MÉXICO REVIDA: CRÍTICAS AO IMPERIALISMO DOS EUA EM … · 2018-08-24 · matar um senador texano...

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1 MÉXICO REVIDA: CRÍTICAS AO IMPERIALISMO DOS EUA EM MACHETE (2010) RODRIGO APARECIDO DE ARAÚJO PEDROSO * Introdução O presente texto tem como objetivo fazer uma breve análise historiográfica do filme Machete (2010) dirigido por Robert Rodriguez e estrelado por Danny Trejo, ambos nascidos nos EUA e com descendência mexicana. A produção trata-se de típico filme de ação hollywoodiano, contém diversas cenas de perseguição, tiros, explosões, lutas e mortes extremante violentas. Entretanto, a produção se diferencia das demais do gênero por apresentar como herói um mexicano e como vilões grupos racistas e xenófobos. A trama se passa no estado do Texas e narra as aventuras do ex-agente federal mexicano Machete Cortez (Danny Trejo); que teve sua família assassinada pelo narcotraficante Rogelio Torrez (Steven Seagal) e quase foi morto também. Três anos depois Machete está vivendo como imigrante ilegal no Texas e procura bicos para se sustentar. No decorrer da trama ele é contratado por Michael Booth (Jeff Fahey) para matar um senador texano corrupto e xenófobo, chamado John McLaughlin (Robert DeNiro) que deseja expulsar/exterminar todos os imigrantes mexicanos e construir uma certa eletrificada separando as fronteiras. O senador também está evolvido com um grupo de supremacistas brancos, liderados por Von Jackson (Don Johnson), que atuam como vigilantes na fronteira exterminado os mexicanos que tentam entrar no país. Booth na verdade é amigo e assessor do senador, e planejou o atentado para melhorar a campanha de reeleição de McLaughlin, e arrumar uma justificativa para tomar medidas mais duras contra imigrantes. O plano não dá muito certo, pois Machete não age do jeito que era esperado e no decorrer do filme ele procura descobrir o que de fato está ocorrendo e se vingar. * Doutorando em História Social FFLCH/USP.

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MÉXICO REVIDA:

CRÍTICAS AO IMPERIALISMO DOS EUA EM MACHETE (2010)

RODRIGO APARECIDO DE ARAÚJO PEDROSO*

Introdução

O presente texto tem como objetivo fazer uma breve análise historiográfica do

filme Machete (2010) dirigido por Robert Rodriguez e estrelado por Danny Trejo, ambos

nascidos nos EUA e com descendência mexicana. A produção trata-se de típico filme de

ação hollywoodiano, contém diversas cenas de perseguição, tiros, explosões, lutas e

mortes extremante violentas. Entretanto, a produção se diferencia das demais do gênero

por apresentar como herói um mexicano e como vilões grupos racistas e xenófobos.

A trama se passa no estado do Texas e narra as aventuras do ex-agente federal

mexicano Machete Cortez (Danny Trejo); que teve sua família assassinada pelo

narcotraficante Rogelio Torrez (Steven Seagal) e quase foi morto também. Três anos

depois Machete está vivendo como imigrante ilegal no Texas e procura bicos para se

sustentar. No decorrer da trama ele é contratado por Michael Booth (Jeff Fahey) para

matar um senador texano corrupto e xenófobo, chamado John McLaughlin (Robert

DeNiro) que deseja expulsar/exterminar todos os imigrantes mexicanos e construir uma

certa eletrificada separando as fronteiras. O senador também está evolvido com um grupo

de supremacistas brancos, liderados por Von Jackson (Don Johnson), que atuam como

vigilantes na fronteira exterminado os mexicanos que tentam entrar no país. Booth na

verdade é amigo e assessor do senador, e planejou o atentado para melhorar a campanha

de reeleição de McLaughlin, e arrumar uma justificativa para tomar medidas mais duras

contra imigrantes. O plano não dá muito certo, pois Machete não age do jeito que era

esperado e no decorrer do filme ele procura descobrir o que de fato está ocorrendo e se

vingar.

* Doutorando em História Social – FFLCH/USP.

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Em Machete vemos um imigrante ilegal mexicano, socialmente excluído, lutando

com todas as suas forças para impedir que um grupo político xenófobo e corrupto consiga

realizar seus planos de limpeza étnica. Ficcionalmente a obra apresenta um herói de

origem mexicana que atua como um tipo de vingador. Machete é um personagem que

representa e revida em nome de uma comunidade historicamente dominada e excluída

por uma grande parte da sociedade estadunidense.

Através de uma narrativa repleta de violência, humor e ironia Machete discute a

questão referentes a imigração de mexicanos, controle de fronteiras, e a forma como estes

são tratados e segregados nos Estados Unidos. O filme também questiona o discurso

democrático/imperialista norte-americano e outros temas de relevância política e social.

Assim, o presente texto tem como objetivo expor algumas das questões

identitárias e sociais que o filme discute. E, também, analisar a mensagem transmitida e

as soluções que a obra propõe para o problema de convivência entre imigrantes mexicanos

e os descendentes de imigrantes britânicos que vivem nos EUA. A análise da obra também

permite compreender a produção cinematográfica como meio de difusão de ideias que

questionam relações de poder estabelecidas.

Machete e as políticas de restrição a imigração nos EUA

Machete é um filme de ação com um claro subtexto político e social que dialoga

com temas referentes a complexa questão da imigração nos EUA. A imigração, ou

melhor, o controle da entrada de imigrantes no país é uma questão polêmica, pois ela é

pautada muitas vezes em preconceitos. Há maiores restrições à entrada de imigrantes

vindos de determinadas regiões, como África, Ásia, América Latina e Oriente Médio; já

imigrantes europeus e do Canadá têm menos problemas para entrar e residir nos EUA. O

grande problema do país é controlar a entrada de imigrantes pela fronteira com o México.

Tanto os governos dos estados que fazem fronteira quanto o governo federal têm tentado

ao longo de anos estabelecer medidas eficazes que proíbam a entrada de imigrantes

mexicanos ilegalmente no país. A maioria delas é falha e muitas vezes pautada em

justificativas xenófobas que geram críticas e manifestações contrarias.

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O filme foi lançado em um período que o país passava por mudanças

governamentais devido a eleição de Barack Obama para presidência em 2009. A eleição

de Obama, primeiro presidente negro de descendência estrangeira1 dos Estados Unidos.

De acordo com David Manuel Hernandez (2013) a campanha e a posterior eleição de

Obama alimentaram a esperança de haveria mudanças na forma como as minorias são

tratadas no país. Entretanto, essas mudanças não se realizaram da maneira que era

esperada. Hernandez afirma que durante sua campanha Obama havia prometido

modificar as leis de imigração. E tinha um discurso bilíngue no qual dizia “Todos somos

Americanos – We are all Americans”, indicando que em sua administração as coisas

seriam diferentes para a população não anglofônica. As esperanças da população latina

dos Estados Unidos foram frutadas quando

[...] o governo Obama instituiu uma reforma de imigração limitada. Reviu as

iniciativas da era Bush, ajustou ou manteve as políticas de aplicação de

fronteiras e interior do governo anterior, bem como iniciou a reforma das

políticas de detenção. Também fez pequenas modificações no processamento

de imigração e na política de asilo, bem como apresentou algumas das

questões políticas postas como prioridades durante a campanha. Uma razão

para essas reformas não abrangentes é que as mudanças administrativas não

exigem aprovação do Congresso. Como representante Zoe Lofgren afirma:

"Você não precisa de 218 votos na Câmara e 60 votos no Senado, ou tempo de

chão ou tempo de debate." Ana Avendano da AFL-CIO também sugere: "Ele

não tem que passar por Congresso. Ele não precisa passar pelo processo

político tóxico” (Gorman, 2009b, A13) (HERNANDEZ, 2013:31, tradução

nossa).

O autor indica que as reformas modestas do governo Obama visavam evitar um

grande embate entre o poder executivo e legislativo, pois a questão da imigração é muito

polêmica entre os congressistas de ambos os partidos majoritários dos EUA

(Republicanos e Democratas). Além disso, Obama investiu grande parte de seus esforços

enquanto presidente para aprovar sua reforma no sistema de saúde. E negligenciou a

questão da imigração delegando aos estados a responsabilidade para lidar com o problema

da maneira que achassem melhor.

Em 2010, quando o filme foi lançado, o estado do Texas havia aprovado uma lei

que obrigava pessoas que não parecessem nativas a mostrar seus documentos. No período,

1 A mãe de Obama é americana e seu pai é queniano. Os dois se conheceram e casaram nos anos 60 no

estado do Havaí. Para maiores informações sobre Barack Obama e sua família e vida consultar a biografia:

OBAMA, Barack. Dreams from my father. New York: Canongate, 2007.

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também houve um crescente detenção e deportação de estrangeiros ilegais. Machete,

discute de forma indireta alguns problemas relacionados a como o poder público e a

sociedade estadunidense têm lidado com o problema da imigração.

Porém em entrevistas o diretor Robert Rodriguez deixou claro que seu objetivo

com o filme não era o de fazer uma obra panfletária e/ou militante. Por exemplo, em uma

entrevista o cineasta afirma que:

[...] seu filme “não é sobre imigração”. O diretor garante que todos esses

problemas já existiam há 16 anos, quando pensou pela primeira vez na

história. Por isso, não gostaria também de ver “Machete” transformado num

manifesto político. Para ele, “tudo isso torna meu filme mais relevante e,

espero, mais excitante de assistir”. Entretanto, reconhece que há estados nos

EUA, como o Arizona, que estão “tentando as soluções erradas” na questão

da imigração”. E arremata: “Em algum momento, o governo vai ter que fazer

algo a respeito”2

Rodriguez deixa claro que algumas das questões que existem no filme não se

referem ao contexto imediato da obra, mas a uma condição histórica que ele identificou

e colocou no roteiro do filme há pelo menos 16 anos. Em outra entrevista, quando

questionado se ele não temia que seu filme ofendesse as pessoas ele deu a seguinte

declaração:

Pessoalmente, eu acho que é bem difícil levar esse filme a sério. Foi apenas

uma questão de timing ver que ele está relacionado a assuntos reais, porque

aí você assiste com um olhar diferente. Se não fosse o assunto do momento,

você assistiria e não pensaria muito a respeito. Seria apenas um contexto

normal. Isso só ajuda a recriar o clima dos filmes exploitation dos anos 70 e

80 (RODRIGUEZ, 2010: s/p).

As falas de Rodriguez indicam que ele possui um opinião política sobre a questão

da imigração, mas que em seu filme ele não tinha a intensão de abordá-la, e também não

pretendia discutir temas que estavam em pauta no período em que o filme foi lançado.

Aparentemente, seu objetivo com o filme era fazer um homenagem ao filmes de ação dos

anos 1970 e 1980, mas ele não chega a negar a existência de uma mensagem política e

social em sua obra. Mesmo que sem intencionalidade Machete trava uma importante

discussão com as formas como a imigração é entendida nos Estados Unidos. Isso fez o

filme tornar-se uma obra relevante na discussão e redefinição de estereótipos

2 Disponível em: <https://cinema.uol.com.br/veneza/ultimas-noticias/2010/09/01/em-machete-robert-

rodriguez-cria-heroi-latino-que-pretende-ser-universal.jhtm> Acesso em: 25/06/2018.

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preconceituosos com relação aos mexicanos e a comunidade latina dos EUA de modo

geral.

Redefinindo estereótipos latinos na mídia estadunidense

Robert Rodriguez é um conhecido diretor norte-americano, nasceu no Texas em

1968, e iniciou sua carreira de forma modesta fazendo filmes curtos em sua própria casa

e com a ajuda de parentes. Em 1992 conseguiu lançar seu primeiro filme comercial El

Mariach (O Mariachi), que foi financiado com dinheiro que Rodriguez ganhou sendo

cobaia de medicamentos3. Seus filmes costumam abordar temas relacionados a cultura e

ao cotidiano da comunidade mexicana. Sua produção cinematográfica é bem variada, mas

grande parte dela é de filmes de ação ou terror. Os filmes de Rodriguez seguem uma linha

de violência gráfica próximos aos do diretor Quentin Tarantino4, ou seja, contém cenas

de morte extremamente violentas e com um excesso de sangue que remetem a filmes de

terror gore/splatter5.

A pesquisadora Noelia Gregorio insere o diretor em uma tradição de cineastas

chicanos6 iniciada nos anos 1970 com a produção de filmes independentes. Ao longo dos

anos 1990 estes começaram a se inserir na indústria hollywoodiana, que viu no

crescimento da comunidade latina nos EUA uma oportunidade de lucrar com as

crescentes demandas de representatividade dessa comunidade. Essas produções chicanas

costumam discutir temas relacionados a sua cultura e as questões envolvendo a imigração

e a dificuldade de viverem em território estrangeiro. Além disso, de acordo com a autora:

Robert Rodriguez se tornou, em sua carreira cinematográfica de vinte anos,

um dos diretores de bilheteria mais altos do panorama cinematográfico dos

EUA e o campeão de uma terceira geração/onda de cineastas chicanos que, a

partir dos anos 70, entraram na indústria dos EUA. Mencionei acima que o

desejo dessa geração de artistas não é tanto reivindicação social por

docudramas, panfletos de filmes ou revoluções, mas seu objetivo é transmitir

3 Informações biográficas retiradas do site: <https://www.imdb.com/name/nm0001675/bio> 4 Tarantino foi o produtor de Machete, ele e Rodriguez são amigos e já trabalharam juntos em alguns filmes

como: Um Drink no Inferno (1996) e Planeta Terror (2007). 5 Subgênero dos filmes de terror voltado para provocar nojo e aversão nos espectadores através de cenas

com violência gráfica exagerada, decapitações, amputações, evisceração, tortura etc. Para maiores

informações consultar o website: < https://www.significados.com.br/gore/> 6 Chicano é um termo usado para se referir a cidadãos americanos de origem mexicana. Maiores

informações em: <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/c/chicanos>

6

a mensagem de dentro da própria indústria de Hollywood. Ou seja, eles

lentamente inserem elementos chicanos em filmes e, assim, subvertem

estereótipos. Assim, a mensagem é menos explícita, mas não menos chocante

(2014: 3, tradução nossa).

Com base nesse excerto, podemos caracterizar Robert Rodriguez como um diretor

chicano bem sucedido na indústria cinematográfica hollywoodiana, e que aborda temas

referentes a sua comunidade de forma discreta. Rodriguez não é um diretor militante. Ele

não costuma fazer filmes com mensagens políticas e sociais explicitas, mas não deixa de

expor e discutir algum tema que considera relevante para os chicanos. E a principal

característica de sua obra é redefinir os estereótipos preconceituosos construídos pela

mídia estadunidense.

Criar um novo estereótipo de mexicano era um dos objetivos de Rodriguez em

Machete, outro objetivo dele era o de fazer um filme que fosse divertido e que atendesse

a demanda dos fãs de Machete7. Em uma entrevista Robert Rodriguez afirma que ao criar

o personagem Machete pretendia criar um super-herói mexicano, uma versão latina do

Rambo e do James Bond, “[...] primeiro herói de ação latino da história do cinema

hollywoodiano [...]” (RODRIGUEZ, 2010: s/p)8.

Apresentar um mexicano como herói/protagonista e homens brancos como vilões

em um filme de ação, de fato, é algo diferente em produções desse gênero em Hollywood.

Filmes de ação geralmente apresentam protagonistas brancos, e os vilões frequentemente

são caracterizados como membros estereotipados de alguma minoria étnica ou

estrangeiros, associados com o mundo do crime, mafiosos, narcotraficantes e terroristas.

Estes representam uma grande ameaça a sociedade e valores estadunidenses, e são

combatidos de forma violenta pelos heróis brancos, exemplos disso podem ser

encontrados em filmes estrelados por atores como, Clint Eastwood, Chuck Norris, Bruce

Willis, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger entre muitos outros.

De acordo com a pesquisadora Arielle L. Akines (2015) nas produções midiáticas

norte-americanas mexicanos, chicanos, e latinos de modo geral, são regularmente

7 Danny Trejo interpretou uma versão mais tranquila do personagem Machete pela primeira vez no filme

infanto-juvenil Jovens Espiões (2001). Posteriormente Rodriguez introduziu um trailer de um falso filme

do Machete em Planeta Terror (2003) e isso fez com que diversos fãs e o próprio Trejo cobrassem a

produção desse filme. 8 Entrevista publicada no site Omelete, disponível em: <https://omelete.com.br/filmes/entrevista/machete-

omelete-entrevista-robert-rodriguez-e-danny-trejo/> Acesso em: 21/06/2018.

7

apresentados de forma estereotipada. Mulheres frequentemente aparecem em papéis de

empregadas domésticas ou mulheres sexy e perigosas. Os homens quando são retratados

como trabalhadores, normalmente realizam atividades pesadas e pouco remuneradas,

como faxineiros, jardineiros, operários etc., ou seja são apresentados em posições

subalternas, como seres que existem para servir a outros. Além disso, a autora afirma que

existem dois estereótipos recorrentes para homens mexicanos ou latinos: “Amante

Latino” ou “Bandido”. No primeiro caso a autora afirma que:

‘Amantes Latinos’ retratam os homens hispânicos no papel de interesse

amoroso ou perseguidor romântico. Homens nesses papéis como Antonio

Banderas, Fernando Lamas e Mario Lopez são retratados como incrivelmente

suaves, sexy e habilidosos entre os lençóis. O personagem e, por extensão, o

ator, é objetificado. Essa identidade colocada sobre os homens hispânicos

pode aumentar a audiência e a popularidade dos programas de televisão, mas

os aprisiona dentro de seus papéis (AKINES, 2015: 21-22, tradução nossa).

Esse estereótipo apresenta uma versão mítica do homem de descendência latina,

que não corresponde com a realidade. Vende uma imagem de que homens latinos são

sedutores, românticos e por isso seriam rivais dos homens brancos num tipo de

competição entre animais para “acasalar” com a fêmea da espécie. Essa representação é

problemática, porém pode ser considerada menos nociva se comparado com a do bandido.

Akines afirma que as:

Representações de hispânicos como criminosos, traficantes de drogas e

delinquentes na televisão e no cinema persuadem o conflito entre grupos e a

discriminação. […] é um estereótipo particularmente perigoso porque

representa todos os hispânicos uniformemente como rebeldes à lei e ainda

perpetua a ideia de que eles devem ser temidos, evitados e, em última

instância, não merecedores de tratamento igual perante a lei (Ibid.: 22-23,

tradução nossa).

Estereótipos, de modo geral são representações que procuram estabelecer e

diferenciar um determinado grupo de outro, ou indivíduos de outro indivíduos. Ou seja,

criam um distinção com base em ideias pré-concebidas com objetivos diversos. Nem

todos os estereótipos são negativos, há alguns que são positivos, como por exemplo, os

que associam crianças com seres puros e inocentes. Entretanto, todos os estereótipos

citados são, evidentemente, negativos e nocivos, porque contribuem direta e

indiretamente para a desumanização de grupos étnicos, nativos ou estrangeiros, que

vivem nos EUA. O pesquisador Christoph Schubert coloca esses estereótipos negativos

com relação aos mexicanos em um perspectiva histórica, e afirma que:

8

[...] tais percepções negativas de pessoas de origem mexicana não foram

originalmente inventadas pelo entretenimento convencional, mas já eram

propagadas no século XIX por historiadores europeus-americanos. Em

consonância com a ideologia do Destino Manifesto, os mexicanos eram

tipicamente rotulados como “indolentes, imorais, hedonistas, cruéis,

vingativos e sanguinários” (Martínez 2001: 56). Assim, esta longa história de

estereótipos é uma evidência do fato de que os modelos de contexto

preconceituosos, devido à sua natureza dinâmica e socialmente adaptável (van

Dijk 2009: 66), podem ser transmitidos através de gerações e até séculos

dentro de uma dada cultura (2017: 45, tradução nossa).

Portanto, as produções midiáticas dos Estados Unidos não inventaram esses

estereótipos sobre os mexicanos, no entanto, são atualmente os responsáveis pela

perpetuação e difusão destes. O estereótipo do bandido é, evidentemente, o mais perigoso,

pois associa de forma generalizada toda uma comunidade a atividades que vão contra a

lei. Isso, além de legitimar visões e ações preconceituosas, que transformam latinos em

alvos de ódio e agressão, também criam justificativas para a implementação de políticas

de segregação e deportação9.

Vale destacar que o próprio Danny Trejo se tornou conhecido no cinema

representando esse estereótipo. Trejo tem uma longa lista de filmes no qual atuou como

coadjuvante no papel de diversos tipos de foras da lei – como traficantes, membro de

gangues, assassino etc. – que em algum momento era morto por algum desses heróis

brancos. De acordo Rodriguez esse passado de Trejo foi o que ajudou ele a reunir algum

dos atores conhecidos que participaram do filme. Nas palavras do diretor:

Começamos com Danny, que já atrai muita gente por si só, porque todo mundo

já trabalhou com Danny. Ele já fez mais de 200 filmes. Seagal já matou ele

muitas vezes. DeNiro já o matou com um tiro na cabeça. Então muita gente

pensou, “Nossa, Danny ganhou sua chance [em um papel grande]. Devemos

apoiá-lo”. O roteiro era divertido e muitas pessoas já ouviram falar do estúdio

que eu tenho em Austin, e era uma oportunidade de interpretar um papel

diferente do que normalmente interpretam, e as pessoas gostam disso. Então

conseguimos atrair muitas pessoas (RODRIGUEZ, 2010: s/p).

Com base nesse depoimento pode-se inferir que Danny Trejo construiu sua

carreira de ator fazendo papéis de bandido e que em grande parte dos filmes, seu

9 O presidente Donald Trump tem usado essas visões estereotipadas para justificar suas políticas xenófobas,

como a construção do muro na fronteira com o México e a deportação de imigrantes. Para maiores

informações sobre a forma como Trump tem usado estereótipos em sua retorica política ver: SCHUBERT,

Christoph. “Constructing Mexican Stereotypes: telecinematic discourse and Donald Trump’s campaign

rhetoric”. In: Critical Approches to Discurse Analysis across Disciplines, v.8, n.2, 2017, p.37-57.

Disponível em: <http://www.lancaster.ac.uk/fass/journals/cadaad/volume-8-2/> Acesso em: 22/06/2018.

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personagem, foi morto pelo protagonista. De modo geral os filmes de ação estadunidenses

seguem um modelo de roteiro no qual as narrativas apresentam um protagonista,

normalmente um agente da lei, que atua de forma extremamente violenta para deter algum

criminoso. Os protagonistas explodem coisas, torturam e executam sem o menor pingo

de remorso todos aqueles que se apresentam como inimigos; com isso transmitem a

mensagem que a melhor solução para o problema do crime é o extermínio de todos os

que estão contra a lei. O abuso da força e a ausência de procedimentos legais de prisão,

julgamento e condenação/execução são apresentados como coisas normais e necessárias

dado o grau de ameaça que os vilões representam. Essa mensagem se torna mais

problemática quando os “criminosos” a serem exterminados são associados,

indiscriminadamente, a minorias étnicas, como os mexicanos.

O roteiro de Machete, dentro de suas limitações, problematiza essa tendência

preconceituosa dos filmes de ação ao apresentar um mexicano como herói, e inverter o

estereótipo que associa mexicanos com crime. Na obra os criminosos são homens brancos

ricos, com projeção social e política que controlam meios de comunicação e a força

policial, e lucram com o narcotráfico e explorando a mão-de-obra imigrante. Apesar disso

o filme mantém a mensagem de que a violência é a melhor forma de lidar com esse tipo

de problema. Machete, é apresentado como uma vítima que procura se vingar de seus

algozes das formas mais violentas possíveis. Ele elimina seus adversários com diversas

armas, sua preferida é o facão, machete em espanhol de onde vem seu apelido.

Na narrativa as ações violentas do personagem são totalmente justificadas. Em

primeiro lugar são apresentadas como atos de autodefesa; Machete mata para não ser

morto. Em segundo lugar, o personagem é um (ex)policial e por isso é identificado como

alguém que tem uma certa legitimidade para fazer uso da força e deter aqueles que estão

identificados como agentes que vão contra a lei. Em terceiro lugar, os atos violentos de

Machete assumem uma conotação revolucionaria; o que no princípio do filme era uma

luta individual, acaba se tornando uma grande revolta da comunidade mexicana excluída

contra os supremacistas brancos.

A atuação revolucionária de Machete ocorre por meio de sua interação com a

personagem Luz (Michelle Rodriguez), que é a líder mítica She responsável por um grupo

chamado a Rede, que secretamente ajuda imigrantes recém chegados a conseguirem

10

moradia e emprego provisórios. Como o nome indica, a organização funciona como uma

rede de ajuda mutua, na qual mexicanos já estabelecidos ajudam os recém chegados como

uma forma de fortalecerem sua comunidade em território estrangeiro e terem mais força

para lutar contra a segregação e a violência cotidiana. Luz é um exemplo de personagem

feminina que foge dos estereótipos mencionados acima, ela é caracterizada como um

mulher forte e independente comprometida com sua comunidade. Além disso, ela é uma

guerrilheira, em seu quarto há fotos e recortes de jornais que indicam que antes de viver

nos EUA ela pertencia a um grupo armado revolucionário, aparentemente é o Exército

Zapatista Libertação Nacional (EZLN)10. No decorrer do filme ela volta ao seu papel de

guerrilheira, e ajuda a transformar Machete e um herói para sua comunidade, tirando ele

de seu projeto de vingança pessoal para entrar em uma luta pelo fim da opressão de seus

compatriotas.

Outra personagem feminina importante na trama é a policial da imigração Sartana

Rivera (Jessica Alba), que também é de origem mexicana. Sartana a princípio trabalha

investigando Luz e a rede que ela comanda, pois sua missão enquanto policial é

desarticular a rede e controlar a entrada de imigrantes ilegais. Ela acaba se afeiçoando a

Machete e no decorrer da trama o ajuda a conseguir provas contra Booth, McLaughin e

Von. Sartana é apresentada como uma chicana que acredita que nos EUA as coisas são

diferente, lá as leis são cumpridas, pois o governo não é controlado por narcotraficantes

como no México. Ela expõe isso em uma breve conversa com Machete dentro de um

carro, ela também conta pra ele como conseguiu se tornar investigadora, começou como

faxineira, depois tradutora, assistente, e investigadora. A fala da personagem é ouvida por

Machete que demonstra uma expressão de desdém e quando ela termina de falar ele diz:

“Parece que você continua colocando o lixo pra fora”. Do ponto de vista do protagonista,

Sartana não deixou de ser uma faxineira, a diferença é que agora ela trabalha “limpando”

das ruas do Texas aqueles que são considerados “lixos humanos”.

Ao se relacionar com Machete e desvendar a complexa rede de corrupção

envolvendo políticos estunidense, vigilantes e narcotraficantes, Sartana se dá conta que

10 As imagens passam muito rápido e mesmo pausando o filme não é possível identificar se de fato ela fazia

parte da EZLN. Mas dado a aparente idade da personagem, que no máximo tem seus 30 anos, a EZLN é o

único grupo revolucionário no México do qual ela poderia ter feito parte.

11

os EUA não são o paraíso onde as leis funcionam e de oportunidades iguais para todos

que ela acreditava. Próximo do final do filme ela faz um discurso aos imigrantes:

Me ousam! Sim, eu sou uma mulher da lei, e há muitas leis. Mas se não nos

oferecem justiça, então não há nenhuma lei! São linhas na areia escritas por

homens que ficam em suas costas. Por poder e ganância, os homens que

merecem ser eliminados. É hora de cruzar a linha e mostrar aos cabrones qual

é a verdadeira lei. Se não podemos cruzar a fronteira. A fronteira nos

cruzará11.

A fala da personagem indica que ela readquiriu os laços de identificação com

aqueles que perseguia e deportava. Ela mudou de lado e restabelece sua ligação perdida

com a comunidade mexicana. O discurso dela acaba estimulando os que a ouviam a se

engajarem em um combate armado contra as tropas paramilitares de Von. O final do filme

mostra esse grande embate entre mexicanos e supremacistas brancos. A luta é

extremamente violenta, há muitas mortes de ambos os lados, mas no final Machete e a

comunidade mexicana vence. Entretanto, a vitória foi apenas momentânea, não há uma

real mudança no status quo.

Os principais vilões do filme foram mortos: Booth foi morto por McLaughlin em

um desentendimento; Machete matou o narcotraficante Rogelio, Luz matou Von; e

McLaughlin acabou sendo confundido com imigrante ilegal e foi assassinado pelos

vigilantes da fronteira. No final Machete e Sartana ficam juntos, e o filme tem um

previsível final feliz. No entanto, a continuidade da ação do grupo de vigilantes da

fronteira indica que nada foi de fato resolvido, e a comunidade mexicana continua a mercê

de uma situação de opressão e segregação. Aparentemente, atos violentos do filme não

resolvem tudo, podem ser caracterizado como uma demonstração de força do comunidade

mexicana e chicana.

Portanto, Machete é um filme produzido para entreter, mas que apresenta de forma

não intencional, de acordo com a fala do diretor, uma mensagem política e social. Que

indica que a união da comunidade mexicana/chicana é uma possível saída para

conseguirem superar os problemas pelos quais têm passado nos EUA. Mas só isso não é

o bastante, é necessário que essa comunidade consiga demonstrar seu poder e conseguir

11 Essa cena ocorre por volta de 1h20 de filme na versão original para o cinema, ela foi traduzida a partir

de uma transcrição da obra disponível em: < https://www.springfieldspringfield.co.uk/movie_script.php?m

ovie=machete> Acesso em: 24/06/2018.

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que se aprovem leis que melhorem suas condições de vida. O filme também contribui

para a produção de um novo tipo de estereótipo de personagem mexicano, como herói e

não bandido. Apesar disso, o excesso de violência pode ser considerado um dos grandes

problemas do filme, pois acaba diluindo a mensagem contra a xenofobia e a exclusão

social.

Referências Bibliográficas

AKINES, Arielle L. Hispanic representations on media platforms: perspectives and

stereotypes in the meme, television, film, and on youtube. Texas: Texas State University,

2015 [dissertação de mestrado].

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<https://www.law.ox.ac.uk/sites/files/oxlaw/my-fellow-citizens.pdf> Acesso em:

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ser universal, 2010. Disponível em: <https://cinema.uol.com.br/veneza/ultimas-

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