Meu Pé de Laranja Lima

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josé mauro de vasconcelos

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Proposta de Projeto Gráfico de edição para adultos do livro Meu Pé de Laranja Lima

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josé

mau

ro d

e vas

conc

elos

josé mauro de vasconcelos

O menino Zezé, filho de uma família muito pobre, cria um mundo de fantasia para se refugiar de uma realidade exterior áspera. Assim é que um pé de laranja-lima se torna seu confi-dente, a quem conta suas travessuras e dissabores. No hostil mundo adulto ele encontra amparo e afeto em algumas pes-soas, sobretudo em Manuel Valadares, o Portuga, uma figura substituta do pai. A vida, porém, lhe ensina tudo cedo demais.

Page 2: Meu Pé de Laranja Lima

tHistória de um meninozinho que um dia decobriu a dor...

Page 3: Meu Pé de Laranja Lima

josé mauro de vasconcelos

P filipe alonsorenata romeiro

Page 4: Meu Pé de Laranja Lima

P

Mercedes Cruañes RinaldiErich GemeinderFrancisco Marins E ainda maisHelene Rude Miller (Piu-Piu!) Sem poder esquecer também o meu “filho”Fernando Seplinsky

Para os que nunca morreramCicildo MatarazzoArnaldo Magalhães de Giacomo

Meu preito de saudades para meu irmão Luís, O Rei Luís, e minha irmã Glória;Luís desistiu de viver aos vinte anos e Glória aos vinte e quatro anos também achou que viver não valia mesmo.

Saudade igual ainda para Manuel Valadares que mostrou aos meus seis anos o significado da ternura...

— Que todos descansem em paz!... eDorival Lourenço da Silva (Dodô, nem tristeza nem saudade matam!...)

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estava fazendo nada.

Ela engoliu em seco.

— Eu acredito. Ia ser lindo mesmo. Mas não faz mal. Amanhã a

gente vai à casa de Dindinha e compra papel de seda. E vou ajudar a você a fazer o balão mais bonito do mundo. Tão bonito que até as estrelas vão fi car com inveja.— Não adianta, GODÓIA. A gente só faz um primeiro balão bonito. Quando esse não presta, nunca mais acerta ou tem vontade de fazer.— Um dia... um dia... eu vou levar você para longe dessa casa. A

gente vai morar...

Embatucou. Na certa, pensara na casa de Dindinha, mas lá seria

o mesmo inferno. Foi então que ela resolveu participar diretamente do meu pé de Laranja Lima e dos meus

sonhos.

— Eu levo você para morar no rancho de Tom Mix ou Buck

Jones.

— Mas eu gosto ainda mais de Fred Th ompson.

— Pois nós vamos para lá.

E completamente desamparados, começamos a chorar juntos e baixinho...

— O mais triste foi o meu balão. Estava fi cando tão lindo. Pergunte só a LUÍS. sumário

1 O descobridor das coisas p. 5

2 Um certo pé de laranja lima p. 13

3 Os dedos magros da pobreza p. 21

4 O passarinho, a escola e a fl or p. 37

5 Numa cadeia eu hei de verte-te morrer p.49

1 O morcego p. 60

2 A conquista p. 67

3 Conversa para lá e para cá p. 75

4 Duas surras memoráveis p. 83

5 Suave e estranho pedido p. 91

6 De pe daço em peda ço é que se faz ternura p. 103

7 O Mangaratiba p. 108

8 Tantas são as velhas árvores p. 119

3 A CONFISSÃO FINAL p. 121

prim

eira

par

te

segu

nda p

arte

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Ainda que algumas histórias infantis tragam interpretações am-bíguas, desvendadas apenas na idade adulta, ou mesmo nunca percebidas, tratamos aqui de um caso peculiar. Meu Pé de Laranja Lima traz uma história bastante chocante sobre o amadurecimento forçado de uma criança cons-tantemente reprimida de maneira violenta por ser, simplesmen-te, criança. Zezé, passa por etapas que qualquer criança passa em maior ou menor grau nessa época da vida. Brincadeiras de rua e outras que se restringem – ou que se ampliam – no seu mundo de imaginação, que aqui atribuem um pouco de humanidade a um ambiente quase naturalmente hostil, agravado por problemas financeiros e estruturais de uma família pobre e grande como vá-rias outras do Brasil. Desde muito cedo, ele mostra uma percepção precoce do mundo onde se insere e da dificuldade de se sentir amado, gerando um sentimento de culpa e uma baixa auto estima que acompanham por boa parte dessa história. O objetivo dessa edição especial é desvendar aos olhos adultos, o que não é percebido durante a infância, quando geral-mente se tem o primeiro contato com a história de Zezé. Não por falta de sensibilidade dos pequenos, mas por uma incapaci-dade de acreditar que possa existir tamanha crueldade. Revela-mos aqui um ponto de vista mais expressivo, mais próximo do de Zezé, possibilitando a apreensão mais direta das diversas tensões presentes. Os danos causados em decorrência disso, deixamos em uma camada quase subliminar, para que o próprio leitor pos-sa avaliar agora, enquanto sujeito do mundo, superados os trau-mas e limitações que trazemos dessa época que devia ser mais mágica que trágica.

Prefácio

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7

A trajetória do pequeno Zezé é acompanhada de perto pela dor, que impetuosamente lhe abre os olhos para muitas das coisas cuja responsabilidade de revelação é do tempo com suas frus-trações em proporções comedidas e saudáveis. Como em toda experiência traumática, algumas marcas remanescem mostrando as raízes de uma condição explícita ou latente. Aqui, elas saltam aos olhos, como um pedido de socorro e um alerta para que não se cometa, de forma alguma, com qualquer ser vivo, tais atroci-dades. São feridas que permanecem abertas, que terão um lon-go caminho até se cicatrizarem. Advindo disso, o vermelho brota no meio do texto, como segunda cor predominante.

A nova experiência tem início já na capa externa, tam-bém vermelha, feita de lixa, mostrando a hostilidade da maior parte das relações familiares de Zezé, que raramente era abraça-do, e pouco sentia vontade de abraçar. No entanto, era agredido com freqüência. O recorte mostra uma marca forte da infância, ao mesmo tempo que representa o pé de laranja lima, como no logotipo, e ao mesmo tempo gotas escorridas, seja de sangue ou simples lágrimas.

Nas páginas internas se vê pontas, ou aquelas ilusões fluindo junto das esperanças de ternura.

Assim como a montagem do primeiro balão da vida, que deve ser o mais bonito de todos para durar para sempre ou encerrar de vez um sonho, e que antecede um dos momentos mais tensos da história, os pequenos milagres e alegrias de Zezé são interrompidos subitamente. Ele tem limitados momentos de ternura e toma a culpa disso para si, fazendo-se cada vez mais triste e conflituoso.

A tipologia escolhida para narrar esse enredo tem suas origens no barroco, nos projetos tipográficos de William Caslon, adequados aos questionamentos que se estabelecem, das crises de culpa e das punições aplicadas, recriando o ambiente aflitivo que identifica o protagonista.

As palavras trazem em si, também graficamente, seu significado, possibilitando uma maior participação do leitor no contexto.

A intenção não é tornar Meu pé de laranja lima mais triste, mas acender em cada um a chama da ternura para que ela nunca mais venha a faltar.

Um corpo que traz marcas

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— Você do aqui. Agora corta

com a faca o papel bem na dobra.

O ruído macio do gume da faca dividindo o— Agora cole bem de fi ninho deixando essa margem . Assim.

Eu estava ao lado de Totóca aprendendo a fazer um balão.

Depois de tudo colado, Totóca prendeu o balão pelo bico de cima,

com um pregador de roupa, no varal.

— Só depois de bem seco que a gente faz a boca. Aprendeu, seu

burrinho?

— APRENDI.Ficamos sentados na soleira da porta da cozinha espiando o

balão colorido que custava a secar. Aí Totóca enfronhado na

qualidade de MESTRE ia e x p l i c a n d o:

— Balão-tangerina a gente só deve fazer depois de muita prática;

no começo você deve fazer de dois GOmos que é mais fácil.

— Totóca, se eu fi zer um balão sozinh o, você bota a boca

pra mim?

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armarinho de Dona Lota. O mundo da molecada estava

completamente sem dinheiro. Fui para a Rua

Progresso de cima a baixo oferecendo mercadoria. Visitei a Rua

Barão de Capanema quase trotando, mas nada. Se eu fosse na

casa de Dindinha? Fui lá, mas minha avó nem se interessou.

— Não quero comprar fi gurinhas nem bolas de gude.. É melhor

que você as guarde. Porque amanhã você vem e me pede para

comprar de novo.

Na certa Dindinha estava sem dinheiro.

Ganhei a rua e olhei para as minhas pernas. Estavam sujas de

tanto eu apanhar poeira de rua. Olhei o sol que já começava a

abaixar. Foi quando aconteceu o milagre.

— Zezé! Zezé!

Biriquinho vinha correndo como um louco em minha direção.— Estou procurando você por toda parte. Você está vendendo?

Sacudi os bolsos balançando as bolas.

— Vamos tar.

Sentamos ao mesmo tempo e e s p a r r a m e i n o c h ã o a

mercadoria.

— Quanto?

— Cinco bolas a um tostão e dez fi gurinhas pelo mesmo preço.

— Está caro.

Já ia me enfezar. Ladrão desgraçado! Caro quando

— Depende.

Lá estava ele querendo fazer negócios. Avançar nas minhas

boooooolas de gude ou na minha colação de fi gurinhas de

artista de cinema que “ninguém compreendia como crescia tanto”.

— Puxa, Totóca, quando você me pede, eu até brigo por você.

— Está bem. A primeira eu faço de graça e se você não aprender,

as outras só na base da troca.

— Está certo.

Naquele momento eu tinha JURADO comigo mesmo que ia

aprender TANTO, que nunca mais ele iria botar as mãos nos meus balões.

Aí o meu balão não me saiu mais da idéia. Tinha que ser o

balão. Imagine o orgulho do PORTUGA quando eu

contasse a proeza. A admiração de XURURUCA quando visse o

bicho balançando em minhas mãos...

Dominado pela idéia, enchi os bolsos de bolas de gude e algumas

fi gurinhas repetidas e ganhei o m u n d o d a r u a. Ia vender bola

de gude e fi gurinhas o mais barato possível para poder comprar

pelo menos duas .

— Vamos, minha gente! Cinco bolas por um tostão. Novinhas

como se viessem da loja!

E nada.

— Dez fi gurinhas por um tostão. Vocês não compram nem no

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armarinho de Dona Lota. O mundo da molecada estava

completamente sem dinheiro. Fui para a Rua

Progresso de cima a baixo oferecendo mercadoria. Visitei a Rua

Barão de Capanema quase trotando, mas nada. Se eu fosse na

casa de Dindinha? Fui lá, mas minha avó nem se interessou.

— Não quero comprar fi gurinhas nem bolas de gude.. É melhor

que você as guarde. Porque amanhã você vem e me pede para

comprar de novo.

Na certa Dindinha estava sem dinheiro.

Ganhei a rua e olhei para as minhas pernas. Estavam sujas de

tanto eu apanhar poeira de rua. Olhei o sol que já começava a

abaixar. Foi quando aconteceu o milagre.

— Zezé! Zezé!

Biriquinho vinha correndo como um louco em minha direção.— Estou procurando você por toda parte. Você está vendendo?

Sacudi os bolsos balançando as bolas.

— Vamos tar.

Sentamos ao mesmo tempo e e s p a r r a m e i n o c h ã o a

mercadoria.

— Quanto?

— Cinco bolas a um tostão e dez fi gurinhas pelo mesmo preço.

— Está caro.

Já ia me enfezar. Ladrão desgraçado! Caro quando

— Depende.

Lá estava ele querendo fazer negócios. Avançar nas minhas

boooooolas de gude ou na minha colação de fi gurinhas de

artista de cinema que “ninguém compreendia como crescia tanto”.

— Puxa, Totóca, quando você me pede, eu até brigo por você.

— Está bem. A primeira eu faço de graça e se você não aprender,

as outras só na base da troca.

— Está certo.

Naquele momento eu tinha JURADO comigo mesmo que ia

aprender TANTO, que nunca mais ele iria botar as mãos nos meus balões.

Aí o meu balão não me saiu mais da idéia. Tinha que ser o

balão. Imagine o orgulho do PORTUGA quando eu

contasse a proeza. A admiração de XURURUCA quando visse o

bicho balançando em minhas mãos...

Dominado pela idéia, enchi os bolsos de bolas de gude e algumas

fi gurinhas repetidas e ganhei o m u n d o d a r u a. Ia vender bola

de gude e fi gurinhas o mais barato possível para poder comprar

pelo menos duas .

— Vamos, minha gente! Cinco bolas por um tostão. Novinhas

como se viessem da loja!

E nada.

— Dez fi gurinhas por um tostão. Vocês não compram nem no

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Não havia tempo a perder. Se corresse até o armazém do Chico

Franco perdia muito tempo.

— Vai assim mesmo.

Agora a coisa era diferente. Botei uma cadeira junto da mesa e trepei o REI LUÍS para espiar.

— Você fi ca quietinho, promete? Zezé vai fazer uma coisa difi cílima.

Quando você crescer eu lhe ensino sem cobrar nada.

Começou a escurecer rapidamente, e a gente trabalhando.

A Fábrica apitou. Precisava andar depressa. Jandira já estava

colocando os pratos na mesa. Ela tinha a mania de dar a comida

pra gente mais cedo, para ninguém amolar os mais velhos.

— ZEZÉ!... LUÍS!...O berro vinha tão forte como se a gente estivesse lá pelos lados

do Murundu. Desci Luís e falei:

— Vai indo à frente que eu já vou.

— Zezé!... Venha logo, senão vai ter.— Já vou já!

todo mundo vendia cinco fi gurinhas e três bolas pelo que estava

pedindo. Já ia guardar tudo no bolso.

— Espere. Posso EscOLheR?

— Quanto você tem?

— Trezentos réis. Duzentos eu posso gastar.

— Pois bem, te dou seis bolas e doze fi gurinhas.

Entrei voando na venda do Miséria e Fome. Ninguém se

lembrava mais “daquela cena”. Só havia seu Orlando conversando junto

do balcão. Quando a Fábrica apitasse, aí sim, o pessoal vinha todo

tomar uma bicada e ninguém poderia mais entrar.

— O senhor tem papel de seda?

Não me ofendi. Apenas mostrei os dois niqueis de tostão.

— Só tem cor-de-rosa e cor de abóbora.

— Só?

— Com o tempo do papagaio vocês mesmos me levaram tudo.

Mas que diferença faz? Papagaio de qualquer cor sobe, não

— Mas não é para papagaio. Eu vou fazer o meu primeiro

balão.

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Não havia tempo a perder. Se corresse até o armazém do Chico

Franco perdia muito tempo.

— Vai assim mesmo.

Agora a coisa era diferente. Botei uma cadeira junto da mesa e trepei o REI LUÍS para espiar.

— Você fi ca quietinho, promete? Zezé vai fazer uma coisa difi cílima.

Quando você crescer eu lhe ensino sem cobrar nada.

Começou a escurecer rapidamente, e a gente trabalhando.

A Fábrica apitou. Precisava andar depressa. Jandira já estava

colocando os pratos na mesa. Ela tinha a mania de dar a comida

pra gente mais cedo, para ninguém amolar os mais velhos.

— ZEZÉ!... LUÍS!...O berro vinha tão forte como se a gente estivesse lá pelos lados

do Murundu. Desci Luís e falei:

— Vai indo à frente que eu já vou.

— Zezé!... Venha logo, senão vai ter.— Já vou já!

todo mundo vendia cinco fi gurinhas e três bolas pelo que estava

pedindo. Já ia guardar tudo no bolso.

— Espere. Posso EscOLheR?

— Quanto você tem?

— Trezentos réis. Duzentos eu posso gastar.

— Pois bem, te dou seis bolas e doze fi gurinhas.

Entrei voando na venda do Miséria e Fome. Ninguém se

lembrava mais “daquela cena”. Só havia seu Orlando conversando junto

do balcão. Quando a Fábrica apitasse, aí sim, o pessoal vinha todo

tomar uma bicada e ninguém poderia mais entrar.

— O senhor tem papel de seda?

Não me ofendi. Apenas mostrei os dois niqueis de tostão.

— Só tem cor-de-rosa e cor de abóbora.

— Só?

— Com o tempo do papagaio vocês mesmos me levaram tudo.

Mas que diferença faz? Papagaio de qualquer cor sobe, não

— Mas não é para papagaio. Eu vou fazer o meu primeiro

balão.

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A diaba estava de mau humor. Devia ter brigado com um dos

seus namorados. Ou o da ponta da rua ou o do começo.

Agora, parecia de propósito, a cola estava fi cando seca e a

farinha difi cultando o trabalho.

O BERRO veio mais forte. Quase não havia mais luz para o

meu trabalho.

— Zezé!... Pronto. Estava perdido. Ela veio de lá, furiosa.

— Pensa que eu sou sua empregada? Venha comer logo.

Invadiu a sala e me agarrou pelas orelhas. Foi me arrastando até

a sala e me atirou contra a mesa. Aí eu me danei.— Não janto. Não janto. Não janto. Eu quero é acabar o meu balão.

Escorreguei e voltei correndo para o lugar anterior.

Ela virou fera. Em vez de avançar para mim, caminhou em

direção da mesa. e era uma vez um belo sonho. Meu balão

inacabado se transformara em tiras se rasgando. Não satisfeita

com isso (e tamanho foi o meu estupor, que nada fi z) ela me

pegou pelas pernas, pelos braços e me atirou no meio da sala.

— Quando eu falo é para obedecer.

O diabo se soltou dentro de mim. A revolta estourou como um furacão. No começo veio uma

simples rajada.

— Sabe o que você é? É uma puta!

Ela colou o rosto ao meu. Seus olhos dispendiam fagulhas.

— Repete se você tem coragem.

Destaquei bem as sílabas.

— Pu-ta!

Ela apanhou a mão de couro sobre a cômoda e começou a me bater sem piedade. Virei as costas

e escondi a | cabeça entre as mãos |. A dor era menor que a minha raiva.— Puta! Puta! Filha de uma puta!...

Ela não parava e meu corpo era uma só dor de fogo. Foi quando entrou Antônio. E correu em auxílio de minha irmã

que estava começando a cansar de tanto me bater.

— Mata, assassina! A cadeia está aí para me vingar!

E ela batia, batia a ponto de eu ter caído de

joelhos, me apoiando na cômoda.

— Puta! Filha da puta.

Totóca me suspendeu e me virou para frente.

— Cala a boca, Zezé, você não pode xingar assim a sua irmã.

— Ela é uma puta. Assassina. Uma fi lha da puta!

Minha salvação foi GLÓRIA ter ouvido. Ela estava no vizinho,

Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca...

Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca...

e começou a me bater sem piedade

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A diaba estava de mau humor. Devia ter brigado com um dos

seus namorados. Ou o da ponta da rua ou o do começo.

Agora, parecia de propósito, a cola estava fi cando seca e a

farinha difi cultando o trabalho.

O BERRO veio mais forte. Quase não havia mais luz para o

meu trabalho.

— Zezé!... Pronto. Estava perdido. Ela veio de lá, furiosa.

— Pensa que eu sou sua empregada? Venha comer logo.

Invadiu a sala e me agarrou pelas orelhas. Foi me arrastando até

a sala e me atirou contra a mesa. Aí eu me danei.— Não janto. Não janto. Não janto. Eu quero é acabar o meu balão.

Escorreguei e voltei correndo para o lugar anterior.

Ela virou fera. Em vez de avançar para mim, caminhou em

direção da mesa. e era uma vez um belo sonho. Meu balão

inacabado se transformara em tiras se rasgando. Não satisfeita

com isso (e tamanho foi o meu estupor, que nada fi z) ela me

pegou pelas pernas, pelos braços e me atirou no meio da sala.

— Quando eu falo é para obedecer.

O diabo se soltou dentro de mim. A revolta estourou como um furacão. No começo veio uma

simples rajada.

— Sabe o que você é? É uma puta!

Ela colou o rosto ao meu. Seus olhos dispendiam fagulhas.

— Repete se você tem coragem.

Destaquei bem as sílabas.

— Pu-ta!

Ela apanhou a mão de couro sobre a cômoda e começou a me bater sem piedade. Virei as costas

e escondi a | cabeça entre as mãos |. A dor era menor que a minha raiva.— Puta! Puta! Filha de uma puta!...

Ela não parava e meu corpo era uma só dor de fogo. Foi quando entrou Antônio. E correu em auxílio de minha irmã

que estava começando a cansar de tanto me bater.

— Mata, assassina! A cadeia está aí para me vingar!

E ela batia, batia a ponto de eu ter caído de

joelhos, me apoiando na cômoda.

— Puta! Filha da puta.

Totóca me suspendeu e me virou para frente.

— Cala a boca, Zezé, você não pode xingar assim a sua irmã.

— Ela é uma puta. Assassina. Uma fi lha da puta!

Minha salvação foi GLÓRIA ter ouvido. Ela estava no vizinho,

Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca...

Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca...

e começou a me bater sem piedade

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conversando com Dona Rosena e veio voando, atraída pela

GRITARIA. Penetrou na sala como um furacão. GLÓRIA não

era de brincadeira e quando viu que o sangue lavava minha cara, empurrou Totóca

para o lado e nem se importou que Jandira fosse mais velha,

afastando-a com um safanão.

Levou-me para o quarto. Eu nem chorava, mas em compensação

o REI LUÍS tinha se escondido no quarto de Mamãe e fazia um

BERREIRO TERRÍVEL. De medo e por que estavam judiando

de mim.

Glória invectivava,

— Um dia vocês matam essa criança e eu quero ver! Vocês são

uns monstros sem coração.

Me deitara na cama e ia providenciar a santa bacia de

salmoura. Totóca entrou sem jeito no quarto. GLÓRIA o

empurrou.

— Sai pra lá, seu covarde!

— Você não ouviu o que ele estava xingando?

— Ele não estava fazendo nada. Vocês é que provocaram. Quando

eu saí ele estava quietinho fazendo o seu balão. Vocês não têm é coração.

Como se pode bater tanto num irmão?

E conforme me , eu cuspi na bacia um

pedaço de dente. Aquilo tocou fogo no vulcão.

— Veja o que você fez, seu medroso. Quando você quer brigar,

tem medo e chama ele. Seu cagão! Com nove anos e ainda mija

na cama. Eu vou mostrar pra todo mundo o seu colchão e suas

calças mijadas que você esconde na gaveta todas as manhãs.

Depois ela botou todo mundo para fora do quarto e trancou a

porta. Acendeu a luz porque a noite viera completa.

Tirou minha camisa e fi cou lavando as manchas e os lanhos do

meu corpo.

— Dói, GUM?

— Dessa vez está doendo muito.— Eu faço bem de leve, meu diabinho querido. Você precisa

fi car de bruços um bocadinho de tempo para secar, senão a roupa

gruda e dói.

Mas o que doía mesmo era o rosto. Doía de dor e de raiva ante tanta maldade sem motivo.Depois que as coisas melhoraram ela deitou-se ao meu lado e

fi cou alisando a minha cabeça.

— Você viu, GODÓIA. Eu não estava fazendo nada. Quando eu mereço eu não me importo de apanhar. Mas eu não

Eu JAZIA no chão sem quase poder abrir os olhos e respirando com difi culdade.

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conversando com Dona Rosena e veio voando, atraída pela

GRITARIA. Penetrou na sala como um furacão. GLÓRIA não

era de brincadeira e quando viu que o sangue lavava minha cara, empurrou Totóca

para o lado e nem se importou que Jandira fosse mais velha,

afastando-a com um safanão.

Levou-me para o quarto. Eu nem chorava, mas em compensação

o REI LUÍS tinha se escondido no quarto de Mamãe e fazia um

BERREIRO TERRÍVEL. De medo e por que estavam judiando

de mim.

Glória invectivava,

— Um dia vocês matam essa criança e eu quero ver! Vocês são

uns monstros sem coração.

Me deitara na cama e ia providenciar a santa bacia de

salmoura. Totóca entrou sem jeito no quarto. GLÓRIA o

empurrou.

— Sai pra lá, seu covarde!

— Você não ouviu o que ele estava xingando?

— Ele não estava fazendo nada. Vocês é que provocaram. Quando

eu saí ele estava quietinho fazendo o seu balão. Vocês não têm é coração.

Como se pode bater tanto num irmão?

E conforme me , eu cuspi na bacia um

pedaço de dente. Aquilo tocou fogo no vulcão.

— Veja o que você fez, seu medroso. Quando você quer brigar,

tem medo e chama ele. Seu cagão! Com nove anos e ainda mija

na cama. Eu vou mostrar pra todo mundo o seu colchão e suas

calças mijadas que você esconde na gaveta todas as manhãs.

Depois ela botou todo mundo para fora do quarto e trancou a

porta. Acendeu a luz porque a noite viera completa.

Tirou minha camisa e fi cou lavando as manchas e os lanhos do

meu corpo.

— Dói, GUM?

— Dessa vez está doendo muito.— Eu faço bem de leve, meu diabinho querido. Você precisa

fi car de bruços um bocadinho de tempo para secar, senão a roupa

gruda e dói.

Mas o que doía mesmo era o rosto. Doía de dor e de raiva ante tanta maldade sem motivo.Depois que as coisas melhoraram ela deitou-se ao meu lado e

fi cou alisando a minha cabeça.

— Você viu, GODÓIA. Eu não estava fazendo nada. Quando eu mereço eu não me importo de apanhar. Mas eu não

Eu JAZIA no chão sem quase poder abrir os olhos e respirando com difi culdade.

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estava fazendo nada.

Ela engoliu em seco.

— Eu acredito. Ia ser lindo mesmo. Mas não faz mal. Amanhã a

gente vai à casa de Dindinha e compra papel de seda. E vou ajudar a você a fazer o balão mais bonito do mundo. Tão bonito que até as estrelas vão fi car com inveja.— Não adianta, GODÓIA. A gente só faz um primeiro balão bonito. Quando esse não presta, nunca mais acerta ou tem vontade de fazer.— Um dia... um dia... eu vou levar você para longe dessa casa. A

gente vai morar...

Embatucou. Na certa, pensara na casa de Dindinha, mas lá seria

o mesmo inferno. Foi então que ela resolveu participar diretamente do meu pé de Laranja Lima e dos meus

sonhos.

— Eu levo você para morar no rancho de Tom Mix ou Buck

Jones.

— Mas eu gosto ainda mais de Fred Th ompson.

— Pois nós vamos para lá.

E completamente desamparados, começamos a chorar juntos e baixinho...

— O mais triste foi o meu balão. Estava fi cando tão lindo. Pergunte só a LUÍS. sumário

1 O descobridor das coisas p. 5

2 Um certo pé de laranja lima p. 13

3 Os dedos magros da pobreza p. 21

4 O passarinho, a escola e a fl or p. 37

5 Numa cadeia eu hei de verte-te morrer p.49

1 O morcego p. 60

2 A conquista p. 67

3 Conversa para lá e para cá p. 75

4 Duas surras memoráveis p. 83

5 Suave e estranho pedido p. 91

6 De pe daço em peda ço é que se faz ternura p. 103

7 O Mangaratiba p. 108

8 Tantas são as velhas árvores p. 119

3 A CONFISSÃO FINAL p. 121

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e vas

conc

elos

josé mauro de vasconcelos

O menino Zezé, filho de uma família muito pobre, cria um mundo de fantasia para se refugiar de uma realidade exterior áspera. Assim é que um pé de laranja-lima se torna seu confi-dente, a quem conta suas travessuras e dissabores. No hostil mundo adulto ele encontra amparo e afeto em algumas pes-soas, sobretudo em Manuel Valadares, o Portuga, uma figura substituta do pai. A vida, porém, lhe ensina tudo cedo demais.