Mia couto

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Pensatempos, de Mia Couto:na outra margem da ficção, o papel

do escritor diante da realidade

SUSANNA RAMOS VENTURA

Universidade de São Paulo

ia Couto parece vivenciar situação similar à de muitos outros intelectuais afri-canos a partir do século XX – constantemente instados a intervir nas váriasesferas de poder e saber de seus países, que ajudam efetivamente a construir;chamados e convidados a discursar e opinar sobre os mais variados assuntos.Nos últimos anos, intensifica-se no discurso do autor moçambicano o clamorpela produção do que chama de “pensamento próprio”. Numa polêmica con-ferência, proferida em Maputo no início de 2005 e intitulada “Os sete sapatossujos”, o autor detém-se sobre este ponto:

Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemoster mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro.Falo de uma nova atitude, mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõeum conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venhodefendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se localiza na economia,mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Umpensamento que não resulte da repetição de lugares comuns, de fórmulas e de receitas jápensadas pelos outros. Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nos pensar-mos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros odesenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu territó-rio era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estuda-dos como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.1

1 “Os sete sapatos sujos – oração de sapiência”, de Mia Couto, está disponível em <http://

www.comunistas.info/mia.htm>. Acessado em 3 de outubro de 2005.

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Pensatempos – textos de opinião, publicado pela Editorial Caminho em 2005,permite a observação de um vasto conjunto de dezoito intervenções de MiaCouto que, reunidas em formato livro, mostram as várias faces de um autorque parece se dividir pelos papéis de ecologista, biólogo, escritor,moçambicano e africano. Dos textos reunidos no livro merecem especialatenção os ensaios “A fronteira da cultura”, “Uma palavra de conselho e umconselho sem palavras”, “Que África escreve o escritor africano?” e “Por ummundo escutador”.

“A fronteira da cultura” foi uma palestra pronunciada por Mia Couto naAssociação Moçambicana de Economistas, em agosto de 2003. Nela, o es-critor parte de sua experiência como docente da Universidade EduardoMondlane, em Maputo, e questiona a “pobreza” de Moçambique, preferindoconsiderar que o país “foi empobrecido”. Lança a hipótese de que a perpetu-ação e o agravamento desse estado podem advir da falta de idéias próprias,da erosão da criatividade e da ausência de debate produtivo. Novamente,Mia Couto aponta para a necessidade da fundação de valores próprios, epara o (re)conhecimento do país e de sua diversidade por seus cidadãos, emespecial os jovens com acesso à educação, que podem transformar-se deconsumidores em produtores de pensamento. No entanto, suas reflexões nãose restringem apenas a eles, uma vez que o afastamento da realidade local étributado a todo o estrato social para o qual fala o escritor: “A verdade é queainda mantemos um grande desconhecimento das dinâmicas actuais, dosmecanismos vivos e funcionais que esse tal povo inventa para sobreviver.Sabemos pouco sobre assuntos de urgente e primordial importância”(COUTO, 2005: 17-18). Como ocorre na maioria de suas reflexões sobreMoçambique na contemporaneidade, Mia Couto estende várias de suas con-siderações ao continente africano e trata das dinâmicas existentes entreMoçambique e África (particularizando alguns de seus países) e dasrotulações que país e continente, vistos como um bloco, costumam partilharno cenário internacional.

“Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras” – um dos ensaiosmais iluminadores para os estudiosos e leitores da obra ficcional de Mia Couto– surgiu como um texto elaborado para “crianças lusófonas”, participantesde um programa denominado “Ciência Viva”, em julho de 2004. Talvez pelacircunstância de se dirigir a crianças de vários países que falam o português

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e às quais provavelmente foi apresentado como escritor, Mia Couto tenha sevoltado para os territórios da criação literária e reafirmado pontos que seusleitores adultos costumam encontrar tanto na obra, como nas interpretaçõesdela proferidas pelo autor. A afirmação da importância da poesia (“um outromodo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moder-no nos ensinam” – COUTO, 2005: 45); a ligação – que passa pela “escuta”– com o universo encontrado na zona rural (“Este mundo rural, distante doscompêndios científicos, não tem menos sabedoria que o mundo urbano ondevivemos. Estar disponível para escutar nessa linha de fronteira [...]” – COUTO,2005: 46); sua maneira de compor uma obra literária (“O meu segredo [...] édeixar-me maravilhar por histórias que escuto” – COUTO, 2005: 46); e,finalmente, a importância conferida às histórias ouvidas, consideradas se-mente da criação poética, remetem ao conteúdo do “Texto de abertura” aVozes anoitecidas, de 1986. Após o desvendamento de seu universo ficcional,Mia Couto parte para situar Moçambique: “minha terra”, “um país pobre”,“onde nasci e vivo” (COUTO, 2005: 48), habitado por pessoas com váriosmodos de ver o mundo e com sua sabedoria própria, advindos ou não daescrita. A bela finalização do ensaio une os universos da ciência e da poesia,atribuindo ao conhecimento o poder de nos fazer “mais companheiros dascriaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo” (COUTO,2005: 49).

O ensaio “Que África escreve o escritor africano?” foi originalmente umdiscurso, pronunciado em agradecimento a um prêmio literário destinadoaos melhores romances escritos na África em 2002, e toca em vários pontosda atuação de Mia Couto como escritor e como cidadão. O primeiro temalevantado, o da luta do escritor por um mundo mais humano e democratiza-do, vem acompanhado da afirmação da responsabilidade do intelectual di-ante da defesa da democracia e do respeito aos direitos humanos. A coloca-ção do escritor como criatura de fronteira parece espelhar, para os leitores daobra ficcional do autor, toda uma galeria de personagens que normalmenterealizam a ligação entre os mundos da escrita e da oralidade – como Kindzu,de Terra sonâmbula, o tradutor de Tizangara, de O último voo do flamingo, eMariano, de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Mia Couto arrolapara os escritores o papel da criação de um pensamento próprio capaz deavaliar de dentro o país, seu tempo e os conceitos que lhes foram impostos

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(como o de “africanidade”). A mestiçagem é outro conceito que vem sendotrabalhado por Couto, tanto na literatura quanto nas intervenções sociaisque realiza. Na literatura, por exemplo, personagens como Surendra Vala(Terra sonâmbula) se consideram homens “sem raça”. Nesse ensaio, como emvários outros do livro, Mia Couto fala sobre a importância da aceitação dadiversidade e da superação de conceitos ultrapassados, como o de pureza –legado colonial que, relido na contemporaneidade, dá margem a novas e equi-vocadas buscas essencialistas, como a que pretende encontrar uma “essên-cia” africana. Outra tensão aparece com freqüência na ficção do autor: a quecoloca em lados opostos, e não conciliáveis, “tradição” e “modernidade”.

Mia Couto coloca-se, aqui, simplesmente como “escritor”, acima de redu-ções que são impostas aos escritores africanos, a quem se pedem provas de“africanidade” impensáveis para autores dos outros continentes. No entan-to, assume-se como produtor de pensamento e fala em nome dos escritoresmoçambicanos, que cumprem o compromisso ético de ajudar a sonhar umpaís melhor. Mia Couto equilibra, assim, a posição de escritor que recusarótulos redutores com a de escritor que, africano e moçambicano, toma parasi as dificuldades que tais “facetas identitárias” carregam consigo.

Finalmente, em “Por um mundo escutador”, Mia Couto reforça, a partir dotítulo, os laços que o ligam ao universo oral, ousando sonhar com um “mundoque escuta as vozes diversas, em que todos são, em simultâneo, centro e peri-feria” (COUTO, 2005: 155), uma resposta inovadora à globalizaçãodesumanizadora que, via de regra, denuncia. Nesse pequeno ensaio, escritopara um livro organizado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, MiaCouto volta a questionar a imagem que os países pobres fazem de si mesmos,deformada por padrões historicamente legados juntamente com juízos de va-lor hoje ultrapassados. Além disso, traz novamente o questionamento das “iden-tidades”, necessariamente múltiplas e mestiças em países que, comoMoçambique, foram colonizados no passado e fazem parte no presente doelenco de países mais pobres do mundo. Segundo Mia Couto, são esses paísesos que precisam olhar para si mesmos de maneira corajosa, saindo da posiçãode eternas vítimas para assumir a responsabilidade da construção de socieda-des capazes de contemplar e acomodar sua diversidade humana e cultural.

Pensatempos – textos de opinião dá ao leitor a oportunidade de se aproximarda atuação social do escritor Mia Couto, bem como permite um conheci-

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mento mais aproximado da realidade de Moçambique na contemporaneidade.Para a grande maioria de leitores, que chega aos ensaios depois de conhecerparte da obra ficcional de Mia Couto, a leitura se transforma numa estradade caminhos que se bifurcam e aprofundam, uma vez que os diálogos e rela-ções entre os ensaios e a obra ficcional constituem-se num campo rico dereflexões e questionamentos, em que se ampliam e alimentam as possibilida-des de interpretação.

Referência Bibliográfica

COUTO, Mia. Pensatempos – textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005. 157 p.

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