o falecimento do pai, mormente quando lhe foi renovada a senha do cartão magnético sem a exigência no cumprimento das condições legais para o recadastramento. (ACR 200104010299912, VLADIMIR PASSOS DE FREITAS, TRF4 - SÉTIMA TURMA, DJ 02/10/2002). (grifo nosso).
Diante do exposto, concluímos que a visão de Roxin, quanto ao erro de
proibição, é louvável em muitos aspectos, principalmente ao criticar a posição
tradicional e rigorosa da jurisprudência alemã, que exige ao extremo o dever de
informar-se do cidadão e inadmite, na grande maioria das vezes, o erro. Também
admitimos correta a existência de motivos para o alcance da ilicitude da conduta.
Todavia, o autor objetiva os motivos que levam à evitabilidade do erro de proibição,
ao aduzir que se deve considerar existente a dúvida de acordo com o que a
sociedade entende como razoável, o que é inconveniente na prática, pois cria
presunções de evitabilidade, contrariando o princípio da presunção de inocência.
2.7.2 Culpabilidade e erro de proibição em Günther Jakobs
Igualmente a Roxin, desenvolveu Jakobs sua teoria de culpabilidade de modo
a relacioná-la ao seu entendimento de fins da pena. Todavia, diferentemente de
Roxin, no entender de Jakobs, pune-se para manter a confiança geral na norma,
para exercitar o reconhecimento geral dela. Com arrimo neste fim da pena, o
conceito de culpabilidade não deve se orientar para o futuro, mas sim para o
presente, porquanto o Direito Penal contribui para a estabilidade do ordenamento.318
318JAKOBS, 1995, p.581.
111
Assim, com intuito normatizador do conteúdo da culpabilidade e com base na teoria
sistêmica de Luhmann, defende Jakobs que a pena cumpre uma função preventiva
geral positiva.
Para o autor, não basta apenas partir da finalidade da pena para se derivar
alguma teoria da culpabilidade. O conteúdo da culpabilidade também é determinado
pela constituição social. No entanto, o fim da pena e a constituição social não podem
se combinar com outros conteúdos, mas sim acomodar-se um ao outro.319
Assim, para Jakobs, o conceito de culpabilidade tem de configurar-se
funcionalmente, ou seja, como conceito ligado a determinados princípios de
regulação (de acordo com os requisitos do fim da pena), para uma sociedade de
estrutura determinada. O fim da pena é, segunda sua concepção, de tipo preventivo-
geral. Trata-se de manter o reconhecimento geral da norma, e não de intimidação ou
de lição.320
Jakobs também critica o entendimento do livre arbítrio como pressuposto de
toda culpabilidade ou como pressuposto geral da culpabilidade, afirmando que este
conceito carece de dimensão social. No expor do penalista, ao se limitar a
culpabilidade à garantia da ordem social, não importa se o autor tinha realmente (e
não apenas de uma perspectiva normativa) uma alternativa de comportamento
realizável individualmente. O que importa é saber se havia, para a imputação do
autor, uma alternativa de organização social que seja, geralmente, preferível.321
Desse modo, com o embasamento de sua concepção de culpabilidade na
ordem social, para o autor alemão, o indivíduo só pode receber pena quando ela for
necessária para a manutenção da ordem e da paz social e nos limites exatos de sua
culpabilidade.
Cumpre aduzir que Jakobs tece uma diferenciação entre culpabilidade formal
e material. A culpabilidade formal é por ele denominada de prevenção geral positiva,
no sentido de que a pena serve para fortalecer a vigência da norma atacada. Já a
culpabilidade material é entendida como a infidelidade da pessoa a uma norma
jurídica legítima, sendo aquela que trata o delinquente como pessoa, havendo um
respeito à dignidade da pessoa humana.322
319 JAKOBS, 1995, p.567. 320 Ibidem, p.584. 321 Ibidem, p.585. 322 PACHECO, 2009, p.205-206.
112
Apresenta, portanto, Jakobs um conceito funcional de culpabilidade como um
déficit de fidelidade ao direito (defeito volitivo), cujo juízo é realizado de forma
objetiva, não se considerando as questões individuais do agente. A principal crítica a
seu conceito de culpabilidade diz respeito à incompatibilidade com o princípio da
culpabilidade num Estado Democrático de Direito por atribuir relevância aos critérios
objetivos, principalmente à ordem jurídica, e não aos aspectos individuais do autor
da conduta. Nesse sentido se posiciona Tatiana Corrêa:
A principal objeção do conceito funcional de culpabilidade é a sua desconsideração ao homem como pessoa, negação que resulta nas mesmas consequências da Escola Positiva, que via no homem delinquente um ser diferente. Ao tomar a ordem jurídica como preponderante, como aquilo que deve ser preservado, em detrimento do homem, ocorre a sua instrumentalização, que deve ser combatida tendo em vista o princípio da dignidade humana, que coloca o homem como fundamento daquela.323
Após a excursão sobre a culpabilidade na visão de Jakobs, cumpre abordar o
seu entendimento acerca do erro de proibição. Em se considerando o erro sobre a
existência de uma norma, defende Jakobs que essa falsa representação não afeta
nem o “status quo”, nem o desenvolvimento da realidade, mas sim a norma que
requer do indivíduo um comportamento determinado.324
Jakobs assinala a distinção entre o erro de tipo e o erro de proibição visto
que, em ocorrendo este último, é possível que a própria autocompreensão do direito
se veja questionada, o que não ocorre com o primeiro tipo de erro.325
Assim como Roxin, Jakobs critica o posicionamento tradicional para o erro de
proibição que vem sendo adotado pela jurisprudência alemã desde 1952, o qual se
baseia numa concepção finalista. O Tribunal Supremo alemão aproveita-se do
princípio da culpabilidade como reprovabilidade para aplicá-lo à situação do
desconhecimento da norma da seguinte maneira: “para que o ser humano se decida
a favor do direito, no exercício de sua autodeterminação livre, responsável e moral,
deve conhecer aquilo que é conforme o direito e aquilo que é antijurídico”.326
No entanto, como é possível decidir-se pelo injusto sem conhecer ou, ao
menos, sem poder conhecer o direito? Ocorre que a presunção do conhecimento da
lei foi admitida numa época política e socialmente equilibrada da segunda metade do
323 CORRÊA, 2004, p.232-233. 324 JAKOBS, 1996, p.30. 325 Ibidem, p.31. 326 Ibidem, p.32-33.
113
século XIX. Todos conheciam ou podiam conhecer o Direito Penal, que era claro
naquele tempo. 327 No entanto, Jakobs rechaça esse argumento para a solução do
problema do desconhecimento do direito, já que concorrem fatos psíquicos sobre a
presunção de conhecimento ou de possibilidade de conhecimento da norma. Como
se pode considerar que, àquela época, não havia erros inevitáveis se se
considerava, ao mesmo tempo, que o error iuris inevitável era irrelevante?328
Realmente, parece-nos contradição afirmar que não existiam erros de
proibição inevitáveis (ou o antigo erro de direito), já que todos conheciam as leis, e
dizer que esses erros eram irrelevantes. Ou admite-se que esses erros não existiam,
ou admite-se que, embora existissem, eram considerados irrelevantes juridicamente.
No entender de Jakobs, a fundamentação para a irrelevância da ignorância do
direito, na segunda metade do século XIX, devia ser a seguinte: a obrigação de cada
um de procurar, por si mesmo, o conhecimento do Direito era o preço que havia de
pagar pela liberdade de movimentos na sociedade burguesa nascente. Com o
abandonar das modalidades tradicionais de atividade econômica, surgiu uma
necessidade de segurança para manter contatos bastante anônimos entre as
pessoas, o risco de que elas errassem sobre suas obrigações jurídico-penais era
intolerável; por isso, quem errasse deveria suportar o risco.329
Note-se que Jakobs faz a diferença entre positividade (reconhecimento da
razão de vigência da ordem positiva) e o conhecimento de seu conteúdo atual.
Assim, segundo o autor, um fato cometido com desconhecimento inevitável da
norma jurídico-penal, mas com uma atenção suficiente ao direito positivo em seu
conjunto, contraria a norma em sua configuração atual, mas não fere o princípio que
dá legitimidade a todas as normas: a positividade.330
Para Jakobs, o juízo de evitabilidade do erro de proibição deve ser feito para
saber se o autor é ou não competente (responsável) quanto ao defeito de
conhecimento da antijuridicidade. Para a resposta à questão da evitabilidade ou não
do erro de proibição, há de se levar em conta dois tipos de normas: as fundamentais
e as normas de um âmbito “disponível”, ou seja, normas cujo conteúdo não é, em
uma sociedade determinada, “evidente”.331
327 KUHLEN, 1987 apud JAKOBS, 1996, p.33. 328 JAKOBS, 1996, p.34. 329 JAKOBS, loc. cit. 330 JAKOBS, op. cit., p.37. 331 JAKOBS, 1991 apud BACIGALUPO, 2002, p. 132-133.
114
No campo das normas fundamentais, as razões para se cogitar a
antijuridicidade da conduta somente podem faltar quando se apresenta um déficit de
socialização (por exemplo, quando pertence a uma cultura diversa, em que tais
normas não são reconhecidas). Às normas fundamentais também pertencem
aquelas que regulam um âmbito vital em que o autor tenha atuado durante um
tempo considerável, a exemplo das que regulam o exercício da atividade
profissional.332
No âmbito das normas “disponíveis”, ao contrário, o agente não pode invocar
em sua defesa um déficit real de conhecimento jurídico, se a norma tivesse entrado
em sua consciência, no caso em que houvera tido uma suficiente disposição de
cumprir a norma. Jakobs entende que a pessoa deve responder por seu erro na
hipótese em que, de seu comportamento, surge um reconhecimento insuficiente do
Direito positivo e havia razões para ela pensar na antijuridicidade.333
Assim, em se tratando do erro de proibição e de sua vencibilidade, para
Jakobs, deve-se averiguar se o grau da ignorância do autor pode ser aceito por
parte do Estado e da sociedade, sem que se atinja a função da prevenção geral
positiva do Direito Penal. Por essa razão, a evitabilidade do erro de proibição é um
conceito, tal como o da própria culpabilidade, dependente dos fins da pena.
Pode-se apontar como críticas à concepção de erro de proibição de Jakobs e
de sua evitabilidade as mesmas dirigidas à sua posição da culpabilidade, tendo em
vista que as decisões ficarão mais sujeitas aos fins da pena, não se considerando a
pessoa do infrator em sua integralidade, dotada de particularidades e, sobretudo, de
dignidade.
Há a perda do valor do indivíduo em face da coletividade ou do grupo. Bem
anota Nieto Martín que, para Jakobs, o Direito Penal parece ignorar as
características concretas do autor (inteligência, cultura, formação [...], salvo nos
casos extremos como o da socialização exótica. Apenas interessa o papel que o
indivíduo desempenha na sociedade e que, dentro deste, que ele se mantenha
dentro do parâmetro de cidadão fiel ao direito. 334
Entendemos, portanto, que deve existir um juízo de imputação pessoal o mais
individualizado possível, além de se considerar o contexto social da conduta. Não
332 BACIGALUPO, 2002, p.133. 333 Ibidem, p133. 334 NIETO MARTÍN, 1999, p.150.
115
basta tomar em consideração a coletividade. Todavia, é elogiável a posição de
Jakobs no sentido de criticar a evitabilidade nos modos rigorosos da jurisprudência
tradicional (que segue a concepção finalista), a qual admite a existência do erro de
proibição apenas em casos excepcionais, e de oferecer uma solução considerando
os elementos sociais.
2.8 A POSIÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NA TEORIA DO DELITO PARA O FUNCIONALISMO
Em se considerando a localização da consciência da ilicitude na teoria do
delito, há uma quase unanimidade entre os autores funcionalistas em afastar a teoria
estrita da culpabilidade. Esta teoria considera, conforme já vimos, todo erro sobre a
ilicitude do fato como erro de proibição. Assim, o erro sobre os pressupostos fáticos
de uma causa de justificação são tidos como erro de proibição, podendo excluir ou
atenuar a culpabilidade, sem atingir o dolo do tipo.
Ocorre que a maioria dos funcionalistas defende a teoria limitada da
culpabilidade, no sentido de se admitir o erro sobre a presença de uma situação
legitimante como excludente do dolo.335
No entanto, há defensores do funcionalismo que rechaçam a teoria da
culpabilidade em ambas as suas formas, admitindo-se a teoria do dolo. Otto é um
grande defensor da teoria modificada do dolo.336 Cuida-se de uma nova teoria
limitada do dolo, admitida por alguns penalistas europeus nos dias atuais. Segundo
esta teoria, a consciência da ilicitude integra o dolo. O erro de proibição inevitável,
então, exclui a consciência da ilicitude e, por conseguinte, o dolo; este faz parte da
culpabilidade e, assim, fica excluída também a culpabilidade e, como consequência,
a responsabilidade.337
Já no caso de erro de proibição evitável, para a teoria modificada do dolo, o
agente será punido com a pena do crime doloso, podendo ser atenuada. Neste
ponto, consiste a distinção entre a teoria modificada do dolo e a teoria limitada do
335 GRECO, 2000, p.120-160, p.148. 336 OTTO, 1996 apud GRECO, 2000, p.120-163; p.148. 337 GOMES, 2001, p.67.
116
dolo, já que, para esta última, o erro evitável resulta na punição do autor por crime
na modalidade culposa.338
No Brasil, pode-se destacar como atual defensor do dolus malus Paulo
Queiroz, no sentido de que o conceito causalista de dolo, “entendido como
consciência e vontade de praticar um fato que se sabe proibido, readquire plena
atualidade, não bastando, por conseguinte, um conhecimento naturalístico
apenas”.339
Ante todo o exposto, entendemos que a teoria limitada da culpabilidade,
apesar suas falhas, ainda é a mais adequada, principalmente do ponto de vista
político-criminal, e se coaduna ao funcionalismo penal, bem como ao princípio da
culpabilidade.
O que deve ocorrer é uma melhor interpretação, nos casos concretos, para se
reconhecer a existência do erro de proibição, e não levar ao extremo de impor
exigências muito mais elevadas para a evitabilidade do erro de proibição do que
para a constatação dos crimes culposos. Assim, deve-se considerar a conduta no
contexto social para se aferir a existência do erro de proibição ou não,
principalmente em se admitindo as finalidades preventivas da pena.
Podem-se apontar, ademais, algumas das principais críticas às teorias do
dolo, dentre outras: a) dolo e consciência da ilicitude consubstanciam-se em
fenômenos psicológicos diversos, daí resulta a impossibilidade de reuni-los em um
mesmo conceito; b) a excepcionalidade das condutas culposas, da qual decorrem as
lacunas de impunidade nas teorias do dolo; c) as teorias do dolo tratam com
indiferença a distinção entre a ação cometida em erro culpável de proibição e a
comissão culposa da conduta.
Entendemos, em face do quanto expendido anteriormente, que a teoria
limitada da culpabilidade, apesar de suas falhas, ainda é a mais adequada,
principalmente do ponto de vista político-criminal, e se coaduna ao funcionalismo
penal, bem como ao princípio da culpabilidade.
Ante todo o exposto, o que deve ocorrer é uma melhor interpretação, nos
casos concretos, para se reconhecer a existência do erro de proibição, e não levar
ao extremo de impor exigências muito mais elevadas para a evitabilidade do erro de
proibição do que para a constatação dos crimes culposos. Assim, deve-se
338 GOMES, 2001, p.67. 339 QUEIROZ, 2010, p.227.
117
considerar a conduta no contexto social para se aferir a existência do erro de
proibição ou não, principalmente em se admitindo as finalidades preventivas da
pena.
118
CAPÍTULO III
A CULPABILIDADE E O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
3.1 O DIREITO PENAL INDÍGENA À ÉPOCA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL
O Direito Penal Indígena, quando do descobrimento do Brasil, é objeto de
poucos estudos dentre os doutrinadores da área jurídica. Todavia, pode-se citar,
dentre algumas exceções dignas de registro, as obras de Assis Ribeiro e de João
Bernardino Gonzaga.
Referida escassez decorre das diversas dificuldades do tema, dentre as quais
se sobressai a ausência de uma documentação clara e objetiva sobre os costumes
indígenas. Anota Assis Ribeiro que, às vezes, as notícias apresentadas nos
documentos históricos são tão desencontradas que o autor fica numa situação de
insegurança ao afirmar ou contraditar certas questões respeitantes aos costumes
dos índios, sob o ponto de vista jurídico.340
Como consabido, a história é um dos instrumentos para aprisionar o tempo.
Além dela, outro bom instrumento para conhecer uma cultura é a literatura, dado
que, por meio desta, pode-se compreender melhor o que se pensava na época.
No entanto, os indígenas brasileiros não deixaram documentos reveladores
de seus pensamentos, de seus costumes e, sobretudo, de sua alma. O que há de
literatura desse período são, principalmente, as cartas e os documentos deixados
pelos europeus. Suas informações são abundantes, porém contraditórias. Sobre as
opiniões díspares contidas nos documentos históricos, vale transcrever a seguinte
lição:
As opiniões são desencontradas, mui principalmente porque alguns só viram nos índios elementos bárbaros, crueis, sempre voltados para as baixas inclinações e incapazes de praticarem algum gesto dignificador, ao passo que outros caíram no extremo oposto, fazendo de suas obras verdadeiros hinos de exaltação ao selvagem, só admitindo virtudes nos povos indígenas, sem considerar entre eles a existência de quaisquer vícios.341
340 RIBEIRO, op. cit., p.49. 341 Ibidem, p.51.
119
A despeito da complexidade do tema, não se pode negar a existência de um
direito entre os índios. O que não havia na sociedade indígena brasileira era o direito
escrito, segundo ensina Rocha Pombo:
É admirável como alguns autores (o nosso Varnhagen, por exemplo), chegaram a sustentar que entre os indígenas do Brasil não havia sequer noção alguma jurídica. Conceito semelhante é forçoso reconhecer que é fruto mais de um conhecimento incompleto do verdadeiro estado social do selvagem do que talvez do procedimento que, contra este e sem favor dos privilégios da civilização, gerava, no ânimo de certos historiadores e filósofos, o propósito ilegítimo de tudo negar ao bárbaro. Seria bastante um exame apenas mais cuidadoso da sociedade indígena, para se lograr a certeza desta noção: o direito entre os índios, quer na tribo, quer na taba, quer na família, era um fenômeno tão real, pelo menos, como o é entre os povos mais cultos. Apenas não havia na sociedade rude das selvas o direito escrito.342
Conclui Assis Ribeiro que não apenas existia o fenômeno jurídico entre os
ditos selvagens, como também havia uma seleção de normas, que eram aplicadas
especificamente conforme a gravidade do delito. Assim, nos costumes, nos
privilégios e nas proibições encontram-se princípios penais, que comprovam a
existência de um Direito Penal entre os íncolas, bem como atestam a organização
de uma justiça no seio da sociedade deles.343
Propugnando a linha de pensamento de que o direito penal era encontrável
na sociedade indígena, assinala Pierangeli que “entre os indígenas brasileiros havia
uma série de crimes que eram punidos exemplarmente, e entre eles podemos
alinhar o homicídio, as lesões corporais, o furto, o rapto, o adultério da mulher, a
deserção”.344
Conforme já assentado no presente trabalho, a mentalidade primitiva é
totalmente diferente do pensamento do homem considerado civilizado. Quanto à
responsabilidade penal, afirma Assis Ribeiro que os índios “não consideravam os
seus membros como dotados igualmente de uma mesma responsabilidade”.345
Segundo Ribeiro, às mulheres os indígenas “tiravam uma grande parte da
responsabilidade no analisar os seus atos e aos anciãos se cometiam todas as
342 POMBO, 1956, p.169. 343 RIBEIRO, 1993, p.58. 344 PIERANGELI, 2004, p.42. 345 RIBEIRO, op. cit., p.66.
120
responsabilidades possíveis, por considerá-los como conselheiros quase que
infalíveis nas suas recomendações”.346
Contrariando a posição de Assis Ribeiro, assinala João Bernardino Gonzaga
que os índios brasileiros, quando do descobrimento do Brasil, apenas dominaram os
aspectos objetivos, nivelando todas as hipóteses de responsabilidade.347 Escreve
Gonzaga que há apenas uma fonte, um exemplo que destoa de todos os outros
textos da época: o capítulo XVII do Pe. Ivo d‟Evreux, o qual retrata a misericórdia do
Governador francês diante do pedido de um índio ancião para salvar seu filho da
pena de morte, por ter o irmão deste se ferido (chegando a morrer) nas flechas que
ele trazia em sua cintura, em meio a uma desavença.
Gonzaga discorda do fato de que, em razão do pedido de misericórdia do
velho índio, os silvícolas tivessem o nosso mesmo senso de justiça. Para o autor, o
referido ancião, como já convivia com os brancos, ter-se-ia deixado influenciar por
suas ideias, ou as conhecia o suficiente para saber que, em casos parecidos, não se
justificaria, para os colonizadores, a pena de morte. Ademais, argumenta Gonzaga
que o pai possuía a firme crença de que seu filho seria castigado. Dessa forma, os
silvícolas ainda se achavam presos às antigas concepções objetivistas e
compensatórias.348
Nessa linha de pensamento, ensina Pierangeli que “o homicídio culposo
nunca foi considerado, porque, no geral, reclama um estádio de evolução de que
careciam os nossos silvícolas”.349
Outrossim, vale advertir que não havia qualquer noção de imputabilidade
entre os indígenas. Havia, inclusive, a vingança dos índios contra objetos, animais e
crianças da mais tenra idade. Assevera Gonzaga que as crianças podiam sofrer o
mesmo tratamento vindicativo dispensado aos adultos.350
Ante o depreendido, conclui-se que a responsabilidade dos silvíciolas era
meramente objetiva e que não há qualquer indício de que eles atendiam ao requisito
da culpabilidade, como também não consideraram a questão do erro de proibição.
346 RIBEIRO, 1993, p.64-65. 347 GONZAGA, [19--], p.105. 348 Ibidem, p.105-107. 349 PIERANGELI, 2004, p.43. 350 GONZAGA, op. cit., p.109.
121
3.2 HISTÓRICO DA CULPABILIDADE E DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO
Após análise da responsabilidade objetiva entre os indígenas, quando do
descobrimento do Brasil, mister se faz o estudo sobre o desenvolvimento dos
institutos de acordo com a previsão dos diversos diplomas penais, desde as
Ordenações do Reino até o atual Código Penal de 1940, com a reforma da parte
geral de 1984.
3.2.1 A responsabilidade penal no Livro V as ordenações Filipinas
No Brasil, como Colônia de Portugal, as leis lusitanas deram início à história
jurídico-positiva do Direito Penal brasileiro. Dentre elas, destacam-se as Ordenações
Filipinas, cujo Livro V foi o primeiro estatuto que versou sobre a matéria penal e o
que vigorou por mais tempo no nosso país, alcançando mais de dois séculos, já que
entrou em vigor em 1603 e perdurou até o advento do Código Criminal de 1830.
O Livro V das Ordenações Filipinas possui cento e quarenta e três títulos. Não
há uma parte geral. No que tange à estrutura do referido diploma, cumpre trazer à
colação as palavras de José Frederico Marques:
De par com isto, os preceitos se aglutinavam em uma estrutura primária e rudimentar de indisfarçável empirismo. Falta ao Livro V uma parte geral; e, na parte especial, os delitos se enumeram casuisticamente, sem técnica apropriada, numa linguagem (muitas vezes pitoresca) em que falta o emprego de conceitos adequados do ponto de vista jurídico. As figuras delituosas se amontoam sem nexo, na ausência de espírito de sistema para catalogá-las racionalmente, formando muitas vezes verdadeiros pastiches, tal a confusa e difusa redação dos textos em que se condensam as condutas delituosas e respectivas sanções.351
Cabe mencionar que o referido Código Filipino também cuidou de alguns
assuntos processuais penais, a exemplo do Título CXXXI (“Dos que se livrão sobre
Fiança”).
Ressalte-se que tal diploma penal é bastante criticado pela doutrina e
apontado, muitas vezes, como o “famigerado”,352 monstruoso ou terrível Livro V. Não
obstante as inúmeras críticas dispensadas pelos penalistas, não se pode olvidar que
351 MARQUES, 1997, p. 116. 352 BRUNO, 2005, p. 100.
122
essa legislação refletia a estrutura da sociedade da época. O Livro V das
Ordenações Filipinas não pode ser apenas objeto de censuras, uma vez que ele
trouxe assuntos capazes de sugerir equacionamento, senão idêntico, próximo ou
embrionário do que temos hoje na legislação penal pátria, a exemplo do excesso na
legítima defesa e da delação premiada.353
Saliente-se que há diversos tipos penais referentes às condutas atentatórias à
Igreja, ao Reino e à família, nesta ordem. As penas são bárbaras, atrozes e
desiguais, já que a qualidade ou condição da pessoa influía na sanção.
Não havia, sequer, princípios penais fundamentais, como o princípio da
legalidade e o princípio da culpabilidade, imperando a arbitrariedade na aplicação
das sanções.
Para embasar o posicionamento de que não havia a exigência da relação
subjetiva entre o fato e o seu autor, bastar observar, por exemplo, o disposto no
crime de “Lesa Magestade”, no título VI do Código Filipino, o qual fere o princípio da
pessoalidade, já que a punição alcança não apenas a pessoa do delinquente, mas
também os seus ascendentes e descendentes, senão vejamos:
9. [...] E sendo o commettedor convencido por cada hum delles, será condenado que morra de morte natural cruelmente, e todos os seus bens, que tiver ao tempo da condenação, serão confiscados para a Corôa do Reino, postoque tenha filhos ou outros alguns descendentes, ou ascendentes, havidos antes, ou depois de ter commettido, tal malefício. 13. E em qualquer destes casos acima declarados, onde os filhos são exclusos da herança do pai, se forem varões, ficarão infamados para sempre, de maneira que nunca possão haver honra de Cavalleria, nem de outra dignidade, nem Officio; nem poderão herdar a parente, nem a estranho abinstetado, nem per testamento, em que
353 A legítima defesa foi tratada, primeiramente, no Livro V das Ordenações Filipinas, em seu
Título XXXV, o qual dispunha que “se a morte for em sua necessária defensão, não haverá pena alguma, salvo se nella excedeo a temperança, que devêra, o poderá ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso”. Pela leitura do dispositivo citado, verifica-se que o Código Filipino não apenas versou acerca do instituto da legítima defesa, como também cuidou do seu excesso. No que tange à delação premiada, o referido diploma legal trouxe dois dispositivos referentes ao instituto sob apreço, ambos no Livro V. O primeiro, disposto no Título VI (“Do Crime de Lesa Magestade”), item 12, trata do perdão que deve ser atribuído ao participante e delator do crime de lesa majestade, desde que ele não tenha sido o principal organizador da empreitada criminosa. O segundo dispositivo que cuidou da delação premiada no Livro V das Ordenações Filipinas foi o Título CXVI (“Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão”), cuja redação trata do perdão das penas do delator que relatar a participação de outrem com quem se associou na empreitada para crimes especificados na norma. (Cf. PIERANGELI, 2004, p.100, 120, 181-182).
123
fiquem herdeiros, nem poderão haver cousa alguma, que lhes seja dada, ou deixada, assi entre vivos, como em última vontade, salvo sendo primeiro restituídos à sua primeira fama e stado.354
Outro exemplo de infringência ao princípio da pessoalidade é o estatuído no
Título XIII (“Dos que commettem peccado de sodomia, e com alimárias”), pois que a
pena também atingia os descendentes do autor, conforme se depreende do trecho a
seguir:
Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que peccado de sodomia per qualquer maneira commeter, seja queimado, e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Côroa de nossos Reinos, postoque tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inha-biles e infames, assi como os daquelles que commettem crime de Lesa Magestade.355
Ademais, vai de encontro ao princípio da culpabilidade o exposto no crime de
adultério, no Título XXV, item 10 :
E se algum homem accusasse mulher por lhe fazer adultério com alguma certa pessoa, e por não provar o adultério, ella fosse absoluta, e depois da morte do dito marido ella casar, ou dormir com aquella mesma pessoa per que o marido a accusara, serão ambos condenados, assi elle como ella, em morte natural, e que percão as fazendas para os herdeiros do primeiro marido que a assi accusou, se os accusar quizerem.356
Nota-se a presença de um Direito Penal do Autor no Livro V das Ordenações
Filipinas, já que se pune, por exemplo, os hereges, os apostatas e os feiticeiros.
Nestes casos, sanciona-se pelo que as pessoas são, não pelo que fizeram. Dessa
forma, percebe-se que sempre existiram “inimigos” na sociedade e que a
contemporânea teoria do “Direito Penal do Inimigo”, capitaneada por Günther
Jakobs, não possui fundamentos tão novos quanto possam parecer.
No Brasil, atualmente, pode-se apontar como exemplos de novos inimigos os
racistas e os grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o
Estado Democrático, haja vista que as ações destes agentes foram elencadas na
Constituição Federal como sendo crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Daí
exsurgem as indagações: por que esses crimes são imprescritíveis? Eles são os
mais graves? Não, trata-se de uma escolha do legislador constituinte para chamar a
atenção para estes delitos. Eles não são mais graves, ao nosso modo de pensar.
354 PIERANGELI, 2004, p.100. 355 Ibidem, p.106. 356 Ibidem, p.114.
124
Pode-se citar como um crime mais grave que esses o genocídio. Então, cuida-se de
uma escolha totalmente subjetiva.
Retornando ao Código Filipino, verifica-se que, malgrado a inexistência do
princípio da culpabilidade, compete mencionar que há alguns tipos culposos, como
nos delitos de homicídio (Título XXXV) e de moeda falsa (Título XII, item 1).357
No que se refere à questão do erro e da ignorância, note-se que há textos
esparsos tratando desses assuntos, ainda que de maneira embrionária. Por
oportuno, cabe mencionar que o Livro V das Ordenações do Reino dispôs a respeito
da figura do erro de fato. O Título XIV do mencionado diploma do Reino
estabeleceu o crime “Do Infiel que dorme com alguma Christã, e do Christão, que
dorme com Infiel”. Tal dispositivo, como era de ordinário no Código Filipino,
descreveu a pena de morte para quem cometesse o delito. Entretanto, segundo a
norma, caso a pessoa não tivesse conhecimento da condição de infiel ou de cristã
da outra, estaria aquela isenta da pena. Senão vejamos:358
E isso mesmo o que tal peccado fizer por ignorância, não sabendo, nem tendo justa razão de saber como a outra pessoa era de outra Lei, não deve haver por elle pena de justiça. E sómente a pessoa, que da dita infidelidade for sabedor, ou tiver justa razão de o saber, será punida segundo a culpa, em que for achada.
Também há previsão do erro de fato no Título LIII do Livro V, que prevê o
crime “Dos que fazem Scripturas falsas, ou usão dellas”. No crime do uso de
documento falso, se a pessoa alegar e provar que não sabia da falsidade do
documento, as penas eram relevadas. Nos exatos termos do dispositivo do estatuto
filipino:359
[...] Porém, se a parte allegar e provar alguma razão, per que pareça ao Julgador, que do feito conhecer, que elle não fez a falsidade, nem deu a ella ajuda, conselho, nem favor, nem podia della ser sabedor, ser-lhe-há recebida; e provando tanto, per que deva ser relevado das ditas penas, não lhe serão dadas.
357 Cumpre citar os referidos delitos culposos, tal como disposto no Livro V. Primeiramente,
vale observar o homicídio na modalidade culposa: “E se a morte for por algum caso sem malícia, ou vontade de matar, será punido, ou revelado segundo sua culpa ou innocencia, que no caso tiver” . Já o crime culposo de moeda falsa encontra-se assim previsto : “E se a caza, ou qualquer outra propriedade, onde a moeda falsa for feita, não for culpado em o dito malefício será outrosi confiscada, se o senhor della ao tempo stiver tão perto della, e tiver com o culpado tanta conversação, que razoadamente se possa conjecturar, que devia ser sabedor do tal delicto [...]” (PIERANGELI, 2004, p. 120; 105.)
358 Ibidem, 2004, p.107; 109. 359 Ibidem, p.130-131.
125
Por fim, quanto ao erro de fato, nota-se a sua disposição no Título LXVII, cujo
nomen juris é “Dos que arrancão marcos”. Vejamos a parte do referido artigo que
cuida do erro de fato: “E arrancando marco, não sabendo que o era, mas sómente
com tenção de furtar a pedra, ou a cousa posta por demarcação, haverá a pena de
furto, segundo a vallia della, pois que teve tenção de furtar, e furtou cousa alhêa.”360
Em se considerando o erro de direito, anota Alcides Munhoz Netto que a
presunção de conhecimento comportava exceções, a exemplo das próprias
Ordenações do Reino que, no Título CXXXV, permitia-se que a pena dos delitos
praticados por menores de 17 a 20 anos fosse diminuída, desde que pequena
houvesse sido a malícia da conduta. As outras exceções eram provenientes do
Direito Imperial e do Direito Canônico, aplicáveis, subsidiariamente, em caso de
omissão da lei, estilos ou costumes do Reino. Invocava-se, no Repertório das
Ordenações, as lições dos práticos sobre a escusabilidade da ignorantia iuris, em
relação às mulheres, aos rústicos, aos militares e às crianças, desde que não
incidisse sobre preceitos de direito natural e que houvesse sido impossível a
consulta a peritos.361
3.2.2 A Constituição do Império de 1824
A Constituição de 1824, primeira do Brasil, apesar de ter sido outorgada por
D. Pedro I, possuía tanto dispositivos conservadores, quanto liberais. De fato, a
Carta Magna, promulgada um ano e seis meses após a independência do Brasil,
refletia a contenda existente entre aqueles que queriam limitar os poderes do
imperador, representados, sobretudo, pelos proprietários de terras e os que
apoiavam a manutenção do império.
É preciso mencionar que o art. 179 da referida Constituição possui um caráter
marcadamente liberal e dispõe sobre diversos princípios, direitos e garantias aos
cidadãos, dentre os quais se destacam os princípios penais.
Para o estudo da responsabilidade penal, cumpre assinalar que a
Constituição de 1824 foi o primeiro diploma, no Brasil, que tratou dos princípios da
360 PIERANGELI, 2004, p.138. 361 MUNHOZ NETTO, 1978, p.50-51.
126
culpabilidade e da pessoalidade, consoante se depreende da leitura dos incisos VIII
e XX do art. 179, abaixo expostos :
VIII. Ninguem poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos declarados na Lei; e nestes dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Villas, ou outras Povoações proximas aos logares da residencia do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoavel, que a Lei marcará, attenta a extensão do territorio, o Juiz por uma Nota, por elle assignada, fará constar ao Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testemunhas, havendo-as [...]. XX. Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja.”362
Ademais, o inciso XVIII, do art. 179, da Constituição do Império, exigiu a
elaboração de um Código Criminal, o qual adveio somente em 1830 e que será
abordado no próximo tópico.
3.2.3 Código Criminal de 1830
Proclamada a independência, alguns motivos contribuíram, de maneira
decisiva, para a substituição das Ordenações pelo Código Criminal brasileiro: por um
lado, a situação de vida política autônoma da nação, que exigia uma legislação
própria; por outro, as ideias liberais, as novas doutrinas jurídicas, bem como as
condições da sociedade dessa época, bem distintas daquelas que o Código Filipino
foi destinado a reger.363
Outrossim, não se pode olvidar que a elaboração de um diploma penal
brasileiro tornou-se uma exigência constitucional, conforme já demonstrado neste
trabalho, por meio do art. 179, nº18, da Carta Política do Império.
José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vasconcelos foram
encarregados de elaborarem os projetos, tendo sido dada preferência ao de
Vasconcelos. Foi aprovado o projeto em sessão de 20 de outubro de 1830, na
Câmara, sendo remetido ao Senado. Em 16 de dezembro, D. Pedro I sancionou-o.
Ressalte-se que o Código Criminal tem caráter liberal, o que não é surpresa,
tendo em vista o liberalismo da Constituição de 1824. Ademais, baseou-se no
362 BARRETO, 1971, p.42. 363 BRUNO, 2005, p.102.
127
princípio da utilidade pública, de Bentham, como também recebeu a influência do
Código francês de 1810 e do Código napolitano de 1819.364 Aponta Basileu Garcia
também como influências do Código Criminal o Código da Baviera de 1813 e o
Código organizado por Livingstone para a Louisiana, região que foi integrada,
posteriormente, aos Estados Unidos.365
A despeito dos influxos estrangeiros, não se pode deixar de afirmar que o
Código do Império foi marcado pela originalidade. No dizer de Aníbal Bruno, cuida-
se de “obra legislativa realmente honrosa para a cultura jurídica nacional, como
expressão avançada do pensamento penalista no seu tempo.” O renome do estatuto
criminal é atestado pelo fato de que dois criminalistas europeus aprenderam o
idioma português para melhor interpretá-lo: o belga Haus e o alemão Mittermaier.
Como se não bastasse, o Código espanhol recebeu fortes influências do diploma
brasileiro e, mais tarde, foi substituído por um segundo e terceiro, ambos com base
no primitivo modelo.366
Como exemplos que fundamentam o avanço do Código Criminal, pode-se
citar o princípio da insignificância, estabelecido no art. 2º, item 2º, segunda parte; a
liberdade de imprensa e de crença, tal como elencado no art. 9º, itens 1º e 2º; a
autoria mediata, disposta no art. 4º, dentre tantos outros.367
Em se tratando da culpabilidade, tal como a entendemos nos dias atuais,
verifica-se que não há, no referido diploma de 1830, qualquer menção. E não é de
se esperar o contrário, haja vista que, nesse período, a culpabilidade ainda não tinha
sido alçada à categoria autônoma do delito. Sucede que, apenas nas últimas
décadas do século XIX ao início do século XX, conforme já consignado neste
trabalho, foi apresentada a primeira teoria da culpabilidade, considerando esta
364 BRUNO, 2005, p.103; NORONHA, 1970, p.56-57. 365 GARCIA, 2008, p.179. 366 BRUNO, loc. cit.; GARCIA, 2008, p.180. 367 O princípio da insignificância encontra-se assim estatuído no Código de 1830: “Art. 2º
Julgar-se-há crime ou delicto: 2º (...)Não será punida a tentativa de crime ao qual não esteja imposta maior pena que a de dous mezes de prisão simples, ou de desterro para fóra da comarca”. A liberdade de imprensa e de crença, segundo o art. 9º: “Não se julgarão criminosos: 1º Os que imprimirem e de qualquer modo fizerem circular as opiniões e os discursos enunciados pelos Senadores ou Deputados no exercício de suas funcções, com tanto que não sejão alterados essencialmente na substancia. 2º Os que fizerem analyses razoáveis dos princípios e usos religiosos”. Por fim, cabe citar a autoria mediata: “Art. 4º. São criminosos, como autores, os que commetterem, constrangerem ou mandarem alguém commetter crimes.” (PIERANGELI, 2004, p.237-238).
128
separadamente do elemento da antijuridicidade, por meio da concepção psicológica
de culpabilidade.
Malgrado não dispor sobre a culpabilidade, o art. 3º do Código do Império
prevê a exigência do dolo ao estatuir que “não haverá criminoso ou delinquente sem
má-fé, isto é, sem conhecimento do mal e intenção de o praticar”.368 Pela simples
leitura do dispositivo, observa-se que a má-fé (ou seja, o dolo) era composta pelo
conhecimento do mal e intenção de praticar o delito. Assim, percebe-se que se
exigia o dolus malus, tendo em vista o elemento valorativo, que era o conhecimento
do mal.
Apesar de o art. 3º cuidar apenas do dolo, verifica-se que o Código Criminal
previu a culpa, em sentido estrito, ao longo de seu texto, conforme se pode
depreender do disposto no art.6º, item 1º, que enuncia a receptação culposa.
Além do artigo 3º, o artigo 18, item 1º, previu que a ausência do “pleno
conhecimento do mal” e a da “direta intenção de o praticar” servem como
circunstâncias atenuantes dos crimes. Assim, pelo Código de 1830, o
desconhecimento do mal exclui o crime e o parcial desconhecimento apenas atenua
a pena.369
Entretanto, ao ler os comentários dos doutrinadores da época, inclusive com
citação da jurisprudência, verifica-se que os dispositivos sob apreço não trataram da
consciência da ilicitude. Ocorre que, à época da vigência do Código Criminal,
prevalecia o pensamento de que o conhecimento das leis devia sempre ser
presumido. A jurisprudência posicionava-se no sentido de que a desculpa pela
ignorância de direito “não se conforma com os princípios do direito criminal, que
pressupõem todos conhecidos das leis da sociedade”.370
Thomaz Alves Júnior, escritor à época do Código Criminal do Império,
comentou que a vontade é a base do crime, mas não qualquer vontade, e sim a
vontade livre, porque somente esta oferece o caráter de moral à ação humana. O
homem é responsável por seus atos e é ele próprio quem o sujeita à penalidade.371
Observa-se, nesse aspecto, a influência da primeira estrutura de culpabilidade
como abrangente do dolo e da culpa, tal como foi traçada por Samuel Pufendorf,
para o pensamento do comentador do Código de 1830. Como vimos na parte
368 PIERANGELI, 2004,p.237. 369 Ibidem, p.240. 370 FILGUEIRA JÚNIOR apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.53. 371 ALVES JÚNIOR, 1864, p.153.
129
histórica do desenvolvimento da responsabilidade penal (item 1.6 deste trabalho),
Puffendorf apresentou o conceito de imputação como a ação livre que se considera
pertencente ao autor e, dessa maneira, fundamento de sua responsabilidade.
Outrossim, nota-se que o diploma imperial orientou-se segundo a Escola
Clássica, cujo precursor foi o italiano Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria.
Seus fundamentos foram desenvolvidos por Francesco Carrara, Carmignani e Rossi.
Com base na filosofia iluminista, compreendia essa escola do direito penal que todos
os homens são iguais e têm livre-arbítrio. O crime seria resultado da liberdade de
decisão do homem.
Prosseguindo sua exposição, anota Thomaz Alves que, sendo o crime a
violação, por ação ou omissão, das leis penais, entende-se que, quando o artigo diz
“conhecimento do mal”, quer dizer conhecimento da violação do direito. A despeito
de ter interpretado a expressão disposta no art. 3º do estatuto criminal de 1830 como
sendo a consciência de violação ao direito, o escritor entendeu, com arrimo no
princípio disposto no art. 12 do Código Penal de Portugal, que a ignorância da lei a
ninguém aproveita. Conclui o autor brasileiro que, em se achando o agente nas
condições normais de responsabilidade moral, há a presunção de que conhece o
mal, isto é, a violação do direito que praticou.372
Ao estudar os escritos de Tobias Barreto, notável comentador do Código de
1830, percebe-se que o art. 3º cuidava da imputabilidade e que o conhecimento do
direito era um dos requisitos para se considerar o indivíduo imputável. Na intelecção
de Tobias Barreto, a teoria da imputação apoia-se no fato empírico, indiscutível de
que o homem normal, chegando a uma certa idade, adquire a maturidade e
capacidade precisas para conhecer o valor jurídico de seus atos, bem como para
determinar-se livremente a praticá-los. Conclui o autor que são condições para uma
ação criminosa imputável: 1) o conhecimento da ilegalidade da ação querida
(“libertas judicii”); 2) o poder de o agente, por si mesmo, deliberar-se a praticá-la,
quer seja de forma comissiva, quer seja omissivamente.373
Ante todo o exposto, percebe-se que os doutrinadores, quando da vigência do
Código de 1830, não admitiam a alegação de desconhecimento da lei em qualquer
hipótese, bem como sequer comentavam sobre a falta de consciência da ilicitude.
Desse modo, o art. 3° e o art. 18 (item 1º) não cuidaram do dolo normativo, ou seja,
372 ALVES JÚNIOR, 1864, p.153. 373 MENEZES, 1884, p.36.
130
da exigência da consciência da antijuridicidade para a formação do dolo (ou, tal
como denominado no estatuto brasileiro,“má fé”).
Ademais, constata-se que os doutrinadores da época entendiam que o art. 3º
e o art. 18, item 1º, do estatuto do Império dispunham sobre a imputabilidade e a
semi-imputabilidade, respectivamente.
3.2.4 Código Penal de 1890
No último ano do regime imperial, o Conselheiro João Batista Pereira foi
encarregado pelo Ministro da Justiça de elaborar um projeto de reforma do Código
Criminal de 1830, já que a abolição da escravatura demandava modificações legais.
A despeito de ter sido um Código à frente de sua época, já haviam se passado
sessenta anos da promulgação do estatuto de 1830. Logo, as leis deste diploma não
mais satisfaziam às necessidades da vida social.
Com a proclamação da República, em 1889, intensificaram-se os clamores
pela reforma da legislação criminal. Campos Salles, Ministro da Justiça do Governo
Provisório, não retirou de Batista Pereira a incumbência de elaborar um projeto de
Código Penal. Esse projeto foi convertido em lei pelo Decreto nº 847, de 11 de
outubro de 1890.374
Em razão da celeridade de sua elaboração, o Código Penal de 1890 estava
repleto de defeitos, tanto que se pode afirmar que “o primeiro Código Penal da
República foi menos feliz do que o seu antecessor”. Por muito tempo, as ideias de
reforma do diploma não tiveram êxito, e foram acrescentadas ao Código alterações
e aditamentos. Essas leis esparsas retificadoras ou complementares do Código
foram compiladas e sistematizadas em um só corpo por Vicente Piragibe, que as
denominou de “Consolidação das Leis Penais”, oficializada por meio do decreto n.
22.213, de 14 de dezembro de 1932.375
Saliente-se que não se trata de um novo Código, mas apenas de uma
compilação em um único documento, como meio de sistematizar e facilitar a leitura
das inúmeras leis novas.
374 BRUNO, 2005, p.104. 375 Ibidem.
131
No que tange à culpabilidade, o Código Penal de 1890 filiou-se, assim como o
Código de 1830, à Escola Clássica. Assim, predominava a concepção do livre
arbítrio, de maneira que o homem age segundo sua própria vontade.
Nesse sentido, estatui o art. 7º do Código da República que “crime é a
violação imputável e culposa da lei penal”.376 Oscar de Macedo, escritor
contemporâneo à vigência do Código de 1890, ao analisar o dispositivo mencionado,
entende que não havia necessidade da inclusão da expressão culposa logo após o
termo “imputável”. No entender do autor, a culpabilidade compreende a
imputabilidade. No caso de envolver responsabilidade criminal, a imputabilidade
aparece como elemento constitutivo do crime e, então, os termos “imputabilidade” e
“responsabilidade” são equivalentes.377
No que tange ao erro, a Consolidação de 1932 reproduziu integralmente o
estatuído no Código de 1890. Note-se que o art. 26, “a”, do Código da República,
pela primeira vez na legislação penal brasileira, dispôs expressamente sobre a
ignorância da lei penal. Em seguida, na alínea “b”, o Código prevê o erro sobre a
pessoa ou a coisa e, por último, na alínea “c”, há a previsão do consentimento do
ofendido; in verbis verifica-se: “Não dirimem, nem excluem a intenção criminosa: a) a
ignorância da lei penal; b) o erro sobre a pessoa ou a cousa, a que se dirigir o crime;
c) o consentimento do offendido, menos nos casos em que a lei só a elle permitte
acção criminal.”378
No art. 42 , §1º, há uma repetição do que fora previsto no Código Criminal, já
que considera a circunstância atenuante de não ter havido no delinquente pleno
conhecimento do mal.
Assim, predominava o princípio da irrelevância da ignorância da lei e do erro
quanto à ilicitude do fato, com fundamento na presunção absoluta do conhecimento
da lei por parte de todos. Todavia, vozes isoladas se pronunciaram contra o antigo
aforisma de que a ignorância não escusa, dado que, na realidade, não existe
cidadão que conheça todas as leis.379
376 PIERANGELI, 2004, p.274 377 SOARES, 1907, p.26. 378 PIERANGELI, op. cit., p.275. 379 Pronunciou-se contra a presunção de conhecimento das leis João Vieira de Araújo apud
MUNHOZ NETTO, 1978, p.54.
132
3.2.5 Projeto de Virgílio de Sá Pereira
Logo após a promulgação do Código Penal de 1890, já surgia a ideia de sua
reforma e foram elaborados diversos projetos para substituí-lo. Em 1893, apresentou
João Vieira de Araújo um projeto de Código Penal à Câmara dos Deputados, não
logrando êxito; em 1899, o penalista pernambucano apresentou outro esboço, que
também não vingou; em 1913, foi a vez de Galdino Siqueira, cujo projeto não foi
aprovado.
Por fim, o governo de Artur Bernardes incumbiu o desembargador Sá Pereira
da elaboração de novos projetos. Em 10 de novembro de 1927, foi publicada a Parte
Geral com uma exposição de motivos de Virgílio de Sá Pereira. Em 23 de dezembro
de 1928, houve a publicação do projeto completo, com a parte geral reelaborada.
Esse projeto, em 1930, foi submetido à apreciação de uma Comissão especial da
Câmara dos Deputados, não chegando a concluir seus trabalhos. Uma subcomissão
legislativa foi designada pelo governo provisório da Revolução, constituída por
Evaristo de Moraes, Mário Bulhões Pedreira e por Sá Pereira como presidente.
Prosseguiram os estudos, resultando no projeto revisto de 1935.380
No entanto, o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 interrompeu os
trabalhos em andamento. Note-se que o projeto já havia sido aprovado pela Câmara
dos Deputados e submetido pela Comissão de Justiça do Senado.
Malgrado o projeto em apreço não tenha tido êxito, deve-se destacar que ele
inovou em muitos aspectos, mormente no que tange ao tratamento da ignorância da
lei. Ressalte-se que, diferentemente dos Códigos de 1830 e de 1890, o projeto de
Sá Pereira sofreu, nitidamente, influência da Escola Positiva.
Sucede que, em meados do Século XIX, aumentou a preocupação com a luta
contra a criminalidade crescente. Em 1876, surgiu a Escola Positiva, também
denominada Positivismo Criminológico, podendo-se destacar os estudos de seus
três principais defensores: Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo.
Cada um desses autores desenvolveu a criminologia científica tendo como
base diferentes áreas do conhecimento. Assim, Lombroso partiu da antropologia,
Ferri empreendeu seus estudos com arrimo na sociologia e Garofalo com base na
psicologia. Para essa escola, o delito era considerado uma entidade meramente
380
BRUNO, 2005, p.105.
133
jurídica. Negava-se o livre arbítrio, entendendo que o comportamento dos indivíduos
era marcado pelo determinismo. Assim, não é o homem quem deve conhecer a lei,
mas esta é que conhece o homem.
Elogia Aníbal Bruno o projeto de Sá Pereira, considerando-o como “obra de
estrutura geral avançada, de louvável harmonia técnica e oportuna orientação
científica segundo os princípios da moderna política criminal”. Todavia, não
podemos deixar de dizer que muitas objeções foram dirigidas a esse projeto.381
No tocante à questão do erro de direito, o projeto de Sá Pereira, no nosso
entender, revela-se primoroso, tendo em vista que considerou os problemas da falta
de consciência da ilicitude e da ignorância da lei conectados com a realidade social
e humana, e não de acordo com a ficção jurídica do princípio da obrigatoriedade do
conhecimento das leis.
Virgílio de Sá Pereira distinguiu as infrações penais pela própria natureza das
infrações convencionais, ou seja, ditadas pelas circunstâncias do momento. No
referido projeto, a ignorância, nas infrações meramente convencionais, era causa de
livre atenuação da pena no art. 40, em se tratando do indivíduo que “infringiu a lei
penal na persuasão sincera de ser lícito o acto praticado”. No caso de a ignorância
devida à força maior e impossibilidade manifesta; ou em razão de ser o infrator
analfabeto ou estrangeiro ainda não familiarizado com a língua do país e seus
costumes, o art. 39 estatuía que a própria responsabilidade seria excluída.382
No projeto revisto de 1935, manteve-se, no artigo 30, o disposto no art. 39,
que tratava da exclusão da responsabilidade. Mas a atenuação livre da pena quanto
ao erro sobre a ilicitude da conduta foi retirada.383
Note-se que o projeto original de Sá Pereira acompanhava a tendência da
doutrina estrangeira na direção de se atribuir maior relevo à consciência da
antijuridicidade.
Galdino Siqueira elogia o projeto de Sá Pereira, aduzindo que ele se orienta
mais de acordo com a realidade humana, sem prejuízo da defesa social. Segundo
Siqueira, a presunção absoluta de conhecimento das leis não mais vigora, sendo
suficiente notar o enorme número de leis e regulamentos. A presunção de
381
BRUNO, 2005, p.105. 382
Cf. MUNHOZ NETTO, 1978, p.56. 383
MUNHOZ NETTO, loc. cit.
134
conhecimento consubstancia-se em uma ficção jurídica, alheia ao instituto da
prova.384
Na Exposição de Motivos de seu projeto, Virgílio de Sá Pereira comenta que o
princípio de que a ignorância da lei a ninguém aproveita constitui-se em um dos
alicerces da ordem jurídica, mas assenta-se na presunção de que todos a conhecem
ou, na melhor hipótese, de que todos podem conhecê-la.385
Todavia, a realidade mostra-nos que, em qualquer das hipóteses, a
presunção é falsa. A segunda hipótese, de acordo com o autor do projeto e com
quem concordamos, é ainda mais falsa. Resulta, pois, de uma falsidade lógica, dada
a impossibilidade de o analfabeto ler uma lei que só vigora depois de publicada; e
que é publicada para que seja conhecida pela leitura, a fim de os cidadãos poderem
obedecer às suas prescrições.386
Prossegue o autor que, no campo do Direito Civil, já se acentua a reação
contra a inflexibilidade do princípio da inescusabilidade do desconhecimento da lei,
mas é no Direito Penal que essa reação fala mais alto, haja vista que são as
injustiças resultantes de seu rigor que maior atenção despertam.387
Como sabemos, o Direito Penal deve ser sempre acionado em último caso
(última ratio), em virtude de a sua resposta ser mais gravosa ao cidadão. Há de se
atender, portanto, às exigências ético-sociais de garantia do respeito à dignidade
humana. Dessa forma, possui razão Virgílio Pereira em defender um tratamento do
princípio da inescusabilidade da ignorância da lei mais condizente com a realidade
social.
A despeito do avanço do projeto de Sá Pereira, o seu posicionamento sobre a
flexibilização do princípio da obrigatoriedade de conhecimento das leis não foi
adotado pelo Código Penal de 1940, conforme apresentaremos no tópico seguinte.
384
SIQUEIRA, 1950, p.490. 385
PEREIRA, 1930, p.87. 386
PEREIRA, loc. cit. 387
PEREIRA, loc. cit.
135
3.2.6 Código Penal de 1940
Com a instituição da ordem política do “Estado Novo” no país, bem como em
razão das inúmeras críticas aos projetos anteriores, a exemplo do trabalho de Sá
Pereira, o Ministro da Justiça, Francisco Campos, incumbiu o professor da
Faculdade de São Paulo, Alcântara Machado, de elaborar a redação de um projeto.
Intrigante foi ter sido realizado o convite a Alcântara Machado para redigir o
anteprojeto do novo Código, uma vez que ele foi um importante político do partido de
oposição ao Governo autoritário.
No entanto, havia inúmeros fatores que o tornavam forte candidato para ser o
autor do projeto, tais como: sua capacidade jurídica inquestionável, destacado
professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tendo sido, inclusive,
diretor desta faculdade nos anos de 1931 a 1935, como também foi membro da
Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras.388
Em maio de 1938, Alcântara Machado entregou ao Governo o anteprojeto da
Parte Geral do Código Criminal e, em agosto do mesmo ano, foi entregue o projeto
completo, tendo sido o ponto de partida para o Código Penal vigente.389
Essa redação final do projeto de Alcântara Machado não foi, contudo, a
definitiva. O projeto submeteu-se a uma Comissão Revisora, integrada por Nélson
Hungria, Roberto Lyra, Narcélio de Queiróz, Vieira Braga e com a colaboração de
Costa e Silva. Atendendo às críticas de juristas e da Comissão Revisora, em 12 de
abril de 1940, entrega Alcântara Machado ao ministro Francisco Campos a nova
redação.390
Os estudos da comissão, entretanto, continuaram e o projeto foi concluído e
apresentado ao Governo em 4 de novembro de 1940, tendo sido sancionado como
Código Penal pelo decreto de 7 de dezembro de 1940. O Código entrou em vigor
apenas em 1º de janeiro de 1942.
O novo Código Penal foi muito bem recebido pelos doutrinadores pátrios e
continua em vigor até os dias atuais, apesar da grande reforma da parte geral que
lhe foi feita em 1984, conforme apresentaremos no próximo tópico. Em verdade,
388 Cf aulas ministradas pelo Prof. Dirceu de Melo na disciplina Evolução Histórica do Direito
Penal Positivo Brasileiro, 2º semestre, 2009, da pós-graduação da PUC-SP. 389 BRUNO, 2005, p.106. 390 BRUNO, op. cit.
136
apesar de ser a base do Código, não se trata unicamente do trabalho de Alcântara
Machado, mas também das objeções e discussões desenvolvidas sobre o projeto de
Sá Pereira, bem como dos projetos e Códigos europeus.
Segundo afirma Noronha, o Código de 1940 é “eclético, como se falou e
declara a Exposição de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás,
o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas (nº 27)”.391
Desse modo, verifica-se que o diploma penal de 1940 acolheu ideias positivas, mas
sofre, fundamentalmente, influência da Escola Clássica.
No que se refere à culpabilidade, nota-se que referido instituto foi tratado de
maneira mais pormenorizada e melhor elaborada do que nos diplomas anteriores.
Essa evolução do tratamento da culpabilidade deve-se à própria evolução
dogmático-jurídica penal.
No entanto, o Código Penal de 1940 não foi tão além quanto se poderia
esperar no tocante à culpabilidade. Recorde-se que, à época de sua entrada em
vigor, já fervilhavam as novas concepções normativas da culpabilidade, mormente
por meio dos estudos desenvolvidos por Reinhard Frank, James Goldschmidt,
Berthold Freudenthal e Edmund Mezger, conforme vimos no capítulo II deste
trabalho.
Sucede que o Código de 1940 cuidou da culpabilidade seguindo os termos da
concepção psicológica da culpabilidade, entendendo esta como a relação
psicológica entre o fato e o agente, ou seja, integram-na apenas elementos
psicológicos: o dolo e a culpa.
No que se refere à questão do erro de proibição, verifica-se que o Código de
1940 não evoluiu ou, melhor dizendo, retrocedeu, tendo em vista que não foram
adotadas as ideias de Virgílio de Sá Pereira em se admitir relevância, nas hipóteses
expressas em lei, ao desconhecimento da lei penal e à falta de consciência da
ilicitude. Ao revés, considerou que ambos não eximem de pena.
Na versão original do Código, não havia ainda a atual distinção entre erro de
tipo e erro de proibição, o que é natural, haja vista que referida dicotomia foi
admitida, pela primeira vez, apenas na célebre decisão do tribunal alemão, já
apontada neste trabalho, em 1952. A primeira legislação a adotar essa distinção foi
o próprio Código Penal alemão em 1975, como já vimos nesta dissertação.
391 NORONHA, 1959, p.62.
137
Então, o Código Penal de 1940 trouxe a antiga dicotomia romana “erro de fato
– erro de direito”, atribuindo-se relevância ao primeiro e irrelevância a este último. O
art. 16, cujo nomen juris é “ignorância ou erro de direito” reza que “A ignorância ou a
errada compreensão da lei não eximem de pena”.392
Ante o exposto, percebe-se que o diploma penal em análise filiou-se à
concepção psicológica no tratamento da consciência da ilicitude, pois, como vimos
no segundo capítulo deste trabalho, a teoria psicológica considerou irrelevante o erro
de direito. Diferentemente, a teoria psicológico-normativa ou, simplesmente,
normativa da culpabilidade cuidou do tema entendendo que tanto o erro de direito
quanto o erro de fato são causas de exclusão do dolo. Assim, atribuiu-se relevância
ao erro de direito, por meio das teorias estrita e limitada do dolo.
Na Exposição de Motivos do Código, invoca-se o antigo princípio romano de
que o “error juris nocet”, ou seja, é irrelevante o erro de direito, e argumenta que se
trata de uma exigência político-criminal. Mas, ao mesmo tempo, reconhece que a lei
nem sempre “é um reflexo da consciência jurídica coletiva, representando apenas
conveniência política de momento.” Por fim, alega-se que, em tais caos, “atende o
projeto, na medida do possível, incluindo entre as „circunstâncias que sempre
atenuam a pena‟ o escusável erro de direito”.393
Verifica-se que, na própria exposição de motivos, há a consideração da
relevância do desconhecimento da lei, mas que, por razões de política criminal, o
tratamento adequado que se encontrou foi o de apenas se considerar a atenuante
do erro de direito.
Assim, o Código Penal de 1940, em sua versão primária, negou relevância
tanto ao desconhecimento da lei quanto ao erro sobre a ilicitude do fato, apenas se
admitindo as atenuantes da ignorância ou errada compreensão da lei penal, quando
escusáveis, segundo dispunha o art. 48, III.
Perfilhou o Código Penal brasileiro o entendimento estatuído no Código
italiano, segundo o qual ninguém pode invocar como escusa a ignorância da lei
penal. De forma diversa tratou o Código Penal suíço vigente àquela época, que
permitiu até o perdão judicial para a escusável ignorância da antijuridicidade.394
392 PIERANGELI, 2004, p.443. 393 Ibidem, p.412-413. 394 MUNHOZ NETTO, 1978, p.57.
138
Importante é a invocação, nesse contexto, da Lei de Contravenções Penais,
publicada em 13 de setembro de 1941. Na Exposição de Motivos do Código Penal
de 1940, admite-se que não há distinção ontológica entre crime e contravenção,
sendo a diferença entre as duas espécies de infração penal apenas de grau ou
quantidade, ou seja, por critérios práticos.395
Nota-se que o artigo 8º da Lei de Contravenções, que, atualmente, ainda se
encontra em vigor, admite o perdão judicial do escusável para o erro de direito.
Assim, a referida lei considera relevantes o desconhecimento da lei e o erro sobre a
antijuridicidade, de maneira a nem se aplicar a pena.
Observa-se, outrossim, que na Exposição de Motivos do Código Penal de
1940, argumenta-se a distinção entre crime e contravenção pelo fato de que esta é
“dificilmente subordinável a um espírito de sistema e adstrita a critérios
oportunísticos ou meramente convencionais”.396
Diante dessa asserção, deve-se indagar: e as inúmeras leis penais especiais
que surgem por simples conveniência e que trazem, em seu bojo, crimes não
correspondentes ao espírito de repúdio da sociedade? Por que não se consideraria,
também, a escusabilidade da ignorância da lei e do erro sobre a ilicitude do fato?
A Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914, de 9 de dezembro
de 1941, conceitua crime e contravenção, estatuindo que aquele é a “infração penal
a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer
alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. Por seu turno, contravenção é
a “infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de
multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.397 Assim, percebe-se que a
definição para cada uma das espécies de infração penal baseia-se tão somente na
sanção.
À vigência da versão original da parte geral do Código de 1940, muitos
escritores manifestaram-se contra a regra disposta no art. 16. Criticando o
dispositivo, Galdino Siqueira ensina que ele teve como base o art. 5º do Código
Penal italiano, mas que este parte de um pressuposto diverso do quanto entendido
no Brasil. Segundo Siqueira, na Itália, não se diz que a ignorância não escusa
porque se presume que cada um conhece a lei, mas, no caso em que alguém a
395 PIERANGELI, 2004, p.406. 396 PIERANGELI, op. cit. 397 GOMES, 2010, p.229.
139
ignore, esta ignorância não aproveita, pois que faltou ao próprio dever cívico de
conhecê-la.398
Assim, naquele país europeu, tratava-se de um dever cívico o conhecimento
das leis, imposto a todos os que se encontravam no território do Estado,
constituindo-se em um correlativo da tutela jurídica de que o mesmo Estado concede
a todos os habitantes de seu território e sem o qual não teria valor a obrigatoriedade
da lei. Entretanto, na legislação brasileira, quando da antiga parte geral do Código
Penal, predominou o princípio da irrelevância da ignorância ou erro de direito em
matéria penal, com o simples fundamento na presunção absoluta do conhecimento
da lei por parte de todos.399
Como veremos no último capítulo deste trabalho, de forma mais detalhada, a
jurisprudência da Itália considerou inconstitucional o princípio da inescusabilidade da
ignorância da lei penal, disposto no art. 5º do Código Penal, em 24 de março de
1988, com fundamento principal no princípio da culpabilidade. No entanto, no Brasil,
continua valendo este princípio sem qualquer discussão mais profunda quanto ao
seu fundamento.
Vale asseverar, por fim, que o Código de 1940 previu as descriminantes
putativas como uma das modalidades de erro de fato, segundo consta da segunda
parte do art 17, in verbis: “É isento de pena [...] quem, por erro plenamente
justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a
ação legítima”.400
3.2.7 Anteprojeto de Nélson Hungria e o Código Penal de 1969 como tentativas de substituição ao Código Penal de 1940
Igualmente ao que aconteceu com os Códigos anteriores, assim que o Código
Penal de 1940 entrou em vigor, logo expuseram, os doutrinadores da época, as
críticas, surgindo as primeiras leis retificadoras, a exemplo da Lei nº 2.505/55,
corrigindo a cominação da pena no art. 180.
O Governo de Jânio Quadros, em razão do clamor revisionista, bem como
das mudanças por que passava a sociedade, resolveu elaborar novo Código Penal
398 SIQUEIRA, 1950, p.489-490. 399 SIQUEIRA, loc. cit. 400 PIERANGELI, 2004, p.443.
140
e, para isso, incumbiu Nélson Hungria da realização do texto básico, que apresentou
seu anteprojeto em 1963, o qual se submeteu a uma comissão revisora.
Estenderam-se os trabalhos por muito tempo, perpassando-se pela turbulência
política que culminou com a Revolução de 1964. Prosseguiu a revisão, realizada por
outra comissão até que, em 21 de outubro de 1969, foi editado o novo Código Penal,
por meio do decreto nº 1.004.401
Ressalte-se que o novo Código de 1969 nunca entrou em vigor. Em agosto de
1978, por meio de mensagem presidencial instruída com Exposição de Motivos do
então Ministro da Justiça, o Poder Executivo solicitou ao Congresso a conversão em
lei de um projeto que declarava revogado o Código Penal de 1969, estendida a
revogação às leis que lhe diziam respeito. Sendo assim, foi promulgada a Lei nº
6.578, em 11 de outubro de 1978, estabelecendo a revogação do Código Penal de
1969, e das Leis n. 6.016, de 31 de dezembro de 1973, e n. 6.063, de 27 de junho
de 1974.402
Verifica-se, desse modo, que o Código Penal de 1940 foi ab-rogado sem,
sequer, ter começado a vigorar, subsistindo, então, o Código Penal de 1940. Esse
fato retrata o maior tempo de vacatio legis da história do país, pois que, perdurou de
1969 a 1978, quando foi promulgada a Lei nº 6.578 que, em verdade, ab-rogou o
diploma penal.
Em se referindo à culpabilidade, nota-se a influência da concepção
normativista alemã. Dessa forma, ao contrário do Código de 1940, que se filiava
mais à concepção psicológica, o Código de 1969, em que pese não ter entrado em
vigor, trouxe as ideias normativas que já haviam sido bastante discutidas na Europa.
Todavia, observa-se que, em verdade, o Código de 69 não foi tão avançado quanto
possa, a princípio, parecer. Recorde-se que, nesse ano, já estavam em discussão e
com crescente aceitação as novas ideias do finalismo penal, principalmente
capitaneadas por Hans Welzel.
Na Exposição de Motivos do Código de 1969, alega-se expressamente, no
tocante ao tratamento do estado de necessidade, por exemplo, a filiação à teoria
normativa da culpabilidade, de acordo com o requisito da normalidade das
circunstâncias traçado por Reinhard Frank.403
401 BRUNO, 2005, p.107. 402 GARCIA, 2008, v.I, p.188. 403 Cf. PIERANGELI, 2004, p.514.
141
No que tange ao erro de direito, note-se que o anteprojeto de Código Penal
de Nélson Hungria de 1963, retomou o critério do projeto de Virgílio de Sá Pereira,
permitindo até mesmo a exclusão da pena, em se tratando de suposição de licitude
do fato decorrente de escusável ignorância ou erro de interpretação da lei (art.
19).404
Entretanto, o Código Penal de 1969, afastando-se do critério de Sá Pereira,
apenas admitiu, na mesma hipótese, a atenuação da pena ou sua substituição por
outra menos grave, regra que foi mantida pela Lei nº 6.016, de 31 de dezembro de
1973. Assim, manteve-se a tradicional distinção entre erro de fato e erro de direito, a
despeito de se ter reconhecido, na própria Exposição de Motivos, que a divisão entre
erro de tipo e erro de proibição tem maior perfeição técnica.405
Desse modo, percebe-se que, no que se refere ao erro quanto à
antijuridicidade, não foi adotado o entendimento da concepção normativa da
culpabilidade, que defendiam as teorias estrita e limitada do dolo. No Código de
1969, o escusável erro de direito não excluía o dolo, mas apenas era capaz de
atenuar a pena ou de substituí-la por outra menos grave.
3.2.8 Reforma da parte geral de 1984
O atual Código Penal foi totalmente reformulado, em sua parte geral, por meio
da Lei n. 7209, de 11 de julho de 1984. Ocorre que, em 1980, o Ministro da Justiça
Ibrahim Abi-Ackel nomeou Francisco de Assis Toledo, Francisco de Assis Serrano
Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério
Lauria Tucci e René Ariel Dotti para atuarem na primeira fase de reforma, ou seja,
para participarem da comissão de redação do anteprojeto da nova Parte Geral do
Código Penal.406
A segunda fase do andamento da reforma foi destinada à revisão dos textos e
análise das sugestões e críticas dirigidas pelo meio acadêmico, profissionais do
Direito (OAB, Escolas Nacional e Estadual da Magistratura, Escola do Ministério
Público), especialistas das ciências penais, imprensa e público em geral. A comissão
404 MUNHOZ NETTO, 1978, p.57. 405 Cf. PIERANGELI, 2004, p.514. 406 DOTTI, 2010, p.292.
142
revisora foi composta por Francisco de Assis Toledo (coordenador), Dínio Santos
Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior.407
No que tange à culpabilidade, vale notar que a nova parte geral do Código
Penal adotou a teoria da culpabilidade do ato ou do fato, que se contrapõe à teoria
da culpabilidade do autor, também chamada de teoria da culpabilidade de
personalidade, de caráter ou de condução de vida.408
No Código Penal de 1940, reformado pela Lei n. 7209/84, censura-se o autor
em face do seu ato típico e antijurídico, e não em razão de sua personalidade. Assim
sendo, optou a reforma pela concepção normativa pura da culpabilidade, nos moldes
traçados pelo sistema finalista. A culpabilidade afigura-se, então, como a
reprovabilidade de uma conduta injusta a um autor, desde que este tenha atuado
com uma disposição anímica contrária à norma violada.
Segundo a Exposição de motivos da referida lei, é no tratamento do erro que
o princípio da culpabilidade “aflora com todo o vigor no direito legislado brasileiro”.
De fato, houve uma grande evolução no tratamento do erro de proibição em relação
ao que fora versado na versão original do Código Penal de 1940. Os artigos 20 e 21
da nova parte geral passaram a distinguir o erro sobre os elementos do tipo e o erro
sobre a ilicitude do fato, consoante a postura adotada pela legislação penal alemã
em 1975.
A evitabilidade do erro sobre a ilicitude do fato foi definida tendo como base a
consciência potencial da ilicitude, segundo consta do parágrafo único do art. 21,
senão vejamos: “Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a
consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou
atingir essa circunstância”.409 Pela leitura desse dispositivo, verifica-se a exigência
do “dever de informar-se” para se aferir a evitabilidade do erro de proibição, tal como
enunciado por Hans Welzel e conforme apresentaremos no próximo capítulo deste
trabalho.
O erro de tipo liga-se à tipicidade. Já o erro de proibição, de acordo com a
Reforma de 1984, relaciona-se à culpabilidade, recaindo sobre a ilicitude da
conduta. Segundo a própria Exposição de Motivos da lei de reforma de 1984, houve
a opção pela teoria limitada da culpabilidade. Separou-se o dolo da consciência da
407 DOTTI, 2010, p.293. 408 PIERANGELI, 1999, p.125. 409 GOMES, 2010, p.270.
143
ilicitude. O dolo integra-se à tipicidade, enquanto a consciência da ilicitude revela-se
como elemento autônomo da culpabilidade. Ressalte-se, como já esclarecido, que
não se trata de um conhecimento real, bastando a potencialidade da consciência.
O erro de proibição elimina a consciência da ilicitude e, assim, exclui a
culpabilidade. O erro de proibição inevitável impede a condenação, pela exclusão da
culpabilidade, já o erro evitável atenua a pena de um sexto a um terço, conforme o
estatuído na segunda parte do art. 21, “caput”.
Conforme vimos, a Exposição de Motivos da Reforma Penal de 1984 filia-se,
expressamente, à teoria limitada da culpabilidade. Desse modo, entende que o erro
sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação consubstancia-se em
erro de tipo permissivo, que produz o mesmo efeito do erro de tipo: exclui o dolo.
No caso, entretanto, de o erro incidir sobre a existência ou os limites de uma
causa de justificação, configura-se o erro de proibição indireto ou erro de permissão.
Nestes casos, as consequências jurídicas são as mesmas do erro de proibição
direto: o inevitável exclui a culpabilidade, não o dolo; enquanto o evitável permite a
redução da pena do crime doloso de um sexto a um terço.
Alguns autores propugnam que o Código Penal, com a reforma da parte geral
de 1984, não se posicionou, expressamente, pela teoria limitada da culpabilidade no
tocante às descriminantes putativas, mas sim à teoria extremada.410 Assim,
defendem esses autores que todas as descriminantes putativas (incluídos os
pressupostos fáticos) constituem erro de proibição indireto, tal como faz a teoria
extremada da culpabilidade.
Parece-nos que esse posicionamento não se adequa ao disposto no Código
Penal brasileiro reformado. O art. 20, §1º, cuida do erro de alguém que, plenamente
justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, acaso existisse, tornaria
legítima a ação, ou seja, trata do erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa
de justificação. Segundo o referido dispositivo, não há isenção de pena quando esse
erro “deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”.411
Assim, entendemos que, o art. 20, §1º, segunda parte, estatui que o erro
sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, quando vencível, exclui
410 Em defesa da teoria extremada, posicionam-se os seguintes autores, dentre outros,
segundo aduz Luiz Flávio Gomes: FRAGOSO, Lições de direito penal, p.191; Heitor COSTA JÚNIOR, Aspectos da Parte Geral do Anteprojeto de Código Penal, p.462-463; Luiz LUISI, O tipo penal, p.125 apud GOMES, 2001, p.96-97.
411 GOMES, 2010, p.270.
144
o dolo e permite a punição a título culposo, caso haja a previsão culposa da conduta,
filiando-se, portanto, o nosso Código Penal, à teoria limitada da culpabilidade.
Importa mencionar que o art. 21, cujo título do artigo é “Erro sobre a ilicitude
do fato” trata não apenas da falta de consciência da ilicitude do fato, como também
do desconhecimento da lei penal, mas em sentidos totalmente diversos. Estabelece
o dispositivo que “O desconhecimento da lei é inescusável” e, logo em seguida,
afirma que “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável,
poderá diminuí-la de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço)”.412
Desse modo, como se trata de conceitos diferentes, consoante mostraremos
mais adiante, verifica-se que houve uma evolução no tratamento apenas do erro
sobre a ilicitude do fato e o desconhecimento da lei penal continua a ser preceituado
de acordo com a regra geral da obrigatoriedade de conhecimento da lei por todos,
tal como já se apregoava no antigo direito romano.
No entanto, de acordo com o que foi apresentado no percurso histórico da
responsabilidade penal e do erro, percebemos que o tratamento dado ao
desconhecimento da lei penal, no antigo direito romano, era menos severo do que o
atual. De fato, na Roma Antiga, havia decisões tanto pela relevância, quanto pela
irrelevância do antigo erro de direito (o qual abrangia o desconhecimento da lei
penal). O Direito Penal brasileiro adotou o princípio romano da inescusabilidade da
ignorância da lei, mas não trouxe as inúmeras exceções a ele, que consideravam a
natureza da lei ignorada, a natureza do ato contrário ao direito e as circunstâncias
pessoais, consoante já apontado neste trabalho. O Código Penal atual previu
apenas a ignorância da lei como circunstância atenuante, tal como reza o art. 65, II.
Destarte, percebe-se que, nos dias hodiernos, a jurisprudência brasileira, em
sua maioria, interpreta o art. 21, caput, primeira parte, como sendo um princípio
absoluto, sem considerar as circunstâncias concretas, tais como a cultura e a
educação, e nem tampouco leva em conta a reprovação social da conduta. Como se
não bastasse, apesar de alegar que o erro de proibição e o desconhecimento da lei
penal são conceitos distintos, ao aferir a existência ou não do erro de proibição, bem
como a sua evitabilidade ou inevitabilidade, afirma simplesmente que o erro de
proibição não se aplica dada a obrigatoriedade do conhecimento das leis.
412 GOMES, 2010, p.270
145
Tendo em vista entendermos incongruente a postura acima citada,
apresentaremos, no próximo capítulo, o desenvolvimento da falta de consciência da
ilicitude do fato e do desconhecimento da lei penal, partindo da análise do objeto da
consciência da ilicitude até chegarmos à contraposição entre a regra absoluta da
inescusabilidade da ignorância da lei penal e o princípio da culpabilidade.
Diante disso, verifica-se a necessidade de se analisar criticamente o antigo
brocardo ignorantia legis non escusat, da inescusabilidade da ignorância da lei
penal, o qual foi acolhido pela legislação pátria, mas que vem perdendo força na
doutrina estrangeira, tais como na italiana e alemã, para admitir-se a relatividade
desse preceito, tendo em vista que o desconhecimento da lei penal, quando
inevitável, possa ser uma espécie do chamado erro de proibição direto, o que
justifica o interesse desta pesquisa, haja vista a sua atualidade e importância,
malgrado sempre se tenha cuidado da matéria desde as legislações mais antigas.
146
CAPÍTULO IV
DESCONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO E DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL
4.1 OBJETO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Como exposto no presente estudo, segundo a teoria normativa pura da
culpabilidade, o juízo de censura se faz em relação à imputabilidade, à potencial
consciência da ilicitude e à exigibilidade de conduta diversa. Cuida-se de um juízo
de reprovação pessoal, realizado sobre um autor de um fato típico e ilícito, que podia
se comportar conforme o direito, mas optou livremente por se comportar
contrariamente a este.
O problema da falta de consciência da ilicitude, consoante lição de Figueiredo
Dias, ganhou, há bastante tempo, direito de ser considerado “um dos mais
importantes e debatidos, mas simultaneamente um dos mais complexos e obscuros,
de todo o direito penal”.413 Conquanto a dificuldade do tema, deve-se destacar a sua
relevância na sociedade contemporânea, em que há um número cada vez maior de
leis penais criadoras das infrações não correspondentes à consciência social e que
suscitam, com maior frequência, a questão da consciência da ilicitude.
Torna-se imprescindível delimitar o que o autor precisa saber para ter o
conhecimento do ilícito do fato e, desse modo, estar sujeito à reprovação penal. É
suficiente que o indivíduo saiba que faz algo ilícito? Ele deve saber que infringe uma
norma penal ou basta entender que é proibido pela ordem jurídica? Não seria o
bastante o reconhecimento da imoralidade ou da antissocialidade de sua conduta?
Ressalte-se a quase ausência de discussão, no Brasil, sobre o conteúdo do
“substrato psíquico mínimo do conhecimento do injusto” para a configuração da
culpabilidade no Direito Penal,414 destacando-se a atenção dispensada ao assunto
por Francisco de Assis Toledo, Juarez Cirino dos Santos e Cláudio Brandão.415
Os posicionamentos elaborados pelos diversos penalistas que cuidaram da
conceituação do objeto da consciência da ilicitude foram agrupados em três critérios
413 DIAS, 2009, p.01. 414 SILVA, 2008, p.11. 415 TOLEDO, 1994, p.258; SANTOS, 2000, p.232-233; BRANDÃO, 2010, p.237-241.
147
por Juan Córdoba Roda: formal, material e intermediário.416 Cirino dos Santos
dividiu-os também em três grupos, denominando-os de tradicional, moderno e
intermediário.417 Já Cláudio Brandão classificou-os em dois grandes grupos: o formal
e o material.418 Observe-se que, dentro de cada critério, existem posições diversas.
Apresentaremos, a seguir, a classificação exposta por Juan Córdoba Roda.
4.1.1 Critério formal
O primeiro grupo, qualificado como formal, tem como representantes Binding,
Beling e Franz von Liszt, conforme preleção de Córdoba Roda.419 Segundo esse
critério, o agente deve saber, ao cometer o delito, que infringe uma norma.
Karl Binding, em sua obra “La culpabilidad en Derecho Penal”,420 situa a
consciência da antijuridicidade no dolo. Binding conceitua o dolo como “la voluntad
de cometer por sí mesmo una acción delictiva a pesar de su contradicción
representada con el deber jurídico (norma) que la prevé”.421 O autor ainda enfatiza o
elemento da consciência da antijuridicidade no dolo:422
Pode-se dizer com exata equivalência: acompanhada da representação correta de todos os elementos do delito, e mais brevemente ainda: a vontade de uma concreta antijuridicidade acompanhada do conhecimento desta. Seus elementos são querer e saber (representar-se).
Sobre o objeto da consciência da ilicitude, entende Binding como o
conhecimento de que determinado ato viola uma norma positiva com certo conteúdo,
embora não haja necessidade do conhecimento profundo da própria lei transgredida,
416 Referido trabalho é apresentado em sua obra cujo título é “El conocimiento de la
antijuridicidade en la teoria del delito”. Nas palavras do autor: “En relación a la determinación del objeto de la indicada consciência se deberán dilucidar varios puntos, siendo fundamentalmente tres los critérios mantenidos para su solución” (Cf. CÓRDOBA RODA, 1962, p.89).
417 SANTOS, 2000, p.232-233. 418 BRANDÃO,2010, p.237. 419 CÓRDOBA RODA, 1962, p.89. 420 Título espanhol traduzido da obra original alemã “Die Schuld in Deutschen Strafrecht”. 421 BINDING, 2009, p.47. 422 Tradução livre da obra de Karl Binding (2009, p.47): “Se puede decir com exacta
equivalência: acompanhada de la representación correcta de todos los elementos del delito, y más brevemente aún: la voluntad de uma concreta antijuridicidad acompanhada do conocimiento de ésta. Sus elementos son querer y saber (representarse).”
148
já que o leigo não precisa saber especificamente que o seu fato se enquadra em
determinado tipo legal. Disserta o autor:423
Neste caso, trata-se de uma subsunção de leigo com instrumentos de leigo, que apenas no caso de um delinquente com formação jurídica suporá a subsunção da ação ao tipo de uma lei penal, e com ainda menor freqüência, sua subsunção conceitual sob a proposição jurídica que fundamenta o dever, a norma. O autor não tem que saber nada de norma.O autor não tem que saber nada de norma e de lei penal, basta que sua intuição jurídica o diga acertadamente: não é permitido atuar tal qual como quero atuar.
Assim, informa Córdoba Roda que Binding, tomando por base sua concepção
de delito, considera que, para o conhecimento do injusto, exige-se a representação
de sua formal antijuridicidade: o conhecimento da norma lesionada.424
Por outro lado, Franz von Liszt, como principal articulador da teoria
psicológica da culpabilidade, entendeu que a consciência da antijuridicidade, ou tal
como ele denominou “la ciencia de la ilegalidad”, não é um elemento essencial do
conceito de dolo. Mais rigoroso que Binding, entende von Liszt que, para haver essa
consciência, é necessário que o agente saiba que o fato corresponde a um tipo
legal. Já o dolo exigiria apenas o conhecimento do autor de que seu ato foi dirigido
contra um interesse juridicamente protegido.425
Adere, ainda, à corrente formal, Beling. Conforme posicionamento do autor,
não há necessidade de que o agente conheça especificamente a norma que viola,
nem tampouco o tipo penal no qual se enquadra seu fato, apenas sendo necessária
a consciência de violar a ordem jurídica, até mesmo o direito não escrito. Dessa
forma, anota Córdoba Roda que Beling é partidário de uma posição mais moderada,
segundo a qual basta que o sujeito saiba que sua conduta infringe “qualquer”
norma.426 No entender de Beling:
423 Tradução livre: “En este caso, se trata de uma subsunción de lego com instrumentos de
lego, que sólo em el caso de um delicuente com formación jurídica supondrá la subsunción de la acción bajo el tipo de uma ley penal, y com aún menor frecuencia su subsunción conceptual bajo la proposición jurídica que fundamenta el deber, la norma. El autor no tiene que saber nada de norma y ley penal, basta com que su intuición jurídica le diga acertadamente: no puede estar permitido actuar tal y como quieres actuar.” (BINDING, 2009, p.54).
424 Tradução do original: “BINDING, tomando como base su concepción del delito, considera que para el conocimiento del injusto se exige la representación de su formal antijuridicidad: el conocimiento de la norma lesionada”.(CÓRDOBA RODA, 1962, p.89).
425 LISZT, 1999, p.424. 426 CÓRDOBA RODA, op. cit., p.89
149
Algunas leyes penales que no destacan expressis verbis la antijuridicidad como requisito de la punibilidad (p. ej., C. P. 211, 223) parecen más bien suponer que las acciones en ellas descriptas son antijurídicas em general, sino siempre, de acuerdo com el orden jurídico. El conjunto de preceptos jurídicos sobre la antijuridicidade extraído del cuerpo de disposiciones penales (“indiciados” por éste) no da, como a veces se há dicho, uma „antijuridicidad penal específica‟. No se trata ni de una antijuridicidad “contra el Derecho Penal” ni de una antijuridicidad que lo sea tan sólo para el Derecho Penal y no para el ordenamento jurídico em general.427
Explica Córdoba Roda que o acolhimento de uma solução formalista se
encontra intimamente relacionado à finalidade a que se atribui ao Direito punitivo. No
caso de se destinar ao ordenamento penal um fim de prevenção geral (a coação
psicológica da pena deve evitar o cometimento do delito), dever-se-á exigir,
consequentemente, o conhecimento da punibilidade da conduta.428
A principal crítica direcionada à concepção formal do objeto da consciência da
ilicitude refere-se ao argumento de que somente os juristas ou, mais
especificamente, os técnicos em Direito Penal, poderiam cometer as infrações
penais. De fato, a presunção de conhecimento da lei não corresponde à realidade
dos fatos, cuida-se de pura ficção jurídica. Nem os próprios operadores do direito
conhecem todas as leis, muito menos poder-se-á dizer dos indivíduos não
pertencentes ao ambiente jurídico, e menos ainda, dos analfabetos e moradores
distantes dos grandes centros do país.
4.1.2 Critério material
O segundo critério para a determinação do objeto da consciência da
antijuridicidade é o material. Essa concepção se baseia no reconhecimento da
natureza material do injusto, exigindo, para a representação da antijuridicidade, o
conhecimento da antissocialidade da conduta, da contrariedade ao dever, da
imoralidade do comportamento ou da lesão de um interesse.429
427 BELING, 2002, p.44. 428 CÓRDOBA RODA, 1962, p.90. 429 CÓRDOBA RODA, loc. cit.
150
Córdoba Roda aponta como principais defensores dessa concepção: Sauer,
Gallas, Hippel, C. Espósito, Mayer e Arthur Kaufmann. Convém, então, apresentar o
posicionamento de cada um desses autores.430
Segundo Sauer, a tendência socialmente danosa deve ser conhecida pelo
autor. Enquanto o conhecimento das leis, dos diversos caracteres do tipo, assim
como o conhecimento da subsunção dos fatos à lei não podem ser esperados do
autor, o conhecimento do injusto material concreto, ou seja, da “norma concreta de
configuração” pode ser exigido. Sauer sustenta sua posição com o fato de que as
representações ético-sociais concretas são as mesmas em todos os homens
imputáveis.431 Cumpre citar o ensinamento do autor, no sentido de que toda
aplicação do Direito deve ter como base a denominada “norma concreta de
configuração”, senão vejamos:
Na norma concreta de configuração, apóia-se toda aplicação do Direito, toda jurisprudência, toda “determinação objetiva” da sentença penal. Esta norma concreta, atuante de modo imediato na vida social, que informa o ordenamento jurídico, que se dirige aos cidadãos, que é compreensível pelos homens de tipo médio e que os afeta, pode e deve conhecê-la o autor; não necessita conhecer a norma abstrata, o preceito jurídico, o tipo legal, nem tampouco uma norma ética (abstrata), uma concepção moral viva no povo, um juízo ético-social desvalorativo.432
Consoante lição de Córdoba Roda, pronunciou-se Gallas em sentido parecido
ao de Sauer, ao exigir a consciência da “contrariedade ao valor social”.433 Doutra
banda, para von Hippel e C. Espósito, a submissão a uma infração penal exige do
autor o conhecimento da imoralidade da conduta, ainda que falte a consciência da
sua ilegalidade.434
Finalmente, dentro do critério material do conteúdo do injusto, há aqueles que
pugnam pela necessidade do conhecimento da violação de um interesse
430 CÓRDOBA RODA, 1962, p.90-91. 431 SAUER, 1956, p.258. 432 Tradução livre do texto: “En la norma concreta de configuración se apoya toda aplicación
del Derecho, toda jurisprudência, toda “determinación objetiva” de la sentencia penal. Esta norma concreta, actuante de modo imediato en la vida social, que informa el ordenamento jurídico, que se dirige a los ciudadanos, que es comprensible por los hombres de tipo médio y que les afecta, puede y debe conocerla el autor; no necessita conocer la norma abstracta, el precepto jurídico, el tipo legal pero tampoco una norma ética (abstracta), uma concepción moral viva en el pueblo, um juicio ético-social desvalorativo”. (SAUER, 1956, p.258).
433 GLESPASCH-FESTSCHRIFT, 1936 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.91. 434 VORSATZ, 1935 apud CÓRDOBA RODA, op. cit.
151
socialmente tutelado.435 Nos anos pós-guerra, na Alemanha, por questões de
política criminal, uma interpretação material do conhecimento da antijuridicidade
alcançou lugar de destaque, dando nova vigência a uma postura jusnaturalista,
calcada nas “normas de cultura”, de Max Ernst Mayer.436 Segundo essa postura,
manifestada principalmente em Arthur Kaufmann, a culpabilidade jurídico-penal
exige o conhecimento da possibilidade de dano à sociedade. Atua culpavelmente o
sujeito que leva adiante o fato, sabendo que lesiona ou põe em perigo bens da
sociedade merecedores de proteção.437
Cabe esclarecer que Max Ernst Mayer entende que o sujeito sabe que
determinada conduta é ilícita, como também sabe que o Estado a castiga, mas, em
geral, não compreende o quão grave pode ser a pena. Para Mayer, as “normas de
cultura” não alcançam todas as consequências jurídicas do comportamento
antinormativo. É a tradição cultural que proporciona ao sujeito saber se determinada
ação é “contrária ao dever” e em que medida o injusto é determinante para o
julgamento moral. Nas palavras de Mayer:438
O indivíduo sabe, seguramente, que tal ou qual conduta é ilícita, acaso saiba também que o Estado a castiga, mas, em geral, não sabe quão grave pode resultar a pena. As normas de cultura não se estendem sobre as consequências jurídicas que terá o comportamento antinormativo – com o qual, é claro, não se quer dizer que reina total ignorância sobre as ameaças penais; alguns sabem muito delas; outros, pouco - . A tradição cultural proporciona ao sujeito uma informação exata unicamente sobre se a ação é contrária ao dever e sobre a medida em que o injusto é determinante para a acusação moral [...]
435 Nesse diapasão, prescreve Córdoba Roda os autores que assim se posicionam: “GALLO,
Il dolo, Oggetto ed accertamento, Milán, 1953, p. 160; Arthur Kaufmann, Das Unrechtsbewusstsein in der Schuldlehre des Strafrechts, Maguncia, 1949, p.183[...]” (CÓRDOBA RODA, 1962, p.91).
436 MAYER, 1915 apud CÓRDOBA RODA, op. cit., p.91-92. 437 KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 438 Tradução livre do texto: “El individuo sabe, seguramente, que tal o cual conducta es
ilícita, acaso sepa también que el Estado la castiga, pero, por lo general, no sabe cuán grave puede resultar la pena. Las normas de cultura no se extienden sobre las consecuencias jurídicas que tendrá el comportamento antinormativo – com lo cual, es claro, no se quiere decir que reine total ignorância sobre las amenazas penales; algunos saben mucho de ellas, otros, poco - . La tradición cultural le proporciona al sujeto una información exacta unicamente sobre si la acción es contraria al deber y sobre la medida em que el injusto es determinante para el enjuiciamiento moral. Que la exactitud de esta estimación moral no puede ser equivalente a la decisión de la alternativa “justo o injusto”, y que la última, tratándose de conflitos Morales, puede llegar a ser imposible, es algo que se entende más.”(MAYER, 2000, p.66-67).
152
Ocorre que, segundo Mayer, a obrigatoriedade da lei não reside no seu
conhecimento, mas na circunstância de que as normas jurídicas coincidem com as
normas de cultura, cuja obrigatoriedade é conhecida pelo sujeito. A ignorância da lei
não exime da imposição de uma pena, já que apenas escusa o erro relativo às
obrigações do sujeito, as quais resultam das normas de cultura.439
No entender de Arthur Kaufmann, com arrimo na lição de Ernst Mayer, para
que haja a culpabilidade, é suficiente que o autor tenha valorado o seu
comportamento na mesma direção da lei. Essa direção corresponde à essência
material do injusto.440
Também se posicionam a favor do critério material Jescheck e Weigend. Para
os autores, o objeto da consciência da ilicitude não é o conhecimento da proposição
jurídica infringida ou da punibilidade do fato. É suficiente que o agente saiba que seu
comportamento contradiz as exigências da ordem comunitária e que, por isso, está
juridicamente proibido.441
Ensina Cirino dos Santos que essa é a teoria tradicional, que se
consubstancia “no conhecimento da contradição entre comportamento e ordem
comunitária, que permite ao leigo saber que o comportamento lesiona uma norma
jurídica penal civil ou pública e, portanto, é juridicamente proibido”, não importando o
conhecimento da específica “norma jurídica lesionada ou a punibilidade do fato”.442
Dessarte, para a concepção material do objeto da consciência do injusto, o
delito representa ação antissocial. O autor de um delito será castigado por ter
praticado o ato, apesar do caráter lesivo para a sociedade. Desse modo, atuará
culpavelmente o sujeito que realiza a conduta sabendo que lesiona ou põe em
perigo de lesão bens da vida em comum merecedores de proteção. Segundo
Córdoba Roda, para essa corrente, a culpabilidade exige o “conocimiento de la
dañosidad social”.443 É com base nesse parâmetro que o legislador deve proibir um
comportamento e determinar uma pena.
A grande crítica a essa concepção reside no fato de que muitas pessoas
podem infringir a ordem jurídica crendo, no entanto, que sua conduta está justificada
por motivos de ordem moral, política, social ou mesmo pedagógicas, como se pode
439 Cf. CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 440 KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 441 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p.487. 442 SANTOS, 2000, p.232. 443 CÓRDOBA RODA, 1962, p.93.
153
aferir nos exemplos a seguir. De fato, muitas vezes, não coincidem os conceitos da
ilicitude material com o que se encontra disposto na legislação penal. No que tange
a essas proibições, as infrações penais são autênticas mala prohibita, e não mala in
se, sendo assim, inacessíveis ao leigo, a exemplo de certos delitos de sonegação
fiscal, crimes falimentares, etc.444
Importa contextualizar o tema no universo nacional, destacando as
sucessivas legislações que podem ser notadas na atualidade. Segundo
levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, desde a
promulgação da Constituição de 1988, que já sofreu 68 (sessenta e oito) Emendas,
foram sancionadas 4.200.000 (quatro milhões e duzentas mil) leis e normas federais,
estaduais e municipais, exteriorizando-se um exagero, visto que se tenta impingir à
população brasileira leis e projetos que contêm verdadeiros absurdos, tais como o
Projeto de Lei nº 7672/2010, do Congresso Nacional (sob a análise da Comissão
Especial da Câmara, e “que proíbe impor aos filhos castigos físicos, inclusive
palmadinhas, recurso que muitos pais consideram apropriado sob o ponto de vista
pedagógico”).445
Não se pode olvidar que, além da discussão acerca da ilicitude da conduta,
resta claramente violado o princípio da não intervenção ou da liberdade na família,
que goza da proteção estatal por mandamento constitucional (arts. 226, § 3º e §7º),
significando, sem dúvida, uma interferência desmedida do Estado na vida das
famílias.
Na hipótese acima descrita, há de se perquirir se seria justo punir-se o pai
que viesse a aplicar palmadinhas em seu filho, como sempre o fez, após alguma
atitude reprovável da criança e, sem saber que tal conduta passou a ser tipificada
como crime, poderá ser preso, denunciado, responder à ação criminal, passível de
condenação, já que o seu desconhecimento da lei apenas lhe acudiria como causa
de diminuição de pena.
Vale citar algumas hipóteses de leis que não são culturalmente reprovadas:
“a) propiciar (fornecer) bebida alcoólica para índios não integrados (Lei 6001/73); b)
produzir açúcar em fábrica não legalizada (por exemplo, no fundo de seu quintal)
444 Nessa linha de pensamento, ver: TOLEDO, 1994, p.259. 445Notícia disponível em:: http://www.senado.gov.br/noticias/senadonamidia/noticia.asp?n= 612010&t=1. Acesso em 20 out. 2011, às 14:00 hs.
154
(Decreto-lei 16/66)”.446 Acrescente-se a elas o disposto no art. 46, parágrafo único
da Lei 9605 de 1998, segundo o qual incorre nas penas de seis meses a um ano
aquele que transporta, tem em depósito ou guarda madeira, lenha, carvão e outros
produtos de origem vegetal, sem licença de autoridade competente, conforme
abaixo transcrito:
Art. 46. Receber ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente.447 (grifo nosso)
Diante de apenas esses exemplos, percebemos o quanto é atual e relevante
o tema do erro de proibição no Brasil e a questão de se saber qual é o conteúdo da
consciência da antijuridicidade. Na verdade, observa-se ser trabalho hercúleo e
praticamente impossível conhecer-se o ordenamento jurídico, haja vista não cuidar o
princípio da inescusabilidade do desconhecimento da lei simplesmente, mas do
ordenamento jurídico como um sistema.
Por outro lado, muitos atos que ferem o sentimento geral da sociedade não
estão previstos em lei. Como bem elucida Rubens Galvão, “a tipificação de
condutas, especialmente no Brasil, surge, muitas vezes, de motivações oportunistas
e desvinculadas de interesses de proteção ético-sociais efetivos”.448
Constata-se, efetivamente, que casos criminais são eleitos, muitas vezes em
razão da classe social da vítima, e explorados à exaustão pelos meios de
comunicação, e acabam provocando imediatas alterações na lei penal. Dessa forma,
a legislação penal brasileira acompanha a proliferação de leis do ordenamento
jurídico pátrio.
São exemplos os sequestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina,
que impulsionaram a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos; o caso de Daniella
446 Exemplos citados na obra de Gomes (2001, p.27). 447 BRASIL, 2011. 448 SILVA, 2008, p.184-197.
155
Perez, que tornou o homicídio qualificado em crime hediondo; a Chacina de
Diadema, que transformou a tortura em crime.
Afirma Hans Kelsen que a norma significa que “algo deve ser”. A norma existe
como “fenômeno específico na esfera do dever ser”, diferentemente das coisas que
existem na esfera do “ser”.449
Para Kelsen, o indivíduo que tenha agido de forma antijurídica não significa
que ele tenha violado ou infringido o direito, já que “na antijuridicidade confirma-se a
existência do direito, que consiste em sua validade: no “dever ser” do ato coercitivo,
como consequência da antijuridicidade”.450Assim, verifica-se que é a sanção que
confirma a existência do direito, constituindo-se em papel primordial na
caracterização do preceito normativo.
O filósofo aduz que a intenção dos legisladores não importa para determinar o
conceito puro de antijuridicidade, senão vejamos:
Se se considerar do ponto de vista imanente, que aceita a Teoria Pura do Direito, o conceito de antijuridicidade chega a uma mudança substancial de sentido. Não é intenção dos legisladores, nem das circunstâncias, que um fato não desejado pela autoridade que estabelece as normas seja – como se expressa incorretamente – socialmente prejudicial (embora só se possa dizer que é assim considerado pelo legislador) e determinante para o conceito de antijuridicidade; contudo, a posição do fato questionado na proposição é única e exclusiva: é a condição para a reação específica do direito, para o ato coercitivo (que é a ação do Estado).451
Como bem elucida Juarez Tavares, a norma não é um ente meramente
abstrato e neutro, tal como pensava Kelsen, ou a única forma de imposição de
deveres, mas sim o sucesso da conjunção dos interesses existentes no processo de
sua elaboração. Desconsiderar esse aspecto material da formação da norma
significa condenar a formulação jurídica a um jogo de mero exercício lógico, sem
qualquer validade para as necessidades sociais de seus reais destinatários. Nesse
sentido, ganha relevância a questão dos critérios usados ou acolhidos pelo
legislador para a formulação das normas incriminadoras. A análise desses critérios,
a imposição de seus limites, a determinação de suas bases materiais e a crítica de
449 KELSEN, 2001, p.29. 450 Ibidem, p.71. 451 Ibidem, p.70.
156
sua utilização se afiguram como condição e exigência dos princípios constitucionais
de defesa das liberdades individuais e do regime democrático.452
Entretanto, conforme constata Tavares, a partir de um estudo histórico, bem
como da própria previsão típica das ações proibidas ou mandadas, o que ocorre é
que, na maioria das vezes, não há critérios para a elaboração das normas
incriminadoras. A norma deixaria de exprimir o tão propalado interesse geral, cuja
simbolização aparece como justificativa do princípio representativo, para significar,
muitas vezes, “simples manifestação de interesses partidários, sem qualquer vínculo
com a real necessidade da nação”.453
Importa mencionar que a solução material do problema do conhecimento da
antijuridicidade adveio, sobretudo, por razões de necessidade de punição em
relação aos chamados “delitos contra a humanidade”, no pós-guerra. De fato, nas
decisões relativas aos “assassinatos” dos “seres sem valor nem utilidade para o
Estado”, em cumprimento da carta secreta dirigida por Hitler, em 1º de setembro de
1939, aos diretores de estabelecimentos médicos, os Tribunais reconheceram o fato
de que os processados acreditavam na força legal da ordem do então “supremo
legislador” do Reich e que seus comportamentos estavam em consonância com as
diretrizes do Estado. Todavia, o sujeito, nesses casos, segundo o critério que
passou a ser adotado pelos Tribunais alemães, conhece a infração dos mandatos do
Direito natural, apesar de acreditar que sua conduta se enquadra nos postulados
legais. O indivíduo teve consciência da natureza reprovável de seu comportamento e
a crença na legalidade do ato não pode retirar o conhecimento do agir reprovável, a
representação do injusto.454
452 TAVARES, 1992, p.75-87; p.75. Sobre a crítica da crescente legislação penal, ver:
TAVARES, 1997, p.43-57. 453 TAVARES, 1992, p.75-87; p.75 454 Na versão original: “La solución material del problema del conocimiento de la
antijuridicidad viene motivada principalmente por razones de necesidad de punición em relación a los llamos „delitos contra la humanidad‟. En las sentencias dictadas sobre los asesinatos de seres „sin valor ni utilidad para el Estado‟ em cumplimiento de la carta secreta dirigida por Hitler em 1 de septiembre de 1939 a los directores de establecimentos médicos, los procesados creían em la fuerza legal de la orden del entonces „supremo legislador‟ del Reich y em la conformidad de su comportamiento com las directrices del Estado. Ante este supuesto se revelo como defectuoso tanto el critério próprio de la jurisprudência del Reichsgeiricht que niega relevancia al error sobre la antijuridicidad, como el sustentado por um amplio sector de la doctrina de que al dolo pertence el conocimiento del actuar em contra del ordenamiento establecido por el Estado. Em primer lugar, es evidente que no cabe concebir a la culpabilidad sin el conocimiento del injusto. Em segundo lugar, si el critério de la doctrina fuera correcto no
157
Ressalte-se que, em verdade, foi praticada a eutanásia. Os médicos, nessa
época, tiveram de selecionar os indivíduos aptos à prática desse ato, por
determinação do programa “Akition” T4. As principais vítimas dessa política foram os
doentes físicos, mentais e os anciãos.
Insta indagar se a lei é sempre válida e justa. O Direito é sinônimo de Justiça?
Sabe-se a dificuldade de definir um conceito pronto e acabado de Justiça, tema que
tem dominado as atenções da doutrina desde muito tempo. Nesse sentido, torna-se
necessário cogitar de que modo seria possível compreender aquele que tem sido
visto como o objetivo primordial do Direito, ideia inspiradora capaz de fomentar a
atuação jurídica e servir-lhe de inspiração cotidiana, o que tem ocorrido desde a
Antiguidade, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr:455
O problema que se enfrenta é de saber se existe alguma forma de razão, totalizadora e unificadora, que seja para o direito uma espécie de código doador de sentido, um sentido não adaptativo ao próprio direito e que nos permita estimá-lo como legítimo ou ilegítimo. Em suma, se a legitimidade repousa puramente num sentimento, subjetivo e irracional, ou se existe uma estrutura universal e racional que legitime o direito ou nos faça reconhecê-lo como ilegítimo. Enquanto se pode postular como certo que as normas jurídicas são regras que de alguma forma se adaptam às mudanças sociais posto que podem deixar de valer ao serem revogadas, conforme o interesse da decidibilidade dos conflitos, o que se procura é uma espécie de estrutura de resistência à mudança, que assegure à experiência jurídica um sentido persistente. Desde a Antiguidade, foi na ideia de justiça que se buscou essa estrutura”.
Dentre as mais diversas perspectivas de enfrentamento da relação do Direito
com a Justiça, assume destaque especial uma corrente de pensamento famosa, que
diz respeito ao positivismo jurídico, termo abrangente e capaz de compreender
quantidade considerável de correntes em seu interior. Sem dúvida, o autor mais
associado como representante do positivismo jurídico normativo é Hans Kelsen, em
sua Teoria Pura do Direito. Cumpre destacar algumas palavras do filósofo alemão
sobre justiça:
Como categoria moral, direito significa o mesmo que justiça. Essa é a expressão para a verdadeira ordem social, ordem essa que alcança
cabría fundar la punibilidad de la conducta de los procesados. El sujeto, em estos casos, según el critério de los Tribunales alemanes, há conocido, pese a creer que su conducta se adapta a los postulados de la ley, la infracción de los mandatos del Derecho natural. Há sido consciente de la naturaleza reprobable de su comportamiento sin que la creencia em la legalidad del hecho pueda desplazar, em ningún caso, el conocimiento del obrar reprobable, la representación del injusto”. (CÓRDOBA RODA, 1962, p.93-94).
455 FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 351-352.
158
plenamente seu objetivo ao satisfazer a todos. A aspiração da justiça é – encarada psicologicamente – a eterna aspiração da felicidade, que o homem não pode encontrar sozinho e, para tanto, procura-a na sociedade. A felicidade social é denominada “justiça”.456
Entretanto, pode-se dizer que existem diversos autores e abordagens que
integram o positivismo, nos termos salientados por Norberto Bobbio: 457
Ora, sustentamos que para poder fazer um balanço do positivismo jurídico, para poder estabelecer aquilo que dele deve ser conservado e o que deve ser abandonado ou, como se diz habitualmente quanto às doutrinas, verificar o que está vivo e o que está morto, é necessário não considerar esse movimento como um bloco monolítico, mas distinguir nele alguns aspectos fundamentalmente diferentes. Como já indicamos (ver §32), os sete pontos pelos quais se pode explicar o pensamento juspositivista não estão todos no mesmo plano, mas se distribuem em três planos diversos. Enquanto os pontos tratados nos capítulos II a VI da Parte II dizem respeito à teoria do direito, os pontos tratados nos capítulos I e VII não dizem respeito à teoria, mas o último ponto à ideologia do direito e o primeiro ponto ao modo de estudar o direito (como fato, não como valor). Podemos, portanto, distinguir três aspectos do positivismo jurídico, conforme se configura: a) como método para o estudo do direito; b) como teoria do direito; c) como ideologia do direito.
Para os fins da presente dissertação, não será realizada abordagem
exauriente do positivismo jurídico, nem se pretende examinar todos os aspectos
conectados à sua configuração. O objetivo específico que se busca contemplar na
presente pesquisa diz respeito à necessidade de perceber que nem toda positivação
normativa conduz ao resultado justiça, ou seja, de que, não necessariamente, a lei
pode ser associada ao conceito do justo. Impõe-se, no caso, uma revisão do
brocardo dura lex, sed lex, na medida em que as leis, malgrado tenham sido criação
originária de autoridade competente, podem, por vezes, não atingir, concretamente,
a Justiça desejada.
Assim, verifica-se que a solução material para se conferir o objeto da
consciência do injusto surgiu com o louvável escopo de combater as injustiças
decorrentes de uma aplicação pura e simples da lei. Entretanto, entendemos que
nem todo ato imoral, antissocial ou antiético é proibido penalmente e que nem toda
proibição penal é imoral, antissocial ou antiética. De fato, nos atuais Estados plurais
456 KELSEN, 2001, p.60. 457 BOBBIO, 1995, p. 233-234.
159
e multiculturais, há separação evidente entre direito e moral, pois que não se pode
exigir, de todas as pessoas, uma mesma moral.
Além disso, ao se conceber a consciência da antijuridicidade como
conhecimento da capacidade de se produzir dano à sociedade (“dañosidad social”),
não se poderá falar em tal conhecimento no delito culposo, uma vez que o perigo de
dano social refere-se tão apenas ao caráter lesivo do resultado.458
4.1.3 Critério intermediário: “Valoração Paralela na Esfera do Profano”
Retomando a questão da consciência da ilicitude, cumpre mencionar,
preliminarmente, que o critério intermediário foi adotado na célebre decisão do
Supremo Tribunal Federal alemão, de 18 de março de 1952. Impende citar um
trecho da sentença:
Para o conhecimento da antijuridicidade, não importa o conhecimento da punibilidade do comportamento, nem a disposição legal que contém a proibição. Não basta, no entanto, que o sujeito seja consciente que seu agir é moralmente reprovável...O sujeito, embora não deva realizar uma valoração de ordem técnico-jurídico, deve conhecer ou poder conhecer, com o esforço devido de sua consciência, em um julgamento geral, correspondente a sua esfera de pensamento, o caráter injusto do seu ato.459
Note-se que esse é o critério de maior aceitação nas doutrinas alemã e
espanhola, refletindo a superação do debate doutrinário no tocante à natureza
formal ou material da ilicitude. No caso do Brasil, alguns autores posicionaram-se a
favor da corrente intermediária, a exemplo de Munhoz Netto, Francisco de Assis
Toledo e Cláudio Brandão.460
Afirma Cirino dos Santos que a literatura brasileira dominante não faz
qualquer menção à controvérsia acerca do objeto da consciência do injusto,
limitando-se à difusão exclusiva da teoria tradicional, no sentido da consciência do
injusto como conhecimento da contradição entre conduta e ordem comunitária, que
permite ao leigo saber que o comportamento é juridicamente proibido. É
458 O autor ainda acrescenta que prova do acerto dessa objeção é o fato de que Kaufmann
se viu obrigado a conceber a culpa como dolo de perigo (KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.97).
459 Entscheidungen des B.G.H., tomo 2, p.194, Juristenzeitung, p.337 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.98.
460 MUNHOZ NETO, 1978, p.21; TOLEDO, 1977, p.74. BRANDÃO, 2010, p.241.
160
independente o conhecimento da norma jurídica lesionada ou a punibilidade do
fato.461
Para a corrente intermediária, não basta o posicionamento material, de
conhecer apenas a danosidade social; nem o formal, que exige um conhecimento
específico e técnico da norma penal violada. É suficiente um juízo geral sobre o
caráter ilícito do fato, como também a possibilidade de se atingir esse juízo, por meio
de um simples e exigível esforço da consciência. Dessa forma, basta o esforço
normal da inteligência do sujeito para a aferição da potencial consciência da ilicitude.
O conhecimento da antijuridicidade, para a solução intermediária,
consubstancia-se na representação de que a ação se opõe à norma ou à ordem
jurídica. Relevante é a invocação de Mezger, para quem a consciência da ilicitude se
encontra no dolo, no sentido de que este conhecimento deve ser entendido como
uma “valoração paralela do autor na esfera do profano”.462 Mezger explica referida
valoração como uma apreciação da ação no círculo de pensamentos do indivíduo e
no ambiente deste, orientada no mesmo sentido que a valoração legal da ação.
Deve ser caracterizada dita ação como antijurídica.463
Adán Nieto Martín informa que Arthur Kaufmann tentou relacionar esta
fórmula com os distintos níveis de linguagem existentes na sociedade. O
conhecimento do profano seria aquele que, expressado em linguagem coloquial,
traduz de uma forma equivalente o significado técnico da norma. O juiz, como
mediador entre ambas as esferas, é quem deve decidir se há, efetivamente,
equivalência entre o nível coloquial e o técnico.464
Córdoba Roda posiciona-se a favor da corrente intermediária, afirmando que
não constitui elemento necessário a antijuridicidade material, exigindo-se apenas o
conhecimento de que a conduta lesiona o interesse jurídico protegido. Para o autor,
essa direção de pensamento demonstra as vantagens de manter um critério que
busca a solução do problema do objeto da consciência do injusto dentro da esfera
da ordem jurídica.465
461 SANTOS, 2000, p.232-233. Alguns autores brasileiros que adotam a concepção
tradicional, segundo aponta Cirino dos Santos: JESUS, Direito Penal I, 1999, p.56; MIRABETE, Manual de direito penal, 2000, p.202.
462 MEZGER, 1949, p.143. 463 Ibidem, p.143. 464 NIETO MARTÍN, 1999, p.71. 465 CÓRDOBA RODA, 1962, p.99.
161
Extrai Córdoba Roda dessa solução intermediária o entendimento de que há
uma ratificação do texto do artigo 2º do Código Civil, segundo o qual a ignorância
das leis não escusa de seu cumprimento. Segundo o autor, a ignorância das leis
constitui um erro extraordinariamente inferior ao que recai sobre o antijurídico.466
No entanto, o próprio autor admite exceções em que se deve abrandar a
interpretação do referido dispositivo do diploma civil espanhol: a existência, a título
excepcional, de uma série de disposições, em especial com respeito à ordenação
jurídico-fiscal, que reconhecem o princípio da necessidade de conhecimento da lei
ao atribuir eficácia escusante ao erro não reprovável; e a opinião geral que exime de
responsabilidade a conduta, viciada de erro, lesiva de uma disposição
regulamentar.467
Roxin defende a posição intermediária nos seguintes termos:468
Conciencia de la antijuridicidad significa: el sujeto sabe que lo que hace no está juridicamente permitido, sino prohibido” (BGHSt 2, 196). Según eso, para la conciencia de la antijuridicidad no basta la conciencia de la dañosidad social o de la contrariedad a la moral de la propria conducta; pero, por outro lado, tampoco es necesaria según la op. dom. la conciencia de la punibilidad.
Em se tratando da distinção entre direito e moral, argui acertadamente Roxin
ao proferir que os valores sociais e morais são tão alteráveis numa sociedade
pluralista que não se pode exigir, do indivíduo, uma orientação incondicional a
eles.469
Cirino dos Santos expõe sobre a concepção intermediária como teoria
dominante na Alemanha nos seguintes termos:470
A teoria dominante, representada por ROXIN, argumenta que conhecer a danosidade social ou a imoralidade do comportamento, segundo a teoria tradicional, seria insuficiente, mas conhecer a punibilidade do fato, conforme a teoria moderna, seria desnecessário: assim, objeto da consciência do injusto seria a chamada antijuridicidade concreta, como conhecimento da específica lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta do tipo de injusto.
466 CÓRDOBA RODA, 1962, p.101. 467 Ibidem, p.102. 468 ROXIN, 1997, p. 866. 469 ROXIN, loc.cit. 470 SANTOS, 2011, p.165.
162
Maurach e Zipf seguem essa linha de intelecção, alegando que a consciência
do ilícito deve ser referida ao tipo. O agente deve estar em situação de reconhecer
como ilícita a específica violação ao bem jurídico protegido pelo correspondente tipo
penal. É suficiente o conhecimento do imperativo da norma, e não que o indivíduo
conheça as fontes nem a forma de sua aparição. Ademais, é insuficiente o simples
conhecimento da antissocialidade ou imoralidade do ato.471
Para Jakobs, também não é necessário o conhecimento da punibilidade, bem
como o conhecimento de que a infração contraria os princípios ético-sociais, os bons
costumes, ou a decência para fundamentar a consciência do injusto, e nem sequer
um descumprimento contratual. Conhecimento do injusto, para o penalista, é
conhecimento da perturbação social da conduta. Este conhecimento do injusto não
fica excluído, evidentemente, porque o autor - sobretudo por íntima convicção
discrepante – acredita que, em uma ordem social tal como ele considera ideal, não
se dá perturbação social alguma.472
No entender de Jakobs, basta que o indivíduo conheça a importância da
norma em questão para o ordenamento ao qual pertence, ainda quando considere
equivocado tal ordenamento. O autor apresenta o exemplo dos testemunhas de
Jeová que, após se recusarem a realizar o serviço militar, negam-se a cumprir a
prestação civil em substituição àquele. Elas conhecem a perturbação social que
ocasiona sua negativa e, por isso, têm conhecimento do injusto. O conhecimento do
autor será, em geral, o conhecimento próprio do leigo, servindo, pois, a
considerações feitas no dolo em relação com a valoração paralela.473
A objeção feita ao critério intermediário refere-se ao fato de que, em certos
tipos penais e a certas pessoas, não se pode fazer a exigência desse esforço de
consciência. Nessa esteira, argumenta Assis Toledo sobre a dificuldade de, por
exemplo, um simples camponês, ao estabelecer-se com empório de secos e
molhados, conhecer, por meio de um simples esforço de consciência, o
entendimento de que certos atos possam configurar o complexo crime de sonegação
fiscal.474
Certeira é a lição de Roxin no sentido que a simples ideia do esforço de
consciência pode levar a quem atua, quanto muito, ao conhecimento da imoralidade
471 MAURACH; ZIPF, 1994, p.869. 472 JAKOBS, 1995, p.667-668. 473 JAKOBS, loc.cit. 474 TOLEDO, 1977, p.73.
163
da sua conduta, que não é o objeto da consciência da antijuridicidade. O autor
conclui que a maioria dos erros de proibição são de tal índole que a consciência não
pode contribuir em nada para a sua evitabilidade.475
De fato, a consciência, em si mesma, é incapaz de descobrir o conteúdo do
ilícito das infrações penais. No máximo, o que poderá ocorrer é captar o conteúdo da
antijuridicidade daqueles delitos correspondentes às violações éticas e morais já
assimiladas pela sociedade.
4.2 RELAÇÃO ENTRE OS TRÊS CRITÉRIOS E A INSUFICIÊNCIA DE CADA UM DELES
Note-se que, a princípio, os critérios esposados por Córdoba Roda são
bastante diversos. No entanto, com uma análise mais cuidadosa, percebe-se que as
três concepções se entrelaçam. Segundo lição de Assis Toledo, há “íntimo
parentesco entre todos esses critérios”.476
De fato, o critério intermediário pressupõe a consciência do caráter material
do injusto, ou seja, do critério material. Conforme ensina Toledo, para se atingir,
mediante algum esforço da consciência, o aspecto injusto de uma ação, “é
necessário que a matéria desse injusto já tenha penetrado anteriormente na
consciência, o que só seria possível por meio das normas de cultura, únicas
acessíveis ao leigo”.477
No que se refere ao conceito formal, que exige a consciência de que a
conduta contraria a norma jurídica, infere-se o conhecimento de sua reprovação
social. Assim, não se pode separar o conceito material do formal. Nesse sentido,
preceitua Assis Toledo que “o primeiro critério (conhecimento da norma), que se
quer formal, também depende, em certa medida, da validade do segundo”.478
Note-se que adquirimos o conhecimento de que determinada conduta é
proibida legalmente por diversos meios, tais como televisão, jornais, revistas, livros,
conversas etc. A maioria dos crimes noticiados por esses meios de comunicação
reflete o que é vedado pelo consenso geral. No entanto, como já vimos, há infrações
475 ROXIN, 1997, p.882. 476 TOLEDO, 1994, p. 258. 477 Ibidem, p. 258-259. 478 Ibidem, p. 259.
164
penais, dentre as quais se destacam certas contravenções, delitos falimentares,
ambientais e econômicos, que não traduzem um conteúdo moral.
Ainda no que tange aos critérios sobre o objeto da consciência da ilicitude,
verifica-se que o aspecto material do injusto está relacionado tanto ao critério formal
quanto ao intermediário, importando, então, concluir pela insuficiência das três
posições, haja vista a existência de algumas normas penais que não coincidem com
os conceitos de moralidade e de antissocialidade.
4.3 O “DEVER DE INFORMAR-SE” DE HANS WELZEL
Tentando solucionar tais incongruências, Hans Welzel reelaborou o conceito
de “consciência da ilicitude”, inserindo-lhe um novo elemento, qual seja, “o dever de
informar-se”. O penalista reconheceu a existência de tipos penais coincidentes com
as infrações contra a ordem social e a moral, que, para o conhecimento da ilicitude
deles, basta que cada um reflita os valores éticos e sociais do seu meio, ou seja,
que façam um “esforço da consciência profana”.479 Nos dizeres do autor:
Na medida em que a lei penal declara punível uma conduta que já é merecedora de pena segundo a ordem moral, consiste a reprovabilidade de falta de conhecimento do injusto em uma falta de “esforço de consciência”, porque os conteúdos da consciência se formam essencialmente com convicções da cultura vivida. Pode-se reprovar o erro do autor sobre a antijuridicidade, quando podia ele verificar-se da antijuridicidade de sua conduta mediante a própria reflexão dos valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu meio.480
Todavia, segundo o autor alemão, há os tipos penais não coincidentes com a
ordem moral e, nesses casos, a falta de consciência da ilicitude baseia-se em uma
ausência ou deficiência de informação, quando as circunstâncias concretas
indicarem ao agente um motivo para o qual se deva informar. Portanto, Welzel adota
o critério intermediário, acrescentando-lhe o elemento do “dever de informar-se”.481
A despeito da relevância teórica dessa construção, percebe-se que, na
prática, há grandes dificuldades para saber em quais casos se deve exigir das
pessoas um especial dever de se informarem.
479 WELZEL, 1993, p.202-203. 480 Tradução Livre, WELZEL, 1997, p.203. 481 WELZEL, 1997, p.204.
165
Critica Nieto Martín a exigência do dever de buscar informação, por não estar
claro, na concepção de Welzel, em que consistem os motivos que devem levar o
autor a informar-se sobre a antijuridicidade do seu comportamento. Parece ser
suficiente como motivo o fato de o autor estar consciente de que atua em um âmbito
regulado pelo direito. Nieto Martín conclui que, na prática, esta concepção ampla de
motivos traria resultados iguais aos da obrigação genérica de conhecer o direito.
Além disso, não fica claro se é suficiente que exista, objetivamente, uma razão para
informar-se ou que se determine que o autor deva ter reconhecido o motivo concreto
para se informar e, no entanto, não se tenha informado.482
Ademais, não se pode deixar de mencionar o preceito constitucional de que
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei”483, o qual dificulta a aplicação do “dever de informar-se” trazido por Hans Welzel.
Posiciona-se Assis Toledo no sentido de que a solução consiste em adicionar-
se, nos casos em que não coincidem a previsão legal e a ordem moral, ao critério
intermediário o “dever de informar-se” para a prática apenas de certas atividades,
notoriamente fiscalizadas e regulamentadas. “A violação desse dever, exigível de
todos que se arrojem a esse tipo de atividade, exclui a possibilidade de erro
escusável”. 484
Para Toledo, nas atividades fiscalizadas e regulamentadas, há regras e
condições específicas, podendo-se exigir o dever de se informar:
Confinado, assim, o “dever de informar-se” no círculo hoje bastante amplo das atividades regulamentadas – profissões liberais, técnicas, comércio habitual etc. – teremos: onde houver um conjunto de normas jurídicas (legais, regulamentares, costumeiras ou estatutárias) estabelecendo condições e regras para o exercício de certas atividades que não fazem parte, necessariamente, da vida de todos e de cada um, aí existirá um especial dever jurídico de informar-se, pois o Estado e a sociedade, omnium consensu, permitem ao indivíduo o desfrute dos benefícios decorrentes da prática dessas atividades, que fogem ao padrão normal de conduta, mas, ao mesmo tempo, regulam a condição do seu exercício. Fora disso, o dever de informar-se será de exigibilidade muito discutível.485
482 NIETO MARTÍN, 1999, p.118. Note-se que Nieto Martín defende uma tese psicológica da
compreensão da ilicitude do fato. É necessário, como condição prévia, que o indivíduo houvera duvidado sobre a antijuridicidade de seu comportamento. Se o sujeito não havia tido dúvidas e atuou contrariamente ao direito, não se poderá afirmar que tenha tomado uma decisão responsável contrária ao dever (Cf. NIETO MARTÍN, 1999, p. 159-213).
483 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, inciso II. 484 TOLEDO, 1977, p.74. 485 Ibidem, p. 261.
166
Verifica-se que a exigibilidade do dever de informar-se, nos termos de Assis
Toledo, vai ao encontro do estatuído pela norma constitucional, já que se restringe
aos casos em que há ligação com atividades profissionais regulamentadas e
fiscalizadas. Mesmo nessas hipóteses, entendemos ser injusta, em alguns casos, a
exigência de conhecer regulamentos, decretos, leis específicas etc, daqueles que
não têm acesso a uma educação digna e que se encontram distantes dos grandes
centros, alheios a muitos acontecimentos do país, especialmente ao conhecimento
de fiscalização da sua atividade. Importa verificar, no caso em concreto, se o erro de
proibição ou o desconhecimento da lei era evitável ou inevitável, principalmente
levando em consideração a facilidade, ou não, do acesso à informação pelo
indivíduo.
Por fim, vale notar que o critério do “esforço de consciência” exige um
raciocínio relativo ao momento da perpetração do ato ilícito, já o requisito do “dever
de informar-se”, em regra, alcança momentos anteriores ao próprio cometimento da
conduta, o que é difícil de se aferir em cada caso concreto, se não se tomar em
conta a educação e a cultura do indivíduo.
Em se cuidando das normas penais em branco, parece-nos que a busca de
informação revela-se de fundamental relevância para que o indivíduo não sofra uma
condenação penal, destacando-se, no Brasil, a Lei dos Crimes Ambientais que, em
razão das características dos delitos nela dispostos, com certa frequência se vale da
remissão a disposições externas, a normas e a conceitos técnicos. Ensina Gilberto
Passos de Freitas que a doutrina vem se posicionando no sentido da
imprescindibilidade do emprego da norma penal em branco, para que haja uma
efetiva proteção penal do meio ambiente.486
O meio ambiente constitui bem jurídico fundamental, intimamente relacionado
à proteção da vida humana. Segundo Gilberto Passos de Freitas, há autonomia do
meio ambiente como um bem jurídico valioso em si mesmo. 487
No entanto, em se tratando das normas penais em branco, situações existem
em que o indivíduo não tem possibilidade de acessar a consciência da ilicitude da
conduta, nem de se informar a respeito dela, merecendo, por conseguinte, um
julgamento fidedigno aos postulados dos direitos humanos. Há que se avaliar o grau
cultural do agente e a reprovação social do ato contrário ao direito. Um exemplo que
486 FREITAS, 2003, p.112. 487 Ibidem, p.105.
167
bem demonstra a violação à dignidade da pessoa humana é o do homem que foi
preso em flagrante por retirar casca de árvore com o intuito de fazer chá para sua
mulher portadora da doença de Chagas, fato tipificado no art. 40 da Lei 9.605 de
1998. Segundo consta da notícia eletrônica da Folha de São Paulo, o lavrador, em
entrevista, afirmou constrangido: “Eu não sei ler, nem escrever. Cá na minha
ignorância, eu não sabia que era crime tirar raspa de árvore, que foi Deus que fez,
para dar chá para minha mulher”. Esse caso gerou indignação social, tendo,
inclusive, alguns ambientalistas protestado a favor do lavrador.488
4.4 MEIOS DE ACESSO À CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
O simples “esforço de consciência” parece-nos insuficiente para o
conhecimento do injusto do fato, tendo em vista que pode permitir o conhecimento
de violações morais, mas não é adequado para alcançar a consciência da ilicitude
do fato.489
Ocorre que a maior parte dos erros de proibição não pode ser evitada por
meio da simples consciência. “A consciência nada diz sobre as questões jurídicas
difíceis; do contrário, seria supérfluo o estudo do Direito”.490
Como já exposto, Welzel acrescentou o requisito do “dever de informar-se”
para completar o critério da “valoração paralela da esfera do profano” nas infrações
penais não correspondentes às violações morais, éticas e sociais. Ou seja, nestes
casos, não basta o simples esforço de consciência, o autor deve buscar se informar
sobre o caráter antijurídico de seu projeto de ação. No entanto, Welzel não
apresentou sobre o que consiste o dever de buscar informação. Como e a quem se
deve procurar a informação correta?
Segundo Bacigalupo, os meios adequados para afastar as dúvidas sobre a
antijuridicidade e, desse modo, evitar os erros de proibição são a reflexão e a
informação com base em uma fonte jurídica confiável. A autorreflexão caracteriza-se
por um esforço de consciência para compreender a significação jurídica da conduta.
488 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u3083.shtml. Último acesso em 16 fev 2012, às 22:03 hs. 489 Nesse sentido foi a decisão do tribunal alemão: BGHSt 2, 201 apud ROXIN, 1997, p.882.
Nesse sentido: SANTOS, 2000, p.238. 490 Baumann/Weber, AT, §27 II 3 apud ROXIN, 1997, p.882.
168
Cuida-se, entretanto, de um meio totalmente condicionado pelos conteúdos de
consciência que são produto do processo de socialização e que somente pode
alcançar seu objetivo quando se trata de normas ético-sociais geralmente
reconhecidas.491
A informação, ao revés, oferece melhores possibilidades, sempre e quando
provenha de uma fonte confiável. Normalmente, esta será um advogado, como
também os notários, procuradores e os funcionários competentes no âmbito em que
se deve desenvolver o projeto de ação.492
Também se admite como importante fonte de informação a jurisprudência.
Quando o autor projeta sua ação com base nas decisões judiciais, seu erro será, em
regra, inevitável. O problema surge quando a jurisprudência é contraditória. Neste
caso, se o autor se comportou em um dos sentidos admitidos pela jurisprudência,
seu erro deve ser declarado inevitável.493
A busca de conhecimentos jurídicos imprescindíveis para o desenvolvimento
de uma atividade social (conduzir um veículo automotor, o exercício de uma
profissão, o desenvolvimento de uma atividade econômica) não implica um recurso à
culpabilidade pela conduta de vida. No marco da culpabilidade do fato, para
determinar se uma ação ou omissão típica e antijurídica era reprovável ou, em que
medida era reprovável ao sujeito, há de se ter em conta não apenas os elementos
objetivos ou subjetivos da conduta realizada, mas também todas as circunstâncias
em que se levou adiante o fato e as que concorriam no delinquente.494
Ressalte-se que, no caso em concreto, a nosso ver, deve-se verificar se o
autor tinha reais condições de ter acesso a essas fontes de informação, já que
muitas pessoas não têm facilidade em socorrer-se desses meios, em razão da
própria falta de conhecimento quanto aos seus direitos e deveres.
4.5 TEORIA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL
Conforme já consignado nesta dissertação, a doutrina brasileira, em sua
maioria, não discute sobre o objeto da consciência da ilicitude, limitando-se à
491 BACIGALUPO ZAPATER, 1996, p.37. Nesse sentido: ROXIN, 1993, p.882 492 BACIGALUPO ZAPATER, op. cit., p.38. 493 BACIGALUPO ZAPATER, loc. cit. 494 CEREZO MIR, 2007, p.983.
169
propagação da teoria tradicional,495 representada por Jescheck, que entende a
consciência do injusto como contrariedade entre o comportamento e a ordem
comunitária.496
A literatura, no Brasil, não apresenta a teoria dominante na Alemanha:
conhecimento da “lesão específica do bem jurídico compreendida no tipo legal”; e
ignora a teoria moderna do “conhecimento da punibilidade do comportamento
através da norma legal penal positiva”, ou seja, do “conhecimento de infringir uma
prescrição penal”. Este último conceito, segundo preleção de Cirino dos Santos, “é o
mais compatível com o princípio da culpabilidade do Estado Democrático de
Direito”.497
Ocorre que a teoria moderna, representada por Harro Otto, entende que o
objeto do conhecimento do injusto é a punibilidade do fato, ou seja, significa
“conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legal penal
positiva”, de modo que “não é necessário o conhecimento preciso dos parágrafos da
lei, mas o conhecimento de infringir uma prescrição penal”.498
Ensina Cirino dos Santos que, com arrimo na concepção tradicional de objeto
da consciência da ilicitude, os doutrinadores pátrios afirmam que o desconhecimento
da lei não constitui modalidade de erro de proibição direto.499 Ou seja, extraem da
posição de Jescheck a incongruência lógica de que a ignorância da lei não se
consubstancia no objeto da falta de consciência do injusto e, desse modo, não pode
se apresentar como espécie do erro de proibição direto.
No entender de Jescheck, o erro de proibição direto pode se basear no fato
de que a “norma de proibição não é conhecida pelo autor, ou que, na verdade, o
autor a conhece, mas a considera inválida, ou a interpreta erroneamente e, por essa
razão, considere-a inaplicável”.500 Desse modo, verifica-se que Cirino dos Santos
tem razão ao arguir que o pensamento do jurista alemão não pode servir como base
para a tese de que a inevitável ignorância da lei penal é inescusável, servindo
apenas de circunstância atenuante. De fato, Jescheck entende que também constitui
erro de proibição direto o desconhecimento da norma proibitiva.
495 Cf. SANTOS, 2011, p.165. 496 JESCHECK, 1993, p.410. 497 SANTOS, 2000, p.232-233. 498 OTTO, 1996, apud SANTOS, 2011, p.165. 499 “não pode escusar-se o agente com a simples alegação formal de que não sabia haver
lei estabelecendo punição para o fato” (MIRABETE, 2000) apud SANTOS, 2011, p.171. 500 JESCHECK, op. cit., p.412.
170
Entendemos que a ignorância da lei penal e a falta de consciência da ilicitude
são realmente conceitos distintos, tal como profere a doutrina brasileira. Nessa
medida, preleciona Assis Toledo:501
Parece-nos elementar, contudo, que, sendo a „lei‟ uma coisa e a „ilicitude‟ de um fato outra bem diferente, só mesmo por meio de uma imperdoável confusão a respeito do verdadeiro sentido desses dois conceitos se poderá chegar à falsa conclusão de que a ignorância da lei é igual a ignorância da ilicitude de um fato da vida.
Ademais, estabelece Alcides Munhoz sobre a diferença que existe entre a
ignorância da antijuridicidade e a ignorância da lei, no sentido de que esta “é o
desconhecimento dos dispositivos legislados, ao passo que ignorância da
antijuridicidade é o desconhecimento de que a ação é contrária ao direito”.502
Assis Toledo assinala que “a ilicitude de um fato não está no fato em si, nem
nas leis vigentes, mas entre ambos, isto é, na relação de contrariedade que se
estabelece entre o fato e o ordenamento jurídico”.503
Ilicitude, portanto, é a relação de contrariedade entre o fato humano voluntário
do agente e o ordenamento jurídico. A ilicitude vem sempre acompanhada de um
diploma legal impondo ou proibindo determinada conduta. Já a ignorância da lei é o
desconhecimento dos dispositivos legais do ordenamento jurídico.
Em que pese se tratar de conceitos distintos, entendemos que eles podem se
entrelaçar. Posiciona-se de forma acertada Cirino dos Santos ao afirmar que se
deve admitir o desconhecimento do injusto por ignorância da lei. Há situações que,
de fato, o conhecimento do injusto depende do conhecimento da lei, próprias do
Direito Penal especial, em que ocorre a falta de coincidência entre tipos legais e
direitos humanos fundamentais. Admitir esse pressuposto constitui uma exigência do
princípio da culpabilidade.504
Assinalam Robson da Silva e Rodrigo Sánchez Rios que, no Direito Penal
Econômico, a exemplo dos crimes de licitação e o crime de descaminho, além do
tipo penal, faz-se necessário conhecer diversas outras leis e normas administrativas,
para se alcançar a consciência do que é permitido ou proibido, sob pena de sanção
penal. Concluem os autores que a consciência do injusto, nesse âmbito de
regulação, normalmente depende do conhecimento exato da lei por parte do autor
501 TOLEDO, 1994, p.262. 502 MUNHOZ NETTO, 1978, p.20. 503 TOLEDO, op. cit., p.66. 504 SANTOS, 2011, p.171.
171
da infração. Todavia, os tribunais no Brasil, de forma quase uníssona, têm adotado a
posição de que o desconhecimento da lei é inescusável, para não reconhecer o erro
de proibição, diferentemente da Espanha, por exemplo, onde se adota o
posicionamento de que o erro de proibição, nos delitos econômicos, é normalmente
vencível.505
Apesar de a doutrina brasileira entender que o desconhecimento da lei e o
erro sobre a ilicitude são conceitos totalmente diversos, verifica-se que a
jurisprudência, de forma contraditória, vem se posicionando no sentido de não se
admitir o erro de proibição (evitável ou inevitável), com fundamento apenas na
obrigatoriedade do conhecimento da lei penal. Vale citar as seguintes decisões dos
tribunais pátrios, dentre tantas outras no mesmo sentido:
Apelação criminal. Crime contra a fauna. Art. 29,§ 1º, inciso III, da Lei 9.605/98. Erro de proibição afastado. Perdão judicial. Inaplicabilidade. Sentença condenatória mantida. Pena readequada. 1- Devidamente demonstrado que o réu mantinha em cativeiro espécimes da fauna silvestre, sem a devida autorização da autoridade competente, a condenação é a conseqüência necessária. 2- Afastada a tese de erro de proibição porque o desconhecimento da lei não afasta a responsabilidade criminal, mormente em decorrendo de erro inescusável, haja vista que amplamente divulgada a necessidade... (RC 71003476256 RS. Turma Recursal Criminal. Diário da Justiça do dia 28/02/2012). (Grifo nosso). Nulidade. Cerceamento de defesa. Requerida e indeferida diligencia no prazo do art. 499, processual, preclui a alegacao de nulidade se nao arguida nas razoes finais mas somente no recurso. Venda de agrotoxico sem as recomendacoes legais. Erro de proibicao. Se a lei veda a comercialização de agrotoxicos em determinadas condições, nao há, por parte de quem não a respeita, erro de proibição ao dizer que a desconhecia, o que é inescusável (CP, art. 21). Acusado, porém, reiterante na conduta e que, por conseguinte, tinha consciencia da ilicutude da conduta. (APL 1302 RJ 1993.050.01302. Quarta Câmara Criminal. Publ. 11/02/1994). (grifo nosso).
No entanto, há decisões excepcionais em que não se aplica o erro de
proibição em virtude do desconhecimento da lei penal. Na decisão abaixo exposta,
reconheceu-se o erro de proibição no caso do uso de aparelho telefônico sem fio de
longo alcance, alegando, inclusive, o objeto da consciência da ilicitude:
505http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/robson_antonio_galvao_da_silv
a.pdf . Último acesso em 02 fev. 2012, às 20:03 hs.
172
Penal. Processo Penal. Uso de telefone sem fio de longo alcance. Atividade clandestina de telecomunicação. Crime. Art. 183, caput, da Lei nº 9.742. Crime formal. Princípio da Insignificância. Inaplicabilidade. Materialidade e autoria comprovadas. Erro de proibição inevitável. Ocorrência. Sentença reformada. Apelação provida. 1. A conduta atribuída à ora apelante configura o tipo penal descrito no art. 183, da Lei n. 9.472/97, tendo em vista que o "Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação", sem a devida autorização do órgão competente, consubstancia crime formal, que independe de resultado danoso para configuração do delito(...) 5. Na hipótese dos autos, é de se reconhecer a ocorrência in casu de erro de proibição quanto ao uso do aparelho telefônico sem fio de longo alcance. Com efeito, o art. 21 do Código Penal prescreve que o desconhecimento da lei é inescusável. Todavia, não se pode confundir o desconhecimento da lei, que é inescusável, com o erro de proibição que se encontra previsto na segunda parte do art. 21, do Código Penal, que não necessariamente decorre do desconhecimento da lei. 6. O erro de proibição incide sobre a consciência da ilicitude, que pode ser entendido como um juízo emitido de acordo com a opinião comum dominante no meio social, fazendo com que o agente suponha ser a sua conduta permitida pelo ordenamento jurídico. Assim, quando o agente não tem consciência sobre ser proibida a sua conduta, acreditando que se encontra agindo de boa-fé, dentro da normalidade, é de se reconhecer a ocorrência do erro de proibição. 7. Na hipótese, data venia de eventual entendimento em contrário, verifica-se que o contexto dos fatos está a demonstrar que a ré não tinha ciência da necessidade de autorização da ANATEL para colocar em funcionamento o equipamento de telefone sem fio de longo alcance. 8. Desconhecendo a ora apelante a necessidade de autorização estatal para funcionamento do equipamento por ela adquirido, é de se reconhecer o erro de proibição, pois é de se entender como presente, no caso em comento, a sua falsa convicção da licitude da conduta por ela praticada. Assim, havendo ocorrido in casu o erro de proibição inevitável, tem aplicação à hipótese o disposto no art. 21, caput, do Código Penal, segundo o qual o erro de proibição inevitável isenta o agente de pena. 9. Sentença reformada. 10. Apelação provida. (grifo nosso).
A obrigatoriedade da lei penal não pode fundamentar o erro de proibição
direto. Como cediço, a lei penal é geral e obrigatória em qualquer ordenamento
jurídico, e isso não impede que países, como a Alemanha e a Itália, considerem que
a inevitável ignorância da lei penal possa ser uma espécie de erro de proibição
plenamente escusável. Conclui-se, então, que os brocardos do tipo “ignorantia legis
neminem excusat” perderam o prestígio em face do princípio da culpabilidade.506
506 Nesse sentido: SANTOS, 2011, p. 170.
173
A existência de uma obrigação de conhecer o direito como fundamento da
evitabilidade do erro de proibição tem recebido muitas críticas por parte da doutrina
estrangeira.
Um grande crítico a essa formulação é Armin Kaufmann, ao desenvolver o
estudo da teoria das normas. A principal objeção do autor é a de que, se o
fundamento do castigo do erro evitável é ter infringido a obrigação de conhecer o
direito, em verdade, o autor está formulando um juízo de reprovação não pelo injusto
que tenha cometido, mas sim por outro, qual seja, a violação da obrigação de
informar-se, para conhecer a conformidade do seu comportamento com o direito.507
Segundo Kaufmann, a violação de um dever é sempre um problema de
antijuridicidade e, nesse âmbito, existem duas obrigações diferentes, a saber: a de
conhecer o direito, bem como a de conhecer a norma que o autor tenha infringido.
Além disso, observa-se que a teoria da obrigação geral de conhecer o direito acaba
gerando um regresso ao infinito: quando se alega o desconhecimento da obrigação
de informar-se, tem-se de fundamentar o castigo em outra obrigação, qual seja, a de
conhecer a obrigação do dever de informar-se e, se esta for desconhecida, o
fundamento dar-se-ia em uma obrigação anterior [...] e, assim, sucessivamente.508
No plano político criminal, a regra da obrigação geral de conhecer o direito
contraria o espírito pro libertate que informa o Estado de Direito, já que os cidadãos
têm de possuir o máximo de liberdade possível e a imposição de uma conduta deve
constituir a exceção, não a regra. Outra objeção, de índole dogmática, que se
formula contra essa obrigação é o perigo de que se objetive o critério de
evitabilidade do erro, por meio da adoção de critérios tal como o do homem
médio.509
Como é consabido, quem julga possui uma formação de alto nível e, muitas
vezes, toma a si mesmo como parâmetro de homem médio, não correspondendo à
realidade. Outrossim, pode ser que o autor se informe e, no entanto, não chegue a
obter o conhecimento da antijuridicidade, já que, no momento em que buscou se
informar, por exemplo, a jurisprudência declarava como atípico o comportamento
que veio a empreender. Neste caso, ao autor seria imposta uma sanção, apesar de
507 KAUFMANN, 1988 apud NIETO MARTÍN, 1999, p.111. 508 NIETO MARTÍN, loc. cit. 509 Ibidem, p.111-112.
174
ter buscado informação e não ter sido possível motivar-se de acordo com a norma.
O fundamento do castigo seria, tão-só, uma atitude desobediente ao direito.
Na Itália, o Tribunal Constitucional, na decisão de 24 de março de 1988, n.
364, declarou inconstitucional o artigo 5º do Código Penal italiano, o qual
preceituava que a ninguém é dado escusar a ignorância da lei penal. Segundo a
decisão, a causa fundamental de invalidez do referido dispositivo do diploma penal
italiano refere-se ao princípio da culpabilidade, segundo o qual a responsabilidade
penal é pessoal.510
Cumpre recordar, tal como apontamos no capítulo III deste trabalho, que o art.
5º do Código Penal italiano serviu como base para a redação da regra da
inescusabilidade da ignorância da lei penal na legislação brasileira. No entanto,
naquele país foi declarada a inconstitucionalidade do dispositivo, enquanto no Brasil
continua valendo a regra como um preceito absoluto.
De acordo com a Corte Constitucional italiana, o princípio de culpabilidade
como garantia do cidadão frente ao Estado está destinado a assegurar a liberdade
de atuação do indivíduo e a não exigir a instrumentalização da pessoa, haja vista a
noção de dignidade humana. Com esse escopo, reclama o princípio de culpabilidade
de que se responda penalmente somente por “ações controláveis” pelo próprio
agente.
Entendeu o tribunal da Itália que há necessidade de que estejam presentes
“requisitos subjetivos mínimos” sem os quais não é legítimo castigar. Tais requisitos
não estão absolutamente predeterminados na Constituição, nem tampouco ficam à
mercê do legislador ordinário. Segundo a decisão, o princípio de culpabilidade exige
que deva haver, ao menos, culpa em relação aos elementos mais significativos da
situação de fato. Assim, sancionar em virtude da lesão de um interesse tutelado,
relegando a atitude do sujeito frente à norma penal, sem ter sequer em conta a
existência de possibilidades de conhecer o dever jurídico, supõe uma redução ao
mínimo dos requisitos subjetivos que vinculam o sujeito a seu fato e uma
instrumentalização da pessoa humana a serviço da prevenção.511
O Tribunal Constitucional italiano define a inevitabilidade do erro de proibição
ou da ignorância da lei penal com base no princípio da culpabilidade. Conforme
observa Felip i Saborit, o encontro entre a lei e o indivíduo, ou seja, o conhecimento
510 Fj 8 y 13-14 (RIDPP, 1988, pp. 699-700 y 709-712) apud FELIP I SABORIT, 2000, p.64. 511 FELIP I SABORIT, loc.cit.
175
concreto, não se produz com a simples existência da norma, mas sim com a precisa
aproximação entre ambos. Para o autor, são corresponsáveis o Estado e o indivíduo
para o conhecimento do direito, pois que deve haver uma lógica contratualista:
somente quem cumpriu com sua parte pode exigir responsabilidade penal ou evitar a
sanção, respectivamente.512
Saliente-se que não pretendemos retornar à época passada em que se
identificava a irrelevância do erro de direito com a irrelevância do desconhecimento
da lei penal. Ao revés, entendemos que se deve considerar a relevância de ambos:
do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei em certos casos, admitindo-se,
portanto, que o princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal é relativo.
Ocorre que a irrelevância do erro de direito, conforme apresentamos na
evolução histórica da culpabilidade, deixou de prevalecer desde o século passado.
No entanto, a irrelevância do desconhecimento da lei continua sendo apregoada
como princípio absoluto em razão apenas de questões processuais, de validade da
lei e de segurança jurídica.
Ensina Figueiredo Dias que o primeiro passo para fundamentar o princípio da
absoluta irrelevância do desconhecimento da lei é “quase sempre no sentido de uma
irrefragável presunção de conhecimento”, à qual se atribui mero caráter processual,
relacionando-a ao instituto da prova. Todavia, segundo o autor, tal entendimento
contraria os mais elementares requisitos dentro dos quais se admite a “legitimidade
de presunções probatórias”.513
O autor, de forma acertada, critica a afirmação de que é absolutamente
normal o conhecimento da lei e que a tese de presunção absoluta resulta em pura
ficção decorrente de uma visão positivista, a qual entende a lei como “produto de
uma vontade arbitrária”, senão vejamos:514
O pluralismo legislativo por um lado; o acentuado caráter técnico da lei, por outro; os intrincadíssimos problemas (mesmo para especialistas) suscitados pela interpretação e aplicação – tudo torna absolutamente impossível, nos nossos dias, a afirmação de que é normal o conhecimento da lei. Pelo que a tese da presunção absoluta, a fundamentar-se só em si e por si mesma, viria afinal a desembocar em uma pura ficção – “die lächerlichste aller Fiktione”, como lhe chamou Anton Menger -, que só poderia ser conexionada com o problema da responsabilidade do homem pelo seu
512 FELIP I SABORIT, 2000, p.65. 513 DIAS, 2009, p.55. 514 Ibidem, p.56-57.
176
comportamento dentro de uma mundividência crassamente positivista que concebe a lei como produto de uma vontade arbitrária.
De todo o exposto, percebe-se que o princípio da inescusabilidade da
ignorância da lei penal não pode mais ser afirmado de forma absoluta apenas com
base em razões intrínsecas. Como vimos na parte histórica da responsabilidade
penal, Aristóteles assinalou que a obrigatoriedade das leis deveria prevalecer em
virtude da facilidade de conhecê-las.
Todavia, atualmente, sabemos o quanto é difícil e, até mesmo, impossível
conhecer todas as leis, não apenas as penais, mas de todo o ordenamento jurídico.
Cuida-se de uma realidade social totalmente distinta da tratada por Aristóteles, no
antigo direito grego, tendo em vista que, nos dias atuais, há diversos novos riscos
decorrentes da globalização econômica e do avanço tecnológico e, como
consequência, uma proliferação de leis na tentativa (muitas vezes fracassada) de
acompanhá-los.
Faz-se necessário, tal como exige Figueiredo Dias, uma razão que
materialmente fundamente o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei
penal. Assim, deve-se admitir a presunção relativa do conhecimento da lei,
principalmente em face do princípio da culpabilidade.
Torna-se imperioso verificar, diante do caso concreto, a possibilidade de o
agente cumprir a obrigação estabelecida em lei. Sobre a aferição da evitabilidade do
erro de proibição diante da hipótese concreta, nota acertamente Pierangeli que esse
juízo “fica entregue ao prudente arbítrio judicial no sentido de estabebelecer o
esforço que o agente deve realizar para compreender a antijuridicidade, observando
o grau cultural do agente e as regras de valoração social”.515
Além disso, os tribunais pátrios devem analisar a possibilidade de estabelecer
critérios condizentes com a dignidade da pessoa humana no que tange à
evitabilidade do erro de proibição, e não apenas propagar a afirmação, sem qualquer
fundamento material, de que o desconhecimento da lei é inescusável.
515 PIERANGELI, 1999, p.130.
177
4.6 O PRINCÍPIO DA INESCUSABILIDADE DA IGNORÂNCIA DA LEI PENAL VERSUS O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
No particular, importa considerar a necessidade de prestigiar tanto as regras
quanto os princípios como fontes normativas, assumindo grande destaque a teoria
de Robert Alexy. Nesse sentido, vale traçar breves comentários a respeito da
abordagem do tema, a fim de que haja a real apreensão do seu conteúdo.
Segundo Alexy, em seu livro “Teoria dos Direitos Fundamentais”, regras e
princípios são deveres estruturalmente distintos, sendo que as primeiras assumem a
natureza jurídica de deveres definitivos, sujeitos à lógica do “tudo ou nada”. No caso,
a incidência de uma regra exige a aplicação da lógica da subsunção, reunindo-se a
premissa maior e a premissa menor com o intuito de alcançar o resultado esperado.
Sinteticamente, então, pode-se dizer ser mais facilmente compreensível a aplicação
de uma regra, importando basicamente a sua conexão com o caso concreto.516
Já no que diz respeito aos princípios, Alexy emprega o conceito de
mandamentos de otimização, compreendendo-os como deveres de natureza “prima
facie”. Ou seja, os princípios impõem que algo seja realizado na maior medida do
possível, tendo em vista as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto,
servindo, para tanto, o recurso à ponderação de bens e interesses.517
Sendo assim, segundo Alexy, a lógica apropriada para aplicação dos
princípios reside no recurso à técnica da ponderação, trazendo campo mais flexível
na aplicação do Direito.518
No Brasil, pode-se destacar a opinião de Eros Grau a respeito do tema,
demonstrando o significado que se confere, atualmente, aos princípios como fontes
de interpretação:519
Os princípios, todos eles – os explícitos e os implícitos –, constituem norma jurídica. Também os princípios gerais de direito – e não será demasiada a insistência, aqui, em que se trata de princípios de um determinado direito – constituem, estruturalmente, normas jurídicas. Norma jurídica é gênero que alberga, como espécies, regras e princípios – entre estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais de direito.
516 Cf. ALEXY, 2008, p. 103-108. 517 ALEXY, 2008, p.90. 518 Cf. ALEXY, 2008, p.92-103. 519 GRAU, 2003, p. 45.
178
Compara Roque Carraza, tomadas as cautelas que as comparações impõem,
os princípios jurídicos aos alicerces de um edifício, dado que de nada valerão as
portas, janelas, luminárias, paredes, em seus devidos lugares, se do prédio
subtrairmos as “vigas mestras”; fatalmente ele cairá. O autor bem constata que não
importa se o princípio é implícito ou explícito, mas se existe ou não.520
Com arrimo na lição de Condillac, ensina Carraza sobre a tarefa de
interpretação do jurista nos seguintes termos:
O jurista, ao examinar o Direito, deve considerar as ideias que mais se aproximam da universalidade dos princípios maiores; com isto, formará proposições e terá verdades menos gerais. Em seguida, tomará as ideias que mais se aproximem, por sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer, concebendo novas proposições e continuando, desta maneira, sempre sem deixar de aplicar os primeiros princípios a cada proposição que descobrir. Descerá, então, pouco a pouco, dos princípios gerais às normas jurídicas mais particulares, caminhando, na medida do possível, do conhecido para o desconhecido.521
Tais observações mostram uma intensa valorização dos princípios no âmbito
de aplicação do Direito, movidos pelo intuito de alcançar resultado mais aproximado
da ideia de Justiça. Ora, tais tendências perceptíveis no campo do Direito brasileiro
atual servem para chamar a atenção dos estudiosos para a imprescindibilidade de
maior cuidado com a tarefa de aplicação do Direito, tão permeada de incertezas e
especificidades.
Portanto, ante as observações anteriores, pode-se extrair a conclusão de que
o alcance da Justiça acaba por ser muito mais prestigiado no momento em que
ocorre maior grau de flexibilidade na aplicação do Direito, sendo exemplo o tema
escolhido, e que exige cuidado especial no que diz respeito à sua mudança de
compreensão. Defender a modificação da natureza da regra da inescusabilidade do
desconhecimento da lei no Direito Penal para considerá-la relativa serve, então, para
prestigiar a flexibilidade dos princípios jurídicos incidentes no caso em epígrafe,
salientando, pois, ser esta a força motriz que alimenta a própria atuação cotidiana do
jurista. Assim, deve-se considerar o princípio da culpabilidade com o caráter
inviolável da dignidade da pessoa humana a ele inerente nos casos de ignorância da
lei penal.
520 CARRAZA, 2006, p.38; 40. 521 Ibidem, p.40.
179
Nessa perspectiva, o desconhecimento da lei não pode servir apenas como
causa de diminuição de pena, mas sim levar, em alguns casos, a resultado jurídico-
penal menos rigoroso e mais consentâneo com as peculiaridades das sociedades
complexas, marcadas por imensa gama legislativa que, por vezes, nem sequer é
conhecida pelos próprios aplicadores do Direito.
Percebe-se, dessarte, a necessidade de se repensar o regime jurídico
relativo ao desconhecimento da lei no Direito Penal brasileiro, contextualizando-o às
mudanças interpretativas necessárias para que se chegue a resultado mais
consentâneo com os imperativos de Justiça. Um caso paradigmático pode ser citado
para ilustrar a situação narrada, contemplando o lavrador que desmatou parte de um
terreno com a finalidade de plantar para sua própria subsistência, e que veio a ser
acusado da prática de infração penal.
Seria, no mínimo, absurdo defender a aplicação automatizada do Direito em
tal caso, recorrendo aos termos estritos da legislação penal como incidentes em
uma realidade completamente inapropriada, em sede da qual não restou evidente o
intuito de prejudicar o meio ambiente ou desrespeitá-lo em sua integridade. As
notícias, a propósito do caso, demonstram que o lavrador não tinha, de fato, o
conhecimento de que se tratava de conduta contrária à norma penal
incriminadora.522 Mas seria realmente justo acionar os aparelhos estatais para
processá-lo e julgá-lo como autor de fato típico, antijurídico e culpável, concedendo
tão somente o benefício da redução da pena?
Acredita-se não ser este o real objetivo da normatividade penal, marcada,
hodiernamente, pelo incremento no recurso às regras e princípios.
Vale aduzir, por oportuno, que a regra da inescusabilidade da ignorância da
lei penal, entendida de forma absoluta, contribui para o caráter seletivo,
discriminatório e estigmatizante do sistema penal. Afinal de contas, é o pobre quem
possui, geralmente, pouco acesso à informação, sobretudo em virtude de sua baixa
e má qualidade de escolarização.
Verifica-se, portanto, que o desconhecimento da lei penal como inescusável,
de forma absoluta, impede que o Direito seja um instrumento de controle social para
o alcance da igualdade, por meio da inclusão social, mas, ao contrário, aumenta a
segregação daqueles menos favorecidos financeiramente.
522 http://www.conjur.com.br/2010-mai-08/revertida-condenacao-lavrador-desmatou-90-mata-
atlantica. Acesso em 07 jan. 2012, às 14:05 hs.
180
Ocorre que o Direito Penal do Estado Democrático de Direito preocupa-se
com o ser humano. Sobre o assunto, impende destacar o princípio da culpabilidade,
que se traduz na responsabilidade penal do indivíduo, ou seja, toma em
consideração o homem. Referido princípio “condiciona o método do Direito Penal
porque é um dos mecanismos para o sopesamento do caso no processo da decisão
e da argumentação jurídica, possibilitando a própria realização da tópica, que para
garantir o respeito à dignidade humana pode superar o silogismo”.523
O princípio da culpabilidade deve ser entendido com base na dignidade da
pessoa humana. É fato irrecusável que, no âmbito do Direito Penal, as violações aos
direitos humanos, especialmente no que concerne à dignidade da pessoa humana,
são assustadoras quer seja em relação à pessoa do criminoso, quer seja em relação
às vítimas. Estas são amparadas se seus dramas chamam a atenção da mídia e,
por algum tempo, têm suas vidas e suas dores expostas, mas, logo isso passa.
Quanto aos autores de ilícitos penais, é regra que policiais, jornalistas e a sociedade
em geral partem do pressuposto de que são culpados, apesar de a Constituição
Federal lhes assegurar a presunção de inocência.
Tal postura cultural envolve violação aos direitos fundamentais do cidadão e,
por isto mesmo, sobre eles não se pode transigir. Qualquer forma de violação à
dignidade da pessoa humana deve ser reprimida pelo sistema, por seus intérpretes,
sob pena de se admitir enorme retrocesso no lento, mas progressivo caminho
percorrido pelo Direito Penal.
Para o professor Luiz Antonio Rizzatto Nunes, dignidade é “um conceito que
foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta
de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”.524 Nesse
passo, a dignidade da pessoa humana se identifica como um valor quase absoluto,
não admitindo quaisquer questionamentos quanto ao seu conteúdo e extensão.
A Constituição Federal de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana
como um dos fundamentos da República, a teor do seu artigo 1.º:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;
523 BRANDÃO, 2011, p.200. 524 NUNES, 2002, p.46.
181
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. [...] (grifo nosso).
Consagrado como sustentáculo do Estado Democrático de Direito, dito
princípio ganha mais importância se considerada a nossa história de violações a
direitos que tem seu ponto culminante na Ditadura Militar. Daí porque se entende
que a dignidade da pessoa não pode ser desprezada em qualquer situação,
impondo-se aos operadores do Direito o dever de tê-la como norte, no momento em
que se esteja diante de um caso concreto, quer seja individual ou coletivo.
Na hipótese de imputação de culpa daquele que desconhece o caráter
criminoso da conduta, modestamente, entendemos que há violação ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
Segundo a tradicional exegese do art. 21 do Código Penal, alegar o
desconhecimento da lei não escusa o agente da responsabilidade criminal. Tal
postura interpretativa é contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana
porque afasta toda a teoria da culpa genérica fundada na vontade de praticar o mal.
Nos julgados que envolvem os crimes ambientais e econômicos, por exemplo,
encontram-se inúmeras decisões rechaçando a possibilidade de absolvição com
base na alegação de desconhecimento da lei, afirmando os julgadores que a
imprensa divulga diuturnamente o conteúdo da lei e, por isso, não se deve
considerar seu desconhecimento como motivo relevante.
Entendemos, em face do expendido, que se deva considerar a
inescusabilidade da ignorância da lei penal como um princípio relativo,
principalmente em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa
humana.
Provada a ignorância ou o erro sobre a antijuridicidade, deve o operador do
direito realizar o juízo da existência da evitabilidade do erro de proibição de acordo
com os três critérios expostos por Claus Roxin, e não apenas alegar que o
desconhecimento da lei é inescusável: a) um erro de proibição é evitável quando
houver dúvidas; b) quando o agente conhece que o setor no qual atua está regulado
e não adota qualquer medida de modo a alcançar os conhecimentos jurídicos
necessários; c) quando o autor é consciente de que seu comportamento atinge outra
pessoa ou a coletividade.
No entanto, a consideração da existência ou não de dúvida deve ser feita não
pelo que entende a sociedade como razoável, mas sim pelas condições concretas
182
de o autor da infração chegar a indagar-se sobre a licitude de sua conduta. Em se
detectando razões para pensar na antijuridicidade, há de se avaliar se o autor teve
possibilidade de certificar-se sobre o significado jurídico de seu ato, podendo afastar
o erro mediante a autorreflexão e a informação.
Consigne-se a importância, no âmbito penal, do tratamento a ser utilizado na
jurisprudência (a depender dos elementos presentes na casuística), não só da
dogmática que orienta a espécie, mas dos princípios que regem o ordenamento
jurídico brasileiro. Deve-se ter sempre em consideração a dignidade da pessoa
humana, inerente ao princípio da culpabilidade, ponderada, indispensavelmente,
com a finalidade da pena, que deve, no nosso entender, coincidir com os
fundamentos do funcionalismo traçados por Claus Roxin, atendendo-se a fins
preventivos (geral e especial), considerando a conduta no contexto social, bem
como a posição social e cultural do autor.
Possível encontrar fundamento para este tratamento também na forma
diferenciada com que foi positivada a ignorância da lei na contravenção e no crime,
como já referido neste trabalho, isentando de pena na primeira e atenuando-a no
segundo. Insta indagar-se se há diferença da culpabilidade nesses casos que
autorize tratamentos desiguais. Pode-se afirmar ter a contravenção juízo de
reprovabilidade menor que o crime, repercutindo positivamente no que almeja
demonstrar esta pesquisa: há casos em que se deve reconhecer a relevância do
desconhecimento da lei penal, principalmente quando dizem respeito a infrações
penais não correspondentes às violações éticas, morais e sociais.
Confirma-se, pois, a máxima ensinada por Savigny “cada caso deve ser
tomado como se fosse o ponto de partida de toda a ciência, a qual deveria ser
forjada a partir dele”.525 Acrescente-se a esta análise seletiva, a necessidade de
estabelecer acertados critérios para a evitabilidade do erro de proibição, para que se
ponha a salvo a indispensável segurança jurídica e paz social.
525 SAVIGNY, 1914 apud DIAS, 1999, p. 40.
183
CONCLUSÕES
Apresenta-se a guisa de conclusões:
1 O percurso histórico da responsabilidade penal demonstra que o tratamento
atualmente dispensado à ignorância da lei neste ramo do direito é mais rigoroso do
que aquele conferido pelos antigos romanos, que, apesar de terem introduzido a
regra da inescusabilidade do erro de direito, admitiam inúmeras exceções em sua
aplicação, a exemplo da natureza da lei ignorada e da qualidade das pessoas. Além
disso, um dos fundamentos para a regra da irrelevância do erro de direito era o de
que o ordenamento jurídico daquela época constituía-se de normas expressas e
bem definidas, sendo fácil o conhecimento das leis, o que não ocorre nos dias
hodiernos, diante da complexidade do direito e da sociedade multicultural. Verifica-
se que houve avanço apenas no tocante à regulação da falta de consciência da
ilicitude, e um retrocesso quanto ao desconhecimento da lei penal.
2 No que se refere às concepções sobre a posição da consciência da ilicitude na
teoria do delito, percebe-se que tanto as teorias do dolo quanto as da culpabilidade
são insuficientes para resolverem as inúmeras situações concretas, mas a teoria
limitada da culpabilidade revela-se mais adequada do ponto de vista político-
criminal. Ademais, nota-se que ela se coaduna com a concepção funcionalista do
Direito Penal, que traz soluções mais condizentes com a realidade social, mormente
em se considerando os novos riscos a que todos estão submetidos diariamente,
decorrentes da globalização econômica e do desenvolvimento tecnológico.
3 Quanto ao tratamento da culpabilidade, o funcionalismo estrutural apresenta-se
mais acertado do que a teoria finalista, pois esta se baseia no entendimento da
liberdade de o homem agir de outro modo, sem qualquer demonstração empírica.
Por seu turno, a referida corrente funcionalista considera, para a exclusão da
culpabilidade, necessidades preventivas sobre a isenção de pena, ocasionando
relevantes efeitos na prática, a exemplo da questão do erro de proibição.
4 Com efeito, não se deve exigir mais do que a medida normal de fidelidade ao
direito presente numa pessoa integrada socialmente, preservando-se sempre a
dignidade da pessoa humana. Deve-se considerar a possibilidade de maior
incidência da inevitabilidade do erro de proibição diante da análise mais cuidadosa
dos casos em concreto, bem como de se estabelecerem critérios para que se
184
entenda o erro quanto à ilicitude evitável. Mas estes critérios não podem ser vistos,
apenas, de modo objetivo, a exemplo de se considerar a dúvida sobre a
antijuridicidade como razoável de acordo com o que pensa a sociedade, senão há o
risco de se criarem previsões absolutas de evitabilidade e violar o princípio da
presunção de inocência. Há, dessarte, que se levar em conta não apenas a
reprovação social, como também a capacidade intelectual e cultural do indivíduo,
atendendo-se, da melhor maneira possível, aos postulados dos direitos humanos.
5 No estudo histórico da culpabilidade e do erro de proibição no direito penal positivo
do Brasil, destaca-se o Projeto de Virgílio de Sá Pereira, de 1927, haja vista que o
autor se preocupou com o tema da ignorância da lei penal de acordo com a
realidade social. Distinguiu as infrações penais pela própria natureza das
convencionais, ou seja, ditadas pelas circunstâncias do momento. Diferentemente
desse entendimento, o Código Penal em vigor apenas reconhece a circunstância
atenuante da ignorância da lei e declara a regra da inescusabilidade desse
desconhecimento, o que tem gerado muitas interpretações equivocadas no sentido
da natureza absoluta desse preceito.
6 Com arrimo no posicionamento tradicional do objeto da consciência da ilicitude
como sendo o comportamento contrário à ordem comunitária, preceitua
majoritariamente a doutrina brasileira que o desconhecimento da lei é sempre
inescusável, não constituindo modalidade do erro de proibição direto. A falta de
consciência da ilicitude e a ignorância da lei penal são, realmente, conceitos
distintos, mas isso não impede que se reconheçam casos em que o conhecimento
do injusto dependa do conhecimento da lei, sobretudo em se tratando da legislação
penal especial em que não coincidam os tipos delituosos e a ilicitude moral, social e
ética.
7 A despeito de a doutrina posicionar-se no sentido de que a falta de consciência da
ilicitude e o desconhecimento da lei são conceitos distintos, verifica-se que, de forma
contraditória, os tribunais brasileiros não admitem o erro de proibição apenas com
fundamento na obrigatoriedade do conhecimento das leis. Em verdade, não há uma
fundamentação material da natureza absoluta do princípio da inescusabilidade do
desconhecimento da lei, mas apenas justificações processuais, de validade da lei e
de segurança jurídica. Assim, conclui-se pela necessidade de se considerar a
inescusabilidade da ignorância da lei penal como um princípio relativo,
principalmente em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa
185
humana a ele intrínseco. Até porque a segurança jurídica não pode se traduzir em
ineficácia de princípios constitucionais estruturantes do Estado Democrático de
Direito. A garantia da liberdade e do devido processo legal não podem ser
derrogados em nome da validade da lei ordinária, uma vez que esta encontra sua
própria fundamentação na Constituição Federal e desta deriva.
186
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