MFL.Arthur Bispo do Rosário _1.mar_

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Maria de Fátima Lambert Arthur Bispo do Rosário - na travessia das margens (quando Y.Klein navegou o céu com Ulisses) 1 “Cravou-se o sal do mar no azul rendado, na cor azul.” 2 “O mar está sempre em movimento para não sair do lugar.” 3 O Mar é matéria privilegiada na filosofia do imaginário: exponencializada, sendo simulacro, doppelganger, vestígio do real ou asserção transposta para a ideia enxuta, cifrada, simbolizada ou cravada sobre si própria. Proporciona polissemias de índole diversa: estética, conceptual, antropológica, sócio-cultural, ideológica quanto poética… Quer no panorama português, quer na cena internacional destacam-se autores, casos paradigmáticos, inscritos numa sistematização que cabe aprofundar, focando-se na pregnância estética e poética do MAR & Cª Lda 4 ao longo de todo o séc. XX e, mais recente, no séc. XXI. Enfim, o mar pode encarnar ou protagonizar, na produção artística contemporânea, um lugar privilegiado - cumprido na travessia corporalizada em produções realizadas nas derradeiras décadas. Atenda-se à tipologia diversificada de tantos autores que o definem, subvertem, transfiguram, ausentam… Em particular, assinalem-se aqueles que, na sua obra, entranham o mar enquanto símbolo, alegoria, ideia e substância predominando na sua obra – caso de Arthur Bispo do Rosário [Japaratuba/Sergipe, 1909 (1911) – Rio de Janeiro, 1989]. 1 Para aquele que me descobriu A. Bispo do Rosário. 2 Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 207 3 Arnaldo Antunes, Antologia, V.N.Famalicão, Quasi, 2006, p.58 4 Referência ao título da conferência que realizei no Congresso Internacional sobre o Mar, Ílhavo, Museu Marítimo, 19 Out. 2007

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Maria de Fátima Lambert

Arthur Bispo do Rosário - na travessia das margens (quando Y.Klein navegou o céu com

Ulisses)1

“Cravou-se o sal do mar no azul rendado, na cor azul.”2 “O mar está sempre em movimento para não sair do lugar.”3

O Mar é matéria privilegiada na filosofia do imaginário: exponencializada, sendo simulacro, doppelganger, vestígio do real ou asserção transposta para a ideia enxuta, cifrada, simbolizada ou cravada sobre si própria. Proporciona polissemias de índole diversa: estética, conceptual, antropológica, sócio-cultural, ideológica quanto poética… Quer no panorama português, quer na cena internacional destacam-se autores, casos paradigmáticos, inscritos numa sistematização que cabe aprofundar, focando-se na pregnância estética e poética do MAR & Cª

Lda4 ao longo de todo o séc. XX e, mais recente, no séc. XXI.

Enfim, o mar pode encarnar ou protagonizar, na produção artística contemporânea, um lugar privilegiado - cumprido na travessia corporalizada em produções realizadas nas derradeiras décadas. Atenda-se à tipologia diversificada de tantos autores que o definem, subvertem, transfiguram, ausentam… Em particular, assinalem-se aqueles que, na sua obra, entranham o mar enquanto símbolo, alegoria, ideia e substância predominando na sua obra – caso de Arthur Bispo do Rosário [Japaratuba/Sergipe, 1909 (1911) – Rio de Janeiro, 1989].

1 Para aquele que me descobriu A. Bispo do Rosário. 2 Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 207 3 Arnaldo Antunes, Antologia, V.N.Famalicão, Quasi, 2006, p.58 4 Referência ao título da conferência que realizei no Congresso Internacional sobre o Mar, Ílhavo, Museu Marítimo, 19 Out. 2007

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“Nascido nessa vila cravada por sentenças seculares, ele gravaria de alguma forma a diversidade dos bordados, fardões e tecidos das datas festivas. Um dia, designado “rei dos reis” por seres luminosos, ele teceria o próprio manto, vermelho, salpicado de bordados, se faria coroar e protagonizaria a própria via sacra.5

Na primeira vez, em Madrid, meados de Fevereiro de 2006, aconteceu essa espécie de epifania

estética quando me foi dado ver obras suas na exposição colectiva “Mundos exteriores al descubierto”6 da Fundación La Caixa. Por essa ocasião, ficou a memória das peças, destacando-se sua singular lucidez de entre a cumplicidade a artistas procedendo de diferentes radicações artísticas e que atravessavam cronologicamente o séc. XX, com incidência especial em autores de Art Brut. Mais recentemente, na 30ª Bienal de São Paulo (2012), Arthur Bispo do Rosário foi um dos artistas brasileiros homenageados, tendo sido apresentadas 340 obras, significativas da enormidade de sua produção ao longo de cerca das 5 décadas de internamento num hospital psiquiátrico (Colônia Juliano Moreira). A propósito dessa homenagem, o curador da

Bienal, Luis Pérez-Oramas referia: “O que me interessa no Bispo do Rosário é que ele foi uma figura periférica, cuja obra está centrada na invenção da linguagem.” 7 Agora, e até inícios de fevereiro, no Pavilhão Preto (Museu da Cidade) Bispo do Rosário chegou aqui à cidade, depois de circa 80 peças terem sido expostas, entre 13 agosto e 30 setembro do ano que finda, no Victoria and Albert Museum/Londres. A mostra patente no Pavilhão Preto, encontra-se estruturada em 4 eixos, conforme refere o curador Wilson Lazaro, no press release: “Ventos”; “Universo”; “Movimento” e “Tempo”. Do espólio de Bispo do Rosário, cujo processo de catalogação foi supervisionado, em 1992, pelo crítico Frederico de Moraes, constam cerca de 802 obras – presumindo-se que o artista tenha produzido mais de 1000 obras. A “descoberta” do artista, quem com ele falou primeiro, foi o jornalista Samuel Wainer Filho, apresentando-o no programa “Fantástico” da TV Globo em 1980. Na sequência, dois anos depois, foi o crítico carioca Frederico de Moraes quem lhe organizou a primeira mostra individual, para o MAM/RJ. Nesse mesmo ano (1982) foi criado o Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, por iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde, onde se encontram reunidas as obras de Arthur Bispo do Rosário, de Antonio Bragança, Fernando Diniz, Gilmar Ferreira, Raphael Domingues e Carlos Pertuis…8

Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus.9

5 L. Hidalgo, Arthur Bispo do Rosário, senhor do labirinto, RJ, Rocco, 1996, citado por Marta Dantas in Arthur Bispo do Rosário – a poética do delírio, São Paulo, Ed. Unesp, 2009, p.19 6 Exposição comissariada por Jon Thomson: 26 abril-2 julho 2006, Whitechapel Gallery, Londres e de 25 julho-15 outubro 2006, Irish Museum of Modern Art, Dublı́n. 7 Entrevista realizada no Circulo de Bellas Artes, Madrid, 19.02.2011 in http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/877766-bienal-de-sp-vai-homenagear-bispo-do-rosario-em-2012.shtml 8 http://www.facebook.com/museubispodorosarioartecontemporanea /http://www.rioecultura.com.br/instituicao/instituicao.asp?local_cod=119 9 Manoel de Barros, Livro sobre o nada, RJ, Record, 1997, p.83

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O artista brasileiro foi marinheiro10, residindo nesse mar que terá devolvido a terra os seus objectos transfigurados, convertidos em objectos escultóricos, sendo pedaços de si mesmo. A sua criação concretizava-se, mediante uma metodologia intuitiva, fundada na apropriação singular sobre materiais que lhe eram facultados no hospício, onde viveu quase em reclusão, por períodos recorrentes. Assinale-se que, após ter deixado a marinha, afirmava ter sido pugilista durante esse tempo, não havendo certeza acerca do efectivo e/ou ficcional que essa afirmação transportava. Na cultura filosófica, a figura do marinheiro corresponde a uma idealização – mesmo uma celebração plausível - de alguém estando/sendo entre fronteiras, perpetuado na errância existencial, aquele que é: “… um aventureiro, um errante profissional, relacionado tanto ao ser quanto ao pensar.”11 Abandonado o mar (mas nunca abandonando o navio…), Bispo do Rosário trabalhou em casa da família Leone. Foi aí que a sua convicção mística se manifestou, na decisiva madrugada de 22 para 23 de Dezembro de 1938.

A missão do Bispo era representar, simbolicamente, as coisas do mundo para o dia do julgamento final. Porém, o símbolo não é equacionado ao objeto simbolizado, pois é resultado do trabalho psíquico do sujeito e, portanto, este tem a liberdade de seu uso.12

Bispo do Rosário, artista que representou oficialmente o Brasil na Bienal de Veneza de 1995, continuaria a relacionar-se com a família, durante estadias, mais ou menos esporádicas, intercaladas com o seu internamento na Colónia da Praia Vermelha. Entre um e outro local, foi construindo, estabelecendo para si, um mundo onde se entrecruzavam as lembranças da sua vida passada no mar aos desígnios da vidência divina. Já então, quanto se sabe, vestia um manto e benzia pessoas, à medida que ia acumulando os seus objectos/obras, realizando-os a partir dos mais diversos materiais. Foi decisivo o facto de, ao longo dos anos, Bispo do Rosário, ter conseguido manobrar os condicionalismos dramáticos do hospício, demonstrando argúcia e lucidez peculiares. Assim, se estabeleceu, e prevaleceu, o modo peculiar de gerar as obras, motores intrínsecos de um Universo que decidiu configurar mediante os seus sinais materializados em detalhes simbólicos. Assim, também, foi instituída a poética, sedimentada em pressupostos consignados a uma filosofia do imaginário – como se sabe sistematizada e argumentada.

“De que cor é o meu semblante?” Se a pessoa respondesse “Azul”, as portas do templo se abriam.”13

O seu caso viaja entre o diurno e o nocturno (seguindo Gilbert Durand), entre a visibilidade consubstancializadas nas coisas e a invisibilidade dos sentimentos. Na confluência de efabulações, fantasmasias, concreções e factos, rendeu-se guarda a uma produção que viria a influenciar artistas brasileiros de gerações que lhe são posteriores, caso de Leonilson ou Cabelo, entre outros. Perante as suas peças atinge-se um certo estado de “suspensão (de juízo)”, suspensão do mundo no tempo e no espaço - lembrando o conceito husserliano de redução (epoché), por paradoxal que pareça, em termos epistemológicos, pois a 1ª redução, a psicológica, se realiza quando tudo o externo se coloca entre parêntesis e a 2ª redução, a fenomenológica-

10 Alistou-se aos 15 anos na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Sergipe, em Aracaju, a 23 de Fevereiro de 1925. Navegou em diferentes navios: Dom Floriano, o destroyer Pará, Belmonte, caça-torpedeiros Piauí e Rio Grande do Norte e S. Paulo, um couraçado. Em1933 foi excluído da Marinha. 11 Marta Dantas, Op. Cit., p.23, onde desenvolve considerações a partir de Michel Maffesoli, “Exile et réintegration”, Sociétés – L’Imaginal, Paris, nº57, 1997, pp.5-26 12 Marta Dantas, Op. Cit., p.90 13 Bispo do Rosário citado in http://www.unesp.br/aci/jornal/207/divino.php

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transcendental supõe suspender a própria consciência do “eu”, assim como seus actos, exigindo o reflectir sobre o que carece ser reflectido. Pois que o juízo, assim como o tempo e o espaço nos são fundamentais, exigindo a cada uma, essa atitude única e particular que nos propicia a mais genuína experiência estética, até à emoção estética. O elemento predominante, de acordo com a Imaginação da Matéria (seguindo Bachelard), na obra de Bispo do Rosário centra-se na água, ainda que o ar seja igualmente convocado, exigindo, pois, a terra. Todavia, a meu ver, prevalece a água como primordial – ainda que lhe esteja agregada a cumplicidade dos outros dois elementos referidos, assimilando-os...

Na água tudo se dissolve, toda forma é desintegrada, toda história é abolida: nada do que existiu antes subsiste depois de uma imersão na água, nenhum perfil, nenhum indício, nenhum acontecimento. A imersão equivale, no plano humano, à morte, e no plano cósmico, à catástrofe que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial.14

Em L’Eau et les Rêves – essai sur l’imagination de la matière, G. Bachelard explicita as diferenças entre as águas turbulentas e as águas estagnadas, podendo avançar-se para uma afinidade das primeiras relativamente ao mar e das segundas por relação aos rios. O caso da água, como elemento matricial em Arthur Bispo do Rosário, remete para as águas turbulentas, quiçá em adequação à projeção do eu. O mar levou às profundezas do eu – sendo em si constituído por águas profundas - proporcionando no acto de mergulho, a analogia para a entrada descensional (talvez vertiginosa) no inconsciente. Assim se reconhece e atribui a intensidade da carga poética, toda força e fé que o artista quis, entendendo-se incumbido de missão como intermediário do divino na terra. Eis o porquê da perfectibilidade quase inexcedível do seu Manto da Apresentação, que iria envergar quando se levantasse perante o Senhor, no Juízo Final. A água é um símbolo natural (privilegiado) da pureza que Bachelard considera ser uma categoria fundamental. A pureza possui desígnios de síntese, simbolizando mesmo, se assim se quiser, os demais valores. Na fluidez dos mantos, na extensão fluida dos bordados, a água permite que os sentimentos flutuem e os sonhos possam convergir, por anuência de uma força centrípta, vinda das camadas mais profundas – inconsciente entendido, portanto como vidência do fundo do mar. No mar, os barcos: apresentados sem água e fora dela; sustentados em estruturas de madeira complexas; em quase sobreposição profusa de peças; associados a elementos específicos que se tornam símbolos secundários… e que, todavia, se podem autonomizar-se em prol de outros grupos “objectuais”. Os distintos grupos objectuais estipulam categorizações tridimensionalizadas que nos lembram as aglomerações de Arman, a serialidade (objectual quanto conceptual) de Marcel Broodthaers ou de Mel Bochner, que usufrui, no caso do artista brasileiro, de um peso acrescido pela subjectividade intuitiva, elevando-se até à maior potência. A necessidade de ordenar, catalogar, categorizar significa uma salvaguarda, corresponde a uma ancoragem psico-afectiva pois que o autor domina (reconhecendo) o que lhe é exterior, pelo acto de posse. O seu entendimento do designado por conceito de realidade articula-se ao de objecto, em duas vertentes das criações: os objectos transfigurados (em termos de recepção estética) e os próprios objectos susceptíveis de transfiguração. Quer num caso, quer noutro, as suas obras são, desde o acto inicial, algo de autónomo e único, com existência própria, constituídas por um suporte material específico. Evidencia-se o que seja a realidade da obra, consignada, cruzada à sua objectualidade. A obra terá uma existência física, uma existência artística, uma existência estética – como referiu Antoni Tàpies.15

14 Eliade apud Libis, in Marta Dantas, Op.cit., p.27 15 La realidad como Arte, Murcia, C.C.E.C.A., 1989, p.105

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Os objectos que Bispo do Rosário retirou do seu quotidiano, são recolocados (metaforicamente), neles intervindo e deixando a sua marca, são aqueles que nós também conhecemos, que nomeamos, que conceptualizamos mas fora da focagem habitual. Podemos tocá-los quando os possuímos, enquanto usufruem de um suporte visual/material/táctil. Podemos imaginá-los, quando alguém os evoca e refere, reconhecemo-los quando se nos deparam ou são representados em imagens. Estes objectos tornam-se objectos artísticos, propositadamente, quando correspondem a uma intencionalidade pulsional para gerar arte e sendo objectos estéticos, pois nos suscitam vivências estéticas profundas.

“UMA OBRA TÃO IMPORTANTE QUE LEVOU 1986 ANOS PARA SER ESCRITA DOCUMENTADA E FOTOGRAFADA POR HOMENS QUE DEDICAM SUAS VIDAS À PESQUISA E AO ESTUDO DA PASSAGEM DO FILHO DE MARIA SANTÍSSIMA NA TERRA E REALIZADA POR ARTISTAS QUE DERAM O SEU TALENTO PARA QUE ELA SE TORNASSE A MAIS RICA E BELA MENSAGEM SOBRE O REI DOS REIS A MAIOR OBRA”…16 “EU PRECISO DESTAS PALVARAS ESCRITA”.17

Os seus Estandartes são poemas alinhados numa estética quase regular que encima frase sobre frase e palavra se arrastando em cima de outra. Neles residem sequências de palavras, conformando frases, associações quase impensáveis de decifrar pois resultam da intimidade mais fechada do autor. Todavia, pela acção de uma acuidade aplicada, consegue-se desvelar parcialmente o porquê, as razões talvez plausíveis dessas coreografias escritas. Assim se cumpre um movimento que circunda os contornos do visível com o preenchimento dos estados de alma mais genuínos de Bispo do Rosário – eivados de um estado onde a ironia irrompe em pontuações afectuosas pela matéria. A matéria é palavra caligrafada pelo bordado, tornando-se uma extensão da sua pele, um “eu-pele”, no dizer de Didier Anzieu. Todas essas palavras, todos os objectos são unidades, abordados como excertos de auto-referencialidade, auto-retratos invadidos da passagem dos dias e desfiar os tecidos, num exercício afectivo de Penélope e Ulisses – pois que Bispo do Rosário era o mareante que não voltava, residindo sempre no mar do imaginário que resiste ao tempo e ao espaço. Frequentemente, se aborda ou aplica a designação de Atlas Mnemosine, na senda de Aby Warburg, em tempos que parecem ser apropriados ao acumulo de imagens, pedaços e detalhes de coisas…procurando-se, talvez, a explanação de ideias a plasmar em unidades mínimas, resíduos verídicos e convincentes. É uma poética também do miniaturista, do ínfimo que é, paradoxalmente, de máxima relevância e obrigação. A concentração, a convergência que mais genuinamente corresponde ao desenho de montagem de uma mostra contendo Bispo do Rosário, será isso mesmo: a ordem do compacto, da acumulação, de uma respiração sôfrega e de proximidade. Nessa concatenação de peças, o sangue de um agir pensado na compulsividade poderá fornecer ao espectador um sentimento – percentualmente significativo – do que fosse o querer de Bispo do Rosário. As peças, caso da exposição na Bienal de São Paulo deste ano, provocavam quase a exaustão, pela dificuldade em assimilar, elaborar tudo quanto emanava do “a estar visto”. Pois que é sempre necessária estar ciente de que a zona de contacto, a zona de compreensão das suas obras escapam aos descodificadores artísticos ou estéticos habituais. Há que passar para detrás do espelho, por assim dizer, transpor – num exercício de redução do pensamento – os contornos do imediato, do estereótipo convencionalizado, para aceder a outras plataformas e camadas de ocultamento.

16 Bispo do Rosário em transcrição de Marta Dantas, Op.cit., p.130 17 Idem, ibidem, p.134

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Aquilo que, em Marcel Duchamp, vale como ready-made ou seja objet-trouvé, em Bispo do Rosário é objecto afectivo, segredo visível e pulsional, pertença de um universo comunitário restrito e portador de uma carga dramática por situações vividas de modo irreversível. Não é roda de bicicleta invertida (Duchamp) mas a Roda da Fortuna, não é o urinol invertido (Duchamp) mas o Vaso Sanitário…

A elencagem dos objectos e dos artefactos alastra, inscrevendo-se em tipologias diversificadas. Mas o autor soube convocar, de forma poética, conteúdos literários específicos, caso de venham as Virgens em Cardumes e da Cama de Romeu e Julieta que em Bispo do Rosário ocuparam uma responsabilidade aproximada à da Noiva despida pelos seus celibatários de M. Duchamp… No primeiro caso, vemos bordado num tecido, esticado numa espécie de cavalete, um desenrolar de palavras e nomes entrecortados por formas decorativas e abstractas que são pontos de respiração tanto quanto marcas de mapeamento identitário. No segundo caso, trata-se de uma espécie de cama que é uma nave (vide um navio), composição que tem valência cenográfica, pois Bispo do Rosário tê-la-ia realizado para a encenação da peça de Shakespeare, onde ele assumiria o papel de Romeu e a psicóloga Rosângela Maria (que o acompanhou entre 1981 e 1982), seria Julieta. Entre escadas, carrinhos de criança, instrumentos agrícolas, ferramentas, brinquedos, plasmam-se as seriações para colocação de parede onde canecas, sapatilhas, galochas, talheres, botões, bacias e baldes de plástico, colares e adereços de bijuteria…se radicam assemblages que assumem o protagonismo antropológico (filosófico e psicanalítico) de regularizadoras do pensamento e dos afectos – como antes referi. Neste contexto, considerem-se por um lado as peças da “série” Semblantes, as jaquetas ou casacos de uniforme onde bordou palavras e nomes de pessoas, culminando no Manto da Apresentação, anteriormente referido. Por outro lado, atenda-se à Vitrine-ficheiro, onde afixou tiras de linóleo com o nome dos escolhidos. A questão da “nominação” é uma exigência primordial que demonstra as variantes e acepções que a escrita assegurou na sua produção existencial. Os objectos são, simultaneamente, conteúdos (enquanto obras de arte/objectos artísticos) e continente, pois todos e como totalidade configuram a personalidade de Bispo de Rosário, contentor em fé da Unidade plural. Assim, se olhe e entenda a Caixa dos escolhidos, objecto executado em madeira, contendo uma espécie de etiquetas e fichas com os nomes escritos daqueles que considerou os escolhidos. Os Dicionários de Nomes são peças-estandartes que possuem as identidades de quem traz na vida essas evocações que, num actuar que atinge a quase exaustão – lembrando a dádiva de sua vida a Deus, por parte dos iluministas e copistas medievais. São inventários pessoalizados do mundo que é cartografado nas suas emoções, parafraseando Giordana Bruno em Atlante

delle Emozioni. Bispo do Rosário quis fosse sua, a síntese nominal d’A história universal, lendo-se nas suas linhas finais: “…AS QUATRO PÁGINAS DE CAPAS DE CADA FASCICULO TAMBÉM SÃO COLECIONÁVEIS. NELA VOCÉ ENCONTRARÁ UMA AUTENTICA OBRA DE JESUS NA ARTE ONDE A VIDA É A AGONI[A]…” Eis como, retrocedendo a Xavier de Meistre, se podem aplicar a Bispo do Rosário estas palavras:

“…ele [o pintor] cria novos mares e negras cavernas ignotas ao sol: a seu mando, verdes arvoredos saltam do nada, o azul do céu reflecte-se nos seus quadros; conhece a arte de turvar os ares e de fazer rugir as tempestades.”18

(a continuar)

18 Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto (1794), Lisboa, & etc, 2002, p.32-33 (Cap. VII)