Mestre Pennacchi: Arte Integração, Estética da Participação

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17 Notandum 15 Núcleo HumanidadesESDC/CEMOrOCFeusp/IJIUniversidade do Porto 2007 Mestre Pennacchi: Arte Integração, Estética da Participação Jean Lauand Prof. Titular FEUSP [email protected] “Para que poetas em tempos de penúria?” (Hölderlin) “Eu amo o ser humano; na realidade, eu amo o divino que todo ser humano contém” (F. Pennacchi) “O mesmo e único é o caminho que sobe e o que desce” (Heráclito) Introdução No dia 27 de dezembro de 2005 comemoramos o centenário de nascimento do mais brasileiro dos grandes pintores italianos: Fulvio Pennacchi (27121905 / 5101992). Se todo aniversário é um convite a reavaliar o que se comemora, este aniversário tão especial impõenos a reflexão sobre o alcance, o significado e a atualidade a urgente atualidade da arte de Mestre Pennacchi. Neste estudo procurarei mostrar como a obra de Fulvio é arte integração: a presentação de qualidades atemporais; encarnação brasileira de valores universais; manifestação do divino no humano, do clássico no popular, do eterno na circunstância, do sagrado no profano, da mística no trivial... E o mais surpreendente é que essa dialética impensável para a maioria dos artistas apresentase para quem quer que contemple as obras de Mestre Pennacchi com suavidade, como se nem fosse possível não ser ele assim, como se fosse a coisa mais natural deste mundo...! Não por acaso, essa coincidentia oppositorum tem sido considerada uma característica essencial de toda mística. E Fulvio, não só em sua arte, mas também pessoalmente foi, sem dúvida, um grande místico: um mestre da "mística do cotidiano" e, por isso, falaremos também de sua estética da participação.

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O autor do trabalho mostra como a obra de Fulvio é arte integração: apresentaçãode qualidades atemporais; encarnação brasileira de valores universais;manifestação do divino no humano, do clássico no popular, do eterno na circunstância, dosagrado no profano, da mística no trivial...

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    Notandum15 NcleoHumanidadesESDC/CEMOrOCFeusp/IJIUniversidadedoPorto 2007

    MestrePennacchi:ArteIntegrao,

    EstticadaParticipao

    [email protected]

    Paraquepoetasemtemposdepenria? (Hlderlin)

    Euamooserhumanonarealidade,euamoodivinoquetodoserhumanocontm (F.Pennacchi)

    Omesmoenicoocaminhoquesobeeoquedesce(Herclito)

    Introduo

    No dia 27 de dezembro de 2005 comemoramos o centenrio de nascimento domaisbrasileirodosgrandespintoresitalianos:FulvioPennacchi(27121905/5101992).Se todo aniversrio um convite a reavaliar o que se comemora, este aniversrio toespecial impenosareflexosobreoalcance,osignificadoeaatualidadeaurgenteatualidade daartedeMestrePennacchi.

    Neste estudo procurarei mostrar como a obra de Fulvio arte integrao: apresentao de qualidades atemporais encarnao brasileira de valores universaismanifestaododivinonohumano,doclssiconopopular,doeternonacircunstncia,dosagradonoprofano,damsticanotrivial...

    E o mais surpreendente que essa dialtica impensvel para a maioria dosartistas apresentase para quem quer que contemple as obras deMestre Pennacchi comsuavidade,comosenemfossepossvelnosereleassim,comosefosseacoisamaisnaturaldestemundo...!

    No por acaso, essa coincidentia oppositorum tem sido considerada umacaracterstica essencial de toda mstica. E Fulvio, no s em sua arte, mas tambmpessoalmentefoi,semdvida,umgrandemstico:ummestreda"msticadocotidiano"e,porisso,falaremostambmdesuaestticadaparticipao.

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    Preservando sempre sua slida formao italiana, Pennacchi foi profundamentebrasileiro: no s por ter vivido neste pas 63 de seus 87 anos, mas, principalmente,porque a emigrao o trouxe terra em que a gente do povo, a gente brasileira,espontaneamentevive(enotempodeFulvioviviaaindamaisintensamente...)realidadese valores, por assim dizer, sob medida para a sua peculiar sensibilidade artstica: asimplicidade,afraternidade,oacolhimento,afesta,oldico,oamor1.Identificousecomnosso pas, que lhe forneceu farta matriaprima (ou, classicamente: causa formal,exemplar) para uma arte original e profunda: seus quadros Brasil explcito so algoassimcomodelicadoschorinhoscompostosporumeruditoclssico.

    Com toda a justia, Pennacchi lembrado como um dos principais nomes daHistria da Arte no Brasil. So tambm amplamente comentados: sua maestria emdiversastcnicas,suaparticipaonogruporenovadordapinturapaulistaebrasileiraetc.Neste estudo, porm, destacaremos este aspecto: o significado da obra de FulvioPennacchi no referencial da clssica Filosofia da Arte, relacionandoo com as tesesfundamentaisdePndaro,Herclito,Hlderlin,PlatoeTomsdeAquino.

    Nessa viso de mundo (e neste nvel ultraessencial cabe o singular...), a arterelacionase especialmente com os seguintes elementos: festa, criao, amor, louvor,participaoecontemplao.

    1 Paradoxalmente,convivendocomumaenormeinjustiasocialetantaviolncia...http://www.hoelderlingesellschaft.info/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=50.

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    Hlderlin,Pennacchieapenriadenossotempo

    Comecemos com a incmoda interpelao de Hlderlin, com um verso de seupoema"PoeVinho"2, quenos convida a contextualizaraproduoartsticanoquadroantropolgico:

    Porquedefinhamasartes?Porqueestomudososteatros?Porqueimveladana?

    Noporacasoumoutroversodomesmograndiosopoema"Poevinho"aseumodo, todo um tratado de Filosofia da Arte inspirou estudos estticos de dois dosmaioresnomesdafilosofiaalemcontempornea:MartinHeideggereJosefPieper,sendomesmo o tema central desses trabalhos3. Esse verso decisivo, que aprofunda naquelainterpelaoediagnosticaprofundamentenosaperplexidadedaarte,mastambmadohomemdo nossotempo:

    Paraquepoetasemtemposdepenria?

    Certamente,comofaznotarPieper,nosetratadeumaautnticapergunta:oquesedizquenoteriamsentidoasartesemtemposdepenria.Naturalmente,teremosqueampliarodilogocomopoetae identificaroquesignificaa"penria"desuaperguntaafirmao.

    A resposta de Hlderlin a essa tremenda pergunta situao na linha clssica daconcepoda arte j afirmadah2500anospelopoetaPndaro, equepermite avaliar agrandezadopintorFulvioPennacchi.

    A grandeza do artista est, no caso de Pennacchi, indissoluvelmente unida grandeza do homem: no convvio comFulvio, sempre de novo transparecia a profundaunidaderupturacomapenriadonossotempo!entreseumododesereaforadesuaexpresso artstica, que a todos encanta, embora nem todos sejam capazes de dizer porqu. Pois Fulvio Pennacchi traduziu em arte seus valores de vida valores tanto maisurgentes para o nosso tempo, que no s encontra dificuldades para realizlos, masinclusiveparacompreendlos.

    Uma tal dificuldade reside, antes demais nada na reta avaliao da penria donossotempo.ComodizHeidegger,precisamentecomentandoaqueleverso:

    Nosso tempomal compreende a pergunta como vamos compreender a respostadada por Hlderlin? E a resposta de Hlderlin incide certeiramente sobre o ncleoessencial daquela grande tradio esttica: a verdadeira arte, em ltima instncia, sflorescecomoexpressodeafirmaoedelouvoraDeuspelabelezadomundo:

    2 "BrotundWein".CitopelaedioeletrnicadaHlderlinGesellschaft:http://www.hoelderlingesellschaft.info/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=50.3 Citareioprimeiro,"Yparaqupoetas?",pelaedio:MartinHeideggerCaminosdebosque TraduccindeHelenaCortsyArturoLeyte,Alianza,Madrid,1996,pp.241289.OleitorfamiliarizadocomPieper,saberreconheceraimensadvida,tambmnesteestudo,quetenhoparacomestepensador.Apiomeespecialmentenos captulos "Erinnerung:Mutter derMusen" e "DieFestgenossen" de Nurder Liebende singt, Stuttgart,Schweibenverlag,1988.UmcomentrioaoversodeHlderlin DiemusischenKnsteunddasFest,Mnster,s.c.p.,22680.DiscursodeaberturadaexposiodapintoraHildeSchrkFrisch.

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    Ah,meuamigo,chegamostardedemais...Sim,aindahdeusesmasacimadenossascabeas,emoutromundo(...)Quedizer?Nosei.Paraquepoetasemtemposdepenria?

    Emnossapoca,apenriachegouaextremotalcomentaHeideggerquenemsequercapazdesentirqueafaltadeDeusumafalta.Poisapenriadostemposnoaescassezmaterial,masaausncia"parans"deDeus,quepodeatexistir,masinandererWelt "em outromundo" que no o nosso (Hlderlin). A arte de Pennacchi realiza essadiscretateofania:enomerefiroaquiartesacra,masaomodocomonosfazverotrivialbrasileiro:asmulherescomascrianas,asfainasagrcolas,osfolguedos,oscesetc.SuaobrarevelanosDeus.NooDeusdosexrcitos,nooDeusjuiz,nooDeusimpessoalforacsmica,masDeusquefonteeraizdeamorecarinho,oDeusqueolhouparasuacriaoeparaohomemeviuquetudoeramuitobom,enfimaqueleDeusque,comotodomundosabe,brasileiro...

    Deusnofornoaartecomomstica docotidiano

    Para nos aproximarmos da relao entreDeus e o cotidiano, emais ainda entreDeus e o trivial, devemos remontar a um emblemtico episdio, protagonizado por umgrande pensador nos alvores da filosofia,Herclito defeso.O episdio narrado porAristteles4:

    Dizse que Herclito assim teria respondido aos estranhosvindos na inteno de observlo. Ao chegarem, viramnoaquecendose junto ao forno. Ali permaneceram, de p(impressionadossobretudoporque) eleos encorajou(elesaindahesitantes) a entrar, pronunciando as seguintes palavras:"Mesmoaquiosdeusestambmestopresentes"5

    Emvez do "sbio"por eles imaginado, imerso nasprofundezasdopensamento,investigando os segredos da divindade, esses visitantes decepcionados encontramHerclitoprosaicamenteaquecendosejuntoaofogo.Eofilsofotemqueinstruiressescuriososdesavisados:

    ...Mesmoaqui, junto ao forno,mesmo neste lugar cotidiano ecomum onde cada coisa e situao, cada ato e pensamento seoferecem de maneira confiante, familiar e ordinria, "mesmoaqui", nesta dimenso do ordinrio, os deuses tambm estopresentes. A essncia dos deuses, tal como apareceu para osgregos, precisamente esse aparecimento, entendido como umolharatalpontocompenetradonoordinrioque,atravessandoo

    4 Depart.anim.,A5645a17ess.5 apud Heidegger,M. Herclito,RiodeJaneiro,RelumeDumar,p.22.

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    e perpassandoo, o prprio extraordinrio o que se expe nadimensodoordinrio6.

    Se a filosofia, tal como a arte, tem a misso de recordar os "essenciaisesquecidos", esse episdio, mesmo em sua interpretao superficial, j teria o imensomrito de lembrar a presena de Deus no cotidiano. O alcance do posicionamento deHerclito,porm,aindamaisprofundoeaanlisedeHeideggerchegaaumaconclusomuitoforte,ecomoelemesmodiz,"curiosa".oque,emportugus,podemosexpressar,lendoo"mesmoaqui"deHerclito,como"aquimesmo"!Eque,nofundo,Herclitonodiz"Mesmoaquiestoosdeuses",massim:"aquimesmoqueestoosdeuses".Aquimesmo:juntoaoforno,notrivialdocotidiano:

    Quandoopensadordiz"Mesmoaqui",juntoaoforno,vigoraoextraordinrio, quer dizer na verdade: s aqui h vigncia dosdeuses.Onderealmente?Noinaparentedocotidiano7.

    LendoessaanlisedeHeideggerimpossvelnorecordaraobradePennacchi,naqualprecisamenteocotidianoaparececomoohabitatdaddivadeDeus.Suaartefaznosver(ouentrever...)elembraressarealidadetranscendentenoinaparentedocotidianoe,semela,recamosnacotidianadesolao,comoexpressouAdliaPrado:

    DevezemquandoDeusmetiraapoesia

    Olhopedra,vejopedramesmo8.

    6 Heidegger,M.Herclito,RiodeJaneiro,RelumeDumar,pp.2324.7 Heidegger,M.Herclito,Riode Janeiro,RelumeDumar,p. 24.EHeideggerprossegue: "Noprecisoevitaroconhecidoeoordinrioeperseguiroextravagante,oexcitanteeoestimulantenaesperanailusriade,assim,encontraroextraordinrio.Vocsdevemsimplesmentepermaneceremseucotidianoeordinrio,como eu aqui, que me abrigo e aqueo junto ao forno. No ser isso que fao, e esse lugar em que meaconchego, j suficientementerico emsinais?O fornopresenteiaopo.Comopodeohomemviver semaddivadopo?Essaddivadofornoosinal indicadordoquesoos theo,osdeuses.Soosdaontes,osqueseoferecemcomoextraordinrionaintimidadedoordinrio."Etc.

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    Nesteversogenial,encontramse,demodomaximamenteresumido,oselementosessenciais (e sua interconexo)de que estamos falando:Deusinspiraocotidianoarte.pelamodoartistaque,tambmns,osnoartistas,podemosveroplus,paraalmdamerapedra.

    gratonotarqueapoesiadeAdliatemmuitoemcomumcomaartedeFulvio.Tambm ela tem conscincia do cotidiano como objeto de transcendncia. Em umaentrevista,apoetadeclarava:

    Onde que estoosgrandes temas?Paramim, a que estogrande equvoco. O grande tema o real, o real o real ogrande tema. E onde que ns temos o real? na cenacotidiana.Todomundostemocotidianoenotemoutracoisa.Eu tenho estavidinhade todo dia comsuasnecessidadesmaisprimrias e irreprimveis. nisso que a metafsica pisca paramim.Ea coisada transcendncia, querdizer: a transcendnciamora, pousa nas coisas... est pousada ou est encarnada nascoisas9.

    Nessamesmaentrevista,Adlia,apresentouumpoemaindito,"Accias",poema"convocado"apartirdeumasimplesetrivialaccia:

    Eis,estaacciafloridageraangstia

    Paralivrarme,empenhome

    Emesgotarlheabeleza

    Belezaimportuna,

    Magnficainsuficincia,

    Porqueaindaconvoca

    Opoemaperfeito10.

    8 Prado,Adlia PoesiaReunida,SoPaulo,Siciliano,1991,p.1999 Prado,Adlia"PoesiaeFilosofia",inLauand,Jean Interfaces,SoPaulo,Hottopos,1997,pp.2324.10 Opoemacompletopodeserlidotambmem:http://www.hottopos.com/videtur28/ljacidia.htm

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    Pennacchiguianossoolharparaesse"plus":apedranoumaprosaicapedra,oumelhor,sendopedra eprecisamenteporser muitomaisquepedra...a"magnficainsuficincia" edessa"insuficincia"aindafalaremosaconvocaraarte.

    AMemria,medasmusas

    Mencionvamoshpoucoamisso"lembradora"daarte.ComoensinaPieper11,jatradiogrega,desdeHesodo,cercade700A.C.,apontaamemriacomomedasMusasumsculodepois,apoetisaSafo,afirmaquenohmemriasemasMusasamissodaarteaderecordar,tesequeretomadaoutroscemanosdepoisno"HinoaZeus"dePndaro.

    A cena descrita por Pndaro clara: Zeus resolve intervir no caos. Toda aconfusoedeformidadevai,ento,dandolugarharmoniaeordem:kosmos.Equando,finalmente,omundoatingeseuestadodeperfeio(estreandoaterra,osrios,osanimais,o homem...), Zeus oferece um banquete paramostrar aos demais deuses atnitos antetantabelezaasuacriao...Mas,parasurpresageral,umdosimortaispedeapalavraeaponta a Zeus um grave e inesperado defeito: esto faltando criaturas que louvem ereconheamagrandezadivinadessemundo...

    Pois o homem um ser que esquece! O homem, ele que foi agraciado peladivindade com a chama do esprito, o homem, afinal, saiumal feito, mal acabado, eletende ao embotamento, insensibilidade... ao esquecimento! As musas (filhas deMnemosyne,aMemria),asartes,soumremdiodeZeusparaessasituao:elasforamdadaspeladivindadeaohomemcomocompanheiras,paraajudloalembrarse...12

    Claroque,aoafirmaressecarteresquecediodohomem,noseestdizendoqueeleseesqueadetudo,mas,principalmenteeatumaconstataodeordememprica,doessencial.Pois,naverdade,ohomemlembrasedemuitascoisas:naturalmente,ele,

    11 NurderLiebendesingt, Stuttgart,Schweibenverlag,1988,p.35.12 Alm do j citado Pieper, J. Nur der Liebende singt, Schwabenverlag, 1988, p.35 e ss., cf. tambm ocaptulo de Michle Simondon "Mnmosyne, mre desMuses" in LaMmoire et l'Oubli dans la PenseGrecque jusqu' la findu Ve. sicle avant J.C., Paris, Socitd'dition "LesBelles Lettres", 1982 e o deBrunoSnell"Pindar'sHymntoZeus"in TheDiscoveryoftheMind TheGreekOriginsofEuropeanThought,Cambridge,HarvardUniv. Press,1953.

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    "criatura trivial" (como diz Guimares Rosa), no se esquece da data do depsitobancrio,noseesquecedecomprarsuarevistapredileta,dadatadafinaldocampeonato,nem das comezinhas realidades que compem o varejo de nosso rotineiro cotidiano.Esquecese,sim,dasabedoriadocorao,docartersagradodomundoedohomem...Aarteestparasuperaresseembotamentoeessecotidianosemgraaemanifestaraorigemtranscendentaldohomemedomundo.

    As musas so um dom da divindade: no por acaso que, naturalmente,instintivamente, o homem tende a evocar Deus quando a beleza inesperada ou intensaarrancaodomarasmocotidiano!"MeuDeus!Quantabeleza..."exclamaopoeta13 ecomele conscienteouinconscientemente todososartistasetodososquecontemplamobelo.

    interessantenotarnestesentidoqueosignificadoetimolgicodaespanholssimapalavra"Ol!",sejaumrecursoaDeus.Ol! dizoDiccionariode laRealAcademia provmdorabeWa(a)llah("PorDeus!")14.Ol!umaexclamaodeentusiasmoanteuma beleza surpreendente ou "excessiva" (no verbete Ol!, o Diccionario de MaraMolinerexemplificacomocasodastouradasoudoflamenco).Facilmenteintumosqueabeleza de um ousado lance de tourada, de um golao sem ngulo ou de um "taconeoflamenco"dealgummodomisterioso,masrealparticipaonacriaotambmelaartstica de Deus: Ol! (ou o equivalente em outras lnguas:Oh, myGod!What abeautifulwoman!) 15.

    Ocaminhoquesobeoquedesce

    nestepontoquedevemosrecorreraoutrasentenadeHerclito,essencialparaonosso tema. Herclito, que afirmava que "a natureza gosta de esconderse16", afirmatambm um importante princpio de interpretao do oculto: "o mesmo e nico ocaminho que sobe e o que desce17". Essa sentena, longe de ser o trusmo que poderiaparecerprimeiravista,naverdadeachaveparaanossafilosofiadaarte.

    JulinMaras,comentaestasentena:

    O caminho para cima justamente o caminho que leva dopatente, do manifesto ao latente, ao oculto. Mas Herclitoacrescentaalgomais:queocaminhoparacimaeocaminhoparabaixoomesmoenico.Querdizer:humcaminhoque levado patente ao oculto, de ida e volta: o caminho inverso, ocaminhoquelevadopatenteaolatente...18

    13 CastroAlves,"SubTegmineFagi".14 Wa(a)llah "PorDeus!" o rabenodispedavogal"e"e,porvezes,o"a"temsomsemelhantea"e".15 Seofalanteocidentalhoje(noso torcedornosestdiosdoBrasil,mastambmotaurfilomadrilenhoemLasVentas)noselembradequeOl!invocaodeDeus,noQuixoteistomaisexplcito:quandoocristocomeaagabarainsupervelbelezadesuadama,ouvedomoro:"Gual,cristiano,quedebedesermuyhermosasi separeceamihija, quees lamshermosade todoestereino.Sino,mralabien, yverscmotedigoverdad"(CaptuloXLI).16 apudHarris,Williamop.cit.sentena17.Eafilosofiaaparececomoumabuscadodescobrimentodessasocultaes(aletheia,apalavrapara"verdade"emgrego,significaprecisamente,umdesvelar).17 apud Harris,William op.cit. sentena107.18 Maras,Julin"Herclito", InternationalStudiesonLawandEducation,No.3.,SoPaulo,HarvardLawSchoolAssociation, p.85.

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    Emnossocaso,o "acima",o "latente" precisamente aqueleplus deque falavaAdlia Prado: somente quando se v o mundo como criao como obra de Deus,presente e fundante , e o homem como participante no que est acima do humano,somente ento podem as musas surgir para festejar um mundo pleno de sentido e debeleza.

    AEstticadaParticipao

    esteomomentodefalarmosdeumaclaveessencialdeinterpretaodaartedeMestre Pennacchi: a Esttica da Participao, prefigurada j emHerclito e consumadaemTomsdeAquino.Noporacaso,Herclitofoicognominado"Oobscuro"epodeselheaplicaraqualidadequeelemesmoatribuiaoorculodeDelfos19:adenomanifestarnemocultar,masadedarpistas...Assim,suagenialsentenadocaminhotambmumapista:paraalgoqueserelaboradopelafilosofiaposterior:adoutrinadaparticipao.

    EssadoutrinaencontrasenoncleomaisprofundodopensamentodeTomsdeAquinoeabasetantodesuaconcepodosercomonoplanoestritamenteteolgicodagraa.Indicaremosresumidamentesuaslinhasprincipais.

    Comosempre,voltemonosparaa linguagem.Comecemosreparandonofatodeque na linguagem comum, "participar" significa e deriva de "tomar parte" (partemcapere). Ora, h diversos sentidos e modos desse "tomar parte"20. Um primeiro o de"participar" de modo quantitativo, caso em que o todo "participado" materialmentesubdivididoedeixadeexistir:sequatropessoasparticipamdeumapizza,elasedesfaznomomentoemquecadaumtomaasuaparte.

    Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo imaterial, umarealidadequenosedesfaznemsealteraquandoparticipadaassimquese"participa"amudanadeendereo"aamigoseclientes",ouaindaquese"dparte polcia".

    O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, o que expresso pela palavragrega metkhein, que indica um "ter com", um "coter", ou simplesmente um "ter" emoposioa"ser"um"ter"peladependncia(participao)paracomoutroque"".Assim,Toms,aotratardaCriao,utilizaesteconceito:acriaturatemoser,porparticipardoserdeDeus,que ser.Tomssevaledemetforasparaexemplificar:elecomparaoatodeserconferidoemparticipaoscriaturasluzeaofogo:umferroembrasatemcalorporqueparticipadofogo,que"calor"umobjetoiluminado"temluz"porparticipardaluz que na fonte luminosa. Tendo em conta essa doutrina, j entendemos melhor asentenadeGuimaresRosa:"Osolnoosraiosdele,ofogodabola"21.

    Participao envolve, pois, graus e procedncia. Toms parte do fenmenoevidente de queh realidadesque admitem graus, admitemummaisouummenos:umexcelente Bordeaux mais vinho do que, digamos, um "Chateau de Carapicuba" ou"BarondeQuitana"(comodizaantigacanodeChicoBuarque:"temmaissambanoencontroquenaespera...temmaissambaoperdoqueadespedida").Epodeacontecerqueapartirdeum(in)certoponto,apalavrajnosuporteoesticamentosemnticoenoadmitamosonome"vinho"paraalgumasequvocas"marcas".

    19 apudHarris,William op.cit. sentena18.20.Cfr.Ocriz,F.HijosdeDiosenCristo,Pamplona,Eunsa,1972,pp.42ess.21.NoitesdoSerto,RiodeJaneiro,JosOlympio,6a.ed.,1979,p.71.

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    Ascoisassecomplicam e ocasocontempladoporTomsquandoumadasrealidades designadas pela palavra fonte e raiz da outra: em sua concepo departicipao, a rigor, no poderamos predicar "quente" do sol, se a cada momentodizemosqueodiaouacasaestoquentes(seodiaouacasa tmcalorporqueosolquente).Assim,deixadeserincompreensvelparaoleitorcontemporneoque,noartigo6da Questo disputada sobre o verbo,Toms afirme que no se possa dizer que o sol quente(solnonpotestdicicalidus).Elemesmoexplica,anosdepois,na SummaContraGentiles(I,29,2),queacabamosdizendoquenteparaosoleparaascoisasquerecebemseucalor,porquealinguagemassimmesmo:

    "Como os efeitosno tmaplenitudede suas causas, no lhescompete o mesmo nome e definio delas. No entanto, necessrioencontrarentreunseoutrosalgumasemelhana,pois da prpria natureza da ao, que o agente produza algosemelhanteasi(Aristteles), jque todoagenteagesegundooatoque .Daque a forma (deficiente) do efeito encontrase aoutro ttulo e segundo outromodo (plenamente) na causa.Daquenosejaunvocaaaplicaodomesmonomeparadesignaramesma rationacausaeno efeito.Assim,osolcausaocalornoscorpos inferioresagindosegundoocalorque ele emato:ento necessrio que se afirme alguma semelhana entre ocalorgeradopelosolnascoisaseavirtudeativadoprpriosol,pelaqualocalorcausadonelas:daqueseacabedizendoqueosolquente,sebemquenosegundoomesmottulopeloqualse afirmaqueas coisas soquentes.Dessemodo,dizse que osol de algummodo semelhante a todas as coisas sobre asquaisexerceeficazmenteseuinfluxomas,poroutroladolhesdessemelhanteporqueomodocomoascoisaspossuemocalordiferentedomodocomoeleseencontranosol.Assimtambm,Deus,que distribui todas suasperfeies entre as coisas lhessemelhantee,aomesmotempo,dessemelhante".

    Todas essas consideraes parecem extremamente naturais quando nos damoscontadequeocorrememinstnciasfamiliaresequotidianasdenossaprprialngua:umgrupodeamigosvaifazerumpiqueniqueecompraalgunspacotesdegelo(dessesquesevendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja e refrigerantes. As bebidasforam dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas socircundadaspormuitogelooutras,pormenos.Detalmodoquecadaumpodeescolher:desde a cerveja "estupidamente gelada" at o refrigerante s "um pouquinho gelado"...Ora,evidentequeograude"gelado"umaqualidadetida,quedependedocontato,daparticipaodafonte:ogelo,que,elemesmo,nopodeserqualificadode"gelado",poisfonte dos gelados... Estes fatos de participao sonos, no fundo, evidentes, pois comtodaanaturalidadedizemosque"gelado",gramaticalmente,um particpio...

    A doutrina da participao traz consigo uma tenso dialtica prpria, entre oaspectopositivoeonegativodadualidadedaparticipao:acriaturaparticipa,sim,doserdeDeus,masapartirdonada:"Deus,quedistribuitodassuasperfeiesentreascoisaslhessemelhante e,aomesmotempo,dessemelhante".Amesmapedraque trazparans,

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    peloolhardoartista,umplus participadoseredabondadeedabelezadeDeusnosremetetambmaumnihil,aonada,apartirdoqualelafoifeita.SeaartedePennacchi,enfatizao ladopositivodessadualidade,deixaentreversempre tambmo ladonegativo.TalcomoAdlia,Fulviotambmemseuspoemasfaladessadualidade.Porexemplo:

    ENCANTOETORMENTOS DEAMOR

    Quebelover,persistirnoolhar!

    Perscrutarafundonasdiversascoisasdestemundo

    Deterseafitareaadmirarumamenina,

    Ocu,umaflornova,

    Umpssaroquevoaalegremente,

    Aruidosaalegriadascrianas,asmoasfaceiras

    Quebrincamcomoamorcomoborboletasemtornoaofogo

    Vidadestemundo,

    Douratonossadefitaroolhardeumamulher

    Eadivinharlheopensamento

    Desentirvivoohumanosuavecalordesuavida.

    Mastudoissobrincar,cedosedesfaz

    Enadarestaoamorno,oamordiferente

    vidaeterna,gozoesofrimento

    Terrveltormentocomdouradivina.

    Essa doutrina da participao de Toms, em sua dualidade com o aspectopositivo,participaonoserenabelezadeDeuse,poroutrolado,acriaturaprocedendodo nada encontra uma inesperada e discreta confirmao na cano "Garota deIpanema", de Vinicius e Tom Jobim. A letra, como todos recordam, vai falando dabeleza...:

    Olhaquecoisamaislinda,

    maischeiadegraa

    ela,menina,

    quevemequepassa

    ...edecomo"omundointeirinhoseenchedegraaetc."e,derepente,overso,toprofundoquantoinesperadoe(s)aparentementecontraditrio:

    "Oh,porquetudototriste?"

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    Por que a beleza traz consigo tambm a sensao de solido e tristeza?TalveztambmporqueseadivinhaqueacriaturatemabelezademodoprecrioecontingentesDeusaBelezaincondicionale simpliciter22.

    Abelezacomoparticipao

    Naturalmente, o aspecto mais evidente, em geral nas artes, o positivo, o daparticipaonabeleza.OprprioTomJobimexplicitaessaconcepodeparticipao,nosentido tomasiano. Como afirmei em um artigo de 1991: "Nesse sentido est odepoimento, imensamente profundo, deTom Jobim sobre a criao artstica em recenteentrevistaquandofoicontempladonosEUAcomamaisaltadistinocomquepodeserpremiadoumcompositor,oHallofFame: 'Glria?Aglria deDeus enodapessoa.Vocpodeatparticipardelaquandofazumsambademanh'.Ecomplementa: 'Glriasoospeixesdomar,mulherandandonapraia,fazerumsambademanh'"23.

    AobradeFulvioPennacchinos levapelocaminhoquesobe,porqueantes elepessoal e artisticamente rastreou a beleza no caminho que desce: da beleza divina aotrivialdocotidiano.OquePennacchinosmostraovalordosimples,ariquezadaalmaboa,ingnua,brasileira,"debem"comDeusecomomundo,sempredisponvelparauminfinitoacolhimento.

    A discreta simplicidade desses valores escapa hoje sufocante mentalidadeconsumista e massificada, amarga e reivindicatria, do homem que se pretende autosuficiente num mundo tecnologicamente domesticado, que, quando muito, s se deixaatingirpor"efeitosespeciais".OcativantemagnetismodosquadrosdePennacchifrutode ummagnfico talento tcnicoartstico que expressa aquela viso demundo clssica.Suas obras tornamse, assim, uma autntica terapia existencial para a multifacticaneurosedonossotempo,queinsistenoerrodeconsiderardispensveis(porteresquecidojcomovivencilos):osentidodafesta,dolouvor,doamor,dacriao,daparticipao.Soumconvitesuperaodapenria(davidaedasartes),cujaprimeiramanifestao,deacordocomHlderlin,aincapacidadeparaafesta!

    22. "Est autem duplex defectus pulchritudinis in creaturis: unus, quod quaedam sunt quae habentpulchritudinemvariabilem,sicutderebuscorruptibilibusapparet(...)Secundusautemdefectuspulchritudinisest quod omnes creaturae habent aliquomodo particulatampulchritudinemsicut et particulatam naturamhuncdefectumexcluditaDeo,quantumadomnemmodumparticulationis...Deusquoadomnesetsimpliciterpulcherest"(InDediv.nom. cp4,lc5).23."AFilosofiadaartedeS.TomseTomJobim", Atualidade, semanrioPUCPR,N.246,287a3891,p.8.

  • 29

    Como diz Plato nas Leis24, as musas so um presente da misericrdia divina:dadas aos homens como companheiras de festa e remdio contra a tendncia aoembotamentoeembrutecimentoaqueestamossujeitos.Eemtempospenuriosos,levantaseaparfrasedePieper:

    Paraquecompanheirasdefesta,sejnohfesta?25

    Pois, continua aanlisedePieper,aatitude festiva s se encontrarealmente emquem est profundamente "de bem" com o mundo e com a totalidade do ser, o quepressupeolouvoraDeus:paraquepoetas,paraquepintores,paraquefestejarecantarummundoquenofosseCriao?Afestasemprelouvoreafirmao.Quemquerquecelebre uma festa, mesmo uma simples festa de aniversrio, consciente ouinconscientementedseuassentimentoaDeuseaomundo:

    Ou ser que poderia festejar, mesmo um simples aniversrio,quemestivesseseriamenteconvencido,comJeanPaulSartre,deque " absurdo que tenhamos nascido absurdo queexistamos"?26

    Pois a festa e a arte se alimentam do amor. E o amor, afinal, aprovao,afirmao e como to bem formulou Pieper prse diante da pessoa amada e dizer:"Quebomquevocexista!Quemaravilhaquevocestejanomundo!".Oamorhumano,porm,aindaalgodeprovisrionaverdade,elecomoquecontinuao,participaoeprolongamentodeumoutroAmor:oAmordeDeus,quedesdeoprincpioprofereafrasecriadoraporexcelncia:"bomqueexistas!"27.

    24 PLATO,Leis,665a.25 DiemusischenKnste... p.4.26 Pieper,Josef DiemusischenKnste...,p.4.27 CfPieper,Josef"OqueoAmor"inCrer,esperar,amar http://www.hottopos.com.br/notand4/crer.htm.

  • 30

    AobradeFulvioPennacchinosmostraprecisamenteocartercriadodomundocommodemestrenosfazver,nascenassimplesdocotidiano,odivinonarealidadequenos circunda. Insisto em que no estou aqui me referindo suamaravilhosa arte sacra(onde, alis, seu temapreferido eraS.Francisco e, coincidentemente, seultimo dianaterrafoiodestesanto,aquemrepresentouemdezenasdeobras),masaoretratodotrivialcotidiano onde o artista v, e ensina a ver, a realidade humana: o trabalho as festaspopulares a guaosnamorados ameabraandoopequeno agente simplesdopovoconvivendoospssarososcachorros (que,costumavadizerFulvio,"fazemmuitopartedemiomondo"),tambmeles"contagiados"pelaatmosferadeamorentreoshomensosfolguedosdascrianasetc.

    Suasfiguras(animadasouno!)voltamseparaooutrocomaqueleolharemvozalta que exclama: "Que bom que voc exista!". No rosto e no gesto de suas figuras epaisagens expressamse a ternura, o querer bem, o acolhimento, o amor humano continuaodoAmorcriadordeDeus.

    Guiados pelo olhar de Pennacchi, surpreendemos nessa realidade, to familiar,algodenovo,oumelhor,algo j intudoevisto(aMusafilhadaMemria)masquearotinadocotidianodepenriaencarregousedeembotar:tudoque,bomtudoque,amadoporDeus.Emais:,porqueamadoporDeus.

    escusadodizerque,talcomoosclssicos,Pennacchinopropeumaatitudedefechar os olhos dura realidade nem a de ignorar a presena do mal ou os problemassociais,toacentuadosemnossotempo(esobretudoemnossopas...),nem,ainda,aartecomoformadeevaso.

    VemapropsitoocomoventediscursoqueLouisArmstrongfez(emrespostascrticasdequefoialvoporparteda"arteengajada"dofinaldadcadade60),nofinaldacarreira (e da vida), como introduo regravao da cano "What a WonderfulWorld!".Nesse "testamento espiritual",Armstrong reafirmao carter fundamentalmentebomdomundo,eaartecomotestemunhoeexpressodeamor:

    Oproblemanoqueomundosejamau,masquensoestamostornandomau.Naverdade,oqueminhacanodiz:vejamquemaravilhososeriaomundosenslhe

  • 31

    dssemosumachancedeamor.Amar:esteosegredo!...AndIthinktomyself:"Whatawonderfulworld"

    Chamaraatenoparaesse"segredo"comtodaapotencialidadetransformadoraque encerra amissodo artista.Como ensina Pieper: a afirmao da contemplaoterrena supea convicode queno fundodas coisas apesarde todosospesares, quenesta vida no faltam h paz, salvao e glria que nada nem ningum estoirremediavelmenteperdidosquenasmosdeDeus,comodizPlato,estooprincpio,omeioeofimdetodasascoisas.

    Ora,aCriaooatoemquenosdadooseremparticipao.Eporissoquetudooque,bom:participadoSer(edoBem).AssimsecompreendequeaafirmaoontolgicadeTomsdeAquinosejatambmabasedaestticaclssica:

    "AssimcomoobemcriadocertasemelhanaeparticipaodoBem Incriado, assim tambm a consecuo de qualquer bemcriado tambm certa semelhana e participao da felicidadedefinitiva"28.

    A participao no Ser a base metafsica sobre a qual ocorre a contemplao.Pois, prossegueToms, dentre as diversas formas de "consecuo de um bem", amaisprofundaacontemplao(nobilissimusmodushabendialiquid")29,overcomolhardeamor.EparaoAquinate:

    (PelacontemplaodeDeusnaCriao)Produzseemnsumacerta incoao da felicidade que comea nesta vida e seconsumarnoCu30

    A arte de Pennacchi, esttica da participao, abrenos cromaticamente estecomeodeCuqueacontemplaodarealidadeterrena.Eistoporqueseutalentosoubetransmitirseuolhar:captaofiel dapresenafundantedoAmordeDeus, razodoser!Comeodecu,dizamos!DentreasrecordaesindelveisqueguardodeFulvio,estadasaulasquetnhamosemsuacasa:devezemquando,trocvamosocampuspeloatelierdo artista, que se transformava temporariamente em sala de aula universitria. Emcompanhia de professores e alunos da FEUSP discutamos Filosofia da Arte com oprprio artista, literalmente diante de sua obra. Numa dessas ocasies, em que recebeuuma de nossas turmas de PsGraduao, ficou visivelmente emocionado quando foicitadaaquelasentena,proferidaentradadoParaso(oparaso:omesmoenicodocefrutoquens,mortais,pormilramosprocuramos),umadasprediletasdoprprioDante:

    Queldolcepomechepertantirami

    cercandovalacurade'mortali

    Oggiporrinpaceletuefami

    28 DeMalo 5,1,ad529 ComentrioaoLiberdecausis,1830 IIII,180,4

  • 32

    abuscadeplenitude,desaciedadeparaasede infinitadocoraohumano,tointensamente vivida pelo prprio Pennacchi, em sua vida e arte: mensagem cifrada dafelicidadeplenaedoAmordefinitivo...

    No gostaria de encerrar estas lembranas e consideraes sem dar mais umaamostra dessa outra dimenso da personalidade de Fulvio, ainda pouco conhecida dograndepblico:adoinspiradopoeta.

    A contemplao de Deus na Criao era o motor no s da pintura de FulvioPennacchi, mas tambm, como dizamos, de sua vida. Nesse sentido, sempre nossurpreendeua extraordinria conscincia queo artista tinhados fundamentos filosficosde sua arte, que semanifesta tambm emsuaspoesias.A ttulode insuficiente amostra,apresentomaisuma: VitaeAmore.

    VIDAEAMOR

    Comomeencantaoveremtornoamimtudonovo

    Semprenovaagente quepassaebrinca

    Choraesorri Ocolate

    Arvoredfrutoospssaroscantam alegreserumorosos

    Gostodeestars,contemplandocomvagar

    Asbelezaseternasdocriado

    Seleio,meencerroemummundo

    Feitoporumhomem...

    Livre,quebelo!,estarnocampo

    VivernomundodoCriador

    Mundoquefreqentementeparecetotriste

    Masque,nofundo,tododeamor.

    Pennacchi, com seus quadros, sua vida e sua arte, deixounos a profunda enecessrialio,que,naformulaodaEscritura,seexpressaassim:"OinvisveldeDeusse torna visvel pelas coisas criadas" (Rom. I, 20). Sua arte demonstra/recorda que omundo Criao, e, portanto,mostramse como plenos de sentido: o louvor, a festa, acontemplao(verdadeirariquezadohomem)eoamor.

    Oamor,diziaAgostinhoh1500anos,opeso,aforagravitacionaldocoraohumano("Amormeus,pondusmeum").Umamorque,pelaparticipao,seencontraemtodaparteanossoredor.

    AvidaeaartedeFulvioPennacchilevamnosacompreenderaparticipaoeevidncia de que "a flor do amor temmuitos nomes" (GuimaresRosa) e levamnos adescobrirparacitardenovoGuimares"oQuemdascoisas".