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1 MESTRIA ÓTICA E FILOSÓFICA DO CINEMA DO LEGADO DE UM SIGNO A UMA POSSIBILIDADE ÉTICA Sandra Espinosa Almansa RESUMO Este texto, elaborado com base em investigação feita para o mestrado, indaga-se sobre a viabilidade de uma mestria ótica e filosófica do cinema, erigida sob a mediação das imagens e narrativas fílmicas, na relação do espectador consigo mesmo, e com sua constituição de sujeito ético. O objetivo é problematizar os modos pelos quais os realizadores, através de seus filmes, convocam-nos a um exercício do olhar e do pensamento comprometido com as forças do homem, ao qual entendemos ser indispensável e basilar nos processos de autoformação. Neste quadro, torno interlocutores: as posições de alguns cineastas em relação à sua arte e a experiência de alguns de seus filmes; os estudos éticos de Foucault quando dedicados à tipificação da mestria filosófica antiga e sua agência na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito; e aspectos relativos ao vínculo entre filosofia e cinema proposto por Badiou. Comprometidas com o tempo presente ao tencionadas em diálogo com as realizações de um meio específico, tais discussões avivam interrogações sobre aquilo que concerne à vida, às escolhas da existência e às representações, e interrogam sobre o papel da experimentação filosófica do cinema na formação humana. Palavras-chave: mestria; filosofia e cinema; ética do olhar; formação humana. Há muito compromisso na palavra mestre. Derivada do latim magister, ela leva, em sua composição original, o sentido de “o melhor”, “aquele que mais sabe” em um domínio específico 1 . Assim a lemos em um interessante livro de etimologiasocupado unicamente com “palavras educacionais”. Palavras hoje aparentemente cansadas; testemunhas de seu quase esvaziamento: repetidas até a saturação, corre-se o risco de lhes esgotar o sentido. Contudo, é preciso falar com essas palavras, restituir o desejo de falar-lhes, reaver-lhes uma infância com a qual se possa, talvez, arriscar novos começos. É essa a aposta e o convite de Kohan (2007, p. 16) ao prefaciar tal livro: que a dificuldade para falar com sentido na educação não se conforme a tanto dizer o mesmo, e que a criação, nesse lugar, possa se não inventar palavras ao menos reinventar as que já existem, “para dizê-las de outra maneira, para sacudi-las de sua modorra”. Bem entendido, isso significa que nosso retorno às imagens do mestre, tais como aparecem tipificadas nos estudos éticos de Foucault, não se faz sem uma espécie de deslocamento em direção ao tema de uma mestria das imagens ‒ no caso, cinematográficas, 1 Cf. CASTELLO; MÁRSICO, 2007, compõem-na originalmente o advérbio magis (mais) e o sufixo tero, cuja função é marcar a oposição entre dois termos.

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MESTRIA ÓTICA E FILOSÓFICA DO CINEMA

DO LEGADO DE UM SIGNO A UMA POSSIBILIDADE ÉTICA

Sandra Espinosa Almansa

RESUMO

Este texto, elaborado com base em investigação feita para o mestrado, indaga-se sobre a

viabilidade de uma mestria ótica e filosófica do cinema, erigida sob a mediação das imagens e

narrativas fílmicas, na relação do espectador consigo mesmo, e com sua constituição de

sujeito ético. O objetivo é problematizar os modos pelos quais os realizadores, através de seus

filmes, convocam-nos a um exercício do olhar e do pensamento comprometido com as forças

do homem, ao qual entendemos ser indispensável e basilar nos processos de autoformação.

Neste quadro, torno interlocutores: as posições de alguns cineastas em relação à sua arte e a

experiência de alguns de seus filmes; os estudos éticos de Foucault quando dedicados à

tipificação da mestria filosófica antiga e sua agência na relação do indivíduo com sua

constituição de sujeito; e aspectos relativos ao vínculo entre filosofia e cinema proposto por

Badiou. Comprometidas com o tempo presente ao tencionadas em diálogo com as realizações

de um meio específico, tais discussões avivam interrogações sobre aquilo que concerne à

vida, às escolhas da existência e às representações, e interrogam sobre o papel da

experimentação filosófica do cinema na formação humana.

Palavras-chave: mestria; filosofia e cinema; ética do olhar; formação humana.

Há muito compromisso na palavra “mestre”. Derivada do latim magister, ela leva, em

sua composição original, o sentido de “o melhor”, “aquele que mais sabe” em um domínio

específico1. Assim a lemos em um interessante “livro de etimologias” ocupado unicamente

com “palavras educacionais”. Palavras hoje aparentemente cansadas; testemunhas de seu

quase esvaziamento: repetidas até a saturação, corre-se o risco de lhes esgotar o sentido.

Contudo, é preciso falar com essas palavras, restituir o desejo de falar-lhes, reaver-lhes uma

infância com a qual se possa, talvez, arriscar novos começos. É essa a aposta e o convite de

Kohan (2007, p. 16) ao prefaciar tal livro: que a dificuldade para falar com sentido na

educação não se conforme a tanto dizer o mesmo, e que a criação, nesse lugar, possa se não

inventar palavras ao menos reinventar as que já existem, “para dizê-las de outra maneira, para

sacudi-las de sua modorra”.

Bem entendido, isso significa que nosso retorno às imagens do mestre, tais como

aparecem tipificadas nos estudos éticos de Foucault, não se faz sem uma espécie de

deslocamento em direção ao tema de uma mestria das imagens ‒ no caso, cinematográficas,

1 Cf. CASTELLO; MÁRSICO, 2007, compõem-na originalmente o advérbio magis (mais) e o sufixo tero, cuja

função é marcar a oposição entre dois termos.

2

cuja experimentação filosófica cumpriria, como potencialidade ainda a explorar, um papel

formativo na constituição do espectador enquanto sujeito ético. Para iniciar essa escrita, a qual

deseja assumir, modestamente, o risco do ensaio, faz-se um sobrevoo conceitual em torno da

noção de mestria, tal como aparece operada na filosofia antiga, com base nas descrições

analíticas encontradas nas aulas dos últimos Cursos de Foucault (2010, 2011) proferidos no

Collège de France. Paralelo a isso, ensaia-se um contraponto com a viabilidade de uma

mestria ótica e filosófica do cinema. Em seguida, mediante as posições e à experiência dos

filmes de alguns cineastas, passa-se diagonalmente à órbita das relações entre filosofia e

cinema valorizando sua relação com a vida, e indagando os modos pelos quais são capazes de

mobilizar um aprender cujo sentido coincide com uma possibilidade ética incisiva a um

processo de autoformação humana. Por fim, tecem-se algumas considerações manifestamente

parciais sobre a discussão proposta, indicando o empenho de continuidade.

A posição do mestre

Na história da filosofia a posição do mestre se destaca ‒ na Atenas do século V a. C.,

em torno da figura de Sócrates.2 Inquietante, ambígua, e tornada “o eixo da história da

formação do homem grego pelo seu próprio esforço” (JAEGER, 2011, p. 512), sua figura

exerceu, sobre toda tradição ocidental, “uma influência universal, de imenso alcance”

(HADOT, 2014, p. 91). Ao incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, ou em outras

palavras, ao cuidado consigo, Sócrates assumiu a função (a qual lhe teria confiado o deus de

Delfos) de despertar seus concidadãos: ele cumpria o papel de lhes abrir os olhos, ao

encarnar-lhes um princípio de permanente inquietude no decurso da existência (FOUCAULT,

2010). Marcada pelo preceito do cuidado de si (epiméleia heautoû), então princípio de

conduta e racionalidade morais, o que define a posição de Sócrates mestre nessa relação é que

ele “cuida do cuidado” que o discípulo pode ter de si mesmo.3 Por meio de hábeis

interrogações, a dialética socrática tencionava despertar a natureza ética de seus interlocutores

ao ponto de que estes se vissem ‒ inelutavelmente arrastados pelos espirais do discurso do

2 Trata-se da Atenas de Péricles, “que como cabeça de um grande império vê-se inundada por influências de todo

o tipo e proveniência, está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu brilhante domínio

em todos os campos da arte e da vida. Todos os valores herdados se esfumam num abrir e fechar de olhos, ao

sopro de uma buliçosa loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no campo

da moral que nesta altura o Estado e a sociedade são minados.” JAEGER, 2011, p. 512-513. 3 Vale marcar que nessa altura, no período socrático-platônico, o cuidado de si era uma atividade

fundamentalmente vinculada à questão do governo da cidade. A necessidade de conhecer a si mesmo estava

atrelada à possibilidade de conhecer o melhor para a cidade, sendo antes preciso ocupar-se consigo; cuidar de si,

para conhecer-se e poder governar os outros e a si mesmo como convém. FOUCAULT, 2010.

3

mestre, instados a colocar em questão a própria vida e a si mesmos.

Caracteristicamente dialógica, a mestria socrática, do desembaraço e da descoberta,

prevaleceu historicamente em relevo no tocante às mestrias de exemplo e de competência,

ambas reconhecidas, na época clássica, como indispensáveis à formação do jovem.4 En

passant, pode-se dizer que, na mestria de exemplo, o outro é um “modelo de comportamento”

indispensável a essa formação, o qual é transmitido e proposto ao jovem através dos grandes

homens das narrativas, dos heróis das epopeias, etc.; sendo essa mestria também assegurada

pela presença de notáveis ancestrais e anciãos, ou, de maneira mais próxima, pelos

enamorados. Por sua vez, a mestria de competência consiste na simples transmissão de

conhecimentos, princípios, aptidões, habilidades, etc., aos mais jovens: trata-se, em suma, de

transmitir ao jovem os conhecimentos que lhe permitirão viver como convém (FOUCAULT,

2010).

À parte as diferenças de método, esses três tipos de mestria clássica possuem em

comum alguns pontos cruciais, os quais cumpre destacar. Em primeiro lugar, está o problema

prévio que é a questão do outro, questão da relação com o outro como mediador

imprescindível para que as práticas de si antigas alcancem o eu por elas visado.5 Em segundo,

todas elas se estruturam sobre um jogo entre ignorância e memória, essencialmente

dependente desse movimento ao outro. A memória, precisamente ela, é “o que permite passar

da ignorância à não ignorância, da ignorância ao saber”, dado que no pensamento clássico “a

ignorância por si só não é capaz de sair dela mesma”; ou, no mínimo, não é capaz de

prescindir do outro para tanto (FOUCAULT, 2010, p. 116).

Convém lembrar que, nesse período, o outro tanto pode ser um filósofo de profissão,

como pode ser qualquer um (FOUCAULT, 2011). Pode ser um professor, um amigo, um

amante, um guia provisório, um conselheiro permanente. O outro aparece, como se vê, sob

diferentes aspectos e perfis. Sendo assim, é difícil isolar sua prática e seu papel: se por certo

lado ele se vincula à pedagogia e à sua insuficiência, por outro, refere-se também a uma

direção de alma, ou ainda, a uma espécie conselho político (FOUCAULT, 2011). Seu

estatuto, cuja importância e presença são incontestes na história das práticas de subjetividade

ocidentais, nas relações entre sujeito e verdade, abarca transformações importantes do ponto

de vista de sua própria constituição e imagem. Quer dizer, uma vez reservado ao mestre cuja

prescrição ao cuidado consigo se inscrevia tanto no terreno da ação política como no interior

4 Cf. as identifica Foucault (2010) através dos personagens do Alcibíades, e dos diálogos socrático-platônicos, na

primeira hora da Aula de 27 de janeiro de 1982 do Curso A Hermenêutica do sujeito. 5 A respeito do “eu” com o qual é preciso ocupar-se, ver Aula de 13 de janeiro de 1982, ibidem.

4

do déficit pedagógico ateniense; o outro também toma forma, durante o período helenístico e

romano, não mais no mestre da memória e tampouco naquele que sabe e transmite o

conhecimento a outrem, que não sabe: sua necessidade se funda essencialmente no fato de que

o sujeito é menos ignorante do que é falha a sua formação. De agora em diante o mestre é,

precisamente, um operador na constituição do indivíduo como sujeito, é ele quem media a

relação do indivíduo com sua constituição de sujeito. A exigência é que o indivíduo deve

tender para sua formação como sujeito ético, e é para isso que o outro deve intervir.

Conquanto não seja um “educador no sentido tradicional do termo, alguém que

ensinará verdades, dados e princípios”; a série de expressões que assinalam sua ação

caracteriza um viés educacional pela via da edução: “não se trata de educare, mas de educere:

estender a mão, fazer sair, conduzir para fora” (FOUCAULT, 2010, p. 121). Desse modo, ao

invés de se basear na transmissão de um saber instrucional, a via epistêmica investida com o

outro passa a ser da ordem da extração: de um movimento que nos levaria para fora de nós

mesmos e, justamente por isso, torna-se capaz de nos transformar. Essa mestria filosófica de

subjetivação afirma-se na figura do filósofo mestre da existência e seu propósito não reside,

como dissemos, em

[...] um trabalho de instrução ou de educação no sentido tradicional do

termo, de transmissão de um saber teórico ou uma habilidade. [...] É uma

espécie de operação que incide sobre o modo de ser do próprio sujeito, não

simplesmente a transmissão de um saber que pudesse ocupar o lugar ou ser o

substituto da ignorância (FOUCAULT, 2010, p. 121).

Pois bem, daqui seria preciso perguntar: de que maneiras, em um contexto

absolutamente diverso desse que nos inspira pensar, a ótica cinematográfica, a exemplo aqui

através das posições de alguns realizadores e da experiência de suas obras, convoca-nos à

questão da formação humana na perspectiva de uma cultura de si em que a educação atue

como uma força vital, criadora e transformadora, a impelir uma constituição ética do

espectador enquanto sujeito?

Certamente, o interesse pela análise da dimensão educativa do cinema, em seus vários

gêneros, e mediante métodos e pontos de vista diversos, não é novo. Ainda assim, importa

situar que a proposta dessa discussão visa interrogar, sem pretender estáveis ou consoladoras

respostas, a potencialidade educacional dessa arte que, de todas as artes, é a menos afastada

da realidade social (AUMONT, 2004), relativamente a uma mestria subjetiva, de natureza

filosófica, ao mesmo tempo ótica e ética, solidária a uma arte de viver o presente em sua

5

multiplicidade e diferença.6

O exercício da mestria no cinema

Peter W. Jansen, na entrevista que faz com o realizador alemão Wim Wenders,

menciona que Rainer Werner Fassbinder teria dito, certa vez, que para ele o plano

(Einstellung, em alemão) não era somente um termo cinematográfico, mas uma “categoria

moral”.7 O duplo sentido afirmado pelo cineasta converge à própria duplicidade do termo na

língua germânica: além de “plano cinematográfico” ‒ o enquadre propriamente dito,

einstellung significa também “atitude” ‒ que adota quem o organiza. De sua parte, Wenders

(2005, p. 86. trad. minha) diz crer que “todos os planos de um filme refletem a atitude de

quem os faz e que em cada plano se vê o que havia diante e o que há atrás da câmera”.

Essa apreciação de que a câmera cinematográfica mostra tanto os objetos quanto os

sujeitos é compartilhada, igualmente, por Fassbinder. Tal duplicidade, tão bem marcada na

língua alemã como em nenhum outro idioma, está com efeito no coração do cinema. A

realização cinematográfica, como ato de criação, demanda tanto a dimensão objetiva daquilo

que se filma quanto, em alguma medida, a perspectiva subjetiva dos realizadores na escolha

dos planos filmados e nos movimentos de câmera, por exemplo. Mas, o que dizer de sua

experimentação do ponto de vista do espectador e de sua relação com o filme? Como a

impossibilidade de se furtar a uma contígua ambivalência, poderia concentrar uma

interrogação sobre si mesmo?

Embora a força do paradoxo com que o cinema se constitui8 possa por si só constituir

uma situação para a filosofia, nós aqui a tomamos apenas como ponto de partida em direção

ao exercício da mestria, mobilizado relativamente à ampliação da possibilidade de pensar o

outro. Desse modo, a relação entre filosofia e cinema, no prisma de uma mestria subjetiva

potencialmente formativa, é formulada na medida em que essa arte se afirma como uma nova

maneira de pensar o outro, como um novo modo de lhe atribuir existência (BADIOU, 2015).

Ao nos apresentar o outro no mundo, em sua vida íntima, em sua relação com o espaço

(BADIOU, 2015), o cinema nos apresenta igualmente, e de um modo muito específico, sua

6 Em tempo: a complexa questão dos efeitos de recepção das imagens e narrativas fílmicas, sob os vestígios de

sua presença na memória e nas narrativas pessoais de um conjunto de diferentes espectadores, está a requerer

nossa atenção em um estudo com que por ora se elabora uma tese. 7 Ver WENDERS, Wim. La verdad de las imágenes. Dos conversaciones con Peter W. Jansen. In: ___. El acto

de ver: Textos e conversaciones. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 59-86. 8 Isto é, em meio a uma relação inteiramente singular entre as dimensões objetiva e subjetiva do olhar

cinematográfico, ou ainda, entre a possibilidade de uma reprodução da realidade e, ao mesmo tempo, o lado

inteiramente artificial dessa reprodução. BADIOU, 2015.

6

duração e devir ‒ já que torna o tempo visível de maneira muito particular; e à vista disso

estende também suas possibilidades de ação sobre nós ao amplificar as perspectivas para que

o outro se inscreva como operador na constituição dos sujeitos por eles mesmos, na medida

em que com o outro se exerça algo como uma experimentação filosófica (BADIOU, 2015).

Ora, que sorte de coisas pode-se aprender com os modos pelos quais os cineastas nos

mostram o outro, e narram o mundo? Suspeitamos tratar-se de um movimento que menos tem

a ver com a transmissão de um saber do que com a mobilização de um não saber, isto é, de

um desconforto, de uma agitação, de uma inquietação que nos atinge a carne e o olhar

servindo de meio para chegarmos a nós mesmos, para não nos perdermos de vista uns dos

outros, ao mesmo tempo em que percorremos com o olhar o conjunto do mundo

(FOUCAULT, 2011).

Como situação filosófica, o cinema nos mostra que devemos escolher, e com isso

rompe, necessariamente, com a figura do espectador a salvo: ruptura que assume, pelo

contrário, o espectador enquanto sujeito: de pensamento e ação. Essa escolha, obviamente,

não diz respeito à produção da imagem. Quando contempla um filme, o espectador não

participa da escolha dos planos, de ângulos e perspectivas de observação: não se trata do

privilégio dessa escolha. Escolher, isso sim, implica decidir entre modos de pensar, entre

termos heterogêneos, entre modos de viver, entre formas de atuar. Assim como pensar a

escolha, cabe também à filosofia ponderar a distância entre o poder e a verdade (como

criação). Toca-lhe pensar o acontecimento, pensar a exceção, pensar sobre as rupturas e sobre

as mudanças da vida. Tudo o que constitui uma situação filosófica, torna-se uma situação para

a filosofia, e a arte cinematográfica nos exibe inumeráveis exemplos disso (BADIOU, 2015).

Nesse sentido, presumivelmente, a experimentação filosófica do cinema contaria para

a vida. Valorizar um olhar mediador do cinema nessa perspectiva é também inquietar-se com

ele como potência de uma nova estética de nosso próprio lugar no mundo, de nossas escolhas,

de nossas distâncias, de nossos pontos de vista.

Uma relação com a vida

Arte que abriga relações sui generis com o real, com as outras artes e com a cultura

(XAVIER, 2015), o cinema obtém uma sua ética e sua moral nem mais, nem menos, ao passo

que contém uma relação com a vida. Wenders (2005) dirá que ele “ajuda a viver” e, ao menos

potencialmente, a “lançar luz” sobre essa “vida real” com a qual se relaciona. Ainda que não

sempre e continuamente, tocam-nos por vezes filmes dos quais experimentamos algo mais do

7

que, em uma recepção desinteressada, efeitos óticos imediatos.

Em tempos nos quais, cada vez mais, as imagens se impõem com tanta força em nosso

universo estético, técnico, cotidiano, político, histórico; e do mesmo modo nos retêm tão

envolvidos em seus jogos de verdade e falsidade (DIDI-HUBERMAN, 2012), de desejos e

censuras, de poderes e contrapoderes, torna-se urgente perguntar sobre suas formas e forças, e

sobre a potencialidade de sua agência na formação humana. Deste ponto, mobilizamos a

discussão especificamente junto a duas poéticas muito diversas entre si, que aqui se

encontram menos por seus pontos de contato do que o contrário: os filmes de Federico Fellini

e os de Rainer Werner Fassbinder. Nosso propósito não é analisar as obras. O que faremos é

um sobrevoo conceitual sobre cenas e sequências em que as imagens convocam uma condição

de abertura ao outro: como potente mediador em nossa relação conosco mesmos, como

intensidade mobilizadora de uma vida ética, como possibilidade para uma nova forma de estar

no mundo.

Fassbinder9, cineasta do Cinema Novo Alemão

10, não apenas realizou filmes como

refletiu, muitas vezes, sobre temas importantes que circulam em torno à arte do filme. Um

desses temas, em especial, torna vibrante sua presença neste texto: sua preocupação com os

efeitos possíveis de um trabalho que visa sempre, no limite, ao espectador. O diretor

problematiza a questão do espectador a partir de um ponto preciso, qual seja: por meio de sua

relação com a ficção, à qual se incorpora uma preocupação dialética que abrange a

necessidade de criar, ao mesmo tempo, condições de aproximação e afastamento do

espectador em relação à obra. Essa aproximação ‒ Aumont (2004) dirá “identificação” –

abrange em alguma medida o aspecto “realista”, no sentido ético do termo, de sua concepção

do cinema: sendo a sociedade o que é, a possibilidade de interessar um espectador por um

filme se relaciona à necessidade de lhe oferecer certo “alimento ficcional”. Mas é o outro

polo, por sua vez, que permanece bem mais essencial: uma espécie de desvio do espectador da

história contada “para voltar à sua realidade própria” (AUMONT, 2004, p. 105), um

distanciamento capaz de provocar uma postura mais crítica diante da obra.

Preocupado com as relações entre indivíduos e grupos, Fassbinder quase sempre via as

relações pessoais sob uma perspectiva social. Seu cinema é como um campo de forças

9 Além de realizador Fassbinder (1945-1982) foi também roteirista, produtor, dramaturgo e ator.

10 Neuer Deutscher Film: movimento cinematográfico da Alemanha das décadas de 1960 a 1980, cujo Manifesto

de Oberhausen, documento assinado por um grupo de 26 cineastas, reivindicava novas condições de criação para

a realização de um cinema não comercial e com liberdade autoral, que compreendesse o papel das narrativas na

vida da sociedade. Entre os “novos cineastas alemães” estavam Rainer Werner Fassbinder, Alexandre Kluge,

Werner Herzog e Wim Wenders, cuja geração “renovou a sétima arte em seu país e refletiu sobre a complexa

situação da Alemanha e do mundo de então” (CÁNEPA, 2006, p. 311).

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humanas, sociais, culturais e históricas que torna seus filmes signos não apenas de um tempo,

mas portas de entrada para mundos que se emolduram dentro de um mundo, apesar de um

mundo, e de um estado de coisas. Seja através do cotidiano de personagens marginalizados,

seja com um olhar sobre a pequena burguesia, ou em meio aos efeitos dos acontecimentos

políticos de seu país (sob o espectro do nazismo, da divisão e do comprometimento com o

capitalismo e com a sociedade de consumo), Fassbinder criou filmes que, mais do que

levarem ao reconhecimento de uma dada realidade e contexto oferecem ao espectador a

possibilidade de uma escolha de existência apesar das imagens que vemos.

Como é que, diante do limitado interior do ateliê de Petra von Kant (Lágrimas

amargas de Petra von Kant, Fassbinder, 1972), pode-se aprender sobre algo que excede os

limites do privado? Ou, de que maneiras as imagens bombardeadas no entorno de Maria (O

casamento de Maria Braun, Fassbinder, 1979) convocam um olhar sobre a intimidade por

meio das fraturas de uma guerra? Como o interesse de Emmi (O medo devora a alma,

Fassbinder, 1974) por um “estranho” nos estende a mão em direção contrária ao

entorpecimento social em relação ao estrangeiro, ao não autóctone? De que maneiras, diante

do questionamento de Effi (Effi Briest, Fassbinder, 1974) ao marido, sobre o tipo de vida que

levariam, colocam-se em questão, para o espectador, interrogações a respeito da condição

feminina?11

O que se pode recolher, diante de tais imagens interrogadoras, diante de

narrativas nas quais não há consolação possível?

Diante dos filmes, a natureza ética do exercício da mestria põe-se em cena mediante

outro o qual se afirma vigorosamente nos entreolhares, na dissonância dos gestos, na

arbitrariedade das relações, na disparidade de sentimentos, no antagonismo dos encontros.

Algo da vida se coloca necessariamente em questão ante o jogo entre hostilidade e convívio

em O medo devora a alma, cujo tema é uma história de amor entre a viúva alemã Emmi

(Brigitte Mira) e Ali (El Hedi ben Salem), um imigrante muçulmano, vinte anos mais jovem.

Estruturada em torno, justamente, da agressividade dos gestos dos demais personagens à

união da “senhora da limpeza” com o “estrangeiro bastante escuro”, a narrativa começa com o

encontro fortuito entre Emmi e Ali em um bar no qual ela adentra para se proteger da chuva.

O espaço figura como a furtiva possibilidade do encontro e prenuncia, através de uma mise-

en-scène fortemente estilizada nos gestos e na postura dos corpos, a disposição de um mundo

11 Fontane - Effi Briest, de Fassbinder, adaptado do romance homônimo de Theodor Fontane, publicado na

Alemanha em fins do século XIX, diz, no longo subtítulo: “Ou os muitos que fazem uma ideia das suas

possibilidades e necessidades, porém, aceitam através das suas ações a ordem dominante, ajudando, dessa forma,

a sustentá-la e a fortalecê-la”.

9

emoldurado pela mentalidade antagônica e cruel a pessoas e culturas não autóctones na

Alemanha pós-guerra.

A questão da imigração, extremamente complexa e de difícil solução, desloca a

relação dos protagonistas e seu microcosmo à interrogação de uma esfera política de maior

grandeza. Ao passo que expressa “uma anatomia das lutas de poder na vida amorosa e no

cenário doméstico” (XAVIER, 2003, p. 87), relativamente ao universo sociocultural em que

se insere, uma potente situação filosófica se institui entre a eventualidade do amor, a brusca

reviravolta do destino, e a ordem estabelecida ‒ para as quais não existe medida comum

(BADIOU, 2015).

Em Lágrimas amargas de Petra von Kant, o que se vê entre quatro paredes no

colorido ateliê da famosa estilista Petra (Margit Carstensen) não é apenas prazer visual, ou

mero sentimentalismo em sua relação com a jovem a modelo Karin (Hanna Schygulla). Nesse

espaço nitidamente teatral, lugar de todas as cenas, a presença absolutamente tácita e servil de

Marlene (Irm Hermann), assistente de Petra, complexifica a estrutura dramática da narrativa:

como definir a distância entre o poder opressor de Petra e a subserviência muda de Marlene?

Vestida de negro, Marlene quase sempre está ao fundo, à parte do teor principal das cenas, a

desenhar, a vestir manequins, a datilografar, a servir a estilista e suas visitantes, e até mesmo a

dançar com ela. Mas é quando ganha para si um único plano, com o corpo curvado e silente

sobre um vidro com cortinas entreabertas que a separam da ação indistinta das mulheres do

outro lado, que sua força simbólica se afirma. Personagens divididos, perdidos, eles próprios

espectadores de suas próprias vidas, colocam o espectador diante de diferentes dilemas da

vida.

Embora incorporem traços do melodrama, o que prevalece nos filmes de Fassbinder é

um tom reflexivo e irônico com que se dá certo trabalho ao espectador: o “drama sério” ao

qual, diante da tela, ele se vê, extrapola os enlevos românticos e os característicos

maniqueísmos do melodrama canônico. Para o diretor, um cineasta tanto “pode divertir, fazer

compreender, formular medos” (apud AUMONT, 2004, p. 105), quanto criar condições de

possibilidade para a elaboração dos sentimentos suscitados pela narrativa. A criação de uma

possibilidade real de liberdade, tão importante a um exercício de mestria de natureza ética, é

um compromisso assumido pelo realizador. Ao espectador essa liberdade essencial inspira,

por sua vez, um movimento de orquestração do filme em direção à sua própria vida, no qual o

outro está sempre presente.

A conjectura dessa margem de liberdade se opõe a um modelo da simples eficiência

ou do gênero ação-reação tanto quanto a um “modelo” de espectador. Trata-se de criar

10

condições para que a experimentação fílmica ajude o espectador diante do mundo: não

aceitando sua alienação, mas sendo capaz de vê-la diante dele e fazer distinções. Com isso ele

talvez possa em alguma medida tornar-se, “um pouco mais livre, mais capaz de pensar sobre

si mesmo como sujeito histórico e social” (AUMONT, 2004) em meio a uma arte por si

mesma ontológica e paradoxal, que, ao se constituir poderosamente como um novo

pensamento do outro (BADIOU, 2015), oferece condições para a formação e transformação

de um si mesmo que por sua vez é caracteristicamente social e político.

Entre um homem e outro

Que cada um “possa encontrar em si mesmo e em torno de si casos semelhantes a

resolver” e que os filmes, por sua vez, lhes “traga meios, sobretudo o desejo de fazê-lo”, fora

a ambição do realizador italiano Federico Fellini. Desse modo seu esforço, dizia, “não teria

sido inútil” (FELLINI, 1983, p. 59). Ao invés de buscar desenvolver nos filmes uma

concepção particular da vida, Fellini (1983, p. 131) não quis dizer “nada a não ser que, com

maior ou menor obstinação, deve haver uma maneira de melhorar as relações entre os

homens”. Anseios sociais, nessa direção, constituem a base de seu filme A estrada da vida

(Fellini, 1954), cuja narrativa ‒ embora já dissonante das origens neo-realistas do diretor, e

em sincronia com aspirações afetivas e humanas sob uma espécie de fábula lírica ‒ nos mostra

que, para aprender a virtude e as possibilidades de uma vida social ética, seja ela pública ou

privada, importa, antes de tudo, aprender simplesmente a estar só com outro homem. Eis aí, a

nosso ver, o apelo primeiro de uma mestria felliniana.

A estrada da vida narra a história dos personagens marginais Gelsomina (Giulietta

Masina), uma aldeã simples e sensível, cujos gestos se assemelham ao vagabundo de Chaplin,

e do artista mambembe Zampanò (Anthony Quinn), um homem bruto e cruel a quem ela foi

vendida pela família. A bordo de motocarro, onde eles também dormem e fazem suas

refeições, os dois deambulam pelos povoados da Itália, levando ao público seus rudimentares

números circenses. Na circunstância da viagem burlesca, a aprendizagem da mulher da arte da

comédia, na figura de um clown augusto feminino12

, é paradoxal com as desventuras

cotidianas da malsucedida, e mesmo trágica, relação emocional do casal. A ironia das

12

A palavra inglesa clown significa rústico, rude, torpe; indicando ainda quem se utiliza desses artifícios para fazer o público rir, ou seja, o palhaço. Ao encarnar os traços da criatura fantástica, o clown exprime o lado irracional do homem, o instinto, a rebeldia que contesta a ordem. Ao contrário do clown branco, que figura a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, o culto da razão; o clown augusto expressa a criança, a teimosia, a liberdade, a liberdade do instinto.

11

imagens de Fellini se destaca em cenas contraditórias: Zampanò, que rompe correntes de ferro

circundadas ao peito unicamente com a força física, ao expandir o ar dos pulmões, mantém a

mulher (e assistente) violentamente presa ao seu próprio destino, explorando-a física e

moralmente. Infeliz, porém com medo do companheiro, Gelsomina expressa seu

descontentamento apenas em caretas. Da maneira como são, com temperamentos e aspirações

tão diferentes, e na ausência de qualquer abertura e escuta entre si, os dois não poderiam

jamais se entender ‒ como poderiam viver junto?

O tema do filme, de traços humanistas e comuns, afirma, por meio de imagens

selvagens e sensíveis, A estrada da vida como “um drama humano universal que se esforça

por conseguir aquilo que Fellini descrevia como a experiência conjunta do homem com o

homem” (WIEGAND; DUNCAN, 2013, p. 47, grifo meu). Por entre inúmeras situações de

encontros e desencontros entre amigos, homens e mulheres, maridos e esposas, pais e filhos,

etc., entre o desejo e a ordem, (Os boas-vidas, 1953; Noites de Cabíria, 1957; A trapaça,

1955; A doce vida, 1960) em seus filmes Fellini deixa ao espectador a responsabilidade de

decidir, ou, pelo menos, imaginar, um desfecho para os personagens e para as histórias que

conta. Ao não oferecer ao espectador a solução encontrada pelo personagem cuja história está

contando, o diretor afirma deliberadamente uma dimensão ética em seu cinema: somos nós

que teremos de decidir qual será, por exemplo, o fim de Cabíria. Ao nos olhar nos olhos, seu

rosto em close nos entrega sua sorte.

A emoção provocada por um filme, os modos pelos quais perturbam o olhar do

espectador ou inquietam seu pensamento e sua tranquilidade, convocam, na visão do cineasta,

ao cuidado de nossas relações com nossos pares e nossos próximos, com nós mesmos e com o

mundo ao redor. As histórias por ele imaginadas, e tornadas filmes, intentaram mobilizar

“uma inquietação, um desconforto, um estado de fricção nas relações [...] entre as pessoas”

(FELLINI, 1983, p. 131). Entre um homem e outro, o espectador de Fellini não se vê privado

de um cuidado que emerge e se intensifica em meio às relações sociais, e à inseparabilidade

da relação com o outro para se dirigir a si mesmo e constituir sua subjetividade.

Do legado de um signo a uma possibilidade ética

“Gerações sem ‘mestres’ são uma tristeza”: dizia o filósofo para o qual a força do

cinema, e a necessidade de pensá-lo, estão visceralmente relacionadas a um exercício de

12

pensar o mundo (DELEUZE, 2006, p. 107).13

Mestres, tal como concebe a ideia, não são

apenas nossos professores públicos ‒ dos quais nós certamente necessitamos, mas são

também aqueles que “nos tocam com um uma novidade radical”, aqueles que, sob a invenção

de diferentes técnicas artísticas encontram maneiras de pensar que correspondem tanto às

dificuldades como aos “entusiasmos difusos” de nosso tempo.

Relativamente ao cinema, seja pela crítica especializada ou por “espectadores

amadores”, chamam-se a alguns cineastas “mestres”: de um gênero, dos signos, das imagens,

da montagem, do cinema. São reconhecíveis por sua coragem, pelo rigor, pela acuidade do

olhar, por sua capacidade narrativa, pela economia dos meios, etc. (BRESSON apud

AUMONT, 2004). Não obstante, tal como dirá Sócrates, o filósofo: “eu jamais fui mestre de

ninguém”14

; também os realizadores, não raro, desacolhem o atributo. “Quando me chamam

mestre”, dizia Fellini (1983, p. 51), “tenho a impressão de que falam com alguém atrás de

mim”.

Il maestro Fellini, como era tratado em sua terra natal, simpatizava com os homens de

espetáculo e não tinha a intenção de, em suas próprias palavras, “ser um moralista”. Preferia o

“cinema mentira” ao “cinema-verdade”; pois a ficção, dizia, “pode ir em direção a uma

verdade mais aguda do que a realidade cotidiana e aparente” (FELLINI, 1983, p. 86). A

questão da autenticidade das imagens que se vê num filme não era para ele uma necessidade,

pelo contrário: a autenticidade tem a ver com a emoção que se sente ao criar imagens, ou,

creio que se possa dizer sem muito prejuízo, intensifica-se na relação estabelecida entre

aquele que mostra e aquilo que é mostrado.

Tomando impulso nessas proposições, pode-se pensar que algo semelhante vale à

recepção e à experimentação daquele que vê as imagens cinematográficas: o espectador. Na

trama complexa desse jogo de olhares, talvez a mestria do cinema, meio pelo qual o

espectador se coloca em relação ao outro, ponha-se em prática justamente na medida em que

consiga extrair, dos filmes e daquilo que com eles acontece, a verdade das imagens – para

usar um modo de pensar de Wenders (2005). Verdade que não se situa nas imagens em si

mesmas, mas que se produz na relação entre o olhar mediador do cinema, entre o modo como

cineastas nos mostram o mundo e os outros, e o nosso próprio olhar: na medida em que, com

as rupturas que aí se produzem, opere-se uma espécie de retorno a nós mesmos.

Tal retorno, pode-se dizer, permite que cada um possa não apenas se identificar ou

13

No texto a que nos referimos, “Ele foi meu mestre”, Deleuze não se refere ao cinema, mas sim,

especificamente, à sua relação com Sartre e sua filosofia. É interessante notar, no entanto, que ao versar sobre a

ideia de mestre, Deleuze a aproxima da criação artística, conforme evidenciamos no texto. 14

PLATÃO, Apologia de Sócrates, 33a.

13

reconhecer-se nos personagens e com as histórias, mas, sobretudo, aprender sobre si mesmo;

extrair das narrativas saberes úteis à própria vida, e a uma vida comum. Uma experimentação

filosófica do cinema nesse sentido afirma a ótica de que a singularidade da relação entre

filosofia e cinema é menos de conhecimento do que “é viva, concreta, uma relação de

transformação” (BADIOU, 2015, p. 31), tornando-a um vivaz motivo de interrogação para a

educação. Fellini, Fassbinder, e tantos outros cineastas que, como eles, tão diferentes entre si,

encontraram no cinema sua forma de dizer o mundo, oferecem-nos menos do que lições uma

matéria poética com que aprender sobre a vida. Uma mestria do cinema, como a evocamos

aqui, não tem a ver com martelar afirmações, com dar lições para aprender, com transmitir

conhecimentos e informações, com ensinar habilidades: embora nada disso se esgote na

ocasião de uma experiência que nos torne aprendizes da arte mesma de viver.

Para Fassbinder, trata-se sempre de fazer algo com os filmes, algo pelo qual passa uma

atividade de agitação do pensamento. Embora os filmes por si só não possam mudar uma

sociedade, a função do cinema, e em geral, da arte, é “provocar o debate, como diz a respeito

de O medo devora alma ‒ filme que sugere pequenas possibilidades de mudança e de ação

política” (AUMONT, 2004, p. 106). Na visão do realizador, o cinema é uma ferramenta

ligada às ciências humanas, e não há motivos para entendê-la aqui de outro modo, senão

consoante ao sentido que lhe atribuíra Foucault: como instrumentos que nos ajudam a pensar.

A potencialidade de uma espécie de mestria ótica do cinema, ideia esboçada neste ensaio, a

qual certamente requer ainda elaboração, pressupõe não a redução do conhecimento a temas,

mas, isso sim, como relacional às imagens e narrativas fílmicas, bem como processual por

meio de uma experiência capaz de abranger intelecção, imaginação, sensibilidade, emoção,

empatia: forças do homem e com as quais se forma.

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dolce vita.

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15

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