Métodos de Interpretação Constitucional - Vicente Paulo

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22/03/2005 - Métodos de Interpretação Constitucional Bom dia, Uma questão cobrada pela Esaf no recente concurso de Auditor Fiscal do Estado do Rio Grande do Norte (AFTE/RN – 2004/2005), envolvendo o método de interpretação constitucional hermenêutico-concretizador, deixou muitos candidatos aflitos. O enunciado da questão é o seguinte: “O método de interpretação constitucional, denominado hermenêutico-concretizador, pressupõe a pré-compreensão do conteúdo da norma a concretizar e a compreensão do problema concreto a resolver.” (CERTO) Acho lamentável a exigência de conhecimento desse nível numa prova para concurso da área não-jurídica. Honestamente, se a cobrança fosse num concurso jurídico – Magistratura, Ministério Público etc. – certamente seria elogiável, mas num certame da área fiscal... De qualquer forma, o melhor é não brigar com a banca examinadora e fazer o que está ao nosso alcance, que é estudar, estudar e estudar – especialmente porque, de acordo com os meus arquivos de questões de concursos, não é a primeira vez que a Esaf cobra esse assunto em prova. De fato, o mesmo método hermenêutico-concretizador foi exigido pela Esaf na prova de Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, com o seguinte enunciado: “O método de interpretação constitucional denominado hermenêutico-concretizador pressupõe a pré-compreensão do conteúdo da norma a concretizar e a compreensão do problema concreto a resolver, havendo, nesse método, a primazia do problema sobre a norma, em razão da própria natureza da estrutura normativo-material da norma constitucional.” (ERRADO) Esse assunto é tratado em poucas obras de Direito Constitucional no nosso País, praticamente só em obras específicas sobre interpretação constitucional - e, evidentemente, em obras voltadas para concursos públicos, nem pensar. Para vocês terem uma idéia, dentre as obras que

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22/03/2005 - Métodos de Interpretação Constitucional

Bom dia,

Uma questão cobrada pela Esaf no recente concurso de Auditor Fiscal do Estado do Rio Grande do Norte (AFTE/RN – 2004/2005), envolvendo o método de interpretação constitucional hermenêutico-concretizador, deixou muitos candidatos aflitos. O enunciado da questão é o seguinte:

“O método de interpretação constitucional, denominado hermenêutico-concretizador, pressupõe a pré-compreensão do conteúdo da norma a concretizar e a compreensão do problema concreto a resolver.” (CERTO)

Acho lamentável a exigência de conhecimento desse nível numa prova para concurso da área não-jurídica. Honestamente, se a cobrança fosse num concurso jurídico – Magistratura, Ministério Público etc. – certamente seria elogiável, mas num certame da área fiscal...

De qualquer forma, o melhor é não brigar com a banca examinadora e fazer o que está ao nosso alcance, que é estudar, estudar e estudar – especialmente porque, de acordo com os meus arquivos de questões de concursos, não é a primeira vez que a Esaf cobra esse assunto em prova. De fato, o mesmo método hermenêutico-concretizador foi exigido pela Esaf na prova de Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, com o seguinte enunciado:

“O método de interpretação constitucional denominado hermenêutico-concretizador pressupõe a pré-compreensão do conteúdo da norma a concretizar e a compreensão do problema concreto a resolver, havendo, nesse método, a primazia do problema sobre a norma, em razão da própria natureza da estrutura normativo-material da norma constitucional.” (ERRADO)

Esse assunto é tratado em poucas obras de Direito Constitucional no nosso País, praticamente só em obras específicas sobre interpretação constitucional - e, evidentemente, em obras voltadas para concursos públicos, nem pensar. Para vocês terem uma idéia, dentre as obras que eu tenho em casa (e olha que eu leio um pouco sobre Direito Constitucional, é minha obrigação conhecer o que existe no mercado!), a única que bem sistematiza esse assunto é “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, editada pela Editora Almedina, Coimbra, Portugal. Isso mesmo (acreditem!): só encontrei a sistematização dos métodos de interpretação na obra do J. J. Gomes Canotilho, editada em Portugal; nas outras obras que possuo só encontramos meras transcrições (ou resumos) da sistematização

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elaborada pelo Canotilho, um dos constitucionalistas mais respeitados do mundo.

No intuito de colaborar com o estudo de vocês, transcrevi, a seguir, literalmente, a sistematização dos métodos de interpretação elaborada pelo Prof. J. J. Gomes Canotilho (especialmente para evitar que vocês, nesse momento, enquanto concursandos, tenham de adquirir essa obra portuguesa, que, aliás, não custa menos de R$ 670,00!).

São os seguintes os ensinamentos do Eminente Professor J. J. Canotilho (transcrição autêntica, em português de Portugal):

“I – Os métodos da interpretação da constituição

A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicista. No momento actual, poder-se-á dizer que a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares. (...)

1. O método jurídico (= método hermenêutico clássico)

O método jurídico parte da consideração de que a constituição é, para todos os efeitos, uma lei. Interpretar a constituição é interpretar uma lei (tese da identidade: interpretação constitucional = interpretação legal). Para se captar o sentido da lei constitucional devem utilizar-se os cânones ou regras tradicionais da hermenêutica. O sentido das normas constitucionais desvenda-se através da utilização como elementos interpretativos: (i) do elemento filológico (= literal, gramatical, textual); (ii) do elemento lógico (= elemento sistemático); (iii) do elemento histórico; (iiii) do elemento teleológico (= elemento racional); (iiiii) do elemento genético.

A articulação destes vários factores hermenêuticos conduzir-nos-á a uma interpretação jurídica (= método jurídico) da constituição em que o princípio da legalidade (= normatividade) constitucional é fundamentalmente salvaguardado pela dupla relevância atribuída ao texto: (1) ponto de partida para a tarefa de mediação ou captação de sentido por parte dos concretizadores das normas constitucionais; (2) limite da tarefa de interpretação, pois a função do intérprete será a de desvendar o sentido do texto sem ir além, e muito menos contra, o teor literal do preceito.

2. O método tópico-problemático (tópoi: esquemas de pensamento, raciocínio, argumentação, lugares comuns, pontos de vista)

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O método tópico problemático, no âmbito do direito constitucional, parte das seguintes premissas: (1) carácter prático da interpretação constitucional, dado que, como toda a interpretação, procura resolver os problemas concretos; (2) carácter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; (3) preferência pela discussão do problema em virtude da open texture (abertura) das normas constitucionais que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo.

A interpretação da constituição conduzir-se-ia, assim, a um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema concreto. Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários tópoi ou pontos de vista, sujeitos à das opiniões pró ou contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional, a interpretação mais conveniente para o problema. A tópica seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático. Os vários tópicos teriam como função: (i) servir de auxiliar de orientação para o intérprete; (ii) constituir um guia de discussão dos problemas; (iii) permitir a decisão do problema jurídico em discussão.

A concretização do texto constitucional a partir dos tópoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretação é uma actividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável (Hesse) que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema (F. Müller).

3. O método hermenêutico-concretizador

O método hermenêutico-concretizador arranca a idéia de que a leitura de um texto normativo se inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete. A interpretação da constituição também não foge a este processo: é uma compreensão de sentido, um preenchimento de sentido juridicamente criador, em que o intérprete efectua uma actividade prático-normativa, concretizando a norma para e a partir de uma situação histórica concreta. No fundo, esse método vem realçar e iluminar vários pressupostos da tarefa interpretativa: (1) os pressupostos subjectivos, dado que o intérprete desempenha um papel criador (pré-compreensão) na tarefa de obtenção do sentido do texto constitucional; (2) os pressupostos objectivos, isto é, o contexto, actuando o intérprete como operador de mediações entre o texto e a situação em que se aplica; (3) relação entre o texto e o contexto com a mediação criadora do intérprete, transformando a interpretação em “movimento de ir e vir” (círculo hermenêutico).

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O método hermenêutico é uma via hermenêutico-concretizante, que se orienta não para um pensamento axiomático mas para um pensamento problematicamente orientado. Todavia, esse método concretizador afasta-se do método tópico-problemático, porque enquanto o último pressupõe ou admite o primado do problema sobre a norma, o primeiro assenta no pressuposto do primado do texto constitucional em face do problema.

4. O método científico-espiritual (= método valorativo, sociológico)

As premissas básicas do chamado método científico-espiritual baseiam-se na necessidade de interpretação da constituição dever ter em conta: (i) as bases de valoração (= ordem de valores, sistema de valores) subjacentes ao texto constitucional; (ii) o sentido e a realidade da constituição como elemento do processo de integração. O recurso à ordem de valores obriga a uma “captação espiritual” do conteúdo axiológico último da ordem constitucional. A idéia de que a interpretação visa não tanto dar resposta ao sentido dos conceitos do texto constitucional, mas fundamentalmente compreender o sentido e realidade de uma lei constitucional, conduz à articulação desta lei com a integração espiritual real da comunidade (com os seus valores, com a realidade existencial do Estado).

5. A metódica jurídica normativo-estruturante

Os postulados básicos da metódica normativo-estruturante são os seguintes: (1) a metódica jurídica tem como tarefa investigar as várias funções de realização do direito constitucional (legislação, administração, jurisdição); (2) e para captar a transformação das normas e concretizar numa “decisão prática” (a metódica pretende-se ligada à resolução de problemas práticos); ; (3) a metódica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido da normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e co funções jurídico-práticas; (4) elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (5) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico da doutrina tradicional); (6) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um “domínio normativo”, isto é, um “pedaço de realidade social” que o programa normativo só parcialmente contempla; (7) conseqüentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa).

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6. A interpretação comparativa

O apelo a elementos de direito comparado costuma ser feito, na teoria clássica da interpretação, a propósito do elemento histórico. A interpretação comparativa pretende captar, de forma jurídico-comparatística, a evolução da conformação, diferenciada ou semelhante, de institutos jurídicos, normas e conceitos nos vários ordenamentos jurídicos com o fito de esclarecer o significado a atribuir a determinados enunciados lingüísticos utilizados na formulação de normas jurídicas.

Em tempos recentes, a comparação jurídica é erguida a “quinto método de interpretação”. Essa comparação assume, em geral, uma natureza valorativa, ou seja, reconduz-se a uma comparação jurídica valorativa no âmbito do Estado Constitucional. Através dela, é possível estabelecer uma comunicação entre várias constituições (Häberle) e descobrir critério da melhor solução para determinados problemas concretos. A comparação valorativa tem sido utilizada pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia em torno dos direitos fundamentais. Nalguns casos, são as próprias constituições que remetem para textos internacionais como acontece com a Convenção Europeia de Direitos Fundamentais (CRP, art. 16).

A comparação jurídica pressupõe um humus cultural: o direito constitucional comparado converte-se em cultura comparada (Häberle). O “problema do método comparativo” é, assim, o de saber se ele consegue mais do que recortar standards (medidas regulativas médias correspondentes a condutas sociais correctas) típicos de determinados modelos culturais.”

No Brasil, quem elaborou uma elogiável síntese dos métodos de interpretação sistematizados por J. J. Gomes Canotilho foi o Professor Inocêncio Mártires Coelho, jurista respeitadíssimo e especialista em interpretação constitucional, nos termos a seguir transcritos (in “Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questão política?”, Revista Jurídica Virtual nº 13, junho/2000, Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos):

“3. Métodos da interpretação constitucional

Preliminarmente, - citando Gomes Canotilho - devemos relembrar que, nos dias atuais, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes, mas, em geral, reciprocamente complementares, o que confirma o caráter unitário da atividade interpretativa.

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Tais métodos, como referidos pelo ilustre constitucionalista português, são o jurídico ou clássico; o tópico-problemático; o hermenêutico-concretizador; o científico-espiritual; e o normativo-estruturante, cujos traços mais significativos podem ser resumidos nos termos seguintes:

a) método jurídico: a Constituição é uma lei e, como tal, pode e deve ser interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se, para revelar-lhe o sentido, os elementos filológico, lógico, histórico, teleológico e genético;

b) método tópico-problemático: o caráter prático da interpretação constitucional, assim como a estrutura normativo-material aberta, fragmentária ou indeterminada da constituição, impõem se dê preferência à discussão dos problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o que, afinal, transformaria a interpretação constitucional num processo aberto de argumentação;

c) método hermenêutico-concretizador: a leitura de um texto constitucional, assim como a de qualquer outro texto normativo, inicia-se pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de uma situação histórica igualmente concreta; a interpretação, que assim se obtém, realçará os aspectos subjetivos e objetivos da atividade hermenêutica - a atuação criadora do intérprete e as circunstâncias em que se desenvolve -, relacionando texto e contexto e transformando o ato interpretativo "em movimento de ir e vir", o chamado círculo hermenêutico;

d) método científico-espiritual: a interpretação constitucional deve levar em conta a ordem ou sistema de valores subjacente à constituição, assim como o sentido e a realidade que esta possui como elemento do processo de integração comunitária; e

e) método normativo-estruturante: na tarefa de concretização da norma constitucional, o intérprete-aplicador deve considerar tanto os elementos resultantes da interpretação do programa normativo, quanto os decorrentes da investigação do domínio normativo, a que correspondem, na doutrina tradicional, respectivamente, a norma propriamente dita e a situação normada, o texto e a realidade social que o mesmo intenta conformar*.

A seguir, uma sugestão do amigo Vicente, de concursando para concursando.

Numa primeira lida do texto, parece desanimador estudar um assunto como esse, não? Bem, a questão não é tão desoladora assim, senão vejamos: como numa prova objetiva você não terá de discorrer sobre os métodos, mas sim saber diferenciá-los, será o suficiente, para

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fazer uma boa prova objetiva, a fixação das idéias centrais de cada um deles.

Minha breve sugestão (que poderá – e deverá! – ser aperfeiçoada):

1) método jurídico = interpreta-se a constituição como se interpreta uma lei, utilizando-se dos tradicionais elementos filológico, lógico, histórico, teleológico e genético;

2) método tópico problemático = confere primazia ao problema perante a norma, parte-se do problema para a norma;

3) método hermenêutico concretizador = pré-compreensão do sentido do texto constitucional através do intérprete, conferindo primazia à norma perante o problema, formando um círculo hermenêutico;

4) método científico-espiritual = de cunho sociológico, leva em conta a ordem de valores subjacente ao texto constitucional, bem assim a integração do texto constitucional com a realidade da comunidade;

5) método normativo-estruturante = valorização da norma propriamente dita e da situação normada, do texto e da realidade social que o mesmo intenta conformar;

6) método comparativo = comparação entre diferentes ordenamentos constitucionais, a partir do direito constitucional comparado.

Um forte abraço – e bons estudos,

Vicente Paulo

* No texto do Prof. Inocêncio não há referência ao método comparativo, provavelmente porque, à época, a edição da obra do Prof. J. J. Gomes Canotilho não o contemplava.