METAMORFOSE- Arreola

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METAMORFOSE

METAMORFOSEComo um meteoro capaz de resplandecer com luz prpria ao meio-dia, como uma pequena jia que contradiz de golpe todas as moscas da terra que caram num prato de sopa, a borboleta entrou pela janela e foi naufragar diretamente no caldo de lentilhas.

Deslumbrado pelo fulgor instantneo (logo disperso na superfcie gordurosa da comida caseira), o homem abandonou sua rotina alimentcia e ps-se imediatamente a restaurar o prodgio. Com pacincia manaca recolheu uma por uma as escamas daquele telhado infinitesimal, reconstruiu de memria o desenho das asas superiores e inferiores, devolvendo sua graa primitiva s antenas e s patinhas, esvaziando e recheando o abdome at conseguir a cintura de vespa que o separa do trax, eliminando cuidadosamente em cada partcula preciosa os mais nfimos resduos de manteiga, desdouro e umidade.A sopa lenta e conjugal esfriou-se definitivamente. No final da tarefa, que consumiu os melhores anos da sua idade, o homem soube com angstia que tinha dissecado um exemplar de mariposa comum e corrente, uma Aphrodita vulgaris maculata dessas que se encontram aos milhares, cravada com alfinetes toda a gama de suas mutaes e variantes, nos mais empoeirados museus de histria natural e no corao de todos os homens.Juan Jos ArreolaCantos de mal dolorCASUS CONSCIENTIAEO teu sangue derramado est clamando por vingana. Mas no meu deserto j no cabem miragens. Sou um alienado. Tudo o que me acontece agora, na viglia e no sono, se resolve e muda de aspecto sob a luz ambgua que espalha a lmpada no gabinete do psicanalista. Eu sou o verdadeiro assassino. O outro j est no crcere e goza de todos os honores da justia, enquanto eu naufrago em liberdade.

Para consolar-me, o analista conta velhas estrias de erros judicirios. Por exemplo, a de que Cain no culpado. Abel morreu abrumado pelo seu complexo edpico e o suposto homicida assumiu a queixada de burro com essas enigmticas palavras: Acaso sou o superego do meu irmo?. Assim justificou um drama primitivo de cimes familiares, cheio de reminiscncias infantis, que a Bblia encobre com o simples propsito de exercitar a perspiccia dos exploradores do inconsciente. Para eles, todos somos abeles e cains que em alguma forma trocam e mascaram a sua culpa.Mas eu no me dou por vencido. No posso expiar o meu pecado de omisso e levo esse remorso agudo e limpo como uma folha de punhal: foi-me transmitido literalmente, de gerao em gerao, o instrumento do crime. E no fui eu quem derramou teu sangue.

Juan Jos Arreola

Cantos de mal dolorARMISTCIO

Com data de hoje retiro de tua vida as minhas tropas de ocupao. Desentendo-me de todos os invasores em corpo e alma. Ns, veremos nossos rostos na terra de ningum. Ali onde um anjo assinala desde longe, convidando-nos a entrar: Aluga-se paraso em runas.Juan Jos Arreola

Cantos de mal dolorTELEMAQUIA

Onde for que tiver um duelo, estarei do lado de quem cai. Trate-se de heris ou de bandidos. Estou atado pelo pescoo teoria de escravos esculpidos na mais antiga das estelas. Sou o guerreiro moribundo sob o carro de Asurbanipal, e o osso calcinado nos fornos de Dachau.

Hector e Menelau, Frana e Alemanha e os dois bbados que se quebram o focinho no boteco, me abrumam com sua discrdia. Onde quer que pouse os olhos, fecha-me a paisagem do mundo um imenso pano de Vernica com o rosto do Bem Escarnecido.

Espectador fora, vejo os contendores que iniciam a luta e quero estar do lado de ningum. Porque eu tambm sou dois: sou quem bate e quem recebe as bofetadas.O homem contra o homem. Algum quer apostar?

Senhoras e senhores: No tem salvao. Em ns est se perdendo a partida. O Diabo joga agora com as peas brancas.

Juan Jos ArreolaProsdiaKALENDA MAIA

A Midsummer Nights Dream

Em compridssimos tneis sombrios dormem as meninas alinhadas como garrafas de champanha. Os malficos anjos do sonho as repassam em silncio. Gulosos provadores, degustam uma por uma as almas em agraz, pem-lhes as suas gotas de lcool ou de loe, seus gros de acar. Assim vo-se indo por seu lado as brutas, as demi-secas e as doces um dia todas borbulhantes e nbeis. s mais exaltadas asseguram-lhes a tampa de rolha com arame, para surpreender aos ingnuos na noite do balao. Vem logo a promiscuidade dos brindes, conforme vo saindo as colheitas ao mercado. H que compartilhar o amor, porque uma fermentao mrbida, sobe-se rpido cabea, e ningum pode consumir uma mulher inteira. Kalenda maia! A festa continua, enquanto rodam pelo cho as garrafas vazias.Sim, a festa continua na superfcie. Mas l, nas profundezas do poro, sonham as meninas com funestas alegorias, preparadas por espritos malignos. Silenciosos treinadores as exercitam com sabias massagens, as iniciam em jogos equivocados. Mas, sobretudo, lhes oprimem o peito at asfixi-las, para que possam suportar o peso dos homens e prossiga a comedia, o pesadelo do cisne tenebroso.

Juan Jos Arreola

Cantos de mal dolor