Michael Baigent - Os Manuscritos de Jesus rev

288
http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Transcript of Michael Baigent - Os Manuscritos de Jesus rev

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Michael BaigentMichael BaigentMichael BaigentMichael Baigent

OOss

MM AANNUUSSCCRRII TTOOSS

DDEE JJEESSUUSS

RReevveellaannddoo oo mmaaiioorr sseeggrreeddoo ddaa hhiissttóórriiaa

Título original: The Jesus PAPERS

Tradução de Regina Lyra

OOrreellhhaa ddoo ll iivvrroo:: O que pensar diante da descoberta de um documento jurídico romano, de 45

depois de Cristo, em que um certo Jesus ben Josef, imigrante da Galiléia e proprietário de

terras condenado por Pôncio Pilatos, faz declarações surpreendentes a respeito de sua natureza

divina? Será que tudo o que sabemos sobre Jesus está errado? Será que a biografia do símbolo

maior do imaginário ocidental é muito mais ampla do que nos fazem acreditar?

Em Os manuscritos de Jesus, Michael Baigent, um dos autores do consagrado 0

Santo Graal e a linhagem sagrada, faz revelações impressionantes sobre a vida e a

crucificação desse homem que marcou a história do Ocidente. Apesar da celebração e

veneração seculares ao redor da figura de Jesus, Baigent assegura que a sua trajetória de vida

e as circunstâncias que o levaram à morte foram extremamente mitificadas.

Historiador da religião e um dos maiores especialistas no assunto, Baigent teve

acesso a arquivos ocultos, registros de sociedades secretas, documentos maçônicos e coleções

particulares de comerciantes de antigüidades e de seus clientes para analisar o clima político

em que Jesus nasceu e cresceu, examinando não apenas os conflitos entre romanos e judeus,

mas a luta entre as diferentes facções do movimento zelote, partido judeu de oposição aos

romanos. Da compreensão do processo político da época vem a necessidade de observarmos

Jesus sob um prisma completamente outro.

Baigent aborda ainda as migrações da família de Jesus e sua subseqüente

exposição a outras culturas, das quais assimilou influências já no início da vida que o

distinguiram perante seus contemporâneos. Outro ponto muito interessante das revelações

deste livro é a identificação das inconsistências nos relatos da maioria dos historiadores

daquela época, incluindo Josefo, Plínio e Tácito.

A descrição pormenorizada de lugares conhecidos por sua importância nos

acontecimentos desse período histórico, explorados e estudados há mais de vinte anos por

Baigent, também oferece ao leitor uma série de detalhes que o ajudam a compor o mapa das

revelações. Todas essas evidências sobre a vida e a morte de Jesus, reunidas e divulgadas

neste livro, podem reformular a trajetória do pensamento ocidental.

Após 22 anos da publicação de O Santo Graal e a linhagem sagrada, Michael

Baigent refaz e aprofunda a trajetória de suas pesquisas, refletindo sobre outros aspectos

obscuros da vida de Jesus, transmitidos e consagrados há vários séculos.

SSUUMMÁÁRRIIOO

Introdução

I. Os documentos escondidos

II. O tesouro do padre

III. Jesus, o rei

IV. O filho da estrela

V. Criando o Jesus da fé

VI. O maior temor de Roma

VII. Sobrevivendo à crucificação

VIII. Jesus no Egito

IX. Os mistérios do Egito

X. A iniciação

XI. Vivenciando a fonte

XII. O reino dos céus

XIII. Os manuscritos de Jesus

XIV. Negociando cultura

Cronologia

Bibliografia

Agradecimentos

IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

28 DE MAIO DE 1291, TERRA SANTA: Acre, cidade portuária do reino

Cruzado, jazia em ruínas. Apenas a grande torre costeira dos cavaleiros

templários continuava de pé.

Durante sete semanas o exército árabe de Khalil al-Ashraf, o jovem

sultão do Egito, cercou e, depois, atacou a cidade. A última capital do reino

cristão estava arrasada. Nas ruas, antes abarrotadas de guerreiros e nobres,

mercadores e pedintes, viam-se agora prédios desmoronados e cadáveres.

Naquela época violenta, não havia qualquer constrangimento quanto aos

"prejuízos indiretos": quando uma cidade era tomada, a carnificina e o roubo

eram livremente admitidos.

Os árabes estavam determinados a varrer quaisquer vestígios dos

cruzados para o mar; os cruzados, por sua vez, também nutriam a firme

determinação de sobreviver, com a esperança, embora remota, de serem

capazes de ressuscitar seu reino. Esta esperança, porém, se desvaneceu com

a queda de Acre. Para além da fumaça e das ruínas ensangüentadas da

cidade, apenas a enorme torre dos templários se erguia intocada.

Amontoados em seu interior se encontravam os que haviam sobrevivido até

ali, juntamente com cinqüenta ou sessenta cavaleiros — os remanescentes

do que já fora um dia uma portentosa força guerreira, um exército de peso,

no reino cristão de Jerusalém. Eles aguardavam. Nada mais havia a fazer.

Ninguém viria salvá-los. Um punhado de navios desistiu de aportar na

cidade, um punhado mais de cavaleiros e civis fugiu. Os sobreviventes

esperavam a chegada do fim, e durante a semana seguinte conseguiram

rechaçar contínuos ataques.

Tamanha havia sido a intensidade da luta que mesmo os

templários se desesperaram. Quando o sultão acenou com a possibilidade de

deixar partir incólumes todos os cavaleiros e civis caso abandonassem o

castelo, o marechal templário, que organizava a resistência, concordou.

Permitiu a entrada no castelo de um grupo de guerreiros árabes liderados

por um emir e hasteou o estandarte do sultão. Os indisciplinados soldados

árabes, contudo, começaram a molestar mulheres e crianças. Furiosos, os

templários mataram todos eles e derrubaram o estandarte do sultão.

O sultão encarou o fato como traição e preparou sua brutal

retaliação: no dia seguinte, reapresentou sua oferta de salvo-conduto. Mais

uma vez, o oferecimento foi aceito. O marechal dos templários, acompanhado

de vários cavaleiros, partiu ao encontro do sultão, sob a promessa de uma

trégua, a fim de negociar os termos do acordo. Antes, porém, que a comitiva

chegasse até o monarca, sob os olhos dos defensores que guarneciam as

muralhas do castelo templário, seus integrantes foram presos e executados.

Não houve por parte do sultão nenhuma outra oferta de rendição pacífica, e

ainda que tivesse havido, os templários não cogitariam aceitá-la: a luta iria

até o fim.

Naquele malfadado dia, os muros do castelo dos templários,

solapados pelos árabes, começaram a ruir: os árabes iniciaram seu ataque.

Dois mil guerreiros mamelucos vestidos de branco invadiram a torre dos

templários através de uma brecha na muralha. A estrutura, abalada por

semanas de investidas, cedeu. Com um estrondo repentino, as pedras

rolaram, umas sobre as outras, esmagando e sepultando tanto atacantes

quanto defensores. Cessado o movimento e assentada a poeira, o silêncio

anunciou que estava tudo acabado. Após quase duzentos anos, o sonho de

um reino cristão na Terra Santa virará cinzas.

Até mesmo os templários abandonaram então seus poucos castelos

remanescentes e se retiraram da terra que lhes havia roubado cerca de vinte

mil confrades ao longo de 173 anos de luta quase sempre acirrada.

Os templários há muito me fascinavam. E não apenas seu papel

como exército profissional e sua grande, embora amplamente ignorada,

contribuição para o esboço do nosso mundo moderno — eles inauguraram o

poder do dinheiro sobre a espada, por meio de cheques e transferências

financeiras seguras de cidade para cidade e de país para país; amenizaram o

fosso entre a aristocracia dominante e os camponeses explorados, o que

ajudou a abrir espaço para uma classe média. Uma aura de mistério sempre

os envolveu. Como peculiaridade, ao menos alguns deles aparentemente

seguiam um tipo de religião que ia de encontro à de Roma. Tudo indicava

que suas fileiras abrigavam a heresia, mas pouco se sabia a esse respeito.

Eu estava curioso e decidido a buscar respostas. Comecei a pesquisar o lado

misterioso dos cavaleiros templários.

Um dia, eu visitava uma livraria em Londres quando um amigo,

que por acaso era o dono da loja, me abordou e disse que havia alguém que

eu precisava conhecer, alguém que dispunha de informações que talvez me

interessassem sobre os templários. E foi assim que conheci meu colega

Richard Leigh. Acabamos escrevendo juntos sete livros nos vinte anos

seguintes.

Sem dúvida, Richard estava de posse de informações interessantes

— dados que lhe haviam sido passados por Henry Lincoln. Richard e eu logo

nos demos conta de que devíamos unir forças. Poucos meses depois, Henry

chegou à mesma conclusão. Formamos um time e, como dizem por aí,

arregaçamos as mangas. O resultado, seis anos depois, foi o best-seller O

Santo Graal e a linhagem sagrada.

Nossa hipótese central juntava os cruzados e as lendas do Graal —

dois temas raramente associados pelos historiadores. Descobrimos que por

trás de ambos havia uma linhagem importante, uma dinastia: a linhagem

dos reis judeus, a Casa de Davi.

As lendas do Graal combinam elementos da antiga tradição paga

celta com elementos de misticismo cristão. O símbolo de um vaso ou cálice

de abundância que assegura a fertilidade perene da terra derivou dos

primeiros, enquanto dos últimos vieram as descrições do Graal em termos de

experiência mística. No entanto, o significativo para nós era o fato de as

lendas enfatizarem que o cavaleiro do Graal, Perceval ou Parsifal, pertencia

"à linhagem mais sagrada", uma linhagem que recuava na história até

Jerusalém e a cruz. Logicamente, tratava-se de uma referência à Casa de

Davi. Esse dado escapara a todos que antes de nós haviam estudado o

Graal.

Argumentamos que o termo para Graal, Sangraal ou Sangreal, que

se tornou San Graal ou San Greal — Santo Graal —, formava um jogo de

palavras. O enigma se resolvia com uma divisão ligeiramente diferente, Sang

Real, ou seja, "sangue real", que alude, em nossa opinião, à Casa de Davi.

Realmente, para a época medieval, esta era uma "linhagem altamente

sagrada".

Não resta dúvida de que a Casa de Davi existia no sul da França

no início do período medieval. Trata-se de um fato histórico.

No processo de fundação de seu reino, Carlos Magno nomeou um

de seus companheiros próximos, Guillem (William), conde de Toulouse,

Barcelona e Narbonne, para governar um principado espremido entre dois

reinos inimigos, o reino cristão de Carlos Magno e o emirado islâmico de Al

Andalus; em outras palavras, Espanha islâmica. Guillem, o novo príncipe,

era judeu.1 Pertencia, também, à Casa de Davi.2

O viajante judeu do século XII Benjamin de Tudela, no relato de

sua jornada da Espanha ao Oriente Médio, revelou que o príncipe à testa da

nobreza regente de Narbonne era "um descendente da Casa de Davi

conforme consta em sua árvore genealógica"3. Até mesmo a Encyclopaedia

Judaica menciona esses "reis judeus" de Narbonne — mas ignora sua

linhagem.4 Naturalmente, a ninguém aprazia perguntar de onde teria

surgido essa linhagem mencionada por Benjamin de Tudela. Com efeito,

como viríamos a descobrir, a situação era bastante complicada.

Ao examinar as genealogias desses príncipes da Casa de Davi no

sul da França, concluímos se tratar dos mesmos ancestrais de um dos

líderes da Primeira Cruzada, Godfroi de Bouillon, que se tornou rei de

Jerusalém.5 Essa Cruzada contou com quatro grandes líderes nobres. Por

que apenas a Godfroi de Bouillon foi oferecido o trono, e por que essa oferta

teria partido de um misterioso e ainda desconhecido conclave de eleitores

que se reuniram em Jerusalém para decidir o assunto?6 A quem se

sujeitariam esses orgulhosos senhores, e por que razão? Em nossa opinião, o

sangue prevaleceu sobre os títulos de nobreza; Godfroi reivindicou seu

direito hereditário como membro da Casa de Davi.

E qual a origem desta linhagem? Ora, Jerusalém, Jesus e o

produto — como defendemos em O Santo Graal e a linhagem sagrada — de

um casamento entre Jesus e Maria Madalena.7 Na verdade, ponderamos,

não seriam as bodas de Caná o casamento de Jesus e Maria Madalena? Isso,

no mínimo, explicaria por que ele foi "chamado" ao casamento e lhe coube a

responsabilidade sobre o vinho! É evidente que a publicação do nosso livro

detonou uma controvérsia mundial.

"Sr. e Sra. Cristo", escreveu um crítico, buscando uma tirada

inteligente. E, em termos de tirada, foi bem-sucedido.

Isso foi em 1982. Em 2002, Dan Brown publicou seu romance O

código Da Vinci, em parte inspirado nas teorias do nosso livro. Mais uma vez,

a mídia fez a festa. O "casal Cristo" voltou às manchetes. Ficou claro que

ainda havia apetite para a verdade por trás das lendas dos Evangelhos.

Quem foi realmente Jesus? O que se esperava dele? O mundo ainda hoje

anseia por clareza quanto a Jesus, ao judaísmo, ao cristianismo e aos

acontecimentos que tiveram lugar dois mil anos atrás.

Desde a publicação de O Santo Graal e a linhagem sagrada, tive 22

anos mais para refletir sobre essas questões, para pesquisar mais e para

reavaliar a história e as implicações desses acontecimentos. Em outras

palavras, mais duas décadas de pesquisas extras sobre o que O código Da

Vinci explora. Pretendo refazer a minha longa jornada de 22 anos rumo à

descoberta, levando os leitores comigo por estes caminhos — alguns que não

chegaram a lugar nenhum e outros que abriram grandes possibilidades, mas

todos eles caminhos que conduzem a uma compreensão mais ampla da vida

do homem que chamamos de Jesus, vivida por ele conforme prova a história,

não como a religião diz que ele a viveu.

Os dados apresentados aqui precisam ser lidos no ritmo de cada

leitor. Os componentes da minha explicação devem ser ponderados no tempo

de cada leitor. Isso é de extrema importância, pois quando crenças

enraizadas são questionadas, como acontece aqui, é preciso ser capaz de

justificar cada passo dado ao longo do caminho, de modo a saber por que os

demos. Dessa forma, podemos ter certeza de nossas conclusões finais. Uma

leitura questionadora, contemplativa, nos permite absorver novas

descobertas de uma maneira que nos permita fazer nossas próprias escolhas

e cristalizar nossas próprias crenças. Se você está pronto para esta jornada,

vamos a ela.

NOTAS 1 Zuckerman, A Jewisb Princedom in Feudal France, p. 372-374. 2 Baigent, Leigh, Lincoln, O Santo Graal e a linhagem sagrada, p. 349-355. 3 Zuckerman, A Jewish Princedom in Feudal France, p. 58. 4 Encyclopaedia Judaica, vol. 12, p. 827. 5 Baigent, Leigh, Lincoln, O Santo Graal e a linhagem sagrada, p. 224-233. 6 Runciman, A History of the Crusades, vol. I, p. 292. Runciman comenta: "Desconhece-se quem eram

os eleitores." 7 Baigent, Leigh, Lincoln, O Santo Graal e a linhagem sagrada, p. 290-298.

CCAAPPÍÍTTUULLOO II

OOSS DDOOCCUUMMEENNTTOOSS

EESSCCOONNDDIIDDOOSS

MEU TELEFONE TOCOU. Eram umas dez horas da manhã. Lembro do

sol salpicando a parede à minha frente. Ela brilhava: um dia perfeito para se

estar numa cidadezinha do interior da Inglaterra.

— Você pode pegar o próximo trem para Londres? Não pergunte

por quê.

Grunhi em silêncio: engarrafamentos. Poucos táxis. Barulho,

poluição, metrôs apinhados. Um dia passado dentro de escritórios ou me

locomovendo entre eles, o sol uma lembrança distante.

— Claro — respondi, sabendo que o meu amigo jamais me faria um

pedido desses se não fosse importante.

— E dá para trazer uma máquina fotográfica?

— Claro — respondi novamente, um pouco curioso.

— E dá para escondê-la?

Agora, sim, eu era todo ouvidos. O que estava acontecendo? Meu

amigo fazia parte de um pequeno e discreto grupo de negociantes

internacionais, intermediários e compradores de antigüidades valiosas —

nem todas detentoras dos documentos necessários à sua comercialização no

mercado formal.

Pus uma máquina e algumas lentes numa pasta de aparência

banal, acrescentei um bocado de rolos de filme e pulei no carro para o

percurso até a estação.

Encontrei meu amigo na porta de um restaurante numa famosa

rua de Londres. Ele era americano, mas estava acompanhado de um

jordaniano, dois palestinos, um saudita e um perito inglês de uma

importante casa de leilões.

Todos me aguardavam e, após rápidas apresentações, o perito da

casa de leilões nos deixou, aparentemente preferindo não se envolver no que

viria a seguir. O restante de nós caminhou até um banco próximo, onde

fomos rapidamente conduzidos, pela entrada e ao longo de um corredor

curto, a um pequeno escritório privativo com janelas de vidro fosco.

Quando nos agrupamos em torno de uma mesa no centro da sala,

trocando amenidades inconseqüentes, os funcionários do banco entraram

carregando dois baús de madeira, que depositaram à nossa frente. Cada baú

tinha três cadeados. Ao entrar com o segundo, um dos funcionários

comentou ostensivamente, como que para "ficar registrado":

— Não sabemos o que estes baús contêm. Não queremos saber o

que há neles.

Trouxeram, então, um telefone e saíram, trancando a porta pelo

lado de fora.

O jordaniano fez uma ligação para Amã. Pela breve conversa que se

seguiu (em árabe), concluí que uma autorização fora solicitada e concedida.

O jordaniano, então, apresentou um molho de chaves e abriu os baús.

Eles estavam abarrotados de folhas de papelão que se encaixavam

na medida exata. Em cada uma delas, notei horrorizado, havia centenas de

pedaços de textos em papiro presos de qualquer maneira ao papelão por

pequenas tiras de fita adesiva transparente. Os textos eram escritos em

aramaico ou hebraico e junto a eles havia envoltórios de múmias egípcias

contendo inscrições em demótico — a forma escrita dos hieróglifos egípcios.

Eu sabia que era comum esses envoltórios trazerem textos

sagrados, e concluí que os donos desse carregamento deviam ter

desenrolado, no mínimo, uma ou duas múmias. Os textos em aramaico ou

hebraico se assemelhavam, à primeira vista, aos manuscritos do mar Morto

que eu já vira antes, embora fossem, em sua maioria, escritos em

pergaminho. A coleção era um tesouro de documentos antigos. Fiquei

extremamente intrigado e cada vez mais ansioso para dar conta da sua

existência a alguns especialistas e, talvez, lhes garantir acesso a ela.

Quando as folhas de papelão foram retiradas dos baús, me

informaram que os proprietários pretendiam vender os documentos a um

governo europeu não revelado. O preço era de três milhões de libras

esterlinas. Os presentes queriam que eu tirasse uma série representativa de

fotos para serem mostradas ao pretenso comprador, de modo que o processo

de venda desse mais um passo em direção a um final feliz. Então percebi que

governo era provavelmente o interessado. Mas guardei meus pensamentos.

Ao longo da hora seguinte, conforme os baús eram esvaziados, me

indicavam algumas páginas e, em pé numa cadeira, com a escassa luz

filtrada pelos vidros foscos das janelas, tirei fotos em preto-e-branco. No

total, gastei seis rolos de filme de 35mm — mais de duzentas fotografias.

No entanto, cada vez mais aumentava o meu temor de que esses

documentos simplesmente desaparecessem no limbo de onde haviam

emergido. Que fossem comprados por alguém que se sentasse em cima deles

durante muitos anos, como acontecera com os textos Nag Hammadi e os

manuscritos do mar Morto. Pior que isso: eu temia que, sem um comprador,

eles simplesmente sumissem de novo nas entranhas mais sombrias e

profundas do banco, juntando-se a outros documentos valiosos sabidamente

trancados em cofres e baús no mundo todo.

Como tirara muitas fotos e ninguém as tinha contado, calculei que

fosse capaz de esconder, no mínimo, um dos rolos de filme, de modo a

produzir ao menos algum tipo de prova da existência dessa coleção.

Consegui colocar um deles dentro do meu bolso.

Quando a sessão de fotos se encerrou e as folhas de papelão foram

recolocadas nos baús, entreguei um punhado de filmes usados a um dos

proprietários. Ele os olhou em minha mão.

— Onde está o outro filme? — perguntou na mesma hora. Ele tinha

contado.

— Outro filme? — falei reticente, tentando passar a impressão de

inocência distraída, enquanto apalpava ostensivamente os bolsos.

— Ah, tem razão. Está aqui.

Mostrei o filme que acalentara a esperança de guardar para mim.

Fiquei irritado e bastante deprimido. Queria realmente ter algum tipo de

prova do que vira.

Àquela altura, meu amigo percebeu o que eu pretendia e, numa

manobra inspirada, veio em meu socorro.

— Onde o senhor vai revelar estes filmes? — indagou

inocentemente.

— Numa loja de fotos — respondeu o homem segurando os rolos.

— Não é muito seguro — replicou o meu amigo. — Olhe, o Michael

foi fotógrafo profissional. Ele pode fazer a revelação de tantas fotos quantas

forem necessárias. Assim não haverá riscos.

— Boa idéia — concordou o homem, e me devolveu os filmes.

Evidentemente, copiei um conjunto completo de fotos para mim.

Depois, combinei de encontrar o jordaniano — que, aparentemente, era o

responsável — para almoçar, ocasião em que lhe entregaria as fotos e os

negativos. Durante o almoço, perguntei se seria possível mostrar os textos a

alguns especialistas para serem examinados e identificados. Talvez isso

ajudasse a aumentar o valor da coleção. Pedi permissão ao jordaniano para

consultar alguns peritos — muito discretamente, é claro. Depois de pensar

um pouco, ele concordou que era uma boa idéia, mas deixou bem evidente

que nem eu nem os peritos poderíamos falar da coleção com ninguém mais.

Vários dias depois, levei todas as fotos ao Departamento Asiático-

Ocidental do Museu Britânico. Eu já lidara com o departamento antes, ao

longo das pesquisas para um dos meus livros, From the Omens of Babylon, e

confiava em seus especialistas não apenas para obter uma opinião honesta,

como também em relação à confidencialidade do assunto.

O perito com quem eu lidara anteriormente não estava, e um de

seus colegas veio até a ante-sala falar comigo. Contei-lhe resumidamente a

história dos baús de documentos e falei das minhas fotos. Ressaltei que se

tratava de uma empreitada comercial para os proprietários e que eu ficaria

muito grato pela sua discrição, já que grandes somas de dinheiro costumam

causar problemas igualmente grandes. Pedi que ele encontrasse alguém

competente no assunto para dar uma olhada nas fotos e ver se eram

importantes. Caso fossem, eu faria o possível para facilitar o acesso do

especialista interessado à coleção inteira. Entreguei-lhe, então, as

fotografias.

Semanas se passaram sem nenhuma notícia do Museu Britânico.

Comecei a me preocupar. Finalmente, após um mês, voltei ao museu e subi

até o Departamento Asiático-Ocidental. Lá conheci outro especialista.

— Há um mês eu trouxe umas fotos que tirei de uma grande

quantidade de textos em papiro. Não tive nenhuma notícia desde então. Sabe

se alguém teve tempo de dar uma olhada nelas?

O especialista me olhou sem entender.

— Que fotos?

Contei novamente a história para fazê-lo entender. Ele me pareceu

distraído, desinteressado. Não tinha ouvido falar nada sobre a entrega

dessas fotos ao departamento e, de qualquer maneira, essa não era a sua

área. Provavelmente haviam sido entregues a um outro perito que passara

algum tempo trabalhando no museu e agora já não estava mais lá.

— Para onde ele foi? — perguntei.

— Não sei — foi a sua resposta. — Acho que para Paris. Lamento

quanto às suas fotos.

Nunca mais soube delas. Sem um recibo, nada havia a fazer.

Felizmente, eu ainda tinha em casa algumas cópias de baixa qualidade, de

modo que podia provar que a coleção realmente existia, mas nem de longe

dar a alguém uma idéia da extensão do que ela pudesse conter. Um perito,

examinando as minhas poucas fotos remanescentes, identificou a maior

parte dos textos como registros de transações comerciais.

Dez ou doze anos mais tarde, vinha eu descendo uma rua

margeada de lojas caras numa grande cidade ocidental quando vi um dos

palestinos que conheci no banco naquele dia. Aproximei-me e perguntei se

ele se lembrava de mim.

— É claro — respondeu. — Você era o colega do... — e me deu o

nome do meu amigo.

— Sabe — comecei —, eu sempre quis saber que fim levaram

aqueles textos antigos que fotografei naquele dia no banco. Foram vendidos,

afinal?

— Não ouvi mais falar deles — foi a sua resposta imediata, que não

me convenceu. Em seguida, dando a impressão de estar muito ocupado,

desculpou-se elegante e educadamente e seguiu seu caminho.

Não posso dizer que fiquei surpreso, pois passei muitos anos

vivendo num mundo onde as chaves cruciais para os mistérios do nosso

passado estão, simultaneamente, disponíveis e fora de alcance. Como

veremos, esses baús de documentos não constituem o único exemplo de

provas importantes que permanecem, torturantemente, inalcançáveis.

CCAAPPÍÍTTUULLOO II II

OO TTEESSOOUURROO DDOO PPAADDRREE

Ao LONGO DA MINHA CARREIRA, troquei correspondência com outros

historiadores e pesquisadores quanto à verdade por trás da história oficial,

mas algumas cartas exigem mais atenção que outras. Esta certamente

exigiu.

Deixe-me avisá-lo de que o "tesouro" não envolve ouro e pedras preciosas,

mas um documento que contém prova irrefutável de que Jesus estava

vivo no ano 45 d.C. As pistas deixadas pelo bom cura nunca foram

entendidas, mas fica claro pela sua leitura que uma substituição foi

efetuada pelos extremistas zelotes no caminho para o local da execução.

O documento foi vendido por uma soma muito vultosa e escondido ou

destruído.

Richard Leigh, Henry Lincoln e eu simplesmente não sabíamos o

que fazer com esse bilhete. Ele vinha de um respeitado e preparadíssimo

vigário da Igreja Anglicana, o reverendo dr. Douglas William Guest Bartlett.

Por "bom cura" Bartlett se referia ao abade Béranger Saunière, o pároco do

pequeno vilarejo montanhoso de Rennes le Château, aninhado aos pés dos

Pireneus.

Saunière foi nomeado pároco da cidade em 1885. Sua renda anual

era de aproximadamente dez dólares. Adquiriu fama, que perdura até hoje,

por ter obtido, no início da década de 1890, de fontes misteriosas, por razões

igualmente misteriosas, uma fortuna considerável.1 A chave para tal riqueza

foi uma descoberta feita por ele durante a reforma da igreja, em 1891. O

"tesouro" encontrado, porém, segundo Bartlett, não era a reluzente mina que

supusemos a princípio (talvez o tesouro perdido do Templo de Jerusalém),

mas algo muito mais extraordinário — documentos relativos a Jesus e,

assim, à própria base do cristianismo. À época, isso nos pareceu incrível

demais para levar a sério, motivo pelo qual ficou "arquivado".

Certamente havíamos desconfiado que algo estranho se passava

nos sombrios corredores da história, mas enquanto trabalhávamos em O

Santo Graal e a linhagem sagrada, íamos descobrindo todo tipo de dados

inesperados e altamente controversos que acabariam por nos distanciar das

preocupações dessa carta, de modo que a pusemos de lado para um exame

futuro. A sobrevivência de Jesus simplesmente não era, então, um tema

importante para nós, já que nos concentrávamos na possibilidade de antes

da crucificação ele ter tido ao menos um filho — ou deixado a esposa

grávida. Por isso, se a vida de Jesus se encerrara ou não na cruz parecia

irrelevante para o nosso relato de seu casamento, da sobrevivência de sua

linhagem ao longo da história européia e a simbólica expressão da mesma

nas lendas do Santo Graal — lendas que constituem a espinha dorsal do

nosso best-seller O Santo Graal e a linhagem sagrada, publicado pela

primeira vez em 1982.

Contudo, intrigados com essa carta ousada, porém resoluta, vira-e-

mexe voltávamos a ela. "O que", nos perguntávamos, "constituiria uma

'prova irrefutável' de que Jesus sobrevivera e muito tempo depois ainda

continuava vivo?" "O que, com efeito", pensávamos, fundindo nossos miolos,

"constituiria prova irrefutável de qualquer coisa na história?" Documentos,

supúnhamos, mas que tipo de documento estaria livre de dúvidas?

Os documentos com maior grau de credibilidade, em nossa

opinião, seriam aqueles de aparência mais mundana — os que não

servissem a quaisquer interesses, não fundamentassem quaisquer

argumentos; um rol, talvez, o equivalente histórico a uma lista de compras.

Um documento jurídico romano, por exemplo, declarando de forma objetiva:

"Alexandria, quarto ano de Cláudio (45 d.C): consta que Jesus ben Josef,

imigrante da Galiléia, julgado e condenado em Jerusalém por Pôncio Pilatos,

é hoje proprietário reconhecido de um lote de terra além dos muros da

cidade."

Mas tudo parecia meio fantasioso.

Depois que O Santo Graal e a linhagem sagrada foi publicado e a

poeira baixou, mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, resolvemos

visitar o autor da carta e ver que impressão teríamos dele. Precisávamos

saber se era confiável ou não. Ele morava em Leafield, Oxfordshire, um

condado rural da Inglaterra que abriga cidadezinhas idílicas com casas de

pedra e cujo centro é a antiga cidade universitária de Oxford. O reverendo

Bartlett residia em um dos vilarejos situados na região mais montanhosa, no

noroeste do condado. Falamos com ele em seu jardim, sentados num banco

de madeira. Foi a trivialidade do cenário que tornou o tópico da nossa

conversa ainda mais notável...

— Na década de 1930, eu morava em Oxford — contou-nos ele. —

Na mesma rua, morava um "figurão" da Igreja Anglicana, o cônego Alfred

Lilley, com quem eu me encontrava todos os dias.

Alfred Leslie Lilley (1860-1948) havia sido, até se aposentar em

1936, cônego e deão da catedral de Hereford. Era um especialista cm francês

medieval e por esse motivo consultavam-no com freqüência quando se

tratava de obras de difícil tradução.

As conversas diárias aproximaram Lilley e Bartlett, e o cônego

acabou confiando em Bartlett o bastante para lhe contar uma história

extraordinária. No início da década de 1890, um jovem ex-aluno seu pediu-

lhe que viajasse a Paris, para o seminário de Saint-Sulpice, a fim de ajudar

com sua perícia na tradução de um estranho documento, ou documentos —

Bartlett já não se lembrava com exatidão —, oriundo de uma fonte que

jamais foi divulgada. Em Saint-Sulpice, havia um grupo de especialistas cuja

tarefa era examinar todos os documentos que ali chegavam — tarefa

realizada, Lilley suspeitava, por encomenda de um cardeal do Vaticano. Os

especialistas pediram ajuda na tradução porque não conseguiam entender

direito o texto. Talvez por lhes parecer tão audacioso, supunham estarem

equivocados.

"Eles não sabiam o quanto era impudentemente verdadeiro",

lembrou-se Bartlett de ter ouvido de Lilley, e explicou:

— Lilley disse que eles não teriam vida longa e feliz se certas

pessoas descobrissem esse texto. Tratava-se de um assunto muito delicado.

Lilley riu só de pensar no que aconteceria quando os padres franceses

falassem disso a alguém. Ele não fazia idéia do fim que eles [os documentos]

levaram, mas achava que haviam sido trocados por muito dinheiro, indo

parar em Roma.

Na verdade, na opinião de Lilley, a Igreja acabaria por destruí-los.

Lilley estava convencido da autenticidade deles. Eram

extraordinários e viravam do avesso muitas de nossas idéias a respeito da

Igreja. Em sua opinião, o contato com o material conduzia à não-ortodoxia.

Lilley não sabia com certeza de onde os documentos haviam surgido, mas

acreditava que um dia tivessem passado pelas mãos dos hereges cátaros no

sul da França, nos séculos XII e XIII, embora fossem muito mais antigos.

Estava convencido, ainda, de que em seguida à extinção dos cátaros, os

documentos haviam sido mantidos na Suíça até as guerras do século XIV,

quando foram levados para a França.

— Já no final da vida — explicou Bartlett —, Lilley chegou à

conclusão de que não havia nada nos Evangelhos de que se pudesse ter

certeza; perdera toda a convicção da verdade.

Henry e eu ficamos pasmos. Bartlett não era nenhum bobo. Não só

era um ministro da Igreja com mestrado em uma das faculdades de Oxford,

como também se formara em física e química pela Universidade de Gales e

em medicina também por Oxford. Pertencia ao Royal College of Surgeons e

ao Royal College of Physicians. Chamá-lo de preparadíssimo era pleonasmo.

Sem dúvida nutria admiração por Lilley, além de respeitar profundamente

seu saber, e não tinha qualquer dúvida de que o amigo descrevera com

precisão o documento, ou os documentos, que vira em sua viagem a Paris.

Precisávamos estudar Lilley para ver se conseguíamos alguma informação

adicional quanto ao material sobre Jesus, e se era possível definir quem no

seminário de Saint-Sulpice e no Vaticano pudesse ter demonstrado

interesse.

A chave para entender o cônego Lilley foi o fato de ele se considerar

um "modernista" e ser autor de um livro sobre o movimento que exerceu

extrema influência no início do século XX. Os modernistas queriam rever as

afirmações dogmáticas dos ensinamentos da Igreja à luz das descobertas da

ciência, da arqueologia e do academicismo crítico. Muitos teólogos

começavam a se dar conta de que sua confiança na validade histórica dos

relatos do Novo Testamento era imerecida. William Inge, deão da catedral de

São Paulo, por exemplo, recebeu certa vez a incumbência de escrever sobre a

vida de Jesus. Recusou, dizendo que não havia, nem de longe, indícios

seguros para escrever o que quer que fosse sobre ele.

Ao longo do século XIX, cada vez mais o Vaticano ia se tornando

anacrônico. Os Estados Papais se estendiam de Roma a Ancona e até

Bolonha e Ferrara, e o papa governava qual um potentado medieval. A

tortura constituía prática regular nas mãos dos anônimos guardas da

Inquisição em suas prisões secretas. Os condenados nos tribunais

pontifícios viravam remadores nos galeões ou eram exilados, presos ou

executados. Um patíbulo aparentando bastante uso ocupava o centro da

praça de todas as comunidades. Por todo lado espreitavam espiões, e a

repressão era a regra; a modernidade vinha sendo mantida ao largo — até

mesmo as estradas de ferro foram proibidas pelo papa, que temia que as

viagens, bem como a comunicação entre os indivíduos, causassem danos à

religião. Tudo isso acontecia contra o pano de fundo de uma Europa onde a

norma era pressionar por mudanças sociais sob a forma de movimentos

libertários contra o poder despótico e de encorajamento do governo

parlamentarista.

A despeito da ignorância proposital, o mundo exterior ia

adentrando as fronteiras fragilizadas dos domínios papais. As mudanças

começavam a parecer inevitáveis. A filosofia política democrática, uma

crescente consciência social e a florescente crítica aos textos bíblicos e suas

incoerências faziam as convicções religiosas baquearem sob a pressão. Além

disso, para horror dos católicos conservadores, o poder político do papa

também estava diretamente ameaçado. Tratava-se de um problema real: em

1859, logo depois de uma guerra entre a Áustria e a França, na qual as

forças católicas dos Habsburgos sofreram uma derrota, a grande maioria das

terras papais foi anexada ao recém-criado reino da Itália. O papa Pio IX,

sumariamente rebaixado pelos acontecimentos, governava agora apenas

Roma e um fragmento do campo à sua volta. E as coisas pioraram: em 21 de

setembro de 1870, até mesmo esse pequeno patrimônio lhe foi tomado pelos

soldados italianos. Ao papa restou tão-somente o enclave murado da Cidade

do Vaticano, de onde até hoje seus sucessores continuam a governar.

Pouco antes da perda de Roma, o papa, num aparente gesto de

desespero, convocara um Concilio Geral de Bispos para sustentar seu poder.

No entanto, ao reunir esse Concilio, o papa reconhecia implicitamente as

limitações de tal poder. A questão de quem segurava as rédeas há muito

constituía uma ferida aberta no Vaticano. A incômoda verdade era que a

legitimidade do papa não derivava do apóstolo são Pedro, dois mil anos

atrás, como ele afirmava, mas de uma fonte bem mais mundana e terrena:

um Concilio de Bispos que se reunira em Constance no início do século XV,

época em que havia três papas — uma trindade de pontífices unidos

unicamente por um desprezo mútuo —, todos afirmando simultaneamente

possuir autoridade suprema sobre a Igreja. Essa situação ridícula fora

resolvida pelos bispos, que declararam — declaração esta reconhecida — ser

detentores de autoridade legítima. Dali em diante, os papas mantiveram a

autoridade graças aos bispos. Conseqüentemente, os primeiros dependiam,

sempre que desejassem empreender uma mudança significativa, da

aprovação dos últimos.

O papa Pio IX foi, porém, o que pretendeu fazer a maior das

mudanças: estava decidido a ser declarado infalível, atribuindo-se assim um

poder inédito sobre todos os fiéis. Sabia, contudo, que seria obrigado a usar

de astúcia para alcançar tal objetivo. Por esse motivo, o Concilio Vaticano I

foi convocado no final de 1869. Sua verdadeira finalidade foi mantida em

segredo por um pequeno grupo de homens poderosos que incluía três

cardeais, todos eles membros da Inquisição. Não houve qualquer menção à

infalibilidade papal em nenhum dos documentos que abordavam os objetivos

e as diretrizes do concílio. Enquanto isso, os bispos se reuniram e se viram

sujeitos a táticas coercitivas. As votações não eram secretas, e o preço da

crítica logo ficou evidente: a perda dos estipêndios do Vaticano era o mínimo

que um bispo dissidente podia esperar.

Após dois meses, o tema da infalibilidade papal foi apresentado ao

Concilio. A maioria dos bispos presentes ficou surpresa, chocada e

indignada. Alguns líderes eclesiásticos que abriram a boca para falar contra

a manobra foram "calados" com prisão domiciliar, enquanto outros fugiram.

Um deles foi fisicamente agredido pelo próprio papa. Apesar da intimidação,

apenas 49% dos bispos votaram a favor da infalibilidade papal, mas em 18

de julho de 1870 declarou-se que a maioria havia votado a favor, e o papa foi

declarado infalível. Apenas dois meses mais tarde, soldados italianos

entraram em Roma e confinaram o recém-infalível papa aos limites da

Cidade do Vaticano; uma reação divina, talvez, à sua falta de humildade.

Naturalmente, o desejo do papa e de seus seguidores era que a

doutrina da infalibilidade protegesse o Vaticano contra os desafios que vinha

enfrentando, em especial o criticismo bíblico e as descobertas arqueológicas.

O objetivo dos modernistas, por outro lado, era precisamente o

oposto. Eles buscavam revisar o dogma da Igreja à luz de suas descobertas

acadêmicas. Os indícios históricos produzidos por suas pesquisas vinham

ajudando a desenredar os mitos criados e perpetuados pela Igreja,

principalmente o mito sobre Jesus Cristo. Os modernistas igualmente se

opunham com veemência à centralização do Vaticano. O movimento

modernista era, na época, particularmente forte em Paris, onde o diretor do

seminário de Saint-Sulpice de 1852 a 1884 foi um teólogo irlandês chamado

John Hogan. Hogan aceitava de bom grado e encorajava os estudos

modernistas no seminário. Com efeito, o cônego Lilley o considerava a "maior

influência individual" sobre o que se tornou o modernismo.2 Muitos alunos

de Hogan também compareciam a palestras do especialista em assiriologia e

hebraico, padre Alfred Loisy, que dirigia o Instituto Católico em Paris e era

um modernista famoso.

A princípio, o Vaticano aparentemente não se incomodou. O novo

papa, Leão XIII (eleito em 1878 e falecido em 1903), confiava o bastante na

força da posição da Igreja para permitir que os especialistas tivessem acesso

aos arquivos do Vaticano, sem se dar conta do que viriam a descobrir nem

das doutrinas da Igreja que tais descobertas acabariam pondo em xeque. Ele

não tardou a perceber que esse academicismo representava uma grave

ameaça aos próprios fundamentos da Igreja. Pouco antes de morrer, em

1903, o papa Leão XIII tomou providências para reparar os danos. Em 1902,

criou a Pontifícia Comissão Bíblica para supervisionar o trabalho de todos os

especialistas em teologia e para assegurar que eles não se afastassem dos

ensinamentos da Igreja. A Comissão possuía estreito vínculo com a

Inquisição, tendo sido dirigida pelo mesmo cardeal.

O perigo, aparente para todos, foi sucintamente expresso pelo

padre Alfred Loisy: "Jesus proclamou a vinda do Reino, mas o que veio foi a

Igreja."3 Loisy, entre outros modernistas, acreditava que os estudos

históricos realizados durante aquele período tornavam impossível a

manutenção de vários dogmas da Igreja: dogmas como a fundação da Igreja

por Jesus, seu nascimento de uma virgem e sua filiação divina — em

essência, a própria divindade de Jesus.4

O principal modernista britânico, George Tyrell, se opunha à

incansável autoridade autocrática do Vaticano. "A Igreja, para ele, não tinha

por que ser um Instituto da Verdade oficial."5 Claro que este era exatamente

o papel que ela considerava seu.

Os modernistas levantavam uma pergunta incômoda e

impertinente: o que fazer quando a história ou a ciência apontarem para

uma conclusão que contradiga as opiniões da Igreja? A reação da Igreja

diante desses desafios diretos era retrair-se mais ainda atrás de seus muros

de dogmas: todas as dúvidas foram sanadas decretando-se que a Igreja

estava sempre certa, sob quaisquer circunstâncias, a respeito de tudo.

Em 1892, o sucessor de Hogan em Saint-Sulpice deu ordem para

que os alunos parassem de assistir às palestras do modernista Alfred Loisy.

No ano seguinte, Loisy foi demitido do cargo de professor no Instituto

Católico e acabou excomungado. De fato, o Vaticano suspendeu ou

excomungou muitos modernistas, incluindo seus livros no Index. Em 1907,

o papa Pio X emitiu uma condenação formal contra o movimento inteiro, e

em 1° de setembro de 1910 exigiu-se de todos os padres e professores

católicos um juramento contra o modernismo. E apenas para garantir que o

mundo lá fora com suas constantes mudanças não interferisse em suas

delicadas suscetibilidades teológicas, os alunos dos seminários e das

faculdades de teologia foram proibidos de ler os jornais.

No entanto, antes que o véu descesse em 1892, a atmosfera no

seminário de Saint-Sulpice havia sido bastante intelectual. O centro era um

local de aprendizado, estimulado pela curiosidade e pela descoberta. Um

fluxo regular de novas traduções e descobertas arqueológicas contribuía

continuamente para uma enorme sensação de entusiasmo. Foi dentro desse

cenário que o cônego Lilley recebeu o pedido para ir a Paris examinar o

documento, ou os documentos, que continha prova irrefutável de que Jesus

estava vivo em 45 d.C. Ao testemunhar esse grau de estudo analítico, Lilley

deve ter se perguntado por quanto tempo mais o Vaticano seria capaz de

manter sua rígida postura dogmática. Ele deve ter desconfiado de que logo

haveria uma reação contra tais descobertas e a porta para a livre pesquisa

seria fechada. Conforme relatou a Bartlett, Lilley acreditava que o

documento em que trabalhou tinha ido parar no Vaticano, quer para ser

trancado para sempre, quer para ser destruído.

Quando ouvimos pela primeira vez a história sobre Jesus estar vivo

em 45 d.C, nos lembramos de uma curiosa declaração na obra do

historiador romano Suetônio. Ao falar do imperador romano Cláudio (41-45

d.C), ele diz que "porque os judeus em Roma provocavam tumultos

contínuos instigados por Chrestus, ele os expulsou da cidade"6.

Os acontecimentos sobre os quais ele escreve ocorreram por volta

de 45 d.C Esse "Chrestus" evidentemente era um indivíduo presente em

Roma na época. Ficamos imaginando: será que esse indivíduo era "Cristo"?

Não podemos esquecer de que "Christos" era a tradução grega, e "Messias", a

transliteração grega do aramaico meshiha, ele próprio derivado do hebraico

ha-mashiah, "o (rei) ungido". O "Messias" grego, assim, vem do termo

aramaico, o idioma comumente falado na época, e não do hebraico.

Haveria um indivíduo messiânico ativo em Roma? E se assim

tosse, por que os judeus vinham se revoltando? Estariam atacando os

romanos encorajados por esse agitador ou estariam atacando o agitador? Ou

seria possível, algo ainda mais estranho, que esse agitador tivesse jogado

homem contra homem na comunidade judaica para provocar uma revolta

entre eles? Suetônio não fornece qualquer informação quanto aos objetivos

desses insurgentes nem diz contra quem eles se opunham. Mesmo assim,

nos perguntamos se Jesus, como Paulo, poderia ter ido parar em Roma.

Suetônio escreveu seus relatos no início do século II d.C. e durante

alguns anos foi o secretário-mor do imperador romano Adriano (117-138).

Era o curador oficial dos arquivos romanos e o responsável pelas bibliotecas.

Obviamente, tinha acesso irrestrito a todos os documentos imperiais e por

isso seu relato pode ser considerado preciso. Quem, na verdade, foi

"Chrestus"? Ninguém sabe.

Saint-Sulpice recebeu um outro visitante naqueles dias

estimulantes do início da década de 1890: o abade Saunière, o pároco de

Rennes le Château. A história — que se revelou implacavelmente resistente

ao exame — relata a descoberta de documentos por Saunière durante as

reformas de sua igreja. Depois de mostrar ao seu bispo esses documentos,

Saunière recebeu ordens de viajar para Paris, onde se reuniu com peritos do

seminário de Saint-Sulpice. Isso ocorreu em 1891 ou por volta desse ano.

Saunière, ao que tudo indica, passou três semanas em Paris. Ao voltar, teve

acesso a uma considerável fortuna, suficiente para a construção de uma

nova estrada morro acima até a cidade, para a reforma e pintura da igreja e

para a construção de uma villa confortável e moderna, com um jardim

ornamentado e uma torre que lhe servia de escritório.

Seriam os documentos de Saunière os mesmos vistos e traduzidos

por Lilley? A riqueza repentina de Saunière seria derivada do fato de tê-los

descoberto? O reverendo Bartlett não tinha dúvidas. Se isso fosse verdade,

com certeza explicaria uma imagem curiosa que ainda hoje resiste na parede

da igreja em Rennes le Château — uma imagem que revela algo realmente

muito herético sobre as crenças do abade Saunière.

Embora a igreja de Rennes le Château seja pequena, a decoração

em seu interior lembra uma fantasia gótica. mais condimente com um

castelo na Bavária do rei Ludovico II do que com uma cidadezinha

montanhosa nos Pireneus. Ali abundam imagens e cores. Investigadores

gastaram anos tentando decifrar as muitas pistas que Saunière introduziu

no simbolismo. Uma imagem, porém, é óbvia — uma imagem que não exige

grande conhecimento sobre ocultismo ou simbolismo para ser entendida.

Como todas as igrejas católicas, esta possui em suas paredes as

Estações da Via-Sacra em relevo. Trata-se de uma seqüência de imagens

retratando as etapas do caminho de Jesus até o Gólgota após seu

julgamento. Destinam-se à contemplação e à oração, funcionando como uma

espécie de mapa da ressurreição para os fiéis. As que ornam as paredes da

igreja em Rennes le Château são feitas de um gesso padrão fornecido por

uma empresa em Toulouse e podem ser encontradas em várias outras

igrejas. Ao menos as imagens em gesso são idênticas. Diferem, contudo, em

um ponto importante: as de Rennes le Château são pintadas e, na verdade,

de forma bastante curiosa. Uma imagem, por exemplo, mostra uma mulher

com uma criança ao lado de Jesus; a criança veste uma roupa de xadrez

escocês. Existem outras igualmente curiosas, mas a mais estranha de todas

é a Estação XIV. Tradicionalmente, esta é a última do conjunto, retratando

Jesus sendo posto no túmulo antes da ressurreição. Em Rennes le Château,

a imagem mostra o túmulo e, bem diante dele, três figuras carregam o corpo

de Cristo. O cenário ao fundo, porém, revela que é noite. No céu, atrás das

figuras, brilha uma lua cheia.

A lua cheia já alta no céu significa que a Páscoa teve início. Trata-

se de algo relevante, pois nenhum judeu tocaria em um cadáver após o início

da Páscoa, já que isso o tornaria ritualmente impuro. Essa variante da

Estação XIV sugere dois pontos importantes: que o corpo que as figuras

carregam ainda está vivo, e que Jesus — ou seu substituto na cruz —

sobreviveu à crucificação. Além disso, sugere ainda que o corpo não está

sendo posto no túmulo, mas, sim, tirado dele, secretamente, na calada da

noite.

É importante observar que as Estações da Via-Sacra em Rennes le

Château foram pintadas sob a supervisão direta do abade Saunière. Ele

parece estar nos dizendo que sabe — ou, ao menos, acredita — que Jesus

sobreviveu à crucificação. Teria descoberto isso em sua visita a Saint-

Sulpice? Terá encontrado lá o mesmo grupo de especialistas que convocou o

cônego Lilley a Paris? Se aceitarmos a história como nos foi relatada, a

resposta a ambas as perguntas será, provavelmente, afirmativa.

Seja qual for a resposta — nem de longe estamos ainda em posição

de chegar a conclusões definitivas —, a Estação XIV, conforme retratada na

parede dessa igreja, funciona como um eloqüente testemunho de uma

informação herética secreta que um dia esteve em mãos de um padre do

interior da França.

Pareceu-nos absurdo supor que Saunière nutrisse essa crença

sozinho. Achamos que certamente deveria haver outras pistas em outras

igrejas, documentos e nos escritos daqueles cujas convicções fossem as

mesmas. Encontrá-los acaso validaria essa história? Precisávamos saber

como a crucificação poderia ter sido conduzida de forma a que Jesus, ou seu

substituto, tivesse conseguido sobreviver. E precisávamos saber qual o

significado disso. Concluímos que era hora de passar em revista os relatos

bíblicos do acontecimento a partir dessa nova perspectiva.

NOTAS 1 A história de Béranger Saunière e sua misteriosa fortuna é contada em O Santo Graal e a linhagem

sagrada, de Baigent, Leigh e Lincoln, p. 3-18. Agora sabemos que a fortuna derivou de duas fontes: a

primeira foi a esposa Habsburgo de Henri de Chambord, o pretendente ao trono da França durante o

século XIX. Saunière recebeu a soma por uma tarefa específica, que ele executou. Tendo provado da

riqueza, Saunière embarcou então num exercício mais venal para obter dinheiro: tráfico de missas —

simonia —, um crime na Igreja católica. Na década de 1980, vários membros da organização francesa

de segurança interna — a DGSE — nos permitiram acesso a uma cômoda de madeira pertencente a

Saunière, que continha um livro-caixa onde eram registrados diariamente seus negócios. Os

documentos que vimos provaram que ele traficou missas ao menos do final dos anos 1890 até o início

da década de 1900. 2 Lilley, A.L. Modernism. A Record and Review, p. 35. 3 Transcrito em Hasler, A.B. How the Pope became infallible, p. 246. 4 Ibid., p. 247. 5 Ibid., p. 247. 6 Suetônio, The Twelve Caesars, Claudius, p. 202.

CCAAPPÍÍTTUULLOO II II II

JJEESSUUSS,, OO RREEII

A IDÉIA DE UMA CRUCIFICAÇÃO arranjada não é nova; até o Corão fala

disso.1 Mas como, exatamente, poderia ser armada uma crucificação

fraudulenta? Segundo os relatos dos Evangelhos, todos, com exceção de

seus discípulos, queriam a morte de Jesus, ou ao menos pretendiam tirá-lo

do caminho. As autoridades judias e as multidões vociferantes reunidas na

rua queriam livrar-se dele, assim como os romanos, embora sem se envolver.

Segundo a interpretação habitual dos relatos evangélicos — que já

acompanhamos em inúmeros filmes —, Jesus foi julgado em público, diante

dos "judeus", e a multidão aos gritos pediu a sua crucificação. Pilatos lavou

as mãos sobre o assunto, Jesus teve de carregar sua cruz até o local da

execução em meio aos curiosos que lhe queriam mal e, finalmente, foi

pregado a uma cruz entre dois ladrões no local de execuções públicas

chamado Gólgota — o "Lugar do Crânio".

Se tivesse tentado fugir, fosse durante o julgamento ou na jornada

até o Gólgota, o fato seria imediatamente notado. Um bocado de voluntários

estaria disposto a trazê-lo de volta ao caminho para o calvário. Os

Evangelhos nos informam que os romanos haviam abdicado de qualquer

responsabilidade sobre ele, não mais se importando com o que viesse a lhe

acontecer. Das autoridades judias, porém, representantes dos sacerdotes

saduceus, não se pode dizer o mesmo; queriam vê-lo morto. Os que faziam

parte da pequena comunidade de discípulos de Jesus eram impotentes para

protegê-lo e nada podiam fazer senão assistir passivamente ao desenrolar da

tragédia. Assim, se a sua fuga não servia aos interesses das autoridades

romanas nem judias, que dispunham de motivo e poder suficientes para

promovê-la, é válido supor que tal fuga seria impossível. No entanto, existem

sugestões suficientes nos relatos bíblicos para nos fazer pensar. A situação

não é tão cristalina como a apresentam.

Em primeiro lugar, um dado importante, historicamente a pena de

crucificação se destinava aos crimes políticos. Segundo os Evangelhos,

contudo, Pilatos entregou Jesus à multidão, que então exigiu aos gritos a

sua execução por ele ser um dissidente religioso. Os culpados por esse tipo

de crime recebiam a pena de morte por apedrejamento. A crucificação era

uma punição romana, reservada para a sedição, não para a excentricidade

religiosa. Essa contradição sozinha já demonstra que os Evangelhos não

abordam o assunto com veracidade. Seria sua intenção esconder de nós

alguns aspectos vitais dos acontecimentos? Culpar as pessoas erradas,

talvez?

Jesus foi, podemos ter certeza, sentenciado à morte devido a

crimes políticos. Podemos também ter certeza de que foram os romanos, e

não os judeus, que mandaram no jogo — seja qual for a torção nos fatos que

os Evangelhos tentem dar. E os Evangelhos, sem dúvida, distorceram a

mensagem a ponto de os cristãos modernos ainda considerarem qualquer

sugestão de ação política por parte de Jesus uma "contramensagem", algo

ultrajante e até mesmo perigoso. Entretanto, já lá se vão mais de cinqüenta

anos desde que o professor Samuel Brandon, da Universidade de

Manchester, na Inglaterra, chamou a atenção para esta crucial distorção

teológica:

Permanece inconteste o fato crucial de que a sentença fatal foi

pronunciada pelo governador romano e sua execução levada a cabo por

funcionários romanos.2

Ainda nas palavras do professor Brandon:

É certo que o movimento vinculado a [Jesus] estampava, no mínimo,

uma aparência de sedição para levar as autoridades romanas tanto a

considerá-lo um possível revolucionário quanto a executá-lo como culpado de

tal acusação.3

Com efeito, anos mais tarde, Brandon se tornou mais veemente, talvez

exasperado com os que insistiam em ignorar esse dado importante:

"Qualquer investigação", escreveu com vigor, deixando pouco espaço a

dúvidas sobre o assunto, "referente ao Jesus histórico tem de partir de sua

execução pelos romanos por crime de sedição"4.

Descobriremos que estamos lidando não apenas com as

complexidades da religião, mas com as maquinações da política. Ainda hoje

nem todas as minas foram desarmadas.

Afora o modo brutal de execução, somos levados a imaginar se existe alguma

outra sugestão nos Evangelhos de que a autoridade decisiva pertencia aos

romanos e de que o crime em questão era de sedição e não de infração aos

ensinamentos judaicos.

A resposta? Existe, sim. Jesus foi crucificado entre dois outros

homens, descritos como ladrões nas traduções da Bíblia. No entanto, se

voltarmos ao texto original grego, veremos que eles não são chamados ali de

ladrões, mas de lestai, cuja tradução, no sentido estrito, e "salteadores", mas

que, em grego, era o nome oficial dos "zelotes" — os guerreiros libertários da

Judéia dedicados a livrar a terra natal da ocupação romana.5 Os romanos os

consideravam terroristas.

Mas os zelotes não buscavam apenas algum tipo de conquista

política territorial, sendo movidos também por um motivo menos venal:

preocupavam-se, acima de qualquer outra coisa, com a legitimidade dos

sacerdotes que serviam no Templo de Salomão e, em especial, com a

legitimidade do sumo sacerdote — que, na época, era indicado pelos

governantes herodianos.6 Queriam que os sacerdotes fossem "filhos de

Aarão", descendentes da linhagem de Aarão, irmão de Moisés, da tribo de

Levi, fundador do sacerdócio israelita e primeiro sumo sacerdote de Israel.

"Filhos de Aarão" tornara-se o termo usado para identificar a única linhagem

legítima dos sacerdotes na antiga Israel.

A inegável implicação da colocação de Jesus entre dois condenados

zelotes em Gólgota é que, para as autoridades romanas, Jesus também era

um zelote, como o era Barrabás, o prisioneiro libertado por Pilatos graças ao

que é descrito como uma anistia de data festiva. O prisioneiro é chamado em

grego de um lestes.7 Com efeito, tudo indica que Jesus se achava cercado de

um monte de zelotes.

A mesma observação se aplica aos discípulos de Jesus: um deles é

chamado de Simão Zelotes — Simão, o Zelota.8 Ademais, um grupo

particularmente malévolo de assassinos dentro do movimento zelote atendia

pelo nome de sicarii, devido à pequena faca curva — sica — que usavam para

matar seus adversários: Judas Iscariot era sem dúvida um sicarii (se ainda

ativo ou não, é algo que desconhecemos). Essa sugestão de militância zelote

adquire uma importância adicional quando recordamos os acontecimentos

que precederam a prisão de Jesus no Jardim de Getsêmani. Segundo o

Evangelho de Lucas, quando Jesus e seus discípulos se reuniram, Jesus

disse ao seu círculo imediato para se armar. "Quem não tiver espada, venda

o manto e compre uma." Ele é informado de que havia duas espadas. "É

suficiente", responde.9 Jesus é descrito aqui em um contexto definido pelo

desejo profundo e freqüentemente violento do povo da Judéia de libertar-se

do jugo romano. Enxergá-lo como algo diverso eqüivale a ignorar uma

grande parcela dos textos.

De alguma forma, Jesus foi mandado para a cruz na condição de

representante dessa facção anti-romana. Conta-se que Pilatos lavou as mãos

quanto a todo o episódio, mas sua insistência em que a placa "Rei dos

Judeus" permanecesse na cruz revela que ele não lavara as mãos em relação

à lei romana, que era muito específica. Por seus dispositivos, a incumbência

de Pilatos era clara: ele tinha de crucificar Jesus. Ao afixar a placa onde o

fez, ele indicou a todos que estava a par da verdade sobre a situação.

Assim, ainda nos cumpre indagar: se Jesus sobreviveu à

crucificação — por meio de uma substituição ou de um resgate —, quem

teria mais probabilidade de ser o benfeitor? Com certeza não os romanos;

por que iriam salvar alguém que se opunha ao seu jugo sobre a Judéia? E

certamente também não os altos sacerdotes do Templo, pois Jesus tinha

uma postura extremamente crítica, ao menos quanto a autoridade de que

eram investidos. A ajuda, supomos, só poderia vir dos zelotes.

Mas à medida que insistirmos, descobriremos que essa suposição

não pode ser mais equivocada.

Em 37 a.C, Herodes tomou Jerusalém. Ele não nascera na Judéia,

mas numa região ao sul, chamada Iduméia. Embora fosse um soldado e um

administrador competente, também era um assassino. Seu amigo Marco

Antônio lhe dera um grande exército romano para conquistar Jerusalém,

mas mesmo com esse auxílio ainda foi preciso um cerco de cinco meses para

vencer a resistência da cidade. Imediatamente após a tomada do poder,

Herodes executou 45 membros do Sinédrio, acabando com toda a sua

influência. Também prendeu Antigonus, o último dos reis judeus, e o

despachou para Antioquia, onde Marco Antônio se estabelecera. Ali, o rei

judeu foi convenientemente decapitado. Herodes sentou-se no trono em seu

lugar, reinando como "Herodes, o Grande" e permanecendo próximo de seus

aliados, os romanos.

Herodes continuou profundamente hostil a todos os membros da

legítima linhagem real judaica. Embora tenha se casado com uma princesa,

mandou afogar o cunhado, o sumo sacerdote, numa piscina do palácio em

Jerico. Mais tarde, também mandou matar a própria esposa, bem como os

dois filhos nascidos desse casamento. com efeito, durante seu governo,

executou meticulosamente todos os membros remanescentes da dinastia

real de Israel. Acabou reconstruindo o Templo de Jerusalém, mas, a despeito

dessa generosidade, não deixou de ser odiado pela maioria do povo judeu na

região. Quando morreu, em 4 a.C, seu último ato foi ordenar a morte na

fogueira de dois fariseus cujos correligionários haviam derrubado a Águia

Romana de ouro que, por ordem sua, havia sido fixada na tachada do

Templo.

O único cronista desse período é o historiador judeu Flávio Josefo.

Ele relata que em seguida à morte de Herodes o "povo" exigiu que o sumo

sacerdote do Templo em Jerusalém — indicado por ele — fosse destituído e

substituído por outro "mais devoto e puro"10. Essa é a primeira indicação de

que boa parte da população judaica nutria grande preocupação com tais

questões, ponto esse que será de crucial importância para a nossa

compreensão de todo o período. Mas quem, exatamente, era esse "povo

preocupado"?

Josefo cita três facções distintas no judaísmo de então: os fariseus,

os saduceus e os essênios. Os saduceus eram os encarregados da

manutenção do culto no Templo, provendo os sacerdotes que realizavam os

sacrifícios diários. O sumo sacerdote também saía de suas fileiras. Os

fariseus se preocupavam mais com a tradição judaica, o conjunto de leis

elaboradas pelos sábios do passado, e menos com os sacrifícios do Templo.

Os essênios, que viviam em comunidade, são descritos de formas variadas e

opostas, como anti ou pró-Herodes; pacíficos ou beligerantes; celibatários ou

casados, dependendo do trecho das obras de Josefo em que os procuremos.

Isso gerou um bocado de confusão entre os estudiosos modernos e turvou

consideravelmente a água. Os essênios foram caracterizados, porém, por sua

devoção à lei judaica e, como menciona Josefo, mesmo sob severa tortura

nas mãos dos romanos, se recusavam a blasfemar contra Moisés ou a violar

qualquer preceito da lei.11 Segundo Josefo, eles também mantiveram a

mesma doutrina dos "filhos da Grécia". É possível que o historiador tivesse

em mente os pitagóricos ou os posteriores platonistas, no sentido de que

esses também encaravam os humanos como donos de um corpo mortal,

perecível, mas abrigo de uma alma imortal.

Em sua última obra, Antigüidades dos judeus, Josefo acrescenta

um quarto grupo: os zelotes.12

Aqueles que queriam um novo sumo sacerdote não se

preocupavam apenas com o protesto intelectual. O clamor por mudança

surgiu no final do período de uma semana de luto pela morte de Herodes.

Seu filho, Arquelau, dava como certo que chegara a sua vez de sentar-se no

trono, mas a decisão cabia a César Augusto.

Arquelau participava de uma grande cerimônia fúnebre no Templo

antes de sua partida para Roma, quando ouviu o barulho de uma multidão

furiosa fazendo exigências do lado de fora. O principal foco do clamor — o

sumo sacerdote — também devia estar presente na cerimônia. Arquelau se

enfureceu com o protesto ruidoso, mas, não querendo piorar a situação,

enviou seu comandante militar para dialogar com o povo reunido no templo.

Tratava-se de uma multidão acrescida dos muitos forasteiros vindos do

campo para celebrar a Páscoa que se avizinhava. Os presentes, contudo,

apedrejaram o comandante antes que ele sequer abrisse a boca, levando-o a

bater, imediatamente, em retirada.

Arquelau deve ter entrado em pânico, temendo pela própria vida,

pois a partir daí a situação logo se complicou. Agindo rapidamente, Arquelau

ordenou que soldados entrassem no Templo e prendessem os líderes dos

grupos que reivindicavam mudanças. Era uma tropa de peso: no exército

romano regular equivaleria a seiscentos soldados; caso se tratasse de forças

auxiliares, o mais provável, talvez envolvesse de quinhentos a setecentos

soldados ou mais. Claro está que o tumulto era iminente, e Arquelau

pretendia acabar com ele rápida e violentamente. Mas o plano não

funcionou. A multidão ficou indignada com o súbito aparecimento de

soldados armados e os atacou, mais uma vez com pedras. Por incrível que

pareça, relata Josefo, a maioria dos soldados foi morta e até mesmo o

comandante saiu ferido, por pouco escapando de morrer. Sem dúvida, essa

foi uma grande batalha, indicando que esse "povo" não só desejava um sumo

sacerdote "mais devoto e mais puro" como também era sério, organizado e

disposto a lutar e morrer por suas crenças.

Em seguida à vitória sobre os soldados, a multidão procedeu à

realização dos sacrifícios no Templo como se nada houvesse. Arquelau

aproveitou a oportunidade para pôr em ação a totalidade do seu exército: a

infantaria investiu sobre as ruas de Jerusalém, enquanto a cavalaria atacou

o campo no entorno da cidade. Fica claro que a oposição ao sumo sacerdote

era bem maior, mais estruturada e disseminada do que Josefo se dispõe a

admitir. Por alguma razão, o historiador subestima a extensão do que

evidentemente foi uma insurreição de peso centrada no Templo e seguida

por uma enorme e sangrenta batalha em toda Jerusalém. Josefo não deixa

dúvidas, porém, quanto à própria opinião a respeito do acontecimento. Para

ele, o que ocorreu foi "sedição". Pelo uso que faz do termo pejorativo, temos

certeza de que Josefo tomou o partido de Arquelau e dos romanos.

A batalha acabou com vários milhares de civis mortos, inclusive a

maioria dos que estavam no Templo. Os sobreviventes fugiram, buscando

refúgio nas montanhas vizinhas. A cerimônia fúnebre foi prontamente

encerrada, e Arquelau, sem mais demora, partiu para Roma. Enquanto isso,

seu irmão Antipas contestou o testamento e reclamou o trono para si.

Enquanto Arquelau defendia sua causa perante o imperador em

Roma, uma nova revolta irrompeu na Judéia. Na véspera da festa de

Pentecostes (Shavuot, o qüinquagésimo dia após o Sabbath da Páscoa), uma

imensa multidão cercou as bases romanas, sitiando-as. Teve início a luta,

tanto em Jerusalém quanto no campo. A Galiléia, em particular, parecia ser

o berço do descontentamento mais organizado, e foi dali que, no ano 4 a.C,

emergiu o primeiro líder, Judas da Galiléia, que invadiu o arsenal real para

se apoderar de armas. Ao mesmo tempo, o palácio de Herodes em Jerico foi

incendiado. Poderia este ato de heresia política constituir uma vingança pelo

afogamento do último sumo sacerdote legítimo? É bastante provável. Agindo

com a maior rapidez possível, os romanos reuniram três legiões e quatro

regimentos de cavalaria, juntamente com várias tropas auxiliares, e

revidaram. No final, cerca de dois mil judeus, todos líderes da resistência,

foram crucificados — por sedição, é claro.

Nesse ínterim em Roma, durante o mesmo ano, César Augusto

havia decidido dividir a Judéia entre os filhos de Herodes, cada um dos

quais governaria com um título inferior ao de rei. A metade mais rica do

reino, que incluía a Judéia e a Samaria, foi entregue a Arquelau, que

governou como um etnarca; a outra metade o imperador dividiu em duas

tetrarquias (termo grego que significa "governar um quarto de um território"),

uma para cada um dos outros filhos de Herodes, Filipe e Herodes Antipas.

Herodes Antipas ficou com a Galiléia e terras da outra margem do Jordão;

Filipe recebeu terras ao norte e a leste da Galiléia.

Dois pontos precisam ser ressaltados aqui: primeiramente, embora

Josefo sugira à primeira vista que o clamor por um sumo sacerdote "devoto e

puro" tenha surgido de uma multidão reunida informalmente — e até mesmo

ao acaso —, que em nada diferia do povo que se reunia normalmente no

Templo para a chegada da Páscoa, não há dúvida, dada a extensão da luta e

a oposição levantada tanto em Jerusalém como no campo, de que o grupo

opositor era bem liderado e sua organização tinha longo alcance. Além disso,

não foi por acidente que eles se reuniram no Templo no dia da cerimônia

fúnebre. Eles ali acorreram deliberadamente, preparados para enfrentar

confusão. Na verdade, certamente esperavam enfrentá-la. O fato demanda

duas perguntas: quem eram essas pessoas? E o que podemos descobrir

sobre sua ideologia — se é que havia uma —, baseados no seu profundo

desejo de ver um sumo sacerdote "devoto e puro" no comando do Templo?

Ao que tudo indica, esses acontecimentos fornecem um contexto

essencial para os primeiros anos da vida de Jesus: em 4 a.C, quando

Herodes morreu, Jesus tinha, conforme os cálculos mais predominantes,

aproximadamente dois anos. Assim, podemos estar certos de que seu

nascimento e vida tiveram lugar num cenário de agitação contra a corrupta e

odiada dinastia herodiana. E embora tenha nascido em Belém, na Judéia,

Mateus registra que Jesus foi levado para Nazaré, na Galiléia, quando

criança.13 Após um longo período de silêncio nos Evangelhos, diz-se que

Jesus veio da Galiléia para ser batizado por João Batista. Foi na Galiléia que

ele reuniu seus discípulos — dos quais dois, no mínimo, eram zelotes. Com

certeza, era chamado informalmente de Jesus da Galiléia. Como já vimos, a

Galiléia era um caldeirão de revoltas, e dali brotara Judas, o líder de um

grande grupo de rebeldes. Qual, então, seria o relacionamento de Jesus com

esses agitadores públicos, essas massas inclinadas à sedição? Viria ele mais

tarde a liderá-los? As pistas, mais uma vez, são fornecidas por Josefo.

A oposição descrita por Josefo ia se transformando em um amplo

movimento que ele se esforça para minimizar, ao mesmo tempo rotulando-o

de "sedição". Josefo, porém, também registra que a oposição não se encerrou

com a terrível carnificina em Jerusalém. Com efeito, observa, tornou-se pior

com o tempo. Arquelau se mostrou tão cruel cm seu governo que, ao fim de

dez anos, César o mandou para o exílio cm Vienne, na França. Suas terras,

então, passaram a ser governadas diretamente de Roma como província da

Judéia. Visto que Filipe e Herodes Antipas viviam em outros lugares

governando as respectivas tetrarquias, um prefeito, Coponius, foi nomeado e

enviado de Roma para governar os domínios de Arquelau a partir da capital,

a cidade costeira de Cesaréia. Viajou com ele o novo governador da Síria,

Quirino. Roma queria um levantamento completo das regiões que agora lhe

cabia governar, razão pela qual Quirino realizou um censo no país inteiro,

censo este que, para dizer o mínimo, foi profundamente impopular. Corria o

ano 6 a.C. O tumulto era inevitável.

Judas da Galiléia liderou um levante. Acusou de covardes todos os

homens que pagavam tributo a Roma. Exigiu que os judeus se recusassem a

reconhecer o imperador como senhor, afirmando que o único senhor

existente era Deus. A questão do imposto era o meio para descobrir quem era

a favor e quem era contra Judas. Ao mesmo tempo, relata Josefo, os

inflamados sicarii surgiram pela primeira vez. Foram eles a facção por trás

de toda a violência. Josefo sugere que Judas da Galiléia fundara ou liderava

o grupo, e, como fica claro em seu relato, Josefo os odiava. Ele os acusa de

usar a política como justificativa para sua "barbárie e ganância"14.

Curiosamente, uma menção a Judas no Novo Testamento

corrobora esse perfil. "Depois dele veio Judas, o Galileu, na época do

recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também..."15 Josefo

explica ainda que Judas, juntamente com outro insurgente, Zadok, o

Fariseu, foi responsável por acrescentar uma quarta facção ao judaísmo,

além dos saduceus, fariseus e essênios: os zelotes, assim chamados por

serem "zelosos em boas empreitadas"16. O termo "zelote" aparece apenas na

história de Josefo, não sendo mencionado por nenhum outro autor romano,

e até mesmo ele reluta em citá-los pelo nome. Em vez disso, prefere referir-se

a eles pejorativamente como lestai (salteadores) ou sicarii (homens-da-

adaga).

Sobre isso também existe uma menção no Livro dos Atos dos

Apóstolos. Relatando um encontro entre Paulo e Tiago em Jerusalém,

quando Paulo retorna após vários anos de pregação em cidades gregas e

romanas, como Tarso, Antioquia, Atenas, Corinto e Éfeso, Tiago e seus

companheiros fazem menção aos "muitos milhares de judeus", todos eles

"zeladores da Lei"17. Mais à frente, no mesmo livro, um outro termo menos

delicado é empregado. Paulo é acusado pelos romanos de liderar "quatro mil

bandidos" e preso. Quando, porém, examinamos o original grego,

descobrimos que "bandidos" não é a palavra usada. Na verdade, Paulo foi

acusado de liderar quatro mil sicarion — sicarii.18

A despeito dos rótulos de "zelotes" ou "bandidos" — ou até mesmo

por causa deles —, ainda nos resta perguntar quem seriam esses judeus

dispostos a morrer para não servir aos romanos? Novamente Josefo pretende

nos convencer de que se tratava de um pequeno bando de indivíduos

exaltados com tendência à sedição. No entanto, as revoltas descritas em

suas crônicas sugerem que eles lutavam com fúria e vigor, além de relevante

poderio numérico. A contradição inerente nos leva a crer que Josefo não é

sincero quanto a esta facção. Obviamente, ela era mais potente do que o

historiador se dispôs a admitir. E esse ponto é crucial para a nossa história

e para a nossa compreensão.

Por que Josefo odiava tanto os zelotes? Um olhar sobre sua

carreira esclarece isso: Josefo, na verdade, fora um zelote, chegando mesmo

a ser um comandante militar do grupo. Curiosamente, era o encarregado de

toda a Galiléia — o núcleo zelote — no início da guerra contra Roma.

Contudo, após perder sua base, Josefo desertou para o lado romano e se

tornou amigo próximo do imperador Vespasiano e de seu filho, Tito, o

comandante do exército. Finalmente, Josefo foi morar em Roma, no próprio

palácio imperial, com pensão e cidadania romanas. Mas a traição contra seu

povo lhe custou bem caro. Pelo resto da vida, viveu temeroso, pois era odiado

até pelos judeus que viviam em Roma.

Em seu primeiro livro, The jewish War [A guerra judia] — escrito

por volta de 75 a 79 d.C. para um público romano e romanizado —, Josefo

culpa os zelotes pela destruição do Templo. Embora tivesse acesso a todos os

registros judaicos que sobreviveram ao cerco e aos incêndios do Templo, bem

como aos registros romanos, percebemos que não acredita totalmente no que

diz. A despeito de sua excelente fonte de material, ele se juntara ao inimigo e

era para ele que escrevia — um público de gentios romanos. The jewish War

[A guerra judia] se assemelharia a uma obra redigida por um nazista para

justificar a invasão da Polônia em 1939. Como aquele que é terrorista para

uns, para outros é patriota, precisamos ser cautelosos quanto ao uso que

fazemos de seus relatos. É necessário mantê-los em perspectiva.

Por ora, voltemos a nossa atenção para um acontecimento

extraordinário ocorrido em 1947. Um pastor beduíno, chamado Mohammad

adh-Dhib, vasculhava a extremidade norte do mar Morto em busca de

algumas cabras extraviadas. Imaginando que elas pudessem estar no

interior de uma caverna com a qual ele topara, o pastor atirou uma pedra lá

dentro para assustar os animais, na esperança de que eles saíssem. Em vez

de um berro indignado, o que ouviu foi o barulho de cerâmica quebrada.

Intrigado, espremeu-se para passar pela estreita entrada da caverna e ver o

que ela continha. Diante de seus olhos jaziam alguns grandes vasos de argila

— um deles agora quebrado —, nos quais Dhib encontrou o primeiro

conjunto de documentos que desde então conhecemos como os famosos

"Manuscritos do mar Morto".

Ele os levou a um negociante de antigüidades em Belém, que em

seguida os ofereceu a vários indivíduos aos quais, em sua opinião, o material

poderia interessar. Ainda assim, um certo mistério envolve o número total de

manuscritos descobertos. Sete deles foram apresentados e acabaram

vendidos a instituições acadêmicas, mas ao que parece vários outros foram

encontrados, tendo permanecido guardados ou sido vendidos a outros

negociantes ou colecionadores particulares. Um deles, no mínimo, foi parar

em Damasco e, por um curto período, esteve em poder da CIA.

Na época, o chefe da CIA em Damasco era o especialista em

Oriente Médio Miles Copeland. Ele me relatou que um dia um "matreiro

comerciante egípcio" bateu à porta de seu prédio e lhe ofereceu um texto

antigo do tipo que hoje identificamos como um manuscrito do mar Morto. É

claro que não se fazia idéia disso então, e Copeland teve dúvidas sobre se

esses documentos danificados pelo tempo seriam valiosos ou sequer

interessantes sob algum ponto de vista. É evidente que ele não sabia

aramaico nem hebraico, mas estava a par de que o chefe da CIA no Oriente

Médio, Kermit Roosevelt, baseado em Beirute, era um especialista nessas

línguas antigas e provavelmente seria capaz de ler os textos. Copeland levou

os manuscritos ao terraço do prédio em Damasco e, com o vento atirando

pedaços deles sobre as calçadas lá embaixo, desenrolou-os e os fotografou.

Segundo me disse, fez cerca de trinta fotos e mesmo assim não conseguiu

registrar o texto todo, o que nos faz concluir que ele era bastante extenso. As

fotos foram enviadas para o posto da CIA em Beirute.19 Depois disso,

sumiram. Buscas nos pertences da CIA protegidas pelos dispositivos da lei

americana de Liberdade de Informação a nada levaram. Copeland se lembra

de ter ouvido que o texto se referia a Daniel — um dos livros proféticos —,

mas nunca soube se era um texto padrão do Antigo Testamento ou um

pesher, ou seja, um comentário de determinados trechos-chave de um texto

do Antigo Testamento, como os que aparecem em vários dos outros

manuscritos encontrados na mesma caverna. Em algum lugar, no

submundo clandestino das antiguidades, esse texto valioso sem dúvida

ainda repousa.

Os manuscritos do mar Morto que foram analisados nos fornecem,

pela primeira vez, um lampejo sobre esse grande e disseminado grupo a

respeito do qual falamos até agora — esse grupo que detestava o domínio

estrangeiro, que se preocupava obstinadamente com a pureza do sumo

sacerdote — e rei — e que se dedicava totalmente a observância da lei

judaica. Com efeito, um dos muitos títulos que seus membros se auto-

atribuíam era o de Oseh ha-Torah — os "Praticantes da Lei".

Os manuscritos do mar Morto, aparentemente, fornecem

documentos originais dos zelotes, pois foi de sua comunidade que eles

saíram. Igualmente interessante é o fato de que, de acordo com indícios

arqueológicos, Qumran — o sítio onde muitos deles foram achados e onde, à

primeira vista, tudo indica ter existido um centro zelote — era deserto à

época de Herodes, o Grande, que possuía um palácio poucas milhas

distante, em Jericó — o mesmo palácio incendiado pelos "zelotes" após a sua

morte. Foi a partir daí que a ocupação de Qumran teve início. 20

Os manuscritos do mar Morto foram escritos diretamente por

quem os utilizava e, o que é raro quando se trata de documentos religiosos,

permaneceram intocados por editores e revisores posteriores. Podemos

acreditar naquilo que eles nos dizem. E o que eles nos dizem é realmente

muito interessante. Para começar, revelam um ódio profundo, que beira o

patológico, pela dominação estrangeira; um ódio nitidamente alimentado por

um desejo de vingança oriundo de muitos anos de massacre, exploração e

desdém pela religião judaica por parte de um inimigo chamado de Kittim,

denominação talvez genérica, mas que no século I d.C. claramente se referia

aos romanos. O War Scroll [Manuscrito da guerra] proclama:

Eles devem agir em consonância com a integralidade desta norma

neste dia, quando se posicionarem em frente ao campo do Kittim. Depois, os

sacerdotes tocarão as trombetas... e os portões da batalha se abrirão... Os

sacerdotes tocarão... para o ataque. Quando estiverem junto à linha Kittim, ao

alcance do lançamento de pedras, cada homem empunhará suas armas de

guerra. Os seis sacerdotes tocarão as trombetas do massacre com uma nota

aguda, staccato, para comandar a batalha. Todos os levitas e toda a multidão

com chifres de carneiro darão o grito de batalha com um barulho

ensurdecedor. E quando o som morrer, eles devem preparar a mão para dar

cabo dos feridos graves dos Kittim.21

Assim sonhavam os zelotes, que desprezavam e odiavam os

romanos: preferiam morrer a servir aos Kittim. Viviam somente para o dia em

que um messias brotaria do povo judeu e os lideraria numa guerra vitoriosa

contra os romanos e seus reis e sumos sacerdotes títeres, varrendo-os da

face da terra de modo que novamente pudesse existir em Israel uma

linhagem pura de sumos sacerdotes e reis da Casa de Davi. Na verdade, eles

aguardavam dois messias: o sumo sacerdote e o rei. A Rule of the Community

[Regra da comunidade], por exemplo, fala dos futuros "messias de Aarão e

Israel" 22. O messias de Aarão é uma referência ao sumo sacerdote, o de

Israel representa um rei da Casa de Davi. Outros manuscritos fazem menção

às mesmas figuras. Instigante, do nosso ponto de vista, é que alguns

manuscritos, como o Damascus Document [Documentos de Damasco],

juntam os dois e falam de um único messias, um "messias de Aarão e

Israel"23. A figura ali revelada é ao mesmo tempo sumo sacerdote e rei de

Israel. Todos esses textos ressaltam a necessidade de que a linhagem de reis

e sumos sacerdotes seja "pura", isto é, de ascendência correta. O Temple

Scroll [Manuscrito do Templo] declara:

Dentre teus irmãos deves escolher um rei a quem te sujeitares;

não deves escolher um estrangeiro que não seja teu irmão para a

ele te sujeitares.24

O rei, bem como o sumo sacerdote, era ungido e, por isso, um

meshiha, um messias. Com efeito, desde época tão remota quanto o século II

a.C, o termo "messias" designava um rei legítimo de Israel, alguém

pertencente à real Casa de Davi, cuja chegada e reinado eram aguardados.25

Tal expectativa, portanto, não se restringia aos zelotes, mas permeava como

uma subcorrente o Antigo Testamento e a fé judaica do período do segundo

Templo. Ela predomina mais do que se imagina: já se chamou a atenção

para o fato de que "os livros do Antigo Testamento foram editados de tal

forma que, coletivamente, configuram um documento messiânico"26.

Conclui-se, é claro, que ao menos a população da Judéia

aguardava a chegada de um messias da Casa de Davi. E com as mazelas e

horrores do reinado de Herodes, e posteriormente dos prefeitos romanos,

parecia ser essa a hora. A hora do messias chegara, e é por isso que não

devemos nos surpreender ao descobrir que o movimento rebelde zelote de

Judas da Galiléia e Zadok, o Fariseu, era, em essência, messiânico.27

Quem, então, eles imaginavam ser esse messias?

Os manuscritos do mar Morto fornecem um contexto para

entendermos o papel de Jesus e as maquinações políticas por trás de seu

nascimento, casamento e participação ativa nesse desejo zelote de vitória.

Segundo os Evangelhos, pelo lado paterno Jesus pertencia à Casa de Davi;

pelo lado materno descendia de Aarão, o sumo sacerdote.28 De repente

entendemos a sua importância para a causa zelote, pois nos damos conta de

que, em virtude da sua linhagem, era herdeiro de ambas as casas, um

"duplo" messias; tendo herdado tanto a linhagem real quando a sacerdotal,

Jesus era um "messias de Aarão e Israel", uma figura, como vimos,

claramente mencionada nos manuscritos do mar Morto. E. ao que parece.

muita gente assim o via. Tomemos como indício desse fato a placa

supostamente zombeteira fixada por Pilatos ao pé da cruz: "Este é Jesus, o

rei dos judeus."29

Como sumo sacerdote e rei — como messias dos Filhos de Israel

(em hebraico, bani mashiach) —, esperava-se que Jesus liderasse os zelotes

na vitória. Esperava-se que se opusesse aos romanos em tudo e se apegasse

com fervor aos conceitos de pureza ritual, tão caros aos zelotes. Como líder

dos zelotes, cabia-lhe um papel religioso e político e, na verdade, havia um

meio reconhecido para que o desempenhasse: o profeta Zacarias do Antigo

Testamento falara da chegada a Jerusalém de um rei montado em um

jumento.30 Jesus julgou necessário cumprir esta e outras profecias a fim de

obter aceitação pública: com efeito, a profecia de Zacarias é citada no relato

de Mateus no Novo Testamento." Assim, Jesus entrou em Jerusalém

montado em um jumento, o que não passou despercebido à multidão que

comemorou sua chegada: "Hosana ao Filho de Davi", gritaram os presentes,

enquanto estendiam galhos de árvores e mantos em sua passagem, como

gesto espontâneo de aclamação.

Jesus havia intencionalmente escolhido o seu caminho. E fora

reconhecido como rei da Casa de Davi pelo povo de Jerusalém. O jogo estava

feito. Ou assim parecia.

O deliberado cumprimento da profecia do Antigo Testamento e

suas implicações são abordados pelo dr. Hugh Schonfield no livro The

Passover Plot [O complô da Páscoa], publicado pela primeira vez em 1965:

reeditado muitas vezes desde então, vendeu mais de seis milhões de

exemplares em 18 idiomas.32 Foi indiscutivelmente um best-seller, mas hoje

se encontra quase esquecido. Livros recentes nem sequer mencionam a obra

de Schonfield.

As questões por ele levantadas são certamente polêmicas, porém

importantes; os curadores da história ortodoxa buscam constantemente

manter ao largo essas idéias por medo de que elas abalem o paradigma, de

que nos façam mudar de atitude com relação aos Evangelhos, à figura de

Jesus e à história dos tempos. Exercícios como os de Schonfield precisam

ser repetidos, geração após geração, até que um dia venham a ser

fundamentados por um volume de dados tão significativo que ao paradigma

não reste senão desmantelar-se, levando-nos a abordar nossa história a

partir de uma perspectiva bem diferente.

Muitos fatores na vida de Jesus — a revolta zelote, seu nascimento

de pais descendentes, respectivamente, da Casa de Davi e da Casa de Aarão,

os membros zelotes de seu grupo imediato, sua entrada proposital em

Jerusalém como rei — deveriam certamente lhe ter garantido um lugar na

história como líder da nação judaica. Mas não garantiram. O que, então, deu

errado?

NOTAS 1 The Koran, IV, 155ff (p. 95). Ver, ainda, Parrinder, Jesus in the Qur'an, p.108. 2 Brandon, The Fall of Jerusalém, p. 102. 3 ld., ibid., p. 102. 4 Brandon, Jesus and the Zealots, p. 328. 5 Mateus 27,38. 6 Eisenman, Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran, in: The Dead Sea Scrolls and the First Christians, p.

29. 7 João 18,40. Não há indícios nos registros romanos ou judaicos supérstites da existência de tal anistia. 8 Simão xeloten; ver Lucas 6,15. 9 Lucas 22,36-38. 10 Josefo, The Jewish War, p. 113-4. 11 Id., ibid., p. 128. 12 Josefo, Antiquities of the Jews, XVIII, I, p. 375. 13 Mateus 2,22-23. 14 Josefo, The Jewish War, p. 380. 15 Atos dos Apóstolos 5,37. 16 Josefo, Wars of the Jews, IV, III, p. 109. 17 Atos dos Apóstolos 21,20. 18 Atos dos Apóstolos 21,38. 19 Entrevista com Miles Copeland, 10 de abril de 1990 e 1o de maio de 1990. 20 De Vaux, Archaeology and the Dead Sea Scrolls, p. 33-41, para uma descrição das descobertas em que se

baseia grande parte de sua datação. Para uma análise crítica das interpretações dessas descobertas, ver Eisenman,

Maccabees, Zedokites, Christians and Qumran, in: The Dead Sea Scrolls and the First Christians, p. 44-47, p.

44, n. 88. Para um resumo, ver The Dead Sea Scrolls Deception, de Baigent e Leigh, p. 156-159. 21 García Martínez, The War Scroll, XVI, 3-8 (p. 111). 22 Garcia Martínez, The Rule of the Community, IX, 11 (p. 13-14). 23 Garcia Martínez, The Damascus Docutnent, XX, 1 (p. 46). 24 The Temple Scroll, LVI, 14-15; ver The Dead Sea Scrolls Translated, de Garcia Martínez, p. 173. 25 Horbury, Jewish Messianism and the Cult of Christ, p. 11. 26 Id., ibid., p. 37. 27 Eisenman, Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran, in: The Dead Sea Scrolls and the First Christians,

p. 107. "A novidade em 4 a.C", escreve Eisenman, "é o surgimento da variante 'messiânica' desse 'Movimento

Zelote'." 28 Mateus 1,1.16; Lucas 1,5.36 e 2,4. 29 Mateus 27,37. Marcos, Lucas e João diferem ligeiramente quanto às palavras empregadas. 30 Zacarias 9,9-10. 31 Mateus 21,5. 32 Schonfield, The Passover Plot, p. 118-124.

CCAAPPÍÍTTUULLOO IIVV

OO FFIILLHHOO DDAA EESSTTRREELLAA

EM POUCAS PALAVRAS, a causa zelote fracassou completa e

desastrosamente. Talvez fosse inevitável, já que, em essência, ela se opunha

ao domínio dos romanos, que representavam a maior potência militar no

mundo mediterrâneo da época. Embora o curso natural do movimento zelote

o levasse a se opor a esse domínio de forma ostensiva e com toda a energia

de que era capaz, ele jamais poderia ter vencido. Qualquer um que olhasse

um pouquinho à frente logo perceberia isso.

Era evidente que havia mais romanos que judeus, e o poder

romano se centrava em um exército de soldados profissionais disciplinados e

bem treinados, nada avessos a festins de crueldade criativa quando a

situação assim exigia — ou se acaso aprouvesse ao soldado em questão.

Todo esse poderio era sustentado por um domínio logístico difundido e

potente, alicerçado em estradas e navios bem conservados, tudo isso

integrado para assegurar que soldados e suprimentos estivessem à

disposição quando necessários.

Desde o surgimento patente da oposição zelote, em 6 d.C, uma

série de governantes — tanto governadores romanos quanto sumos

sacerdotes judeus — havia conseguido, de uma forma ou de outra, manter

uma certa estabilidade na Judéia. Ambos os lados precisavam da paz e da

abastança daí decorrentes — os conflitos nunca semeiam nem colhem

safras, e uma terra ociosa jamais produz gêneros ou dinheiro para os

agricultores nem impostos para os governantes — e Roma dependia da

Judéia para depositar no Tesouro romano os quarenta talentos que gerava

anualmente (o equivalente, aproximadamente, a 1.850 quilos de prata).1

Graças a uma cuidadosa economia política, esse equilíbrio instável havia

durado meio século. Então, de repente, tudo desmoronou.

Um grupo de sacerdotes anti-romanos do Templo de Jerusalém

resolveu impedir os não-judeus de ofertarem sacrifícios. Essa suspensão dos

habituais sacrifícios diários realizados no Templo para César e para Roma foi

um desafio direto e repentino ao imperador. Não havia como voltar atrás. Os

zelotes e os sacerdotes anti-romanos tinham feito o seu povo cruzar as

portas do inferno. Como relata Josefo, a guerra contra Roma tornou-se

inevitável por conta desse ato. Os zelotes, em sua ambição equivocada,

acharam que recuperariam o controle de sua nação, mas tamanhas perdas

sofreram, que essa esperança seria enterrada por quase dois mil anos.

A luta irrompeu pela primeira vez em 66 d.C. na cidade costeira de

Cesaréia. Tentativas para acalmar a situação se revelaram infrutíferas diante

da frustração e da raiva que haviam detonado os ataques. Os zelotes há

muito esperavam esse dia. Para eles, o amanhã chegara. Milhares foram

mortos. Os zelotes tomaram a fortaleza de Masada, no mar Morto; outros

tomaram a cidade baixa de Jerusalém e o Templo, incendiando o palácio do

rei Agripa e o do sumo sacerdote. O Registro Público também foi queimado.

Das fileiras judias emergiram líderes: em Jerusalém, quem

mandava era o filho do sumo sacerdote. Judas da Galiléia então surgiu em

Masada e saqueou o arsenal antes de voltar a Jerusalém como um soberano,

envolto em vestes reais, para tomar o palácio. O sumo sacerdote foi

assassinado.

A princípio, despreparados para uma tempestade tão catastrófica

de ódio, os romanos sofreram uma séria derrota. O governador da Síria

Cestius Gallus entrou na Judéia pela capital, Antioquia, liderando a 12a

Legião. Após destruir vários povoados e cidades, seu exército cercou

Jerusalém. Foi, contudo, rechaçado, sustentando pesadas perdas, inclusive

a do comandante da 6a Legião e a de um tribuno romano. O próprio Cestius

parece ter escapado apenas graças à rapidez da sua retirada. Na débâcle, os

zelotes se apossaram de grande quantidade de armas e dinheiro. Apesar

dessa demonstração de força, muitos judeus prudentes fugiram da Judéia

por saberem que a situação só viria a piorar.

E estavam certos: os romanos bateram em retirada, mas somente

para tomar fôlego. Voltariam com crueldade e desejo de vingança. Enquanto

isso, na ausência dos suseranos romanos, os zelotes também se

recompuseram. Elegeram os comandantes das várias regiões,

arregimentaram soldados e começaram a treiná-los nas técnicas e formações

militares romanas. A primeira batalha aconteceria na Galiléia, onde Josefo

— que ainda não se tornara historiador e amigo dos romanos — era o

comandante das tropas zelotes.

O imperador romano Nero sentiu-se ultrajado pela revolta que

irrompera na Judéia e mandou que um respeitável veterano do exército,

Vespasiano, se encarregasse de reassumir o controle sobre o país.

Vespasiano enviou o filho, Tito, a Alexandria para trazer a 15a Legião.

Vespasiano em pessoa partiu da Síria com a 5a e a 10a Legiões, juntamente

com 23 tropas de auxiliares: cerca de 18 mil homens da cavalaria e da

infantaria.

Vespasiano e Tito se encontraram no porto sírio de Ptolemais (hoje,

Akko) e, unindo forças, avançaram terra adentro, cruzando a fronteira com a

Galiléia. Josefo foi pego em seu reduto, Jotapata (hoje, Yodefat), a meio

caminho entre Haifa e o mar da Galiléia. Após um cerco de 47 dias, a

Galiléia caiu. Josefo fugiu, mas foi capturado pouco depois, rendendo-se a

um alto oficial romano, um tribuno chamado Nicanor. Josefo o descreve

como um velho amigo e praticamente na mesma frase revela-se, ele próprio,

"um sacerdote e um descendente de sacerdotes"2. Em outras palavras,

Josefo não era nenhum galileu cabeça quente, mas um membro da

aristocracia que mantinha estreitos laços com o governo romano.

Imediatamente após a sua captura, Vespasiano ordenou que fosse

encarcerado. Entretanto, numa ação que nitidamente revela seu vínculo

próximo com os romanos, o prisioneiro solicitou um encontro privado.

Vespasiano concordou, pedindo a todos, com exceção de Tito e dois amigos,

para saírem. Um desses dois homens provavelmente era o chefe do estado-

maior de Tito, Tibério Alexandre, judeu e sobrinho do famoso filósofo Filo de

Alexandria.3 Tibério Alexandre tinha seus próprios interesses nesse

encontro, como veremos mais à frente. O que se seguiu foi, sem dúvida, uma

dose de bem encenado teatro, em que Josefo e Tibério Alexandre

representaram, cada qual, um papel importante.

— Em vossa opinião, senhor — dirigiu-se Josefo a Vespasiano,

perfeitamente ciente de que se tratava de um momento crucial em sua vida e

de que os minutos seguintes determinariam o seu futuro —, a minha

captura meramente vos deu um prisioneiro, mas venho como mensageiro da

grandeza que vos espera.

Em seguida explicou, para emprestar um tom de importância a

suas palavras, que havia sido "enviado por Deus em pessoa" e prosseguiu:

— Vós, Vespasiano, sois César e imperador... Sois senhor não

apenas de mim, mas da terra e do mar e de toda a raça humana; e vos peço

para ser mantido confinado como punição, caso eu esteja tomando o santo

nome de Deus em vão.

Naturalmente, com Nero ainda governando Roma, o que Josefo

sugeria representava alta traição. Vespasiano, contudo, segundo Josefo — e

precisamos ter em mente que o relato foi escrito por ele no palácio de

Vespasiano em Roma muito tempo depois desses acontecimentos —, já vinha

acalentando esses pensamentos perigosos. A princípio, encarou com

ceticismo as afirmações do prisioneiro — e deveria ter se indignado com a

traição deste contra seu imperador e ordenado que Josefo fosse

imediatamente executado. Mas não foi o que aconteceu. Em seu livro, Josefo

fornece uma razão: "Deus já despertava nele ambições imperiais e

prenunciava o cetro através de outros presságios."4

Essa conversa sobre "o cetro", ou seja, o status real, revela uma

ligação com uma profecia crucial sobre "a Estrela" — referindo-se ao

aguardado líder messiânico — que, como já foi dito, constituiu o agente

catalisador para a deflagração da guerra. Referências à "Estrela" e ao "cetro"

fazem parte de uma profecia de Balaão, o Vidente, conforme consta no

Antigo Testamento. Balaão proclamou seu oráculo:

Eu o vejo — mas não agora; eu o contemplo — mas não de perto.

Um astro procedente de Jacó se torna chefe, um cetro se levanta

procedente de Israel...5

Esta "estrela de Jacó" deixa clara a expectativa de que o líder

messiânico nascesse da linhagem de Davi. Josefo declara explicitamente que

esta profecia constituiu o estopim da violência naquele momento:

...o principal induzimento a guerra foi um oráculo equivocado

também encontrado nos textos sagrados, anunciando que àquela

época um homem de seu país tomar-se-ia monarca do mundo todo.

Foi essa profecia que Josefo transmitiu a Vespasiano. Sem dúvida,

também acrescentou — mas não o revelou no relato desse encontro com o

comandante romano — que os zelotes em Jerusalém a interpretavam como

"sendo o triunfo da sua própria raça" e nutriam a certeza de que sairiam

vitoriosos em sua guerra contra os romanos precisamente em virtude desse

oráculo religioso. No entanto, escreve Josefo mais tarde em seu livro,

estavam "totalmente errados em sua interpretação. Com efeito", afirma ele

sem rodeios e de forma obsequiosa, "o oráculo apontava para a ascensão de

Vespasiano; porque foi na Judéia que o proclamaram imperador"6.

Também os historiadores romanos estavam a par desta predição:

Suetônio escreve que "uma antiga superstição era corrente no Oriente; a de

que da Judéia nessa época viriam os governantes do mundo. Corno

provaram mais tarde os acontecimentos, a profecia se referia a um

imperador romano, mas os judeus insurgentes... a interpretaram como

referência a si próprios..."7.

Tácito também fala dela: explica que

a maioria estava convencida de que as antigas escrituras de seus

sacerdote aludiam ao presente como a época em que o Oriente

triunfaria e da Judéia surgiriam homens destinados a governar o

mundo. Essa misteriosa profecia realmente se referia a Vespasiano

e Tito, mas as pessoas comuns... acharam que este poderia ser o

destino que lhes fora reservado e nem mesmo a calamidade abriu

seus olhos para a verdade.8

Então, Nero foi morto. Depois dele, reinaram dois imperadores em

rápida sucessão. Finalmente, em 69 d.C, Vespasiano foi proclamado

imperador por seu exército. Ele suspendeu o cerco a Jerusalém a fim de se

concentrar em sua base de poder e alicerçar suas ambições imperiais. Acima

de tudo, desejava dominar o Egito. Felizmente seu partidário e amigo, o

general judeu Tibério Alexandre, era prefeito do Egito e comandava as duas

legiões estacionadas ali. Vespasiano escreveu para Tibério Alexandre

explicando seu desejo de ascender ao trono imperial; Tibério Alexandre leu a

carta em voz alta para todos e, em seguida, convocou soldados e civis para

prestar juramento a Vespasiano. Presságios haviam previsto o seu reinado, e

ele "recordou-se especialmente das palavras de Josefo, que, quando Nero

ainda vivia, ousara chamá-lo de imperador"9. Josefo foi imediatamente

libertado. Vespasiano entregou o exército ao filho Tito, e este nomeou Tibério

Alexandre seu chefe do estado-maior.

Por ser judeu, Tibério Alexandre devia conhecer muito bem a

profecia da "Estrela", o que torna provável que ele tenha dado um jeito de

aplicá-la a Vespasiano. O historiador romano Dio Cassius conta que

enquanto Vespasiano se encontrava em Alexandria dizia-se que havia curado

um cego e um outro homem cuja mão era aleijada; a ambos fora dito em

sonho que se aproximassem de Vespasiano.10 Faz muito tempo, o grande

erudito dr. Robert Eisler sugeriu que somente Tibério Alexandre, com seu

conhecimento da profecia judaica e seu desejo de ver o triunfo de

Vespasiano, pensaria em manipular as circunstâncias de forma que a

profecia de Isaías se tornasse realidade — a profecia que fala do dia em que

Deus cura a terra: o dia em que "os olhos dos cegos verão e os ouvidos dos

surdos se abrirão. Então o coxo saltará como um cervo...". Somente Tibério

Alexandre, observa Eisler, teria planejado mandar a Vespasiano o cego e o

aleijado para que ele pudesse realizar seu "milagre messiânico"11.

Tibério Alexandre também devia conhecer um outro trecho das

profecias de Isaías — a destruição do Templo em Jerusalém. Isaías escreveu

que Deus disse: "Agora vos farei saber o que farei da minha vinha!...

derrubarei o muro, para que seja pisada." Dois versos depois, ele explica:

"Porque a vinha... é a Casa de Israel."12 Para Tibério Alexandre, Vespasiano

era o messias. Josefo concordava, escrevendo: "Na verdade, o oráculo

apontou para a ascensão de Vespasiano."13 Para esses dois judeus

romanizados, Vespasiano era o messias profetizado há muito em suas

sagradas escrituras. Para ambos, a Casa de Davi estava tão morta quanto

logo estaria o Templo.

Ainda assim, Vespasiano deve ter sentido que, mesmo sendo

verdadeira a profecia seu direito, a tal identificação era titubeante, já que

com certeza não descendia "de Jacó". Não corria em suas veias o sangue da

Casa de Davi. Por isso, após vencer a guerra e destruir Jerusalém, procurou

todos os membros sobreviventes da Casa de Davi e os executou. Vespasiano

respeitava o poder do oráculo e não se dispunha a correr riscos. Queria

"assegurar que nenhum membro da casa real restasse entre os judeus..."14.

No entanto, como revelaria mais tarde a história, um bom número de

membros daquela antiga casa real escapou de suas garras.

Com toda essa conversa de estrelas, é inevitável abordarmos a

Estrela de Belém. A estrela é o símbolo messiânico da Casa de Davi. A

Estrela de Belém também pode ser chamada de "o Messias de Belém",

sugerindo que não é preciso procurar supernovas ou conjunções estelares

para explicar a chegada dos magos a Belém, um reduto da Casa de Davi. Era

mais uma questão de dinastia que de astronomia. E os magos sabiam aonde

ir para encontrar seu rei.

Mas sempre houve um mistério envolvendo a história da saída de

José e Maria de Belém levando o menino Jesus para o Egito, a fim de

escapar de Herodes — como observa Mateus. Lucas explica que Jesus

nasceu em Belém, tendo sido levado para lá, como membro da Casa de Davi,

para o censo. O único censo conhecido é o de Quirino, no ano 6 d.C, depois

da tomada da Judéia por Roma. Mas essa data sempre foi considerada

demasiado tardia para o nascimento de Jesus, pois os Evangelhos o

descrevem como um homem de cerca de trinta anos por ocasião da

crucificação.

No entanto, essas estimativas não funcionam direito, nem

combinam com os dados apresentados nos Evangelhos. Hugh Schonfield

apresenta uma alternativa bastante instigante: a data usual da crucificação

é fornecida, com o imprimatur do Vaticano, numa tabela cronológica no final

da Bíblia de Jerusalém, como sendo a véspera da Páscoa de 8 de abril de 30

d.C.15 O raciocínio é o seguinte: o Evangelho de João contém datações bem

precisas, situando a primeira Páscoa seguinte ao batismo de Jesus em 28

d.C.16 João menciona mais duas Páscoas, a terceira das quais testemunha a

crucificação, que, assim, deve ter ocorrido antes da Páscoa de 30 d.C. Estará

correto?

Temos apenas duas fontes de dados além do Novo Testamento.

Primeiramente, Tácito afirma que "Cristo foi executado no reinado de Tibério

pelo governador... Pôncio Pilatos"17. Sabemos que Pilatos foi prefeito da

Judéia de 26 a 36 d.C, o que nos dá um intervalo ao qual nos devemos ater.

Em segundo lugar, embora Josefo mencione o mesmo episódio, não existe

consenso quanto a se as passagens que aludem a Cristo são originais ou se

foram inseridas posteriormente por editores cristãos.

O Evangelho de Lucas afirma que Jesus tinha cerca de trinta anos

ao ser batizado por João e que isso se deu após o 15" ano do reinado de

Tibério — 27 d.C.18 No entanto, ele foi batizado não muito antes da execução

de João Batista, e o Evangelho de Mateus diz que, após a morte de João,

Jesus buscou refúgio no deserto, talvez temendo pela própria vida.19 Qual a

data da execução, então? Ela não poderia ter ocorrido em 27 d.C, pois

Mateus e Marcos contam que João Batista foi preso por Herodes Antipas

devido às críticas feitas ao seu casamento com Herodíades — sua cunhada,

divorciada de seu irmão —, casamento este proibido pela lei judaica e

também condenado por um dos textos dos manuscritos do mar Morto, o

Temple Scroll20 [Manuscrito do Templo]. Após tal crítica, João foi executado.

Pelo que se tem notícia, o casamento de Herodes Antipas e Herodíades

aconteceu em 35 d.C Assim, João Batista necessariamente teria sido

executado em 35 d.C, o que significa que Jesus ainda estava vivo nessa

data.

A última Páscoa a que Pilatos assistiu foi a de 36 d.C. Em outras

palavras, tendo-se em vista que os Evangelhos dizem que Jesus foi

executado depois da morte de João Batista e por decisão de Pilatos, sua

crucificação deve ter ocorrido durante a Páscoa de 36 d.C.21 Tal data é

posterior àquela em que a maioria dos especialistas situa o fato, mas, se

Jesus nasceu na época do censo em 6 d.C, como afirma Lucas,22 e se

contava cerca de trinta anos ao morrer, 36 d.C. é precisamente a época

correta para a crucificação — a crucificação da "Estrela de Belém".

Com efeito, os cristãos antigos tinham plena consciência da

associação entre a messiânica "Estrela de Belém", a profecia da "Estrela",

conforme foi transmitida por Balaão em Números, 24,17, e Jesus. O autor

cristão Justino Mártir, que ensinava e escrevia em Roma, falecido

aproximadamente em 165 d.C, argumentou com um professor judeu,

Trypho, que Jesus era o messias, explicando que a Estrela de Belém era a

mesma profetizada por Balaão; mais uma vez, podemos perceber que a

estrela era messiânica e não astronômica.23

Confrontados pela inevitabilidade da destruição total, muitos

fugiram da Judéia. Eusébio, historiador da Igreja, relata que a comunidade

"cristã" dos primórdios — ou seja, a comunidade messiânica —, após a

execução de Tiago, em torno de 44 d.C, e antes da explosão da guerra,

trocou Jerusalém por Pella, do outro lado do Jordão, numa Síria controlada

pelos romanos.24 Esta, porém, foi provavelmente a primeira etapa de uma

longa jornada até Edessa, no norte, a capital de um reino descrito por

Eusébio como o primeiro a se converter ao cristianismo.25 Com certeza, é

verdade que na altura do século II d.C. Edessa era um centro cristão de

peso. Não pode ser coincidência o fato de o rei de Edessa no início do século

II ser filho de um rei de Abiadene (Estado situado ligeiramente a leste),

pertencente a uma família real estreitamente vinculada à causa messiânica

judaica. Com efeito, a rainha Helena de Abiadene e seu filho se converteram

ao judaísmo.26 Ademais, é certo que seu filho se converteu ao judaísmo

messiânico — em outras palavras, à causa zelote.27 Tal aliança também foi

mantida por outros. Ao menos dois parentes do rei de Abiadene foram

zelotes importantes nas primeiras batalhas da revolta contra os romanos em

66 d.C 28

No entanto, alguns judeus que permaneceram na Judéia se

opunham aos zelotes. Em Jerusalém, facções zelotes começaram a lutar

contra outras facções judias. Muitos se bandearam para o lado romano, ao

menos segundo Josefo, embora não devamos esquecer que ele tinha um forte

motivo para acentuar esse fato, já que acreditava piamente que os zelotes

eram os responsáveis pela guerra e pela destruição do Templo. Apesar de

tendencioso, seu relato talvez esteja correto, dado o que agora sabemos

sobre a desatinada determinação dos zelotes. Seja como for, a fúria da luta

foi tamanha que somos forçados a concluir que o apoio aos zelotes era

disseminado e que Josefo se esforçou para minimizá-lo. Para começar, havia

a questão dos suicídios.

Ao longo dos relatos de Josefo, fala-se constantemente de zelotes,

tanto soldados quanto civis, recorrendo ao suicídio para não cair nas mãos

dos romanos. O caso mais famoso é o do suicídio em massa em Masada,

onde 960 indivíduos se mataram. A ideologia era disseminada; resistência

armada ao governo romano, um corolário. Até Josefo se envolveu em um

pacto de suicídio — ao qual, por meio de traição, ele conseguiu sobreviver.

Mas existem também histórias, como a ocorrida em Gamala, em que cinco

mil tiraram a própria vida. Matar a si mesmo é uma coisa, mas matar a

esposa, os filhos e depois se matar é algo bem mais intrigante. O que vinha

ocorrendo ali?

Os zelotes acreditavam que se morressem em estado de pureza

ritual ressuscitariam juntos, conforme a profecia de Ezequiel: "Vou abrir

vossas sepulturas... e vos conduzirei ao solo de Israel."29 Além disso,

acreditavam que os que morressem juntos ressuscitariam juntos. Por isso os

guerreiros zelotes não apenas optavam por morrer, mas por morrer em

companhia da família. Se fossem capturados, seriam apartados, e as

mulheres e os meninos, despachados para bordéis onde perderiam sua

pureza ritual, privando-se de qualquer esperança de ressurreição.30

Jerusalém se encontrava sob o cerco das legiões de Tito. Nos dois

lados via-se muito pouco respeito mútuo ou cavalheirismo. Todos os

combatentes capturados eram crucificados e, quando isso se tornou rotina,

os soldados se divertiam pregando as vítimas em várias poses estranhas.

Tantos foram executados que os romanos ficaram sem espaço para as cruzes

e sem madeira para confeccioná-las.

Em 29 de agosto de 70 d.C, e de acordo com a profecia de Isaías, o

Templo foi destruído numa demonstração de brutalidade sem limites. Nos

dias que se seguiram, o que restou da cidade foi tomado. Tendo subjugado

Jerusalém, os romanos queimaram as casas remanescentes e derrubaram as

muralhas defensivas. A cidade ficou totalmente destruída. Todos os

combatentes capturados foram condenados à execução, os civis com mais de

17 anos, mandados para o Egito, e os mais moços, vendidos. Reservou-se

uma significativa parcela de guerreiros para morrer nas arenas, exportando-

se muitos para as províncias romanas a fim de perecerem como gladiadores

ou para serem despedaçados por bestas selvagens, para delírio das

multidões ociosas; outros foram levados por Tito em sua lenta marcha costa

acima. Em cada cidade que parava, ele organizava espetáculos na arena,

onde seus prisioneiros judeus eram atacados por animais ou obrigados a

morrer em grandes batalhas para entretenimento dos espectadores.

Durante o cerco de Jerusalém, Vespasiano se encontrava em

viagem, exibindo-se como imperador. Sua volta se deu após a queda da

cidade, e pouco depois o aniversário de seu irmão foi comemorado com a

morte na arena de mais de 2.500 prisioneiros judeus. Mais tarde, em

Beirute, o aniversário de seu pai foi comemorado com mais mortes ainda.

Durante todo esse tempo, Vespasiano planejava sua entrada triunfal em

Roma portando tesouros e prisioneiros, inclusive alguns dos líderes da

revolta que ele pretendia executar. Eram tempos difíceis.

Para os judeus, esse foi um desastre de tamanha magnitude que

até mesmo eles, que já haviam visto seu Templo virar cinzas, não

conseguiam entender. Em um sentido religioso, tratava-se de um segundo

exílio; o Templo, a Casa de Deus, o baluarte central da sua religião,

desaparecera. A própria Jerusalém também estava perdida; eles nem sequer

tinham permissão para entrar na cidade, que se chamava agora Aelia

Capitolina. Parecia que Deus os abandonara. Km todo o mundo crescia o

sentimento anti-semita — e os tumultos e as matanças destruíram a

influência, o poder e o respeito que os comerciantes, filósofos e políticos

judeus haviam merecido um dia. Até comunidades com raízes profundas

sofreram um declínio terminal quando dezenas de milhares foram mortos,

obrigando os que tiveram a sorte de sobreviver a baixar a cabeça. Alguns

sicarii conseguiram fugir para Alexandria, onde tolamente tentaram

encorajar uma luta contra os romanos. Tal era a sua determinação que

assassinaram alguns membros proeminentes da comunidade judaica que

lhes fizeram oposição. Em retaliação, ela entregou os sicarii aos romanos,

que os torturaram até a morte.

Uma pequena chama continuava a arder, porém, na cidade de

Jabneh, nas planícies costeiras da Judéia. Ali, sob a liderança de Johanan

ben Zakkai, um fariseu importante que fugira de Jerusalém e pedira a

Vespasiano o governo da cidade, o Sinédrio foi restaurado; e uma escola,

criada. Ali nasceu o judaísmo rabínico. O grande favor prestado pelo

imperador revela que Johanan, como Josefo, estava disposto a buscar uma

boa convivência com os invasores — algo que os zelotes haviam se recusado

a fazer. Ademais, dizem que Johanan também teria proclamado que a

profecia da "Estrela" messiânica se referia a Vespasiano.31

Os eruditos em Jabneh reviveram o halakhah — o lado jurídico do

judaísmo que compreendia as leis entregues a Moisés no monte Sinai e a

sua interpretação, passada de geração em geração. Esse estudo foi crucial

para um judaísmo sem o Templo. Entre 70 e 132 d.C, após a destruição de

Jerusalém, Jabneh se tornou capital do governo judeu, bem como centro do

judaísmo e do academicismo judaico. Nessa cidade, o cânone dos textos

bíblicos — o Antigo Testamento para os cristãos — foi estabelecido. Essa

centralização da fé ajudou a criar um sentido de unidade nacional depois

das terríveis destruições causadas pela guerra.

A resistência, contudo, prosseguia, de forma reduzida, mas

relevante. Os prisioneiros judeus trabalhavam como escravos, em

construções, confeccionando armas para o exército, cunhando moedas para

o governo. As moedas cunhadas nessa época enfatizavam a humilhação da

Judéia. Em algumas se lia IUDAEA CAPTA — "Judéia Conquistada" — em

um dos lados, e um soldado, uma palmeira e uma figura pesarosa

representando a Judéia no outro. Outras moedas estampavam o nome

VESPASIANO e seus títulos imperiais, inclusive P.M., de Pontifex Maximus,

ou sumo sacerdote. Outras, ainda, incluíam as palavras VICTORIA

AUG(ustus) — ou seja, vitória ao sacro imperador. Para a população judaica

constituíam um lembrete constante de sua completa subjugação. Mas um

audacioso escravo judeu que trabalhava no Tesouro romano nutria outras

idéias.

Certa vez, quando visitei um negociante de antigüidades do Oriente

Médio, ele me disse, sorrindo levemente: "Veja isto", e me entregou uma

moeda que tirou de uma de suas vitrines. Ela havia sido cunhada no

Tesouro romano de Vespasiano, mas tinha algo de diferente: no lado da

palmeira fora gravado IUDAEA AVGVST — Sacra Judéia. Um corajoso ou

imprudente escravo judeu subvertera os golpes do buril. Virei a moeda; lá

estava a efígie de Vespasiano, como de hábito. Mas também nesse lado havia

uma diferença — um grande talho fora feito na têmpora de Vespasiano com

um buril rombudo. O autor do desabafo literalmente deixara sua marca.

Essa foi a única de tais moedas jamais encontrada. Pertence a uma

coleção particular.

No verão de 115 d.C, os judeus de fora da Judéia — principalmente

os que viviam em Cirene, na Líbia, e em Alexandria, no Egito — promoveram

um levante. A insurreição se espalhou Nilo acima para várias outras cidades

do Egito. Vespasiano tinha tentado destruir todos os membros da Casa de

Davi, mas fracassara. Um outro descendente apareceu no Egito. Seu nome

era Lucuas, e o descreviam como o rei dos judeus. Foi ele quem liderou a

revolta.32 Esse levante igualmente possuía uma clara orientação

messiânica,33 o que sugere que Lucuas muito provavelmente tinha, ou

afirmava ter, ascendência davídica, mas ainda assim sabemos muito pouco a

respeito dos acontecimentos, pois não havia nenhum historiador equivalente

a Josefo para escrever sobre eles. Foram dois anos brutais, dos quais só

conhecemos o resultado. Essa revolta prejudicou por completo a situação

dos judeus no Egito. Daí em diante, eles deixaram de ter qualquer poder,

influência e até mesmo harmonia. O pior foi que os romanos a levaram

muito a sério. O Egito era extremamente importante para o império e um

golpe ali poderia deixar Roma refém. A suspensão das remessas de grãos do

Egito para a Itália faria o povo italiano morrer de fome. Roma jamais se

permitiria correr tal risco. Em reação, a revolta foi violentamente esmagada.

Quando chegou ao fim, em agosto de 117, o que se viu foi uma destruição

maciça da comunidade judaica em Alexandria.34 E no restante do Egito, o

ônus para o judaísmo só fazia crescer.

Mas os judeus ainda não haviam abandonado a esperança de um

dia recuperar sua independência, fosse por meio da destreza militar, fosse

por intervenção divina — ou ambas. Quase sessenta anos após a destruição

do Templo, durante o reinado do imperador Adriano, foi feita uma segunda

tentativa de resistência à autoridade romana.

Dessa vez, uma ação planejada durante um longo período. A

estratégia precisava ser montada em segredo absoluto. Por isso, uma rede de

bases clandestinas foi montada em cavernas subterrâneas, tanto naturais

quanto abertas pela mão humana. Ao menos seis cidades desse tipo foram

encontradas nos sopés de montanhas na Judéia; uma, em Ailabo, na

Galiléia, abrigava uma caverna escavada propositalmente sob a terra com 65

metros de comprimento e aberturas no teto para deixar passar luz e ar.35

Locais como esse serviam tanto para planejamento quanto para treinamento.

Os chefes da operação sabiam que era preciso evitar os erros da guerra

anterior, na qual os zelotes haviam se deixado encurralar dentro das

muralhas defensivas de vilarejos e cidades apenas para serem capturados e

destruídos, um a um, pelas tropas romanas, peritas em cercos. Dessa vez,

pretendiam atacar os romanos rápida e duramente e depois desaparecer em

seus redutos sob a terra com a mesma velocidade; para eles, a mobilidade

era a chave da vitória.

É importante ressaltar que agora os combatentes judeus estavam

unidos sob o comando de um único líder de destaque, chamado Simon Bar

Koseba, que viria a ser conhecido como Bar Kochba — "o Filho da Estrela" —

, revelando sua condição messiânica. Também a ele se aplicava a profecia de

Números 24: "Uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel", e

assim, ao que parece, ele também levava nas veias o sangue real de Davi. O

professor Robert Eisenman, estudioso dos manuscritos do mar Morto, fica

intrigado com a possibilidade de que Simon fosse associado não apenas

"figurativamente, mas fisicamente" a líderes messiânicos anteriores na

Judéia.36

Bar Kochba recrutou peritos militares do ultramar. Foram

encontradas listas de nomes em grego, cada um deles acompanhado do

título Adelphos ou "Irmão", como nas ordens cavaleiras posteriores, como a

dos Templários ou dos Cavaleiros de São João.37 Aqui estavam homens com

experiência militar, oriundos da diáspora judaica além da Judéia, lugares

onde se falava grego e o aramaico e o hebraico eram desconhecidos. Esses

mesmos homens faziam parte do grupo de planejamento ou, devido a sua

experiência com as tropas romanas, ajudavam no treinamento do exército

secreto judeu.

Bar Kochba sabia que seus homens iriam enfrentar o exército mais

bem disciplinado do mundo, dono de um poderio humano muitíssimo

superior ao seu: pelos seus cálculos, o exército romano contava com mais de

375 mil homens bem treinados. Havia duas legiões na Judéia, a 6a e a 10a,

com cerca de 12 mil homens e igual número de auxiliares. Além desses, nas

vizinhas províncias da Síria, Arábia e Egito, encontravam-se de cinco a sete

outras legiões e auxiliares. Os judeus poderiam, no máximo, arregimentar

sessenta mil homens, nenhum dos quais com experiência militar. O

treinamento era uma necessidade, e Bar Kochba dedicou grande parte de

seu tempo e energia a ele.

Kochba e seus homens precisavam de armas. Por isso, acharam

uma maneira criativa de garantir um suprimento, descrita pelo historiador

romano Dio Cassius em 194-216 d.C. Visto que muitos, ou a maioria, dos

operários na indústria bélica na Judéia eram judeus,

eles, deliberadamente, não confeccionavam as armas que lhes

eram encomendadas dentro do padrão exigido, a fim de que

os romanos as rejeitassem e eles próprios pudessem fazer uso

delas.38

A guerra eclodiu em 131 d.C. e teve sucesso imediato. Os civis

romanos fugiram de Jerusalém e a 10a Legião recuou. A 22a Legião, vinda do

Egito, não consta dos registros militares da época. Presume-se que foi

despachada às pressas para a Judéia de sua base egípcia, mas que tenha

sido subjugada e totalmente aniquilada. Jerusalém foi retomada dos

romanos, suas muralhas repintadas e um governo civil judeu instalado.

Durante quase dois anos, a Judéia ficou livre dos romanos. Mas, é claro,

estes estavam reunindo soldados para voltar com um poderio arrasador.

Dessa vez, o próprio Adriano assumiu o comando. Veio com ele o

governador da Britânia, Julius Severus, que o imperador considerava o

melhor de todos os seus generais. Em 133 d.C, nove ou, talvez, 12 legiões

romanas e auxiliares, convocadas até mesmo da longínqua Britânia — cerca

de sessenta a oitenta mil soldados —, invadiram a Galiléia pelo oeste e a

partir da outra margem do Jordão, a leste. Tiveram, porém, dificuldade para

avançar. Os combatentes judeus montaram uma defesa muito flexível. O ex-

oficial graduado do exército, professor Mordechai Gichon, escreveu a respeito

da estratégia de longo prazo de Bar Kochba:

A esperança tangível judaica residia em estender a guerra tempo

bastante para açular as forças hostis de dentro e de fora, empunhar

armas e exaurir a energia romana para vencer esta guerra a

qualquer preço.39

Mas a perderam. Simon Bar Kochba foi morto no verão de 135 d.C,

enquanto defendia a cidade de Bethar. Sua grande campanha chegara ao

fim.

Adriano, desejando apagar da memória a Judéia, trocou-lhe o

nome para Palaestina, hoje Palestina. Duas gerações depois, porém, a

população conseguiu uma autonomia considerável — incluída aí a dispensa

de "qualquer dever que conflitasse com a observância de suas normas e

crenças religiosas"40.

Aparentemente, os romanos ainda se lembravam dos rios de

sangue que a reconquista da Judéia lhes custara. E a lembrança ainda lhes

doía.

Fiquei amigo do professor Mordechai Gichon em Israel durante

uma época em que colaborei regularmente em trabalhos arqueológicos com o

professor Robert Eisenman e sua equipe da Universidade Estadual da

Califórnia, em Long Beach. O extenso conhecimento de Gichhon a respeito

de Bar Kochba me fascinou, e ele ficou curioso e interessado quanto à tese

exposta em O Santo Graal e a linhagem sagrada, que havia lido. Certa vez,

ele me levou — juntamente com alguns dos estudantes e voluntários que

auxiliavam em nossas escavações no mar Morto — para visitar uma das

últimas fortalezas de Bar Kochba tomadas pelos soldados romanos. Tratava-

se de ruínas abandonadas, perto de Emaús, aos pés das montanhas da

Judéia, a meio caminho entre Jerusalém e o litoral. O local nunca havia sido

escavado, e o professor Gichon ansiava pela oportunidade de fazê-lo. Logo eu

iria descobrir por quê.

Sob a plataforma revestida de pedra da fortaleza havia uma

sucessão de túneis. Quando a fortaleza foi tomada pelos romanos, os

defensores se retiraram para esses túneis através dos quais engatinhamos.

Dali, eles provavelmente ouviam os romanos conversando apenas alguns

metros acima. Uma das curiosidades do local é a planta das cisternas: as

que supriam a fortaleza eram acessíveis de cima, através de uma abertura

na plataforma, à semelhança de um poço. Mas tais cisternas eram mais ou

menos circulares, bulbosas, ou seja, a água se estendia além da abertura de

acesso por alguns metros sob a plataforma pavimentada. Os túneis abaixo

permitiam o acesso dos defensores refugiados à margem das cisternas,

invisível para os romanos, possibilitando-lhes viver algumas semanas sob a

fortaleza, apanhando água sem que os inimigos suspeitassem da sua

presença. O principal refúgio, porém, ficava ainda mais incrustado na

montanha, em túneis subterrâneos acessíveis por uma única entrada no

patamar superior. Os combatentes de Bar Kochba e suas famílias

provavelmente só vinham à superfície para pegar água.

Quando finalmente descobriram o que se passava sob seus pés, os

romanos encheram as cisternas com pedras, destruindo o suprimento de

água. Invadiram, então, o complexo do túnel e se arrastaram por ali na

tentativa de destruir os combatentes de Bar Kochba que haviam fugido para

os níveis mais profundos.

Gichon pediu que eu o seguisse enquanto se arrastava à minha

frente pelos túneis claustrofóbicos. Chegamos, então, a um deles, que fazia

uma curva fechada para dentro da encosta rochosa. Ele fora fechado com

pedra e cimento.

"Os romanos o selaram para sempre", explicou ele. E após uma

pausa concluiu: "O túnel nunca foi reaberto. Todos os defensores ainda

estão aí embaixo..."

Levei um momento para me dar conta da magnitude do que ouvira.

Então, imaginei a cena trágica e horripilante que aguarda o primeiro

arqueólogo a remover aquela muralha de pedra e se arrastar para dentro do

túnel. Jamais me esqueci daquela pequena entrada lacrada para o refúgio

que, em poucos minutos, há quase 1.900 anos, tornou-se um túmulo para

os vivos.

Era esse o perfil do mundo em que Jesus, seus seguidores e ao

menos os primeiros de seus biógrafos posteriores viveram. Também desse

mundo emergiu o cristianismo. E é da junção dos dois lados desse mundo

que brota tanta disputa. Foi, como vimos, uma época em que a crença era

tudo, e a crença errada dentro do contexto errado podia acarretar uma morte

repentina, fosse nas mãos dos romanos via crucificação, fosse na dos

impetuosos sicarii via adaga letal.

Poucos desses acontecimentos chegaram aos Evangelhos. Em

lugar de história, o nosso Novo Testamento nos apresenta uma visão

saneada, censurada e muitas vezes invertida daqueles tempos. No entanto,

mesmo os que trouxeram o Novo Testamento até nós foram incapazes de

extirpar totalmente o mundo em que seus personagens se moviam. Jesus

nasceu e passou seus anos de formação na época em que surgiu o

movimento zelote. Quando iniciou seu ministério, por volta dos trinta anos,

sabia-se que alguns de seus seguidores mais próximos faziam parte desse

movimento messiânico, movimento no qual Jesus nascera para ter um

importante papel. No Novo Testamento, podemos ver as alegações contra os

romanos e sentir que uma espécie de violência surda permeava a época —

sensação que se aguça, é claro, quando chegamos ao fim da história, com a

crucificação de Jesus.

Mas o relato que nos fazem dessa crucificação teve, de forma

deliberada, seu contexto político expurgado. Isso prova que censores

posteriores fizeram uma tentativa orquestrada para apartar Jesus e a sua

vida dos tempos históricos em que ele nasceu, viveu e morreu — seja como

for que tenha morrido. Assim procedendo, esses censores fizeram algo ainda

mais pernicioso: extraíram Jesus de seu contexto judaico. E hoje um bom

número de cristãos permanece totalmente alheio ao fato de que Jesus nunca

foi um cristão; ele nasceu judeu e como tal viveu.

Uma geração após a crucificação de Jesus — ou, ao menos, de sua

saída de cena —, o judaísmo perdeu Jerusalém e o Templo. A fé passou,

então, a centrar-se na escola rabínica em Jabneh. Ao mesmo tempo, teve

início a manipulação da história de Jesus que acabou por criar uma tradição

calcada nele em vez de centrada em Deus. Esse era um ponto sobre o qual

muitos cronistas dos primórdios não concordavam, mas que afinal

suplantou todas as outras explicações alternativas. As origens judaicas de

Jesus tornaram-se subordinadas a um contexto pagão cada vez mais

influente adquirido pelos convertidos ao cristianismo no convívio com os

gregos e os romanos. Essa influência paga afastou radicalmente, nos séculos

que se seguiram, o cristianismo e sua visão de Jesus do judaísmo.

O público-alvo da mensagem cristã mudara nitidamente: ela já não

se destinava aos judeus, mas era endereçada aos pagãos — os que

acreditavam em deuses e deusas como Mitra, Dionísio, Isis e Deméter — e,

assim, precisava ser apresentada em nova embalagem, com uma pitada de

anti-semitismo. Estava preparado o terreno para a reinterpretação da

história e o começo do triunfo do artificial "Jesus de Fé" sobre o verdadeiro

Jesus da história — um homem que falava de Deus, que pregava uma

mensagem divina, mas que não afirmou pessoalmente ser Deus.

No que constitui provavelmente um milagre, um dos Evangelhos,

embora criando uma distância entre Jesus e seu contexto judaico, ainda

mantém elementos do Jesus histórico e da abrangência de seus

ensinamentos sobre divindade:

Os judeus, outra vez, apanharam pedras para apedrejá-lo. Jesus

então lhes disse: "Eu vos mostrei inúmeras boas obras... por qual

delas quereis lapidar-me?" Os judeus lhe responderam: "Não te

lapidamos por causa de uma boa obra, mas por blasfêmia, porque,

sendo apenas homem, tu te fazes Deus." Jesus lhes respondeu: "Não

está escrito em vossa hei: Eu disse: Sois deuses? Se ela chama

deuses aqueles aos quais a palavra de Deus foi dirigida...41

Entre o momento em que essas palavras foram ditas e

reproduzidas por escrito, talvez próximo ao final do século I d.C, Jesus foi

transformado em cristão. E ser cristão significava seguir ensinamentos

muito diversos dos do judaísmo. Isso fica evidente em um diálogo registrado

entre o Pai da Igreja Justino Mártir, do século II, e um professor judeu

chamado Trypho. O último argumenta com bastante propriedade:

— Os que afirmam que [Jesus] foi um homem, e que foi ungido por

escolha, e depois se tornou Cristo, me parecem falar de modo plausível...42

Para reforçar seu argumento, ele desafia Justino:

— Responda-me, então, em primeiro lugar, como você pode

demonstrar que existe outro Deus além do Criador de todas as coisas; e

então, demonstre [além disso] que Ele se submeteu a nascer da Virgem.43

Deixando de lado os detalhes da discussão e as respostas de

Justino — ambíguas e fracas, segundo Trypho —, o que fica claro é que uma

distância, que agora é intransponível, se estabeleceu entre as duas religiões.

Pouca flexibilidade restou àqueles que marcharam resolutamente na direção

do horizonte que se tornaria a ortodoxia cristã. Para Justino só importava a

crença em Jesus, e essa crença podia trazer a todos a salvação, "mesmo que

nenhum deles respeite o Sabbath, seja circuncidado ou observe as festas"44.

Como podemos observar, a lei judaica foi deixada bem para trás —

juntamente com a verdadeira história de Jesus.

NOTAS

1 Josefo, The Jewish War, II, XVII (p. 154). 2 Id., ibid., III, viii (p. 208). 3 Eisler, The Messiah Jesus and John the Baptist, p. 557.O outro amigo presente provavelmente era

Muciano, governador da Síria. 4 Josefo, The Jewish War, III, viii (p. 212). 5 Números 24,17. 6 Josefo, The Jewish War, VI, v (p. 350). 7 Suetônio, The Twelve Caesars, Vespasian, iv (p. 281). 8 Tácito, The Histories, V, XIII (p. 279) 9 Josefo, The Jewish War, IV, X (p. 272). 10 Dio Cassius, Roman History, Xiphilini, Ixvi, 8 (mencionado em Eisler, The Messiah Jesus and John

the Baptist, p. 556). 11 Eisler, The Messiah Jesus and John the Baptist, p. 556-7. Profecia de Isaías 35,5. 12 Isaías 5,5.7. 13 Josefo, TheJewish War, p. 350. 14 Eusébio, The History of the Church, III, XII (p. 124), citando Hegesippus. 15 Bíblia de Jerusalém (3a impressão 2004), p. 2183. 16 Evangelho de João 2,13.20. Com a Páscoa chegando, Jesus visita Jerusalém. Dizem-lhe que a

construção do Templo durou 46 anos. O Templo foi iniciado no período de 20-29 a.C, logo, 26 anos

mais tarde o ano seria 27 ou 28 d.C. 17 Tácito, Annals, p. 365. 18 Evangelho de Lucas 3,1.23. Ano segundo os cálculos sírios. 19 Evangelho de Mateus 14,13. 20 Garcia Martínez, The Temple Scroll, col. 66, p. 179. 21 Schonfield, The Pentecost Revolution, p. 46-47. 22 Evangelho de Lucas 2,2. 23 Justino Mártir, Dialogue With Trypho, CVI (p. 233). 24 Eusébio, The History of the Church, III, v (p. 111). 25 Eusébio, The History of the Church, I, i (p. 73). Eusébio situa essa conversa durante o período em

que Jesus viveu, o que provavelmente é uma confusão com o membro da família que se converteu ao

judaísmo messiânico. 26 Josefo, Antiquities of the Jews, XX, ii (p. 416). 27 Eisenman, James the Brother of Jesus, p. 892-895, 902. 28 Josefo, The Jewish War, II, XIX (p. 166). 29 Ezequiel 37,12-14. Uma cópia do capítulo 37 de Ezequiel foi descoberta por arqueólogos sob o piso

da sinagoga na fortaleza de Masada. 30 Para uma discussão ampla da ideologia por trás dos suicídios zelotes conforme explanação de

Eisenman, ver Baigent e Leigh, Dead Sea Scrolls Deception, p. 211-217. Ver, ainda, Eisenman,

Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran, in: The Dead Sea Scrolls and the First Christians, p.

62, onde ele chama a atenção para a importância crucial para os zelotes de "providenciar um fim

devoto". 31 Eisenman, Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran, in: The Dead Sea Scrolls and the First

Christians, p. 31 e n. 54; nomeando a fonte como Abot de Rabbi Nathan, 4.5. 32 Eusébio, The History of the Church, IV, ii (p. 154-155). 33 Modrzejewski, The Jews of Egypt, p. 204-

205. 34 Id. ibid., p.199 35 Gichon, The Bar Kochba War, Revue International d'Histoire Militaire, 1979, p. 88. 36 Eisenman, Maccabees, Zadokites, Christians and Qumran, op. cit., p. 108. Ver, ainda, p. 108, n.

180. 37 Gichon, The Bar Kochba War, p. 92. 38 Dio Cassius, Roman History, LXIX, 12, 2-3. 39 Gichon, The Bar Kochba War, Revue International d'Histoire Militaire, p.94. 40 Gichon, The Bar Kochba War, Revue International d'Histoire Militaire, p. 97, n. 41, citando uma

das leis do reinado do imperador romano Sétimo Severo, 193-211. 41 Evangelho de João 10,31-35. 42 Justino Mártir, Dialogue with Trypho, XLIX (p. 149). 45 Id., ibid., L (p. 151). 44 Id., ibid., XXVI (p. 119).

CCAAPPÍÍTTUULLOO VV

CCRRIIAANNDDOO OO JJEESSUUSS DDAA FFÉÉ

ILUSTRAÇÕES CRISTÃS MODERNAS reproduzem a imagem popular de

Jesus vagando pela antiga Israel — o sol iluminando seu cabelo louro sem

limais queimar sua pele clara. Elas o retratam como um missionário cristão

acompanhado de seus discípulos, alguns dos quais já escreviam seus

Evangelhos a fim de registrar as palavras sagradas de um deus vivo.

Já apontamos para a falha óbvia nesse retrato: Jesus era judeu;

um palestino moreno e não um louro norte-europeu. Mas a imagem contem

um outro equívoco profundo, igualmente relevante, mas menos conhecido:

não existia algo chamado Evangelho na época, menos linda um "Novo

Testamento"; não existia "cristianismo". Os livros sagrados usados por Jesus

e seus discípulos eram os do judaísmo — o que fica imediatamente evidente

para qualquer um que leia o Novo Testamento e perceba a grande

familiaridade de Jesus com as escrituras judaicas, a facilidade com que ele

citava seus textos, supondo igual familiaridade com os mesmos da parte da

platéia, presumindo-se, é claro, que os acontecimentos descritos nos

Evangelhos de fato tenham ocorrido.

Sempre nos disseram com muita convicção que os vários

Evangelhos foram escritos nos anos finais do século I d.C, por isso é uma

surpresa descobrir que não existia um Novo Testamento no início do século

II d.C. Ou até mesmo no final deste, embora àquela altura alguns teólogos,

inquietos sobre o que consideravam ser a "verdade", estivessem tentando

criar um. A despeito das tentativas esforçadas desses teólogos, os cristãos

foram obrigados a esperar mais quase dois séculos por um texto de

consenso. O que, então, eles estavam realmente esperando?

Essa demora em chegar a uma coleção oficial de textos cristãos põe

em xeque a disseminada crença dos últimos 1.500 anos de que cada palavra

no Novo Testamento é uma transmissão fiel das proferidas pelo próprio

Deus. Para um observador independente, parece mais provável que não

apenas o Novo Testamento tenha sido deliberadamente imposto a um deus

que estava bastante satisfeito com uma ampla pregação de ensinamentos,

mas também que tenha sido deliberadamente imposto por um grupo de

indivíduos desejosos de controlar a pregação divina em proveito do próprio

poder.

A demora, na verdade, ocorreu quando a teologia buscava se

adequar à demanda por uma ortodoxia centralizada. Até que fossem

tomadas decisões-chave que confirmassem a divindade de Jesus, os líderes

da Igreja não dispunham de critérios oficialmente aprovados sobre os quais

basear a escolha dos textos destinados a representar a religião recém-criada.

Mais crítico ainda é o fato de muitos hoje considerarem

sacrossantos os textos do Novo Testamento, acreditando que eles sejam as

palavras divinas de Deus, transcritas para representar o único meio pelo

qual podemos ser salvos — palavras que não podem ser alteradas nem

interpretadas senão literalmente. Ninguém jamais lhes disse que essa não foi

a intenção dos primeiros compiladores das tradições sobre Jesus que

constituem a coleção. Com efeito, durante os primeiros 150 anos da tradição

cristã, os únicos escritos autorizados eram os livros reunidos no que se

CHAMA hoje de "Antigo Testamento".1

Um bom exemplo da antiga atitude em relação às escrituras é dado

pelo escritor cristão do século II Justino Mártir. Para ele, o que conhecemos

como Evangelhos eram simples registros das lembranças dos vários

apóstolos, que podiam ser lidos na igreja e usados como suporte da fé, mas

que jamais foram consideradas "sagradas escrituras". O termo sagrada

escritura era reservado para os livros da lei e os dos profetas — ou seja, o

Antigo Testamento. Sem rodeios, Justino Mártir "em nenhum momento

considera os Evangelhos ou as 'Lembranças dos Apóstolos' textos

inspirados."2 Justino alcançou o mais alto grau da santidade, mas sua

posição seria encarada como radical, vaso fosse adotada por qualquer

membro da Igreja Cristã hoje.

Decerto é verdade, porém, que, durante o final do século I e

durante todo o século II d.C, as tradições sobre Jesus começaram a ser

registradas. Relatos e histórias sobre os acontecimentos de sua vida foram

coletados, mas nenhum deles foi, na época, taxado de oficial ou de coletânea

autorizada. Também é verdade que os textos que hoje aparecem em nosso

Novo Testamento foram escritos nesse período. No final do século I e ao

longo do século II d.C, todo o conceito de "cristianismo" cristalizou-se a

partir do judaísmo messiânico e isso nos leva, de imediato, a vários desafios

logísticos, alguns bastante radicais.

Um fenômeno curioso teve início no século II a.C: a palavra

aramaica meshiha — messias —, que não tem outra explicação senão a que

lhe foi atribuída, passou a ser empregada para referir-se ao governante

genuíno de Israel. Em especial, ela indicava o esperado rei da linhagem real

de Davi.3 Uma esperança generalizada na chegada de um descendente do rei

Davi encontrou expressão nos livros dos profetas, no Antigo Testamento.

Assim, o uso cristão do termo Christos, ou Cristo, uma tradução grega do

aramaico meshiha, juntamente com a transliteração para o grego messias,

derivou de um contexto e emprego judaico, que já era bem compreendido na

época de Jesus.4

O desafio logístico mais radical consiste em responder a uma

acusação feita com constância, principalmente nos últimos 150 anos: a de

que Jesus não existiu e que as histórias a seu respeito não passam de

simples fábulas de diversos líderes messiânicos que mais tarde foram

reunidas a fim de justificar, primeiro, uma posição paulina e, mais tarde,

uma tradição centrada em Roma na qual o messias judeu foi transformado

numa figura imperial deificada, uma espécie de anjo real. O dr. William

Horbury, professor de estudos judaicos e cristãos antigos da Universidade de

Cambridge, observou recentemente que "Um culto aos anjos... acompanhou

a evolução do culto a Cristo."5

Podemos realmente ter certeza de que Jesus existiu? Há alguma

prova dessa realidade, afora o Novo Testamento? Se não há, se o Novo

Testamento foi elaborado muito após a sua época, como saber se todo o

conceito de Jesus Cristo não é apenas um mito antigo com um novo

enfoque? Talvez seja apenas algum tipo de reescritura do mito de Adônis ou

do de Osíris ou do de Mitra: os três nasceram de uma virgem e foram

ressuscitados dos mortos — uma história familiar aos cristãos.

Há um bom número de motivos, segundo Horbury, para enxergar

no cristianismo dos primórdios "um culto a Cristo, comparável aos cultos

aos heróis greco-romanos, aos soberanos e às divindades"6. Além disso,

como já mencionamos, este culto foi acompanhado de um culto aos anjos.

Horbury explica que parece provável que o título dado a Jesus, "Filho do

homem", o associasse a "um messias angelical"7. Na verdade, "Cristo,

precisamente em sua condição de messias, podia ser considerado um

espírito angelical... Parece provável que o messianismo constituísse o veículo

principal para impingir a angelologia na cristologia nascitura, e que Cristo,

precisamente como messias, fosse visto como um ser espiritual angelical"8.

Estamos, então, unicamente lidando com um antigo mito revisitado para os

propósitos do cristianismo?

Já vimos que a palavra "Jesus" deriva simplesmente do aramaico

Yeshua, que pode significar Joshua, mas também "o Libertador", o

"Salvador". Assim, talvez se tratasse apenas de um título. Também

observamos que "Cristo" vem de christos, a tradução grega do aramaico

meshiha, que quer dizer "o ungido". Dessa forma, estamos diante de um

título duplo: "O Libertador (ou salvador), o ungido." Nesse caso, qual era o

seu nome? Realmente não sabemos — alguma coisa "bem Davi",

suporíamos, mas isso é tudo que podemos divisar.

Não adianta recorrer ao Novo Testamento para obter indícios, pois

não temos idéia do quanto de história e do quanto de fantasia contêm os

textos. De qualquer forma, os fragmentos mais remotos que possuímos

datam do século II d.C. — em torno de 125 d.C, no caso de alguns trechos

do Evangelho de João. E quanto às epístolas de Paulo? Afinal, elas foram

escritas antes da primeira guerra contra os romanos. A mais antiga — a

primeira epístola de Paulo aos tessa-lonicences — datada de quando ele

morou em Corinto, do inverno de 50 d.C. ao verão de 52 d.C.9 O restante de

suas cartas foi produzido entre 56 d.C. e 60 d.C, talvez mesmo mais tarde,

quando ele esteve cm Roma e foi supostamente executado por volta de 65

d.C — embora ninguém conheça a verdade dos fatos, já que o Livro dos Atos

dos Apóstolos, a única fonte que traz detalhes das viagens de Paulo, se

encerra com a sua prisão domiciliar em Roma.

Infelizmente, também não podemos ter certeza quanto à

autenticidade de todas as epístolas de Paulo contidas no Novo Testamento,

pois as cópias mais antigas de que dispomos datam do início do século III.10

Nas cartas escritas em 115 d.C por Inácio, bispo de Antioquia, a caminho de

Roma, ele cita trechos de várias cartas de Paulo, de modo que sabemos que

algumas ainda existiam em sua época, mas desconhecemos se haviam sido

editadas — antes ou depois. Em todo caso, Paulo não conheceu Jesus e, ao

contrário dos Evangelhos, não demonstrava qualquer preocupação com o

que Jesus tivesse dito ou feito. Não conseguimos informação alguma sobre

Jesus por meio de Paulo, cujas cartas proclamam o Evangelho de... ora, de

Paulo: a crucificação e a ressurreição de Jesus marcaram o início de uma

nova era na história do mundo e seu efeito prático mais imediato foi o fim da

lei judaica — postura bem diversa da adotada por Jesus no Sermão da

Montanha:

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-

los, mas dar-lhes pleno cumprimento.11

Nenhum registro de Pilatos sobreviveu: igualmente não existem

registros de Herodes, nem do exército romano ou de outros órgãos

administrativos. Isso, porém, não constitui surpresa, já que o Registro

público dos reis herodianos foi queimado durante a guerra. Os registros

romanos oficiais deviam ficar guardados na capital administrativa, Cesaréia,

também envolvida na luta. Cópias e relatórios teriam voltado para Roma,

mas ainda que sobrevivessem às várias destruições em reinados de

imperadores posteriores, como Domiciano, ter-se-iam perdido no saque de

Roma pelos godos em 405 d.C., quando tantos arquivos oficiais foram

destruídos — os que não haviam sido levados para Constantinopla.

Naturalmente, àquela altura Roma era cristã, logo, podemos estar certos de

que quaisquer documentos que comprometessem a evolução da história de

Cristo já teriam sitio removidos ou destruídos. Há boas razões para se

pensar que os relatórios de Pilatos se achassem entre tais documentos.

Mas nem tudo está perdido: Josefo certamente tinha acesso aos

registros romanos, e se Jesus fosse ali mencionado, ele teria lido sobre ele.

Com efeito, Josefo menciona Jesus, mas de forma tal que faz com que

qualquer um que ponha os olhos no texto o considere uma inserção cristã

posterior, embora provavelmente exista uma pitada de verdade em algum

lugar de seu relato. Josefo, porém, não é capaz de nos ajudar realmente,

pois provou ser uma testemunha e um cronista não confiável. Nosso outro

cronista e filósofo judeu, Filo de Alexandria, que morreu em torno de 50 d.C,

nem sequer menciona Jesus. Trata-se de uma curiosidade para a qual não

existe explicação razoável, apenas servindo de indício da ausência da

realidade de Jesus ou da sua irrelevância na vida dos cultos judaicos

alexandrinos.

No entanto, restaram obras de historiadores romanos que, ao

mesmo tempo, gozavam de acesso a Roma e tiveram oportunidade de

investigar os cristãos muito antes que qualquer ortodoxia se desenvolvesse

na Igreja. Seus testemunhos, assim, são de grande importância. Com base

em seus relatos, é inegável a existência nos arquivos romanos de relatórios

oficiais mencionando os cristãos. O primeiro desses historiadores foi o

escritor eclesiástico dos primórdios, Tertuliano (c. 160-225 d.C), que se

referiu a esses registros como fato reconhecido, embora aparentemente não

tenha tido acesso a nenhum.12

O historiador Tácito (c.55-120 d.C) foi senador romano na época de

Domiciano e, mais tarde, governador da Anatólia ocidental na Turquia e,

nessa última condição, teve ampla oportunidade de interrogar cristãos —

chamados de chrestiani — arrastados aos seus tribunais. Escrevendo sobre o

incêndio de Roma durante o reinado de Nero, ele explica:

Nero fabricava bodes expiatórios — e punia com refinamento os

notoriamente depravados cristãos (como eram chamados

popularmente). Aquele que lhes deu origem, Cristo, fora executado

no reinado de Tibério pelo governador da Judéia Pôncio Pilatos. Mas

a despeito desse revés temporário, a superstição mortal brotara

novamente, não apenas na Judéia (onde o mal começara), mas até

mesmo em Roma.

Porque, acrescenta ele numa tirada sarcástica:

Todas as práticas degradantes e vergonhosas se reúnem e

florescem na capital.13

O amigo e aluno de Tácito, Plínio, o Jovem, também menciona os

cristãos. Ele teve a oportunidade de interrogar vários deles formalmente e

mandou dizer a Roma que os mesmos cantavam hinos a "Christus", como se

ele fosse um deus.14

Os escritores pagãos Lucian e Celsus, do século II, retratam Jesus

como um feiticeiro e um "fomentador de rebeliões"15, ambas as atividades

consideradas crime pela lei romana e puníveis com a pena de morte. Temos

ainda a última menção, já abordada, do historiador Suetônio, que

escrevendo por volta de 117-138 explica que durante o governo de Cláudio

os judeus se insurgiram em Roma instigados por "Chrestus"16.

Assim é que resta pouca dúvida de que Jesus Christos — o messias

— tenha existido, já que esses escritores romanos são bastante claros a

respeito. Não apenas isso, mas todos esses escritores romanos concordam

que os registros demonstravam que este messias foi julgado o "executado"

por atos políticos.

Não sejamos, porém, demasiado confiantes: o que sabem,

especificamente, tais escritores? De quem estão falando? Pode ser de

"Christos" ou "Chrestos", ou seja, do "messias"; não sabemos ainda seu

nome. Nossa única certeza é que Pôncio Pilatos, durante o reinado de

Tibério, executou um "messias" judeu, que por ser um insurgente político

contra Roma mereceu a pena de crucificação. A partir deste "messias"

cresceu um movimento que na altura, no mínimo, do final do século era

chamado de "cristão".

Por mais que tentemos, não podemos descartar a importância do

século II d.C. para o início dos registros do culto a Jesus. O fragmento mais

antigo que temos hoje do Novo Testamento é um trecho do Evangelho de

João escrito por volta de 125 d.C. no Egito e atualmente guardado na

Biblioteca John Rylands, em Manchester. No entanto, o texto ou tradição do

qual ele deriva remonta, nitidamente, a uma época anterior. Do final do

século temos centenas de documentos que representam textos diversos,

desde os Evangelhos até vários dos Atos dos Apóstolos. O professor Helmut

Koester, da Universidade de Harvard, analisa um bocado dessas obras em

seu livro Ancient Christian Gospels [Antigos Evangelhos cristãos]. Existe um

número surpreendentemente grande delas — o Evangelho de Pedro, o

Evangelho de Tome, o Evangelho Secreto de Marcos, o Evangelho segundo os

egípcios, além das cartas de Clemente, bispo de Roma, outras de Pedro e

documentos como o Apócrifo de Tiago, o Diálogo do Salvador, os textos

desconhecidos registrados no Papiro Egerton n° 2, no Museu Britânico, e

várias histórias infantis. Todos existiam no século II d.C. e todos têm

grandes chances de conter alguma informação original e válida sobre Jesus

derivada seja do registro oral, seja de várias compilações muito antigas dos

"ditos".

Com um leque tão extenso de "lembranças de Jesus" registrado

não espanta que abordagens tão diversas tenham ganhado forma. Além

disso, também não espanta que uma corrente em particular tentasse

prevalecer: a baseada na obra de Paulo, que contava com o apoio daqueles

cristãos com uma história paga em vez de judaica.

As epístolas de Paulo no Novo Testamento são muito diferentes dos

Evangelhos. Para começar, ele não conta qualquer história sobre Jesus.

Paulo conta apenas histórias sobre si mesmo. Paulo não conheceu Jesus

pessoalmente — pelo que sabemos —, e seu ministério tinha como alvo

aqueles potenciais convertidos pagãos, os gentios. É sintomático que a

liderança cristã judaica em Jerusalém, sob orientação de Tiago, o irmão de

Jesus, tirasse Paulo de Israel, mandando-o para longe, costa acima, na

direção de Antioquia e outros lugares.

Deviam saber que Paulo não estava do lado deles. Tiago e os outros

Se preocupavam bastante com a manutenção da lei judaica, enquanto Paulo

sugeria que a lei era pouco relevante àquela altura — os gentios podiam se

tornar cristãos sem aderir à totalidade da lei. Essa idéia representava um

anátema para Tiago — como diz a sua epístola:

Com efeito, aquele que guarda toda a Lei, mas desobedece a um só

ponto, torna-se culpado da transgressão da Lei inteira.17

A abordagem de Paulo, ao contrário, era "a circuncisão do coração,

não a da carne". Ele adotou uma flexibilidade com relação à lei judaica.18 "O

homem é justificado pela fé", escreveu Paulo, "sem a prática da Lei". Ele

pergunta: "Então eliminamos a Lei através da fé?"; e responde à própria

pergunta retórica: "De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos."19

Isso nos leva à linha divisória básica que separou duas fortes

tradições quando o cristianismo adentrou o século II d.C: de um lado

estavam aqueles que buscavam o conhecimento e do outro os que se

contentavam com a crença. É importante distinguirmos entre os dois, já que

essa linha divisória é uma das principais forças que acabaram cristalizando

a posição cristã ortodoxa.

"A fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades

que não se vêem." Foi o que escreveu Paulo em sua epístola aos hebreus.20

Mas fé é algo menor que conhecimento. Sempre considerei este fato

auto-evidente, mas deixem-me ilustrá-lo com um exemplo.

Podemos ter medo do fogo porque acreditamos que se a nossa mão

encostar numa chama sairá queimada, e sentiremos dor. Podemos ter fé na

verdade disso. Mas até que o façamos — até que encostemos a mão numa

chama e a dor proveniente da queimadura resulte daí — não somos

verdadeiramente capazes de saber como é essa dor. Esse conhecimento

empírico — diverso, por exemplo, de saber que dois mais dois são quatro — é

chamado de gnosis em grego. Por essa mesma razão, os membros dos grupos

místicos dentro do cristianismo que desejavam por si mesmos vivenciar

Deus se auto-intitulavam gnósticos. Não sabemos quando teve início essa

idéia dentro do cristianismo, mas uma abordagem mística como essa,

baseada numa experiência pessoal profunda, há muito era comum nas

religiões pagãs. O século II d.C. viu crescer rapidamente a sua popularidade

em toda a Igreja Cristã.

Os gnósticos, a despeito da complexidade de boa parte da sua

literatura, se preocupavam menos com os fatos sobre Jesus e Deus e com a

fé nas várias escrituras e lembranças do que se preocupavam em conhecer,

diretamente, por experiência própria, o que era Deus. Preocupavam-se

menos com a fé nas palavras de Jesus e mais em se assemelharem a ele e,

como ele, em conhecer Deus, conforme expressa um dos textos gnósticos

descobertos em Nag Hammadi, o Evangelho de Tomé:

Quando conhecerdes a vós mesmos, então vos tomareis conhecidos,

e perceber eis que sois vós os filhos do Pai vivo.21

Nunca é demais ressaltar que o material para fundamentar

quaisquer dos pontos de vista desse leque emergente foi selecionado

unicamente com base em critérios teológicos: alguém, algum grupo, sentou-

se e resolveu — a partir da própria perspectiva e interpretação — que esse

livro deveria ser considerado "autêntico" e aquele outro "falso"; ou seja,

"ortodoxo" ou "herético". O fato de terem ou não sido usados fundamentos

teológicos não justifica as decisões tomadas, apesar de todos os apelos por

orientação divina. Decisões muito humanas foram tomadas com base em

prioridades muito humanas — a maioria concernente a controle e poder.

Como escreve o professor Koester:

...no período mais remoto do cristianismo, os epítetos "herético"

e "ortodoxo" são inexpressivos.11

Maior absurdo ainda é pensar que os livros que temos em nosso

Novo Testamento são as únicas tradições autênticas sobre Jesus. Mais uma

vez, o comentário do professor Koester é direto:

Só a parcialidade dogmática pode assegurar que os textos canônicos

têm um direito exclusivo à origem apostólica e, assim, à prioridade

histórica.13

Com efeito, não houve acordo sobre o nosso Novo Testamento até

os Concílios de Hipo e de Cartago, em 393 d.C. e 397 d.C. — mais de 360

anos após os acontecimentos a que ele alude.

Por volta de 140 d.C, um armador abastado e cristão convertido,

Marcião, viajou de sua terra, Pontus, até Roma, onde fundou sua própria

comunidade, criando a partir dali comunidades em todo o império romano.

Todos os seus escritos se perderam, mas, segundo seus críticos, ele afirmava

que apenas Paulo conhecia a verdade: Marcião considerava os outros

discípulos por demais influenciados pelo judaísmo. Rejeitava por completo o

Antigo Testamento e usava apenas algumas das epístolas paulinas,

juntamente com uma versão (ditada de Lucas, à qual se referia como um

"Evangelho". Marcião, aparentemente, foi a primeira pessoa a empregar esse

termo com relação a um texto escrito, e sua organização, a primeira Igreja

Cristã a possuir sua própria sagrada escritura.24 Para ele, o cristianismo

havia irrevogavelmente substituído tudo que derivava da antiga tradição

judaica do Antigo Testamento, incluídos aí os livros dos profetas. Marcião

talvez tenha representado o maior perigo para a Igreja entre a metade e o

final do século I, e em 144 d.C. foi formalmente excomungado da Igreja

Romana.

Mas o efeito da sua utilização dos textos foi forçar a incipiente

tradição cristã a abandonar a oral e dar início a uma tradição escrita

baseada nos "Evangelhos" — cuja autoria era atribuída a vários apóstolos —,

a fim de criar um cânone oficial aceitável de literatura sagrada, um Novo

Testamento. Esse desejo de elaborar uma lista oficial de textos ganhou forma

pela primeira vez por iniciativa de Irineu, bispo de Lyons, a capital da Gália

romana.

Ele e seus colegas guardiões da ortodoxia não aceitariam qualquer

desvio do que consideravam "a verdade". Não se impressionavam com o

paulinismo obsessivo de Marcião, nem nutriam qualquer afeição pelos

gnósticos, que professavam que o conhecimento direto do Divino era

superior a qualquer fé ou crença. Tomando a frente outra tal postura, Irineu,

por volta de 180 d.C, escreveu uma obra monumental em cinco volumes

atacando os gnósticos, o famoso Contra os hereges.

Irineu claramente vinha enfrentando problemas consideráveis com

os gnósticos, que, dizia ele, desviavam membros de seu rebanho “sob

pretexto de um conhecimento superior"25. Ele se queixa de ser atacado pelos

gnósticos com argumentos, parábolas e perguntas tendenciosas.26 Após ler

alguns de seus escritos e de falar com vários gnósticos sobre suas crenças,

Irineu decidiu achar um meio de atacar e desacreditar seus ensinamentos,

os quais efetivamente abominava.27 Seu longo ataque em Contra os hereges

fornece bastante informação sobre os gnósticos e as crenças da ortodoxia

emergente do final do século II d.C.

Irineu tem consciência da pretensão dos gnósticos de guardarem

para si algumas informações secretas: eles afirmam, diz Irineu, "que Jesus

falou privadamente de um mistério a seus discípulos e apóstolos..."28.

Também observa que essa sugestão de uma compreensão esotérica herdada

do século anterior de alguma forma está associada à ressurreição dos

mortos. Os gnósticos, explica Irineu, não encaram literalmente a

ressurreição — na verdade, consideram muitos aspectos nas escrituras,

principalmente as parábolas, como algo simbólico, como histórias que

precisam de interpretação para que a mensagem subjacente seja

entendida.29 Para eles, a ressurreição dos mortos é um meio simbólico de

apresentar alguém que vivenciou a "Verdade" pregada pelo gnosticismo.30

Curiosamente, Irineu utiliza este como um de seus argumentos

para refutar os gnósticos: a ressurreição dos mortos acontecera na Igreja

tanto no passado quanto na sua própria época. Ele menciona ao menos em

dois trechos um incidente envolvendo um morto trazido de volta à vida,

incidente que ele aparentemente teria pessoalmente testemunhado. Nessa

ocasião, o morto permaneceu vivo por muitos anos. É uma história

fascinante, infelizmente não desenvolvida, mas que funciona como prova de

que Irineu, de alguma forma, não entendera o espírito da coisa.31

Tendo ou não entendido o espírito da coisa, Irineu carregou a

tocha da ortodoxia durante aqueles tempos complicados, quando o

gnosticismo poderia ter suplantado a Igreja. Ele explicitou quais Evangelhos

deveriam ser usados e quais deveriam ser rejeitados. Primeiramente, reuniu

os quatro Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. De fato, cunhou a

identificação de um Divino Senhor Jesus, ao mesmo tempo Filho e Criador

eterno.32 Igualmente deixou claro que a organização central unificada da

Igreja indicava seu interesse, natureza e verdade universais. Assim, a

centralização e a ortodoxia foram declaradas provas de validade e retidão: o

poder físico era uma das provas do apoio de Deus. Inversamente, a

descentralização era uma prova de erro. Assim como havia um Deus, só

poderia haver uma Igreja e uma verdade. Um argumento simples, porém

especioso; ainda assim, convenceu muita gente. E ainda hoje tem seus

adeptos no Vaticano, sendo um deles, é claro, o papa.

Enquanto os teólogos tentavam criar uma ortodoxia centralizada

da fé e da crença, outros buscavam tornar central a estrutura física da

Igreja, sustentando que era melhor governar a partir de uma posição de

poder centralizado. As preocupações políticas — alimentadas, é claro, pelas

perseguições, de que não podemos nos esquecer — contavam tanto quanto

as preocupações teológicas na moldagem do cristianismo emergente.

Por volta da mesma época em que Irineu defendia sua versão do

cristianismo, mudava a maneira como a Igreja se autogovernava. Até então,

as igrejas locais eram dirigidas por um grupo de homens — presbíteros-

bispos —, mas tais estruturas de governo foram gradualmente centralizadas.

O grupo vinha sendo substituído por um único bispo, que representava o

poder em cada diocese. Esse processo aparentemente começou em Roma em

meados do século II e completou-se no início do século III. Naturalmente — e

não deveria nos causar surpresa —, o bispo de Roma deixou claro que era o

mais importante de todos esses bispos. Queria ser reconhecido como o

supremo governante da Igreja na terra na condição de representante do

messias. O papa Estevão I (254-257) foi o primeiro bispo de Roma a justificar

essa reivindicação de preeminência sobre os demais bispos por ser sucessor

do apóstolo Pedro, baseando sua pretensão no Evangelho de Mateus: "Tu és

Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja..."33 Argumentou-se,

ainda, que Pedro veio a Roma, e por volta do final do século II foi identificado

como o primeiro bispo cristão da cidade.34

Entretanto, em 258, o imperador Valeriano ordenou a imediata

execução de todos os bispos, padres e diáconos cristãos. Muitos foram

executados, mas muitos sobreviveram. As vantagens do poder centralizado

devem ter ficado bastante evidentes para os líderes da Igreja Cristã, que

provavelmente sentiram que se a oportunidade se apresentasse, usariam tal

poder em benefício próprio, A primeira oportunidade surgiu durante o

reinado de Constantino. Embora não tenha sido batizado como cristão senão

em seu leito de morte, ao menos sob o seu governo o cristianismo teve

permissão para florescer. Constantino desejava a unidade; reuniu o Concilio

de Nicéia para fazer oposição às idéias do herético Ário. O objetivo: conseguir

apoio para a idéia de que Jesus Cristo fora "um só" com Deus Pai, algo que

Ário e outros refutavam; para eles, Jesus não era divino. Como observa

secamente a professora de Princeton, Elaine Pagels: "Os que eram contrários

a esta expressão sustentavam que ela não consta nem das Escrituras nem

da tradição cristã."35 Mas as objeções se revelaram inconseqüentes para os

teólogos, politicamente dispostos a tudo, que viajaram a Nicéia com uma

agenda já definida em mente.

O Concilio, é claro, se opunha majoritariamente à visão de Ário,

mas a presença dos adeptos de suas idéias provocaram reuniões

tumultuadas e discussões acaloradas. Com efeito, parece possível que

durante um confronto inflamado, o bispo de Mira tenha agredido o pálido e

ascético Ário, conforme atestam as telas tradicionais que retratam o evento.

As discussões extravasaram o recinto do Concilio e chegaram às ruas de

Nicéia: paródias dos confrontos provocavam gargalhadas nos teatros

públicos e por todo lado na cidade a disputa era usada pelos feirantes,

merceeiros e cambistas. "Pergunte o preço do pão e vai ouvir: 'O Filho é

subordinado ao Pai.' Pergunte se o banho está pronto e vai ouvir: 'O Filho

surgiu do nada.'"36

No final, houve uma votação. Os números exatos são objeto de

controvérsia, mas sabe-se que Ário e dois de seus colegas votaram contra o

decreto; ao que tudo indica, a proposta foi aprovada por 217 votos contra 3.

Ário e seus dois colegas foram exilados para a região do Danúbio.

Em um curioso e até mesmo bizarro apêndice a esse episódio,

quando Constantino foi batizado em seu leito de morte, a cerimônia foi

conduzida por um membro da herética Igreja Ariana. O fato revela que para

Constantino os detalhes teológicos eram menos importantes do que a adoção

de qualquer idéia que melhor servisse à unidade, que, para ele, significava

estabilidade e constituía sua preocupação suprema.

Com essa decisão, o Concilio de Nicéia criou o literalmente

fantástico Jesus da fé e adotou a presunção de que esta é uma tradução

historicamente acurada. Suas ações também estabeleceram os critérios

pelos quais os livros do Novo Testamento viriam mais tarde a ser escolhidos.

O Concilio de Nicéia produziu ura mundo do cristianismo onde um código de

crença foi adotado coletivamente. Qualquer coisa diversa seria considerada

heresia e rejeitada. E, se possível, destruída.

Ainda hoje sofremos desse mal. Em um ato incomum para um

acadêmico, Elaine Pagels, uma especialista nos textos gnósticos, insere uma

pequena nota em seu livro Além de toda crença: o Evangelho desconhecido de

Tomé. A nota aborda um ponto crucial com conseqüências de longo alcance:

o que ela não consegue gostar na Igreja, explica Elaine, é

a tendência a identificar o cristianismo com um único conjunto

autorizado de crenças... associada à convicção de que a crença

cristã é a única que prove acesso a Deus.

Percebendo o alto custo do fracasso, os posteriores bispos de Roma

consolidaram o poder, e ninguém o fez mais energicamente do que o papa

Dâmaso I (366-384), que contratou um bando de assassinos para passar

três dias massacrando seus oponentes. Quando Dâmaso retomou o controle,

chamou Roma de "sé apostólica" — em outras palavras, o único lugar na

Igreja capaz de reivindicar o direito a uma contínua sucessão dos apóstolos,

em nome dela agindo como herdeira da autoridade e função dos mesmos. É

claro que essa pretensão deixou Jerusalém à margem. Qualquer zelote

seguidor de Jesus a teria considerado absurda e totalmente inverídica.

Ignorando quaisquer dessas implicações, Dâmaso declarou ser o

verdadeiro e direto sucessor de Pedro e, por esse motivo, herdeiro legítimo da

Igreja que Cristo fundara sobre o apóstolo. Como a maior autoridade na

terra, Dâmaso também estabeleceu o princípio de que a genuína medida

para qualquer credo ser considerado ortodoxo era a concessão ou não do

endosso papal. Dessa forma espalhafatosa a pretensão da sucessão

apostólica se impôs.

O papa seguinte, Sirício (384-399), imitou a chancelaria imperial

promulgando decretos — ordens consideradas acima de qualquer discussão,

ordens a serem imediatamente obedecidas. Sob essa autoridade dogmática,

o cânone do Novo Testamento foi finalmente acordado, no Concilio de Hipo,

em 393 d.C. e no Concilio de Cartago, em 397 d.C.

Esse evidente processo de assumir e centralizar o poder

prosseguiu: o papa Inocêncio I (401-417) apresentou a reivindicação, agora

inevitável, de que, como sé apostólica, Roma representava a autoridade

suprema na Igreja Cristã. O papa que mais lutou por poder, porém, foi Leão

I (440-461). Ele estabeleceu finalmente, sem concessões, a reivindicação que

persiste ainda hoje: a de que Cristo atribuiu a Pedro autoridade suprema

sobre a Igreja; que essa autoridade foi transmitida de Pedro a todos os

subseqüentes bispos de Roma e que o bispo de Roma, o papa, seria o

"principal de todos os bispos" na Igreja e agiria como a "encarnação mística"

de Pedro. Restou a seu sucessor, o papa Gelásio I (492-521), enunciar a

mais arrogante de todas as declarações: em carta ao imperador, ele explicou

que o mundo era governado por dois grandes poderes — a autoridade

espiritual de que se revestia o papa e a autoridade temporal de que se

revestia o imperador. Das duas, explicou ele, a autoridade papal seria a

superior, pois "provia a salvação da temporal". No sínodo realizado em Roma

em 13 de maio de 495, Gelásio foi o primeiro papa a ser chamado de "Vigário

de Cristo".

Ao mesmo tempo em que o domínio teológico era cobiçado e

confiscado, numa manobra psicologicamente astuta, a Igreja começou a

tomar posse fisicamente de locais e festas pagãs — sendo a do nascimento

de Mitra em 25 de dezembro apenas uma das que ainda hoje subsistem. O

raciocínio da Igreja foi claramente expresso pelo papa Gregório I (590-604)

em 601 d.C. nas instruções dadas a um prior de partida para a Britânia.

"Chegamos à conclusão", escreveu o papa:

de que os templos dos ídolos desses povos não devem de forma

alguma ser destruídos. Os ídolos, sim, mas os templos serão

aspergidos com água benta, receberão altares em seus interiores,

bem como relíquias. Pois se tais templos são sólidos, devem ser

purificados dos cultos a demônios e dedicados ao serviço do

verdadeiro Deus. Dessa forma, esperamos que o povo, ao ver que

seus templos não foram destruídos, abandone seu equívoco e,

acorrendo mais prontamente aos locais que lhe são familiares,

venha a conhecer e a adorar o verdadeiro deus. E como é seu

costume sacrificar muitos bois aos demônios, providenciemos

alguma outra solenidade em substituição a essa, como um dia de

Oferecimento ou festivais dos santos mártires cujas relíquias ali se

encontrarem depositadas.37

Embora a Igreja, em prol da crescente ortodoxia, possa ter deixado

intactos os altares, com certeza não se esquivou de destruir ou forjar

documentos. O que pensou disso o povo?

Voltemos nossa atenção a Eunápio para descobrir. Eunápio foi um

professor grego de retórica que viveu de 345 a 420 d.C, aproximadamente. A

retórica é a arte do discurso persuasivo e solene, seja por escrito, seja por via

oral. Nossos porta-vozes modernos são herdeiros dessas técnicas

aperfeiçoadas pelos antigos. Aos 16 anos, Eunápio foi estudar em Atenas.

Enquanto lá estava, foi iniciado nos Mistérios Eleusinos, tornando-se um

sacerdote do Colégio dos Eumólpidas, nos arredores de Atenas. Os

Eumólpidas eram uma das "famílias" de sacerdotes que vivenciavam e

ensinavam os Mistérios de Deméter e Perséfone em Elêusis aos poucos

eleitos — homens e mulheres — que comprovadamente estivessem aptos a

absorver tais mistérios. Esse grupo seleto de indivíduos era chamado de "os

iniciados".

Depois de passar cinco anos em Atenas, Eunápio voltou à sua

terra natal, Sardis, na Turquia, e juntou-se a um grupo local de filósofos

platônicos, aprendendo medicina e teurgia — um trabalho bastante prático

com os poderes divinos por meio de ritual, dança e música.38 Eunápio ainda

vivia quando o imperador Teodósio baniu todas as religiões pagãs em 391

d.C, mas, a despeito do perigo, criticou com veemência o cristianismo em

seus escritos.

Eunápio escreveu biografias de filósofos seus contemporâneos.

Tratou, também, de história geral, compondo um adendo a uma história

publicada por outro escritor. Acrescentou detalhes a esse livro, abarcando os

anos de 270 a 404 d.C, encerrando-o em 414 d.C. Infelizmente, apenas

pequenos fragmentos da história sobreviveram. Existe, contudo, um mistério

envolvendo esse sumiço.

O imperador Constantino governou de 306 a 337 d.C, e foi durante

o seu reinado que o Concilio de Nicéia se reuniu para proclamar que Jesus

era "Deus". Nesse mesmo período, o cristianismo se tornou a religião oficial

do império romano — contra a vontade de muitos. Interessado em unificar o

império, Constantino parece ter adotado uma visão exclusivamente política

da religião. Com efeito, como já vimos, ele próprio só se converteu ao

cristianismo no leito de morte.

Eunápio, como adepto do que os cristãos consideravam uma

religião pagã, certamente desaprovava essas mudanças em geral e o

cristianismo em particular. Podemos ter certeza de que sua história sobre o

reinado de Constantino foi recebida de forma bastante negativa, com

hostilidade e até raiva, talvez, diante do seu adendo à história já publicada

sobre o período, que deve ter sido muito prejudicial à ortodoxia cristã do

início do século V. Eunápio, como adepto da teurgia, também teria coisas

bem interessantes a dizer sobre o imperador Juliano (361-363), igualmente

devoto da técnica ritual e que tentou reconduzir o império ao paganismo,

mais especificamente ao pensamento platônico de um dos maiores e mais

injustiçados filósofos do final da era clássica, o professor de teurgia Jâmblico

de Apaméia (c.240-c.325 d.C).

Seria muito interessante poder dispor da história de Eunápio hoje.

Teríamos esse privilégio, não fosse o Vaticano e sua incansável necessidade

de proteger a imagem fraudulenta de Cristo e do cristianismo, já que havia

uma cópia do livro de Eunápio na quase sempre impenetrável biblioteca do

Vaticano até o século XVI de nossa era.

Tal fato foi relatado pelo acadêmico clássico Marc-Antoine de

Muret, que em 1563 fazia conferências na Universidade em Roma. Ali, ele

viu uma cópia da História de Eunápio na biblioteca do Vaticano. De tal

forma achou-a interessante que pediu ao cardeal Sirlet, um dos principais

eruditos do Vaticano, para providenciar-lhe uma cópia. Sirlet, contudo,

negou-se a atendê-lo e com o apoio do papa afirmou que o livros de Eunápio

era "ímpio e depravado". Uma vez despertada a atenção para essa obra, as

autoridades buscaram uma solução para o problema. Foi muito simples: um

erudito acadêmico jesuíta contou mais tarde que a História de Eunápio

"pereceu por ação da Divina Providência"39. Sem dúvida a providência agiu

por meio da nada divina ação humana.

O Vaticano tem um passado de obtenção — e destruição — de

escritos que contradizem o mito que ele propaga como história verídica.

Quantas coisas mais foram destruídas ao longo dos anos? E quantas coisas

mais ainda existem que possam ter escapado à perseguição incansável e

obsessiva do Vaticano ao herético? Ninguém pode saber ao certo.

Em todos os sentidos práticos, no século V d.C. a vitória do Jesus

da fé sobre o Jesus da história estava completa. O mito de que os dois são

um só tornou-se teologicamente justificável e como tal uma verdade

reconhecida. No entanto, os protetores da ortodoxia não podiam descansar, é

claro, porque, como a corrosão e a decomposição, a heresia em suas mentes

jamais se extingue. Sem pudores eles protegeram a fé, fazendo com outros

cristãos o que os imperadores pagãos haviam feito antes. Em 386 d.C,

executaram Prisciliano, bispo de Ávila, sob alegação de heresia. Esta foi a

primeira execução ordenada pela Igreja com a finalidade de defender sua

postura.

Todos os caminhos podem ter levado a Roma, mas, ao longo dos

séculos seguintes, também para lá correu um crescente número de rios de

sangue. O preço da unidade teológica foi pago não apenas em ouro —

embora este sempre tenha encontrado recepção calorosa na Igreja —, mas

também em vidas.

A morte de Prisciliano abriu um precedente trágico, que

infelizmente viria a se repetir muitas vezes — tudo em nome de um messias

judeu que pregava a paz.

Até que ponto a fé se encontrava nas mãos dos herdeiros auto-

proclamados de Cristo? Mais tarde, os papas de Roma tomaram a si a tarefa

de ungir ritualmente os imperadores quando estes assumiam seus nobres

cargos, tornando o ato parte da cerimônia de coroação, como se um papa

tivesse o poder de criar um messias. Como se apenas eles possuíssem o

monopólio do caminho da verdade.

NOTAS 1 Koester, Ancient Christian Gospels, p. 31. 2 Id., ibid., p. 41. 3 Horbury, Jewish Messianism and the Cult of Christ, p. 11. 4 Id., ibid., p. 8 e 12. 5 Id., ibid., p. 121-122. 6 Id., ibid., p. 110-111. 7 Id., ibid., p. 124. 8 Id., ibid., p. 126. 9 Tem sido defendido que Paulo escreveu sua Epístola aos gaiatas antes do Concilio em Jerusalém

mencionado em Atos dos Apóstolos 15; nesse caso, ela seria datada de 48 d.C. Ver F.F. Bruce, The

New Testament Documents, p. 14 e n. 1. 10 O Papiro Bíblico Chester Beatty n. 9 contém 86 folhas das epístolas de Paulo do início do século III

que foram descobertas no Egito. 11 Mateus 5,17. 12 Tertuliano, Apologeticus, 21 (vol. 1, p. 95), "Todas essas coisas que Pilatos fez a Cristo... ele

mandou um relatório a esse respeito ao César reinante, que, à época, era Tibério". 13 Tácito, The Annals of Imperial Rome, XV, 44 (p. 365). 14 Plínio, Epistles, XCVI. 15 Eisler, The Messiah Jesus and John the Baptist, p. 9-10. 16 Suetônio, The Twelve Caesars, Cláudio, XXV (p. 202). 17 Tiago 2,10. 18 Epístola aos romanos, 2,28-29. 19 Epístola aos romanos, 3,28-31. 20 Epístola aos hebreus, 11,1. 21 O Evangelho de Tome, II, 32,25 — 33,5 em Robinson, The Nag Hammadi Library in English, p.

118. 22 Koester, Ancient Christian Gospels, p. XXX. 23 Id., ibid., p. XXX. 24 Id., ibid., p. 36. 25 Irineu, Against Heresies, 1,1,1 (vol. 1, p. 1). 26 Id., ibid., II,XL, 2 (vol.l, p. 147).

27 Id., ibid., 1,1,2 (vol.l, p. 2). 28 Id., ibid., I,XXV,5 (vol. 1, p. 96). 29 Id., ibid., I,VIII, 2-3 (vol. 1, p. 32-35). 30 Id., ibid., II,XXXI,2 (vol. 1, p. 241). 31 Id., ibid., II,XXXI,2 e XXXII,4 (vol.l, p. 241 e 246). 32 Pagels, Beyond Belief, p. 150-153. 33 Evangelho de Mateus 16,18. 34 A autoridade para esta reivindicação vem de 1 Pedro 5,13. 35 Pagels, Beyond Belief, p. 173. 36 Stanley, Lectures on tbe History oftbe Eastern Churcb, p. 86, citando Gregório de Nissa. 37 Bede, A History of tbe Englisb Cburcb and People, 1,30 (p. 86-87). 38 O termo foi cunhado pelo filósofo clássico tardio Jâmblico, o maior expoente desse ritual divino.

Para uma abordagem moderna do tema, ver Gregory Shaw, "Theurgy and the Soul", University Park

(Pensilvânia), 1995. 39 Cousin, V., Fragments philosophiques, p. 186-187.

CCAAPPÍÍTTUULLOO VVII

OO MMAAIIOORR TTEEMMOORR DDEE RROOMMAA

ERA o DIA 5 DE AGOSTO DE 1234. Uma mulher pobre jazia em seu

leito de morte numa casa em Toulouse de propriedade do genro. A doente

pertencia a um misterioso grupo religioso cristão que na época se

disseminara pelo sul da França, os cátaros. Em Roma essa religião era,

mesmo tempo, desprezada e temida. E os cátaros nutriam por Roma a

mesma repulsa. Para muitos cátaros, o próprio papa era o anticristo e a

Igreja de Roma, segundo eles, a "rameira do Apocalipse" ou a igreja dos

lobos"1.

Naquele dia, alguns sacerdotes cátaros haviam visitado a mulher

para levar lhe o rito mais sagrado da fé, o consolamentum, introduzindo-a

nos "últimos ritos" de sua religião, uma ocorrência bastante comum junto ao

leito de morte dos crentes. Sua chegada, porém, foi notada por um

informante hostil àquela religião. Talvez a mulher estivesse sendo vigiada,

pois os habitantes da cidade. sabiam que ela apoiava os cátaros e seu genro

atuava em Toulouse como mensageiro do grupo. O informante correu para

relatar o fato ao prior da casa dos inquisidores.

Os inquisidores dominicanos estavam com o bispo de Toulouse,

que acabara de celebrar a missa. Naquele dia, proclamara-se em Toulouse a

canonização do fundador da ordem, Domingos de Gusmão, e os monges se

preparavam para um banquete comemorativo. Então, graças à "divina

providência", o prior tomou conhecimento dessa herética moribunda que

recebera ostensivamente os ritos cátaros. Sem demora notificou o bispo, que

insistiu para que os inquisidores se ocupassem imediatamente desse ultraje

à "verdadeira" religião. Assim, ignorando a refeição, os inquisidores, na

companhia do bispo, correram para a casa da mulher. Entraram tão

repentinamente em seu quarto que até o grito de alerta de um amigo

alarmado chegou tarde demais para evitar a tragédia iminente.

O bispo sentou-se junto à doente e calmamente começou a

conversar com ela a respeito de suas crenças. A enferma não se amedrontou

— talvez não soubesse quem era o visitante. Talvez pensasse se tratar de

alguma autoridade cátara, em vez de um representante de Roma.

Evidentemente tranqüila, acreditando se achar na companhia de um amigo,

falou abertamente, satisfeita de ter finalmente recebido os ritos cátaros antes

de morrer, o que, obviamente, não demoraria a acontecer. Com efeito, a

morte estava mais próxima do que ela imaginava.

O bispo a fez prosseguir, estimulando-a a falar: "Não minta", disse

ele, fingindo empatia. "Digo-lhe para ser firme em sua crença e não

confessar, por medo da morte, nada diverso do que crê e do fundo do

coração professa."2

A moribunda, agradecida e convicta em sua fé cátara, respondeu

com grande compostura e dignidade: "Meu senhor, acredito no que digo, e

não mudarei meu compromisso devido à preocupação com o restante

miserável da minha vida."3

Diante disso, o rosto do bispo subitamente se crispou. "Então, você

é uma herege!", gritou para todos no quarto. "Pois o que você confessou é a

fé dos hereges... Aceite a crença da Igreja romana e católica."

Demonstrando considerável coragem, a moribunda se recusou a

fazê-lo. O bispo, então, invocando Jesus Cristo, formalmente declarou-a

herege e com isso a condenou à morte. Apossaram-se imediatamente da

mulher e a levaram, ainda em seu leito, para uma ravina fora da cidade, de

propriedade do conde de Toulouse, onde, naquele ameno dia de verão, a

infeliz foi queimada prontamente.

O bispo e seus colegas dominicanos, em júbilo, voltaram pelas ruas

de Toulouse até a casa monástica e, agradecendo a Deus e ao sagrado

fundador de sua ordem, "comeram em regozijo a refeição para eles

preparada". Como concluiu o cronista do acontecimento, um monge

dominicano presente no aposento:

Deus realizou essas obras no primeiro dia santo do Bendito

Domingos, para glória e louvor do Seu nome... para a exaltação da fé

e para o constrangimento dos hereges.4

O "Bendito Domingos" foi um monge espanhol cruel e fanático —

Domingos de Gusmão. Juntou-se à cruzada anticátara desde o primeiro

momento e tal era a fama de seu ímpeto que, em 1216, sua Ordem dos

Dominicanos foi reconhecida pelo papa. Seu objetivo: destruir a heresia,

total e definitivamente, por quaisquer meios que meios que se revelassem

necessários. Domingos morreu em 1221 e em 1234, o ano em que a mulher

de Toulouse morreu queimada, foi proclamado santo por um de seus amigos,

eleito papa no ano anterior.

Durante o século XII, principalmente no sul da França, a Igreja foi

tomada pela corrupção. Não havia sequer um simulacro de devoção entre os

que governavam as freguesias e dioceses, pois eles mais se preocupavam em

administrar suas propriedades e aumentar suas rendas do que em cuidar

das almas de seus paroquianos. As diversões mundanas, como os exercícios

libidinosos com amantes, o jogo e a caça, bem como as ocupações seculares

como a agiotagem e a cobrança de honorários para a função eclesiástica, a

autorização de casamentos ilegais e o exercício da advocacia, eram tão

comuns e ostensivas que, finalmente, o papa Inocêncio III, a partir de sua

eleição, em 1198, viu-se levado a condenar tais práticas. O líder do clero de

Languedoc na virada do século XIII, o arcebispo de Narbonne, segundo o

papa, cultuava apenas um deus — o dinheiro. Cobrava quantias

exorbitantes para sagrar bispos, embolsava os rendimentos de cargos,

permitia o casamento de monges e aceitava outras práticas contrárias à lei

da Igreja.5 O papa o destituiu, juntamente com um outro arcebispo e sete

bispos. Até mesmo as famílias de alguns clérigos católicos se afastaram de

Roma. O bispo de Carcassonne de 1209 a 1212 conservava seu catolicismo,

enquanto a mãe, a irmã e três de seus irmãos receberam o consolamentum.6

Os nobres, principalmente a nobreza rural, viviam em disputa com

a Igreja quanto a questões de propriedade e renda: extremamente leais a

suas regiões, mantinham estreitas alianças com os cátaros. Com efeito,

alguns membros da nobreza iam mais longe, recebendo o consolamentum a

fim de se tornarem cátaros professos. A mulher do conde de Foix, no século

XII, por exemplo, tornou-se uma "Perfeita", assim como a irmã do conde,

Esclamonde, após a morte do marido.

Os cátaros eram um grupo de homens e mulheres santos que

abraçavam uma vida de renúncia, espiritualidade e simplicidade —

chamavam a si mesmos de les Bonhommes, os "homens bons", ou "bons

cristãos". Atendiam uma população ávida por experiência religiosa pessoal,

mas cujas necessidades em quase nada eram satisfeitas pela Igreja oficial,

que abdicara de seu papel espiritual em prol de outro, mais comercial e

corrupto. A recusa dos cátaros em aceitar dotes terrenos servia para

acentuar a ganância do clero romano e para alimentar a oposição por parte

daqueles cujo poder eles ameaçavam.

Os oponentes dos cátaros os chamavam de hereges "perfeitos", os

"Perfeitos". Membros plenos da fé eram aqueles que haviam recebido o rito

central, o consolamentum, descrito como "batismo, confirmação, ordenação

e, quando recebido às portas da morte, extrema-unção, tudo em um só..."7.

Ao receberem tal rito, afastavam-se da vida cotidiana e adotavam

um desprezo por bens terrenos. Daí em diante, passavam a levar uma vida

muito simples de oração e ministério — exercido na língua local, não em

latim. Eram vegetarianos, viajavam aos pares e ministravam conforto

espiritual e, para os que desejavam saber mais, o rito do consolamentum.

Representavam a honestidade e a verdade para os que já estavam fartos de

mentiras e de engodo.

Na prática, devido à grande responsabilidade e à mudança de vida

implícita na aceitação do consolamentum, a maioria só o recebia no leito de

morte. Mas todos, homens e mulheres, podiam partilhá-lo. Ao contrário da

Igreja Católica, não havia um domínio masculino nesse movimento. Os

Perfeitos pertenciam aos dois sexos; inexistiam hierarquia e organização —

ao menos no início.

A Igreja percebeu o desafio levantado por esses simples e

benevolentes mestres espirituais, e um dos primeiros a enfrentá-lo foi

Bernardo de Clairvaux, o luminar da Ordem monástica Cisterciense. Ele e

sua ordem, como os cátaros, dedicavam-se à vida simples. Bernardo viajou

muito pelo sul da França em 1145, debatendo com Perfeitos cátaros em

praças públicas. Reconhecendo sua piedade e aprovando sua honestidade e

simplicidade — embora condenando sua heresia —, Bernardo descobriu ser

incapaz de dar fim ao movimento que continuava a se fortalecer e, em

conseqüência desses debates públicos, começava a se organizar de maneira

mais formal, organização essa que já estava em plena vigência no final do

século XII.

Muitos nobres regionais apoiavam os cátaros porque encaravam o

movimento como concentrado em suas próprias terras no Languedoc em vez

de Roma, onde se fixava a Igreja. Roma, justificadamente, não estava

satisfeita.

Em 1209, ela lançou uma cruzada contra os cátaros que deu início

ao massacre. Os exércitos de cavaleiros e aventureiros do norte desceram

para o Languedoc, destruindo muitos povoados e cidades, queimando vivos

milhares de cátaros, algumas vezes centenas deles de uma só vez em

gigantescas fogueiras. A essa altura, o decadente castelo de Montségur,

empoleirado sobre seu aparentemente inexpugnável monte rochoso, havia

sido reconstruído como uma base para a Igreja Catara. E, após as

destruições nos vales mais baixos, em 1232, ele se tornou o centro da fé e a

sede de um "bispado" cátaro. Um pequeno vilarejo para Perfeitos cátaros foi

construído entre o castelo e os íngremes penhascos ao norte, onde, até hoje,

se pode ver o que resta dele, agarrado à encosta.

Acompanhando os exércitos do norte vinha o jovem clérigo

espanhol Domingos de Gusmão. Pouco se sabe sobre o seu envolvimento no

sacrifício maciço dos cátaros durante os primeiros anos de luta, mas

certamente foi grande. Durante a implacável campanha, ele percebeu que

seria necessária uma nova organização para combater o que lhe parecia uma

heresia maligna: uma nova ordem de monges com uma nova abordagem.

Domingos fundou a Ordem monástica dos Dominicanos e com ela criou o

que se conhece hoje como a infame Inquisição. Domingos havia queimado e

torturado; seus dominicanos também seguiram seu exemplo abrindo

caminho à força através do sul da França, tamanha era a necessidade da

Igreja de disciplina e controle sobre esses hereges que haviam ousado

ignorar Roma. O horror varreu a terra. Os inquisidores de Domingos eram

temidos e odiados por todo lado. Muitos eram surrados ou assassinados,

mas a Ordem prosseguiu em sua incansável perseguição aos hereges. Para

os cátaros, era uma batalha perdida.

A Inquisição empregava métodos simples: os suspeitos de heresia

eram "interrogados", um eufemismo que escondia — até mesmo tentava

justificar — o fato de que não viria a seguir um interrogatório, mas um

processo de extração de informações baseado na dor, processo esse que até a

famosa Gestapo teria admirado por sua eficiência fria e impiedosa.

O suspeito ia preso após uma denúncia ou confissão. Não havia

pressa em concluir o caso, pois os dominicanos possuíam um sólido

conhecimento de psicologia e sabiam que o encarceramento e o medo seriam

capazes de fazer boa parte do trabalho. O processo inexoravelmente evoluía

para a tortura. Devido a uma "suscetibilidade" quanto ao derramamento de

sangue, os instrumentos utilizados pelos torturadores encapuzados

costumavam ser rombudos, incandescentes e restritivos; ossos podiam ser

quebrados e membros deslocados, de modo que qualquer sangue derramado

se devesse a um "acidente", em vez de algo premeditado, tornando-se assim

aceitável de acordo com as regras elaboradas pela Igreja.

Quando a vítima se dispunha a confessar — provavelmente

qualquer coisa, ainda que apenas para pôr fim ao pesadelo —, os advogados

e escrivães dominicanos anotavam o depoimento e, em geral, registravam em

detalhes os acontecimentos testemunhados. A vítima, então, era levada a um

aposento vizinho onde lhe pediam confirmação de que sua confissão fora

"livre e espontânea". Caso os confessos fossem sentenciados à morte, eram

entregues às autoridades seculares, que procediam à execução. A Igreja,

como instituição cristã, não executava — ou assim afirmava, aparentemente

sem se incomodar com o grau de hipocrisia envolvido.

Por meio desses depoimentos, os dominicanos criaram uma

memória institucional, um vasto arquivo que continha dados sobre todos

com quem tinham contato. Embora queimassem milhares dos indivíduos

condenados como hereges, em geral o faziam somente após um extenso

interrogatório. Seu desejo sempre foi conservar e engordar essa memória

coletiva que constituía o núcleo de seu poder, pois, pragmáticos como

sempre, acreditavam que "um convertido que traísse seus amigos era mais

útil do que um cadáver assado"8.

A Inquisição foi o órgão da inteligência do século XIII, na medida

em que manteve um banco de dados volumoso e sofisticado para a época.

Investigava suspeitos de heresia, registrava depoimentos, denúncias e

confissões em detalhes intricados e jurídicos, e conservava os arquivos

desses registros de modo que as informações pudessem ser neles obtidas

muito tempo depois. Num exemplo, esses registros mostram que uma

mulher, presa por heresia em 1316, já fora presa em 1268 — 48 anos antes.

Esse processo de recuperação de informações era sinistro. Representou um

sistema de memória malévolo a serviço do poder dominador da Igreja.

Os inquisidores se tornaram os matadores da Igreja — com seu

exército de informantes secretos, interrogadores cruéis e juízes desalmados,

todos agindo em nome de Cristo. O messias histórico há muito fora

esquecido; o que importava agora era o Cristo do Vaticano. E essa figura

pateticamente crucificada tornou-se a justificativa de última instância para

um número exponencialmente crescente de regras e regulamentos que

afetavam a vida de todos e todos os aspectos da vida.

A Inquisição venceu sua primeira batalha importante quando o

núcleo da Igreja Catara foi finalmente despedaçado em um banho de sangue

que ecoou os sacrifícios do culto asteca no Novo Mundo. Em março de 1244,

o centro da Igreja Catara, o castelo de Montségur, foi tomado pelas forças

invasoras. Duzentos ou mais cátaros foram queimados vivos ao pé da

montanha. Porém, a Inquisição não viu aí o fim de suas atividades, mas tão-

somente o início de uma outra etapa. Os inquisidores agora monitoravam a

região com seus arquivos e seus informantes. A Inquisição viera para ficar, a

fim de dar sustentação ao poder de Roma.

E ainda perdura. Naturalmente, em uma versão mais leve: em

1908, rebatizaram-na de Sagrada Congregação do Santo Ofício. Depois,

numa nova mudança, tornou-se a Congregação para a Doutrina da Fé, em

1965: palavras suaves, macias mesmo, para o título de uma instituição

dogmática e inflexível, cujo papel imutável na Igreja é manter a ortodoxia da

crença.

O chefe da Congregação, hoje chamado de "prefeito" e efetivamente

o atual grande inquisidor, nomeado em 13 de maio de 2005, é o californiano

monsenhor William Levada, ex-arcebispo de São Francisco. Seu predecessor

imediato, o cardeal Joseph Ratzinger foi eleito papa em abril de 2005.

Ratzinger é bem direto quanto à doutrina da Igreja: não existe flexibilidade

no que tange a seus preceitos.

"A revelação se encerrou com Jesus Cristo", declarou Ratzinger

sem rodeios, desafiando diretamente aqueles que possam pensar que a

verdade está aí para ser descoberta, mesmo hoje.9 E se esquecendo

convenientemente da votação no Concilio de Nicéia que deificou Jesus, ele

descarta quem encara a Igreja como não sendo divina: "Mesmo para alguns

teólogos", resmunga com evidente surpresa diante de tanta impertinência, "a

Igreja parece ser uma construção humana"10. No entanto, ele tem uma

resposta para aqueles que — por incrível que pareça — imaginam que a

Igreja dos homens tenha criado sua teologia por meio da votação de idéias.

"A verdade não pode ser criada por meio de votos", afirma ele.11 Em

qualquer outro contexto, a tendência seria concordar, mas nesta específica

circunstância ele extrapolou o razoável e o que é historicamente

fundamentável, já que o que afirma ser verdade foi mesmo criado por meio

de votos. Ratzinger acrescentou uma contribuição a este dogmatismo: "Não

se pode estabelecer a verdade por meio de uma decisão, mas apenas

reconhecê-la e aceitá-la."12 Logo, explica ele, deduz-se que "a Igreja... a

portadora da fé não peca"13. A história nitidamente não é o ponto forte de

Ratzinger; a arte da distorção dogmática, sim.

Não há nada nas declarações de Ratzinger que nos leve a esperar

que o Vaticano recue da postura de ser o único provedor do caminho da

verdade — um caminho construído por meio de um desejo de poder e

controle; um caminho empapado de sangue; um caminho centrado numa

figura mítica de Jesus Cristo que guarda pouca relação com o Jesus messias

histórico que foi crucificado como agitador político por Pôncio Pilatos.

A Congregação para a Doutrina da Fé espertamente mantém a

postura de sua antecessora, a Inquisição. Fixando as fronteiras da crença e

impondo limites à descoberta da verdade, ela funciona, na realidade, como

centro de comando e departamento de controle do Vaticano.

O motivo da existência desse departamento é manter afastado o

maior e mais secreto temor do Vaticano: o surgimento de provas que

irrevogavelmente forcem a separação entre o Jesus histórico e o Jesus da fé,

assim revelando que a existência do Vaticano se assenta totalmente sobre

uma fraude. Eles temem que surjam provas de que Jesus não era Deus

como declarou o Concilio de Nicéia — não era Deus e, sim, um homem.

Destruídos os cátaros, a Inquisição procurou outros hereges para

combater. Descobriram que os cavaleiros templários estavam precisando da

sua mão orientadora. Os torturadores da Inquisição foram enviados por toda

a Europa para erradicar a ordem militar que havia servido às nações cristãs

durante quase duzentos anos.

Então, no início do século XIV, a Inquisição se voltou contra os

franciscanos, que, em virtude de sua convicta simplicidade e pobreza,

supostamente estariam infectados pela heresia. Muitos foram atirados à

fogueira. Cem anos mais tarde, os inquisidores investiram contra os judeus e

os muçulmanos na Espanha, em especial aqueles convertidos ao

catolicismo, dos quais se suspeitava terem retornado secretamente à sua fé

anterior. As mortes na fogueira ganharam novo fôlego. Em Sevilha, 288

vítimas inocentes foram queimadas vivas entre fevereiro c novembro de

1481. E isso foi só o começo de um novo período de constantes sacrifícios

humanos em nome do cristianismo. Porém, apesar do risco, uma oposição a

tal tirania subsistia. Em 1485, em Saragoça, o inquisidor foi assassinado na

catedral enquanto rezava ajoelhado no altar-mor. Seguiram-se revides

brutais, resultando na perda de ainda mais vidas.14

O banho de sangue amainou apenas quando a carnificina

inevitavelmente reduziu o número de vítimas potenciais, ou seja, até que um

novo reservatório de vítimas surgisse devido a uma obsessão do século XV: a

bruxaria. Foi um golpe magistral de duplicidade eclesiástica. A Igreja sempre

encarara a bruxaria como fraude ou engodo, e acreditar nela há muito era

considerado pecado. Em 1484, a atitude da Igreja de repente mudou: o papa

assinou uma bula condenando a bruxaria e exigindo que sua existência

fosse reconhecida, rotulando de heresia a negação dessa nova realidade

demoníaca e sujeitando-a a todas as penalidades que a Igreja criara. A

mesma bula atribuía poderes à Inquisição para interrogar, encarcerar e

punir quaisquer bruxas que descobrisse.15 Os dominicanos precisavam de

pouca coisa para agir.

Em toda a Europa a caçada dos dominicanos atingiu tanto a

população urbana quanto a rural — salvo, e curiosamente, na Espanha,

onde a liderança da Inquisição sentiu que toda essa loucura de bruxaria era

uma fraude que mais valia ignorar. Em sua opinião, a obsessão de caçar

bruxas para queimar era em si mesma a responsável por criar uma histeria

em massa que, por sua vez, acabava efetivamente produzindo essas bruxas.

Ainda assim, a despeito desse surto regional de sanidade, em outros lugares

da Europa, mulheres eram presas, torturadas e queimadas. A Inquisição se

gabou de ter queimado, ao longo de 150 anos, aproximadamente trinta mil

mulheres — todas elas vítimas inocentes de uma fantasia patológica

sancionada pela Igreja.

Os dominicanos eram tão organizados e entusiasmados que

produziram um manual para esses inquisidores e para as autoridades civis

que tivessem de lidar com bruxas. É este um dos mais infames livros da

história, o Malleus Maleficarum — o "Martelo das Bruxas" —, um relevante

exemplo de grande erudição posta a serviço da loucura. Foi escrito em 1486

por dois dominicanos alemães altamente instruídos; dois monges que

tinham medo de tudo que envolvesse o sexo feminino como o que dizem ter o

diabo da cruz.

Para eles não havia dúvida de que as mulheres eram a fonte de

tudo de demoníaco existente no mundo. Os dois peritos achavam que as

mulheres encarnavam as piores perversões possíveis. Eles as viam como

incorrigivelmente imperfeitas e sempre dispostas a enganar. Por serem mais

fracas que os homens, corriam mais riscos de acabarem corrompidas e de

corromperem outros. Faltava-lhes disciplina e eram "belas de se ver,

contaminadoras se tocadas e mortais como companheiras"16. Esses dois

dedicados interrogadores concluíram que "toda bruxaria deriva da luxúria

carnal, que na mulher é insaciável"17.

Por que será que a Igreja encarava o feminino como destrutivo,

demoníaco e inumano? O que levara a essa reação extremada?

Tinha a ver, principalmente, com sexo. A Igreja o temia com pavor.

"O prazer sexual não pode existir sem pecado", afirma o Responsum Gregorii,

atribuído, talvez equivocadamente, ao papa Gregório I.18 João Crisóstomo,

Pai da Igreja do início do século V, deixa claro onde reside o perigo:

Há no mundo um grande número de situações que enfraquecem a

conscientização da alma. A primeira e mais importante delas é o

comércio [úc] com mulheres... Pois o olho da mulher toca e perturba a

nossa alma, e não apenas o olho da mulher descontrolada, mas o da

decente também.19

Confrontadas com hostilidade tão implacável, algumas teólogas

modernas simplesmente deixaram de tratar tais declarações como uma

forma de deferência escolástica. Uta Ranke-Heinemann, professora de

história da religião na Universidade de Essen, recorreu à linguagem objetiva,

poucas vezes encontrada nos círculos acadêmicos:

Considerando a repressão, a difamação e demonização das

mulheres, o conjunto da história da Igreja se resume a um longo

despotismo masculino arbitrário e tacanho contra o sexo feminino. E

esse despotismo ainda continua presente, sem interrupções.20

Claro que ela tem razão. Tomemos, por exemplo, a onda de fúria

que se levanta toda vez que surge alguma sugestão de ordenar padres do

sexo feminino.

De onde vêm esse medo e o conseqüente despotismo sexual?

Eles têm a ver com a obsessão da Igreja pela virgindade perpétua e

o celibato.

A Igreja ama a mãe de Cristo — desde que ela jamais tenha

"conhecido" homem algum —, a chamada Virgem Maria, que deu à luz Jesus

graças ao poder ilimitado de Deus. Em outras palavras, deduz-se daí que

"Deus é uma espécie de homem"21. Além disso, o falecido papa João Paulo II,

em sua encíclica de 1987, Redemptoris Mater, decidiu que seu hímen

permaneceu intacto.22 Foi um milagre.

Pelo menos teria sido se fosse verdade. Infelizmente, porém, como

tantas coisas atribuídas ao Jesus da fé, essa história não se sustenta diante

do menor confronto com o Jesus histórico.

Dos quatro Evangelhos, supondo-se que eles contenham uma base

de informação histórica, apenas dois, Mateus e Lucas, mencionam o

Nascimento Virginal. E Lucas compromete bastante a interpretação teológica

quando identifica Maria e José como pais de Jesus, e José, explicitamente,

como seu pai.23 João, em seu Evangelho, também afirma que Jesus era o

filho de José.24

Os textos mais antigos do Novo Testamento são as epístolas de

Paulo, mas nelas não há vestígios do Nascimento Virginal. Com efeito, Paulo

explicitamente o nega em sua Carta aos romanos, na qual afirma ter Jesus

"nascido da estirpe de Davi segundo a carne"25. Em geral aceito como o mais

antigo dos Evangelhos, o de Marcos também não faz menção a tal milagre e

se interessa mais pelo batismo do que pelo nascimento de Jesus.

A idéia de um nascimento virginal surgiu quando a Bíblia hebraica

— o Antigo Testamento cristão — foi traduzida para o grego no século III a.C.

Isaías profetizara que uma "moça" teria um filho e que esse filho seria

chamado Immanuel.26 O termo hebraico para "moça", alma, foi traduzido na

Bíblia grega como "virgem", parthenos. Quando menciona pela primeira vez o

nascimento de Jesus, Mateus enfatiza que o mesmo cumpriu a predição "do

profeta" — ou seja, Isaías. Em seguida, ele fala de uma virgem, parthenos,

que engravida e dá à luz um filho. Mas, com efeito, para cumprir a profecia

de Isaías bastava que uma moça tivesse um filho; pode-se dizer que tal

acontecimento é um tipo de milagre, mas ele nada tem de ímpar, nem

precisa postular uma deidade sexualmente ativa. Na verdade, a história de

Mateus é nitidamente metafórica.27 Mas suas implicações, ouso dizer, foram

seminais.

A Igreja desenvolveu daí um culto à virgindade e esse culto atraiu

muitos homens que, no mínimo, podemos qualificar de "perturbados" e, no

máximo, de pedantes patológicos — homens como o Pai da Igreja Orígenes,

que castrou a si mesmo aos 18 anos a fim de poder se tornar um cristão

mais perfeito; ou Agostinho, que odiava qualquer prazer, principalmente os

estimulados pelo sexo. Uma sucessão desses homens batalhou para

introduzir o celibato obrigatório para todos os ministros da fé, tarefa que

finalmente logrou sucesso em 1139, quando o casamento e o sexo foram

proibidos aos padres da Igreja Romana.

Jesus, porém, jamais falou em celibato, e Paulo indica a não-

existência sequer de um preceito oral nesse sentido:28 "A propósito das

pessoas virgens", escreve ele, "não tenho preceito do Senhor...".

Ademais, o apóstolo Pedro, suposto fundador da Igreja Católica,

designado retroativamente primeiro papa, sem dúvida era casado e fazia

viagens com a esposa. A primeira epístola de Paulo aos coríntios não deixa

dúvidas quanto a isso, nem quanto ao estado civil dele próprio e o da

maioria dos demais discípulos e irmãos de Jesus.29 A lembrança da condição

de casado de Paulo persistiu até o final do século II d.C, quando foi por

último mencionada pelo bispo Clemente de Alexandria.30 Dali em diante,

Paulo foi gradual e inexoravelmente deslocado para a condição de

celibatário. Quando os homens virgens se apossaram da fé, as mulheres

foram excluídas da expressão da mesma.

Por qualquer exame independente dos fragmentos sobreviventes

que abordam a vida de Jesus e sua época, parece cada vez mais provável que

ele também tenha sido casado. Meus colegas e eu defendemos em O Santo

Graal e a linhagem sagrada que Jesus foi casado com Maria Madalena e que

as bodas de Caná, quanto às quais o Novo Testamento lhe atribui alguma

responsabilidade, foram as suas.31

Na época, a postura dos fariseus, um dos grupos mais importantes

no judaísmo no século I d.C., era a de que “o dever incondicional do um

homem era casar-se"32. Ao rabino Eliezer, seu contemporâneo, creditam-se

as seguintes palavras: "Quem quer que não procrie c como alguém que

derrama sangue."33 Assim, se Jesus era solteiro, como a Igreja quer que

acreditemos, por que motivo seus adversários fariseus — vários dos quais

são mencionados no Novo Testamento — não lançaram mão de sua condição

de não-casado para criticá-lo, e a seus ensinamentos, mais ainda? Por que

os discípulos casados não pediam explicações a Jesus para o fato de ele não

o ser?

Antes de se tornar cristão, Paulo era um fariseu — se Jesus não

era casado, se era celibatário, por que Paulo não alude a isso? A professora

Ranke-Heinemann levanta uma questão crucial: quando Paulo escreveu

sobre o celibato, dizendo que desconhecia qualquer mandamento de Jesus

sobre o assunto e por isso somente podia dar sua opinião pessoal, "ele

jamais teria deixado de mencionar o exemplo incomum dado pela própria

vida de Jesus — caso Jesus o tivesse dado."34 Elaine Pagels, entrevistada em

um programa de tevê em 2005, observou que "de fato é verdade que a

maioria dos homens judeus se casava, em especial os rabinos. Jesus podia

muito bem ser casado"35.

Mas um nascimento e uma vida virginal eram importantes para a

crescente ortodoxia do cristianismo, principalmente depois de abandonar

suas origens no judaísmo e passar a buscar convertidos entre os gentios. O

celibato, é claro, havia sido altamente valorizado por muitos filósofos no

mundo pagão, principalmente os estóicos. Aparentemente, parte do incentivo

original à virgindade cristã deveu-se a um desejo, na luta por respeito dentro

de um mundo dominado pelo paganismo, de demonstrar que também os

cristãos eram capazes de ascender à aparente superioridade moral dos

filósofos pagãos. E com certeza conseguiram angariar algum respeito por

isso: Galeno, médico de Marco Aurélio, escreveu no século II d.C. sobre os

cristãos:

Pois eles não têm apenas homens, mas mulheres também, que

passam a vida toda sexualmente contidos. Suas fileiras incluem

indivíduos que alcançaram um patamar de autodisciplina e

autocontrole que em nada fica a dever àquele dos filósofos

genuínos.36

Mas em um comentário previdente numa carta ao bispo de Smirna,

o bispo Inácio de Antioquia — que em torno de 110 d.C. morreu em uma

arena, estraçalhado por animais, para deleite dos romanos — observou que

havia cristãos que "viviam na castidade para honrar a carne de nosso

Senhor", para em seguida esclarecer que não os admirava. Com efeito, ele

afirmou deplorar sua "arrogância" e avisou que, caso se gabassem sobre seu

estado virginal, estariam perdidos.37 Infelizmente, os que conseguiram

estabelecer a ortodoxia da Igreja e ajudaram a obter a deificação de Jesus

foram os mesmos que quiseram introduzir a virgindade perpétua para os

governantes da Igreja e, no mesmo fôlego, excluir as mulheres de qualquer

papel importante. A idéia de ver as mulheres pregando os deixava

apopléticos. Esqueciam-se de que até Paulo menciona — com estímulo e

aprovação — o papel das mulheres como mestras na Igreja.

Em sua Epístola aos romanos, Paulo elogia oito mulheres,

diaconisas ou "cooperadoras em Jesus Cristo" e, como tal, mestras: Febe,

Prisca, Áquila, Maria, Júnia, Trifena, Trifosa e Pérside.38 Ele menciona,

ainda, em sua primeira Epístola aos coríntios, que tanto mulheres quanto

homens "oravam e professavam" na igreja. A professora Ranke-Heinemann

observa que "professar" significa "um ato de proclamação oficial, mais bem

traduzido como 'pregar'."39 Ao mesmo tempo, contudo, Paulo escreve que as

mulheres da congregação deveriam permanecer "caladas nas assembléias

porque não lhes compete falar, mas viver sujeitas... Se desejam instruir-se

sobre algum ponto, interroguem os maridos em casa...."40.

No entanto, no final do século II d.C. qualquer envolvimento

feminino com o ministério cristão já estava virando coisa do passado. Os que

desaprovavam a presença feminina na Igreja já seguravam entre seus longos

dedos as rédeas do controle, em especial Tertuliano. Educado em Cartago

antes de se converter ao cristianismo em 197 d.C, ele vociferava contra as

mulheres:

Vós sois a porta de entrada do demônio: fostes vós que

destrancastes aquela árvore [proibida]: sois o primeiro desertor da

lei divina... Por causa da vossa deserção — ou seja, morte — até o

Filho de Deus precisou morrer.41

Naturalmente, devido à culpa imputada às mulheres por todos os

males da humanidade e pela crucificação de Jesus, não seria do agrado de

Tertuliano vê-las desempenhando qualquer ofício divino nas igrejas.

Quão crível seria que ele [Paulo], que nem sequer permitia a uma

mulher aprender com insolência, desse a uma mulher o poder de

pregar e batizar. "Que se calem", diz ele, "e perguntem em casa a

seus maridos".42

Embora tal postura seja totalmente previsível, ainda nos cabe

parar e perguntar: o que significa essa explosão? Significa que em algum

lugar da Igreja cristã conhecida de Tertuliano as mulheres vinham exercendo

os papéis descritos por Paulo e outros mais. Significa que as mulheres

vinham atuando como padres, ministrando a sagrada comunhão, batizando

convertidos na nova religião e pregando para eles. Mas onde isso estaria

ocorrendo? Com que predominância? Tertuliano se cala quanto a esses

pontos. Como muitos pais da Igreja, ele redigia ataques à heresia, mas em

sua crítica nunca mencionava quaisquer grupos que permitissem às

mulheres oportunidade igual à dos homens de exercer o ofício eclesiástico.

Ele mantém silêncio sobre a questão. É preciso perguntar por quê.

Em jogo aqui, é claro, estava um tema de enorme importância

naquela época. Roma começava a se impor. Todo o conceito de "sucessão

apostólica" — um dos pilares mais importantes sobre o qual se assenta o

argumento da primazia de Roma e da validade da sucessão eclesiástica —

estava prestes a se consolidar.

Segundo o Evangelho de Mateus, Pedro foi a pedra sobre a qual se

construiu a Igreja de Cristo.43 Ignorando a difícil pergunta sobre o motivo

que levaria um bom judeu a querer fundar uma Igreja, a tradição vaticana

insiste que por meio dessa declaração — não mencionada por nenhum dos

outros autores evangélicos — Cristo transferiu a Pedro o supremo direito de

governar a Igreja Cristã. Todos os bispos de Roma posteriores têm para si

especificamente transferido tal direito. Pedro foi, segundo essa tradição, o

primeiro bispo de Roma, e, como já observamos, o bispo de Roma eleito em

440 d.C, o papa Leão I, reivindicou que tal legado dava a Roma o direito de

liderar a Cristandade. Isso é crucial para a presunção de validade espiritual

da Igreja. Na ausência dessa premissa — caso se demonstre que a mesma é

absurda —, todo o edifício do Vaticano e do papado viraria pó. Mais ainda,

assentada sobre essa premissa está a afirmação realmente extraordinária de

que a Igreja Católica é o único caminho para a verdade e que o papa é o

principal representante de Cristo — ou seja, de Deus — na terra. O Jesus

histórico ficaria estarrecido diante do que brotou em seu nome.

Podemos argumentar, com bons motivos, que Jesus foi casado e

que Maria Madalena era sua esposa, mas temos poucas provas — todas de

que dispomos são circunstanciais. No entanto, quando se trata de chamar a

atenção para a diferença entre a atitude de Roma e ar de Jesus com relação

às mulheres, pisamos em terreno bem mais sólido. Jesus, como fica

absolutamente claro nos Evangelhos, tinha uma relação fácil e próxima com

suas seguidoras — tão fácil e próxima que os discípulos vez por outra

reclamavam. O Evangelho de João descreve um episódio em que Jesus se

encontrava em viagem na Samaria. Todos os discípulos haviam partido para

comprar carne. Jesus foi deixado só e, cansado da longa jornada, sentou-se

junto a um poço. Uma mulher solteira veio pegar água e Jesus entabulou

uma conversa. Ao voltarem, os discípulos ficaram chocados por ele estar

falando com uma mulher, mas, acrescenta João, nenhum deles abordou

Jesus.44 Subentendia-se que conversar, na opinião de Jesus, era direito de

todos.

Desde a publicação, em 1977, dos textos Nag Hammadi, o estreito

relacionamento de Jesus e Maria Madalena tem causado muita discussão

acadêmica e popular. O texto crucial no Evangelho de Filipe contém algumas

palavras restauradas — colocadas entre colchetes na tradução —, mas

mesmo sem elas o relacionamento estreito e muito especial entre os dois fica

claro.

E a companheira do [Salvador é] Maria Madalena. [Mas Cristo amou-

a] mais que [todos] os discípulos [e costumava] beijá-la [com

freqüência] na [boca]. Os demais [discípulos se sentiam ofendidos]

por isso [e expressavam desaprovação].45

Aqui existe, porém, mais que um relacionamento afetivo ou sexual.

Um olhar mais atento para este Evangelho e também para outros, datados

aproximadamente do século II d.C. e igualmente excluídos pela Igreja, nos

fará descobrir que Maria Madalena possuía um conhecimento especial dos

ensinamentos de Jesus — uma percepção ou compreensão, não

necessariamente partilhada pelos demais discípulos. O Evangelho de Filipe,

após falar do estreito relacionamento de Jesus com ela, prossegue

explicando o relacionamento dele com os discípulos:

Eles lhe perguntaram: "For que a amas mais do que a todos nós?" O

Salvador respondeu-lhes dizendo: "Por que eu não vos amo como a

ela? Quando um cego e um homem que enxerga estão juntos no

escuro, eles não se diferem um do outro. Quando se faz a luz, então

o que enxerga a vê e o cego permanece na escuridão" .46

A implicação de Jesus é que Maria Madalena é capaz de "ver a luz",

enquanto os discípulos não o são. Ela, em outras palavras, entende

plenamente o que Jesus ensina; os demais, não.

A questão também surge em outro dos antigos textos descobertos

no Egito, o Evangelho de Maria. Aqui, os discípulos querem aprender; a

pergunta de Pedro a Maria Madalena está registrada: "Irmã, sabemos que o

Salvador vos amava mais que a todas as outras mulheres. Dizei-nos as

palavras do Salvador de que vos lembrais, as coisas que sabeis e que não

sabemos."

E Maria responde: "Vou ensinar-vos o que está escondido de vós."47

Mas depois que ela o faz, os discípulos reclamam de sua explicação, e André

declara: "Não creio que o Salvador tenha dito essas coisas, pois, com efeito,

esses ensinamentos são idéias estranhas." E Pedro, bastante aborrecido,

comenta sobre Jesus: "Então ele falou com uma mulher em particular sem

nosso conhecimento? Devemos dar meia-volta e ouvi-la? Ele a preferiu a

nós?"48

Esta é a causa do problema: o relacionamento entre Jesus e Maria

Madalena está enredado em segredos sobre Jesus que a Igreja faz de tudo

para esconder e para continuar escondendo; segredos que, segundo o

Evangelho de Maria, os discípulos estavam dispostos a ignorar ou negar.

Que segredos eram esses? Quem e o que, afinal, era Jesus?

Precisamos revisitar o mundo dos romanos e os habitantes

implacavelmente divididos da Judéia para fazer algumas perguntas mais

sagazes e exigir algumas respostas melhores do que as que nos satisfizeram

até agora.

Precisamos retornar a Jerusalém.

NOTAS 1 O'Shea, The Perfect Heresy, p. 25. 2 "The Chronicle of William Pelhisson", p. 216, in: Wakefield, Walter L., Heresy, Crusade and

Inquisition in Southern France 1100-1250, p. 207-236. 3 Id., ibid. 4 Id., ibid. 5 Wakefield, Heresy, Crusade and Inquisition in Southern France, p. 65-66. 6 O'Shea, The Perfect Heresy, p. 77. 7Id.,lbid., p. 23. 8 Lea, A History of the Inquisition of the Middle Ages, I, p. 541. 9 Messori, The Ratzinger Report, p. 111. 10 Id., ibid., p. 45. 11 Id., ibid., p. 61. 12 Ratzinger, Church, Ecumenism and Politics, p. 58. 13 Messori, The Ratzinger Report, p. 52. 14 Baigent e Leigh, The Inquisition, p. 64-67. 15 Baigent e Leigh, The Inquisition, p. 104-106. O texto da bula aparece em Kramer e Sprenger,

Malleus Maleficarum, XIX-XXI. 16 Kramer e Sprenger, Malleus Maleficarum, Parte 1, pergunta 6 (p. 41-48). 17 Id., ibid., Parte 1, pergunta 6 (p. 47). 18 Responsum Gregorn, citado em Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven, p. 141

[Eunucos pelo Reino de Deus]. 19 João Crisóstomo, On Priesthood, VI, 8, citado em Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of

Heaven, p. 121 [Eunucos pelo Reino de Deus]. 20 Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven, p. 135 [Eunucos pelo Reino de Deus], 21 Id., ibid., p.32. 22 Id., ibid., p. 347. 23 Evangelho de Lucas 2,48. 24 Evangelhos de João 1, 45 - 6, 42. Ver, ainda, Evangelho de Mateus 13,55.

25 Romanos 1,3. 26 Isaías 7,14. 27 Evangelho de Mateus 1,22-23. Para uma discussão sobre esses pontos, ver Ranke-Heinemann,

Eunuchs for the Kingdom of Heaven, p. 29-30 [Eunucos pelo Reino de Deus]. 28 1 Coríntios 7, 25. 29 1 Coríntios 9, 5. Cefas, é claro, é um sobrenome dado a Pedro. Ver Evangelho de João 1, 42. 30 Clemente de Alexandria, Stromateis, III, 53 (p. 289). 31 Para um exame dos argumentos, ver Baigent, Leigh e Lincoln, Holly Blood, Holly Grail, p. 290-297

[O Santo Graal e a linhagem sagrada]. 32 Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven [Eunucos pelo Reino de Deus]. 33 Id., ibid. 34 Id., ibid. 35 Elaine Pagels entrevistada em "Os segredos por trás de O código Da Vinci", NBC Dateline, 2005. 36 Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven [Eunucos pelo Reino de Deus]. 37 Id., ibid. 38 Romanos 16,1-2. 39 Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven [Eunucos pelo Reino de Deus], referindo-

se a 1 Coríntios 11,5. 40 1 Coríntios 14,34-35. 41 Tertuliano, On Female Dress, I, i (vol. 1, p. 304). 42 Tertuliano, On Baptism, XVI (vol. 1, p. 252). 43 Evangelho de Mateus 16, 18. Nem Marcos, nem Lucas ou João mencionam essa afirmação em seus

Evangelhos, embora tanto Marcos quanto Lucas descrevam a mesma conversa com Pedro. 44 Evangelho de João 4,27. 45 Robinson, The Nag Hammadi Library in English, 1a edição: Evangelho de Filipe 63 (p. 138),

tradução Wesley W. Isenberg. 46 Robinson, The Nag Hammadi Library in English, 1a edição: Evangelho de Filipe 64 (p. 138),

tradução Wesley W. Isenberg. 47 King, The Godspel of Mary of Magdala, 6, p. 15. 48 King, The Godspel of Mary of Magdala, 10, p. 17.

CCAAPPIITTUULLOO VVII II

SSOOBBRREEVVIIVVEENNDDOO ÀÀ

CCRRUUCCIIFFIICCAAÇÇÃÃOO

JESUS ENTROU EM JERUSALÉM montado em um jumento. Isso, à

primeira vista, soa como informação incidental. Mais cedo, em sua viagem de

Jerico a Jerusalém para a celebração da Páscoa, ele parará no monte das

Oliveiras. Pedira a dois de seus seguidores que lhe providenciassem um

jumento. Era importante para ele, e Mateus explica por quê: "Isso aconteceu

para se cumprir o que foi dito pelo profeta."1 Infelizmente, a afirmação

simples de Mateus encobre muito mais do que revela. Precisamos tentar

destrinchá-la.

Os profetas do Antigo Testamento se preocupavam muito com o

messias. Descreviam em detalhes como ele chegaria a Jerusalém para

assumir seu reino e libertar seu povo. Descreviam, também, como agiria: o

profeta Zacarias previu que o rei de Israel viria triunfante, embora humilde,

montado em um animal insignificante como um jumento.2 Jesus cumpriu tal

profecia, relata-se, ao pé da letra. No dia em que chegou a Jerusalém,

multidões se reuniram para vê-lo atravessar o portão da cidade e passar

pelas ruas repletas que levavam ao Templo. O coro de "Hosana ao Filho de

Davi" acompanhou-o em seu caminho. A entrada de Jesus na cidade logo se

tornou um acontecimento público. As multidões encheram as ruas à sua

frente. Muitos o seguiam em procissão. A própria cidade, conta-se, vivia uma

"comoção". Fica evidente que tanto o povo quanto o governo estavam cientes

do que ocorria e, mais que isso, cientes da importância da ocasião. O

prometido libertador de Israel percorria, debaixo de seus olhos, a cidade de

Jerusalém a caminho do Templo, onde, pelo que sabiam — ou melhor,

esperavam —, assumiria o controle.

Para estar a par do acontecimento, o povo precisava ter sido

informado de antemão, mas o Novo Testamento nada diz a respeito de como

isso se deu. Nele, a aclamação pública é retratada de forma a fazer crer que

tudo foi espontâneo, mas podemos ter certeza de que a chegada de Jesus já

fora anunciada e a aclamação, encorajada.

Um leve indício desse planejamento realmente consta do Evangelho

de João, que escreve que muitos dos que haviam acorrido a Jerusalém para

a Páscoa "procuravam Jesus", perguntando-se se ele viria ou não ao Templo

para a Páscoa, pois era do conhecimento geral que os sumos sacerdotes

haviam expedido uma ordem para prendê-lo.3 Não há dúvida de que ele já

era visto como uma ameaça ao establishment. João revela ainda que no dia

em que os que estavam na cidade ficaram "sabendo que Jesus vinha a

Jerusalém" tomaram ramos de palmeiras e saíram para aclamá-lo.4 Com

certeza o esperavam — e anteviam problemas.

Com seu séquito cada vez mais numeroso enchendo as ruas, Jesus

seguiu para o Templo e, em um incidente famoso, expulsou dali os

cambistas. Também esse ato tinha por finalidade demonstrar um outro sinal

do rei de Israel, o meshiha, antecipado pelos antigos profetas: Isaías falara

do Templo como uma pura "casa de oração"5, e Jeremias exclamara as

palavras de Deus: "Este Templo, onde meu Nome é invocado, será

porventura um covil de ladrões a vossos olhos?"6 Mais uma vez essa profecia

é explicitamente mencionada no relato de Mateus.7 Não há como negar:

Jesus entrou em Jerusalém de forma deliberada, utilizando os meios certos

para se apresentar como o messias eleito de Israel, o rei ungido, cuja

chegada havia sido prenunciada pelos profetas.

Ele sabia disso. Era franco a esse respeito.

Mas todos os messias, por definição, eram ungidos. Quando, então,

se deu a unção de Jesus? Nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas não

existe menção a qualquer unção anterior à sua entrada em Jerusalém, o que

levaria a crer que, tecnicamente falando, naquele momento Jesus não era o

messias. Conforme seus relatos, mais parece que ele estava decidido a juntar

as peças finais de sua reivindicação, razão pela qual precisava do

reconhecimento e do apoio público.

Depois que Jesus expulsou os cambistas do Templo, dizem-nos

que o cego e o coxo dele se aproximaram, pedindo para que fossem curados,

e as crianças entoaram a aclamação "Hosana ao Filho de Davi". Esse foi o

terceiro momento em que ele cumpriu os requisitos tradicionais da liderança

messiânica: curar os doentes e ser aclamado por crianças. O Salmo 8 diz:

"...divulga tua majestade... pela boca das crianças..."8 O Livro da Sabedoria

acrescenta: "Porque a Sabedoria abriu a boca dos mudos, tornou eloqüente a

voz dos pequeninos.'"9 Mateus escreve que o próprio Jesus se referiu a esses

dois textos quando interpelado.10 Em seguida, após a terceira demonstração

de seu papel predestinado, Jesus deixou Jerusalém e viajou para Betânia,

onde passaria a noite.

Quando amanheceu, voltou a Jerusalém. Dessa vez, começou a

pregar no Templo, contando parábolas à multidão que viera ouvi-lo e, com

isso, irritando os sacerdotes hostis que pretendiam monitorar suas

atividades. Foi ao longo desse segundo dia que um acontecimento crucial

teve lugar, acontecimento diretamente relacionado a um problema de vital

importância na Judéia: a questão do pagamento de impostos a César.

Jesus conhecia bem a realidade política na Judéia sob domínio

romano. Os futuros redatores dos Evangelhos também estavam a par da

natureza delicada do assunto. Segundo o relato de Mateus, os fariseus e

herodianos — ambos partidários do establishment pró-romano — foram até

Jesus e lhe perguntaram pura e simplesmente: "É lícito pagar imposto a

César ou não?"11

Sejamos honestos: essa era uma pergunta extremamente capciosa.

No contexto da época, diríamos que fundamental e até mesmo explosiva. A

questão do imposto e a recusa em pagá-lo haviam sido o estopim para a

primeira rebelião contra Roma em 6 a.C, liderada por Judas da Galiléia,

rebelião essa que inaugurou meio século de derramamento de sangue. Para

os zelotes — e para muitos judeus menos engajados —, o imposto era o

símbolo de tudo que havia de errado com Roma. Podemos ter certeza de que

Jesus sabia das implicações da resposta — como saberiam os futuros

leitores dos relatos dos Evangelhos. Seria preciso muito tato, já que qualquer

que fosse a sua resposta, ela lhe causaria problemas com uma das duas

facções. Responder afirmativamente o poria em apuros com os zelotes e

responder negativamente acarretaria a ira dos romanos e dos sacerdotes

seus partidários.

O que fez ele? Conhecemos todos a resposta. Ele pediu uma

moeda. Deram-lhe um denário. Jesus olhou a moeda e perguntou:

— De quem é esta imagem e inscrição?

— De César! — lhe disseram.

— Pois dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus —

respondeu Jesus.12

Naquela época e naquele lugar, essa não foi só uma saída

inteligente e esperta — o equivalente a uma moderna boa tirada —, mas um

desafio ultrajante e provocador aos zelotes.

Imaginemos o problema: os zelotes, cuja determinação central

residia em encerrar ou derrubar o jugo de Roma sobre a Judéia, haviam

arranjado um casamento dinástico entre José, descendente da linhagem real

de Davi, e Maria, da linhagem sacerdotal de Aarão, a fim de conceber um

filho, Jesus — o "Salvador" de Israel —, que, ao mesmo tempo, era rei e

sumo sacerdote legítimo.

Jesus fora criado para desempenhar seu papel, entrara em

Jerusalém como messias, agira conforme todas as profecias, fizera tudo que

se esperava dele — até esse instante crucial. Até esse momento, os zelotes

deviam estar muito satisfeitos com o desenrolar dos acontecimentos. Porém,

em uma manobra inesperada, seu messias repentinamente dá uma guinada:

"Paguem o imposto", diz ele. "Não faz a menor diferença." Pois seu verdadeiro

reino — como várias vezes enfatizara — não era deste mundo.

Os zelotes que apoiavam Jesus decerto se enfureceram,

boquiabertos diante dessa inesperada, e pública, reviravolta. Seu messias

cuidadosamente construído os rejeitara — traíra-os. Por isso, enraivecidos,

eles o rejeitariam.

Após esse segundo dia no Templo, Jesus voltou novamente a

Betânia para passar a noite; segundo o Evangelho de Mateus, faltavam

apenas duas noites para a Páscoa, e Jesus se hospedou na casa de "Simão,

o Leproso". O Evangelho de João, contudo, afirma que ele foi hóspede de

Maria, Marta e Lázaro.13 Um desses Evangelhos está errado, isso é evidente,

mas seja em que casa Jesus tenha se hospedado, nela teve lugar um

acontecimento extraordinário: Jesus foi ungido. Terá sido este o seu

reconhecimento e confirmação como o messias de Israel? Aparentemente,

sim.

O Evangelho de Mateus relata que "uma mulher" ungiu Jesus na

cabeça com um "precioso bálsamo" tirado de "um frasco de alabastro" —

objeto muito caro na época.14 Esse bálsamo e o recipiente que o guardava

não estariam simplesmente à disposição na casa de um agricultor ou artesão

camponês. O incidente inteiro sugere uma velada fonte de riqueza por trás

dos indivíduos próximos de Jesus. Marcos menciona o mesmo incidente e

acrescenta que o bálsamo precioso era perfume de nardo — uma das

especiarias utilizadas no incenso do Templo.15 João, como sempre, uma

fonte de detalhes interessantes, identifica a mulher: Maria de Betânia, diz

ele, a irmã de Lázaro.16

A maioria dos leitores modernos dos Evangelhos não é muito

versada na política e nos costumes da época, razão pela qual essa unção

lhes parece incidental, um sinal de respeito, talvez, ou, como alguns

comentaristas eclesiásticos sustentam, uma cerimônia solene para dar boas-

vindas a um hóspede. Pode ser, mas no contexto tal explicação dificilmente

convence. Para os que viviam no século I d.C, a implicação desse ato seria

incontestável: uma unção real. Os sacerdotes e reis de Israel eram

tradicionalmente ungidos com bálsamos caros: no caso dos reis, ele era

derramado em torno da cabeça, como uma coroa simbólica, enquanto no

caso dos sacerdotes a cabeça era ungida com uma cruz diagonal.

Além disso, vale a pena ressaltar que Mateus afirma que após essa

unção Judas imediatamente se apresentou aos "sumos sacerdotes" para

providenciar a traição a Jesus. Esse acontecimento está tão sugestivamente

próximo à unção, que somos obrigados a pensar em uma ligação entre os

dois. Essa ação desempenhada por uma mulher amiga de Jesus sem dúvida

fez soar o alarme oficial. Podemos agora ter certeza sobre onde o Evangelho é

obtuso: Mateus, embora hesitante, indica que Jesus estava sendo

reconhecido e proclamado em seu papel de messias.

Curiosamente, em 1988, um pequeno jarro — contendo um

bálsamo misterioso que jamais foi identificado —, datado da época herodiana

e protegido por um invólucro de fibras de palmeira, foi encontrado perto de

Qumran, próximo ao mar Morto.17 Os arqueólogos especularam que pudesse

ser o bálsamo cuja produção emprestava fama àquela área na antigüidade e

que também era caro — valia o dobro do seu peso em prata — e usado na

unção de reis. Esse jarro pode ter chegado ali vindo de Jerusalém, ou pode

ter sido usado em Qumran mesmo para ungir um sumo sacerdote

"alternativo": o Temple Scroll [Manuscrito do Templo] deixa claro que a

comunidade de Qumran nutria um interesse especial pelo Templo, pois o

manuscrito inteiro descreve em intricados detalhes o procedimento correto a

ser observado no local sagrado.18

Mas o método utilizado nessa unção levanta mais um mistério

profundo — como se já não houvesse mistérios suficientes sobre Jesus.

Seria de esperar que uma cerimônia dessas fosse realizada por um grupo de

altos representantes, sacerdotes, talvez, ou membros do Sinédrio — fosse o

"oficial" ou algum Sinédrio zelote "alternativo", se é que algum membro do

movimento ainda se dispusesse a falar com Jesus depois do incidente com o

denário.

Mas um tal indivíduo não se encontrava presente. Segundo o relato

de Mateus, Jesus foi simplesmente ungido por "uma mulher" — identificada

no Evangelho de João como Maria "de Betânia" —, e o acontecimento teve

lugar na casa que ela partilhava com a irmã e o irmão, Lázaro, que pouco

antes havia sido "ressuscitado dos mortos"19. Trata-se de algo inédito na

história das confirmações reais ou sacerdotais de uma organização

dominada pelos homens: a cerimônia de unção presidida por uma mulher?

Uma mulher a confirmar e aclamar Jesus como meshiha? Que tipo de

cerimônia foi essa que deixou sua marca breve, talvez truncada, nos

Evangelhos, à semelhança de um cometa encoberto por nuvens

carregadas?20

Até hoje esse acontecimento permanece sem explicação, mas não

pode ser ignorado. Teve tamanha importância no movimento cristão, e o

conhecimento do mesmo foi evidentemente tão difundido, que ele não

poderia, mais tarde, ser removido dos registros, permanecendo incluído

naquelas lembranças que sobreviveram para ser transcritas na forma dos

nossos Evangelhos. Perdeu sua relevância e foi distorcido, mas ao menos se

conserva, embora inexplicável e misterioso. Além disso, é curioso que a uma

mulher, Maria de Betânia, coubesse esse papel e não àquela que desfrutava

de importância muito maior no círculo dos discípulos: Maria Madalena. A

menos, é claro, que ambas fossem a mesma — a menos que Maria de

Betânia fosse, na verdade, Maria Madalena.

Aparentemente, o Novo Testamento faz uma distinção entre as

duas, mas certamente existe uma tradição que as funde, tradição inserida

na fé no século VI pelo papa Gregório I. Faltam provas, contudo, e essa

identificação já não é mais aceita pelo Vaticano. No entanto, como veremos,

o assunto não se encerra aqui.

Uma perspectiva bastante interessante — e convincente — foi

publicada por Margaret Starbird em sua obra de 1993, The Women with the

Alabaster Jar [Maria Madalena e o Santo Graal: a mulher do vaso de

alabastro]. Como descobrimos, todos os atos importantes de Jesus nos

poucos dias que precederam a crucificação foram realizados em

conformidade com profecias do Antigo Testamento. Até mesmo a unção de

Jesus pode ser vista como compatível com a aclamação do meshiha judeu

cuja vinda fora prenunciada. Margaret Starbird sugere que é possível

encontrar as origens de Maria Madalena em uma dessas profecias.21 Ela

aponta o profeta Miquéias, do Antigo Testamento, que escreveu: "E tu, Torre

do Rebanho, Ofel da filha de Sião, em ti entrará a autoridade antiga, a

realeza da filha de Jerusalém."22

A expressão "Torre do Rebanho" significa um local alto de onde o

pastor pode vigiar seu rebanho. Aqui, porém, de acordo com a tradução

oficial do Vaticano — A Bíblia de Jerusalém —, a referência é a Jerusalém.23

O "Rebanho" se refere aos fiéis de Deus. O acréscimo da referência "Ofel"

reforça esta explicação, já que Ofel era o quarteirão da residência real em

Israel. Como também explica A Bíblia de Jerusalém, "Torre do Rebanho" em

hebraico é Migdal-eder; Migdal quer dizer "torre", mas também encerra o

sentido de "grande". Margaret Starbird sugere, de forma altamente plausível,

que aqui se encontram as origens do epíteto "a Madalena", em lugar de uma

possível cidade chamada Magdala. Em outras palavras, se esta explicação

está correta, Maria de Betânia, "a Madalena", a esposa do messias, era

conhecida como "Maria, a Grande".24

Da mesma forma como a entrada de Jesus em Jerusalém foi

organizada com o objetivo de chamar a atenção para as palavras dos

profetas do Antigo Testamento sobre a vinda do messias, Maria, "a

Madalena", também nos reporta a uma profecia messiânica do Antigo

Testamento sobre a restauração do poder real de Israel.

Sugerindo, é claro, que Jesus foi ungido rei por sua esposa!

Por alguma razão ela dispunha de poder para tal e assim o decidiu.

Isso dá aos defensores da primazia da autoridade apostólica masculina outro

enigma com que se preocupar. Sem dúvida, a autoridade no movimento de

Jesus não era exclusivamente atribuída aos discípulos do sexo masculino.

Quais as implicações que advêm daí? Já se sugeriu que essa

cerimônia de unção representa um casamento sagrado. Mas é pouco

provável: a unção não era um elemento das tradições clássicas dos

Mistérios,25 como também não constava das religiões mesopotâmicas.26

Afora o judaísmo, apenas uma tradição anterior da região atribuiu relevância

à unção com bálsamo sagrado, e isso foi no antigo Egito. Lá, os sacerdotes

eram consagrados derramando-se bálsamo sobre suas cabeças.

Sem dúvida, o Novo Testamento é uma fonte histórica deficiente.

Não há como negar. Os textos são incoerentes, incompletos, truncados e

preconceituosos. É possível desconstruir o Novo Testamento até que nada

reste, senão uma preconceituosa mitologia dogmática cristã — caso em que

poderíamos defender que o relato de Jesus apoiando o pagamento de

impostos a César tenha sido meramente um acréscimo posterior a fim de

assegurar à maioria de gentios greco-romanos convertidos ao cristianismo

que nada havia de politicamente perigoso na nova fé, que ela jamais

representara uma ameaça política ao poderio de Roma.

Por outro lado, se aceitarmos que essas histórias contenham

alguma história, embora truncada, temos de buscar os fatos que possam ter

sobrevivido sob a posterior construção mitológica. Como mencionado antes,

os próprios historiadores pagãos, em especial Tácito e Plínio, o Jovem,

apesar de espartanos em suas informações, relatam — e ao fazê-lo

confirmam — que um messias judeu foi crucificado no período em que

Pôncio Pilatos era prefeito da Judéia. E mais: que um movimento religioso,

centrado nesse específico messias e batizado com seu nome, existia no final

do século I d.C. Conseqüentemente, temos de admitir que há um pouco de

história real nos Evangelhos; mas quanto? A nossa avaliação do volume de

verdade nos Evangelhos depende em última análise da perspectiva com a

qual os encaramos.

É aqui que as incoerências dos Evangelhos se tornam importantes.

Uma em particular é crucial.

Já dissemos que Jesus só foi ungido dois dias após a sua entrada

em Jerusalém, quando, em uma casa em Betânia, a irmã de Lázaro, Maria,

ungiu-o com um bálsamo caríssimo, de nardo. Assim, quando chegou a

Jerusalém como messias para a Páscoa, Jesus ainda não fora ungido. Não

era, tecnicamente falando, o messias — isso ainda estava por vir.

Mas o Evangelho de João nos conta uma história bem diferente.

Nele, Jesus foi ungido seis dias antes da Páscoa, anteriormente à sua

entrada em Jerusalém27. Dessa forma, o Evangelho de João mostra que a

aclamação de Jesus como messias, em sua entrada em Jerusalém, fora

correta, pois ele já recebera a unção sagrada. Quem estará falando a

verdade? João ou os outros três evangelistas? Não sabemos. Tudo que

sabemos é que na história contada por João a triunfal entrada em Jerusalém

traz embutido um sentido ausente nos outros Evangelhos. E mais plausível,

e o interessante é que apenas João identifica para nós como Maria — a irmã

de Lázaro — a mulher que consagra o ungido.

Precisamos examinar melhor a hipótese que levantamos aqui: não

é difícil imaginar que os zelotes, furiosos com o fato de Jesus aceitar a unção

messiânica e com a sua posterior rejeição a qualquer papel político,

lançassem mão de uma grande manobra para limitar seu prejuízo.

Precisavam se livrar de Jesus, de modo que um líder mais tratável pudesse

ocupar seu lugar — quem sabe seu irmão Tiago, mais ligado às aspirações

políticas dos zelotes. Não há dúvida de que após a saída de Jesus de cena,

Tiago passou a liderar a comunidade de judeus messiânicos em Jerusalém.28

Também não é difícil supor que os zelotes tenham preparado uma

armadilha para Jesus — se não podiam contar com um líder, ao menos

conseguiriam um mártir. Jesus sabia que eles iriam traí-lo — e é curioso que

o homem que veio a figurar como o traidor, Judas Iscariotes, fosse, sem

sombra de dúvida, um sicarii zelote. Podemos sugerir que ele foi um traidor

para Jesus, mas um patriota para os zelotes. Fez o que estes queriam.

Identificou Jesus para os guardas armados que foram efetuar a prisão. E ao

ser preso no Jardim de Getsêmani, Jesus perguntou (como transcrito no

original grego): "Sou eu um zelote, para que vocês tenham que vir me

prender com espadas e paus?"29 Dessa forma Jesus revela — e por acaso o

redator do Evangelho de Mateus faz o mesmo — que estava a par da

realidade política da época.

Se os sacerdotes saduceus desejavam se livrar de Jesus porque o

viam como um messias e uma ameaça ao poder que detinham, e se também

os zelotes, por motivos outros, desejavam dar fim a Jesus, essa notícia

provavelmente chegou aos ouvidos de Pilatos. E seu conhecimento deve tê-lo

deixado numa posição muito difícil. Pilatos era o representante oficial de

Roma na Judéia, e a principal queixa de Roma contra os judeus era a recusa

destes em pagar o imposto devido a César. No entanto, aqui estava um líder

judeu — ninguém menos que o rei legítimo — dizendo ao povo para pagar o

tributo. Como poderia Pilatos julgar — quanto mais condenar — um homem

que aparentemente apoiava a política romana? O próprio Pilatos seria

acusado de abuso de poder, caso prosseguisse com a condenação de tal

partidário.

O Novo Testamento retrata "os judeus" clamando pelo sangue de

Jesus. E essa aparente culpa dos judeus acompanhou-os durante milênios

— foi reconhecida como falsa pelo Vaticano e suprimida dos ensinamentos

apenas em 1960. No entanto, como já deve ter ficado claro, não foram "os

judeus" que pediram a prisão e a execução de Jesus, mas os zelotes

militantes, os que odiavam os romanos e sacrificariam até um dos seus a fim

de alcançar o objetivo político pretendido. No cenário apresentado aqui,

Pilatos se viu diante de um sério dilema: para manter a paz, teria de

condenar e executar um judeu que apoiava Roma, mas cuja existência vinha

causando desordem pública, fogueira na qual os descontentes zelotes

estavam pondo lenha. Pilatos precisava viabilizar o impossível; precisava

desesperadamente de um acordo.

E o acordo, sugiro, foi este: que ele julgasse e condenasse Jesus

como agitador político, agradando assim aos zelotes que ameaçavam

disseminar a desordem. Essa era a última coisa de que Pilatos precisava,

principalmente porque sabia que as autoridades romanas já não morriam

mais de amores por ele. Tendo condenado Jesus e executado a exigida

sentença de crucificação, ele não deve, porém, ter ousado informar a Roma

que Jesus estava morto. Assim, Pilatos providenciou meios para que ele

sobrevivesse. Falou com um membro do Sinédrio — e amigo de Jesus —, o

rico José de Arimatéia.

Tecnicamente, como forjar uma crucificação? Como, exatamente,

Jesus teria podido sobreviver? Seria possível, afinal, sobreviver a uma

crucificação, qualquer que fosse a sua duração? O procedimento era mais

uma tortura fatal do que uma execução, e bastante simples: amarrava-se a

vítima, pendurando-a na cruz com os pés apoiados sobre uma base na

extremidade inferior. Os pés costumavam ser amarrados à base, embora ao

menos um exemplo descoberto por arqueólogos revele que um prego foi

usado em cada um dos tornozelos.30 O peso do corpo dependurado

dificultava a respiração, que só era possível alçando as pernas e os pés na

direção do peito para aliviar a pressão. O cansaço e a fraqueza, é claro,

acabavam superando a capacidade para continuar a fazer esse movimento.

Quando isso acontecia, o corpo desmoronava, a respiração se tornava

impossível e o crucificado morria — por asfixia. Estimava-se que o processo

levasse três dias.31

Como ato de piedade — somente os cruéis romanos cunhariam tal

definição —, as pernas da vítima eram com freqüência quebradas e, assim,

despojadas de força para manter o peso do corpo. O corpo desabava e a

morte por asfixia ocorria logo em seguida. Podemos ver isso no Novo

Testamento. João relata que as pernas dos dois zelotes crucificados ao lado

de Jesus foram quebradas, mas quando chegou a vez de Jesus, "ele já estava

morto"32.

Sem dúvida seria difícil sobreviver a uma crucificação, mas não

impossível. Josefo, por exemplo, conta que encontrou três de seus ex-colegas

em meio a um grande grupo de prisioneiros crucificados. Ele procurou Tito

para pedir misericórdia, implorando para que fossem tirados da cruz. Tito

concordou e os três foram descidos. A despeito de cuidados médicos, dois

deles morreram, mas o terceiro sobreviveu.33

Teria Jesus sobrevivido, tal como o sobrevivente do relato de

Josefo? Existem tradições no Islã que respondem que sim. A assertiva do

Corão "Eles não o crucificaram" pode muito bem ser traduzida como "Eles

não causaram a sua morte na cruz"34. Mas o Corão é um texto muito

posterior, ainda que sem dúvida utilize documentos e tradições mais antigas.

Talvez mais relevante para nós seja uma declaração de Irineu no final do

século II. Numa queixa sobre as crenças de um gnóstico egípcio, Basilides,

ele explica que esse herege pregava que Jesus fora substituído durante o

caminho até o Gólgota e que seu substituto, Simão de Cirene, morrera em

lugar dele.

Mas se Jesus sobreviveu sem ser substituído, como isso teria

acontecido? Hugh Schonfield, em seu The Passover Plot [O complô da

Páscoa], sugere que Jesus foi drogado — sedado na cruz de tal forma que

aparentou estar morto, mas pôde ser revivido mais tarde, depois de ser dela

retirado.35 Essa não é, de forma alguma, uma idéia insana, e tem encontrado

ouvidos receptivos. Por exemplo, em um programa de tevê sobre a

crucificação transmitido pela BBC em 2004, chamado Did Jesus Die? [Jesus

morreu?], Elaine Pagels se referiu ao livro de Schonfield, "que sugere que

[Jesus] tenha sido sedado na cruz; que dela foi removido bem cedo e por isso

pode muito bem ter sobrevivido". E concluiu: "Decerto é uma

possibilidade."36

Há um incidente curioso registrado nos Evangelhos que talvez

possa ser explicado por essa hipótese: enquanto estava na cruz, Jesus

reclamou de sede. Uma esponja embebida em vinagre foi presa a uma

comprida vara e estendida a ele. Ao contrário, porém, de revivê-lo, o líquido

da esponja aparentemente causou a sua morte. Trata-se de uma reação

estranha e sugere que a esponja não estivesse embebida em vinagre,

substância que o teria despertado, mas, em vez disso, em algo que o fizesse

desmaiar — algum tipo de droga, por exemplo. E esse tipo de droga se

encontrava amplamente disponível no Oriente Médio.

Sabia-se que uma esponja embebida numa mistura de ópio e

outros componentes, como beladona e haxixe, funcionava como um bom

anestésico. Embebiam-se essas esponjas na mistura e depois as secavam

para serem estocadas ou transportadas. Quando era preciso induzir à

inconsciência — para uma cirurgia, por exemplo —, a esponja era imersa em

água para ativar as drogas e colocada sobre o nariz e a boca do paciente, que

imediatamente desfalecia. Pela descrição dos acontecimentos na cruz e a

rápida "morte" aparente de Jesus, soa plausível a sugestão de que o uso de

uma esponja dessas tenha sido a causa. Independentemente do cuidado com

o qual uma crucificação "encenada" tenha sido conduzida (com a intenção de

que Jesus sobrevivesse), não havia como prever o efeito que o choque

exerceria sobre ele. Crucificações, afinal, eram experiências traumáticas,

tanto física quanto mentalmente. Induzir à inconsciência reduziria o efeito

do trauma e assim aumentaria a chance de sobrevivência, de modo que a

droga também nesse sentido teria sido benéfica.

Existem mais pontos que impressionam: o Evangelho de João

menciona que uma lança foi enfiada no lado de Jesus, fazendo o sangue

jorrar. A simples observação do fato leva a duas conclusões: primeira, a

lança não foi enfiada no cérebro ou no coração, não acarretando assim o

risco iminente de morte; segunda, o jorro de sangue indicaria que Jesus

ainda estava vivo.

Só faltava agora Jesus ser retirado da cruz, para todos os efeitos

sem vida, mas na verdade inconsciente, e levado a um túmulo particular

onde pudesse ser reanimado com medicamentos. Em seguida, ele

desapareceria de cena. E é isso, precisamente, que os Evangelhos

descrevem: Lucas e João relatam que Jesus foi colocado em um túmulo

novo, nas cercanias. Mateus acrescenta que o túmulo era de propriedade do

rico e influente José de Arimatéia. João, que costuma contribuir com tantos

detalhes, complementa dizendo que havia um jardim em torno do túmulo,37

implicando que o local era uma propriedade privada, talvez também

pertencente a José de Arimatéia.

João enfatiza ainda que Jesus foi retirado da cruz rapidamente e

posto nesse túmulo. Então, num adendo bastante curioso, conta que José de

Arimatéia e um amigo, Nicodemos, visitaram a tumba à noite levando grande

quantidade de mirra e aloés.38 Estes, é claro, poderiam ser usados

simplesmente como fragrâncias, mas existe uma outra explicação

igualmente plausível. Ambas as substâncias são de uso medicinal —

principalmente a mirra, que é usada para ajudar a estancar o sangue. Que

se saiba, nenhuma das duas tem qualquer função no embalsamamento.

Marcos e Lucas também abordam obliquamente o tema, acrescentando ao

seu relato do túmulo que as mulheres — Maria Madalena e Maria "mãe de

Tiago" — levaram especiarias e bálsamos quando foram ao túmulo, após o

término do Sabbath.39

É igualmente curioso que Jesus tenha sido por acaso crucificado

próximo a um jardim e um túmulo de propriedade — ao menos o último —

de José de Arimatéia. Tudo isso é, no mínimo, bastante conveniente. Teria

sido a própria crucificação um evento privado? Talvez para controlar o

número de testemunhas? Lucas nos informa que a multidão assistiu à

distância.40 Quem sabe, não foi mantida à distância? Na verdade, a descrição

dos acontecimentos no Gólgota sugere que a crucificação se deu no vale do

Cédron, onde existem até hoje muitos túmulos cavados na rocha e onde

também se localiza o Jardim de Getsêmani, que pode muito bem ser o jardim

mencionado, com o qual Jesus estava familiarizado.

É preciso, contudo, ressaltar mais um dado estranho: no

Evangelho de Marcos, diz-se que José de Arimatéia visitou Pilatos e pediu o

corpo de Jesus. Pilatos pergunta se Jesus está morto e fica surpreso quando

lhe dizem que sim, por lhe parecer que o desfecho foi demasiado rápido.

Como, porém, Jesus está morto, Pilatos autoriza José a descer o corpo da

cruz. Se consultarmos o texto original grego, notaremos algo importante:

quando José pede a Pilatos o corpo de Jesus, o termo usado para "corpo" é

soma. Em grego, a palavra significa corpo com vida. Quando Pilatos

concorda que José retire o corpo da cruz, o termo usado para "corpo" é

ptoma,41 palavra que significa um cadáver ou carcaça. Em outras palavras, o

texto grego do Evangelho de Marcos deixa claro que embora José peça o

corpo com vida de Jesus, Pilatos lhe concede o que crê ser o cadáver do

condenado. A sobrevivência de Jesus é revelada bem ali, no próprio relato do

Evangelho.

Se o redator deste Evangelho desejava esconder tal fato, teria sido

bastante simples usar um termo apenas para ambas as situações — fazer

tanto José quanto Pilatos falarem do ptoma, o cadáver. Mas o redator optou

por não ser coerente. Terá sido porque o fato era notório demais para que ele

ousasse manipulá-lo? Foi preciso esperar pela tradução do Novo Testamento

do grego para o latim: na Bíblia latina — a Vulgata —, a palavra corpus é

usada tanto por Pilatos quanto por José de Arimatéia, e ela tanto significa

"corpo" quanto "cadáver". A ocultação do segredo da crucificação se

completou.

Mais uma vez, basta uma leve mudança de perspectiva, um

distanciamento do dogma teológico, para enxergar a crucificação de uma

nova maneira, ou seja, ver que Jesus podia muito bem ter sobrevivido.

"Meu reino não é deste mundo", disse Jesus a Pôncio Pilatos

durante seu interrogatório.42 E explicou: "Se o meu reino fosse deste mundo,

meus súditos teriam combatido." Trata-se de mais uma declaração, como a

do conselho para pagar os impostos, que com certeza enfureceria os

inflexíveis zelotes.

Mas o que significa realmente tal declaração? E, mais curioso

ainda, onde ele adquiriu essa idéia tão diferente da de seus companheiros e

contemporâneos ativamente políticos?

Jesus não pode ter aprendido seu ofício na Galiléia, pois a Galiléia

era o reduto dos zelotes, que teriam controlado seu treinamento e

aprendizado, principalmente devido ao destino que planejavam para ele. E

mesmo que, por alguma razão, apesar de tudo, tivesse adotado uma

perspectiva tão mística e uma visão política que admitisse as exigências

romanas, seus mestres zelotes teriam tomado ciência dessa mudança de

postura e não lhe permitiriam entrar em Jerusalém como candidato a

messias.

Tudo isso sugere que Jesus trabalhava em seu próprio plano —

plano esse que não apenas envolvia ser ungido como messias por uma

mulher de quem era próximo, mas também a garantia de que os zelotes não

suspeitariam da verdade até que fosse tarde demais. Não nos resta senão

concluir que Jesus aprendeu seu ofício em outro lugar.

Podemos vislumbrar uma pista numa declaração muito curiosa

feita por ele e registrada em um dos Evangelhos: "Se teu olho estiver são,

todo o teu corpo ficará também iluminado."43

Trata-se de puro misticismo do tipo que não se vê em nenhum

outro lugar do Novo Testamento, nem nos ensinamentos zelotes que

constam dos manuscritos do mar Morto. É ímpar em um contexto judaico.

Somos obrigados a concluir que Jesus, na verdade, foi iniciado em outro

lugar. Teve a experiência da Luz Divina que os místicos sempre relataram ao

longo de todos os tempos.

É preciso entender melhor essa afirmação, pois ela é crucial. É o

eixo sobre o qual se assenta a verdade sobre Jesus. Se pudermos entender

essa afirmação, então entenderemos Jesus: entenderemos por que ele

rompeu com os zelotes e por que a Igreja vem nos impingindo mentiras a seu

respeito desde então. A Igreja precisou perpetuar tais mentiras, porque sem

dúvida estaria acabada se falasse a verdade sobre Jesus. A importância é

dessa magnitude.

Apenas em um lugar Jesus poderia ter adquirido essas noções. Um

único lugar onde, entre os judeus residentes, esse tipo de conceito místico

era debatido e ensinado, onde as obsessões políticas vigentes na Judéia não

se achavam presentes ou eram bastante abafadas. E esse lugar era o Egito.

É impossível entender Jesus, seus ensinamentos e os

acontecimentos da Judéia do século I sem entender a experiência de Jesus

no Egito.

NOTAS

1 Evangelho de Mateus 21,4 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). 1 Zacarias 9,9. 3 Evangelho de João 11,56-57 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). 4 Evangelho de João 12,12-13. 5 Isaías 56,7. 6 Jeremias 7,11. 7 Mateus 21,13. 8 Livro dos Salmos 8,1-2 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). 9 Livro da Sabedoria 10,21. 10 Evangelho de Mateus 21,16. A Bíblia de Jerusalém registra as duas fontes da citação de Jesus que se

combinam. 11 Evangelho de Mateus 22,17 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). 12 Evangelho de Mateus 22,19-22. 13 Evangelho de João 11,1-2 — 12,3. 14 Evangelho de Mateus 26,7. No Evangelho de Lucas 7,37-38, a mulher unge os pés. de Jesus. 15 Evangelho de Marcos 14,3. 16 Evangelho de João 11,2. 17 Patrich e Arubas, "A Juglet Containing Balsam Oil (?) From a Cave Near Qumran", IEJ, 39, 1989,

p. 43-59. 18 Garcia Martínez, The Temple Scroll [Manuscrito do Templo], p. 154s. 19 Evangelho de João 12,3. 20 No Evangelho de João, a mulher unge os pés de Jesus e não sua cabeça. Considero este um relato

truncado da mesma cerimônia descrita por Mateus e Marcos. 21 Starbird, The Women with the Alabaster Jar [Maria Madalena e o Santo Graal: a mulher do vaso de

alabastro], p. 50-51. 22 Miquéias 4,8 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). 23 Bíblia de Jerusalém, p. 1639, nota c. 24 Starbird, The Women with the Alabaster Jar [Maria Madalena e o Santo Graal: a mulher do vaso de

alabastro], p. 51. 25 Burkert, Ancient Mystery Cults, p. 102. 26 Hastings, Encyclopaedia of Religion and Ethics, vol. I, p. 557. 27 Evangelho de João 12,1-3. 28 Atos dos Apóstolos 15,13 — 21,18. Ver, ainda, Eisenman, The Dead Sea Scrolls and the First

Christians, p. 118-119. 29 Evangelho de Mateus 26,55 (transcrito da Bíblia de Jerusalém). O texto original grego traz lesten,

que é traduzido na Bíblia de Jerusalém como "ladrão", e na Bíblia do rei Jaime como thief (ladrão).

Mas lesten (singular) está associado a lestai (plural), o nome usado em referência aos zelotes. 30 Zias e Sekeles, The Crucified Man from Giv'at ha-Mivtar: A Reappraisal, Israel Exploration

Journal, 35, 1985, p. 26-27. 31 Cohn, The Trial and the Deatb of Jesus, p. 230. 32 Evangelho de João 19,31-33. 33 Josefo, The Life of Flavius Josepbus, p. xxiii-xxiv. 34 Parrinder, Jesus in the Qur'an, p. 108. 35 Schonfield, The Passover Plot, p. 166-167. 36 Did Jesus Die?, produzido por Richard Denton, Planet Wild Productions para a BBC, 2003, e

transmitido pela BBC, canal 4, no Reino Unido, em 2004. 37 Evangelho de Mateus 27,6; Evangelho de Marcos 15,46; Evangelho de Lucas 23,53; Evangelho de

João 19,41-42. 38 Evangelho de João 19,39. 39 Evangelho de Marcos 16,1; Evangelho de Lucas 23,56. 40 Evangelho de Lucas 23,49. 41 Evangelho de Marcos 15,43-45. 42 Evangelho de João 18,36. 43 Evangelho de Lucas 11,34.

CCAAPPÍÍTTUULLOO VVII II II

JJEESSUUSS NNOO EEGGIITTOO

O LOCAL EXATO ONDE JESUS viveu do início da adolescência até deixar

a Galiléia para ser batizado no Jordão é um completo mistério. Lucas situa

seu batismo no 15° ano do reinado do imperador Tibério — o que daria 28

ou 29 d.C. —, acrescentando que ele contava cerca de trinta anos nessa

época.1 Só podemos ter certeza de uma coisa: onde quer que Jesus tenha

vivido, não foi em Israel.

Tal certeza deriva da lógica dos Evangelhos: se Jesus morasse na

Judéia, na Galiléia ou na Samaria, o fato teria sido mencionado juntamente

com os indícios extraordinários, até mesmo miraculosos, de sua iminente

grandeza, da mesma maneira como são descritos com afeto por Mateus,

Marcos, Lucas e João os incidentes da sua infância e os que se seguiram ao

seu batismo.

Embora seja verdade que os Evangelhos se preocupam em primeiro

lugar com a missão de Jesus a partir de seu batismo, eles igualmente trazem

detalhes do seu nascimento, as viagens de sua família e, sugestivamente, do

seu debate com os sacerdotes no Templo quando tinha 12 anos.2 Sem

dúvida, já que teve o cuidado de mostrar indícios tão prematuros de sua

inspiração religiosa, ao menos um dos Evangelhos teria comentado outros

incidentes desse tipo, principalmente à medida que Jesus ingressasse na

idade adulta. A ausência de tais incidentes soaria altamente suspeita. No

entanto, é exatamente esse o caso: uma busca no Novo Testamento nada

revela acerca dos 18 anos seguintes — época áurea da vida de Jesus.

Notamos mais uma curiosidade: Mateus, Marcos e Lucas dizem

que Jesus morava na cidade de Nazaré, na Galiléia. Lucas fornece um

pouquinho mais de informação, acrescentando que Jesus foi criado ali e que

todo ano seus pais passavam a Páscoa em Jerusalém. Foi durante uma

dessas visitas que os dois encontraram Jesus sentado no Templo cercado de

homens eruditos, discutindo com eles questões religiosas. Infelizmente, não

existem provas de que Nazaré existia na época de Jesus. A cidade é

mencionada pela primeira vez apenas no século III d.C.3 Será que o relato

desse debate no Templo foi inserido aqui como forma de justificar um

período na vida de Jesus sobre o qual inexistem informações?

No que diz respeito aos Evangelhos, temos a sensação de que

Jesus desapareceu durante a juventude e nos primeiros anos da idade

adulta. No entanto, foi durante essa época que ele aprendeu os conceitos, as

crenças e o conhecimento que pregou mais tarde. Então, onde estava ele

exatamente? E por que escondem seu paradeiro? Terá sido "descoberto como

gênio" por sacerdotes ou rabinos e levado para longe durante quase duas

décadas de aprendizado em segredo? Com certeza seus discípulos sabiam

onde Jesus estivera. Qual seria o risco envolvido, que problemas poderiam

surgir, caso divulgassem tal informação? Com efeito, não há como evitar a

pergunta: o que pretendiam esconder os que escreveram os Evangelhos?

Essa lacuna no relato da vida de Jesus há muito foi percebida por

especialistas e abriu caminho para uma vasta especulação. Existem

argumentos com variados graus de plausibilidade defendendo que ele rumou

para o Oriente, bem longe da jurisdição dos romanos, para a Partia (Pérsia),

ou além, para o Afeganistão ou para a índia. Ainda hoje muitos acreditam

que o túmulo sagrado de Yus Asaph, na Caxemira, seja o do próprio Jesus

que, após sobreviver à crucificação, voltou para o seu lar no Oriente e lá

viveu até morrer. Também há sugestões de que, em criança, Jesus tenha

estudado com mestres budistas — isso explicaria, dizem alguns, os paralelos

presentes entre os ensinamentos de Jesus e os de Buda. Temos ainda a

antiqüíssima comunidade cristã concentrada em Malabar, na costa oeste da

índia, que reivindica ter sido fundada pelo apóstolo Tome. Sem dúvida, se

Tome por lá esteve, Jesus também poderia ter estado.4

À primeira vista, o argumento de que Jesus se mudou para o

Oriente, com suas diversas variantes, tem seu mérito, mas continua difícil

de provar. Hugh Schonfield explorou as crenças caxemiras em sua obra A

odisséia dos essênios, publicada pela primeira vez em 1984. Descobriu que

um ramo ou um líder do grupo judeu messiânico — o grupo zelote —

realmente fugira das áreas controladas pelos romanos e tomara o rumo do

nordeste, acabando por alcançar o subcontinente indiano.

Schonfield acredita piamente na existência de documentos que

comprovam esse êxodo. Ele me explicou pessoalmente, antes de morrer, em

1988, que concentrara a busca de indícios cruciais em um mosteiro

nestoriano na região de Mossul, no Iraque, mas que os monges — hoje

chamados cristãos assírios — jamais lhe permitiram acesso aos mesmos.

Não houve meio de fazer Schonfield me fornecer detalhes específicos sobre

que monastério e que documentos seriam esses. Acredito que ele ainda

tivesse esperanças de pôr as mãos nessas provas e, por isso, guardou

consigo as informações. Uma pista, porém, aparece em A odisséia dos

essênios, que traz uma referência a um historiador árabe 'Abd al-Jabbar,

que, tudo indica, teria acesso a importantes documentos judaico-cristãos

que remontam ao século VI ou VII d.C. Esses documentos se encontravam

em mosteiros, aparentemente nestorianos, na região de Mossul.5 Claro que

isso foi muito antes das duas guerras contra o Iraque de Saddam Hussein.

Se algo restou dos mosteiros ou dos documentos, não se sabe.

Esses judeus messiânicos que, segundo Schonfield e outros,

deixaram a Palestina, partiram devido à perseguição das autoridades, que se

tornou mais violenta à medida que o século I avançava. Podemos entender o

desejo de simplesmente buscar um lugar mais tranqüilo, onde as crenças da

comunidade pudessem ser conservadas sem oposição. No entanto, Jesus

não se encaixa facilmente nesse padrão. Antes de ser batizado e dar início à

sua missão, ele ainda não despertara a atenção nem dos romanos, nem das

autoridades judaicas pró-romanos. De toda maneira, já havia um bocado de

zelotes dispostos a criar problemas, principalmente diante das tentativas

sucessivas dos romanos de instalar no Templo imagens do imperador. A

oposição inflexível dos judeus a tais manobras demonstra não ter havido

abrandamento da impaciência diante das exigências romanas. Seja o que for

que Jesus estivesse fazendo então, não há registro de envolvimento seu na

oposição que leva a marca registrada dos zelotes. Assim sendo, não lhe era

necessário fugir da jurisdição romana. Caso tenha se mudado da Judéia ou

da Galiléia, teria sido por opção pessoal, e não resultado de coação. Mas

para onde teria ido, e por quê?

Existe uma única pista na Bíblia, no Antigo Testamento, cujo eco

alcança o Novo Testamento. Como vimos, era importante para Jesus seguir,

cumprir ao pé da letra, as predições dos profetas do Antigo Testamento que

descreviam a vinda do messias. Também já vimos a expressão bastante

literal dessas predições na entrada de Jesus em Jerusalém quando,

finalmente, ele tornou públicas as suas reivindicações messiânicas. Assim,

temos motivos para esperar que o mesmo viesse a acontecer com relação a

todas as profecias messiânicas do Antigo Testamento.

Em um sentido material, essas predições limitam Jesus, impondo

uma série de fronteiras dentro das quais sua missão messiânica precisava

ser expressa. Uma previsão especialmente interessante veio do profeta

Oséias: "Quando Israel era menino e do Egito chamei meu filho."6 Mateus

volta à mesma, que é uma das mais antigas profecias a que alude: em um

truncado relato histórico, ele registra que a Sagrada Família fugiu para o

Egito quando Jesus ainda era bebê, explicando, "para que se cumprisse o

que dissera o Senhor por meio do profeta: Do Egito chamei o meu filho"7.

A essa altura, não podemos resistir à seguinte pergunta: "Por que o

Egito?" No Evangelho de Mateus consta um detalhe considerado irrelevante

para a Igreja Romana, mas que para a Igreja Copta egípcia, que se separou

de Roma em 451 após o Concilio de Chalcedon, é assunto de considerável

importância. Durante quase mil anos manteve-se uma lenda sobre a viagem

da Sagrada Família para o Egito, todos os locais que ela visitou ou em que

morou, e todos os milagres que acompanharam a presença de Jesus. Essa

lenda foi chamada "A visão de Teófilo". Teófilo foi patriarca de Alexandria e

líder da Igreja Egípcia de 385 a 412 d.C, mas a "Visão" aparentemente não

foi registrada por escrito até o século XI ou XII.

Devido à natureza altamente religiosa da história e sua utilização

bastante óbvia para justificar a singularidade e a divindade de Jesus,

podemos localizar sua teologia bem além das crenças da comunidade judaica

no Egito — comunidade essa que teria provido refúgio para a família de

Jesus. Mais que isso, esses mesmos fatores situam as origens da teologia

numa época posterior às decisões dogmáticas do Concilio de Nicéia, em 325

d.C. Parece bastante evidente que a "Visão" — para dizer o mínimo — é um

produto do pensamento cristão no século IV d.C, ou mais tardio, e

seguramente não deriva do judaísmo ou do cristianismo da Judéia. Assim

sendo, não pode ser um relato preciso de tal viagem, embora nada impeça

que contenha alguns elementos de uma viagem real. Por esse motivo, cabe a

pergunta: "Quem teria vantagem com esta história? Quem teria se

beneficiado dela?"

Apesar de seu conteúdo estritamente cristão, a "Visão" revela que

no período bem mais tardio das Cruzadas, época em que o Egito se viu sob o

jugo muçulmano durante várias centenas de anos, havia os que pretendiam

vincular Jesus ao Egito. Terá a história sido criada para encorajar os

cruzados a invadir o Egito e libertar do islamismo a Igreja Copta cristã? É

possível, mas tal argumento parece menos sustentável à medida que o

analisamos melhor: a Igreja Copta vinha em conflito com Roma há mais de

seiscentos anos e sua fé ao menos era tolerada pelos governantes

muçulmanos. O beneficiário mais óbvio que surge, então, é o Evangelho de

Mateus: seus relatos sobre a fuga da Sagrada Família são fortemente

amparados pela história. Mas a Igreja Copta também teria sido um

beneficiário menos óbvio. Se o Evangelho de Mateus se torna mais crível,

salta aos olhos que vários locais sagrados egípcios constantes da história

seriam assim legitimados, abrindo uma rota totalmente nova de

peregrinação que incluiria o Egito. Com os peregrinos, é claro, viriam o

comércio e o ouro.

A despeito de suas inconsistências, a história passa a sensação de

basear-se na tradição oral ou nas lendas locais. E as lendas locais são

ignoradas por conta e risco de quem o faz, pois a memória local é duradoura.

Sem dúvida a presença judaica no Egito era muito antiga e disseminada...

constante o bastante para justificar a sobrevivência da história até a época

islâmica.

A comunidade judaica no Egito não era grande, mas exercia

extrema influência. Como aliada dos conquistadores gregos, os ptolomeus,

desfrutava de um status superior ao dos egípcios nativos, que, após a

conquista, passaram a ser considerados "súditos", cidadãos de segunda

classe em seu próprio país, uma incapacidade social de que poucos, se é que

os havia, escapavam. Os ptolomeus, com efeito, jamais tentaram aprender a

língua egípcia. Cleópatra, a última governante, foi a única a falar o idioma

nativo da terra que governava. Inevitavelmente, o ressentimento causado

pela invasão deu origem à insurreição. Revoltas significativas tiveram lugar

em Tebas (hoje, Luxor) a partir do final do século III, quando dois faraós

nativos foram proclamados, um após o outro. Essa revolta nacionalista logo

foi esmagada, mas ao longo de todo o século II a.C. houve várias tentativas

sérias de golpe.

Apesar de tudo, um pequeno número de conquistadores é capaz de

governar uma grande população nativa por meio de inúmeras normas e

restrições associadas a um desprezo social convincente e psicologicamente

degradante, que destrói a autoconfiança e a auto-estima da população

nacional. Essa técnica foi empregada muito mais tarde com sofisticação e

sucesso pelos ingleses na índia.

A emigração judaica para o Egito foi grande, estimulada em

especial pela remoção de todas as fronteiras entre o Egito e Israel de 302 a

198 a.C, período em que Israel fez parte do império ptolomaico. Esses

imigrantes logo foram absorvidos pela predominante cultura grega;

aprenderam grego, adotaram nomes gregos, bem como inúmeros costumes

comerciais e sociais dos gregos, como criar associações cujas reuniões

tinham lugar nas sinagogas. Com efeito, o hebraico ficou praticamente

esquecido quando o grego se tornou o idioma de eleição dos judeus egípcios.

Em muitas sinagogas, as cerimônias eram conduzidas em grego.

Isso pode ser atribuído à influência de Alexandre, o Grande. Após

conquistar o Egito em 332 a.C. e em seguida a uma visita mantida em

segredo ao Templo de Amun em Siwa, Alexandre foi declarado "Filho de

Deus" e feito faraó. Fundou Alexandria em 331 a.C. como uma cidade

helenista no Egito, mas não realmente do Egito. Nunca chegaria a ver seu

sucesso como maior cidade grega do mundo helenista: ela viria, na verdade,

a se tornar maior e mais importante até mesmo que Atenas.8 Alexandre

morreu misteriosamente em campanha na Babilônia em 323 a.C, e o império

foi dividido entre seus generais gregos: Ptolomeu recebeu o Egito e deu início

à ilustre dinastia ptolomaica de reis e rainhas que se encerrou apenas com a

morte da famosa Cleópatra em 60 a.C. Na ocasião oportuna, Seleuco recebeu

a Síria e se estabeleceu em Antioquia.

Na mão dos governantes ptolomaicos gregos, o Egito gozou de

enorme sucesso comercial. Para começar, era a fonte de suprimentos de

grãos para Roma e não seria exagero dizer que o destino dos imperadores se

confundia com o contínuo sucesso de seu comércio. Esse sucesso permitiu

aos ptolomeus manter um exército e uma marinha de peso. A região

prosperou imensamente — a renda anual eqüivalia aproximadamente a 228

toneladas de ouro. Um banco real baseado em Alexandria angariava

depósitos e providenciava hipotecas e empréstimos. A vida cultural também

prosperou, em grande parte estimulada pela extraordinária biblioteca da

região, a maior do mundo. Revistavam-se os passageiros dos navios em

visita a Alexandria em busca de livros, e dos encontrados faziam-se cópias:

os originais, então, eram confiscados e levados para a biblioteca, enquanto

seus donos ficavam com as cópias. Além disso, os ptolomeus foram

adquirindo bibliotecas em todo o mundo até que o patrimônio literário de

Alexandria passou a abrigar cerca de setecentos mil pergaminhos, a maioria

dos quais habitava as prateleiras dos sete grandes salões da biblioteca

principal, o Mouseion, e pouco mais de quarenta mil ficavam em uma

biblioteca menor no Templo de Serápis.

O resultado desse dinamismo foi o crescimento acelerado de novas

cidades no Egito, e as existentes ganharam acréscimos. De todas as cidades

do império romano fora dos limites de Israel, Alexandria provavelmente era a

que abrigava a maior comunidade judaica. Por volta de trezentos mil judeus

moravam no Egito, metade deles nas cidades provincianas ou no campo,

onde possuíam terras, e a outra metade em Alexandria.

A comunidade judaica tinha seu próprio reduto no lado oriental de

Alexandria; não se tratava, porém, de um gueto, pois havia judeus também

em outras partes da cidade. Essa comunidade, que desfrutava de grande

prestígio, funcionava de forma semi-independente do restante de Alexandria.

Administrava seus próprios tribunais presididos por um etnarca, e seus

sofisticados membros alcançaram postos importantes no país. Com efeito,

durante o reinado de Ptolomeu VI e Cleópatra II, no século II a.C, a

administração de todo o Egito e o controle absoluto do exército e da marinha

estava entregue a dois judeus, Onias e Dositeu. Mais tarde, houve também

dois generais judeus no exército de Cleópatra III, que reinou de 115 a 101

a.C.9

Claro que uma longa história de contatos judeus com o Egito

antecedera essa época — mesmo desconsiderando qualquer veracidade por

trás das histórias de José e Moisés. Mas pisamos em terreno mais sólido

quando observamos que soldados judeus serviram a faraós posteriores,

talvez em período tão remoto quanto o século VII a.C, principalmente nas

expedições sulistas na Núbia. Jeremias, vociferando amargamente no século

VII a.C. contra as colônias judaicas no Egito, frisou especificamente que

Mênfis, então a capital do Egito, abrigou uma dessas expedições, bem como

fez menção também a outros locais no Alto e no Baixo Egito.10

No século V a.C, segundo documentos em papiro que foram

descobertos, uma colônia militar judia foi criada na ilha Elefantina, no Nilo

— nos arredores da moderna cidade de Assuã —, ilha essa que guarnecia a

fronteira sul do Egito.11 A colônia incluía uma fortaleza, um posto aduaneiro

e um latifúndio para os soldados e suas famílias, que recebiam lotes para

morar quando se aposentassem do serviço ativo.

Os egípcios tinham na ilha um templo do deus Khnum; para a

comunidade judaica havia um templo de Yahweh. Os dois ficavam próximos

um do outro. Na verdade, durante a maior parte do século VI a.C, após o

Templo em Jerusalém ter sido destruído e a população levada para o exílio

na Babilônia, o da ilha Elefantina foi o único templo judeu em atividade,

mantendo viva a religião com a realização dos sacrifícios exigidos.

Infelizmente, a tensão se instalou entre os judeus e os egípcios e,

no período de Dário (522-486), quando os persas controlaram o Egito, os

egípcios elefantinos destruíram o templo de Yahweh. A autorização imperial

para a sua reconstrução só foi liberada em 406 a.C, e em 401 a.C ele foi

reconstruído. Logo, porém, voltou a ser destruído e nada mais se sabe dele

ou da colônia militar judaica após essa data.12 Por volta de 400 a.C, o Egito

expulsou os conquistadores persas e um novo faraó subiu ao trono. O

ressurgimento do nacionalismo provavelmente foi um fator preponderante

para o fim da colônia judaica.

O que restou da grande comunidade judaica ali ainda continua a

ser escavado pela escola alemã de arqueologia no Cairo. Suas descobertas

são oficialmente minimizadas — o pequeno museu na ilha Elefantina ignora

a natureza judaica do assentamento —, mas os arqueólogos que

efetivamente participam das escavações são mais receptivos.

Numa visita ao local, vi como são extensas e impressionantes as

ruínas dessa cidade judaica: casas de vários andares em tijolos enegrecidos,

separadas por ruas estreitas e encarapitadas em terrenos elevados na ponta

sul da ilha, têm vista para o Nilo e para as falucas que passam, suas velas

brancas como asas de gaivotas sobre o mar azul, por entre as ilhas rochosas

e as enormes dunas douradas da árida margem ocidental.

Os arqueólogos que trabalham no local me explicaram que têm

encontrado ostracas — vasos quebrados reciclados para servir de material

para escrever — contendo textos em aramaico e o registro de nomes judeus

de indivíduos e ruas. As ruínas atestam que quando a comunidade judaica

encontrou o fim, este foi total: o fogo destruiu todas as casas. Presume-se

que o Templo de Yahweh tenha tido o mesmo destino. As atuais ruínas do

templo de Khnum datam da época ptolomaica e supõe-se que ele foi erigido

sobre a estrutura judaica anterior. Situa-se bem ao lado das ruínas da

cidade judia, o que parece um lugar estranho para a construção de um

templo não-judeu. No entanto, o templo de Yahweh na ilha Elefantina não

seria o último santuário judeu no Egito.

É quase um segredo. Por certo mantido em discrição. Na época em

que Jesus viveu, havia um templo judeu em atividade no Egito, templo no

qual os sacerdotes judeus realizavam os sacrifícios diários de praxe

exatamente da forma como se fazia em Jerusalém. Esse templo, ademais,

reivindicava ser o único no mundo judaico a ser servido por sacerdotes

legítimos, tendo sobrevivido, ao menos por alguns anos, à destruição do

Templo em Jerusalém.

A alegação de legitimidade como único templo servido pelo

verdadeiro sacerdócio da fé judaica encontra amparo em boa parte dos

indícios remanescentes. Quase todas as fontes concordam que seus

sacerdotes, ao contrário daqueles em Jerusalém, pertenciam à genuína

família sacerdotal dos "zadoquitas" — ou seja, eram descendentes ou

herdeiros legítimos daqueles sacerdotes levíticos, "os filhos de Zadoque",

descritos em Ezequiel como detentores da permissão concedida por Deus

para estar na presença divina a fim de servir e de conduzir a liturgia

sagrada.13 Achamos que esse legado é de vital importância para os membros

do grupo que produziu os manuscritos do mar Morto: um dos termos com os

quais se autodesignavam era benei Zadok, os "Filhos de Zadoque";

encaravam com grande seriedade essa responsabilidade. Com efeito, um dos

manuscritos, o Damascus Document [Documento de Damasco],

anteriormente chamado de "Uma obra zadoquita", proclama: "Os filhos de

Zadoque são os eleitos de Israel."14

A professora Joan Taylor, da Universidade Waikato, da Nova

Zelândia, um dos poucos acadêmicos modernos que estudou esse templo,

explicou que ele pode, sem dúvida, ser considerado uma instituição

zadoquita.15 Isso vincula o templo ao mesmo cenário dos manuscritos do

mar Morto e o aproxima mais da nossa história.

Um dos muitos enigmas que envolvem os manuscritos do mar

Morto diz respeito à Caverna 7 em Qumran: todos os textos descobertos ali

— trechos do Êxodo, parte da Carta de Jeremias e 17 pequenos fragmentos

não identificados — estavam escritos em grego e em papiro. Todos os

manuscritos descobertos nas outras cavernas estavam escritos em hebraico

ou aramaico e em pergaminho. Tendo em vista que a seita Qumran se

opunha com veemência aos estrangeiros, é impossível que o grupo abrigasse

membros gregos. A única explicação é que havia zelotes cuja língua nativa

era o grego e que não sabiam falar hebraico ou aramaico. Onde esses judeus

que também eram zelotes podem ter vivido? Como sabemos agora, no Egito.

É incrível imaginar que ainda hoje a existência de vestígios desse

templo continue a ser um assunto delicado. Há muito tempo, o historiador

Josefo, por motivos pessoais, conspirou para relegá-lo ao ostracismo como

uma instituição cismática, cuja atividade contrariava a lei judaica. Essa

avaliação, dizem, tornou ilegítimo qualquer outro templo que não o de

Jerusalém. Mesmo a moderna Encyclopaedia Judaica contribuiu para essa

postura exonerativa, afirmando: "O templo não cumpria qualquer função

religiosa na comunidade judaica do Egito, que devia lealdade exclusivamente

ao Templo em Jerusalém."16 O consenso acadêmico avaliza tal visão: o

historiador de Oxford, professor Geza Vermes, se compraz em descrever o

templo como uma estrutura ilegítima, erigida "em flagrante violação à lei

bíblica"17. E declara — sem prova alguma — que essa fundação "deve ter

escandalizado todo e qualquer palestino conservador, mesmo aqueles

sacerdotes que pertenciam à dinastia zadoquita ou a ela eram ligados"18.

Justificadamente nos perguntamos do que ele estará falando.

A história por trás da fundação desse templo judeu no Egito é

muito simples: a princípio, a dinastia ptolomaica governou tanto o Egito

quanto Israel. Desde que os impostos fossem pagos, os governantes egípcios

de bom grado deixavam Israel entregue à jurisdição do sumo sacerdote e seu

conselho. O sumo sacerdote funcionava como uma espécie de vice-rei. Nessa

qualidade, comandava o exército judeu, que por ele era posto à disposição

dos ptolomeus.

Por volta de 200 a.C, o governante selêucida da Síria conquistou

Israel. Em 175 a.C, Antíoco Epifanes sucedeu-o e decidiu aumentar sua

influência na Judéia e no Egito, atacando Jerusalém e o Egito em 170 a.C. O

sumo sacerdote zadoquita Onias III, grande amigo de Ptolomeu VI, liderou

seus soldados judeus em apoio ao exército egípcio contra os selêucidas. As

tropas sírias, contudo, venceram, e Onias foi obrigado a fugir para o Egito

por volta dessa mesma época com muitos de seus sacerdotes.

Enquanto isso, o Templo em Jerusalém foi tomado por sacerdotes

não-zadoquitas aliados do governante sírio.

Em 169 a.C, Antíoco promoveu uma nova invasão, e dessa vez se

apoderou dos tesouros do templo. Mais uma vez, investiu contra o Egito no

ano seguinte, mas os romanos, cada vez mais poderosos, expulsaram-no,

com intuito de proteger os vitais suprimentos de grãos enviados para Roma.

Antíoco, então, proibiu o culto judeu no templo e dedicou o santuário a

Zeus. Foi esse ato que finalmente levou os judeus remanescentes em Israel a

se insurgirem, liderados pelos macabeus.

Depois de exilado, Onias buscou manter o culto legítimo.

Descobriu no delta egípcio um templo de Bubastis, há muito em ruínas, e

pediu a Ptolomeu para tomar posse dele e reconstruí-lo como templo judaico;

Ptolomeu atendeu seu pedido. Sugestivamente, após o início dos cultos,

apenas esse templo era servido por sacerdotes da legítima linhagem

zadoquita. Nesse sentido, é válido dizer que foi esse o único templo judeu

legítimo. Como, porém, situava-se fora de Judéia, seu status era ambíguo.

Com efeito, aparentemente a intenção era que esse serviço fosse mantido no

Egito apenas até que o Templo em Jerusalém fosse restituído aos sacerdotes

legítimos; quando isso acontecesse, os sacerdotes estariam disponíveis e

prontos para voltar. Infelizmente, isso nunca ocorreu, razão pela qual esse

templo e seus sacerdotes zadoquitas continuaram em atividade pelos

duzentos anos seguintes.

Assim, não é nada óbvio que a fundação egípcia fosse ilegítima e

contrária à lei judaica. A tradição rabínica registra debates no templo, em

especial quanto à legitimidade da oferta de votos no templo egípcio em lugar

do de Jerusalém e ao direito de um sacerdote do templo egípcio servir no de

Jerusalém.19 Esses debates revelam que especialistas em religião, mais

familiarizados com a época do que os estudiosos de hoje, encontraram

fundamento para ambos os pontos de vista. Em outras palavras,

independentemente do que a Tora pudesse determinar sobre o assunto,

nada constitui uma clara denúncia do templo de Onias.

É correto, então, examinar a história desse templo e tentar

entender por que sua existência é considerada tão delicada a ponto de ser

marginalizada, fazendo com que hoje poucos tenham ouvido falar dele, e por

que, desde 1929, nenhum arqueólogo demonstrou qualquer interesse pelo

local. Cumpre também indagar por que ele jamais foi sistematicamente

escavado, a despeito do fato de um trecho de uma inscrição em hebraico

antigo ter sido ali encontrado.20 O arqueólogo Flinders Petrie também

confirma ter descoberto no local túmulos judaicos e um fragmento de texto

contendo o nome Abraão.21

Uma primeira possibilidade é que as preocupações políticas

fizeram do local um adendo incômodo para a egiptologia. É uma pena que

essa ameaça talvez facilite a tarefa daqueles que desejam enterrar o local

para sempre. O sítio, Tell el-Yehoudieh (o "Outeiro da Judéia"), a cerca de

quarenta quilômetros do Cairo, tem sido ferozmente destruído e logo será

coberto pelos subúrbios da moderna cidade de Shibin ai Qanatir, em

evidente expansão. É preciso agir rápido.

A história desse templo é contada por Josefo. Em sua primeira

obra, The Jewish War [A guerra judia], ele descreve a construção do templo

no Egito pelo sumo sacerdote Onias, filho de um ex-sacerdote, Simão, e

amigo de Ptolomeu VI. Este é o sacerdote conhecido na história como Onias

III, que descendia da legítima linhagem zadoquita.22

Aproximadamente 15 anos depois, Josefo escreveu Antigüidades

dos judeus, mas nele o autor alterou detalhes da história, atribuindo a

construção do templo no Egito a Onias IV — o filho de Onias III. Não apenas

isso desloca a construção do templo para uma data posterior, como também

— e mais importante para os propósitos de Josefo — faz de alguém que não

era um sumo sacerdote da linhagem zadoquita o seu fundador. Onias IV foi

um comandante militar no exército egípcio, assim como seus dois filhos

depois dele. Ao proceder a essa alteração, Josefo cassou a legitimidade do

templo judeu no Egito. Por que faria isso?

Esse erro permanece até hoje. Geza Vermes, de Oxford, afirma

explicitamente que foi Onias IV que fundou o templo egípcio, excluin-do-o

assim das discussões acadêmicas sérias.23 Neste exemplo, o processo fica

claro: se a história resolver aceitar Onias III como seu fundador, o templo é

legítimo e o de Jerusalém, não. Se a história resolver aceitar Onias IV como

fundador, o templo egípcio será o ilegítimo. No entanto, com base na obra

Jewish War [A guerra judia] de Josefo e, curiosamente, na tradição rabínica

antiga, Onias III foi o construtor, só nos restando concluir que o templo

egípcio era realmente o legítimo.24

Os manuscritos gregos em papiro descobertos na Caverna 7, em

Qumran, comprovam uma estreita ligação entre os zelotes judeus

ultramarinos, cuja origem mais provável é o Egito, com os zelotes ativos na

Judéia e na Galiléia. No entanto, existem vínculos mais fortes que,

necessariamente, situam o templo de Onias no cenário zelote. Isso pode ser

demonstrado por meio do calendário utilizado.

A maior parte do judaísmo se guiava por um calendário lunar no

qual determinava-se o mês seguinte pelo primeiro dia em que a lua nova

ficava visível — e o dia era medido a partir do pôr-do-sol. Tal calendário era

muito pouco confiável, porém, e só podia ser utilizado acrescentando-se dias

extras quando necessário. Os autores zelotes dos manuscritos do mar Morto,

aparentemente estabelecidos em Qumran, utilizavam um calendário

totalmente diverso: um calendário solar. Assim, para eles o dia começava

com o nascer do sol.25 Dois dos primeiros textos judaicos encontrados em

meio a vários outros em Qumran, o "Livro dos Jubileus" e o "Livro de

Enoque", utilizam um calendário solar, à semelhança do sectário Temple

Scroll [Manuscrito do Templo].

O templo de Onias talvez tenha pautado seu ano religioso pelo

calendário solar: segundo o filósofo judeu e líder cultural patrício Filo de

Alexandria, que escreveu por volta da época de Jesus, a vela central do

menorá de sete braços no Templo em Jerusalém representava o sol.

Entretanto, de acordo com Josefo, o templo de Onias não continha um

castiçal de sete braços, mas "uma lamparina com uma única chama que

emitia uma 'luz brilhante'". Com toda a probabilidade, tratava-se de uma

representação do sol,26 sugerindo que o templo de Onias, com efeito,

utilizava um calendário solar.27 Nesse caso, aí estaria uma prova suficiente

para inseri-lo no mundo mais abrangente dos zelotes.

É chegada a hora de juntar essas complexas tramas e ver por que

esse templo despertou tamanha hostilidade — e por que ainda hoje constitui

tema tão delicado. Embora a princípio esse possa parecer um ponto

irrelevante, ele provará ser importante, juntamente com vários outros fatos

aparentemente insignificantes que já abordamos, como a unção de Jesus

com perfume de nardo ou a misteriosa visita noturna de José de Arimatéia e

Nicodemos ao seu túmulo levando bálsamos e especiarias medicinais. A

medida que nos familiarizamos mais com o território e guardamos esses

detalhes, conseguimos ver de uma perspectiva totalmente diversa esses

acontecimentos.

Enquanto escrevia suas histórias, em meio ao que sem dúvida era

um luxo considerável, no palácio imperial em Roma, refletindo sobre a vida

após a destruição do Templo em Jerusalém e o massacre de muitos milhares

de seus compatriotas, Josefo tinha todos os motivos para difamar os zelotes

e tudo o que eles defendiam. Afinal, era o mínimo que lhe cabia fazer por

seus novos patronos, a família imperial romana.

Não devemos esquecer que ele culpava os zelotes pela eclosão da

guerra destrutiva que causara tamanho prejuízo. Espertamente, Josefo

lidava com o próprio passado de comandante zelote de modo a se auto-

absolver de qualquer culpa. Da mesma forma, esforçava-se ao máximo para

retratar a nação judaica como inocente: súditos leais a seus senhores, os

ptolomeus no Egito e os romanos na Judéia, haviam sido desencaminhados

por agitadores e assassinos zelotes de cabeça quente. E aqui está o xis da

questão: como já vimos, a família sacerdotal do templo judeu egípcio era

zadoquita; os zelotes na Judéia e na Galiléia também eram zadoquitas; os

que redigiram os manuscritos do mar Morto eram zadoquitas e zelotes. A

desastrosa guerra fora causada e combatida por zadoquitas que eram

"zeladores da Lei". Claro que Josefo precisava reduzir o status do templo

judeu no delta do Egito operado por sacerdotes da legítima linhagem

zadoquita. Não lhe restavam outras alternativas, se quisesse manter sua

privilegiada posição no coração da aristocracia de Roma.

Ademais, não esqueçamos que a comunidade judaica egípcia,

principalmente a enorme população urbana alexandrina, também desejava

evitar os problemas tão recentemente enfrentados por seus confrades em

Israel. Quando zelotes fugitivos chegaram a Alexandria e deram início a

agitações, assassinando inclusive alguns judeus importantes que a eles se

opunham, a população judaica logo os entregou aos romanos, que, com

igual rapidez, torturaram-nos até a morte.28 Sem dúvida, os judeus

alexandrinos haveriam de querer manter o máximo de distância possível

entre a sua comunidade e o movimento zelote; Josefo, por sua vez, estava

pronto a cooperar.

Notemos ainda que, a despeito da existência do templo no delta, os

judeus alexandrinos importantes eram os grandes patrocinadores do Templo

em Jerusalém; a ausência de legítimos sacerdotes zadoquitas aparentemente

não os preocupava — ou, ao menos, pouco preocupava os judeus patrícios,

que concentravam a riqueza e o poder. O controlador financeiro do Egito, o

judeu patrício Alexandre Lisímaco, era um grande benemérito do Templo em

Jerusalém. Custeara pessoalmente o espesso revestimento em ouro e prata

das portas duplas de 15m de altura na entrada do Átrio das Mulheres.29 Seu

filho, o general Tibério Alexandre, prefeito da Judéia de 46 a 48 d.C. e do

Egito em 66 d.C, era, como já mencionamos, amigo íntimo de Tito e chefe do

estado-maior do exército romano que destruiu o Templo em 70 d.C. Nem pai

nem filho teriam especial estima pelos zelotes — ou, por extensão, pelos

zadoquitas. E, como também já observamos, o general Tibério Alexandre era

amigo íntimo de Josefo.

Alexandre Lisímaco tinha um irmão famoso: o filósofo Filo de

Alexandria. Filo tentou juntar a filosofia platônica e judaica adotando uma

abordagem mística com relação ao pensamento judaico. Nas obras de sua

autoria que sobreviveram, ele escreveu sobre muitos grupos religiosos

judaicos que considerava importantes. Tendia a tomar o partido dos que

possuíam uma natureza mística, até mesmo esotérica — grupos no judaísmo

que, para ele, soavam como o equivalente judaico das tradições filosóficas

gregas que mais admirava, como os platonistas e os pitagóricos. No entanto,

em todas as suas análises das variantes do judaísmo, Filo nem uma vez

mencionou o templo construído por Onias no delta.

Tal silêncio é curioso, mas não podemos deduzir muito daí, salvo

concluir que, por algum motivo, Filo optou por ignorar sua existência. Só

isso, contudo, já é revelador, pois seria de esperar que os judeus mais

notáveis de Alexandria se orgulhassem da existência de um templo judaico

de ascendência tão augusta e que permanecera ativo no Egito. O fato de não

se sentirem assim e de continuarem, tal como o irmão de Filo, a financiar o

Templo em Jerusalém — templo administrado por uma família sacerdotal

veementemente contrária aos zelotes — talvez tenha seu significado. Dever-

se-ia esse silêncio de Filo a algum conhecimento seu da presença de

simpatizantes zelotes entre os sacerdotes do templo do delta? Teria ciência

das ambições políticas dos zelotes, às quais se opunha? Trata-se de uma

hipótese razoável, que tem a vantagem de prover sentido à curiosa omissão

de Filo.

Esse templo ficava na estrada que ligava a Judéia a Heliópolis,

uma importante cidade do Egito, local onde hoje se situa o aeroporto do

Cairo. Qualquer um que viajasse por terra da Judéia para o Egito iniciava o

percurso na estrada para Heliópolis. Embora quem se dirigisse às cidades

gregas de Naucratis e Alexandria saísse dessa via numa bifurcação para

oeste, uma jornada sem desvios conduzia ao templo — e a Heliópolis, Mênfis

e ao Alto Egito. Se Jesus e seus pais rumaram para o Egito e, como bons

zelotes, cuidaram para evitar as comunidades judaicas da forte influência

grega, devem ter se deslocado por essa estrada, que passava pelo templo de

Onias. Teria sido simplesmente impossível evitá-lo.

E é bastante improvável que Jesus e sua família, frutos de um

ambiente zelote, que esperava e rezava pelo restabelecimento de um

sacerdócio zadoquita no Templo em Jerusalém, tenham simplesmente

passado sem parar por esse templo judeu egípcio. Todas essas observações

levam naturalmente à idéia de que o templo de Onias foi o local do

aprendizado inicial de Jesus. Talvez ali ele tenha sido apresentado ao mundo

politicamente ativo dos zelotes.

Em certo sentido, podemos considerar o templo como um ramo

ultramarino da Galiléia onde os zelotes de língua grega podiam aprender seu

ofício. Também seria um bom lugar para Jesus ser levado pela família para

que lhe ensinassem o significado de ser o messias de Israel, pois todos os

textos e comentários sobre o papel de um messias estariam disponíveis ali.

Assim é que temos agora bons motivos para a viagem da Sagrada Família ao

Egito e uma razão para o breve comentário de Mateus, que a transformou

numa fuga da ameaça gerada pelo infanticídio de Herodes. Com efeito, ao

que tudo indica não houve uma fuga, mas uma ação positiva cujo intuito foi

permitir que Jesus crescesse, estudasse e pregasse longe dos problemas da

Judéia e da Galiléia.

Apesar da sua formação na causa zelote, Jesus, como vimos, a

certa altura secretamente escolheu outro caminho — caminho esse revelado

apenas depois de ser ungido messias, quando já era tarde demais para

alguém enfrentá-lo. Tal caminho tinha uma natureza mais mística. No

entanto, onde no mundo judaico do Egito poderia ter sido adquirido? Para

responder a essa pergunta, precisamos examinar um dos grupos místicos da

época, que foi descrito por Filo de Alexandria.

O lago Mariotis se derrama para o sudoeste de Alexandria. Entre

ele e o mar existe um pequeno morro de calcário, distante,

aproximadamente, 18 quilômetros dos limites da cidade. Na época de Filo de

Alexandria, de cada lado do morro, terras mais baixas abrigavam moradias,

possivelmente propriedades de verão dos ricos de Alexandria, além de uma

série de povoados e vilarejos. Devido à proximidade tanto do rio quanto do

mar, o local era varrido pela brisa, que mantinha o ar fresco, tornando o

local mais ameno que a cidade. Nesse morro vivia uma pequena comunidade

de filósofos judeus que aproveitava a tranqüilidade rural, a relativa

segurança provida pelas mansões e cidades vizinhas e o ar fresco e saudável

para se dedicar a vidas contemplativas.30

A comunidade recebera o nome de Terapeutae, que, como explica

Filo, carrega em si tanto uma noção de cura — não só do corpo, mas

também da alma — como uma idéia de culto. O culto dos terapeutae se

centrava no "Auto-Existente", na crença da Realidade Divina Única, jamais

criada, porém eterna.31 Trata-se de um conceito de divindade muito além do

que a linguagem é capaz de descrever.

Em um aspecto importante, os terapeutae se distinguiam de outros

grupos devotos descritos por Filo, como os essênios. Entre eles, as mulheres

eram aceitas como membros iguais aos homens e participavam plenamente

da vida espiritual da comunidade. Os essênios, ao contrário — segundo Filo,

Josefo e Plínio —, se orgulhavam de excluir as mulheres; para eles, as

mulheres constituíam uma distração.32 Aqui é importante lembrar da atitude

inclusiva de Jesus com relação às mulheres do seu grupo e a crítica que isso

despertava em alguns de seus discípulos nos Evangelhos, pois já houve

várias tentativas duvidosas de associar Jesus aos essênios.

Os terapeutae formavam uma comunidade elitista que

aparentemente congregava alexandrinos instruídos e abastados da classe

patrícia de Filo, os quais por opção tinham aberto mão de todos os seus bens

e levavam uma vida de simplicidade coletiva, devotados ao culto. Seus

comentários, que soam como uma experiência pessoal, sugerem que Filo

visitou essa comunidade e participou de algumas de suas cerimônias.33

No entanto, este grupo não era único: Filo descreve outros

semelhantes, dedicados à contemplação meditativa, em todas as regiões do

Egito.34 Como ele explica, mencionando a existência de grupos similares em

outras partes do planeta, inseridos em tradições religiosas diversas, os

terapeutae representavam uma versão judaica de uma tradição mística

amplamente difundida, que encontrava expressão em todo o mundo.

O que se deduz da inclusão das mulheres entre os terapeutae,

porém, é que quando um grupo se dedica à contemplação da suprema

experiência da alma — àquela visão de que a alma é a "única capaz de prover

o conhecimento da verdade e da falsidade" —, o sexo do crente é irrelevante.

Isso hoje talvez soe óbvio, mas no mundo de Filo e Jesus tal conceito era

realmente revolucionário.

Os terapeutae eram místicos e visionários: "Faz sentido", escreve

Filo, "que os terapeutae, um povo ensinado desde o início a usar sua visão,

desejasse ver o Existente e pairar acima do sol dos nossos sentidos"35.

Os membros do grupo almejavam uma visão direta da realidade —

ou do "Auto-Existente", para usar o termo empregado por Filo —, a fim de

vivenciar o que efetivamente existe por trás do mundo violento desta vida

transitória. Esse era também o objetivo de muitos grupos em atividade no

mundo clássico, principalmente nos cultos grandiosos e secretos chamados

"os Mistérios". Temos aqui, aparentemente, uma versão judaica, buscando o

mesmo fim, mas funcionando de forma muito mais simples dentro da

tradição judaica.

Os terapeutae rezavam ao nascer e ao pôr-do-sol. Durante o dia,

liam textos sagrados, mas em lugar de vê-los como a história da nação

judaica, os encaravam como alegorias. Segundo Filo, para eles o texto literal

era um símbolo de algo oculto que somente encontrariam caso o

procurassem.36

Reuniam-se a cada sete dias e ouviam uma palestra proferida por

um dos membros veteranos; a cada cinqüenta dias, faziam uma grande

assembléia, para a qual todos se vestiam de branco, comiam uma frugal

refeição sagrada e formavam um coro, homens e mulheres, para cantar

hinos com ritmos complexos e partes vocais. Esse festival prosseguia noite

adentro, até a madrugada, revelando a natureza solar de seu culto:

Ficavam de pé com os rostos e todo o corpo voltados para o nascente

e, ao ver o sol, levantavam as mãos para o céu e rezavam, pedindo

dias ensolarados e o conhecimento da verdade.37

É claro que se trata de um tipo bem diverso de judaísmo, que em

nada depende do culto no templo. No culto terapeutae, com um viés

nitidamente pitagórico, não existia preocupação com o culto do judaísmo —

extremamente importante para os sacerdotes nos templos em Jerusalém e

no do delta egípcio — nem com a pureza dos sumos sacerdotes que

presidiam o culto, o que para os zelotes era fundamental, ou com o messias

da Casa de Davi. Para esses homens e para essas mulheres, o que existia era

simplesmente a possibilidade de uma experiência visionária do Divino.

O reino do grupo realmente não era deste mundo: Jesus o teria

aprovado.

Uma outra implicação das crenças dos terapeutae suscita mais

discussões: a prática de encarar a integralidade do Antigo Testamento como

algo simbólico, de interpretar simbolicamente todas as profecias

messiânicas. Para eles não havia motivo para que um messias real viesse

libertar Israel; não havia motivo para Jesus ser o verdadeiro rei e sumo

sacerdote; os oráculos sobre o messias não passavam de meras

representações simbólicas de algo mais profundo e mais misterioso. Já

vimos antes que a "Estrela" é um símbolo do messias, mas teremos

condições, agora, de estender um pouco mais esse conceito? Seremos

capazes de ver a afirmação de Pedro no Novo Testamento como reflexo desse

tipo de especulação, embora em um contexto cristão? A frase "...que surja a

estrela d'alva em nossos corações" poderia ser interpretada como estímulo

para deixar a luz mística brotar de dentro de nós mesmos?38

Com essas posturas aparentemente bastante difundidas, talvez até

coletivas, não espanta que o judaísmo no Egito e, posteriormente, o

cristianismo tivessem uma nítida natureza mística; foi no Egito que surgiu o

monasticismo cristão; foi no Egito, em Nag Hammadi, que alguém escondeu

os textos gnósticos, a coleção de textos místicos clássicos e cristãos —

inclusive um de Platão e um do conjunto de textos, o Asclepius, de Hermes

Trismegisto — compilados e utilizados por um monastério do deserto.

A Igreja Cristã no Egito abrigou adeptos do pensamento místico até

o século III — os teólogos Clemente de Alexandria e Orígenes, por exemplo.

Tradições egípcias vazaram para o judaísmo desde os primórdios — a época

de José e de Moisés — e em eras menos remotas, como vimos nos escritos de

Filo. Em meio a tudo isso, existem grupos, como o dos terapeutae, operando

um tipo místico de judaísmo e o templo de Onias conservando o legítimo

sacerdócio zadoquita judaico.

A essa altura somos tentados a perguntar: "O que havia no Egito

para prover esse foco místico ao judaísmo e ao cristianismo dele nascido?

Em que tipo de solo cresciam essas crenças estrangeiras?"

A ironia de tais perguntas é que não era propriamente a terra que

constituía o alimento dessas crenças, mas o Sol, que derramava sobre elas

sua energia vital. Uma pista reside no fato de que tanto os terapeutae quanto

os judeus zadoquitas utilizavam o calendário solar dos egípcios, cuja maior

deidade, Rá, na verdade era uma expressão do Sol como fonte de vida, a

fonte de toda a criação. Os textos revelam que ao menos o faraó buscava a

união mística com Rá como "a realização mais profunda da nossa divina

natureza humana"39.

O profundo misticismo presente no próprio núcleo da experiência

egípcia de realidade sem dúvida influenciou muitas outras crenças que se

estabeleceram ali. Esse misticismo egípcio, que abrigava leituras secretas de

mitos, bem como rituais privados, muitas vezes realizados em câmaras e

templos subterrâneos isolados, professava ser a ligação deste mundo com o

próximo, a ligação do céu com a terra.

A abordagem dos egípcios não era uma espécie de filosofia, uma

especulação sobre as possibilidades divinas ou uma fé construída

unicamente sobre a esperança de uma vida melhor após a morte. Os egípcios

não eram apenas místicos, mas extremamente práticos. Não desejavam falar

sobre o céu, mas ir para o céu. E de lá voltar. A bem da verdade, como fez

Lázaro.

Está na hora de investigar os mistérios ocultos do Egito.

NOTAS

1 Evangelho de Lucas 3,1-23. 2 Evangelho de Lucas 2,41-47. 3 Ver Encyclopaedia Judaica, 12, col. 900, e a discussão em O Santo Graal e a linhagem sagrada, de

Baigent, Leigh e Lincoln. 4 Na verdade, esses "Cristãos de São Tome" foram fundados por missionários nestorianos que

chegaram aos extremos do Oriente vindos da Palestina. Ver Schonfield, The Essene Odyssey, p. 126. 5 Schonfield, The Essene Odyssey, p. 88. 6 Oséiasll,l. 7 Evangelho de Mateus 2,15. 8 Modrzejewski, The Jews of Egypt, p. 73-74. 9 Fraser, Ptolemaic Alexandria, 1, p. 83. 10 Jeremias 44,1. 11 Modrzejewski, The Jews of Egypt, p. 26 e ss. 12 Id., ibid., p. 41-43. 13 Ezequiel 44,15-16. 14 The Damascus Document [Documento de Damasco], col. IV, 3-4. Ver Garcia Martínez, The Dead

Sea Scrolls Translated, p. 35. 15 Taylor, A Second Temple in Egypt: the evidence for the Zadokite Temple of Onias, Journal for the

Study ofjudaism, XXIX, 1998, p. 310. 16 Encyclopaedia Judaica, 12, p. 1403. 17 Vermes, The Dead Sea Scrolls, Qumran in Perspective, p. 140. 18 Id., ibid., p. 140.

19 Taylor, A Second Temple in Egypt: the evidence for the Zadokite Temple of Onias, Journal for the

Study of judaism, XXIX, 1998, p. 308-309. 20 Chester, A Journey to the Biblical Sites in Lower Egypt, Palestine Exploration Fund Quarterly

Statement, 1880, p. 137. 21 Petrie, Hyksos and Israelite Cities, p. 20 e quadro XXVII. 22 Josefo, Thejewish War, 1, 1 (p. 27) e VII, x (p. 393). 23 Vermes, The Dead Sea Scrolls, Qumran in Perspective, p. 140. 24 Taylor, A Second Temple in Egypt: the evidence for the Zadokite Temple of Onias, Journal for the

Study ofjudaism, XXIX, 1998, p. 309. Taylor cita a tradição rabínica: o Talmud Babilônico, Menahot

109b. 25 Driver, The Judean Scrolls, p. 326-327. 26 Hayward, "The Jewish Temple at Leontopolis: A Reconsideration, Journal of jewish Studies, 33,

1982, p. 434-436. 27 Taylor, A Second Temple in Egypt: the evidence for the Zadokite Temple of Onias, Journal for the

Study of judaism, XXIX, 1998, p. 312. 28 Josefo, The jewish War, VII, x (p. 392). 29 Josefo, The jewish War, V, v (p. 292). 30 Filo, On the Contemplative Life, p. 125-127. Ver ainda Taylor e Davies, The So-Called Therapeutae

of De Vita Contemplativa: Identity and Character, Harvard Theological Review, 91, 1998, p. 10-12. 31 Filo, On the Contemplative Life, p. 115. 32 Filo, Hipothetica, 11.14-18, citado em Taylor e Davies, The So-Called Therapeutae oi De Vita

Contemplativa: Identity and Character, p. 14; Josefo, Antiquities ofthejews, XVIII, i; Plínio, Natural

History, V, xv. 33 Taylor e Davies, The So-Called Therapeutae of De Vita Contemplativa: Identity and Character,

Harvard Theological Review, 91, 1998, p. 18-19. 34 Filo, On the Contemplative Life, p. 125. 35 Id., ibid., p. 119. 36 Id., ibid., p. 129. 37 Id., ibid., p. 167-169. 38 Pedro 1,19. 39 Naydler, Shamanic Wisdom in the Pyramid Texts, p. 319.

CCAAPPÍÍTTUULLOO IIXX

OOSS MMIISSTTÉÉRRIIOOSS DDOO EEGGIITTOO

No INÍCIO, SEGUNDO os ANTIGOS EGÍPCIOS, tudo era perfeito. Qualquer

deslize desse estado de eterna harmonia, chamado Ma'at, se devia às

imperfeições da humanidade, e a principal causa dessas imperfeições

humanas era a ganância.

A tarefa de todos — os influentes e os humildes — consistia em

lutar para manter essa perfeição e para reparar qualquer desequilíbrio

eventual. A responsabilidade primordial, porém, ficava a cargo do faraó,

auxiliado por uma rede de templos que cobria o Egito inteiro.

Toda manhã o mesmo ritual se repetia: despertar os deuses nos

templos ao nascer do sol, quando as portas do Santuário Interno eram

abertas. O diretor do Museu Petrie em Londres, dr. Stephen Quirke, meio

brincando, comparou o templo egípcio a "uma máquina de preservação do

universo, uma operação tecnológica que requer uma equipe especializada ou

conhecimento técnico... de modo a assegurar que a tarefa crucial da

sobrevivência jamais seja comprometida"1.

Simultaneamente, o templo era um portão para o Além: o lugar

onde a terra e o céu se uniam como parecem fazê-lo no horizonte, razão pela

qual muitos textos se referem ao templo como um horizonte celestial. O

termo antigo para "horizonte", akhet, possui vários significados relevantes:

diz respeito não apenas à junção do céu e da terra, mas a uma zona

específica do horizonte onde o deus Sol emerge do Além-Mundo∗, o Duat,

toda manhã, para lá voltando toda noite.2 Para os egípcios, sem dúvida, o

horizonte representava um portal para o Além-Mundo.

∗ Far-World, no original. (N.T.)

As pirâmides também partilhavam essa mesma natureza: a Grande

Pirâmide do faraó Quéops em Gizé era chamada de "o akhet de Quéops".

Além disso, a raiz da palavra akbet significa "luzir, resplandecer"3. Em

determinado sentido o termo se referia ao chamejar da luz no pôr ou no

nascer do sol, mas continha igualmente um significado bem mais secreto,

que iremos descobrir.

O papel primordial do faraó era servir de guardião da Ma'at. A

única — e mais importante — obrigação do ser humano era viver em Ma'at,

criando harmonia entre o cosmos e o mundo físico. Esse estado de equilíbrio

perfeito era personificado pela deusa Ma'at, retratada com uma pluma de

avestruz no cabelo. Ela trouxe para este mundo a verdade e a justiça, os

frutos da harmonia.

Dois mundos coexistiam nessa perfeição universal: o mundo físico,

no qual nascemos e vivemos; e o Além-Mundo, o Duat, para o qual viajamos

ao morrer.4 Os antigos não viam o Além-Mundo como algo independente,

como um céu ou inferno distante ou desvinculado da existência terrena. Ao

contrário, o Além-Mundo era onipresente. Acreditava-se que ele existisse

simultaneamente com o mundo físico, entrelaçado com ele, como as duas

serpentes em torno do caduceu de Hermes. Vivia conosco o tempo todo,

ainda que normalmente não o víssemos e só viajássemos para lá ao morrer.

Esses dois mundos, de uma forma misteriosa e inexplicável,

ocupavam o mesmo espaço, com a diferença de que o mundo físico

permanecia dentro do tempo, enquanto o Além-Mundo existia para além do

tempo. O tempo teve início com a criação, mas o Além-Mundo era visto como

eterno, não no sentido de uma extensão infinita de tempo alcançando

ilimitadamente o futuro e tendo origem em um passado ilimitadamente

distante, mas no sentido de ser "externo" ao tempo. O deus Osíris governava

o Além-Mundo, e o guia dos mortos era Tot, que os conduzia ao reino dos

deuses.

Outro aspecto do Além-Mundo é ser interpretado como a origem

eterna de todas as coisas no universo visível. Consideravam-no a fonte

divina de tudo, a fonte de todo o poder e de toda a energia. Acreditava-se que

a própria vida se originava no Além-Mundo, que se infiltrava no mundo

físico, revelando-se em todas as formas que nos rodeiam.

Para os antigos egípcios, o mundo dos mortos estava sempre muito

próximo do dos vivos — havia uma intimidade entre os dois.

Paradoxalmente, o mundo dos mortos servia de fonte para o mundo da vida.

Com efeito, acreditava-se que os mortos eram os verdadeiros vivos.

Uma inscrição em um túmulo datada do Novo Reinado (entre

1550-1070 a.C.) nos recorda que "somente um grãozinho de vida é este

mundo, [mas] a eternidade reside no reino dos mortos"5. Uma tumba

anterior, do Médio Reinado (entre 2040-1650 a.C), a do sacerdote Neferhotep

em Tebas — hoje Luxor —, contém vários "Cantos do Harpista", o segundo

dos quais se encerra assim: "Quanto a uma vida encerrada na terra, este é

um momento de sonho. Diz-se: 'Bem-vindo, são e salvo' àquele que alcança o

Ocidente."6

Para os egípcios, o "Ocidente" era a terra dos mortos. Eles

construíam seus túmulos e pirâmides sempre na margem ocidental do Nilo,

de onde se supunha que o sol se recolhesse à noite ao Além-Mundo.

Para entender tudo isso, vale a pena examinar o antigo conceito de

tempo dos egípcios. Para eles, dois tipos de tempo atuavam

simultaneamente: o chamado neheh era o tempo cíclico que reveste os

eventos naturais — as estações, o movimento das estrelas etc, enquanto o

outro, conhecido como djet, nada tinha de tempo, consistindo em um estado

de distanciamento total do tempo. Apenas no neheh o tempo se movia; o djet

representava o tempo suspenso.7 Embora o neheh pudesse ser infinito,

apenas o djet era eterno; uma inscrição diz: "O que tem djet-eternidade não

morre."8

Essa perspectiva dual em muito difere do nosso conceito moderno

de tempo, no qual seguimos aos tropeços na direção de um futuro que só

nos resta esperar que seja perfeito — esperança que para muitas religiões se

apóia no cumprimento da promessa da vinda de um messias que vencerá a

batalha decisiva contra as forças do mal e, assim fazendo, nos dará um

mundo perfeito. Também a nossa filosofia política é extremamente

dependente do tempo linear, de uma trajetória que se estende do passado ao

futuro, na qual, se manejarmos corretamente as nossas leis, será possível

satisfazer todos os cidadãos, como se as leis fossem capazes de fazer mais

que tapar buracos.

No entanto, os membros da nossa cultura que se apartaram do

tempo — os místicos — informam, como os antigos egípcios, que o mundo

dos mortos é, na verdade, um mundo dos vivos, que é onipresente e está

muito próximo. Descontando as grandes diferenças culturais e idiomáticas,

podemos ver essa mesma noção de proximidade com o mundo divino

enfatizada nos relatos da grande mística do século XVI, santa Teresa d'Ávila,

que com freqüência caía em um estado de "êxtase" místico, no qual se

"dissolvia" por completo no reino divino. Falando de Deus, ela ressaltou:

Uma coisa eu ignorava no início. Eu realmente não sabia que Deus

estava presente em tudo; quando Ele me parecia muito próximo,

eu achava que era impossível.9

O principal ajudante dos incumbidos de preservar a Ma'at era o

grande deus Tehuti — chamado de Tot pelos gregos e identificado com

Hermes. Ele conhecia os segredos profundos da Ma'at e era capaz de iniciar

tanto os vivos quanto os mortos em seu conhecimento. Tot conhecia "os

segredos da noite"10. O Além-Mundo era onde reinava a perfeição, e com a

ajuda de Tot — ou seja, com uma formação nas técnicas corretas — os

humanos podiam visitá-lo. Podiam visitar o reino dos deuses e dele retornar.

A partir dos primeiros registros, é possível constatar que todos os

rituais nos templos se destinavam a manter a harmonia universal. Nesses

templos, tanto homens quanto mulheres eram iniciados em seus segredos,

embora também fossem orientados a manter segredo sobre o que viam. Com

efeito, mantinha-se silêncio sobre tudo que se relacionava aos segredos do

templo. Entre os muitos textos extraídos das paredes do Templo de Hórus

em Edfu consta o aviso direto: "Não revele o que você viu dos mistérios dos

templos."11

Nesse caso, como descobrir o que ocorria nesses "mistérios"?

Alguém já se arriscou e revelou seus segredos?

Um dos problemas a enfrentar quando tentamos entender as

primeiras práticas religiosas de uma ampla variedade de culturas antigas é

que até que a escrita fosse não apenas inventada, mas também

suficientemente desenvolvida, de modo a registrar idéias e crenças, não há

como saber no que acreditavam os nossos antepassados. Embora um

sistema de registro simbólico de transações comerciais por meio de tabletes

de argila tenha sido inaugurado por volta de 8000 a.C, somente ao redor de

3000 a.C. ele evoluiu para a escrita.12

Um exemplo desse problema pode ser visto no caso da escavação

da grande zigurate em Eridu, que já foi uma importante cidade suméria

localizada onde hoje é o Iraque. Conseguiu-se situar a zigurate em 2100 a.C,

e os textos esclareceram que ela foi dedicada à divindade da cidade, Enki,

deus da sabedoria, do aprendizado e das águas subterrâneas. No entanto,

escavações meticulosas revelaram o que restou de 23 templos anteriores por

baixo da zigurate, em sucessivos níveis de ocupação mais profundos, sendo

o primeiro deles uma simples capela construída sobre uma duna de areia,

datada, no mínimo, do ano 5000 a.C. Foram descobertos 18 níveis

remontando ao chamado período Ubaid, anterior ao surgimento da escrita.13

A zigurate foi dedicada a Enki, mas o que dizer dos níveis de

ocupação precedentes? É válido supor que, já que se tratava do mesmo

templo, o culto a Enki existisse desde o início? Claro que não. Um invasor,

por exemplo, poderia facilmente ter imposto um culto sobre outro mais

antigo; na verdade, isso acontecia com freqüência. Ou um culto poderia se

deslocar para outro local, deixando um templo vazio para ser ocupado por

algo bem diferente. Decerto existem exemplos de templos que passaram a

abrigar cultos diversos daqueles para os quais haviam sido originalmente

construídos. Já vimos o caso do templo de Onias no delta egípcio, que de

início serviu ao culto de Bubastis, mas que, já em ruínas, foi convertido em

um templo judaico. A construção em si prova apenas a existência de um

culto organizado: não pode nos dizer muito, ou mesmo nada, sobre o culto

que abrigava.

A existência de simbolismo nem sempre ajuda. Sem textos, não

temos condições de entender o significado dos símbolos para os que deles se

utilizavam. As nuas paredes de pedra dos estranhos cômodos no interior da

Grande Pirâmide, por exemplo, tão diferentes das outras no Platô de Gizé,

não nos dão a mínima idéia sobre a finalidade original da estrutura.

Inversamente, Chatel Hüyük, no sul da Turquia, a maior cidade neolítica

conhecida do Oriente Próximo, data de quase oito mil anos atrás e possui

mais de quarenta santuários plenos de simbolismo distribuídos por vários

níveis de ocupação. Os interiores de alguns deles são decorados com

pinturas; um mostra fileiras de chifres do extinto touro selvagem, o auroque,

em bancos; outro apresenta baixos-relevos em gesso de cabeças e chifres de

touro; um terceiro combina seios femininos e chifres de touro: e não faltam

figuras geométricas pintadas. Cada santuário é diferente do seguinte; afora

uma obsessão com chifres, é difícil discernir qualquer coerência nesse leque

confuso de decorações simbólicas. E em volta dos santuários podem ser

encontradas estatuetas de deusas.14 Por que não vemos nenhuma delas nos

santuários? A área é rica em simbolismos, mas, na ausência de textos, não

há pistas sobre o seu significado.

Podemos, contudo, ter um vislumbre da tendência geral: podemos

constatar a existência de uma profunda preocupação com a relação deste

mundo com o "outro" mundo, o Além-Mundo. Com o aparecimento da

literatura, um dos primeiros textos se revestiu de tamanha importância que

foi escrito várias vezes: no grande Épico de Gilgamesh, um rei do Uruk viaja

ao Além-Mundo em busca da imortalidade. Fracassa em sua missão, pois

não é capaz de se manter "acordado", retornando para contar a história de

sua viagem espiritual.

É pouco provável que o épico tenha sido concebido unicamente

para tirar proveito da evolução da escrita. Podemos estar certos de que a

antiga tradição oral da Mesopotâmia se preocupava com a relação entre o

Além-Mundo e o mundo físico. Mesmo essa é uma conclusão notável,

contudo é possível voltar a épocas mais remotas para procurar indícios das

origens desse conceito: parece provável que desde que os humanos

começaram a realizar cerimônias rituais no enterro dos mortos, uma

distinção entre este mundo e o "outro" tenha sido estabelecida — que,

reconhecida a existência de ambos, passasse a se considerar apropriado

realizar uma cerimônia de passagem de um para o outro.

O exemplo mais antigo que se conhece de um enterro

deliberadamente ritual diz respeito aos neandertais: cem mil anos atrás, um

jovem foi enterrado na Ásia central. Arqueólogos russos descobriram seus

restos mortais cercados por pares de chifres de bode. Outro esqueleto

neandertal foi escavado em Le Moustier, na França, um sítio datado de cerca

de 75 mil anos atrás. Esse enterro também foi revestido de um ritual

fúnebre. Cobriram o morto com ocra vermelha, recostaram sua cabeça em

um monturo de pedras e, em torno dele, espalharam ossos de gado. Túmulos

posteriores datando de aproximadamente sessenta mil anos atrás foram

descobertos em uma grande caverna em Shanidar, no Iraque, como o de um

indivíduo deitado sobre uma camada de flores, todas com poderes

medicinais.15 Outros 36 túmulos cerimoniais foram encontrados na Europa e

na Ásia remontando ao milênio seguinte. Podemos dizer com relativa

segurança que o Além-Mundo é motivo de preocupação há dezenas de

milhares de anos — no mínimo. Mais que isso, implícita nessa preocupação

está a questão da própria fonte de vida e da existência do autoconhecimento

humano.

Ainda assim nos resta enfrentar o desafio representado pela

inexistência de textos, seja na Grande Pirâmide, seja nas demais do Platô de

Gizé. Todas foram construídas pelos faraós da quarta dinastia, por volta de

2500 a.C. Os textos mais antigos surgiram no final da quinta dinastia e

durante a sexta — por volta de 2300 a.C. O primeiro deles se encontra nas

paredes das câmaras subterrâneas da pirâmide de Unas, o último faraó da

quinta dinastia. Durante os duzentos anos seguintes, outras cinco pirâmides

também foram decoradas com textos. Chamados, por razões óbvias, de

Textos das pirâmides, eles nos forneceram informações valiosas, mas

também levantaram um mistério. Aparentemente foram muito bem

traduzidos, porém, mal compreendidos.

Não espanta que esses equívocos tenham ocorrido, pois é nessa

hora que os arqueólogos começam a procurar discretamente a saída.

Sentem-se desconfortáveis; sabem que as coisas estão prestes a ficar muito

esquisitas. Mas ninguém jamais disse que não ficariam.

Na verdade, tratava-se apenas de uma questão de tempo.

Como os textos foram descobertos em determinadas pirâmides que

se supunha associadas apenas a morte e enterros, supôs-se igualmente que

os mesmos se referissem tão-somente aos mortos. Tal idéia encontraria

suporte numa afirmação esculpida na parede da câmara subterrânea de

uma dessas pirâmides: "O espírito se destina ao céu; o corpo, à terra."16

Mas existem curiosidades que precisam ser examinadas: "Ó rei,

não partistes morto, partistes vivo",17 lê-se em um dos Textos das pirâmides.

Sem dúvida, é ambíguo: pode significar que, como está morto, o rei se

encaminha para a vida eterna, no sentido de que está vivo para o mundo

celestial, mas igualmente que, embora vá partir para o Além-Mundo quando

morrer, nessa ocasião ele viaja para lá ainda vivo.

Se assim é, conclui-se que ele esperava voltar dessa viagem. Ou

estaremos exagerando em nossa interpretação? Uma idéia dessas acharia

apoio nos textos?

Outra frase encontrada nos Textos das pirâmides diz: "Fui e

voltei... Avanço hoje sob a forma de um espírito vivo..."18 É difícil não

concordar que aí se encontre algo que sustente a idéia de que os vivos

visitavam o Além-Mundo.

Existem, igualmente, diversas ilustrações da alma dos mortos —

ou como se chamava no Egito antigo, a ba — na literatura funerária

encontrada em túmulos e sarcófagos. Aba é retratada como um pássaro,

porém com a cabeça e o rosto do falecido. Em suas garras, o pássaro em

geral segura o shen, um símbolo de eternidade

— revelando a dádiva que traz do mundo no qual habita. Embora

ba costume ser traduzido como "alma", o termo tem um significado muito

maior. Sugere que existe um aspecto interior, mas oculto, da pessoa que

morreu, tão móbil quanto o veículo em que o espírito interior se desloca

independentemente do corpo morto e voa de volta para sua origem divina.

Implica, na verdade, mais ainda: primeiro, que a ba existe o tempo

todo, não se trata de algo que passa a existir na ocasião da morte. De acordo

com os sacerdotes egípcios, ela é parte integrante do ser humano. Se isso é

verdade, não há razão aparente para que alguém não vivencie antes da

morte a sua ba.

O dr. Jeremy Naydler, que estudou os mistérios mais profundos

contidos nos textos egípcios, ressalta que jamais devemos nos permitir

esquecer a natureza de experiência desses escritos religiosos antigos. Ele

enfatiza que "a ba poderia ser definida como um indivíduo dentro e fora do

estado corpóreo"19. Ele explica que no momento da morte tal estado "ocorria

espontaneamente", mas durante a vida "essa consciência extracorpórea

precisava ser induzida"20. Induzida, em outras palavras, ritualmente ou por

meio de algum outro método específico de iniciação. Implícita na análise de

Naydler se encontra a sugestão de que os antigos egípcios empregavam

certas técnicas extraordinárias de iniciação que levavam ao conhecimento do

Além-Mundo, permitindo, assim, que os indivíduos o visitassem e de lá

retornassem.

Existe, com efeito, um elemento curioso em certos ritos egípcios

realizados nos templos que os especialistas não entendem plenamente:

segundo os textos que descobrimos, o sacerdote oficiante sentava-se em um

lugar tranqüilo e utilizava técnicas específicas para entrar em um estado

chamado nos hieróglifos de qed. Em circunstâncias normais, tal estado seria

classificado de "sono", mas no contexto ritual específico indicava algo mais

parecido com um transe ou meditação. Era principalmente utilizado, supõem

os estudiosos, durante o rito de animação de estatuetas sagradas, chamado

"a Abertura da Boca", quando o poder divino era invocado para encarnar na

estátua, que, em conseqüência, se tornava sagrada. Esse mesmo rito

também fazia parte das práticas fúnebres. É evidente, ao menos no último

caso, que durante sua permanência nesse estado ritual, o sacerdote de

alguma forma se deslocava até o mundo dos mortos, o Além-Mundo, e na

volta era capaz de descrever o que vivenciara na condição de morto.21

Precisamos levar isso a sério, porque esses textos registram algo que não

apenas acontecia, mas, ao que tudo indica, era habitual durante esses

rituais.

Eu diria que podemos ter certeza de que essa viagem ritual não era

apenas uma criação intelectual ou algum tipo de encenação sacerdotal,

"uma fraude devota", capaz de produzir fumaça bastante para impressionar,

mas pouco fogo de verdade. Por volta do final do século III, começo do século

IV a.C, o filósofo Jâmblico de Apaméia, um dos mais importantes

acadêmicos platonistas de sua época, lecionava no que é hoje o Líbano. Seus

ensinamentos enfocavam o que ele chamava de teurgia, da qual falamos

rapidamente — ou seja, "trabalhar com" os deuses. Jâmblico contrastava a

teurgia com a teologia — "falar sobre" os deuses. Interessavam a ele os

efeitos práticos e não a discussão intelectual; ele queria que seus alunos

conhecessem, não apenas acreditassem. ri

Jâmblico se familiarizara com os ensinamentos secretos do Egito.

Uma de suas obras mais importantes foi intitulada On the Mysteries of the

Egyptians [Sobre os mistérios egípcios]: nela, boa parte da essência do

conhecimento inerente aos templos é revelada. Jâmblico fala com bastante

clareza a respeito do talento dos sacerdotes para apartar a consciência de

seus corpos e seguir para o Além-Mundo. Ele relata que as almas dos

sacerdotes eram puxadas para cima pelos deuses, "criando nelas o hábito,

enquanto ainda residiam no corpo, de apartar-se dele", a fim de serem

guiadas até sua origem eterna.22

Jâmblico afirma explicitamente na mesma obra que os sacerdotes

não adquiriam seu conhecimento sobre o reino divino "meramente através

da razão" — o que, aliás, constituía um desafio proposital à abordagem

difundida por Aristóteles —, mas, ao contrário, por meio de uma teurgia

sacerdotal "eles proclamam que são capazes de ascender a [realidades] mais

elevadas e universais"23.

Jâmblico não está se referindo a possibilidades ou fantasias, mas

constatando simplesmente um fato a respeito dos sacerdotes egípcios: a

confirmação de que eles sabiam como viajar para o Além-Mundo. As

perguntas que cabem aqui são: Por que devíamos nos surpreender? Teremos

tido ganhos ou perdas em conseqüência da nossa desconfiança e ceticismo

modernos?

Por volta do segundo milênio a.C. começaram a aparecer textos no

interior de sarcófagos de madeira. Esses textos derivam dos anteriores

"Textos das pirâmides", mas são mais informativos com relação aos

conceitos espirituais abordados. Sua essência é apresentada no

encantamento 76, que se intitula "Ascendendo ao céu... e se tornando um

Akh".

O Akh é "o que brilha", um "facho de luz", e constitui a raiz do

mundo akhet ou "horizonte". Representa o fim perseguido pela ba:

transformar-se em pura radiância espiritual. Com relação aos mortos, revela

que o indivíduo após a morte, em seguida a um período em que é libertado

do seu corpo sob a forma de ba, acaba por ascender a um estado de

transcendência e fundir-se com a radiante Fonte de tudo. Stephen Quirke

explica que "o akh é o espírito transfigurado que com a luz tornou-se um

só"24. O termo usado nos textos para descrever esse processo é sakhu — isto

é, "fazer [do falecido] um akh... um ser de luz"25.

Uma evolução posterior desses textos, em meados do século XV

a.C, nos deu o que se conhece como O livro dos mortos. No entanto, esse não

é o nome original da coletânea de textos, que se intitulava "O livro dos que

vêm de dia" — que talvez fosse mais apropriadamente traduzido por

"Instruções sobre como vir à luz". Uma versão do título datada do final do

segundo milênio a.C. inclui o termo sakhu, "transfigurações", o que implica

que esses textos eram usados para a transformação de "alguém em um

akh"26.

Esse conceito remonta a uma época anterior: as coletâneas de

"Textos das pirâmides" e "Textos dos sarcófagos" conservadas na biblioteca

do templo de Osíris em Abidos foram reproduzidas — ou re-reproduzidas —

em papiro no século IV a.C, seguindo a mesma ordem em que haviam sido

escritas cerca de 1.500 anos antes. Também elas receberam o título

Transfigurações.27 Os sacerdotes do templo sabiam do que se tratava, ainda

que os tradutores modernos não saibam.

Plutarco, um historiador e escritor grego, tinha seus vinte e poucos

anos e provavelmente ainda era estudante em Atenas quando o Templo de

Jerusalém finalmente caiu nas mãos dos soldados romãnos em 70 d.C. Ele

foi iniciado nos mistérios de Delfos, e a partir do final do século I d.C. serviu

como sacerdote desses mistérios. Em conseqüência, sabia uma ou duas

coisinhas sobre o lado oculto da religião. Em virtude da exigência de segredo

entre os sacerdotes egípcios, esses mistérios aparentemente não figuram nas

crônicas. Na verdade, o relato de Plutarco da história de Isis e Osíris

representa o único texto detalhado conhecido. Nesse relato, Plutarco faz um

comentário intrigante: falando das câmaras e corredores dos templos

egípcios, ele escreve: "E em outra seção [os templos] possuem, na escuridão

subterrânea, aposentos secretos para investiduras, como celas ou capelas."28

Mas Plutarco não acrescenta qualquer outra informação, nem

desenvolve essa idéia provocante. Sem dúvida a maioria dos templos egípcios

possui aposentos ou galerias subterrâneas. Em Dendera, por exemplo,

existem dez — aposentos individuais, corredores e longas galerias —, alguns

abarcando três níveis.29 No Templo de Hórus em Edfu, uma entrada na

parede da capela de Osíris, Senhor do Além-Mundo, conduz a um túnel

dentro da própria parede, que dá acesso a duas câmaras subterrâneas.

Estive lá várias vezes para meditar na calma da escuridão e do silêncio

absoluto. O túnel hoje está fechado por uma porta com cadeado.

Os arqueólogos costumam defender que esses aposentos secretos

eram usados para o armazenamento de objetos rituais ou de grande valor,

mas a importante revelação de Plutarco sugere um mistério maior por trás

da existência dos mesmos. Em Dendera, por exemplo, os espaços secretos

contêm inscrições em hieróglifos e imagens simbólicas — dificilmente um

sinal a ser encontrado em um depósito.

Heliodoro de Emesa, escrevendo no século III d.C, acrescenta

algumas informações quanto a esses ritos misteriosos de Ísis e Osíris: ele

afirma que a história desses dois deuses contém segredos que não foram

revelados a indivíduos profanos e que aqueles que eram versados nos

segredos da natureza "instruíam os desejosos de conhecer esses assuntos

íntimos em suas capelas, à luz de velas"30.

Poucos egiptólogos se dedicam a essas questões. Apreensiva

quanto aos assuntos místicos, a maioria dos acadêmicos prefere manter sua

arqueologia no plano "científico", o que significa restringir-se às explicações

aparentemente racionais para tudo que encontram, mesmo quando fazer

isso eqüivale a tentar enfiar um brinquedo inflável em sua embalagem

original.31

Um punhado de estudiosos, porém, teve a coragem e a segurança

para falar sobre o lado oculto dos cultos egípcios: o professor Claas Bleeker,

um especialista em história da religião da Universidade de Amsterdã,

prontamente admitiu que "obviamente existiam no antigo Egito certos

mistérios cultuais que apenas os iniciados conheciam". Segundo ele, um

participante desses ritos secretos exclamou com orgulho: "Sou neles

iniciado... mas não conto isso a ninguém."32

O egiptólogo Walter Federn também se deu conta da natureza

esotérica dos escritos religiosos egípcios e explicou que alguns dos

encantamentos encontrados nos Textos das pirâmides e nos Textos dos

sarcófagos "também se encontravam disponíveis para os vivos". Dizem que

ele ainda acrescentou que "em alguns casos, teriam se transformado em

textos iniciáticos"33.

Existe um texto extraordinário que ainda não abordamos: o

Amduat — O livro do que existe no Além-Mundo, cujas cópias mais antigas

remontam aproximadamente ao ano de 1470 a.C. e ostentam o título original

de Tratado das câmaras ocultas. Ele registra a jornada de 12 horas do deus-

sol Rá em seu barco celestial através do Além-Mundo todas as noites e

fornece instruções de como enfrentar todos os perigos e dificuldades.

Nitidamente foi escrito para preparar o faraó falecido, ajudá-lo em sua

viagem após a morte. O que é significativo a respeito desse texto, porém, é

que ele afirma, explicitamente, ser também útil para os que ainda vivem: "E

bom para os mortos terem este conhecimento, mas também para quem está

na terra."34

Tal importância para o mundo físico é constantemente reforçada ao

longo do texto. Resta pouca dúvida de que essa viagem pelo Além-Mundo diz

respeito tanto aos mortos quanto aos vivos. Na verdade, o livro se encerra

com uma afirmação sem qualquer ambigüidade: "Quem quer que conheça

estas misteriosas imagens é um espírito-Akh esclarecido. [Esta pessoa]

poderá sempre entrar e sair do mundo inferior. Sempre falando com os vivos.

Verdade comprovada, um milhão de vezes."35

Mais claro impossível. A viagem tem a ver com experiência. Diz

respeito à iniciação.

Esse ponto não passou despercebido aos estudiosos: um egiptólogo

da Universidade de Chicago, o professor Edward Wente, concluiu que certos

textos, inclusive o Amduat e outro, chamado Livro das portas, "podem

originalmente ter sido escritos para utilização neste mundo, sem se

destinarem exclusivamente ao uso fúnebre em túmulos"36. Ele esclarece que

tais obras são exemplos de "teologia prática", em que os vivos se identificam

com "seres em diversos estados e estágios que habitam o mundo inferior", e

que não era preciso esperar a hora da morte para receber os benefícios.37 Tal

identificação significa ritual. Wente acrescenta:

Parece muito mais simples, a meu ver, admitir que o Livro de

Amduat e o Livro das portas tenham sido originalmente destinados

a utilização na terra, bem como no Além-Mundo, e apenas

secundariamente adaptados como literatura regia especificamente

fúnebre.™

O próprio Amduat afirma a necessidade que tem de permanecer em

segredo; apenas poucos tinham permissão para acessar seu conteúdo.

Wente conclui:

é possível encarar essas duas grandes obras como complementa-res

uma da outra no fornecimento de instrumentos distintos, ou talvez

"duas formas" de entrar no mundo inferior e participar do processo

de morte e renovação.39

Podemos ter certeza da existência de práticas profundamente

esotéricas e secretas habitualmente realizadas nos aposentos e capelas

ocultos nos templos egípcios, e de que os homens — e sem dúvida as

mulheres também, como, por exemplo, as sacerdotisas de ísis — eram

iniciados nos segredos do reino dos deuses e aprendiam como viajar com

segurança através da noite eterna, evitando todos os perigos imprevisíveis,

até se tornarem iluminados como uma estrela.

Nos últimos anos, venho servindo de guia para grupos de vinte ou

trinta pessoas no Egito. Normalmente, nessas excursões os visitantes são

guiados coletivamente na visita aos vários templos e, enquanto batalham por

um espaço, ouvem a história das invasões, das guerras e dos detalhes

arquitetônicos, tudo pontuado com uma breve noção sobre os faraós. Mas

quase sempre não recebem informações a respeito da finalidade desses

templos, dos rituais que neles tinham lugar e do significado desses rituais

para os antigos egípcios. Uma outra característica marcante dessas

excursões é o fato de que, devido às multidões de turistas e do programa

exaustivo — que aparentemente gira em torno de restaurantes de

propriedade de irmãos e primos —, sobra pouco tempo para efetivamente

"sentir" os locais.

Não me interessa quem foram os construtores dos templos. O que

importa é o que se fazia neles. Em nossos grupos, tentamos vivenciar os

locais e, ao fazê-lo, algo importante costuma acontecer: o brotar de uma

emoção inesperada, tão profunda quanto a distância do passado, mas tão

imediata que torna o passado onipresente. Na verdade, aprendemos a

aguardar tais momentos como parte da experiência que essa terra oferece e

considerá-los a prova de que em algum lugar bem no fundo de nós mesmos

reside uma memória antiga que apenas espera o momento certo para se

libertar. É comum algum participante do grupo de repente irromper em

lágrimas, ou simplesmente se sentir "viajando". Lembro-me bem de um deles

vagando como sonâmbulo pelo templo de Osíris em Abidos, sussurrando

para si mesmo, como se fosse incapaz de dizer outra coisa: "Isto é de

verdade. Isto é de verdade."

Estava, é claro, coberto de razão. Precisei me assegurar, na saída,

de que ele voltara ao ônibus.

Também me lembro da ocasião em que visitamos Abu Simbal, no

extremo sul do Egito. Quando já íamos partir, nosso navio de cruzeiro

deslizou lentamente pelo lago Nasser diante dos dois templos: o de Ramsés

II, inconfundível com suas quatro enormes figuras sentadas na entrada, e o

outro, mais modesto, da sua filha, Nefertari. Enquanto o navio se movia

devagar, árias das óperas Aída e Nabuco ecoavam na leve brisa, vindas dos

alto-falantes instalados no convés superior; fomos pegos de surpresa.

O que poderia ser considerado demasiado teatral, talvez mesmo

brega, foi um deleite. Para mim, a música e o delicado bale do navio diante

dos templos e das antigas divindades foi de tal forma tocante que me

provocou arrepios. Fiquei imóvel, vencido e dominado pela profunda

quietude que, lenta, mas inexoravelmente, se apoderara de mim. Desejei que

aquele momento se eternizasse. De certa forma, talvez meu desejo tenha se

realizado. Membros do meu grupo me contaram mais tarde que se

emocionaram às lágrimas — no que até então fora apenas uma ensolarada

manhã de terça-feira.

Lembro-me bem da primeira vez que levei minha enteada ao vale

dos Reis. Ela é editora de estilo de uma importante revista inglesa de moda

voltada para o público de menos de trinta anos. Sua vida costuma girar em

torno de moda contemporânea, viagens e design; não é seu hábito gastar

muito tempo pensando no passado. Era de manhã cedinho e a temperatura

começava a subir quando o nosso ônibus fez a curva e entrou no estreito

vale. Ali nos deparamos pela primeira vez com o árido cenário banhado pelo

sol, com as entradas de suas tumbas e seus altos morros se estendendo

diante de nós. Minha enteada não conteve as lágrimas. Deixou-as correr

livremente. Algo poderoso brotara de dentro dela e a dominara. "Senti como

se já tivesse estado aqui antes", foi tudo o que conseguiu dizer. Era o

bastante.

E não apenas lembranças pessoais costumam vir à tona; outras

lembranças persistem, e em determinadas ocasiões se mostram a nós.

Lembranças aparentemente guardadas pelas próprias pedras e por esses

lugares, como se a separar o passado existisse um tênue verniz de tempo

que de vez em quando é removido para revelar o que existe por baixo. Gosto

de conversar com os guardas que vigiam os monumentos à noite, que

dormem ali e conhecem os lugares e os momentos silenciosos. Também

gosto de conversar com os egiptólogos que, imersos nos sítios, também

conhecem os lugares silenciosos. Sei de histórias de visões repentinas de

antigos rituais, de sacerdotes reunidos nos lagos sagrados, de deuses

perambulando pelos corredores e câmaras Já fui levado a pequenas capelas

em cantos remotos de grandes sítios, onde, posso afirmar, algo muito

especial está presente, algo especial que pode ser vivenciado.

Mas alguns desses lugares precisam continuar pouco conhecidos,

visitados apenas pelos que entendem como encará-los com a reverência que

eles merecem e pelos que são capazes de usufruir suas dádivas. O

extraordinário é que quase todo dia no Egito pequenos grupos de visitantes

— peregrinos — buscam e têm acesso a essas experiências. Estão

aprendendo a conhecer o passado vivo desse país incrível.

Para todos os "peregrinos" é evidente que as pirâmides são mais

que os túmulos extravagantes que nos levaram a acreditar que sejam.

Stephen Quirke afirma sem rodeios que as pirâmides, juntamente com

várias outras construções que se desintegraram com o tempo, constituíam

um complexo luxuoso dedicado ao culto do faraó como uma divindade. E

acrescenta que "sua função de túmulo é apenas secundária"40. A pirâmide de

Djoser e outras construções no complexo de Sacará, explica ele, fornecem

"prova clara" do seu uso ritualístico — nesse caso, o festival Sed, uma

grande celebração que ocorria de trinta em trinta anos, destinada a renovar

o poder do faraó.41

O estudo mais importante a esse respeito foi recentemente

completado pelo dr. Jeremy Naydler e apresentado em seu livro Shamanic

Wisdom in the Pyramid Texts [Sabedoria xamanista nos textos das

pirâmides]. Ele explica que o festival Sed era realizado para permitir que o

faraó harmonizasse o mundo físico e o Além-Mundo, equilíbrio esse que

traria benefícios para todo o Egito. No "rito central" do festival Sed, "o faraó

cruzava o portão entre os mundos", com o objetivo de pôr a si mesmo "numa

relação direta com os poderes espirituais normalmente ocultos". Para

permitir que isso acontecesse, tudo indica que durante a maior parte da

cerimônia ritual o rei vivenciasse "uma experiência visionária estática"42.

Essa experiência era artificialmente induzida pelos oficiantes dos ritos, que

entendiam muito bem a ligação entre os dois mundos e a importância do

faraó como ponto de contato entre ambos.

Naydler é direto: sua conclusão a respeito do estudo dos Textos das

pirâmides é que "longe de serem textos fúnebres, [estes textos] diziam

respeito primordialmente a experiências místicas de um tipo semelhante às

que o rei vivo tivera durante os 'ritos secretos' do festival Sed, pois podemos

claramente vê-los integrando um gênero de experiência humana arquetípica

no ponto de travessia entre este mundo e o mundo do espírito"43.

Evidentemente, a maioria dos acadêmicos discordaria dessa

abordagem experiencial dos textos e ritos. É praticamente consenso que o

grande volume de literatura egípcia antiga descrevendo o Além-Mundo não

representa conhecimento, no sentido de verdade, mas é o resultado de

milênios de especulação imaginativa de gerações de sacerdotes que talvez

acreditassem no que escreviam, mas que, ainda assim, tentavam descrever

algo impossível de conhecer. "Mas", observa Naydler, "pode-se igualmente

sustentar que este conhecimento resultava do tipo de experiência mística

que envolvia cruzar o umbral da morte ainda durante a vida"44.

É aqui que me vem novamente à lembrança o termo ímpar "ahket

de Quéops", aplicado à Grande Pirâmide do faraó Quéops em Gizé, ao qual

me referi no início deste capítulo. Poderia esse termo, que significa "luzir,

resplandecer" e indica o ponto de entrada para o Além-Mundo no horizonte,

sugerir que a pirâmide seja o lugar do qual Quéops passou para o Além-

Mundo? E o lugar do qual retornou?

Com a responsabilidade de manter a Ma'at a lhe pesar nos ombros,

será que Quéops buscou respostas junto aos seres espirituais no reino do

além sobre como garantir a harmonia neste mundo? E se efetivamente

cruzou a porta de entrada do reino dos deuses, como

0 fez? Que técnicas específicas conheciam os sacerdotes egípcios

que assistiram Quéops e outros egípcios antes e depois dele?

Um exame atento dos ritos de iniciação revelados em outra região

do mundo antigo certamente irá ajudar em nosso estudo e, assim. esta é a

próxima etapa da nossa viagem.

NOTAS

1 Quirke, Ancient Egyptian Religion, p. 70. 2 Assmann, The Mind of Egypt, p. 58. 3 Id., ibid., p. 58. 4 Também chamado por vários tradutores de "Mundo Inferior" ou "Mundo Subterrâneo". 5 Assmann, The Mind of Egypt, p. 66. 6 Szpakowska, Behind Closed Eyes, p. 191. 7 Assmann, The Mind of Egypt, p. 18-19.

OS MISTÉRIOS DO EGITO 175 8 Id., ibid., p. 61, citando o Berlin Leather Roll (Papiro Berlin 3029), datado do Médio Reinado. 9 Santa Teresa, The Life of Saint Teresa of Ávila by Herself, p. 127. 10 Bleeker, Hathor and Tboth, p. 147. 11 Bleeker, "Initiation in Ancient Egypt", in: Initiation, p. 56. 12 A história da evolução dos tabletes de argila para a escrita está em Denise Schmandt-Besserat,

Before Writing, Vol. I, From Counting to Cuneiform, Austin, 1992. 13 Lloyd, The Archaeology of Mesopotamia, p. 39. Georges Roux, em Ancient Iraq, Harmondsworth,

1997, p. 68, afirma que uma "conclusão inescapável é a de que a mesma tradição religiosa foi passada

de século para século". Os indícios não sustentam a sua certeza. 14 Mellaart, Earliest Civilisations of the Near East, p. 89-101. 15 Shreeve, The Neanderthal Enigma, p. 53. 16 Faulkner, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, Declaração 305, p. 94. 17 Id., ibid., Declaração 213, p. 40. 18 Id., ibid., Declaração 260, p. 69. 19 Naydler, Temple of the Cosmos, p. 202. 20 Id., ibid., p. 203. 21 Szpakowska, Behind Closed Eyes, p. 150-151; texto dos túmulos de Rekhmire e Seti I traduzidos na

p. 190. 22 Jâmblico, On the Mysteries of the Egyptians [Sobre os mistérios egípcios], 1:12, p. 37-38. 23 Id., ibid., 8:4, p. 139. 24 Quirke, Ancient Egyptian Religion, p. 159. 25 Bleeker, Egyptian Festivais, p. 136. 26 Quirke, Ancient Egyptian Religion, p. 159. 27 Id., ibid., p. 159. 28 Plutarco, Isis and Osiris, cap. xx, em Mor alia, V (Loeb Edition, p. 51).2 29 Ver, por exemplo, Cauville, Les Crypts du temple d'Hathor, para as plantas detalhadas das dez

criptas em Dendera.

30 Heliodoro, An Aethiopian History, p. 241. Modernizei a linguagem do século XVI. 31 Para uma discussão detalhada dessa postura acadêmica, ver Naydler, Shamanic Wisdont in the

Pyramid Texts, capítulo 5, sobretudo p. 140-145. 32 Bleeker, Initiation in Ancient Egypt, in: Initiation, p. 55. 33 Federn, citado por Wente, Mysticism in Pharaonic Egypt?, Journal of Near Eastern Studies, 41,

1982, p. 161. 34 Abt, Knowledge for the Afterlife, p. 9. 35 Id., ibid., p. 144. 36 Wente, Mysticism in Pharaonic Egypt?, Journal of Near Eastern Studies, 41, 1982, p. 174. 37 Wente, Mysticism in Pharaonic Egypt?, Journal of Near Eastern Studies, 41, 1982, p. 175. 38 Wente, Mysticism in Pharaonic Egypt?, Journal of Near Eastern Studies, 41, 1982, p. 175-176. 39 Wente, Mysticism in Pharaonic Egypt}, Journal of Near Eastern Studies, 41, 1982, p.177-178. 40 Quirke, The Cult of Ra, p. 122. 41 Id., ibid., p. 118. 42 Naydler, Shamanic Wisdom in the Pyramid Texts, p. 85. 43 Id., ibid., p. 202. 44 Id., ibid., p. 21.

CCAAPPÍÍTTUULLOO XX

AA IINNIICCIIAAÇÇÃÃOO

EXISTEM LUGARES QUE SÃO SIMPLESMENTE MISTERIOSOS. Parece haver

uma lógica em sua construção, mas partes deles resistem a explicações,

recusando sujeitar-se a quaisquer regras óbvias de finalidade. Ao longo dos

meus vários anos de pesquisa, entre todas as antigas e enigmáticas criptas,

galerias e tumbas que explorei, um dos locais mais absolutamente estranhos

em que já estive se situa na Itália, na ponta noroeste da baía de Nápoles,

sobre o pequeno porto de Baia. Sua entrada estreita é sabiamente

dissimulada em meio às mal conservadas ruínas espalhadas pelos platôs da

encosta.

Escalei com cuidado um muro de pedra, encontrei a escada de

metal e desci cerca de quatro metros e meio até a base de uma estreita

passagem escavada na rocha vulcânica há uns 2.600 anos. A me esperar lá

embaixo estava um amigo, o escritor e acadêmico Robert Temple,

especialista em tecnologia antiga. Após muitos anos de insistentes pedidos,

as autoridades arqueológicas haviam concedido permissão para que Robert

entrasse no local; ele me convidara a acompanhá-lo, devido à minha

experiência em exploração e fotografia subterrânea. Era terça-feira, 24 de

maio de 2001.

À nossa frente, uma entrada apertada, cavada na encosta do

penhasco, dava acesso ao enigmático complexo subterrâneo. O momento era

importante, pois não existe hoje no mundo ninguém que tenha entrado ali

antes de nós. Ajustamos nossos capacetes, acendemos as lanternas e saímos

do sol a pino para adentrar subitamente uma escuridão total. A mudança

brusca foi perturbadora.

Com efeito, hesitamos um pouco no início, pois não tínhamos a

menor idéia das condições no interior. As hipóteses sobre o que nos

aguardava eram bastante negativas. As autoridades italianas há muito

vinham insistindo que os corredores estavam cheios de gases perigosamente

venenosos e, por esse motivo, nos fizeram assinar um documento antes da

expedição, isentando-as de toda a responsabilidade caso algo fatal nos

acontecesse.

O túnel de entrada media aproximadamente um metro e oitenta de

altura, mas apenas cerca de sessenta centímetros de largura — espaço para

deixar passar uma pessoa de cada vez. Víamos, de cada lado, a intervalos

regulares, pequenos nichos destinados a abrigar lamparinas. Para nosso

espanto, o túnel se estendia de leste a oeste, em linha reta, numa suave

descida. Rapidamente perdemos de vista a entrada iluminada pela luz do dia

às nossas costas e mergulhamos no silêncio fétido.

Fazia calor, e embora ele não fosse excessivo, a umidade era

enorme; nossas roupas logo se empaparam de suor. Mosquitos enormes

infestavam o túnel, mas felizmente revelaram-se mais curiosos que

beligerantes. Usávamos máscaras contra poeira com filtros químicos, para o

caso de ser verídica a existência de vapores tóxicos. Nossas lanternas

iluminavam o caminho à frente; o túnel prosseguia em linha reta, sempre em

lenta descida. Logo sobreveio uma sensação de solidão e tudo foi ficando

muito, muito estranho. Ainda assim, continuamos a caminhar.

Após uns 120 metros, o aspecto do túnel mudou. Passamos por

uma curiosa construção do lado esquerdo, que nos pareceu uma porta

murada; a essa altura, o túnel fazia uma curva para a direita, e a descida se

tornava mais acentuada. Seguimos por ele para o interior da rocha. Após

outros cinqüenta metros, fomos obrigados a parar: diante de nós havia uma

extensão de água. O túnel desaparecia em suas entranhas, como se a

enchente de um rio subterrâneo o tivesse submergido. No entanto, esse

"canal" fora criado artificialmente, assim como o túnel. Vários degraus

baixinhos davam acesso à água, mas evidentemente o nível subira de

maneira considerável desde épocas passadas, e o teto à nossa frente se

tornava cada vez mais baixo até tocar a água cristalina. Era impossível

passar.

Pouco antes de chegarmos a esse canal subterrâneo, tínhamos

visto uma abertura na parede direita do túnel: voltamos e passamos por ela

de gatinhas. Quase imediatamente, nos vimos num outro túnel paralelo, que

tinha uma curva acentuada para a esquerda e, em seguida, uma ladeira

ascendente bastante íngreme; obviamente o local já possuíra degraus, mas

hoje a ladeira era recoberta apenas por uma camada de cascalho. Com certa

dificuldade, conseguimos subir engatinhando.

Depois de nos deslocarmos uns seis metros, deparamos com algo

extraordinário: a entrada murada para uma câmara ou galeria subterrânea

— um santuário ou um pequeno templo, talvez, ou algum tipo de aposento

especial com colunas. Dali saíam túneis tanto para a esquerda quanto para

a direita. Escolhemos a direita. Passados novos seis metros, a passagem

estava bloqueada por um monte de cascalho, mas sabíamos, devido à

investigação original, que esse túnel ia dar no extremo do canal subterrâneo.

Voltamos, então, para a entrada murada do santuário e pegamos o

túnel esquerdo, que nos levou a dois outros, um dos quais, ao menos, dava a

impressão de prosseguir na direção do lugar por onde entráramos no

complexo, porém em um nível superior, evitando, assim, o canal.

Também esse túnel já estivera bloqueado pelo cascalho, mas ao

longo dos dois mil anos ou mais que passara fechado, este se assentara,

deixando cerca de quarenta centímetros entre o chão e o teto. Estendia-se à

nossa frente tanto quanto podiam iluminar os fachos das lanternas,

desaparecendo depois na escuridão. Eu estava decidido a explorá-lo.

Desnecessário dizer que a situação era claustrofóbica. No entanto,

a minha experiência na exploração de cavernas e túneis em sítios

arqueológicos no Oriente Médio me dava a certeza de saber lidar com o

eventual pânico que brota quando nos sentimos sozinhos em um espaço

confinado e que por vezes dá a sensação de estarmos sepultados vivos.

Quando me preparava para explorar a passagem, Robert resolveu

não ir comigo. Nossos dois guias italianos, Gino e Pepe, também começaram

a se fazer de desentendidos, fingindo-se entretidos com suas mochilas e

cordas. Apesar de tudo, concluíram que eu devia amarrar uma corda a uma

das minhas pernas. Suponho que o raciocínio foi que se eu sofresse um

infarto e morresse dentro do túnel eles poderiam rapidamente me puxar de

lá. Essa esperança me pareceu remota àquela altura e logo ficou comprovado

ser também impossível.

O teto do túnel era tão baixo que, com o capacete a me proteger da

superfície pedregosa acima da minha cabeça, precisei me arrastar de

barriga, empurrando com os pés e avançando com as mãos. Eu não tinha

como levantar a cabeça para ver aonde ia. Não tinha como voltar, já que o

túnel permanecia com a mesma largura de cerca de sessenta centímetros.

Minha única esperança era que ele levasse a algum lugar — e que quando eu

lá chegasse fosse capaz de dar meia-volta e sair. Do contrário, eu seria

forçado a me arrastar em marcha a ré. Uma perspectiva exaustiva, sem

dúvida, mas possível, de modo que não me preocupei demais. Fui em frente,

rastejando com o rosto próximo à terra, minha máscara justificando seu

preço. Precisei empurrar a mochila com as câmeras fotográficas, já que não

havia espaço para levá-la nas costas.

Continuei rastejando pelo túnel o mais rápido possível, enquanto

ao mesmo tempo calculava aproximadamente a distância percorrida. De vez

em quando, fazia uma pausa para soprar um apito e me assegurar, pelo som

dos apitos deles, de que meus amigos ainda estavam ao meu alcance. Logo,

porém, ao penetrar mais profundamente no túnel, deixei de ouvi-los. Então,

mais à frente, a corda acabou. Desamarrei-a do meu pé e continuei sem ela.

O teto e as paredes estavam se fechando em cima de mim. Eu

estava só. Tudo era silêncio. Precisei parar duas ou três vezes. Apesar do

meu esforço para evitar tais pensamentos, me dei conta do gigantesco peso

da rocha esmagando o teto do túnel. Minha cabeça roçava no teto, as

paredes arranhavam os meus cotovelos, e eu estava estendido sobre uma

camada de cascalho de dois mil anos de idade. Às minhas costas havia um

túnel comprido; o que me esperava à frente era um mistério total. Toda a

façanha de repente me pareceu insana, até mesmo irresponsável.

Se o teto ruísse naquele momento, ninguém viria me resgatar: um

pânico claustrofóbico começou a tomar forma em minha mente. A despeito

do calor, um arrepio me subiu pela espinha e eu me retesei; num impulso

incontrolável, encenei mentalmente um drama amador, no qual já me via em

minha tumba, esperando apenas ser coberto de terra. Eu precisava me

acalmar; o túnel estava ali há muito tempo e não iria ruir de uma hora para

outra só porque eu fora parar nele.

Respirei fundo várias vezes e, finalmente, a sensação passou.

Empurrei minha mochila e voltei a rastejar. Logo passei pelo marco

imaginário de trezentos metros, mas o túnel continuava a penetrar, plano,

na sólida rocha vulcânica.

Perto do marco dos 305 metros, mais uma vez o túnel se

modificou: o teto ficou um pouco mais alto e a largura dobrou. Começou a

descer cerca de trinta centímetros a cada metro. Senti alívio; se fosse

necessário, ali dava para eu me virar e voltar. À minha frente, contudo, vi

que inexplicavelmente o túnel se transformava em dois. Duas entradas

sombrias me encaravam como os canos gêmeos de uma arma. Optei por

entrar primeiro no túnel do lado direito e assim fiz, engatinhando.

Ele era curto, porém; curiosamente, acabava de supetão a cerca de

45 metros da entrada. Isso não fazia sentido algum. Teria sido fechado? Um

exame superficial revelou não ser esse o caso. À minha esquerda havia uma

abertura na rocha, que levava a um outro túnel. Assim, enveredei por ela.

Por incrível que pareça, vi-me no final do túnel que ficava do lado esquerdo.

Essa complexidade excêntrica parecia completamente fútil. Por que alguém

haveria de construir dois túneis levando ao mesmo lugar? E, bem à minha

frente, vislumbrei o que restava de um vão — uma espécie de entrada fora

murada com blocos de pedra e cimento. À sua esquerda, havia outra parede

com uma abertura. Passei a minha cabeça por ela apenas para ver mais um

túnel, que também se encontrava bloqueado por cascalho pouco à frente.

Chutei o solo acarpetado de cascalho, e o estranho som que se seguiu

pareceu-me indicar a existência de um outro túnel abaixo de mim. Sempre

carrego uma colher de pedreiro na minha mochila, mas não era hora de

começar a escavar.

Ainda assim, peguei-a e comecei a bater repetidamente na porta

murada enquanto, ao mesmo tempo, gritava a plenos pulmões. Não ouvi

coisa alguma, mas descobri depois que Robert Temple me escutou. Eu

estava do outro lado da entrada murada na parede pela qual havíamos

passado antes que o túnel principal começasse a descer para a direita.

Ao que parece, esse túnel originalmente também dava acesso ao

"santuário" ou "templo" nas entranhas do subterrâneo, sendo um caminho

com mais altura do que o outro túnel e passando ao largo do canal

artificialmente criado abaixo dele. Então, tive um lampejo quanto à lógica do

local: essa velha construção sem dúvida era o que Robert Temple

desconfiava que fosse — um lugar ao qual as pessoas vinham para serem

apresentadas aos segredos divinos do Além-Mundo. Esses iniciados, como

eram chamados, entravam, tomavam o caminho da direita — sempre

recomendado nos textos antigos — e eram conduzidos em barcos através de

um rio artificial até o santuário interno, que funcionava como entrada ou

portal do mundo inferior que buscavam e do reino dos deuses. Para voltar,

os iniciados podiam refazer o caminho pelo rio. Enquanto isso, o túnel

alternativo provia aos sacerdotes acesso direto ao santuário, onde

aguardariam a chegada dos iniciados.

Tudo isso lembrava bastante as visitas ao mundo subterrâneo

descritas pelos autores clássicos. Elas começavam com os relatos dos

visitantes das regiões infernais sendo levados em barcos a remo ao longo do

rio Estige pelo silencioso barqueiro Caronte. Em seguida, depois de entrar no

reino sagrado, o viajante era apresentado, como descreve Virgílio, "...a locais

de deleite, pastos verdejantes, Onde as almas se distraem nos Bosques

Abençoados"1.

Com alguma dificuldade no espaço exíguo, peguei a mochila e dela

tirei minhas adoradas câmeras Leica, várias lentes e um flash, e comecei a

fotografar tudo o que via. Devido à minha ampla experiência das vicissitudes

da atividade de exploração, eu sempre me portava como se nunca mais fosse

voltar. "Registre" é o princípio norteador, princípio esse muito bom. E, como

se viu depois, no caso em questão, prudente.

Cerca de uma hora mais tarde, voltei pelo túnel e encontrei Gino e

Pepe me esperando sentados, bastante nervosos. Fazia algum tempo que não

ouviam meus movimentos, e eu não tinha respondido a nenhum de seus

chamados. Quando a corda ficou leve, eles a puxaram, mas eu não vim

junto. Devem ter informado as autoridades, porque depois disso todas as

vezes que visitei o complexo, fui impedido de entrar novamente no túnel. Não

de uma forma ostensiva, claro — nunca me disseram nada —, mas alguém

sempre ficava junto de mim e, quando eu me aproximava do profundo túnel

estreito, dava um jeito de me barrar, discretamente, a passagem. Sem

dúvida cumpriam ordens nesse sentido; eu era considerado perigoso demais.

Por isso, as fotos coloridas que tirei naquela primeira vez são, até o

momento, as únicas existentes.

Ninguém sabe quem construiu essa estrutura subterrânea. Ela

pode ter sido escavada pelos gregos em passado tão remoto quanto o século

VII a.C. Ninguém pode dizer com certeza para que era usada. Da mesma

forma, ninguém sabe quando foi fechada ou por que sua existência foi

escondida. A melhor sugestão é que Marco Vipsânio Agripa, um importante

general e almirante romano na época de César Augusto e avô do imperador

Nero, por motivos que não temos-condições de imaginar, resolveu que o

lugar oferecia tamanho perigo que precisava ser apagado da face da terra,

ordenando por isso que fosse enchido de cascalho, provavelmente por volta

de 37-36 a.C, quando sua esquadra estava sendo construída e seus

marinheiros eram treinados nos lagos Averno e Lucrina antes da última e

vitoriosa batalha marítima que travaram na guerra siciliana.2

Quem quer que tenha sido o responsável, certamente levou a sério

a tarefa: a destruição do complexo subterrâneo demandou enorme esforço —

os cálculos sugerem trinta mil idas e vindas para completar a missão —

comprovando uma determinação forte, ou até obsessiva, de lacrar o local

para sempre.3 Se foi Agripa que o fez, o que o atemorizou? E se não foi ele,

quem mais o faria, e por quê?

Isso ocorreu mais ou menos há dois mil anos. A porta externa para

o complexo foi redescoberta durante escavações arqueológicas em 1958, mas

apenas uns poucos metros do túnel podiam ser percorridos então. A

complexidade integral do lugar só veio à tona em 1962, quando ele foi

explorado, mas não escavado, por um engenheiro químico aposentado

chamado Robert Paget. Após as tentativas de Paget, o governo italiano

entrou em cena e lacrou a entrada, mantendo secreta a sua existência.

Ninguém mais pusera os pés ali até que Robert Temple e eu — juntamente

com Gino e Pepe — nos aventuramos a fazê-lo, quase quarenta anos mais

tarde. Para todos os efeitos, o local desaparecera sem alvoroço do horizonte

arqueológico. Qualquer um que perguntasse por ele era informado de que se

tratava de mais um outro túnel sem graça que levava a uma nascente de

água quente, construído durante a época romana para servir às termas. A

maioria dos estudiosos perdeu o interesse. Apenas Robert Temple levou o

sítio a sério.

Em 21 de setembro de 1962, Robert Paget e um colega entraram

no complexo pela primeira vez.4 Ninguém fizera isso nos dois mil anos

precedentes. O que exatamente ele descobriu antes de nós que fez o governo

italiano reagir daquela maneira?

A possibilidade de existir um oráculo dos mortos na região há

muito intrigava Paget. Ele acreditava que o relato de Virgílio da visita de

Enéias ao mundo subterrâneo se baseava na experiência de uma visita

verídica a esse famoso oráculo dos mortos. É relevante que Virgílio tenha

deixado claro que o Oráculo de Sibila em Cumas — sobre cuja existência não

pairam dúvidas — era distinto do oráculo dos mortos, que, ainda assim,

diziam se localizar na região do lago Averno, uma cratera vulcânica cheia de

água a cerca de um quilômetro e meio de Cumas e situada dois ou três

quilômetros ao norte de Baia (ex-Baiae).5

Na Eneida de Virgílio, Enéias visita Sibila de Cumas e pede que ela

lhe diga como chegar ao mundo subterrâneo. Ela responde: "O caminho até

lá é fácil partindo de Averno."6 Em outras palavras. Virgílio afirma que a

entrada para o mundo subterrâneo fica por ali, a cerca de um quilômetro e

meio, como já vimos.

Terá sido essa uma mera invenção literária, ou Virgílio conhecia e

já visitara um lugar que existia de verdade? Paget acreditava na segunda

hipótese. Essa possibilidade não pode ser descartada, pois é sabido que

Virgílio residiu nessa região durante algum tempo.7 Paget estava convencido

de que esse oráculo, como o de Cumas, realmente existira. E sem dúvida

tinha razão: quando Aníbal saqueou a região em 209 a.C, fez questão de

oferecer sacrifícios em um local importante, ou seja, um oráculo, que

também diziam que ficava próximo do lago Averno.8 Claro que os céticos

poderão argumentar que essa era a fonte do texto de Virgílio, de modo que o

escritor não precisava ter jamais visto pessoalmente o oráculo.

Para provar a sua teoria, Paget e a mulher se mudaram para Baia

em 1960. Juntamente com Keith Jones, um arqueólogo entusiasta e seu

amigo, que na época servia na Marinha americana na base da Otan em

Nápoles, os dois resolveram dar início a uma metódica exploração,

determinados a encontrar as ruínas do oráculo.

Começaram a busca na antiga cidade grega de Cumas,

aproximadamente três quilômetros a noroeste de Baia. Exploraram os

diversos túneis e cavernas da região, inclusive os do famoso Oráculo de

Sibila, redescoberto em 1932 e posteriormente escavado. No entanto, foram

incapazes de descobrir algo que se assemelhasse a um oráculo dos mortos.

Paget e Jones, então, voltaram sua atenção para o lago Averno,

onde muitas tradições situavam o oráculo. Encontraram vários indícios dos

estaleiros de Agripa e suas construções militares, inclusive dois grandes

túneis; um deles tinha um quilômetro e meio de comprimento e três metros

de largura, uma ligação subterrânea entre o lago Averno e Cumas.

Novamente exploraram diversos túneis e cavernas, mas nada encontraram

que se encaixasse na idéia de um oráculo dos mortos. Assim, se deslocaram

mais uma vez.

Junto à costa, cerca de três quilômetros ao sul do lago Averno, fica

a antiga cidade de Baiae, a maior parte da qual se encontra hoje sob o mar,

devido à instável geologia da região. Baiae foi um dia uma cidade romana de

grande importância. O geógrafo e historiador Estrabão — que morreu por

volta de 24 d.C, poucos anos antes do batismo de Jesus — descreveu Baiae e

suas cálidas primaveras como "uma sofisticada estação de águas e de cura

de doenças"9. Era um resort chique à beira-mar, onde a elite de Roma

passava férias. Era também o lugar onde o imperador e outros patrícios

possuíam grandes mansões, cujas ruínas ainda hoje podem ser vistas nas

encostas ou sob o mar, pois a terra baixou e a maior parte das ruínas é

admirada atualmente sob a água, a bordo de barcos com casco de vidro, ao

longo de mais ou menos dois quilômetros nos arredores do golfo de Pozzuoli.

Ainda resistem nas encostas de Baia, entre as ruínas dos banhos termais, os

restos de três templos: o de Diana, o de Mercúrio e o de Vênus. A Baia

moderna é apenas um vilarejo de pescadores, com um centro de pequenos,

mas ótimos, restaurantes, sendo o tipo de lugar discreto onde os

empresários italianos gostam de levar suas belas acompanhantes para

almoçar.

A escavação entre 1956 e 1958 das ruínas nas encostas de Baia

revelou um complexo de termas romanas, mas a situação era caótica, devido

às numerosas tentativas de reconstrução, provavelmente em seguida aos

freqüentes terremotos na área. Com efeito, um gigantesco terremoto em 63

d.C. provocou deslizamentos que soterraram muitos dos prédios originais.

Paget e Jones começaram a investigar todos os túneis da área,

como já haviam feito em Cumas e Averno. Calcularam ter entrado, no

mínimo, em duzentos deles até então. Aqui ambos foram atraídos a um

ponto específico do sítio: uma plataforma de apoio para o que restava de um

antigo templo grego, que as estimativas situavam, no mínimo, no século V

a.C.10 Sob essa plataforma havia muitos túneis e câmaras subterrâneas.

Paget concluiu que encontrara as residências dos sacerdotes do

oráculo dos mortos, que, segundo Éforo, jamais viam a luz do dia, mas se

comunicavam através de túneis subterrâneos.11 O administrador do sítio em

Baiae disse a Paget e Jones que debaixo do próprio templo havia um outro

túnel que eles não tinham visto. Insistiu que o túnel mais profundo era

perigoso por causa do seu "ar viciado". Os escavadores que o descobriram

percorreram apenas uma pequena distância antes de saírem. Na verdade,

contou Paget, "o inspetor de antigüidades dera ordem para ninguém se

arriscar a uma nova exploração"12. Paget e Jones decidiram deixar esse túnel

como último recurso.

Enquanto isso, exploravam todos os outros túneis. Em um deles,

rastejaram por 45 metros até se darem conta de que não tinham como se

virar, acabando por voltar em marcha a ré. Finalmente chegou o momento

de ver o túnel considerado demasiado perigoso. Um voluntário do grupo de

Paget foi amarrado à extremidade de uma corda de sessenta centímetros de

comprimento. A operação era puramente militar:

A idéia era que ele marchasse até onde a corda desse. Se ficasse de

pé, saberíamos que o ar prestava... se caísse, esperávamos ser

capazes de puxá-lo em segurança.13

Ele não caiu.

Paget e Jones resolveram entrar pessoalmente no túnel para

explorá-lo. Atravessaram com cuidado a entrada:

Na poeira do chão pudemos ver as pegadas dos escavadores que

haviam estado ali em 1958. Elas cessavam... e vimos à nossa frente

o pó virgem e limpo do chão que se estendia toda vida na

escuridão...u

Conforme progrediam, ficavam cada vez mais temerosos, e depois

de 120 metros, com a temperatura ainda subindo, decidiram que já era o

bastante e rapidamente voltaram à superfície e ao ar puro. Resolveram não

contar o que haviam feito às autoridades italianas, que ainda acreditavam

que o lugar continha vapores tóxicos.

Pouco depois, Paget e Jones entraram no túnel novamente, e dessa

vez desceram 170 metros, até que foram impedidos de continuar por um

reservatório de água subterrâneo. Pareceu-lhes que o túnel acabava ali. A

umidade e o calor eram intensos e ambos reclamaram de falta de oxigênio.

Só era possível permanecer na beira d'água por 15 minutos, então tiraram

muitas fotos e slides para estudá-los posteriormente, projetados numa tela.

Foi na tela que descobriram a existência de uma placa de cerâmica

incrustada no teto, acima do veio de água.

Na visita seguinte, eles a empurraram. A placa se mexeu. Os dois

conseguiram deslocá-la o suficiente para que Keith Jones conseguisse se

esgueirar pela diminuta abertura. Uma vez do outro lado, Jones se viu em

um túnel que subia de forma íngreme e levava diretamente à entrada lacrada

do "santuário" subterrâneo, que os dois mais tarde calcularam estar

escavado a 180 metros da encosta do penhasco e a quarenta metros abaixo

da superfície da terra. Eles haviam penetrado em um complexo subterrâneo

dos mais misteriosos, que a partir dali explorariam em detalhes.15

Paget relatou que a temperatura do túnel era de 49 °C e a da água,

30 "C. Em maio de 1965, um mergulhador da Marinha americana, o coronel

David Lewis, e o filho exploraram sob o canal: juntos descobriram que do

outro lado dele — numa extensão de cerca de 24 metros — havia uma

margem por onde se acessava um túnel que conduzia diretamente ao

santuário subterrâneo. Quase um metro abaixo, Lewis encontrou duas

câmaras artificialmente criadas contendo fontes muito quentes cuja água

alcançava mais de 50°C. Mais à frente a água alcançava uma temperatura

tão alta que foi preciso abrir mão da exploração.16 Desde então a

temperatura, ao menos na porção acessível do canal, caiu

consideravelmente. Quando exploramos o local, vimos que a água tem agora

uma temperatura de 29 "C e o túnel em si, de 48,5 °C.

No final das contas, Robert Paget e Robert Temple partilhavam

vários interesses. Em 1984, Robert Temple escreveu um livro fascinante

chamado Conversando com a eternidade, que explorava oráculos e

divindades no mundo antigo. No livro, ele menciona esse curioso complexo

subterrâneo em Baia e o descreve. Comprei o livro assim que ele saiu e fiquei

impressionado com a natureza extraordinária do local. A fascinação não me

abandonou. Chamou a minha atenção principalmente a precisão da

engenharia revelada ali: o longo túnel de acesso foi voltado precisamente

para o ponto do nascer do sol no solstício de verão, e o santuário

subterrâneo, para o ponto do pôr-do-sol desse mesmo dia.17

Um outro mistério profundo brotou dessas descrições: como

exatamente os construtores sabiam que havia um rio ou nascente

subterrânea 180 metros abaixo da superfície do morro? Conforme ressaltava

o livro:

Não há vestígios de exploração ou passagens ao acaso, bem como

de começos abortados. A sólida rocha vulcânica dentro da qual tudo

isso foi escavado não possui cavernas naturais, túneis ou canais

que permitissem o acesso de exploradores, bem como não abriga

nascentes naturais.18

Quando questionado sobre a estranheza do fato, Robert Paget se

permitira apenas um comentário evasivo: "Vários problemas de engenharia

merecem uma certa dose de discussão."19 Cheio de curiosidade, decidi um

dia ver isso de perto.

Conheci, então, Robert e Olivia Temple em um táxi no Cairo, em

1998. Fazíamos parte de um grupo de escritores numa excursão ao Egito

organizada pelo colega e amigo Robert Bauval, autor, juntamente com

Graham Hancock, de um livro que fala de mistérios egípcios, Keeper of

Gênesis. Daríamos algumas palestras para o grupo.

Fui logo perguntando a Temple: "Como faço para visitar aquele

estranho santuário subterrâneo sobre o qual você escreveu?" Ele ficou

satisfeito por eu mencionar o livro que escrevera 14 anos antes, mas ao

mesmo tempo mostrou-se constrangido. Explicou que nem ele lá voltara,

pois as autoridades italianas o haviam lacrado com pedras e cascalho na

década de 1970. Ninguém mais tinha autorização para entrar ali. "Porém",

me disse ele, "estou tentando conseguir uma permissão para reabri-lo". Só

que já fazia vinte anos e até ali, nada. Até mesmo a British School em Roma

o informara de que o túnel era "totalmente inacessível por questões de

segurança" e que as autoridades italianas diziam que os túneis estavam

"cheios de gases venenosos"20.

Três anos mais tarde, em 2001, Robert Temple, com quem passei a

me encontrar habitualmente depois do nosso primeiro contato, me ligou com

a incrível notícia: as autoridades italianas haviam lhe dado permissão para

entrar no complexo de Baia — será que eu gostaria de acompanhá-lo para

fazer, com a minha experiência em fotografia, um registro abrangente do

sítio? Levei menos de meio segundo ponderando o convite antes de aceitá-lo.

Naquele mês de maio, eu e minha mulher, Jane, fomos com Robert e a

mulher dele, Olivia, para Nápoles, onde pegamos um carro e partimos para

Baia. Havíamos alugado um apartamento em cima de um restaurante

próximo ao cais pelo tempo que durasse a nossa estada.

Na tarde em que entramos pela primeira vez no sítio, após um

ótimo almoço, Robert e eu trabalhávamos nas profundidades do complexo,

buscando vestígios de portas de acesso no túnel, quando ouvimos o eco de

vozes — vozes femininas. Teria o antigo oráculo voltado à vida? Na verdade,

eram nossas esposas, bravamente abrindo caminho túnel abaixo até o canal.

Para duas mulheres altamente claustrofóbicas, aquele era um feito ímpar.

Naturalmente ninguém queria perder as descobertas do dia. Hoje, aquele

momento à beira do rio que levava ao "mundo subterrâneo" é uma

lembrança que todos partilhamos.

Naquele dia também entendemos a postura das autoridades

italianas com relação ao local. A arqueóloga responsável, dra. Paola Miniero,

achava que o túnel simplesmente fornecia vapor às termas romanas. A

região era famosa por essas termas, e vários outros túneis na encosta

haviam sido construídos com tal finalidade. Mas esses últimos tinham

aspecto simples e tosco; o nosso era reto e cuidadosamente escavado. Ainda

assim, aquela era a postura oficial, e a demora em liberá-lo, constatamos,

provavelmente resultará mais de desinteresse do que de má-vontade.

Para tentar fazê-la mudar de idéia, levamos a dra. Miniero conosco

até o local. Impressionada diante da sua complexidade, ela concordou que o

túnel não se encaixava no padrão habitual dos que proviam acesso a fontes

de água quente. Argumentou que teria de pensar sobre o significado daquilo

tudo.21 Ademais, percebemos pela mudança em sua atitude que ela agora

entendia o nosso interesse.

Enquanto isso, Robert e eu nos demos conta de que era preciso

organizar uma escavação sistemática do lugar. Também achamos que, tendo

em vista que ele já incomodara alguém o suficiente para que mandasse

lacrá-lo, era improvável que os responsáveis por essa ação tivessem

removido algo do santuário. O mais provável era terem quebrado ou

destruído à marreta tudo o que havia lá dentro e depois coberto o espaço

com cascalho. Tirar alguma coisa dali os sujeitaria ao temor supersticioso de

perseguição por espíritos vingativos. Essa linha de raciocínio reforçava a

possibilidade de que todos os objetos de culto utilizados no passado ainda

permanecessem em seu interior.

Solicitamos permissão às autoridades italianas para escavar e,

enquanto esperávamos, também apresentamos dois curtos trabalhos em um

congresso de especialistas em cultos antigos na Itália, que se realizou em

Cumas em junho de 2002.22 Na ocasião, aproveitamos para levar aos túneis

vários especialistas que participavam do evento, para que os vissem com os

próprios olhos; todos saíram convencidos da importância dos mesmos. No

congresso, Robert falou sobre Baia e sua aparente ligação com as obras

clássicas que abordavam os oráculos. Fiz, então, uma breve palestra com

foco na lógica interna dos aspectos arquitetônicos do local: minha intenção

foi apresentar provas de que não se tratava meramente de um duto de água,

mas de uma construção cultuai merecedora de uma escavação arqueológica.

Enfatizei que esse túnel foi construído de forma precisa, habilidosa

e proposital, e que para um duto de água o esforço de engenharia envolvido

era, no mínimo, excêntrico. O túnel principal corria de leste para oeste, uma

direção comumente encontrada em santuários religiosos; terminava em uma

câmara subterrânea de dimensões desconhecidas, ligada a vários túneis

intricados. A lógica, argumentei, sugeria uma viagem, viagem essa que

apresentava elementos compatíveis com temas mitológicos encontrados na

literatura clássica nas descrições de locais de iniciação e acesso ao mundo

dos mortos. O objetivo da viagem através desse túnel era, aparentemente,

incutir uma determinada experiência no viajante. Concluí que o lugar era

enigmático o bastante para justificar ser escavado agora na busca de

entendê-lo melhor. Os comentários que ouvimos nos convenceram de que

havíamos nos saído bem em nossa explicação e, com efeito, vários dos

especialistas presentes prometeram nos ajudar no que pudessem na

organização de uma escavação que levasse a um conhecimento maior.

Embora as autoridades italianas ainda não tenham concedido

permissão para trabalharmos no local, estamos esperançosos: ao menos já

andamos conversando sobre os custos e o tempo envolvido numa primeira

escavação. Robert e eu, na verdade, esperamos para breve o financiamento e

a autorização. Enquanto isso, Robert escreveu sobre as nossas explorações

em Baia em seu último livro sobre oráculos e divindades, Netherworld,

publicado em 2002, incluindo nele também várias fotos tiradas dentro do

complexo.

Existe um derradeiro mistério: Virgílio escreveu sobre o mundo

subterrâneo em sua Eneida: Enéias desce até lá e atravessa o rio Estige, mas

para poder entrar nos "Bosques Abençoados" teria que fazer a oferenda de

um ramo de visco. Enéias estacou na entrada "e na soleira à sua frente

prendeu o ramo"23. Trata-se de um episódio bastante incidental na saga,

mas enquanto observávamos a entrada murada do santuário subterrâneo

em Baia, chamou-nos a atenção um detalhe quase insignificante. No lado

direito da porta havia um pequeno nicho curvo com uma base plana, do tipo

que serve para colocar uma oferenda. A implicação é sugestiva: que a

descrição da viagem ao mundo subterrâneo de Virgílio não foi uma fantasia

literária, mas baseou-se em um acontecimento e local real: o complexo

subterrâneo em Baia.

Robert Paget, que entendia de Virgílio e notara a brecha, estava

convencido disso, motivo pelo qual batizou o canal de "Estige". Era óbvio que

ao menos parte da viagem consistia em cruzar esse canal de barco, pois

encontramos degraus na outra extremidade, que davam acesso a um túnel

que conduzia ao santuário subterrâneo. Robert Temple, que também

entende de Virgílio, concorda.

A própria noção de passar para o reino dos mortos tem uma longa

história no mundo grego. O relato mais antigo de uma viagem desse tipo

aparece no famoso livro XI do grande épico de Homero, Odisséia. Ulisses, em

sua complicada viagem de volta ao lar após as batalhas em Tróia, é obrigado

por uma feiticeira, Circe, a descer ao Hades, onde Perséfone é rainha, para

pedir conselhos à alma de um famoso, porém morto, tebano. Homero

descreve a jornada de barco de Ulisses para um lugar "enevoado" chamado

de "Cidade da bruma eterna", lugar onde o sol nunca aparece no céu

pesadamente encoberto.24 É ali que Ulisses desce ao mundo dos mortos.

Estrabão relata uma crença antiga de que o terrível lugar nebuloso

e "imerso em bruma" mencionado por Homero seria a região da antiga Baiae;

em suas palavras, o lugar foi um dia "coberto de florestas virgens,

gigantescas e impenetráveis... gerando uma sensação de assombro

supersticioso" e era "cheio de enxofre, fogo e fontes quentes" — atividade

vulcânica assustadora e perigosa que dependia das mesmas forças

tectônicas do monte Vesúvio, a cerca de 25 quilômetros de distância.25

Estrabão transcreve detalhes fornecidos por um historiador

anterior, Éforo, que viveu no século IV a.C. Eforo falava de um oráculo

subterrâneo localizado próximo à antiga Baiae e dos sacerdotes

especializados que serviam ali, morando debaixo da terra e jamais vindo à

superfície, comunicando-se por meio de túneis subterrâneos, através dos

quais conduziam os interessados a um centro oracular •"construído bem

abaixo da superfície da terra"26. Embora contasse essa história, Estrabão a

considerava uma fábula.

Alguns acadêmicos modernos acham que esse oráculo se situava

às margens do vizinho lago Averno.27 Outros, reconhecendo a importância do

oráculo, percebem a imprecisão das fontes antigas e reconhecem a

probabilidade de que as referências ao lago Averno indiquem a antiga Baia.28

Entretanto, os que efetivamente entraram nos túneis e viram com seus

próprios olhos os indícios não têm dúvida. Esse grande centro subterrâneo

em Baia, servido por sacerdotes que jamais viam a luz do dia — se é que se

pode dar crédito a Éforo —, era o famoso oráculo dos mortos. Não existem

outros candidatos na região.

Os oráculos, que se encontravam espalhados por todo o mundo

antigo, eram locais aos quais reis e líderes acorriam atrás de conselhos

políticos. Eram também lugares a que qualquer um — ou pelo menos os que

podiam pagar o ingresso cobrado — iam buscar respostas relacionadas a

decisões importantes que estavam prestes a tomar. Alguns desses oráculos,

porém, eram especiais — os que ganharam fama como "oráculos dos

mortos".

Havia quatro lugares principais onde a comunicação com os

mortos era estimulada: este em exame aqui, que ficava em Baia (antiga

Baiae), algumas vezes também chamada de Averno, na parte noroeste da

baía de Nápoles, na Itália; outro, em Aqueronte, próximo à antiga Éfira, em

Tesprócia, no noroeste da Grécia; um terceiro na Heracléia Pôntica, no norte

da Turquia, às margens do mar Negro, e o último em Tainaro, na Lacônia, na

extremidade sul da península grega. Não existem vestígios dos dois últimos;

as ruínas de Aqueronte foram escavadas a partir da década de 1950, após

serem descobertas sob uma igreja cristã. Ainda assim, tais ruínas são

polêmicas; alguns dizem que são o que sobrou de uma propriedade rural

fortificada e que o oráculo dos mortos ainda não foi descoberto, se é que

ainda existe hoje.29 Em outras palavras, Baia — caso a identificação esteja

correta — é o único oráculo dos mortos que sobreviveu até os dias de hoje, e

só isso já reveste de enorme importância o sítio.

Embora todos os oráculos do mundo antigo fossem misteriosos, os

dos mortos possuíam uma natureza especial: eram portas de entrada para o

mundo subterrâneo e para um encontro com os deuses. Por essa razão, ao

menos em alguns deles, certamente também aconteciam iniciações —

iniciações nos segredos que envolvem aquilo a que temos nos referido como

Além-Mundo.

O dr. Peter Kingsley chama a atenção em seu livro Ancient

Philosophy, Mystery, and Magic [Filosofia antiga, mistério e magia] para o

fato de que conceitos muito remotos de uma viagem ao Além-Mundo

sobreviveram em sociedades não-alfabetizadas através dos xamãs, que

ensinam com convicção que é impossível alcançar o "céu" sem primeiro

passar pelo "inferno"; e que aquelas antigas viagens ao mundo dos deuses

começavam com uma descida às regiões infernais por meio de uma "morte",

em seguida à qual o interessado chega a um lugar que lhe dá acesso

imediato tanto ao mundo superior quanto ao inferior.30 Vemos isso no relato

do escritor grego do século II Lúcio Apuleio, que morava em Roma. Ele

descreve de forma admirável e enigmática sua iniciação no culto a Isis:

Aproximei-me da fronteira da morte, pisei no umbral de Perséfone,

viajei em meio aos elementos e voltei, vi o sol à meia-noite, com seus

raios de luz cristalina, aproximei-me dos deuses do mundo superior

e do inferior e os adorei a um passo de distância.31

Embora seja difícil negar que os oráculos dos mortos e a iniciação

tivessem algo em comum, faltam-nos provas específicas dessa relação.

Bastante sugestivo quanto a isso é o fato de o oráculo dos mortos em Baia e

o centro oracular de Apoio em Claros, próximo a Colófon, na Turquia,

possuírem várias semelhanças. Além disso, existem indícios convincentes de

que o oráculo de Claros também era considerado local de iniciação.32 Não é

necessário sugerir maquinações e ruídos dramáticos; bastava que o

interessado descesse ao Hades — o termo grego para designar o mundo dos

mortos, o Além-Mundo —, se encontrasse com os deuses e fosse, então,

iniciado em seus segredos, os segredos do Divino, exatamente como

aconteceu com Apuleio.

Para os gregos antigos, a iniciação e a morte estavam intimamente

associadas, o que parece implícito em seu idioma: telos significa o fim, a

perfeição, a plenitude. Seu plural, telea, "era a palavra padrão para os ritos

iniciáticos — que oferecem a plenitude ou inteireza, mas ao mesmo tempo

envolvem uma extinção ou morte.33 A palavra; em suas muitas variantes, é

encontrada ao longo de todos os rituais de iniciação: telein é "iniciar"; um

telesterion é o salão onde tem lugar a iniciação; o telestes é o sacerdote da

iniciação; e telete é a cerimônia em si. Finalmente, teloumenoi são aqueles

que foram iniciados.34

Quando o filósofo grego Sócrates foi condenado à morte por faltar

com o respeito aos deuses atenienses, exigiram-lhe que se suicidasse

ingerindo veneno. Platão, em seu Fedro, forja o registro das conversas de

Sócrates no dia da sua morte, registro que não pretende ser uma reportagem

jornalística, e sim um diálogo imaginário baseado no que Platão conhecia de

Sócrates e suas crenças.

Naturalmente, a conversa gira em torno da morte e da postura do

filósofo sobre o tema. Pondo palavras na boca de Sócrates, Platão explica que

embora o público em geral possa não se dar conta, os que se envolvem na

prática correta da filosofia "não estão fazendo outra coisa senão morrer e

estar mortos"35. Logo em seguida ele enfatiza que o verdadeiro ofício dos

filósofos é permitir que a alma seja libertada do corpo e encontre a liberdade.

"Assim é que", diz Sócrates, "os que praticam de forma correta a filosofia

estão cultivando o ato de morrer"36.

Uma descrição atribuída a Temístio (mas provavelmente de autoria

de Plutarco,37 em seu tratado "Sobre a Alma", revela o conceito secreto de

que ser iniciado eqüivale a vivenciar o mesmo conhecimento que se adquire

ao morrer, embora, é claro, a iniciação permita ao indivíduo retornar a este

mundo.

Na hora da morte, nos informa Temístio, "[a alma] vivência a

mesma experiência dos que são iniciados nos grandes mistérios". Essa

assertiva direta pode ser encarada como a verdadeira manifestação de

alguém que já se envolveu pessoalmente com os grandes mistérios. Não se

trata de uma crença intelectual, mas de algo aprendido por meio da

participação numa dessas viagens ao Além-Mundo.

Temístio prossegue:

De início, o indivíduo vaga e corre cansativamente de um lado para o

outro, deslocando-se com desconfiança na escuridão, como um não-

iniciado: então, vêm os terrores antes da iniciação definitiva,

tremores, arrepios, suor, espanto: em seguida, o viajante se depara

com uma luz esplendorosa, é recebido em regiões e regatos puros,

com vozes e danças e a majestade de sons e formas sagradas: em

meio a tudo isso, aquele que completou a iniciação caminha

livremente e, liberto e portando sua coroa, ingressa na comunhão

divina, desfrutando a companhia de homens puros e santos.

A seguir, ele descreve a situação baixa e degradante dos que jamais

buscaram a iniciação: aquele que a busca vê "os que vivem aqui sem

iniciação... sujeitos à própria infelicidade devido ao medo da morte e à

desconfiança quanto às bênçãos que ela traz"38.

Sêneca, o estadista e intelectual romano do século I d.C, entendia

a importância e o objetivo da iniciação. "Existem [conhecimentos], ritos

iniciáticos, por meio dos quais são revelados não os mistérios de um templo

municipal, mas do próprio mundo, o vasto templo de todos os deuses."39

Platão afirma que "morrer é ser iniciado"40. Mircea Eliade, professor de

História da Religião na Universidade de Chicago há muitos anos, explica

que, em essência, a iniciação é um encontro com o sagrado.41

De uma forma semelhante ao que vimos no Egito antigo, no antigo

mundo grego a iniciação ocupava um lugar no próprio núcleo da mais antiga

vida espiritual registrada em sua cultura. No entanto, isso foi ao mesmo

tempo esquecido e propositalmente extirpado.

Depois de Homero, mas antes de Platão, há um período muito

misterioso na história grega antiga. Trata-se de uma época em que os

filósofos não apenas se reuniam em volta de canecas de vinho para

conversar e debater, mas eram muito ativos: curavam, ensinavam,

cantavam, entoavam cânticos, escreviam e recitavam sortilégios rimados,

faziam uso do ritual sagrado, meditavam e utilizavam qualquer técnica que

conhecessem para levar o interessado até as mais profundas fontes divinas

da realidade. Acima de tudo, procuravam penetrar o silêncio e a calma. Em

vez de falar a respeito de suas filosofias, eles as vivenciavam; viviam no

mundo real e não no mundo idealizado de uma elite intelectual reclusa.

Chamamos hoje esses primeiros mestres religiosos de filósofos pré-

socráticos, mas a identificação não passa de um nome, uma bobagem

moderna nascida da nossa obsessão por rótulos.

Alguns nomes desses mestres sobreviveram: Parmênides,

Empédocles, Heráclito e Pitágoras faziam parte do grupo. Platão estudou

todos eles e durante algum tempo viveu em comunidades de seus seguidores

na Sicília e na Itália. Assumiu o trabalho que realizaram e o converteu em

argumento, depurando-o de todos os elementos experienciais. Seu discípulo

Aristóteles completou o processo ao deificar o intelecto humano, afirmando

que tudo que sabemos pode ser descoberto apenas por meio da razão e que

se chega à verdade por meio do debate e do argumento lógico. Embora

defendesse o aprendizado pela experiência, limitou as experiências

consideradas fontes adequadas de saber. Os pré-socráticos teriam

debochado dele.

Devemos fazer o mesmo, pois a verdade, como já vimos, é algo para

ser diretamente vivenciado e não para se buscar intelectualmente. Como já

mencionamos, pode-se acreditar que a chama do fogo provoque dor, mas até

que encostemos a mão nela, não podemos conhecer a dor. Desnecessário

dizer que conhecer é sempre superior a crer.

Esses assuntos não são muito difundidos por causa da política,

tanto a antiga quanto a moderna. Platão e Aristóteles eram atenienses;

Parmênides, Pitágoras e os demais residiam em cidades gregas fundadas no

sul da Itália e na Sicília, e tais cidades viviam em guerra com Atenas.

Mantinham, ainda, estreito contato com as correntes mística e xamanista

trazidas da Ásia Menor para o Egeu. Ainda por cima, essas cidades viviam

em contato constante com os antigos egípcios, e seus filósofos mais

importantes costumavam estudar nos templos egípcios. O próprio Pitágoras,

aos 22 anos, foi estudar no Egito, onde morou cerca de 13 anos nos templos,

antes de ser exilado na Babilônia pelos invasores persas.42

As universidades modernas são ateneucêntricas em sua

abordagem da história e da filosofia antigas — ou seja, são orientadas para a

política e o pensamento difundidos pela antiga Atenas. Essas idéias

adquiriram um status bem além do seu valor, mas, devido à nossa confiança

moderna na razão e na capacidade intelectual, esse status artificialmente

elevado de Atenas e da filosofia ateniense é considerado evidente e

indiscutível. Criticá-lo soa radical e até mesmo subversivo. No entanto, a

verdade é que nos tempos antigos, como explica Peter Kingsley, um

estudioso dos filósofos pré-socráticos, "muitos centros de cultura gregos

preferiam aliar-se aos persas a fazê-lo com Atenas por considerar os

primeiros mais civilizados"43.

"Com certeza", acrescenta, "Platão e Aristóteles não foram nem a

expressão absoluta nem a definitiva da filosofia antiga; e todos os caminhos

não passavam necessariamente por Atenas"44.

Sinto vontade de rir quando me lembro de uma palestra de

Kingsley para um grupo de vinte catedráticos — todos especialistas em

filosofia clássica — no Ali Souls College, em Oxford. Kingsley falou sobre a

figura de Parmênides: "Vocês não podem ignorar", disse ele a uma platéia

educadamente atenta, "o lado experiencial do trabalho de Parmênides". Em

seguida, deu um murro na mesa, ao mesmo tempo sacudindo o móvel e a

platéia: "Como ousam ignorar o lado experiencial do trabalho de

Parmênides?", vociferou, desafiando ostensivamente tudo o que a platéia

havia aprendido e ensinava. Boquiabertos, todos o fitaram de olhos

esbugalhados; uma coisa dessas não podia acontecer numa universidade de

Oxford.

Mas a observação de Kingsley era importante: Parmênides não foi

simplesmente um "filósofo" antigo, como os atenienses se dignavam a

reconhecer, de uma forma condescendente que chegou aos tempos

modernos; não foi um mero ponta-de-lança dos jogos intelectuais por eles

chamados de filosofia.

Parmênides foi importante porque viajou pessoalmente ao Além-

Mundo e de lá retornou. E escreveu sobre isso, em um sortilégio poético.

Kingsley explica: "Nos escritos de Parmênides fica claro que ele

adquiriu o conhecimento que tem graças a ter penetrado no mundo dos

mortos. Ele só pôde fazê-lo morrendo antes de morrer; movido pela sua

saudade."45

Parmênides começa assim seu poema: "As éguas que me levam tão

longe quanto a saudade é capaz de alcançar..." É preciso perceber a

importância espiritual que Parmênides atribui à "saudade" — referindo-se à

necessidade interior de voltar ao nosso verdadeiro lar.

Parmênides prossegue: as éguas, diz ele, "seguiram adiante, após

ter vindo e me levado pela lendária estrada do divino que conduz através do

vasto e sombrio desconhecido o homem que sabe"46.

Parmênides estava a caminho do Além-Mundo.

Em 1879, ao realizar um levantamento, um arqueólogo italiano

observou um grande número de sepulturas, próximo ao sítio da antiga

cidade de Thurii, fundada pelos colonizadores gregos na Itália, por volta de

444 a.C. Quatro delas eram particularmente grandes e, por isso, ele as

explorou. Duas continham finas placas de ouro perto do corpo do falecido.

Haviam sido arrumadas em um pequeno embrulho, como acontece com os

amuletos encontrados em outras regiões do mundo clássico. Uma vez

desembrulhadas, descobriu-se que continham um texto em grego antigo.

O curioso é que não apenas esses textos se destinavam a auxiliar o

morto em sua viagem ao mundo subterrâneo, mas alguns revelavam um

paralelo tão próximo ao Livro dos mortos egípcio e outros textos de auxílio

para a viagem ao Além-Mundo, que parecia impossível ignorar um vínculo

direto entre os dois. A impressão era a de que os cultos gregos antigos de

onde haviam saído esses textos, principalmente os que atuaram na Itália, de

alguma forma deviam sua origem, ou a do material por eles utilizado, aos

antigos cultos dos templos egípcios.47

"Afortunado e bendito, sois agora um deus, não mais mortal", diz

uma placa de Thurii, datada do século IV ou III a.C, dirigida ao morto.48

Trata-se de algo praticamente idêntico a alguns dos Textos das pirâmides de

dois mil anos antes.

Em Petelia, no sul da Itália, foi encontrada outra placa de ouro da

mesma época que traz um texto bastante pungente. Falando de alguns

guardiões de uma fonte sagrada que aparentemente perguntam quem é o

visitante do Além-Mundo, o texto aconselha:

Diga, 'Sou um filho da Terra e do Céu estrelado;

Mas minha raça é do Céu [apenas]49

Uma placa de ouro descoberta mais recentemente em Pelinna, na

Tessália, Grécia, menciona uma celebração ou prática ritual realizada pelos

"abençoados" que tem lugar sob a terra: "...e desces ao subterrâneo,

praticando o rito que também os outros abençoados [estão praticando]".50

A menção aos "abençoados" é sugestiva: o dramaturgo grego

Aristófanes, cuja carreira se estendeu do século V ao século IV a.C, em sua

peça As rãs mostra Heráclito falando de sua visita ao Mundo Subterrâneo e

descrevendo os grandes banquetes dos "Benditos". Dionísio lhe pergunta:

"Quem são eles?" e Heráclito responde: "Os Santos, aqueles que entendem os

mistérios"51, ou seja, os que foram iniciados, é claro.

Não há como evitar: somos obrigados a levar a sério a idéia da

iniciação em câmaras subterrâneas e de iniciados compartilhando ritos e

conhecimentos secretos com os mortos. Essa é uma noção estranha para um

indivíduo moderno levar a sério, mas temos que encarar os antigos dentro do

seu próprio contexto: era assim que eles explicavam o que acontece e, ao que

tudo indica, não havia dúvidas ou ambigüidades em sua abordagem. O fato

de para nós ser difícil de acreditar não é motivo para imaginar que eles

estivessem equivocados na interpretação dos acontecimentos ou, pior que

isso, supor que tudo fosse um embuste, parte de uma "fraude devota". Todos

os indícios à nossa disposição levam à conclusão de que os que passaram

pelas cerimônias de iniciação se sentiram bem servidos. Não temos notícias

de iniciados insatisfeitos exigindo seu dinheiro de volta.

Talvez seja o momento de examinarmos como os sacerdotes agiam

— ou seja, como ajudavam os iniciados a deixarem seus corpos e viajarem

para o Além-Mundo.

Essas questões parecem demasiado misteriosas para ter qualquer

relevância em nossa história, que, afinal, diz respeito a Jesus e à fonte de

seus ensinamentos. No entanto, como veremos em breve, Jesus também

adotou uma abordagem experiencial em relação ao seu misticismo. Será que

homens como Parmênides podem ter transmitido idéias ao mundo clássico

da época de Jesus? Poderiam esses homens ter colaborado para a fértil

combinação de técnicas que encontraram sede na grande Alexandria e

expressão judaica no grupo de influência pitagórica dos terapeutae, que,

segundo Filo, viviam numa comunidade nos arredores da cidade?

Os arqueólogos fizeram uma descoberta surpreendente na Itália em

1958: durante as escavações da antiga Velia, lar do filósofo pré-socrático

Parmênides, eles encontraram o que na antiga construção fora uma galeria

oculta. Dali removeram as bases de pedra de três estátuas, que, é claro, há

muito haviam sumido. Cada uma das bases, porém, trazia uma inscrição.

Provavam que uma longa sucessão de sacerdotes-curandeiros de Apoio

haviam sobrevivido em Velia, sendo o primeiro deles o próprio Parmênides. A

data mais recente correspondia a 446 anos após a morte de Parmênides —

apontando para uma época próxima ao início da era cristã. E nada impede a

existência de sacerdotes posteriores, pois não há como compensar se essa

base de pedra foi realmente a última.

Esses sacerdotes-curandeiros foram importantes: um de seus

títulos era Pholarchos — "Senhor do Covil". Isso é sugestivo, já que esses

sacerdotes se especializavam em uma técnica iniciática, bem conhecida no

mundo antigo como técnica de incubação.52

Na antigüidade, a melhor forma de fazer contato com as divindades

do mundo subterrâneo era através da prática da "incubação" —

esperar ter um sonho ou visão, em geral adormecido, deitado sobre

ou sob a terra."53

A prática ritual da incubação requer que o indivíduo se deite na

mais completa imobilidade em um aposento subterrâneo, talvez uma

caverna, a fim de ter um sonho profético ou adquirir um estado de

consciência que não corresponde nem a estar desperto nem a estar

adormecido. Era ali nos isolados espaços escuros que os crentes deviam

vivenciar a passagem para o Além-Mundo, onde receberiam uma visão do

Divino, a Fonte de tudo. O deus da incubação era Apoio.54

O deus dos bosques sagrados em torno da região do lago Averno,

derrubados pelo general Agripa a fim de obter madeira para seus navios,

também era Apoio; assim é que podemos supor a existência da prática da

incubação naquela área, o que nos leva de volta aos túneis subterrâneos de

Baia.

Empreendia-se a viagem sagrada em busca de cura ou de

experiência reveladora. Esses sacerdotes-curandeiros de Apoio eram

especialistas em incubação e, como explica Kingsley, "usavam

encantamentos para alcançar outros estados de consciência"55.

Podemos constatar que as práticas da Grécia antiga, realizadas em

locais como aquele descoberto em Baia, ou nas profundas cavernas ou

aposentos subterrâneos que provavelmente existiram em Velia, não diferiam

muito das realizadas nas criptas sob os templos do antigo Egito. Esses

lugares escuros e isolados eram escolhidos pelos crentes que, depois da

devida preparação, do ritual e do encantamento apropriados, deitavam-se na

quietude e entravam num outro estado de consciência. Não nos resta

alternativa senão considerar seriamente a possibilidade de que eles

deixassem, com efeito, seus corpos, sob a forma de ba — segundo os egípcios

—, ou sob a forma de psyche (alma), segundo os gregos, e viajassem para o

Além-Mundo.

Também podemos ver que, na época de Jesus, duas tradições cada

vez se aproximavam mais. Na verdade, durante o domínio grego e romano de

seu país, os egípcios temeram pela sobrevivência de seus segredos: o

hermético texto Asclepius, do século I ou II d.C, lamenta:

Virá um tempo em que se pensará que os egípcios homenageavam a

divindade de forma fiel e com meticulosa reverência — sem qualquer

finalidade. Todo o seu culto sagrado perderá o sentido e sucumbirá

sem conseqüências, pois a divindade voltará da terra para o céu, e o

Egito se verá abandonado... Quando os estrangeiros ocuparem o

solo... uma proibição amparada na (chamada) lei, cujo

descumprimento será punido, entrará em vigor contra a reverência, a

fidelidade e o culto ao divino. Então, esta terra sacrossanta, sede de

santuários e templos, ficará coberta de sepulturas e cadáveres...

Somente palavras lavradas na pedra sobreviverão para contar sobre

tuas obras de fé.56

Evidentemente, os egípcios tomaram providências para manter

seus segredos: o filósofo Jâmblico nos informa que os sacerdotes egípcios

aprenderam a se expressar no jargão filosófico grego, dando origem a toda

uma coletânea de textos de sabedoria que, como já observamos, "circulavam

sob o nome de Hermes" e derivam, em essência, da tradição egípcia.57

Curiosamente, essa coletânea destila os segredos de textos ainda mais

antigos, como os Textos das pirâmides e os Textos dos sarcófagos, bem como

os do Livro dos mortos, e a quase sempre incoerente cosmologia dos antigos

egípcios.58

Atribuía-se essa coletânea literária ao deus Tot do Egito antigo —

que no final da era clássica era conhecido como Hermes Trismegisto, isto é,

Hermes triplamente grande. Existe um bom número desses textos, mas o

primeiro — e em muitos aspectos, o arquetípico — chama-se O divino

Pimandro, ou, no original, Poimandres.

Até o título denuncia sua fonte egípcia: "Poimandres" era um jogo

de palavras grego oriundo do egípcio antigo P-eime nte-re, significando "o

conhecimento de Rá", o deus-sol do antigo Egito.59 Também é possível

comprovar que o relato da criação que o texto traz deriva de originais

egípcios.60 O costume egípcio de animar estátuas e outras representações de

deuses por meio de magia invade igualmente os textos herméticos.61 Acima

de tudo — e que tem maior relevância para a nossa investigação —, o

conceito hermético de homem é de um "ser cósmico e não terreno"62. A placa

de ouro grega expressou-o bem: "Minha raça é do Céu [apenas]."63

Particularmente relevante nessa literatura hermética é o fato de

que, apesar da produção tardia, sua origem é a própria fonte dos mistérios

dos antigos, o que a torna útil como lente de leitura dos textos anteriores,

permitindo assim uma melhor compreensão da sua verdadeira essência.64

Sugestivamente, no próprio núcleo dos textos herméticos está o conceito de

iniciação mística: "Então ele [Poimandres] me enviou, habilitado e instruído

quanto à natureza do universo e a visão suprema."

O mais curioso é que a produção desses livros de Hermes teve

início por volta da época de Jesus e foi paralela ao surgimento do

cristianismo. No final do século II d.C, Clemente, o bispo cristão de

Alexandria, referiu-se a eles, dizendo que "continham toda a filosofia dos

egípcios"65. O filósofo pagão Jâmblico, escrevendo um pouco mais tarde,

igualmente estava ciente dessa importância: "Nossos ancestrais dedicaram

as criações da sua sabedoria a esta deidade, assinando todos os seus

próprios escritos com o nome de Hermes."66

Essa coletânea de textos atribuída a Hermes Trismegisto teve um

enorme e incalculável efeito sobre a mentalidade ocidental. É válido dizer

que a evolução do mundo ocidental não teria sido o que foi sem eles. A

própria ciência jamais teria se desenvolvido sem o impulso recebido de

homens e mulheres enamorados dessas obras. Isso porque eles foram

redescobertos no Renascimento e traduzidos por Marsilio Ficino por volta de

1463, sob encomenda do rico banqueiro florentino Cosimo de Mediei.

Quando Cosimo conseguiu um manuscrito desses textos, decidiu-se a lê-los

antes de morrer. Chamou Ficino e lhe disse para abandonar todos os seus

outros trabalhos de tradução e se concentrar nas obras de Hermes, tamanha

era a fama das mesmas.

Embora os textos encontrados no Renascimento fossem apenas

uma parte da coletânea, desde então descobrimos vários adendos a eles,

bem como textos novos. Descobrimos, também, que aqueles do

Renascimento foram editados — boa parte da magia e do ritual foi suprimida

para fazê-los parecer mais "filosóficos". Mas isso não tem grande importância

— seu cerne sobreviveu. E há muito a aprender com eles.

Com efeito, uma das revelações mais importantes no início do

Poimandres é a de que o crente primeiramente é levado a uma visão do que é

verdadeiro e depois vê a si mesmo como parte de um grupo de iniciados, em

comparação aos quais a maioria das pessoas está bêbada ou adormecida. No

final do texto, a tarefa que aguarda todos eles é revelada: trata-se da

"santificação" — levar o espírito de volta ao mundo para ensinar a outros o

caminho para o Além-Mundo.

Como veremos agora, essa é precisamente a tarefa que Jesus

tomou para si.

NOTAS

1 Virgílio, Eneida, VI, 855-856. 2 Suetônio, The Twelve Caesars, Augustus, 16 (p. 61); Temple, Netherworld, p. 28, referindo-se a

Estrabão, Geography, V, 4,5, que afirma que Agripa pôs abaixo toda a floresta original. Paget, In the

Footsteps of Orpheus, p. 57, observa que a floresta desmatada incluía bosques consagrados a Apoio e

que a madeira foi usada nos navios de Agripa. A construção desses navios ocorreu antes da batalha de

36 a.C. Ao mesmo tempo, admite Paget, o complexo subterrâneo em Baiae foi lacrado. O dr.

Raymond Clark, da Memorial University de Ter-ranova, em um contato pessoal (julho de 2002), foi

mais cauteloso a respeito do fechamento do local, observando que o relato de Estrabão sobre a

mudança feita por Agripa nos arredores do lago Averno "não inclui obrigatoriamente Baiae, já que sua

atenção estava voltada para a empreitada naval na zona do lago. Agripa não era anti-religioso, como

comprova sua construção do Panteão em Roma. Sem provas adicionais, aceito outras argumentações

quanto à data do fechamento". 3 Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 136; Temple, Netherworld, p. 31, extrapolando a partir dos

números de Paget, sugere que a empreitada tenha levado dois anos. 4 Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 19. 5 Virgílio, Eneida, VI, 149-187. Ver, ainda, Clark, Vergil, Aeneid, 6, 40ss. and the Cumaean SibyPs

Cave, Latomus, XXXVI, 1977, p. 485. 6 Virgílio, Eneida, VI, 187.

7 Virgílio, As Geórgicas, 4, 563-565. "Partênope" é um termo poético para identificar Nápoles. 8 Livy, The History ofRome, 24, 12-13. 9 Estrabão, Geography, V, 4,5. 10 Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 106. 11 Estrabão, Geography, V, 4,5. 12 Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 102. 13 Id., ibid., p. 111. 14 Id., ibid., p. 111. 15 Id., ibid., p. 113. 16 Id., ibid., p. 127-130. 17 Temple, Conversations with Eternity, p. 12-13, citando Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 137. 18 Temple, Conversations with Eternity, p. 17. 19 Paget, In the Footsteps of Orpheus, p. 135. 20 Temple, The Netherworld, p. 10. 21 Id., ibid., p. 10. 22 The Cults of Magna Graecia, congresso promovido pela Sociedade Virgiliana na Villa Vergiliana,

em Cumas, de 19 a 22 de junho de 2002. 23 Virgílio, Eneida, VI, 850-853. 24 Homero, Odisséia, Livro XI. 25 Estrabão, Geography, V, 4,6. 26 Id., ibid., V, 4,5. 27 Por exemplo Ogden, Greek and Roman Necromancy, p. 22, que afirma que porque a tradição

literária parece situar o oráculo nas margens do lago Averno deve ser essa a sua localização. Essa,

porém, não é uma conclusão obrigatória, haja vista a imprecisão das tradições citadas por ele. Outros,

como Burkert, Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, p. 155, são receptivos, mas cautelosos.

Ambas as posturas simplesmente reforçam a necessidade de escavações sistemáticas no sítio em Baia. 28 Ver, por exemplo, Hardie, The Crater of Averno as a Cult-Site, p. 284. 29 Ogden, Greek and Roman Necromancy, p. 19-21. 30 Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery and Magic, p. 252, n° 6. 31 Apuleio, Metamorphoses, XI, 23 (p. 340). A tradução citada aqui é a de Burkert, em Ancient

Mystery Cults, p. 97. Uma tradução conhecida é a de Robert Graves, intitulada The Golden Ass. 32 Burkert, Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, p. 155; Louis Robert, Archaeological

Reports for 1959-60, The Journal of Hellenic Studies, 80-82, p. 41-43. Ver p. 42-43. 33 Peter Kingsley, comunicação pessoal em março de 2002. 34 Burkert, Ancient Mystery Cults, p. 174. 35 Platão, Fedro, 64a. 36 Id., ibid., 67e.

37 Burkert considera que este trecho seja de Plutarco e não de Temístio, como afirma Stobaeus. Ver

Burkert, Ancient Mystery Cults, p. 162, n. 11. 38 Citado em Farnell, The Cults ofthe Greek States, III, p. 179. 39 Sêneca, Epístolas, xc.29, traduzido por C. Densmore Curtis em Hastings, Encyclopaedia of Religion

and Ethics, 7, p. 327. 40 Citado por Eliade, Rites and Symbols of Initiation, p. 111. 41 Id., ibid., p. 112-113. 42 Gorman, Pythagoras, p. 48-49. 43 Kingsley, In the Dark Places of Wisdom, p. 198. Ver, ainda, Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery

and Magic, p. 340-341. 44 Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery and Magic, p. 341. 45 Entrevista com Peter Kingsley, Piloting the Ship of Life, Freemasonry Today, primavera de 2004

(número 28), p. 24. 46 Poema de Parmênides traduzido por Kingsley, Reality, p. 26. 47 Zuntz, Persepbone, p. 370-376; Kingsley, From Pythagoras to the Turba philosophorum: Egypt and

Pythagorean tradition, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 57, 1994, p. 3-4. 48 Cole, New Evidence for the Mysteries of Dionysos, Greek, Roman and Byzantine Studies, 21, 1980,

p. 233-234. 49 Guthrie, Orpheus and Greek Religion, p. 173. 50 prof. dr. Walter Burkert, comunicação pessoal, em maio de 2005. Burkert explica que se trata de um

texto difícil, passível de duas interpretações. A outra é: "E esperas sob a terra as celebrações, que

também outros abençoados [estão realizando]." 51 Aristófanes, As rãs. 52 Kingsley, In the Dark Places of Wisdom, p. 78-79. 51 Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery and Magic, p. 284. 54 Kingsley, In the Dark Places of Wisdom, p. 83. 55 Id., ibid., p. 141. 56 Asclepius, 24, em Hermética, p. 81. 57 Jâmblico, On the Mysteries of the Egyptians, VIII, iv (p. 138-139). 58 Iverson, Egyptian and Hermetic Doctrine, p. 43. Iverson também esclarece: "Assim consideradas,

como reflexo das correspondentes divergências na cos-mologia egípcia, as aparentes incoerências no

conceito hermético de criador e demiurgo encontram uma explicação natural, que ao mesmo tempo

lançará uma luz inesperada sobre o problema da relação mútua das duas tradições e a dependência do

corpus [isto é, os textos herméticos] sobre fontes egípcias." (p. 40) 59 Kingsley, Poimandres: the etymology of the name and the origins of the Hermética, Journal of the

Warburg and Courtauld Institutes, 56, 1993, p. 5. 60 Iverson, Egyptian and Hermetic Doctrine, p. 30.

61 Id., ibid., p. 37-38, referindo-se em especial ao Asclepius hermético 38, em Hermética, p. 90. 62 Iverson, Egyptian and Hermetic Doctrine, p. 41. 63 Ver nota 48. 64 Iverson, Egyptian and Hermetic Doctrine, p. 35-36, sobre como a explicação do conceito egípcio do

"sopro de vida" pode ser estendida por meio dos textos herméticos. 65 Clemente de Alexandria, The Miscellanies, VI, vi (p. 324). 66 Jâmblico, On the Mysteries of the Egyptians, 1,1 (p. 21).

CCAAPPÍÍTTUULLOO XXII

VVIIVVEENNCCIIAANNDDOO AA FFOONNTTEE

ADORO VISITAR LOCAIS SAGRADOS e senti-los, buscar entendê-los.

Constantemente me surpreendo — mesmo depois de todos esses anos —

com lugares que eu não suspeitava fossem capazes de me despertar grande

emoção e que se revelam plenos de uma paz e tranqüilidade da mais sagrada

natureza: o cume do monte Sinai; um certo relicário católico romano

preciosamente repousando em sua capela sombria; igrejas e templos em

ruínas; um conjunto de rochas desgastadas sobressaindo numa paisagem

que testemunhou, com inusitada freqüência, a maré de sangue fluir e refluir

em suas praias e cujo solo, sombriamente fértil, ainda nos dá suas

cerâmicas quebradas.

Serão intrinsecamente sagrados esses lugares, ou somos nós que

os tornamos assim? Talvez as duas coisas. Os lugares sagrados exigem

participação do visitante, sua aceitação de um relacionamento com eles,

uma vivência. E é essa a diferença entre um peregrino e um turista.

Nenhum indivíduo, nenhuma civilização ou cultura possui o

monopólio da verdade. Por esse motivo, não devemos cometer o erro de

pensar que as técnicas para entrar no Além-Mundo eram conhecidas apenas

dos egípcios e dos gregos. As portas para o Além-Mundo sempre estiveram

abertas para aqueles em que o fastio do mundo despertou o desejo de cruzar

o abismo.

E havia outros enfastiados do mundo além dos que acorreram ao

rio Jordão para serem batizados por João Batista, um evento ímpar que até

mesmo os editores católicos da Bíblia de Jerusalém encaram como uma

iniciação.1 Acaso seria esse o verdadeiro significado da afirmação de João

Batista "o Reino dos Céus está próximo"2?

Embora seja evidente que Jesus adquiriu seus conhecimentos

entre os grupos místicos judaicos no Egito, os ensinamentos e técnicas

disponíveis por lá há muito estavam imbuídos do misticismo de várias

tradições anteriores. Um claro exemplo pode ser encontrado na história da

escada de Jacó, no Antigo Testamento.

Jacó parte de Bersabéia a caminho de Harã. Ao pôr-do-sol,

interrompe a viagem para dormir. Pega algumas pedras do lugar e as utiliza

como travesseiro. Então tem um sonho: vê uma grande escada, com a

extremidade inferior enfiada na terra e o topo chegando ao céu. Jacó percebe

que "anjos de Deus subiam e desciam por ela" e enxerga, lá no alto, Deus,

que lhe promete e a seus descendentes a terra sobre a qual ele dorme. Então

Jacó acorda e, percebendo que se encontra em um lugar sagrado, diz: [este

lugar] "não é nada menos que a casa de Deus e a porta do céu!". Bem

cedinho ele se levanta, pega as pedras que lhe serviram de travesseiro e as

arruma qual uma esteia, derramando óleo sobre seu topo. Ao lugar, Jacó dá

o nome de Betei, "a casa de Deus"3.

Naturalmente relatos desse tipo do Antigo Testamento não são

fatos históricos, mas "contos heróicos", que ficaram sujeitos a maior ou

menor grau de revisão mitológica — como o de Gilgamesh, rei de Uruk — já

visto por nós —, que faz a passagem para o mundo dos mortos.

O que importa não é a precisão histórica desses relatos, mas o que

elas podem nos dizer a respeito das principais preocupações e crenças das

culturas que as produziram. Não faz diferença se Gilgamesh existiu

realmente, mas a crença do povo da sua época na possibilidade de viajar

para o Além-Mundo a fim de adquirir conhecimento sobre a existência

humana. Entender a nossa história não é simplesmente uma questão de

coletar e cotejar fatos; precisamos igualmente entender as crenças que

motivavam nossos ancestrais, pois essas crenças quase sempre são as

criadoras dos acontecimentos históricos que estão registrados.

Nessa história sobre Jacó, é bem possível que a verdadeira

localização de Betel esteja entre as pedras sagradas de algum santuário

cananeu nas colinas — tais santuários eram tradicionalmente erguidos em

"lugares altos". Esse seria um local ideal para ter um sonho profético na

tradição da incubação. O fato de Jacó, conforme se registra, erguer depois

uma esteia e ungi-la sugere que um santuário, "uma morada de Deus", já

existia ali. Embora seja minimizado no texto, é evidente que, de alguma

forma, Jacó sentiu nitidamente que as pedras contribuíram para que ele

tivesse a visão e que elas eram dotadas de algum tipo de natureza mágica. É

claro que a história foi escrita para um público que entenderia de imediato

as implicações da ação do personagem. Afinal, os antigos israelitas não

desconheciam a religião cananéia. Nós, modernos, é que não pegamos o

espírito da coisa.

O "sonho" de Jacó, dado importante, é mais bem compreendido

como uma visão, visão essa que nos ensina vários aspectos relevantes.

Talvez a lição mais crucial resida no relato de anjos "subindo e descendo".

Trata-se claramente de uma demonstração simbólica de que o vínculo entre

o céu e a terra é dinâmico, que a natureza divina flui e reflui

constantemente. Isso expressa a mesma idéia que já vimos no Egito: a de

que o Além-Mundo e o mundo terreno estão intimamente — e de forma

dinâmica — interligados. Fornece provas — caso precisemos — de que a

visão de Jacó se originou de uma tradição viva da qual esse relato do Antigo

Testamento não é senão um fragmento, um vislumbre da rica paisagem da

Terra Prometida.

Podemos ter certeza de que por baixo da aparente obsessão do

Antigo Testamento com a descendência familiar, o adultério, o pecado, a

violência e o número de mortos em obscuras batalhas, existem

ensinamentos antigos relacionados ao vínculo entre o mundo terreno e o

divino. Nessa tradição, porém — conforme a embalagem que lhe foi dada

pelos antigos escribas anônimos —, o vínculo entre os dois mundos revela-se

rompido: seres angelicais com espadas de fogo bloqueiam a entrada do

Jardim do Éden; Jacó não é estimulado a subir a escada para o céu. Os

administradores religiosos, ao que tudo indica, se apoderaram da tradição e

limitaram sua mensagem sobre o caminho para o Além-Mundo, como fariam

mais tarde os homens fortes do Vaticano com relação aos ensinamentos de

Jesus.

Como vemos, a verdadeira compreensão do Antigo Testamento não

se restringe a uma questão de escavar o solo para encontrar provas físicas

de acontecimentos, como tantos arqueólogos têm feito ao longo dos últimos

dois séculos, mas, sim, de ler tais histórias simbolicamente — que é o que o

grupo judaico egípcio, os terapeutae, sem dúvida fazia. Filo relata que eles

lêem as Sagradas Escrituras e buscam, a sabedoria de sua filosofia

ancestral encarando-as como alegoria, já que consideram que as

palavras do texto literal simbolizam algo cuja genuína natureza vem

à tona por meio do estudo de seu significado subjacente.4

A escada de Jacó apoiada em solo sagrado simboliza também outro

conceito que já vimos: a noção de que existem locais específicos onde o

Além-Mundo e o mundo terreno se unem — lugares que servem de conduto

perfeito entre ambos.

É realmente uma pena que o Antigo Testamento não retrate Jacó

subindo a escada, passando deste mundo para o outro de modo a retornar

com o que aprendeu. Caso o fizesse, a história do Oriente Médio talvez

tivesse evoluído de uma maneira bem diversa, dado o profundo efeito dessas

narrativas sobre a região e seu povo ao longo dos últimos dois milênios e

meio.

Para analisar melhor as tradições anteriores que deixaram sua

marca mística no judaísmo, precisamos examinar duas das maiores

influências sobre o seu desenvolvimento. A primeira diáspora do Egito,

conforme expressam as histórias de José e Moisés, bem como das centenas

de anos durante os quais soldados, comerciantes, agricultores e

administradores judeus ali residiram. A segunda vem da Mesopotâmia, em

conseqüência do "exílio babilônico" do século VI a.C, quando o rei da

Babilônia, Nabu-kudurri-usur — conhecido como Nabucodonosor — cercou e

tomou Jerusalém em 587 a.C, deportando o rei judeu juntamente com

milhares de cidadãos, enquanto muitos outros fugiram para o Egito.

Podemos ver, por exemplo, o rito babilônico do batismo como

origem da prática judaica de purificação antes dos rituais, com o objetivo de

separar o indivíduo do mundo terreno e ao mesmo tempo estabelecer uma

relação pura com o mundo divino.5 O calendário judaico também deriva de

um sistema usado pelos babilônios posteriores. Até mesmo os tradicionais

potes mágicos dos rabis judeus tinham origem babilônica. O Talmude

babilônico igualmente possui informações médicas do folclore babilônico, e

descobriu-se que textos astrológicos babilônicos também foram utilizados

por grupos judaicos.6 Até mesmo a crença em um único deus, carreada para

o cristianismo e o islamismo, já foi considerada por alguns acadêmicos como

derivada da antiga Mesopotâmia: o nome do deus dos assírios, Assur,

significa "o Único", o "Uno", o "Deus Universal".7

A influência mesopotâmica também pode ser vista em algumas das

imagens místicas que encontramos nos livros dos profetas, principalmente

no de Ezequiel. No início de seu relato, Ezequiel descreve uma visão de Deus,

afirmando ter visto o Divino em forma humana sentado em um trono de

safira sob uma luz âmbar.8 Com efeito, o trono não era de safira — houve

um erro de tradução —, mas de lápis-lazúli, pedra de grande valor para os

babilônios.9 O dado importante, porém, é que se trata de uma imagem muito

particular que parece saída de uma tradição existente.

Ezequiel viveu na Babilônia e teve essa visão em 593 a.C, à beira

do Grande Canal, que liga o rio Tigre ao Eufrates, bem próximo à Babilônia.

Fica claro que a visão de Ezequiel, conforme registrada, deriva de um antigo

texto babilônico que descrevia o grande deus Marduk sentado em um trono

de lápis-lazúli iluminado por uma luz ambarina cintilante.10 Isso é relevante,

pois revela que Ezequiel talvez estivesse envolvido com mistérios esotéricos

na Babilônia na condição de iniciado. Sabemos disso porque o texto

babilônico termina com o severo alerta: "Segredo dos grandes deuses: que

deixe que o iniciado revele ao iniciado, mas não que o não-iniciado o veja."11

Esse texto não apenas indica uma ligação entre os sacerdócios

babilônico e judaico, mas também que tais vínculos eram mais estreitos e

profundos do que se supunha anteriormente.12 Ao que parece, os sacerdotes

judeus podiam ser iniciados nos mais profundos segredos do culto

babilônico.

Kingsley explica que "na tradição rabínica do judaísmo, os detalhes

centrais da visão de Ezequiel permanecem tão esotéricos, tão

cuidadosamente guardados como segredo, quanto o haviam sido na tradição

sacerdotal babilônica que precedeu o profeta". Em outras palavras, não se

trata de um mero empréstimo de simbolismos ou conceitos entre as duas

culturas, mas de uma ligação ativa "entre o núcleo de uma tradição e o

núcleo de outra". Daí se pode ver que "Ezequiel se acha próximo de uma das

nascentes do misticismo judaico. Ao mesmo tempo, também ocupa um lugar

junto ao canal mais amplo de doutrina mística e cosmológica que remonta a

muitos séculos antes dele"13.

A influência mesopotâmica também pode ser detectada na origem

da Árvore da Vida, hoje a espinha dorsal da prática mística judaica

conhecida como Cabala. O grande acadêmico finlandês, professor Simo

Parpola, que tanto contribuiu para a tradução dos textos esotéricos dos

impérios assírio e babilônico, ficou intrigado com um aspecto desconcertante

das imagens entalhadas descobertas em antigos palácios assírios e

babilônicos: as centenas de representações de uma misteriosa árvore

sagrada cuidada por sacerdotes curiosamente paramentados, alguns usando

peles de peixes, outros com asas, outros ainda com a cabeça de uma águia,

porém todos portando um balde d'água numa das mãos e uma pinha na

outra. Essas imagens jamais foram discutidas nos tabletes de argila onde

eram registrados os escritos antigos, e por esse motivo permaneceram por

longo tempo um enigma.

Parpola observa que era proibido registrar por escrito as doutrinas

internas da árvore sagrada, preservadas por um pequeno e seleto grupo de

iniciados. Com efeito, os arqueólogos há anos têm conhecimento da

existência de uma vasta série de ensinamentos secretos nos impérios

mesopotâmicos, ao menos desde passado tão remoto quanto o segundo

milênio a.C.14 No entanto, Parpola acredita que os ensinamentos secretos

são muito mais antigos que isso. Em sua opinião, os que dizem respeito à

árvore sagrada, por exemplo, podem muito bem datar do terceiro milênio

a.C, "ou mesmo de antes", acrescenta ele provocativamente, embora usando

as letrinhas miúdas de uma nota de pé de página.15

Tal especulação levanta a hipótese de que estejamos diante de um

material que pode perfeitamente ser anterior à invenção da escrita e fazer

parte, talvez, dos ensinamentos orais secretos dos primeiros humanos

durante milênios. É difícil não associar a sagrada Árvore da Vida à mais

remota mitologia da cultura, ou seja, à "Árvore da Sabedoria do Bem e do

Mal", localizada no Jardim do Éden. A conclusão implícita na história é a de

que uma compreensão da árvore sagrada é tão antiga quanto os próprios

humanos.

Nesse momento, estamos nos aproximando das crenças que

permeavam as culturas antigas que já mencionamos, as que foram

expressas pela primeira vez nos enterros ritualizados. Acho desaconselhável

ignorar a possibilidade de que nos ensinamentos da árvore sagrada

tenhamos alguns resíduos — por mais disfarçados que se encontrem — do

conhecimento que possuíam aqueles neandertais que se reuniram à volta da

sepultura de um dos seus, há mais de sessenta mil anos, numa caverna em

Shanidar, bem ao nordeste das terras que viriam depois a fazer parte do

império mesopotâmico.

A interpretação básica do símbolo da árvore é que ele retrata "a

ordem do mundo divino mantida pelo rei assírio", ordem essa em que o

próprio rei ocuparia um lugar como o "Homem Perfeito"16. Uma comparação

do simbolismo da imagem e dos números da árvore sagrada assíria e o da

Árvore da Vida da Cabala revela semelhanças extraordinárias. Parpola

conclui que a árvore cabalística com certeza se baseia na original assíria.17

A árvore na Cabala simboliza a maneira como a Divindade Única se

manifesta em toda a multiplicidade da criação. O poder criador é visualizado

como um facho de luz divino que emerge do Não-Manifestado e, caindo qual

um raio sobre a terra, dá vida a todas as formas. A árvore é feita de dez

séfiras — Sefirot —, símbolos dos princípios divinos emanados. Ela possui

três pilares formados pelo tronco central e o alinhamento vertical de séfiras

de cada um dos lados; os dois pilares laterais representam os opostos

encontrados no mundo terreno, como a inflexibilidade e a misericórdia, a

disciplina e a tolerância, a teoria e a prática, o feminino e o masculino; o

tronco central prove um equilíbrio entre eles, como indicam os seus nomes

— o pilar da santidade, o Caminho do Conhecimento.18

A árvore também simboliza um meio através do qual os humanos

podem voltar do mundo terreno ao mundo do divino — ela fornece o mapa e

o método de um "Caminho" espiritual. Nesse aspecto, funciona como uma

imagem similar à da escada de Jacó.

Não se esgotam aí os exemplos da influência de tradição mística

anterior sobre o judaísmo: em 1768, o explorador escocês James Bruce

subiu o Nilo numa tentativa de achar sua nascente. A viagem foi difícil,

viabilizada apenas devido ao seu talento para produzir ouro quando

necessário e para manejar seus bacamartes e pistolas. Viajar era uma

empreitada perigosa, mesmo descontando as doenças que com freqüência

decorriam da má qualidade da água e da comida estragada. Após dois anos,

ele chegou à Etiópia, tomada por uma guerra civil. Bruce sobreviveu e

retornou à Europa levando alguns tesouros, entre eles três exemplares da

edição etíope de um antigo texto judaico chamado O Livro de Enoque.

Esse texto fora aceito pelos padres da Igreja dos séculos II e III,

como Clemente de Alexandria e Tertuliano. Mesmo então, contudo, sua

inclusão na lista oficial de textos sagrados judaicos não foi tranqüila;

Tertuliano mencionou que alguns rabis não o aceitariam.19 No entanto, os

cristãos naquela época não tinham grandes receios. Consideraram o texto

canônico, já que partes dele podiam ser interpretadas como prenunciadoras

da vinda de Jesus e que era mencionado no Novo Testamento na "Epístola de

São Judas"20. Em seguida ao Concilio de Nicéia, porém, em 325 d.C, o Livro

de Enoque foi marginalizado e acabou banido pelos teólogos do final do

século IV e início do século V, como Jerônimo e Agostinho.

Embora o Livro de Enoque seja apresentado como uma composição

única, fica logo evidente que não foi escrito por um só autor. Trata-se, na

verdade, de uma mistura de textos de vários escritores reunidos sob o nome

de Enoque. A despeito de sua incoerência interna, contudo, é uma obra

extraordinária.

O livro utiliza vários temas que agora já nos são familiares: Enoque

tem um sonho visionário; pede uma explicação da Árvore da Vida; menciona

três portais orientais, por onde passam as estrelas no horizonte oriental, em

conformidade com os astrolábios babilônios e assírios, que datam de 1100

a.C, aproximadamente; e também retrata o balanço das ações humanas, à

semelhança do conceito egípcio do julgamento na outra vida.21

Pisamos novamente em terreno familiar: temos questões esotéricas

ensinadas a um crente por meio de visões em sonho do Além-Mundo e em

um contexto judaico. Como vimos, essas visões em sonhos fazem, parte de

uma iniciação, e o sonhador vai para um local escuro e silencioso, como uma

caverna ou a cripta de um templo, e utiliza as técnicas que lhe foram

ensinadas para entrar na quietude a partir da qual o Além-Mundo se torna

acessível. Assim, esperamos encontrar em algum lugar do Livro de Enoque

uma referência ao experiencial, ao iniciático. Não nos desapontamos.

"E aconteceu", explica o texto, "que o meu espírito foi trasladado e

ascendeu aos céus: e eu vi os santos filhos de Deus"22. Este relato tem toda

a aparência de transmitir algo que o autor realmente viveu — uma

experiência mística que poderia ser induzida por quem buscasse a iniciação

na tradição esotérica do judaísmo.

Enoque foi levado ao céu "dentre aqueles que vivem na terra... foi

elevado às alturas nas carruagens do espírito"23. Essa imagem soa como o

equivalente judaico da alada ba egípcia, mas não há dúvida de que o

acontecimento diz respeito a uma iniciação, já que o texto explica o que

aconteceu a Enoque depois de ter sido elevado ao céu, mas antes que seu

espírito se transfigurasse:

E o anjo Miguel pegou minha mão direita, me alçou e introduziu

em todos os segredos e me mostrou todos os segredos da virtude.

E me mostrou todos os segredos dos confins do céu.14

O autor anônimo antigo prossegue, descrevendo o que veio a

seguir: "E desabei no chão", conta ele, "e todo o meu corpo se relaxou e meu

espírito se transfigurou"25.

Esse é precisamente o tipo de experiência que esperaríamos

encontrar entre os terapeutae, por exemplo. E o mais importante, caso nos

tenha escapado, é que o texto faz questão de explicar que essa ascensão aos

céus ocorreu quando Enoque ainda vivia — como diz o texto, "durante a sua

vida". Essa explicação é praticamente idêntica à contida nos Textos das

pirâmides egípcios de que o rei "não partiu morto", e, sim, que "partiu vivo"26.

É difícil acreditar que as duas assertivas não estejam descrevendo uma

experiência essencialmente similar, experiência essa oriunda de uma

iniciação nos mistérios do Além-Mundo.

Esses textos visionários não podem ser outra coisa senão registros

de iniciações — registros reunidos sob o nome de Enoque, à maneira como

no Egito aqueles atribuídos a Hermes Trismegisto foram reunidos nos Livros

de Hermes.

Devido a natureza visionária deste texto, é curioso, à primeira vista,

descobrir que sete seções do Livro de Enoque fazem parte dos

manuscritos do mar Morto.27 Todos foram achados em 1952, na

caverna de Qumran, na superfície margosa do rochedo próximo às

ruínas da comunidade, hoje chamada Caverna 4. Diante disso,

parece que o Livro de Enoque era conhecido tanto do grupo zelote

que produziu os manuscritos do mar Morto, e que representava

parcela tão importante do meio político de Jesus, quanto do grupo

judaico messiânico que deu origem ao cristianismo. Uma análise do

mesmo, porém, revela um fato interessante.

O Livro de Enoque, como dissemos, é uma compilação de textos de

diferentes autores. Com efeito, os especialistas separaram o texto em cinco

seções, cada qual independente e distinta das outras.28 A seção que contém

o relato da ascensão e transfiguração místicas é a segunda, também

conhecida como "as Parábolas". Essa seção mística, iniciática, se encontra

totalmente ausente dos textos encontrados em Qumran.

Os manuscritos do mar Morto contêm fragmentos, escritos em

aramaico, apenas das seções um, quatro e cinco do Livro de Enoque. Não só

falta a seção mística, como também a que a sucede, que fala de questões

astronômicas e do calendário — principalmente, a seção que fornece a base

para o calendário solar, que, não esqueçamos, sem dúvida era usado no

Templo judaico de Onias, no delta egípcio.

Podemos ver aqui o mesmo choque de tradições que encontramos

na história de Jesus quando ele rejeita a posição zelote em relação ao

pagamento de impostos ao imperador. Jesus adotou uma postura mística; os

zelotes adotaram a postura terrena. O Livro de Enoque zelote nitidamente

rejeita essa postura mística, o que fortalece os indícios de que — como

dissemos antes —Jesus não pode ter adquirido seus conhecimentos entre os

zelotes da Galiléia.

Textos místicos como o Livro de Enoque, textos que deviam ser

muito caros aos terapeutae, também o seriam àqueles com quem Jesus

aprendeu. Com o Livro de Enoque finalmente temos um texto que parece

diretamente saído do ambiente judaico em que Jesus foi criado e de um

grupo envolvido com a iniciação nos ensinamentos secretos, com uma

ascensão ao céu e com uma experiência da Luz Divina. Sobre isso não pode

haver dúvida, pois, de acordo com o Livro: "uma luz brilhante tornar-vos-á

esclarecido."29

Já viajamos o bastante; embora não tenhamos coletado tudo,

coletamos o que é possível levar conosco.

É hora de voltar à Judéia e ao Egito. E ao homem de quem nos

lembramos como Jesus, o meshiha — o Cristo.

NOTAS

1 Bíblia de Jerusalém, O Novo Testamento, p. 1707, nota 'a', 3a impressão, 2004. 2 Evangelho de Mateus 3,2; Bíblia de Jerusalém. 3 Gênesis 28,10-19. 4 Filo, On the Contemplative Life, 28 (p. 129). 5 Caplice, The Akkadian Namburbu texts: an introduction, p. 10. 6 Parpola, The Assyrian Tree of Life: tracing the origins of Jewish Monotheism and Greek Philosophy,

Journal of Near Eastern Studies, 52, 1993, p. 174, n. 64. 7 Id., ibid., p. 185 e 206. Ver, ainda, p. 190, n. 107, onde Parpola escreve: "...não há nada de ímpar no

monoteísmo judaico a distingui-lo de seu predecessor assírio... O mesmo se aplica ao cristianismo com

suas doutrinas da Trindade... tudo isso deriva da religião e da filosofia assíria." 8 Ezequiel 1,26-27. 9 Kingsley, Ezequiel by the Grand Canal: between Jewish and Babylonian Tradition, Journal of the

Royal Asiatic Society, 3rd Ser. 2, 1992, p. 339. 10 Id., ibid., 1992, p. 342. 11 Id., ibid., 1992, p. 341, citado a partir de VAT 8917 (Vorderasiatisches Museum), Berlim. 12 Id., ibid., 1992, p. 345. 13 Id., ibid., 1992, p. 345. 14 Parpola, The Assyrian Tree of Life: tracing the origins of Jewish Monotheism and Greek

Philosophy, Journal of Near Eastern Studies, 52, 1993, p. 169. 15 Id., ibid., 1993, p. 190, n. 106. 16 Id., ibid., 1993, p. 174, n. 168. 17 Id., ibid., 1993, p. 174, n. 64. 18 Halevi, The Way of the Kabbalah, p. 98 (fig. 16). 19 Tertuliano, On Female Dress, III (vol. I, p. 307). 20 Epístola de São Judas 14. 21 Charles, "The Book of Enoch": visionary dream, 13:8 (p. 196); Tree of Life, 25:1-3 (p. 204); Portais

through which the stars appeared, 36:3 (p. 208). Ver, ainda, Baigent, From the Omens of Babylon, p.

74-75; e Reiner, Enuma Anu Enlil Tablets 50-51, p. 2-3; Actions wheighed, 41:1 (p. 212). 22 Charles, "The Book of Enoch", 71:1 (p. 235). 2i Id., ibid., 70:2 (p. 235). 24 Id., ibid., 71:3-4 (p. 236). 25 Id., ibid., 71:11 (p. 236). 26 Faulkner, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, Utterance 213, p. 40. 27 Textos da Caverna 4: 4Q201, 4Q202, 4Q204, 4Q205, 4Q206, 4Q207, 4Q212. Ver Garcia Martínez,

The Dead Sea Scrolls Translated, p. 246-259. 28 Charles, "The Book of Enoch", p. 168-169. 29 Id., ibid., 96:3 (p. 267).

CCAAPPÍÍTTUULLOO XXII II

OO RREEIINNOO DDOOSS CCÉÉUUSS

SEMPRE HOUVE SEGREDOS NO JUDAÍSMO e no cristianismo que dele

derivou; segredos sugeridos — às vezes até explicitamente mencionados —,

mas jamais registrados por escrito nas memórias e epístolas que vieram a

constituir o texto do Novo Testamento cristão de hoje. Esses segredos eram

passados através da tradição oral. Os primeiros padres da Igreja conheciam

bem esses ensinamentos clandestinos: ainda que não tivessem contato

direto com os mesmos, reconheceram sua existência nos Evangelhos.

No Sabbath que precedeu a execução de João Batista, Jesus estava

pregando às margens do mar da Galiléia: tamanha era a multidão que

acorrera para ouvi-lo, que foi preciso que ele se sentasse em um barco e

falasse dali. Dirigiu-se aos que o escutavam por meio de parábolas —

histórias simples que proviam inspiração sobre o estilo de vida que ele

queria incutir na platéia. Mais tarde, quando ficou sozinho com seus

discípulos, estes lhe perguntaram por que ele sempre se expressava assim. A

explicação foi surpreendente: as parábolas se destinam às massas,

respondeu Jesus de forma direta, mas para os discípulos, acrescentou,

reservara uma verdade mais profunda. "Porque a vós foi dado conhecer os

mistérios do Reino dos Céus..."1

Podemos deduzir da singela resposta de Jesus que havia dois

níveis de expressão: os segredos restritos, partilhados com seu círculo

próximo, e os ensinamentos públicos, passados à platéia. Esses

ensinamentos restritos diziam respeito ao "mistério do reino dos céus".

O Evangelho de Marcos reproduz a mesma conversa, empregando

uma terminologia levemente diversa ao falar do "reino de Deus". Lucas faz o

mesmo, bem como João, que utiliza essa expressão em um outro contexto. O

conceito do "reino" também é encontrado em alguns outros textos que jamais

chegaram ao Novo Testamento, como o Evangelho de Tome. Ao longo dos

mesmos podemos observar sutis diferenças no enunciado — "o reino", "o

reino dos céus", "o reino de Deus", "o reino do Pai", mas não há dúvida de

que todos esses termos significam a mesma coisa.

O que, exatamente, seria esse reino dos céus?

O Novo Testamento, salvo por afirmar que tal reino tem a ver com

algo secreto não divulgado ao público, pouco explica; não fornece qualquer

pista sobre como alcançar esse reino ou como saber que ele virá. Com efeito,

a impressão que nos dão os cronistas é de que se trata de algum tipo de

reino futuro ideal, que, com o retorno do messias, trará o céu para a terra,

como uma espécie de Reich milenar messiânico. Mas antes disso há a

questão problemática do Armagedon — ao menos segundo o Livro do

Apocalipse —, uni texto dos mais complicados.

No entanto, existem no Novo Testamento sugestões que nós,

familiarizados agora com o funcionamento das tradições egípcias e gregas do

Mistério, somos capazes de reconhecer como temas com os quais já nos

deparamos antes.

Não apenas o caminho para o reino dos céus será revelado apenas

aos iniciados, mas parece haver uma sensação de que, uma vez descoberto,

esse "reino" está sempre presente. Não se trata de algo que precisemos

aguardar ansiosos em um futuro indefinido, mas, sim, de alguma coisa que

mais se assemelha ao que os egípcios chamavam de djet— o tempo que

significa estar fora do tempo. Além disso, há uma garantia de imanência; já

mencionamos a afirmação de João Batista de que "o reino de Deus está

próximo"2. É possível interpretá-la como a previsão de que ele está

imediatamente acessível — não marcado para chegar daqui a um mês, um

ano ou uma década nem para ser inaugurado com o início da pregação de

Jesus em Israel, interpretação essa das palavras de João Batista que é a

mais usual. Ao contrário, esse reino já está ao alcance daqueles que

conhecem o caminho.

Ademais, é preciso coragem: o acesso ao reino dos céus exige uma

disposição genuína, nervos de aço e entrega absoluta. "Quem põe a mão no

arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus", disse Jesus.3

Ele. também demonstrou pouca paciência com os que professavam

a espiritualidade sem, porém, permitir que as portas do céu se abrissem

para os que o desejassem; Jesus reclamou dos "escribas e fariseus", aos

quais se dirigiu nestas palavras: "...hipócritas, porque bloqueais o Reino dos

Céus diante dos homens! Pois vós mesmos não entrais, nem deixais entrar

os que o querem."4

Essa não é a descrição de uma missão de pregação na Judéia ou

mesmo de um reinado milenar futuro. Jesus quer deixar claro que o reino

dos céus é um lugar para onde podemos viajar, um lugar em que podemos

entrar.

A história começa a soar familiar.

Lucas acrescenta um pouco mais: os fariseus indagam a Jesus

quando virá o reino de Deus, evidentemente desejosos de vê-lo tomar forma

na terra, mais ou menos como o Estado autogovernado que os zelotes

tinham em mente ao providenciar para que Jesus fosse sumo sacerdote e rei,

governando uma Judéia independente, papel que ele rejeitou de forma

radical ao mostrar a moeda com a imagem do imperador e dizer que os

impostos deviam ser pagos. De uma forma igualmente direta, que também

deve ter chocado aqueles fariseus, que aparentemente haviam perguntado

mais por sarcasmo do que por interesse genuíno, Jesus respondeu: "A vinda

do Reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: 'Ei-lo aqui! Ei-lo

ali!', pois eis que o reino de Deus está no meio de vós."5

Não podemos ver esse reino — não podemos encontrá-lo por meio

da razão e da observação física. No entanto, Jesus já afirmou que ele é

acessível, que é possível viajar para lá. Aqui, ele nos diz que o reino se

encontra "no meio de nós". E como viajar para dentro de nós mesmos? Isso

sabemos: penetrando no silêncio. Jesus nos devolveu o conceito de

incubação, bem como as criptas e cavernas escuras, silenciosas e

subterrâneas, onde o crente pode ser iniciado no mundo onde vivem os

mortos — o Além-Mundo.

Será que "reino dos céus" é o nome dado por Jesus ao Além-

Mundo? Parece bastante provável. Mas devemos examinar mais dados.

Em janeiro de 1941, enquanto as cidades inglesas eram

bombardeadas pela Luftwaffe, as aparências indicavam que Hitler ia ganhar

a Segunda Guerra (ele ainda não invadira a Rússia) e os Estados Unidos

continuavam oficialmente neutros (ainda faltavam 11 meses para Pearl

Harbour), um jovem doutorando americano chamado Morton Smith

estudava em Jerusalém.6

Smith morava em um albergue grego próximo à igreja do Santo

Sepulcro, na Velha Jerusalém. No albergue também residia uma das

principais autoridades da Igreja Ortodoxa Grega em Israel, o padre Kyriakos

Spyridonides. Os dois ficaram amigos. Depois do Natal, o padre Kyriakos

convidou Smith para passar com ele alguns dias no mosteiro de Mar Sabá,

situado num lugar deserto e um dos mais antigos ainda em atividade. Com

suas torres e espessas paredes incrustadas em um uádi ligando Jerusalém

ao mar Morto, Mar Sabá existia há quase 1.500 anos.

Os serviços religiosos ortodoxos gregos tinham início seis horas

antes da aurora, e Smith achou-os fascinantes, embora difíceis: "Não eram

longos, eram eternos."7 Os rituais louvavam o Divino de uma forma

semelhante à dos cultos diários no Santo dos Santos dos templos egípcios.

Para Smith foi uma completa revelação:

O culto não caminhava para o fim, apenas se estendia, como se

iniciado na eternidade fosse durar para sempre. Conforme nos

apartamos do tempo, também nos apartamos de um espaço

definido.8

Quando Smith levantou os olhos para o teto, as pequeninas velas

lá em cima lhe pareceram estrelas, enquanto as formidáveis paredes da

igreja pareciam ter retrocedido na distância remota, e os afrescos de santos e

monges lhe deram a impressão de estar "presentes naquele reino entre as

estrelas, acima do espaço e do tempo, o imutável reino dos céus, onde se

presta culto eterno ao Deus eterno"9.

Smith, é óbvio, ficou profundamente tocado pela experiência em

Mar Sabá, mas, embora participasse da liturgia, percebeu que aquilo não era

para ele; o culto o emocionou pela sua rara beleza, enquanto para os monges

representava em primeiro lugar, e acima de tudo, um dever espiritual. A

liturgia envolvia palavras específicas e ações específicas; tratava-se,

percebeu Smith, de um ritual essencialmente mágico. Essa percepção iria

levá-lo a investigar as técnicas mágicas e místicas empregadas pelo judaísmo

e pelo cristianismo dos primórdios.

Smith deixou o mosteiro ao final de seis semanas, mas antes de

partir encontrou tempo para examinar as cavernas que constituíram o

primeiro abrigo para os monges que ali viveram 1.500 anos antes e que,

posteriormente, acabaram incorporadas ao mosteiro. A primeira igreja ficava

na maior de todas as cavernas. Ele viu, ainda, vários ícones, embora um

grande incêndio no século XVIII tivesse destruído os melhores. Nesse

incêndio também desapareceram ou foram seriamente danificados muitos

manuscritos antigos: a Biblioteca do Patriarcado, em Jerusalém, recebeu

para guarda a maioria dos que restaram. A despeito dessa providência, um

bom número de livros ainda podia ser visto em duas bibliotecas: a principal

na igreja nova, e uma menor instalada numa sala dentro da enorme torre,

onde um amontoado de livros descansava em prateleiras empoeiradas. Essa

biblioteca viria a ser o local de uma descoberta relevante, que, podemos dizer

sem hesitar, dominou mais tarde a vida de Smith.

Smith completou sua tese de doutorado em Jerusalém e voltou

para Harvard, onde, estudioso que era, deu início a um segundo doutorado.

Manteve contato com o padre Kyriakos, terminou seu doutorado e começou

uma brilhante carreira de professor e pesquisador de religião na

Universidade de Columbia, em Nova York. Em 1958, precisando de umas

férias, resolveu voltar à paz e ao silêncio de Mar Sabá. Decidiu se ocupar

catalogando todos os velhos manuscritos e livros jogados ao acaso em

estantes ou empilhados no chão da biblioteca da torre.

Toda manhã, ao nascer do dia, ele subia os 12 ou mais lances de

escada que levavam ao local e lá recolhia um punhado de livros ou

manuscritos que levava para examinar e catalogar em sua cela monástica.

Descobriu que muitos livros também continham longas passagens

manuscritas, cópias de textos anteriores, espremidas em qualquer espaço

disponível, e páginas em branco; algumas vezes até as margens haviam sido

usadas. Esses adendos escritos a mão datavam dos séculos XVIII e XIX e

testemunhavam como era difícil obter papel naquela época. Smith também

descobriu partes de velhos manuscritos que haviam sido usados no processo

de encadernação, um material do interesse de acadêmicos clássicos. No

entanto, entre os livros ê papéis dessa biblioteca poeirenta, um genuíno

tesouro estava prestes a ser descoberto por ele.

Uma tarde, sentado em seu quarto e dedicado à leitura de uma

série de livros que trouxera da biblioteca, Smith encontrou um texto

manuscrito em páginas originalmente em branco de uma edição do século

XVII das cartas de santo Inácio.

Era a cópia de uma carta de Clemente, bispo de Alexandria, do

final do século II. Smith sabia que Clemente escrevera muitas cartas,

embora aparentemente nenhuma tivesse chegado aos nossos dias; sua

descoberta, por isso, era ímpar e importante. Fotografou o texto de modo a

ter algumas cópias para fazer uma tradução e outras para mostrar a

especialistas. Essa tradução revelou-se extraordinária.

Em torno de 195 d.C, Clemente escreveu para Teodoro, um de seus

cônegos, a respeito de um assunto altamente delicado. Tratava-se de um

Evangelho secreto de Marcos: Clemente explicava que um grupo de hereges

dissolutos, os carpocratianos, obtivera os evangelhos secretos por meios

escusos e que o texto não deveria ser considerado exato.

Basicamente, Clemente confirmava a existência desse evangelho

secreto, mas ao mesmo tempo afirmava que nem ele nem Teodoro jamais

poderiam admitir sua divulgação sem atribuir àquela seita herege uma certa

credibilidade.

Clemente estava pedindo a Teodoro que mentisse em prol da

verdade — que negasse até mesmo sob juramento que o evangelho era de

Marcos.

Segundo Clemente, Marcos passara algum tempo em Roma com

Pedro, tendo ali começado a redigir um relato das ações de Jesus que mais

tarde se tornaram o seu Evangelho. Pedro também escrevia a serviço da

posteridade. Após a morte de Pedro, Marcos mudou-se para Alexandria,

levando os seus escritos e os de Pedro com ele. Em Alexandria, escreveu seu

Evangelho, mas omitiu certas histórias, incluindo-as apenas em um

evangelho especial "secreto", que entregou à Igreja de Alexandria, com a

qual, na época de Clemente, o texto ainda continuava cuidadosamente

guardado, "sendo lido somente para os iniciados nos grandes mistérios"10.

Os "grandes mistérios"? No cristianismo? Do que Clemente está

falando?

Clemente decerto tinha conhecimento da iniciação e dos mistérios.

Era versado em filosofia clássica. Seus escritos contêm abundantes citações

de Platão, Parmênides, Empédocles, Heráclito, Pitágoras, Homero e dezenas

de outras figuras notáveis do legado clássico. Com certeza explorara e

analisara criticamente todas as filosofias de seu tempo antes de converter-se

ao cristianismo, no final do século II. Além disso, sabia que os egípcios

escondiam conhecimentos secretos no simbolismo embutido em seus

escritos e imagens, conhecia os textos herméticos, conhecia os significados

místicos representados por números e proporções e, como os místicos

terapeutae do século anterior, conhecia os significados ocultos comunicados

pelas histórias do Antigo Testamento.11 Clemente, podemos ter certeza, nada

tinha de bobo.

Seu emprego dessas palavras ilustra a variedade e complexidade

do mundo cristão em Alexandria. É de supor que ele abrigasse algumas

dessas práticas rituais, e não devemos nos esquecer de que os mestres

gnósticos de épocas anteriores, como Basílides e Valentim, saíram de

Alexandria. O próprio gnosticismo conservou e desenvolveu muitas práticas

das tradições secretas conhecidas do cristianismo dos primórdios.12 O

teólogo Hipólito, do início do século III, preservou um salmo gnóstico que

terminava afirmando que

Os segredos do caminho sagrado Chamado Gnosis passarei

adiante.

Os gnósticos se consideravam os guardiões do verdadeiro

cristianismo: no âmago de seu sistema residia uma iniciação no verdadeiro

conhecimento do Divino.

Clemente refutou exaustivamente os gnósticos, embora nutrisse

certa simpatia por seus ensinamentos. Mistérios e iniciação eram uma

expressiva característica do cristianismo alexandrino de qualquer tendência,

mas em geral esses ensinamentos não passavam para o papel. Em vez disso,

preservava-os por meio da tradição oral. Clemente aborda diretamente o

tema no início de seu livro The Miscellanies [Miscelâneas]: "Mas coisas

secretas são confiadas à linguagem, não à escrita."14

Depois de exortar Teodoro a manter silêncio, Clemente fez uma

notável admissão da existência do evangelho secreto através do fornecimento

de seu texto completo. Existem dois trechos, sendo que o crucial se encaixa

perfeitamente no Evangelho de Marcos, no capítulo 10, entre os versículos

34 e 35. O segundo e menor adendo se encaixa no versículo 46, onde o texto

atual foi mutilado: a questão central do evangelho secreto de Marcos é que

um jovem foi ritualmente iniciado por Jesus no "Reino de Deus"!

Esse incidente ocorreu em Betânia, o mesmo lugar em que "Lázaro

foi ressuscitado". Será que os dois acontecimentos são, na verdade, um só?15

E depois de tudo que vimos até agora, é preciso que nos perguntemos qual o

verdadeiro significado da ressurreição de Lázaro "dos mortos". Será que ele

foi literalmente trazido de volta do mundo dos mortos? Ou terá sido do Além-

Mundo, depois de uma iniciação no escuro e no silêncio — em uma caverna

com a entrada fechada por uma pedra, conforme descreve o Evangelho?16

Estaria ele, como talvez dissesse Jesus, retornando de uma visita ao reino

dos céus?

Terá esse texto alguma relação com outro acontecimento muito

misterioso relatado no Evangelho de Marcos, que soa sempre estranho?

Quando Jesus é preso no Jardim de Getsêmani, após uma rápida briga em

que um dos guardas do sumo sacerdote tem a orelha cortada, os discípulos

fogem. Marcos, então, descreve um jovem que se encaixa na mesma

descrição daquele que no evangelho secreto é iniciado por Jesus. Ninguém

jamais encontrou explicação para tal acontecimento. Parece, contudo,

inconcebível que os dois não estejam de alguma forma relacionados.

Como, porém, observa Smith, "plausibilidade não é prova". Não

obstante, acrescenta ele, "a história... por definição é a busca das

explicações mais prováveis para os fenômenos preservados"17.

Tendo encontrado a carta, Smith precisava primeiro provar que ela

era o que pretendia ser: talvez se tratasse de uma falsificação fabricada por

volta de 1646, ano da publicação da edição das cartas de Inácio em meio às

quais estava inserida. Ou poderia ser uma cópia autêntica de uma carta

anterior, essa, sim, forjada. Poderia ainda ser totalmente autêntica. Ele

precisava descobrir.

Sabia-se que uma coletânea de, no mínimo, 21 cartas escritas por

Clemente de Alexandria ficou guardada no mosteiro de Mar Sabá até o

século XVIII da nossa era, porque três trechos das mesmas foram citados

por João Damasceno enquanto ali residia.18 Essa é a única coleção das

cartas de Clemente de que se tem notícia. Smith considera provável que toda

a coleção tenha sido destruída no incêndio ocorrido no século XVIII, que

tantos danos causou; uma das cartas que sobreviveram foi descoberta

posteriormente e copiada a mão na edição das cartas de Inácio. Isso faria

sentido como uma maneira de registro — copiar uma carta manuscrita

numa edição impressa de cartas.

A primeira coisa que Smith fez foi mostrar as fotos do texto a

renomados especialistas no assunto. Dos 14 que ele contatou, apenas dois

opinaram que a carta poderia não ser de Clemente. Smith resolveu assumir,

como "uma hipótese funcional", que a mesma fosse de fato o que parecia

ser.19 Em seguida, gastou anos em uma análise minuciosa e exaustiva do

estilo da escrita, comparando-a a outros textos de autoria de Clemente e

comparando o trecho secreto do Evangelho com o texto canônico de Marcos.

Ambos os exercícios ampararam a hipótese.

Infelizmente, Smith jamais conseguiu apresentar a cópia

manuscrita da carta de Clemente para que outros especialistas a

estudassem e para que fosse submetida a análises de laboratório, em virtude

do que angariou muitas críticas. Essa omissão foi interpretada como um

excessivo desleixo de um acadêmico habitualmente tão preciso. Infelizmente,

estou cansado de saber que nem todo manuscrito que vemos pode ser mais

tarde resgatado para que especialistas conduzam testes e análises — por

mais que se queira viabilizar tais procedimentos. Isso é ainda mais

verdadeiro quando se trata de manuscritos com valor comercial, os que estão

escondidos ou os considerados demasiado polêmicos ou constrangedores

pelo grupo que os detém.

No entanto, é preciso que se diga que a despeito da incapacidade

de Smith para exibir o texto original, outros acadêmicos o viram. Dois

especialistas da Universidade Hebraica, Guy Stroumsa, professor de religião

comparada, e David Flusser, professor de judaísmo antigo e origens do

cristianismo, puseram os olhos nele. Em 1976, ambos visitaram a biblioteca

em Mar Sabá especialmente para isso.

Uma busca de poucos minutos bastou para encontrar o livro ainda

sobre a prateleira onde Smith o deixara. Os acadêmicos conseguiram

permissão para levar o livro para a biblioteca do Patriarcado Ortodoxo Grego,

em Jerusalém. A intenção era providenciar uma análise química da tinta de

modo a datar o documento. Quando, porém, o livro já estava em Jerusalém,

Stroumsa e Flusser descobriram que os únicos capazes de realizar esse tipo

de teste eram os peritos da polícia israelense. As autoridades ortodoxas

gregas se recusaram a entregar o livro à polícia, impossibilitando qualquer

análise adicional.20

Stroumsa veio a saber mais tarde que a carta foi removida do livro

e guardada em local seguro. É válido supor que nenhum outro especialista

porá os olhos nela tão cedo.

Se o documento é realmente autêntico, o que será o "reino dos

céus" ? E como chegar lá? Mesmo sem a carta, temos algumas informações

disponíveis, bastando identificá-las.

Jesus explica no Evangelho de Lucas: "Se o teu olho estiver são,

todo o teu corpo ficará também iluminado."21 Tal declaração é puro

misticismo, digna de qualquer budista ou taoísta do Oriente. O que Jesus

quer dizer com isso? Basicamente, que se a nossa visão for do Uno, a luz

divina nos envolverá. Seremos incorporados em "Deus", assim como nos diz

santa Teresa d'Ávila, a mística católica do século XVI.

Santa Teresa entrava freqüentemente no que chamava de "êxtase"

— estado em que um desejo espiritual "permeia toda a alma em um

momento, [e] ela se sente enfraquecer de tal forma que se ergue acima de si

mesma e de toda a criação."22 E a alma ascende para ser incorporada em

"Deus" por um breve período, durante o qual os sentidos não captam o que

está ocorrendo. Quando, porém, alcança o estado de "êxtase", "a alma se

torna totalmente cega, incorporada". Santa Teresa explica que "quando olha

para o Sol divino, [a alma] fica tonta com o esplendor"23.

Da mesma forma, reconhecendo a semelhança entre experiências

tão profundas e a morte, santa Teresa escreveu:

Perdi quase por completo o medo da morte, que sempre me

aterrorizou. Agora, me parece muito fácil para uma serva de Deus

que em um instante a alma se veja liberta dessa prisão e em paz.

Esse momento no qual Deus eleva e transporta a alma para lhe

mostrar coisas de tão sublime excelência me faz pensar naquele em

que a alma deixa o corpo.24

Então, por que não nos ensinaram tudo isso desde o início? Em

parte devido à má vontade da Igreja em relação à liberdade cujas rédeas o

misticismo soltou.

Santa Teresa, por exemplo, vivia assombrada pelo medo de

transgredir e ser arrastada para as celas escuras da Inquisição. Vinha de

uma família cujo lado do avô paterno era composto por judeus convertidos

ao catolicismo. Infelizmente, esses conversos eram os que atraíam as

maiores suspeitas dos inquisidores. Santa Teresa buscou orientação, e

embora tenha se aventurado por caminhos dúbios em termos de doutrina e

fosse encarada com desconfiança por alguns daqueles em quem confiava,

sobreviveu graças à sua honestidade, humildade, profunda espiritualidade e,

o que foi importante, um bom relacionamento com seu confessor jesuíta.

Outros não tiveram tanta sorte; para eles restou a prisão e, logo em seguida,

a fogueira.

Tamanha era a ojeriza da Igreja pelo misticismo, que ela distorceu

a declaração mística de Lucas impondo-lhe uma interpretação não-mística;

na verdade, a Igreja castrou-lhe o espírito. O comentário oficial católico

desse texto retira dele todo e qualquer sentido de conquista, compromisso e

aventura mística ao explicá-lo assim:

Aqui eles sugerem que é necessária uma visão sem distorções para

enxergar a luz de Jesus... Seu significado parece ser: "Quando um

homem, através da luz interior de olhos sadios, fica cheio de luz e

não apresenta vestígio algum de escuridão (Mal), então, e só então,

a luz exterior, a luz de Jesus inflamado por Deus, o ilumina por

completo."25

Em outras palavras, mesmo o New Catholic Commentary [Novo

comentário católico] não tem certeza sobre o significado, sendo forçado a se

contentar com o que parece sê-lo.

Mas, agora, estamos bem informados. Podemos ter certeza do

significado do trecho: ele representa uma postura mística inflexível e um

conselho sobre como vivenciar a Fonte Divina de tudo — como viajar para o

reino dos céus.

Podemos descobrir mais sobre o reino dos céus, é claro, no

Evangelho de Tome. O professor de Harvard Helmut Koester tem a convicção

de que esse Evangelho deveria ser incluído no cânon do Novo Testamento, e

vários outros especialistas concordam com ele. O texto é produto do

cristianismo egípcio do século II, período extremamente profícuo.

Na Páscoa de 367 d.C, Atanásio, bispo de Alexandria, declarou que

todos os livros não-canônicos do Egito deveriam ser destruídos. Poucos

textos sobreviveram. É provável que os monges de um mosteiro próximo a

Nag Hammadi tenham decidido esconder seus textos sagrados em vez de

queimá-los, razão pela qual os depositaram num vaso grande que

enterraram no deserto perto do Nilo. Em dezembro de 1945, o vaso foi

descoberto por um operário que cavava o solo atrás de adubo. Dentro do

vaso, ele encontrou 12 códices de papiro, além de oito páginas de um décimo

terceiro códex — ao todo, o vaso guardava 46 textos diferentes. Algumas

páginas estavam queimadas, mas os códices acabaram sendo vendidos para

o Museu Copta, no Cairo, onde hoje se encontram.

Os especialistas conseguiram, afinal, pôr as mãos neles. Alguns

foram logo publicados, mas até a Unesco reunir uma equipe de acadêmicos

para traduzi-los, um pequeno grupo manteve os textos em segredo. O

professor James Robinson, líder da equipe da Unesco, ao falar dos atrasos

absurdos na publicação e da dificuldade de acesso aos mesmos por outros

especialistas, não apenas quanto a essa coleção, mas também quanto aos

manuscritos do mar Morto, observou desanimado: "As descobertas de

manuscritos despertam os piores instintos em acadêmicos habitualmente

normais."26

Essa coleção de códices descoberta em Nag Hammadi é conhecida

hoje como "Evangelhos gnósticos", e Elaine Pagels, de Princeton, é

provavelmente a mais famosa estudiosa deles. Um aspecto interessante

dessa coleção é o amplo escopo de textos considerados espirituais — não

apenas os textos gnósticos de facções distintas, mas obras de Platão e os

textos herméticos. Isso demonstra a abordagem não-sectária da

espiritualidade naqueles tempos. O mosteiro que originalmente os abrigou

talvez tenha sido cristão, mas estava disposto a reconhecer a espiritualidade

desses textos independentemente de sua origem. Aparentemente, o

importante era a mensagem dos textos, não a tradição religiosa ou filosófica

da qual tivessem saído. O interesse dos monges era o reino dos céus e não

fazer patrulha sectarista.

O Evangelho de Tomé fazia parte da coleção encontrada em Nag

Hammadi. Não há dúvida de que suas informações derivam de uma tradição

secreta, passada para uns poucos escolhidos apenas, conforme se depreende

da frase de abertura: "Estas são as palavras secretas pronunciadas por

Jesus, o Vivo e que Dídimo Judas Tome escreveu."27

Esse evangelho, sob vários aspectos, é o que mais se aproxima dos

canônicos. Ao contrário dos textos gnósticos, contém várias histórias e

parábolas em compasso com os Evangelhos do Novo Testamento. No

entanto, ele não se restringe apenas a isso. Prove informações inéditas sobre

o "reino" — ou "o Reino do Pai". Os discípulos de Jesus perguntam: "Quando

virá o novo mundo?", ao que Jesus responde: "Aquilo que esperais já chegou,

mas não o reconheceis."28 E o Evangelho descreve onde encontrar esse

"Reino dos Céus": "O Reino está dentro de vós e também está em vosso

exterior."29

É uma realidade, não o reflexo da realidade no mundo visível. "O

Reino do Pai está espalhado sobre a terra", afirma o evangelho, "e os homens

não o vêem"30.

E como nos aproximar dele? Em resposta, somos apresentados a

uma imagem paralela à da declaração de Jesus que já transcrevemos — o

"vosso olho" tem que estar são. "Jesus disse, 'Quando fizerdes de dois um,

vos tomareis filhos do homem'."31

Enxergar o Uno da realidade através da multiplicidade do mundo é

o seu conselho: "Jesus disse a eles, 'Quando fizerdes do dois um e quando

fizerdes o interior como o exterior, o acima como o embaixo, e quando

fizerdes do macho e da fêmea uma só coisa... então entrareis (no Reino)'."32

E, mais adiante, numa declaração similar à que consta do

Evangelho de Mateus, Jesus esclarece: "Os fariseus e os escribas tomaram

as chaves do Saber e as esconderam. Eles não entraram, nem deixaram

entrar aqueles que queriam entrar."33

Paulo, com toda a ortodoxia que reveste cada palavra e nuance

sua, não estava alheio ao círculo dos que sabiam que muito mais acontecia

na nova fé do que era possível registrar: "No entanto, é realmente de

sabedoria que falamos entre os Perfeitos", escreve Paulo. "Ensinamos a

sabedoria de Deus, misteriosa e oculta."34

A expressão "sabedoria oculta" é uma tradução do original grego

sophian en musterio, que significa "sabedoria em mistério" — uma sabedoria

que é secreta. Esta, diz Paulo, é passada apenas aos teleiois, "os Perfeitos", e

se refere ao telete, a cerimônia de iniciação, e ao telestes, o sacerdote que

preside a iniciação nos mistérios. Paulo emprega a terminologia da tradição

clássica dos mistérios.

Mas Paulo não conheceu Jesus. Nunca o viu. E não se dava bem

com a comunidade messiânica judaica de Jerusalém, o que não surpreende,

dado seu papel anterior de líder das forças inimigas. A comunidade de

Jerusalém não confiava em Paulo. Os Atos dos Apóstolos, tímida, mas

claramente, explicam que ele foi rapidamente despachado para Tarso, no sul

da Turquia. Sugere-se que essa providência visava a sua proteção, embora

não esclareça contra quem ele precisava ser protegido.35 O fato é que Paulo

foi retirado da Judéia.36 Os zelotes o queriam fora do caminho. Com efeito,

havia muitos que de bom grado providenciariam para mantê-lo afastado

para sempre.

No entanto, o seu conhecimento se soma a muitos outros indícios da

existência de ensinamentos esotéricos e místicos ministrados secretamente

dentro do cristianismo.37 No final do século II, porém, esses ensinamentos

foram relegados a segundo plano. Foram rebaixados e tiveram sua validade

rejeitada até que caíssem no esquecimento. Stroumsa sugere duas razões

para isso: primeiramente, como os mestres hereges adotaram os

ensinamentos esotéricos quando as heresias foram condenadas, os

ensinamentos secretos foram igualmente condenados. Em segundo lugar,

percebeu-se que para intensificar seu apelo universal, o cristianismo

precisava se livrar de quaisquer doutrinas inacessíveis à massa dos fiéis.38

Ao mesmo tempo, com a ascensão dos evangelhos escritos, a tradição oral,

até então o principal veículo de difusão dessas tradições secretas, perdeu

sua importância.

Devemos mencionar mais um texto, pois ele permite encaixar uma

série de peças que se tornaram frouxas ao longo da nossa viagem cheia de

obstáculos.

Em 1896, um códex do século V escrito na língua copta em papiro

foi descoberto no Cairo. Continha quatro novos textos — um dos quais viria

a ser descoberto mais tarde também em Nag Hammadi — e todos eram

muito antigos. Um deles, nunca visto antes e conhecido apenas da Igreja

Egípcia, chamava-se Evangelho de Maria de Magdala. Datava do início do

século II d.C.,39 logo, como o Evangelho de Tome, desfruta de tanto direito a

reivindicar validade quanto os Evangelhos do Novo Testamento. Embora

tenham sido achados dois outros fragmentos do Evangelho, restou apenas

metade do original. A despeito disso, ele é revelador.

Como os textos que examinamos até aqui, o Evangelho de Maria de

Magdala contém um alerta de Jesus contra a busca de provas físicas do

reino dos céus. As palavras utilizadas nesse Evangelho são levemente

diferentes daquelas a que estamos habituados. A tradutora, professora

Karen King, da Divinity School da Universidade de Harvard, usou uma

expressão não-padrão em substituição a "Filho do Homem" — "filho da

verdadeira Humanidade", que provavelmente é uma expressão preferível,

evitando a bagagem sectária e dogmática; por razões similares, ela substitui

"reino" por "Domínio".

"Ficai atentos", diz Jesus, "de modo que ninguém vos iluda dizendo

'Aqui!' ou 'Ali!', pois o filho da verdadeira Humanidade existe dentro de vós.

Ide atrás dele! Os que o buscarem o encontrarão. Ide, então, e levai a boa

nova sobre o Domínio."40

No entanto, esse Evangelho tem um quê de diferente: enquanto

discutem entre si o que Jesus quis dizer com isso, Pedro diz a Maria

Madalena:

Irmã, sabemos que o Salvador vos amava mais do que a todas as

outras mulheres. Dizei-nos as palavras do Salvador de que vos

lembrais, as coisas que sabeis e que não sabemos, pois não as

ouvimos.41

Maria Madalena, deduzimos, recebeu de Jesus alguns

ensinamentos secretos que não foram passados aos outros. Ela responde a

Pedro: "Vou ensinar-vos o que está escondido de vós."42

Vários discípulos ficam irritados com o conhecimento de Maria e

discutem se Jesus algum dia falou o que ela afirma, rebelando-se contra o

fato de ele ter confiado em uma mulher e não neles, algo que consideram

difícil de acreditar. Pedro insiste: "Então ele falou com uma mulher em

particular sem nosso conhecimento? Devemos mudar nossos hábitos e

escutá-la? Ele a preferiu a nós?"43

Mas um discípulo chamado Levi defende Maria Madalena:

"Certamente para o Salvador ela era totalmente confiável. Por isso ele a

amava mais do que a nós."44

Podemos ter certeza — com base não apenas no Evangelho de

Maria, no Evangelho de Tome e no trecho de Smith do Evangelho secreto de

Marcos, mas também nas afirmações que constam do próprio Novo

Testamento — de que Jesus ensinava doutrinas secretas que tinham a ver

com a passagem para o reino dos céus, uma metáfora, como já observei,

para o conceito descrito pelos antigos egípcios como Além-Mundo, ou pelos

gregos como terra dos Abençoados ou Mundo Inferior. Todos retratam o

mundo divino. O discípulo de Jesus que melhor compreendeu seus

ensinamentos foi Maria Madalena, o discípulo que ele amou mais do que a

qualquer outro, e aquele que, segundo o Evangelho de Filipe, ele

constantemente beijava.45

Estaremos mais perto de entender por que a cerimônia na qual

Jesus foi ungido em Betânia — ungido como messias, tal qual sugeri — foi

realizada por uma mulher, Maria de Betânia — irmã de Lázaro, aquele que

foi "ressuscitado dos mortos", no que parece ser um relato truncado de uma

iniciação nos segredos do Além-Mundo?46

Também sugeri que devemos aceitar as tradições antigas e ver

Maria de Betânia e Maria Madalena como a mesma mulher: a confidente de

Jesus e possivelmente sua esposa. Ela foi a companheira de Jesus; não

havia exclusividade masculina no caminho de Jesus para o reino dos céus.

Foi Maria, que entendeu melhor do que ninguém os segredos do

reino dos céus, quem caminhou sobre os prados verdejantes da Terra

Prometida, que deteve todas as chaves para a viagem pelo Além-Mundo.

Claro que seria dela a tarefa de ungir Jesus em seu papel de messias, pois

um componente importante desse ritual de unção é ser realizado por alguém

que entenda o que está se passando e que possa participar da identificação

do messias — pois a unção é tão-somente o derradeiro ato de um processo

mais longo, cujos detalhes não foram registrados nos Evangelhos.

Não é de admirar que os figurões de Roma quisessem excluir tanto

0 conhecimento desse caminho secreto quanto o conhecimento

desses evangelhos complementares. Infelizmente — para eles — não foi

possível fazer nada a respeito dos Evangelhos que mais tarde vieram a

compor o Novo Testamento, exceto controlar a interpretação dos mesmos —

controlar a "torção". A presunção, claro, é que alguns teólogos arrogantes se

achem capazes, passados centenas, talvez um ou dois mil anos, de entender

melhor do que eles próprios o que os redatores queriam dizer. Por que

acreditamos nisso durante tanto tempo?

Sempre houve acadêmicos e outros estudiosos capazes de enxergar

além da manipulação, mas apenas recentemente as manobras e os erros

vieram à luz de forma tão evidente. Mas até agora, em especial nos

corredores ornados do Vaticano, nada mudou. O poder prefere a ficção à

verdade.

NOTAS 1 Evangelho de Mateus 13,11 (transcrito da Bíblia do rei Jaime). Ver, ainda, o Evangelho de Marcos

4,11 e o Evangelho de Lucas 8,9-10. 2 Evangelho de Marcos 1,15. 3 Evangelho de Lucas 9,62. 4 Evangelho de Mateus 23,13. 5 Evangelho de Lucas 17,20-21. 6 A história de Smith é contada em sua autobiografia no livro The Secret Gospel, p. Is. 7 Smith, The Secret Gospel, p. 5. 8 Id., ibid., p. 5. 9 Id., ibid., p. 6. 10 Id., ibid., p. 15. 11 Ver Clemente de Alexandria, Miscellanies, V, vi e viii. Será que Clemente teve contato com

remanescentes do grupo terapeutae} Não se sabe. 12 Stroumsa, Hidden Wisdom, p. 5. 13 Hipólito, Philosopbumena, V, 10. 14 Clemente de Alexandria, The Miscellanies, I, I. 15 Evangelho de João 11, 1-44. 16 Evangelho de João 11,38. 17 Smith, The Secret Gospel, p. 148. 18 Id., ibid., p. 144. 19 Id., ibid., p. 27-30. 20 Ehrman, Lost Christianities, p. 83-84. 21 Evangelho de Lucas 11,34. 22 Santa Teresa, The Life of Saint Teresa of Ávila, p. 139. 23 Id., ibid., p. 146. 24 Id., ibid., p. 285. 25 Fuller, A New Catholic Commentary on Holy Scripture, p. 1109. A última frase é atribuída a J.

Schmid em Regensberger New Testament, ed. A. "Wikenhauser e O. Kuss, 1960, 209.

26 Declaração do próprio James B. Robinson, novembro de 1989. 27 Evangelho de Tome, abertura. 28 Evangelho de Tome 51. 29 Evangelho de Tome 3. 30 Evangelho de Tome 113. 31 Evangelho de Tome 106. 32 Evangelho de Tome 22. 33 Evangelho de Tome 39. 34 1Coríntios 2,6-7. 35 Atos dos Apóstolos 9,30. 36 Baigent e Leigh, The Dead Sea Scrolls Deception, p. 180-187. 37 Stroumsa, Hidden Wisdom, as p. 34-38 fornecem um resumo das fontes patrísticas. 38 Id., ibid.,, p. 6. 39 King, The Gospel of Mary of Magdala, p. 3. 40 Id., ibid., 4,3-8. 41 Id., ibid., 6,1-2. 42 Id., ibid., 6,3. 43 Id., ibid., 10,3-4. 44 Id., ibid., 10,10. 45 Evangelho de Filipe, 63 (p. 138). É interessante que a primeira edição de Robinson, The Nag

Hamrnadi Library in English, 1977, p. 138, apresenta o texto com reconstruções, como "[Mas Cristo

amava] a mais que a [todos] os discípulos [e costumava] beijá-la [com freqüência] na [boca]."

A terceira edição, de 1988, edição em livro de bolso de 1990, p. 148, publicada após grande polêmica

a respeito do casamento potencial de Jesus, modificou essa passagem, apresentando o mesmo texto

como: "[...amava] a mais que a [todos] os discípulos [e costumava] beijá-la [com freqüência] na [...]." 46 Evangelho de João 11,2.

CCAAPPÍÍTTUULLOO XXII II II

OOSS MMAANNUUSSCCRRIITTOOSS DDEE JJEESSUUSS

O KIBUTZ KALIA ESTAVA QUENTE e sonolento naquela tarde de janeiro,

e este supostamente era o mês mais fresco. Já fazia alguns meses que esse

kibutz agrícola, situado às margens do mar Morto, se tornara a base da

expedição anual organizada pela Universidade Estadual da Califórnia em

Long Beach, liderada pelo prof. Robert Eisenman, presidente do

Departamento de Estudos Religiosos. Nosso objetivo a longo prazo: descobrir

mais manuscritos. Primeiro, porém, precisávamos checar metodicamente

todas as cavernas ao longo de milhas de penhascos quase verticais que

alcançavam 360 metros acima do mar.

Ficamos hospedados em um conjunto de unidades de alojamento,

construído pelo kibutz para tirar proveito do fluxo constante de turistas

atraídos pelas antigas ruínas de pedra de Qumran, localizadas num

escarpado próximo — ruínas que adquiriram fama com a descoberta dos

manuscritos do mar Morto em 1947. Moradores do Kalia tomavam conta do

sítio e administravam o restaurante e a livraria na entrada do mesmo; o ar-

condicionado fazia dali um refúgio bem-vindo que inevitavelmente seduzia

todos os visitantes.

Nossos dias começavam cedo e o trabalho se encerrava ao meio-

dia, já que depois disso a temperatura se tornava insuportavelmente alta,

mesmo nessa época do ano. Voltávamos para o kibutz e almoçávamos com

todos os moradores permanentes no grande refeitório comunitário. Em

seguida, nos retirávamos para a nossa fileira de chalés a fim de avaliar as

descobertas da manhã, limpar e preparar o equipamento ou, depois que o

calor amainava, passear até o pôr-do-sol no silêncio do deserto, onde

resquícios de rocha, restos de cerâmicas e pequenos animais e pássaros

exerciam um fascínio pachorrento. Após o pôr-do-sol, contudo, as

preocupações com a segurança recomendavam um retorno às cercas

protetoras e às patrulhas armadas do kibutz. Afinal, estávamos na fronteira.

Em todas as temporadas, vivenciamos, no mínimo, uma situação de

emergência. Nessa visita em particular ouvíamos uma palestra quando um

vigilante adentrou a sala ordenando, em um sussurro seco, "Apaguem todas

as luzes e se deitem no chão" — haviam descoberto invasores. Ao que

parecia, um pequeno barco atravessara o mar Morto. No dia anterior, o

morador de um kibutz vizinho perdera a perna numa mina.

Nessa tarde em questão, porém — 17 de janeiro de 1992 —, o chefe

da expedição, Robert Eisenman, fora de carro a Jerusalém — a cerca de

setenta quilômetros de distância — ao encontro de um arqueólogo

israelense. Eu estava sentado numa mureta baixa conversando com um

especialista bíblico, James Tabor, professor-assistente de Novo Testamento

na Universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, e com um estudante de

pós-graduação californiano, Dennis Walker. Outros membros da equipe

descansavam ou conversavam em voz baixa em pequenos grupos. Esse

cenário bucólico foi invadido por dois israelenses bem-vestidos com uma mal

disfarçada pose de autoridade. Traziam com eles também uma pasta de

papéis. Minha desconfiança foi imediatamente despertada. Em Israel, a

paranóia é uma característica racional de autopreservação. Resmas de

papelada oficial sempre eqüivaliam a problemas. Entreouvi um breve

diálogo:

— O professor Eisenman está por aí?

— Não. Saiu.

— Quando volta?

— Mais tarde — foi a resposta cautelosa.

Problemas? Por quê? Todos havíamos pensado que o monopólio

sobre os manuscritos do mar Morto, detido há quase quarenta anos, tivesse

sido quebrado dois meses antes, quando a Biblioteca Huntington da

Califórnia decidiu disponibilizar a coleção completa de fotos dos fragmentos,

em seu poder, para os acadêmicos; Eisenman foi o primeiro acadêmico a

procurar a biblioteca naquele dia.

Mas era óbvio que, por trás desses acontecimentos, interesses

poderosos sempre que possível reivindicavam direitos sobre os manuscritos,

documentos de dois mil anos que revelam uma realidade por muito tempo

escondida, constrangedora tanto para o judaísmo quanto para o

cristianismo, uma realidade que durante muito tempo foi manipulada por

um pequeno grupo de acadêmicos.

Os manuscritos do Mar Morto foram descobertos no início de 1947.

A história nunca foi bem esclarecida, porque o jovem pastor beduíno que os

encontrou, Mohammad adh-Dhib, talvez estivesse envolvido em algo mais do

que a mera tarefa de pastoreio — as circunstâncias que o levaram à área de

Qumran são assunto delicado. No entanto, como também já mencionamos, a

história contada por ele depois é simples: ao procurar uma cabra desgarrada

entre os rochedos e os uádis, Dhib notou a entrada estreita de uma caverna.

Atirou lá dentro uma pedra, esperando ouvir o berro da cabra. Em vez disso,

ouviu o barulho de cerâmica quebrada. Entrou, então, agachado na caverna

para ver o que ela continha.

Encontrou um conjunto de vasos de cerâmica lacrados, de cerca de

60cm de altura, alguns dos quais estavam quebrados. Supõe-se que a

caverna contivesse ao menos oito desses vasos, embora hoje ninguém tenha

certeza. Todos abrigavam rolos de couro cobertos por um texto antigo. O

beduíno admitiu ter retirado da caverna, no mínimo, sete vasos. Embora

saibamos que existem outros que jamais foram entregues às autoridades,

simplesmente não fazemos idéia de quantos eram. Os arqueólogos

deduziram que os pedaços de cerâmica quebrada no local correspondiam a

quarenta vasos, mas não temos como dizer se eles foram quebrados na

antigüidade ou em época mais recente, nem se todos continham rolos que

possam ter sido destruídos ou escondidos para uma venda futura.

Dessa descoberta inicial — chamada Caverna 1 na relação dos

manuscritos do mar Morto — se originaram sete manuscritos mais ou

menos completos, juntamente com fragmentos representando 21 outros.

Ninguém sabe por que alguns rolos estavam partidos e outros intactos.

Naturalmente, a explicação poderia residir no fato de que os vasos foram

quebrados pela queda de pedras do teto e os rolos espalhados assim por

animais selvagens caçando no local. Estive em centenas de cavernas da

região e posso atestar que é comum o colapso desses tetos e que ali

abundam animais predadores, como chacais.

O pastor beduíno entregou os manuscritos a Khalil Iskander

Shahin, também conhecido como "Kando", um comerciante cristão de

antigüidades, dono de uma loja em Belém. Kando era um experiente

comerciante clandestino, e correm boatos de que ele e um colega logo depois

foram até a caverna e dela tiraram outros textos ou partes de textos. Em

abril de 1947, um deles foi entregue ao metropolita da Igreja Jacobita síria,

instalada no Mosteiro de São Marcos, em Jerusalém. O metropolita não foi

capaz de decifrá-lo, mas reconheceu que era antigo e importante. Embora

tenham sido vendidos em outras paragens, o metropolita conseguiu adquirir

os outros quatro.

Ele os levou a um especialista do Departamento de Antigüidades e,

em seguida, a outro, na École Biblique et Archéologique de Jerusalém, dos

dominicanos, dirigida desde 1945 pelo padre Roland de Vaux. Enquanto

ambos acharam que os manuscritos eram recentes, um outro especialista da

École alertou o metropolita sobre o vasto número de falsificações nas mãos

de supostos comerciantes de antigüidades.

O professor Eleazar Sukenik, chefe do Departamento de

Arqueologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, ouviu falar dos

manuscritos logo depois e conseguiu ter acesso a eles. Após várias tentativas

infrutíferas de comprar o lote todo, Sukenik acabou adquirindo os três que

não estavam em poder do metropolita. Corria o final de 1947 quando

Sukenik comprou o Manuscrito de Isaías, o Manuscrito da Guerra e o

Manuscrito dos Hinos. No entanto, os quatro de propriedade do metropolita

— um outro texto de Isaías, o comentário de Habacuc, o Manual de

Disciplina e um Gênese aramaico apócrifo — revelaram-se impossíveis de

obter. Os três comprados por Sukenik viriam a ser publicados pelos

israelenses em 1955-1956.

O metropolita também contatara a Escola Americana de

Arqueologia em Jerusalém e no início de 1948 ofereceu seus manuscritos a

essa instituição. Além disso, deu à Escola Americana permissão para

fotografar três dos quatro manuscritos para serem publicados em fax, na

esperança de assim aumentar o seu valor. O processo de fotografia foi

completado em março de 1948.

Em 1949, Israel emergiu de sua primeira guerra e pelos termos do

acordo de cessar-fogo Qumran agora fazia parte da Palestina. Em 24 de abril

de 1950, a Palestina foi formalmente incorporada à Jordânia. A principal

autoridade responsável por outras explorações passou a ser o Departamento

de Antigüidades jordaniano, na pessoa de seu diretor, Gerald Lankester

Harding. Mas o metropolita já levara os manuscritos para os Estados

Unidos, onde eles foram exibidos no final de 1949, enquanto eram postos à

venda.

Afinal, em 1954, o governo israelense adquiriu os manuscritos

— graças aos esforços de Yigael Yadin, o filho de Sukenik. Hoje eles

se encontram expostos, juntamente com um oitavo texto, o Manuscrito do

Templo, obtido em 1967, no Santuário do Livro, em Jerusalém.

No início, os especialistas não se impressionaram com os

manuscritos. Além das alegações de falsificação e fraude, outros estudiosos

respeitados os viam como produções bastante recentes. Em 1949, um

conhecido acadêmico de Oxford, professor Godfrey Driver, situou-os no

século VI ou VII d.C., e no ano seguinte modificou essa data para o período

entre 200 e 500 d.C. — ainda assim posterior ao período judaico-cristão. Um

outro acadêmico da Universidade de Manchester os situava em data bem

mais recente, o século XI d.C. Havia, ainda, os que se inclinavam na direção

oposta; o padre Roland de Vaux, diretor da École Biblique, a princípio os

considerou muito anteriores à era cristã, situando os vasos, e com eles os

manuscritos, no período helenístico que antecedeu o domínio romano no

Egito e na Judéia — ou seja, no início do século I a.C.1

No final de janeiro de 1949, dois oficiais do exército israelense

descobriram a caverna de onde haviam saído os manuscritos. No dia 5 de

março do mesmo ano, Roland de Vaux e Gerald Lankester Harding a

escavaram. Encontraram pedaços de linho, cerâmica quebrada e fragmentos

de textos escritos pertencentes a 21 obras distintas. Os acontecimentos

progrediam devagar. A escavação empolgava, mas pouco, ou nada, fora

encontrado que despertasse a preocupação da Igreja. Tudo isso, porém, viria

a mudar.

No final de 1949, todos os manuscritos se encontravam ou nas

mãos dos israelenses ou nas dos americanos, mas o acaso é caprichoso, e

logo as coisas começaram a escapar do controle. No início de 1950, surgiu o

primeiro volume publicado pela Escola Americana de Pesquisa Oriental.

Chamava-se The Dead Sea Scrolls of St. Marks Monastery [Os manuscritos do

mar Morto do monastério de St. Marks]. O livro continha fotos e transcrições

do Manuscrito de Isaías e dos comentários de Habacuc — agora conhecido

como pesher Habacuc. Pesher é o termo normalmente usado nos

manuscritos para se referir a um texto antigo interpretado pelo grupo de

Qumran para servir de referência aos seus interesses, principalmente com

relação aos "últimos dias", quando o inimigo seria derrotado e Israel

governado por um rei davídico.

Examinando a maneira como esse grupo interpretava os textos do

Antigo Testamento, os especialistas ganharam uma valiosa percepção da

ideologia e do pensamento do grupo. Acadêmicos em todo o mundo

começaram a se deter sobre o conteúdo, em especial o dos peshers;

começaram também a tirar suas próprias conclusões quanto às crenças dos

que haviam escrito tais textos, bem como quanto às implicações contidas

neles. Os paralelos com o cristianismo tornaram-se inevitáveis.

O primeiro choque se deu em 26 de maio de 1950, quando André

Dupont-Sommer, professor de Línguas e Civilização Semita na Universidade

de Sorbonne, em Paris, fez uma palestra aberta ao público sobre o pesher de

Habacuc na Académie des Inscriptions et Belles Lettres, causando um

verdadeiro furor. Dupont-Sommer pisara no coração do território proibido:

vinculara pública e diretamente os manuscritos ao cristianismo. Muita gente

ficou desconcertada diante do que considerou uma afronta à sua fé; outros

se sentiram ultrajados e não tardaram a expressar sua indignação.

As hipóteses de Dupont-Sommer afirmavam que o pesher de

Habacuc fora escrito durante o início da era cristã; que os manuscritos

haviam sido escondidos durante a guerra de 66-70 d.C; que a comunidade

que vivia em Qumran — preocupada em se ater à "nova aliança" no pesher2

— era a dos essênios descritos por Josefo; e que o líder da comunidade dos

manuscritos, alguém jamais mencionado pelo nome, conhecido apenas por

seu título de "Mestre da Virtude", era um indivíduo considerado divino,

condenado à morte por seus inimigos, sobre o qual se esperava que

ressuscitasse dos mortos. Dupont-Sommer ficou especialmente

impressionado com os paralelos entre Jesus e o Mestre da Virtude, em quem

via uma espécie de modelo para Jesus.

O alarmante é que ele parecia estar atacando diretamente a

singularidade de Jesus.

Resumindo suas conclusões em um livro publicado naquele mesmo

ano, Dupont-Sommer escreveu:

Agora é certo — e esta é uma das mais importantes revelações dos

achados do mar Morto — que o judaísmo no século I a. C.

testemunhou toda uma teologia do messias sofredor, de um messias

que devia ser o redentor do mundo, desenvolvida em torno da

pessoa do [Mestre da Virtude].3

Não apenas a singularidade de Jesus estava em perigo, como

Dupont-Sommer sugeria que ele e o cristianismo haviam se originado de um

meio judaico preexistente:

Os documentos de Qumran não deixam dúvidas de que a Igreja

Cristã primitiva tem suas raízes na seita judaica da Nova Aliança,

na seita essênia, numa proporção jamais suspeitada, dela tendo

tomado de empréstimo grande parte de sua organização, ritos,

doutrinas, "modelos de pensamento" e ideais místicos e éticos.4

Tudo indica que o Vaticano ficou alarmado; sem dúvida ele

acionou a sua máquina. E essa máquina, para dizer o mínimo, era poderosa.

Embora a Inquisição já não queimasse gente na fogueira, o Santo Ofício

ainda existia para proteger, a todo custo, o dogma da Igreja.

Como mencionamos anteriormente, em 1902 o papa Leão XIII

criara a Pontifícia Comissão Bíblica para monitorar e dirigir o academicismo

teológico católico. A comissão se opunha principalmente ao modernismo, o

trabalho daqueles acadêmicos que se reuniram, como vimos, no seminário

de Saint-Sulpice, em Paris, antes que tal corrente fosse condenada no final

do século XIX. A Pontifícia Comissão Bíblica forneceu especialistas —

"consultores" — ao Santo Ofício. Foi a primeira linha de defesa contra

ataques à fé. Um de seus papéis mais relevantes foi, e ainda é, criar e

decretar "a maneira correta de ensinar... escritura"5. Com efeito, ela é a

"central de ficção" do Vaticano.

Embora se tratasse o Santo Ofício e a Comissão como duas

organizações independentes, na verdade essa era uma mera ilusão; sempre

houve um considerável intercâmbio de membros graduados entre as duas.

Essa proximidade foi formalizada em 1971, quando a Pontifícia Comissão

Bíblica passou à égide da Inquisição — agora conhecida pelo título

pasteurizado de "Congregação para a Doutrina da Fé". As duas funcionavam

no mesmo prédio em Roma. Em 1981, o cardeal Ratzinger tornou-se o

cardeal responsável, o "Grande Inquisidor"; em 2005, como todos sabemos,

ele foi eleito papa.

Em 1951, a oposição aos que vinculavam os manuscritos do mar

Morto ao cristianismo se intensificou: muita coisa estava em jogo para

aqueles que precisavam manter a singularidade e a divindade de Jesus. Em

fevereiro do mesmo ano, um respeitado acadêmico jesuíta redigiu um ataque

no jornal acadêmico jesuíta Études. Seu sentimento era óbvio para outros

especialistas: "alarme diante do que soava como uma ameaça à

singularidade de Jesus."6 Por volta da mesma época, um outro golpe abalou

ainda mais os acadêmicos católicos. Pedaços de linho haviam sido

encontrados na Caverna 1 quando Gerald Lankester Harding e o padre de

Vaux a escavaram. Um deles foi enviado para os Estados Unidos para ser

datado pelo processo de carbono: o resultado foi o ano de 33 d.C, com uma

margem de erro de cem ou duzentos anos para mais ou para menos — um

período de produção que abrangia do século II a.C. ao início do século III

d.C.7 Significava que os manuscritos podiam perfeitamente ter sido escritos

na era cristã. Esses eram dados com que a Igreja teria de conviver e lidar.

Então, em março de 1951, o padre de Vaux, que mexia os

pauzinhos para conseguir uma posição de controle dos manuscritos,

publicou uma crítica muito negativa sobre a palestra e o livro de Dupont-

Sommer na Revue Biblique — editada por ele mesmo. De Vaux não

economizou sarcasmo: "Sua tese é apresentada de uma forma muito

sedutora, com entusiasmo contagiante. Contém um bocado de ciência e mais

ainda de ingenuidade."8

Mas o padre de Vaux era propenso a cometer erros e cometeu um

dos grandes em sua crítica. Uma de suas "provas" contra a tese de Dupont-

Sommers foi o "fato" de que "os vasos que continham os manuscritos datam

do final do período helenístico, antes da época romana na Palestina, segundo

arqueólogos competentes que os examinaram". Nessa, como em várias

outras assertivas, o padre de Vaux estava errado, sendo forçado mais tarde a

retirar o que dissera. Conseguiu, contudo, marcar um primeiro ponto nas

pelejas que acabaram levando a uma batalha de peso.

No final de 1951, o padre de Vaux e Gerald Lankester Harding

começaram a escavar as ruínas em Qumran. Foi então que outro golpe se

abateu sobre eles: todas as moedas identificáveis encontradas datavam do

período compreendido entre o início da era cristã e o final da guerra judaica

em 70 d.C.9 Descobriram, ainda, enterrado no chão de uma sala, um vaso

idêntico ao que, na Caverna 1, continha os manuscritos,10 forte indicação de

que tanto Qumran quanto os manuscritos eram usados no período cristão.

Então, em setembro de 1952, o beduíno apareceu com caixas de

papelão cheias de fragmentos de manuscritos. Ele descobrira a Caverna 4,

de onde viriam a sair milhares de fragmentos de até oitocentos diferentes

manuscritos. Esses fragmentos, contudo, eram pequenos, alguns, mínimos.

Nenhum manuscrito completo foi encontrado ali. Assim, tamanho era o

volume de fragmentos a juntar e traduzir que um único especialista seria

incapaz de fazê-lo. Era preciso criar um grupo capacitado para rearrumar,

traduzir e publicar o material. Para o padre de Vaux surgia a oportunidade

de recuperar algum controle sobre os textos.

Em 1953, formou-se uma pequena equipe internacional de sete

acadêmicos para "ficar" com os manuscritos e trabalhar neles. A equipe

respondia ao padre de Vaux e acabou dominada pela École Biblique. Após o

desligamento prematuro de um acadêmico alemão, restaram nela quatro

padres católicos; um monsenhor, Patrick Skehan, professor da Catholic

University of America, em Washington, posteriormente diretor da Escola

Americana de Pesquisa Oriental e membro da Pontifícia Comissão Bíblica.

Comenta-se que ele disse que "uma porção pertinente do dever de todo

especialista em Antigo Testamento é buscar na história sagrada a evolução

da disposição de reconhecer Cristo quando ele chegasse"11. Decididamente,

não está aí um adepto do conhecimento objetivo.

Os manuscritos foram guardados no Museu Arqueológico

Palestino, mais tarde rebatizado de Rockefeller Museum. Em seu conselho

figura o padre Roland de Vaux.

O padre de Vaux tornou-se membro da Pontifícia Comissão Bíblica

em 1955. Como principal autoridade da École Biblique, também estava à

frente da arqueologia bíblica. Com efeito, dali em diante, todos os diretores

da École Biblique passaram a ser igualmente membros da Pontifícia

Comissão Bíblica.

O padre de Vaux editava a revista da École, Revue Biblique,

especializada em investigações acadêmicas e arqueológicas de assuntos

bíblicos. A Revue também controlava uma outra, recente, especializada nos

manuscritos do mar Morto, a Revue de Qumran. Quando a nova tradução

católica da Bíblia foi publicada em 1956, mais tarde batizada de La Bible de

Jerusalém, o padre de Vaux foi seu editor-geral, tendo produzido também

uma obra importante sobre a história antiga de Israel e os manuscritos do

mar Morto e as escavações feitas por ele em Qumran. O padre de Vaux, sem

dúvida, era muito influente no meio.

Os especialistas escolhidos se agarraram aos manuscritos:

ninguém além deles, ou dos academicamente "autorizados" por eles, tinha

acesso aos documentos. Mas houve um escândalo: embora muitos

especialistas, em especial John Allegro, tenham publicado seus trabalhos

com relativa rapidez, outros demoraram muito mais. Quarenta anos se

passaram e vários manuscritos importantes não haviam sido divulgados.

Crescia a suspeita de que os acadêmicos católicos estivessem retendo

material prejudicial à singularidade de Jesus.

O membro inglês da equipe, John Allegro, tinha suas próprias

suspeitas. Ao saber que o padre de Vaux e outros membros da equipe

internacional pretendiam redigir uma carta aberta ao The Times condenando

sua interpretação dos manuscritos — uma atitude ultrajante —, John

Allegro escreveu para o padre de Vaux em março de 1956, alertando:

Em todas as palestras sobre os manuscritos que faço, lá vem a

mesma pergunta: "E verdade que a Igreja está com medo... podemos

ter certeza de que tudo será publicado..." Acho que não preciso

acrescentar que efeito terão as assinaturas de três clérigos romanos

na carta em questão?12

Mas o padre de Vaux e os demais ignoraram o aviso e levaram

adiante sua tentativa de desacreditar Allegro. Não iriam deixar impune o seu

comportamento independente. Controle era a alma do negócio quando se

tratava dos manuscritos.

E do ponto de vista deles tal ação era inteligente. Basta ver o texto

"Filho de Deus" para entender.

Numa tarde quente em julho de 1958, um novo fragmento de texto

foi adquirido; escrito em aramaico, saíra da Caverna 4.

Um dos peritos presentes, o padre jesuíta Joseph Fitzmyer, hoje

professor de Estudos Bíblicos na Catholic University of America e consultor

da Pontifícia Comissão Bíblica, contou-me que foi possível ler o texto na

manhã seguinte. É preciso deixar bem claro: no dia 10 de julho de 1958, os

peritos já sabiam que tinham nas mãos um fragmento de texto referente a

um indivíduo que "será chamado de filho de Deus"13. Ainda se discute se tal

indivíduo era um simpatizante ou um opositor do sacerdócio zadoquita de

Qumran, mas isso não importa: o que importa é que se via agora que o título

"filho de Deus", anteriormente considerado de uso exclusivo de Jesus no

mundo do judaísmo, já fora usado antes.

Naturalmente houve polêmicas. Os acadêmicos católicos estavam

determinados a manter a maior distância possível entre os manuscritos e o

cristianismo; divulgar esse texto seria demonstrar o vazio de seus

argumentos. Assim, eles fizeram o que podiam: tentaram encobrir o

conteúdo dos textos durante vários anos. Mantiveram em segredo sua

existência. Finalmente, o acadêmico responsável — padre Joseph Milik —

mencionou-o numa palestra em 1972. Em 1990, o texto vazou para uma

publicação conhecida, a Biblical Archaeology Review, que o publicou. Mas 32

anos haviam se passado desde a aquisição e a tradução do mesmo. Na

ausência de uma solução definitiva, como a destruição do texto, ganhar

tempo era o melhor paliativo.

É claro que essas táticas protelatórias chegaram ao fim em 1991

com a divulgação do conjunto completo das fotos dos manuscritos do mar

Morto pela Huntington Library na Califórnia, seguida de perto por outras

instituições em todo o mundo, que também tornaram públicas as fotos que

lhes haviam sido confiadas. Os que ainda pretendiam controlar os

manuscritos, embora tendo perdido o controle físico sobre a matéria-prima,

foram então forçados a tentar controlar a interpretação dos documentos.

Essa luta continua até hoje.

Que fique bem claro: o Vaticano se importa. Não é algo

insignificante negar a singularidade e a divindade de Jesus.

Indiretamente, o controle inicial do Vaticano sobre os documentos

encorajou outras pessoas a buscar meios para entendê-los em outros

lugares.

Antes de tudo, porém, tínhamos de desmontar algumas das

conclusões nitidamente equivocadas do padre de Vaux. Por exemplo, em

dado momento ao longo do monopólio exercido sobre os textos, de Vaux se

convenceu de que Qumran era algum tipo de fundação monástica, que

abrigava um "refeitório" onde seus membros comiam e um scriptorium, onde

os essênios, os redatores dos manuscritos, trabalhavam. Esse modelo

monástico orientou todas as suas interpretações posteriores — e suas

escavações. Estudos mais recentes, contudo, levantaram sérias dúvidas

quanto à própria noção de que os manuscritos foram redigidos em Qumran.

Parece cada vez mais provável que tenham sido trazidos de Jerusalém e

escondidos nas cavernas.

Com efeito, como o padre de Vaux nunca fez um relatório definitivo

sobre o sítio, os arqueólogos, a partir de suas próprias anotações,

concluíram que, longe de ser um mosteiro isolado, Qumran parecia ter sido o

núcleo de uma fazenda comercial produtora, talvez, de óleos perfumados.

Parece que o padre de Vaux afirmou que porções verticais de terra

endurecida eram paredes de adobe, separando os aposentos que ele defendia

existirem, mas que, na verdade, jamais escavou. Foi a partir de equívocos

como este que de Vaux elaborou sua hipótese do "mosteiro".

Levei a Qumran um arqueólogo com experiência em Mesopo-tâmia,

um perito em construções em adobe, para ver essas paredes. Ele olhou para

uma delas e riu, explicando que aquilo nada tinha de parede, mas era terra

não escavada. Tal afirmação revelou-se correta: em meados de dezembro de

1991, embora raro em Qumran, caiu um temporal. Uma das "paredes de

adobe" do padre de Vaux foi levada pela torrente, deixando à vista um vaso

de argila. Meu informante, um operário a serviço do Departamento de

Antigüidades israelense, me mostrou uma foto colorida para comprovar e

também riu.

Conseguimos finalmente desmontar cientificamente um pilar da

teoria do padre de Vaux, de grande importância em sua reconstrução

histórica do grupo do mar Morto: a afirmação de que o local foi destruído

pelo terremoto de 31 a.C. e por um incêndio em seguida. De Vaux dizia ter

encontrado entre as ruínas uma fenda causada pelo terremoto. Fora essa,

segundo ele, a razão do abandono do local.14 Em 1992, levamos a Qumran

equipamento de radar de solo e dois especialistas para operá-lo.

Descobrimos que a tal fenda do padre de Vaux não existia e que os danos

por ele atribuídos ao terremoto mais provavelmente — segundo os dois

especialistas, ambos bastante experientes em trabalhos de levantamento de

solo — teriam resultado de deslizamentos naturais.15

A importância de tudo isso no contexto da nossa árdua viagem de

exploração é que os manuscritos do mar Morto são produto de um grupo

real de judeus messiânicos que habitaram o mundo real — o mesmo mundo

que viu a ascensão de Jesus e a evolução do cristianismo.

Conseqüentemente, esses escritos nos dão uma percepção inédita das

crenças, preocupações e, até certo ponto, da história desse grupo e sua

postura em relação à época em que viveu. Neles é possível ver muitos temas

em comum com o cristianismo dos primórdios, temas paralelos aos que são

expressos no Novo Testamento. Não nos esqueçamos, porém, de que também

existem diferenças básicas, pois o cristianismo rompeu com o judaísmo e

com a lei.

É importante observar que os manuscritos são documentos

originais; nunca foram alterados por traduções ou revisões posteriores, como

aconteceu com a maioria dos documentos da mesma época. No entanto, é

difícil abordá-los e entendê-los sem usar a lente das estruturas modernas de

nossas crenças.

O problema central com o academicismo bíblico é que a maioria

dos especialistas na área tem formação teológica ou de história bíblica. É

raro encontrar nessa área quem seja apenas historiador. E os que aí se

aventuraram quase sempre se tornaram alvos de violentos ataques dos

teólogos, pois um exame isento dos dados costuma levar a conclusões bem

diversas das que os ensinamentos da Igreja consideram bem-vindas.16

Os manuscritos afetam diretamente o cristianismo. Levantam dois

problemas para os expoentes linha-dura da teologia cristã — os que

defendem sem questionar a teologia do Concilio de Nicéia, centrada em um

Cristo único e deificado.

Em primeiro lugar, os manuscritos fornecem vastos indícios de que

o Novo Testamento e Jesus surgiram de um contexto messiânico judaico

preexistente. Isso demonstra que o cristianismo não se baseia em um evento

ímpar na história, mas é parte de um movimento precedente que até mesmo

empregava a expressão "filho de Deus", anteriormente considerada

desconhecida do judaísmo e, por isso, uma marca característica do

cristianismo.

Em segundo lugar, os manuscritos questionam a unidade teológica

dos Evangelhos. Fornecem a chave para expor o profundo choque teológico

entre Tiago — o irmão de Cristo e líder da comunidade messiânica de

Jerusalém — e Paulo, que jamais conheceu Jesus. Esse choque revela um

profundo e irreconciliável racha no Novo Testamento, principalmente quanto

à questão da lei, conforme abordada, por exemplo, nos escritos paulinos —

onde é explícita a liberdade em relação à lei — e na Epístola de Tiago — que

enfatiza a obrigação de cumpri-la.17

O resultado disso é que os manuscritos provêem dados

complementares para os argumentos que abordamos amplamente em nossa

reconsideração da divindade de Jesus.

Não são, porém, apenas os manuscritos que nos fornecem razões

para uma visão alternativa: até mesmo os próprios Evangelhos são incapazes

de fundamentar a teologia codificada em Nicéia. Jesus realmente reivindicou

ser Deus? Parece que não. Numa notável admissão, Joseph Fitzmyer

assevera: "Os Evangelhos não trazem essa reivindicação..."18

Isso tudo é assunto muito sério: no âmago do cristianismo está

uma crença na singularidade — e divindade — de Cristo. Mas os Evangelhos

não fazem tal reivindicação, e os manuscritos do mar Morto provam que não

é possível dissociar o cristianismo do judaísmo messiânico, que não possuía

o conceito de um messias divino. Por esse motivo, no mínimo, ao Vaticano

não restou outra opção senão aproveitar toda e qualquer oportunidade para

distanciar o cristianismo da comunidade dos manuscritos. Mais que isso, o

Vaticano não teve outra escolha senão tentar controlar a interpretação

desses textos quando eles vieram a público; o efeito colateral negativo era

por demais destrutivo.

O problema básico, como explica Burton Mack, professor de Novo

Testamento na Escola de Teologia Claremont, na Califórnia, é que o Jesus

original do movimento foi suplantado por uma mitologia de Jesus. O fato

produziu uma situação instável para a Igreja na medida em que "o mito

cristão reivindica a condição de história e pede a seus adeptos que acreditem

que ele seja verdadeiro"19. Mack aponta o perigo: se surgirem explicações

alternativas desse amálgama de história e mitologia "o evangelho cristão se

verá em sérios apuros" e a religião cristã será obrigada a fazer revisões

drásticas em sua postura, pois os Evangelhos são o sustentáculo do "mundo

mítico do cristão"20. Mack é direto em sua crítica: "O mito de Cristo criou um

universo imaginário muito mais fantástico do que qualquer coisa encontrada

nas tradições de Jesus."21

A tradição de Jesus é judaica; o mito de Cristo, não.

Deve ter ficado óbvio agora que existe um enorme abismo entre o

Jesus da história e o Jesus da fé. Os guardiões vigilantes da teologia cristã

insistem que os dois são idênticos, mas qualquer historiador que examine

honestamente os dados descobre com facilidade que não são. Já vimos como

o Vaticano foi, por exemplo, forçado durante um bom tempo a manter sua

posição por meio da supressão e da manipulação da expressão. Essa postura

linha-dura, porém, vem ficando cada vez mais difícil de sustentar — a

pressão torna-se aparente e a estrutura começa a mostrar rachaduras.

Parece inevitável que em um determinado patamar a pressão venha a ser

demasiada e o prédio todo desabe sob o peso de suas certezas equivocadas,

inverdades indisfarçáveis e falhas deliberadas de interpretação.

Vale a pena observar que os detalhes da comunidade dos

manuscritos do mar Morto podem ser compatibilizados, ponto por ponto,

com a antiga comunidade cristã em Jerusalém liderada por Tiago, conforme

descrição dos Atos dos Apóstolos.22 Nessa medida, os manuscritos são

documentos cristãos dos primórdios e podem nos ajudar lançando alguma

luz sobre a extensa mitologia que se desenvolveu. No entanto, a história que

vislumbramos dessa maneira não é senão uma pequena parcela do todo.

Ainda assim, podemos dizer com uma certa convicção que, com o

desaparecimento de Jesus, Tiago aderiu ao ideal zelote de oposição aos

romanos e à inflexível observância da lei judaica. Foi Paulo que então

descartou parte da mensagem e criou o cristianismo para os não-judeus.

Tiago se importava tão-somente com o judaísmo e a Judéia. Paulo, com

todas as suas idiossincrasias, vislumbrou um horizonte mais distante.

Aparentemente, porém, parece ter perdido o rumo.

Seremos capazes algum dia de salvar Jesus do dogma em que há

muito ele atolou?

Neste livro defendi que Jesus, com a ajuda de seus amigos mais

próximos e a conivência do prefeito romano Pôncio Pilatos, sobreviveu à

crucificação. Foi, sem dúvida, uma manobra muito arriscada. Quando José

de Arimatéia pediu o corpo de Jesus, Pilatos, ao que tudo indica, achou que

o plano fracassara e que Jesus havia de fato morrido, como se deduz, de

acordo com o Evangelho de Marcos, do emprego que fez da palavra grega

ptoma (cadáver) para se referir ao corpo de Jesus.

Jesus não tinha morrido, mas ao que parece necessitava de

tratamento médico urgente. Foi retirado da cruz e posto em um sepulcro

vazio. Então, caída a noite, segundo o Evangelho de João, José de Arimatéia

e Nicodemos para lá se dirigiram levando poções medicinais. Uma vez

considerado fora de perigo, sugeri, Jesus foi retirado do túmulo e levado

para local seguro onde pudesse se recuperar. É esse acontecimento — a

remoção de um Jesus vivo do seu sepulcro — que se encontra retratado no

baixo-relevo pintado da 14a Estação da Cruz na igreja de Rennes-le-Château.

E o que aconteceu depois? Não temos como saber, mas Jesus — a

despeito da mitologia que foi criada — não desapareceu da face da terra. Ele

foi para algum lugar.

Uma das tarefas implícitas em qualquer estudo histórico é tentar

explicar os fatos. Infelizmente, nesse caso não há fatos ou, pelo menos, não

há nenhum que possa ser considerado totalmente insuspeito. Não temos

textos sobre Jesus, registros romanos, documentos de família ou inscrições.

Tudo que temos é a informação, passada em segunda mão pelo reverendo dr.

Douglas William Guest Bartlett, de que "Jesus estava vivo no ano 45 d.C." e

que essa sobrevivência foi resultado da ajuda de "zelotes radicais".

O reverendo Bartlett obteve a informação com seu mentor, o

cônego Alfred Lilley, tradutor do documento original, que afirmou ser isso

um fato. Bartlett sem dúvida considerava acurada a informação. Ainda

assim, estamos lidando com um manuscrito que Lilley lera havia quarenta

anos ou mais, recordando-se dele no final da vida. Bartlett contou-nos a

história passados outros cinqüenta anos ou mais. Temos razão de nos

perguntar quão precisas seriam tais lembranças.

A menção a "zelotes radicais" soa mais como opinião do que como

algo contido no documento em si. Chamar qualquer grupo de "radical" é

emitir um juízo de valor; quem, nesse caso, fez tal juízo? O cônego Lilley?

Talvez. Além disso, como vimos, Jesus deve ter despertado o ódio dos zelotes

ao se recusar a apoiar sua oposição aos impostos romanos. Assim, essa

afirmação dificilmente se sustenta, sendo, como sugiro, mais provavelmente

uma opinião.

O que é relevante, contudo, é a data — 45 d.C. —, em que se diz

que Jesus ainda estava vivo. É uma informação valiosa, porque uma data

não se sujeita a reinterpretações: 45 d.C. é algo fácil de lembrar, mesmo

após muitos anos, e que permanece verdadeiro qualquer que seja a torção

que se dê nos fatos. Essa é a única parte da carta de Bartlett que posso

aceitar sem discussão ou desconfiança de que opinião tenha se misturado

com dados.

E o que foi feito de Jesus depois? Onde teria ido viver? Onde estava

em 45 d.C, a data mencionada no documento? Estaria realmente em Roma e

seria responsável pelos recentes tumultos na comunidade judaica relatados

por Suetônio?

A essa altura só me resta especular, mas certamente posso fazê-lo

nos limites do que se conhece sobre a época. Ao que tudo indica, havia

somente um lugar para onde Jesus poderia ir — de volta ao Egito. Se ele

contava mesmo com o apoio clandestino dos romanos — pela mais cínica

das razões —, então a coisa mais fácil a fazer seria viajar secretamente até o

porto de Cesaréia e pegar um navio dali. É válido supor que estivesse

acompanhado da esposa, que, como sugeri, era Maria Madalena. Ela sem

dúvida sumiu de cena alguns dias após a crucificação. Os Atos dos

Apóstolos não a mencionam uma vez sequer.

Mas para onde no Egito teria ido Jesus? Parece improvável que se

dirigisse a Alexandria, dominada pela família de Filo e pelo general judeu

romano Tibério Alexandre. Não seria de esperar que estes recebessem de

braços abertos um messias judeu, por mais místico que fosse. Além disso,

embora muitos simpatizantes dos zelotes morassem em Alexandria, vários

milhares foram massacrados por Tibério Alexandre quando começaram a

fazer agitação em 66 d.C, no início do que viria a ser a nefasta guerra contra

os romanos na Judéia. Os simpatizantes dos zelotes com certeza notariam e

rejeitariam a sobrevivência de Jesus. Não, o recomendável seria que Jesus e

sua família se mantivessem bem distante de Alexandria.

Somando-se às dificuldades existentes no momento da chegada ao

Egito de Jesus e Maria, havia a crescente tensão entre os gregos e os judeus

em Alexandria e, é certo, nos outros grandes centros judaicos, como Edfu, ao

sul. Essa tensão foi alimentada pelo prefeito romano e eclodiu em um dia de

agosto de 38 d.C. quando todos os judeus de Alexandria foram arrancados

de suas casas e assaltados; muitos perderam a vida. A crucificação tinha

apenas dois anos, se o seu deslocamento para a Páscoa de 36 d.C, como

quer Hugh Schonfield, estiver correto.

Minha impressão é que o refúgio mais seguro para Jesus e Maria

seria no templo de Onias ou em seus arredores, pois, aparentemente, este

era místico e zadoquita sem ser zelote no sentido político. Aqueles que se

reuniam nesse templo eram ignorados por Filo e pelos patrícios

alexandrinos; os simpatizantes alexandrinos dos zelotes olhariam na direção

da Judéia e do Templo de Jerusalém, não do de Onias; e os zelotes da

Judéia, é lógico, teriam ignorado este templo por ser um rival e por não

apoiar seus planos políticos bastante terrenos.

O templo de Onias seria um porto seguro — ao menos por algum <

tempo — até que as tradições místicas envolvendo Jesus e Maria Madalena

ficassem conhecidas e fossem absorvidas pela tradição oral.

Talvez Jesus tenha continuado ensinando tranqüilamente ali.

Talvez tenha voltado aos círculos onde estudara antes. Talvez seja por isso

que os grupos iniciáticos cristãos não-paulinos — muitos deles aliados ao

movimento gnóstico — tenham aparecido no Egito por volta do século II d.C.

Quem sabe não levassem consigo os ensinamentos de Jesus? Essas

perguntas nos forçam a olhar com mais atenção ainda os textos que saíram

do Egito e foram rejeitados pela Igreja de influência paulina. Pois é neles que

provavelmente se poderá ouvir a autêntica voz de Jesus.

E depois que tudo caiu por terra? Depois da guerra na Judéia e do

fechamento do templo de Onias, para onde acho que Jesus foi? Jesus e sua

família devem ter partido muito antes. Mais uma vez, incorrendo em pura

especulação, considero possível que Jesus e sua família tenham

permanecido até os tumultos de 38 d.C. Aquela altura já seria óbvio que o

mais prudente era partir, viajar para um local seguro bem longe do Egito e

da Judéia. Algum lugar onde uma comunidade judaica estaria protegida da

antipatia grega.

Em Narbonne, um importante porto comercial romano na foz do rio

Aude, na França, residia a comunidade judaica mais antiga, talvez, da

região. A área era romana, e ao contrário de Marselha, Lyon e do vale do

Ródano, demorou a ser cristianizada, o que prova que os esforços

missionários da vertente paulina do cristianismo não se fizeram sentir ou

não surtiram efeito na região. E também ali que a prova documental mais

antiga situa uma comunidade de judeus na França, dando conta de uma

população judaica de peso. Narbonne e Marselha são as duas cidades

importantes da região onde lendas posteriores situam a chegada de Maria

Madalena, vinda do Oriente Médio de navio.

Parece ainda plausível que essa comunidade judaica no sul da

França seja a fonte do documento examinado pelo cônego Lilley afirmando

que Jesus estava vivo em 45 d.C. Lilley, como já dissemos, acreditava que o

manuscrito tivesse passado pelas mãos de um grupo gnóstico do sul da

França, os cátaros. Essa linha de especulação também sugere uma fonte do

sul da França para o mesmo.

Seria esse documento alguma forma de genealogia, um texto

cuidadosamente preservado por membros de famílias que reivindicavam

descender da Casa de Davi, que se sabe viviam em Narbonne em época tão

recente quanto a Idade Média? O famoso viajante e escritor judeu Benjamin

de Tudela visitou Narbonne por volta de 1166 e escreveu que a comunidade

judaica local era governada por "um descendente da Casa de Davi, conforme

consta em sua árvore genealógica"23.

Por outro lado, estaríamos lidando com a tradução francesa

medieval de um documento ainda mais antigo, talvez oriundo da própria

Jerusalém e datado do século I d.C? Como veremos, é bastante possível, pois

documentos desse tipo foram descobertos.

No geralmente estranho mundo de antigüidades do Oriente Médio

sempre correram rumores, sempre houve achados de valor, sempre houve

negócios. E circulando em meias palavras e boatos, sempre correu a história

da existência de alguns documentos perigosos para o Vaticano; documentos

que, por tocar em Jesus de forma não especificada, são, sugeriam alguns,

uma espécie de "arma do crime". Ninguém conhecia bem os detalhes, mas os

boatos persistiam e me interessei em ir atrás de sua origem.

Somente oito anos após a publicação de O Santo Graal e a

linhagem sagrada, e com o auxílio de contatos no meio, cheguei à fonte dos

boatos e ao dono dos documentos que constituíam o tema dos mesmos.

Tratava-se de um israelense que durante muitos anos morara em

uma grande cidade européia. Embora fosse um rico empresário, sua paixão

genuína era por objetos antigos com simbolismo religioso, os quais

colecionava sem olhar o preço. Ele me explicou seu raciocínio: "Toda a

humanidade está em busca de um caminho para se comunicar diretamente

com o Divino. Podemos usar o simbolismo para nos ajudar a dar o salto para

o Divino."

O homem tinha cultura, educação esmerada, grande inteligência,

além de vasta esperteza e intuição. Era preciso muita coragem para tentar

lhe passar a perna em um negócio envolvendo antigüidades. Ele me recebeu

em sua casa e me ofereceu café. Sentado num sofá, examinei a mesa de

centro à minha frente. O tampo era de vidro transparente. Sob o mesmo,

havia um grande quadro de cerâmica cinza: uma maquete completa de um

ritual templário cananeu congelado no tempo. As pedras sagradas ficavam

na extremidade do espaço sagrado, e várias pequenas figuras de cerâmica

cumpriam seu papel no culto ritual, supostamente naquele instante. Cada

figura era única e exercia uma função distinta no ritual. Observei a cena,

consciente de estar admirando algo realmente extraordinário. Quem a visse

podia dizer como funcionava o ritual, mas, que eu soubesse, nenhum

estudioso jamais pusera os olhos na peça — ao menos oficialmente.

A casa era repleta de vitrinas, com temperatura e umidade

controladas, contendo vários objetos ímpares — do tipo que qualquer museu

do mundo daria o sangue para ter. Ele me guiou numa visita e apontou para

tesouros especiais antes de voltarmos aos sofás. Sua esposa nos trouxe

outra rodada de café, e ele me contou um pouco da sua história.

No passado fora amigo de Kando, o negociante dos manuscritos do

mar Morto, e costumava lhe servir de intermediário junto aos israelenses.

Tinha se envolvido no caso do Manuscrito do Templo, que indispusera

Kando contra os israelenses. Kando queria vender o manuscrito e meu

amigo levou um fragmento para Yigael Yadin, que lhe disse para comprá-lo

por qualquer preço. As negociações caminhavam quando estourou a Guerra

dos Seis Dias; depois da tomada da Margem Esquerda pelos soldados de

Israel em junho de 1967, Yadin foi à casa de Kando em Belém para pegar

pessoalmente o manuscrito. Sabia que ele estava escondido ali. Kando foi

preso e interrogado durante cinco dias. Descobriu-se, afinal, que o

manuscrito fora enfiado numa chaminé, razão pela qual suas extremidades

foram danificadas.

Kando, furioso com o tratamento recebido, recusou-se a negociar

com qualquer outro israelense, mas disse ao meu amigo que tinha em seu

poder uma grande coleção de manuscritos e fragmentos e que os transferira

para Damasco. Disse ainda que havia outras cavernas que os arqueólogos

desconheciam, nas quais o beduíno achara mais manuscritos. Infelizmente,

ele costumava cortar os textos em pedaços e vendê-los um a um. Assim,

conseguia um preço melhor. Meu amigo me contou que ao longo do último

ano recebera um pedaço de vinte centímetros de um manuscrito maior —

especificamente descrito como sectário e não-bíblico —, mas cujo preço era

de quinhentos mil dólares; o manuscrito inteiro vale dez milhões.

Naturalmente, a quantia era negociável. . 4i

Meu amigo então me contou uma história sobre Yigael Yadin que

eu já ouvira de outras fontes: quando escavou Masada, Yadin descobriu ali

vários fragmentos de textos. Sem dúvida, traduziu alguns, mas levou outros

para Londres, onde os guardou em cofres de diferentes bancos sob nomes

falsos. Meu amigo também disse que havia vendido a Yadin um grande

pedaço de manuscrito que tinha certeza que Yadin depositara em um cofre

em Londres.

Infelizmente, Yadin faleceu em 1984 sem deixar registro dos

bancos em que mantinha cofres ou os nomes sob os quais os alugara.

Assim, até que os bancos abram os cofres e os descubram, esses textos

permanecerão desconhecidos pelo mundo acadêmico.

Foi quando o meu interlocutor levantou o tópico dos "manuscritos

de Jesus".

Nessa altura, sua mulher, à beira de um ataque histérico, saiu da

sala às pressas, agitando as mãos no ar e gritando com ele enfurecida. Como

eu não falava a sua língua, não entendi o que dizia, mas ficou muito claro

que ela não queria que o assunto fosse mencionado.

Meu anfitrião me contou a história: no início da década de 1960,

em busca de antigüidades, ele comprara uma casa na Cidade Velha, em

Jerusalém. Escavou o porão na rocha, perfurando as entranhas do que, no

início da era cristã, eram os arredores do local do templo. Em 1961,

encontrou dois documentos em papiro com um texto em aramaico,

juntamente com alguns objetos que lhe permitiram situar as descobertas em

torno de 34 d.C.

Os textos em papiro eram duas cartas aramaicas dirigidas ao

tribunal judaico, o Sinédrio. O autor, explicou meu amigo, chamava a si

próprio de bani meshiba — o messias dos Filhos de Israel. Fiquei estupefato.

Será que eu ouvira direito? Escutei atentamente suas palavras. Ele

prosseguiu com a narrativa.

Esse indivíduo, o messias dos Filhos de Israel, se defendia nas

cartas de uma acusação feita pelo Sinédrio — havia sido, obviamente,

acusado de se auto-intitular "filho de Deus" e fora instado a se defender

contra tal alegação. Na primeira carta, o messias esclarecia que não tivera a

intenção de dizer que era "Deus", e, sim, que o "Espírito de Deus" habitava

nele — não que fosse fisicamente o filho de Deus, mas, sim, que

espiritualmente era um filho adotivo de Deus. Acrescentava, ainda, que

qualquer um que se sentisse igualmente imbuído do "espírito" era também

um "filho de Deus".

Em outras palavras, o messias — que deve ser o mestre que

conhecemos como Jesus — declara explicitamente que não é divino — ou,

pelo menos, não mais do que qualquer outra pessoa. Isso, podemos estar

certos, é algo que o Vaticano não iria querer que viesse a público.

Enquanto ouvia a história, percebi, chocado, sua semelhança com

um incidente bastante curioso mencionado no Evangelho de João: numa

breve passagem, o Evangelho diz que os "judeus" estavam decididos a

apedrejar Jesus por blasfêmia. Fazem-lhe uma acusação, dizendo: "Sendo

apenas homem, tu te fazes Deus." Jesus reage calmamente, repetindo as

palavras do Salmo 82: "Não está escrito em Vossa Lei: Eu disse: Sois deuses?

Então ela chama deuses aqueles aos quais a palavra de Deus foi dirigida."24

Estará esse Evangelho relatando algum vestígio truncado dessa investigação

do messias pelo Sinédrio?

Tendo descoberto as duas cartas em papiro, meu amigo mostrou-

as aos arqueólogos Yigael Yadin e Nahman Avigad, pedindo-lhes um parecer.

Ambos confirmaram que as cartas eram genuínas e importantes.

Infelizmente, eles também reportaram o fato a alguns acadêmicos

católicos — muito provavelmente alguns dos membros da Ecole Bi-blique,

consultores da Pontifícia Comissão Bíblica —, pois a notícia chegou ao papa

João XXIII. O papa respondeu aos especialistas israelenses pedindo que os

documentos fossem destruídos.

Meu amigo se recusou a atender tal pedido, mas concordou em

prometer que os documentos não seriam publicados antes de 25 anos.

Quando estivemos juntos, o prazo há muito se esgotara, mas ele ainda se

recusava a divulgar os textos por achar que se o fizesse apenas criaria

problemas entre o Vaticano e Israel, inflamando ainda mais o sentimento

anti-semita.

Entendi o que deixara sua esposa nervosa.

É claro que eu estava louco para ver os manuscritos de Jesus com

meus próprios olhos. Queria ter certeza de que realmente existiam e queria

poder dizer: "Sim, eles existem, eu os vi." Mas meu amigo se recusou a

mostrá-los; disse que não estava, no momento, preparado para isso. No

entanto, possuía vários outros tesouros que muito me interessaram e, ao

longo dos meses seguintes, estive várias vezes em sua casa para conversar e

admirar suas aquisições recentes. Então, um dia, no momento em que

cheguei, meu anfitrião veio ao meu encontro colocando o paletó.

— Venha comigo agora — disse ele. — Você está com tempo?

Claro, todo o tempo do mundo.

Fomos de carro até outra área da cidade, onde ele me levou até um

enorme cofre, grande o bastante para entrarmos nele, que, como suas

vitrinas, tinha a temperatura e a umidade controladas. Ali, ele me

presenteou com dois documentos em papiro emoldurados e cobertos com

vidro. Cada um tinha cerca de 45cm de comprimento e 23cm de altura.

Segurei-os nas mãos. Eram os "manuscritos de Jesus", as cartas de Jesus

para o Sinédrio. Elas existiam. Estavam nas minhas mãos. Fiquei em

silêncio e saboreei plenamente o momento.

Mas esse foi também um daqueles momentos de suprema

frustração, quando tudo o que desejo é ter um mínimo de familiaridade com

línguas antigas, como alguns especialistas que conheço. É como segurar um

baú do tesouro sem ter a chave para abri-lo. Não havia, lamentavelmente,

nada a fazer. A despeito dos meus muitos anos de experiência com

manuscritos, fui dominado pelo significado do que eu tinha nas mãos.

Interdito e sem fala, pensei nas mudanças em nossa história que aquelas

cartas causariam caso viessem a público. Mas ao menos se encontravam

seguras. Devolvi-as ao meu amigo. Ele sorriu. Saímos para almoçar.

Não faço idéia do que comemos, de tanto que eu estava tomado

pelas implicações do que acabara de ver. Queria que todos soubessem da

existência dos documentos. Queria gritar no meio da rua para todo mundo

ouvir que a "arma do crime" existe: eu a vi e a tive nas mãos!

Naquele dia, decidi fazer tudo o que pudesse para levar as cartas a

um acadêmico experiente para que as examinasse e traduzisse. E eu sabia

quem procurar.

Foi como eu imaginei que seria quando nosso informante, o

reverendo Douglas Bartlett, nos falou de um manuscrito contendo provas

irrefutáveis de que Jesus ainda vivia em 45 d.C. — há muito eu suspeitava

que tal evidência muito provavelmente viria na forma de documentos

seculares e não bíblicos. É a natureza objetiva de tais documentos que os

torna tão críveis, como no testemunho franco de um homem defendendo a si

mesmo de uma acusação perante um tribunal. Como eu já disse, se algum

dia chegarmos a entender plenamente o Jesus da história, será em

documentos mundanos como esse que encontraremos as maiores pistas e

insights.

Em muitos casos, os arquivos existentes no mundo mal foram

tocados; milhares e milhares de documentos originais habitam enormes

bibliotecas e grandes arquivos do Vaticano, de Istambul, do Cairo, de

Londres, Paris, Berlim e várias outras metrópoles. Volta e meia se descobrem

documentos desconhecidos ou há muito perdidos em todas essas coleções.

Talvez ainda restem fragmentos ou textos mais longos a descobrir,

principalmente nas bibliotecas islâmicas, já que muitos acadêmicos

muçulmanos no início da Idade Média estudaram textos anteriores e

criticaram boas porções deles. Além disso, muitos desses textos derivam de

obras mais antigas em siríaco — uma versão do aramaico, a língua de Jesus

—, oriundas talvez de comunidades cristãs nestorianas e, mais tarde, de

mosteiros, os quais, a partir do século V d.C, tantas vezes serviram de

refúgio para grupos sobreviventes de cristãos da Judéia e seus manuscritos.

Assim, devemos considerar bastante provável que alguns textos antigos,

relevantes quanto à vida e à época de Jesus, venham a ser encontrados em

algum manuscrito mal catalogado numa dessas coleções.

Aí, é claro, como já observamos, surgirão os colecionadores

particulares, que, capazes de pagar em dinheiro vivo, costumam ter direito

de preferência sobre o material retirado de bibliotecas antigas ou descoberto

em câmaras escondidas ou ruínas encontradas sob toneladas de areia.

Inevitavelmente, como veremos, haverá mais descobertas.

NOTAS

1 Especificamente, ao reinado de Alexandre Jannaeus, 103-76 a.C. De Vaux, Observations sur le

Commentaire d'Habacuc découvert près de Ia mer Morte, Revue Biblique, LVIII, 1951, p. 438 e 443. 2 Pesher Habacuc, lQpHab, II 3, Garcia Martínez, The Dead Sea Scrolls Translated, p. 198. 3 Dupont-Sommer, The Dead Sea Scrolls: A Preliminary Survey, p. 95-96. Esta foi uma tradução

inglesa da edição de 1950 de Aperçus préliminaires sur les manuscrits de Ia mer Morte. O termo

usado para "Mestre da Virtude" foi traduzido por "Master of Justice" (Mestre da Justiça) na edição

inglesa. 4 Dupont-Sommer, The Essene Writings from Qumran, p. 373. 5 New Catholic Encyclopaedia, vol. XI, p. 551. 6 Burrows, The Dead Sea Scrolls, p. 51. 7 Id., ibid., p. 52. 8 De Vaux, Observations sur le Commentaire d'Habacuc découvert près de Ia mer Morte, Revue

Biblique, LVIII, 1951, p. 438. 9 De Vaux, Fouille au Khirbet Qumran, Revue Biblique, LX, 1953, p. 93. 10 De Vaux, Fouille au Khirbet Qumran, Revue Biblique, LX, 1953, p. 94. 11 Murphy, Lagrange and Biblical Renewal, p. 60. 12 Carta de John Allegro para o padre de Vaux, em 7 de março de 1956. Para o relato dos conflitos

entre John Allegro e outros membros da equipe internacional, ver Baigent e Leigh, The Dead Sea

Scrolls Deception, p. 45-60. 13 Baigent e Leigh, The Inquisition, p. 230. Tradução de Garcia Martínez, The Dead Sea Scrolls

Translated, p. 138. Ver, ainda, Eisenman e Wise, The Dead Sea Scrolls Uncovered, p. 68-71. 14 De Vaux, Archaeology and the Dead Sea Scrolls, p. 20. 15 Baignet e Eisenman, A Ground-Penetrating Radar Survey testing the claim for earthquake damage

of the Second Temple ruins at Khirbet Qumran, The Qumran Chronicle, 9, 2000, p. 136-137 e mapas,

p. 134-135. 16 Sobre os ataques ao prof. Godfrey Driver e ao lente em estudos judaicos Cecil Roth, ambos de

Oxford, ver Baigent e Leigh, The Dead Sea Scrolls Deception, p. 152 e p. 163-4; ver Mack, The Lost

Gospel, p. 248-9 sobre o problema da tentativa de teólogos de investigar as origens cristãs; para

problemas similares quanto aos acontecimentos no Antigo Testamento, ver Thomas L. Thompson, The

Bible in History: How Writers Create a Past, Londres, 1999, p. XV, na qual ele descreve como essa

remoção da história de Israel da mitologia do Antigo Testamento o fez perder a cátedra em sua

universidade americana. Felizmente, ele foi nomeado professor de Antigo Testamento na Universidade

de Copenhague. 17 Comparar, por exemplo, a Epístola de Tiago 2,10 com a Epístola de São Paulo aos Romanos, 3,28. 18 The Atlantic Monthly, dezembro de 1986, p. 39.

19 Mack, The Lost Gospel, p. 237. 20 Id., ibid., p. 238. 21 Id., ibid., p. 219. 22 Baigent e Leigh, The Dead Sea Scrolls Deception, p. 132-136. Eisenman e Wise, em The Dead Sea

Scrolls Deception, escrevem à p. 69: "É impossível, distinguir do material encontrado neste corpus

idéias e terminologia associadas à Comunidade de Tiago, o Justo em Jerusalém" — sendo o corpus os

manuscritos do mar Morto. 23 Zuckerman, A Jewish Princedom in Feudal Trance 768-900, p. 58. 24 Evangelho de João 10,33-35.

CCAAPPÍÍTTUULLOO XXIIVV

NNEEGGOOCCIIAANNDDOO CCUULLTTUURRAA

INÍCIO DA NOITE. A claridade no meu escritório começava a

escassear. O céu inglês se preparava para escorregar para a escuridão do

horizonte noturno. O professor Eisenman e eu, sentados, conversávamos

calmamente, mas desatentos, quando chegou o momento esperado: meu fax

de repente entrou em ação, com seu barulho irritante. Fica-' mos ambos

calados, antecipando o que logo veríamos.

Por um momento, me assaltou uma sensação divertida e

desgastante sobre a estranheza potencial do momento. Esperávamos receber

de um hotel na Suíça parte do texto de um manuscrito do mar Morto de dois

mil anos. Agora, linha por linha, o fax estava entrando.

Quando surgiu a primeira página, Eisenman, impaciente,

arrancou-a da máquina, deu uma rápida olhada e jogou-a com desdém no

meu colo. Vi logo que não havia motivo para entusiasmo. Tratava-se da cópia

de um texto sobre o manuscrito do Tora judaico talvez com a idade de cem

ou duzentos anos — uma boa compra, mas nada incomum e, com certeza,

de forma alguma parte de qualquer manuscrito do mar Morto. Ficou evidente

para nós que os proprietários muçulmanos desse texto não faziam idéia de

que houvesse alguma diferença entre os dois. Não nos surpreendemos. Pôr

as mãos no tipo de texto que esperávamos não passava de uma possibilidade

remota, mas era preciso tentar, mesmo assim, já que nunca se sabe quando

algo realmente importante pode aparecer. E essas oportunidades costumam

ocorrer, como eu viria a descobrir pouco depois, nas circunstâncias mais

inusitadas.

Na primavera seguinte, minha mulher e eu fomos a um almoço na

casa de um amigo americano que mora na ilha mediterrânea de Majorca.

Havia outros convidados presentes, inclusive um empresário que eu já

encontrara uma ou duas vezes antes.

— Li seu livro sobre os manuscritos do mar Morto — disse de

repente, aproximando-se de mim.

Fiquei surpreso. Pelo que eu sabia, ele era um empresário que

trabalhava dentro — mas bem perto das margens — da lei, e os manuscritos

do mar Morto não soavam como um tema do seu interesse. Morava em um

dos países do Golfo com a esposa mais recente e havia ganho, e perdido,

várias fortunas. Em qual desses momentos do ciclo se encontrava não me

interessava descobrir.

— Sei onde existem outros manuscritos.

— Outros manuscritos do mar Morto? — perguntei, ainda

perturbado com o que parecia, vindo dele, uma conversa insólita.

— E — respondeu. — No Kuwait. Eles valem muito? —

acrescentou, de um jeito que soaria razoavelmente inocente em outra

pessoa.

— Valem — respondi, mantendo a aparência de desinteresse, mas

registrando o subtexto, que, de repente, despertara a minha atenção. — Se

forem do tipo certo. Os manuscritos sectários, isto é, os específicos da

comunidade judaica que os produziu e que descrevem em detalhes suas

regras e atitudes em relação ao Templo, são valiosos. Os chamados peshers,

os comentários sobre partes dos textos bíblicos, também valem bom

dinheiro. Os textos bíblicos padrão são os menos valiosos.

Ele ficou um instante calado. Eu esperei. Acho que prendi a

respiração.

— Você precisa falar com um amigo meu — disse ele, finalmente.

— Ele trabalha no Serviço Secreto.

Em seguida mencionou um país do Golfo e acrescentou:

— E tem ótimos contatos. Mas me deixe falar com ele primeiro.

— Tudo bem — respondi friamente. — Mande os detalhes quando

puder.

Como não tive notícias nos dias que se seguiram, voltei para casa

na Inglaterra. Logo depois, porém, recebi um fax. "Ligue para Saad", dizia,

fornecendo seus vários telefones. Mas no final vinha uma recomendação:

"Ele não quer que os manuscritos parem nas mãos dos israelenses." Notei

que a política moderna, como sempre, se intrometia.

Imediatamente liguei para Saad e, desconfiado da sua afirmação de

ter acesso a alguns manuscritos, interroguei-o. Ele foi direto: sua família

conhecera Kando, o negociante de antigüidades em Belém que havia sido a

fonte dos manuscritos originais e que muitos suspeitavam possuir outros

mais. Saad repetiu o que eu já ouvira: os manuscritos em questão estavam

no Kuwait, mas nas mãos de um parente.

— Você pode me dar uma descrição detalhada? — perguntei,

lembrado da situação vivida por mim e Eisenman com o manuscrito do Tora.

Saad ficou de me dar um retorno.

Mais ou menos uma semana depois, ele me ligou com a informação

que eu pedira: eram dois manuscritos distintos, mas ambos redigidos em

couro fino. Fiquei animado. Tudo indicava que fossem genuínos. No entanto,

ainda faltava algo para eu poder seguir em frente.

— Saad, eu posso levantar o dinheiro para comprar esses textos,

mas, para começar a negociar o preço, preciso saber de que tipo de

manuscrito estamos falando e quanto devem valer. Você pode me arrumar

uma foto de um pedaço do texto de cada um deles?

Mais uma vez, Saad disse que voltaria a me contatar, mas antes de

desligar abordou o mesmo tema de que já falara antes. Ele me fez prometer

que os manuscritos não iriam parar nas mãos dos israelenses.

Respondi que essa era uma promessa impossível, já que eu não

tinha idéia do que seria feito deles depois da venda, mas chamei a atenção

para o fato de que os recursos que eu esperava obter viriam de uma fonte

americana. Isso pareceu satisfazê-lo.

Imediatamente, me pus em campo para providenciar o dinheiro,

calculando que a proposta começaria na casa de um a dois milhões de

dólares. Com efeito, alguns anos antes, um grupo de financistas americanos

me procurara, explicando preferir investir em manuscritos antigos do que

em títulos e ações e pedindo que eu entrasse em contato caso esbarrasse em

algum manuscrito, principalmente se fosse do mar Morto. Como essa fonte

de recursos prometia ser extremamente útil no futuro, concordei sob uma

condição: os especialistas teriam acesso aos documentos para estudá-los e

traduzi-los, tão logo eles fossem adquiridos. Respeitada essa condição, os

investidores poderiam ficar com todos os direitos de publicação. O acordo

lhes pareceu razoável, e eles me garantiram que assim fariam.

Liguei para os investidores e, como imaginara, eles se

interessaram. Prometi novo contato assim que visse as fotos e tivesse

condições de saber exatamente de que tipo de manuscritos se tratava.

Então, esperei que Saad as enviasse. Infelizmente, estou esperando até hoje.

Nunca mais tive notícias. Ele provavelmente se assustou com o envolvimento

de investidores que lhe eram desconhecidos e a falta de garantia de onde

iriam parar os manuscritos.

Ao menos, porém, influa como influir a postura política, sabemos

que esses manuscritos se encontram no Kuwait, guardados como

investimentos pela família de Saad e de outros como ele. Mais cedo ou mais

tarde, o dinheiro trocará de mãos e a qualquer hora os especialistas terão

acesso a eles, pois um investimento só é vantajoso na medida do potencial

de lucro que possui, mesmo se levar mais de uma geração para que se feche

uma venda. O lado negativo de negociar dessa forma é que sem o cuidado

especializado esses documentos podem se deteriorar e até acabar se

desintegrando. Só resta torcer para que mesmo o especulador mais novato

entenda isso e tome medidas para proteger o seu investimento.

É claro que aqueles dois eram apenas uma parcela de uma

variedade que se sabe "estar por aí". Magen Broschi, ex-diretor do Santuário

do Livro em Jerusalém, local onde estão expostos os manuscritos do mar

Morto, me disse que sem dúvida existem outros manuscritos nos quais os

especialistas ainda não puseram os olhos. Despertei seu interesse, uma

ocasião, quando lhe falei do manuscrito oferecido ao chefe da CIA em

Damasco, Miles Copeland. Broschi, então, propôs um arranjo interessante.

Ele me disse:

— Se você conseguir alguma informação sobre isso, eu troco com

você... — interrompendo-se, buscou uma expressão mais adequada em sua

língua. — ...você e eu cruzaremos dados complementares sobre os

manuscritos perdidos.1

Ultimamente têm corrido fortes boatos de fontes normalmente

confiáveis sobre um outro lote de textos gnósticos que estaria à venda. Sua

origem é Nag Hammadi, o local onde se deu a descoberta original dos textos

gnósticos em 1945. Caso eles derivem realmente da mesma antiga biblioteca

monástica, há grandes chances de serem textos ainda desconhecidos. Em

outras palavras, um verdadeiro tesouro para os especialistas e uma fonte de

dados a ser explorada por toda uma nova geração de acadêmicos. Aguardo

com considerável ansiedade a vinda à luz desses textos.

A maneira obscura como esse mercado irregular opera sem dúvida

é frustrante para as autoridades e para os especialistas, mas todos

compactuam com tais restrições porque, devido a uma variedade de razões,

essa é a única maneira de ter acesso ao material que aí circula

discretamente. As transações são conduzidas sem qualquer alarde, às vezes

até secretamente. Informações precisas sobre o que trocou ou não de mãos e

a que preço são difíceis de obter. Tudo é feito no boca-a-boca. Os acordos

particulares, uma vez firmados, não são rompidos. Todos os negócios

envolvem altas somas, mas se realizam sem grandes formalidades, quase

como se num impulso. No entanto, por trás dessa aparência, os negociantes

têm olho clínico para o lucro, assim como os colecionadores têm olho clínico

para o valor: ninguém é bobo.

Todos os participantes se pautam por uma única certeza neste

mercado: a de que se houver dinheiro, as antigüidades surgirão e darão a

sua contribuição para o legado cultural do mundo.

Nos meus muitos anos de envolvimento neste mercado, já ouvi um

bocado de histórias e já conheci alguns dos personagens que deram origem a

elas. Uma que me impressionou dizia respeito à antiga cidade judaica de

Khaybar, na Arábia, a cerca de 140km de Medina. Na época de Maomé,

Khaybar era um rico centro comercial, bem fortificado com muros e castelos

defensivos, mas, quando seu exército lutou contra Maomé, acabou sitiada e

finalmente tomada. Após a morte de Maomé, a maioria dos judeus foi

expulsa e muitos foram viver em Jericó.

Na década de 1980, o governo saudita estava construindo uma

estrada na região. Um trator desencavou algumas ruínas, revelando uma

casa que um dia pertencera a um rico intelectual, bem como sua biblioteca

repleta de manuscritos e códices — centenas deles. Havia, segundo me

contaram, peças teatrais de autores gregos e romanos, sendo algumas delas

as únicas sobreviventes que existem. O item mais importante, contudo, era o

códice de uma antiga edição das histórias judaicas de Josefo. Todas as

edições de Josefo que existem datam do período medieval, contendo trechos

cristãos que nelas foram inseridos e só Deus sabe o que delas pode ter sido

removido. Esse códice precedeu toda a manipulação política a que já nos

referimos e pertencia a um intelectual judeu. É válido supor que seja

original. Contaram-me que ele contém todas as referências originais ao

Zaddikim, os "Virtuosos" — evidentemente o mesmo grupo que produziu os

manuscritos do mar Morto —, referências essas removidas de todas as

edições de Josefo que sobreviveram.

Embora boa parte do material judaico encontrado em países

islâmicos costume ser destruída devido às políticas modernas e ao desejo de

suprimir qualquer indício que sugira uma presença judaica nesses países no

passado, sempre alguma coisa escapa e é discretamente oferecida no

mercado. Conheci o dono desses textos, que enchiam seis malas. No

momento, estão guardados, esperando, talvez, um lucro futuro. Infelizmente,

ele não cedeu aos meus pedidos para vê-los e para providenciar sua

catalogação por um especialista.

Para ser franco, esse meu desejo me causou um baita problema

uma vez. Eu mencionara a existência desses textos a um especialista que

conheço. Apresentei os dois homens na esperança de que se entendessem e

que talvez o especialista acabasse ganhando acesso à coleção para estudá-la

e publicá-la. Na semana seguinte — sem me avisar dos seus planos —, o

especialista e o decano da universidade onde lecionava visitaram o meu

contato com a oferta de construírem uma fundação acadêmica

multimilionária para abrigar os textos, caso fossem doados à instituição.

Meu contato me ligou naquele mesmo dia, muito zangado, para me

dizer que havia expulsado de casa os dois professores e que se eu o pusesse

novamente numa situação dessas, ele não falaria mais comigo. Fiquei

envergonhado e, é claro, desapontado com o fato de o especialista tê-lo

procurado pelas minhas costas. Mas não fiquei surpreso. Na verdade, fui

forçado a admitir que, do ponto de vista do especialista, a tentativa com

certeza valia a pena. No final, porém, o plano fracassou e, pelo que sei, os

manuscritos continuam guardados.

Ninguém tem como dizer quanto tempo esse tipo de queda-de-

braço entre especialistas, negociantes e colecionadores ainda vai durar.

Sem dúvida existe uma grande quantidade de descobertas que eu

espero em breve se torne acessível aos especialistas, mas as circunstâncias

atenuantes que as mantêm em segredo são variadas e complexas. Em

especial, temos a questão jurídica.

Em 1970, a Unesco promoveu um encontro para analisar maneiras

de acabar com o comércio ilegal de antigüidades, de forma a assegurar a

preservação da herança cultural de um país. O resultado foi uma proposta

para que os membros da Unesco repatriassem quaisquer antigüidades

roubadas ou exportadas descobertas em outros países. Infelizmente, o

impacto desse acordo foi neutralizado quando muitos países se recusaram a

assiná-lo ou levaram anos para fazê-lo.

Em 1995, teve lugar um congresso europeu envolvendo o Unidroit,

uma instituição jurídica baseada em Roma, especializada na coordenação de

legislações entre países, a fim de implementar o acordo de 1970 da Unesco.

Esse congresso se concentrou especificamente na devolução de objetos

culturais roubados. Enquanto o encontro anterior lidara com objetos tirados

de museus, igrejas ou outras instituições, o acordo elaborado em 1995

declarou que todos os objetos culturais ilegalmente nas mãos de um

colecionador — quer tivessem sido originalmente escavados dentro da lei

numa escavação autorizada, quer tivessem sido pilhados — seriam

considerados roubados. Ainda que sua aquisição fosse fruto de boa-fé, sua

devolução ao país de origem seria obrigatória. A lei estipulava que o

adquirente — se inocente — seria indenizado por quaisquer prejuízos

financeiros. Essa obrigação de indenizar adquirentes inocentes pôs em

desvantagem os países mais pobres, resultando daí que vários países

membros se recusaram a ratificar esta lei também.

O aparecimento dessas leis, ratificadas ou não, fez com que os

colecionadores de objetos de risco passassem a mantê-los ainda mais

escondidos. Como já observamos, alguns países do Oriente Médio querem

eliminar quaisquer vestígios históricos de uma presença judaica em seu solo.

Quaisquer antigüidades que forneçam tais indícios devem ser destruídas

quando encontradas. Naturalmente, muitas não o são. Em vez disso, saem

do país sob a proteção de passaportes diplomáticos ou com uma

documentação aparentemente válida, sendo vendidas na surdina a

colecionadores. Se os princípios da Unesco ou do Unidroit fossem

devidamente aplicados, esses objetos seriam devolvidos a esses países, onde

com toda a certeza seriam destruídos. O problema é que não há como

oficialmente mostrá-los a especialistas ou instituições acadêmicas ou

museus, já que tal publicidade decerto obrigaria ao cumprimento das

disposições da Unesco e do Unidroit.

Certa vez me mostraram o enorme entalhe em pedra do símbolo

judaico-cristão do castiçal de sete braços — o menorá — pousado sobre uma

cruz também de sete braços. A peça toda tinha mais ou menos um metro

quadrado. O colecionador então me mostrou uma foto, reproduzida num

livro antigo, de um símbolo idêntico pendurado na parede de uma sinagoga

na Síria. Fiquei confuso. "Parece ser o mesmo...", comecei a dizer. "E é",

respondeu ele, "é a mesma peça. Os sírios destruíram o prédio e passaram

uma estrada sobre o local, mas eu consegui comprar o entalhe".

Gostaríamos realmente de devolvê-lo à Síria?

Os exemplos, porém, não justificam grande parte desse comércio

clandestino, pois a preservação do objeto — o tablete de argila com escrita

ou o entalhe — representa apenas uma pequena parte do seu valor para a

cultura de um país. O que é extremamente importante para os especialistas

é o contexto em que esses objetos foram descobertos, por ser tal contexto o

que lhes permite acesso a informações sobre o passado. Infelizmente, o

mercado negro opera dentro de um sigilo quase absoluto e, além disso, uma

vez escavado, um sítio arqueológico está acabado — não pode retornar ao

que era antes. Assim, quando um objeto aparece no mercado sem qualquer

informação sobre a procedência, seu valor para a nossa herança cultural é

fatalmente reduzido, bem como o do sítio do qual foi retirado.

Existe, realmente, uma vasta quantidade de textos, manuscritos e

documentos seculares de valor no mercado negro — quanto a isso não há

dúvida. E é inevitável que boa parte desse material escrito chegue, no devido

tempo, às mãos dos especialistas que os traduzirão. Só desse fato pode-se

esperar que surjam descobertas importantes. Como vimos, contudo, a

tradução de um texto não é senão o começo de um processo mais

importante: a tarefa de interpretação, de compreender o que o texto

esclarece a respeito daqueles que o produziram. Quanto a isso, o contexto é

tudo: ele fornece uma medida da sua realidade ou da fantasia.

Ao longo da elaboração deste livro buscamos conhecer um contexto

muito especial — o da Judéia e do Egito no século I da era moderna, um

período em que poucos são os fatos sobre os quais temos certeza. Vimos

como o contexto pode ser controlado e forçado a fundamentar uma história

que simplesmente não tem como ser verídica. O Jesus da história não pode

ter sido como o apresenta a teologia do Jesus da fé.

Ao longo da nossa jornada, descobrimos que Jesus rejeitou a

atividade política dos zelotes que o apoiavam. Essa é uma informação de

crucial relevância de que não dispúnhamos. Vimos, também, que não

existem provas de que ele morreu na cruz: com efeito, todos os indícios que

sobreviveram sugerem o contrário. E se ele não morreu na cruz, como fica a

ressurreição? A sua divindade? Sua igualdade na Santíssima Trindade?

Essas reivindicações todas se desintegram quando cessa a fantasia.

Descobrimos que todas as assertivas sobre Jesus vieram muito

mais tarde, como resultado de um invólucro de papel brilhoso a embrulhar

alguns acontecimentos históricos que foram deliberadamente distorcidos

para servir a um programa teológico estrito, que contém — até hoje — várias

noções esquisitas e excêntricas. A principal entre elas é a crença de que

apenas homens compunham o círculo mais próximo de discípulos de Cristo,

de modo a justificar que as mulheres não possam atuar como sacerdotes,

bispos ou papas. Com essa descoberta, a dominação masculina da sucessão

apostólica cai por terra, juntamente com o próprio conceito de sucessão

centrado em Roma.

Fundamentalmente, descobrimos que não há provas de que Jesus

pretendia ser cultuado como um deus. Ao contrário, seus ensinamentos

indicam que ele queria que cada indivíduo tivesse a oportunidade de viajar

para o Além-Mundo para encontrar por si próprio o Divino ou, como diz ele,

viajasse para o reino dos céus a fim de se imbuir do "Espírito de Deus".

Onde terá Jesus aprendido tudo isso? Não na Galiléia, concluímos,

e, sim, provavelmente no Egito, onde a comunidade judaica parece ter sido

mais diversificada do que na Palestina e adepta de uma abordagem mais

mística da religião.

Além disso, nada em nossos achados sugere que Jesus tenha um

dia planejado uma religião, quanto menos encorajado outros a transcrever

suas palavras e organizá-las numa coletânea oficial. Na verdade, o contrário

é muito mais provável. Desconfio que ele não se importaria nem um pouco

em ser esquecido por todos; o que lhe importava era que as pessoas não se

esquecessem do caminho para o reino dos céus, noção essa que não é

exclusiva do cristianismo e do judaísmo: "Ignorar o divino é o maior de todos

os males", proclamam os textos atribuídos ao sábio egípcio Hermes

Trismegisto.2

Deve estar claro agora que essa história é maleável: temos nossos

fatos, mas nunca em número suficiente para pôr a mão no coração e dizer,

com toda a honestidade, que sabemos com certeza o que aconteceu. Toda

história é um mito, um relato criado para tirar algum sentido dos poucos

acontecimentos que temos a chance de conhecer; o passado é uma hipótese

construída para explicar e justificar o presente.

De certa maneira isso não importa, pois os mitos existem para

comunicar significado, não história. Nesta era científica, porém, queremos

saber que os mitos que nos sustentam são — se não verdadeiros — ao

menos fundados numa mínima aproximação da verdade. Queremos saber

que Jesus foi realmente crucificado, que César foi mesmo assassinado por

Brutus, que Paulo teve, sim, uma experiência mística a caminho de

Damasco. Todos esses acontecimentos são plausíveis e não existe nenhum

motivo intrínseco para que não sejam verídicos.

Mas o que fazemos com a nossa crença em que, por exemplo,

Jesus andou sobre a água? Que ressuscitou dos mortos? Que Pedro fundou

a Igreja Romana com papas infalíveis? Nenhuma dessas crenças é plausível

e não existe nenhum motivo intrínseco para que qualquer delas seja

verídica. No entanto, existem muitos que crêem nos dois conjuntos de

assertivas.

Nosso mundo moderno é dominado pelas "religiões do livro": o

cristianismo, o judaísmo e o islamismo. Vê-se que basear a verdade na

palavra escrita a torna vulnerável a todos os problemas que resultam da

interpretação e da tradução, sem falar na distorção religiosa. O perigo é que

os livros implicam depender da fé em lugar do conhecimento; se houve um

tema subjacente em nossa jornada, foi o de que é preciso empreender a

viagem por conta própria, vivenciando suas dificuldades, prazeres e

percepções diretamente, em vez de confiar no relato ou na experiência de

outros.

E com esse pedido devo encerrar a nossa jornada, não porque não

há mais aonde ir, pois é claro que há, mas porque já viajamos muito e agora

é hora de parar e refletir sobre quão longe chegamos.

Ao parar, só resta citar o grande persa sufi Jelaluddin Rumi, que,

indo direto ao cerne da questão, como sempre foi do seu feitio, gritou para

todos que se dispuseram a ouvi-lo: "Jarros de água da fonte já não bastam.

Levem-nos ao rio!"3

Beber do rio é nosso direito inalienável.

Que ninguém nos prive dessa liberdade!

NOTAS 1 Entrevista com Magen Broschi em 21 de maio de 1990. 2 Hermética, tratado XI, 21 (Copenhaver, p. 42). 3 Rumi, The Glance, poema "Jars of Springwater", p. 1.

CCRROONNOOLLOOGGIIAA

A JUDÉIA, JESUS E O CRISTIANISMO

Antes de 4 a.C. — Nascimento de Jesus segundo o Evangelho de Mateus (Mateus 2,1).

4 a.C. — Morre Herodes, o Grande.

6 d.C. — Nascimento de Jesus segundo o Evangelho de Lucas (Lucas 2,1-7). Censo de Quirino,

governador da Síria.

27-28 d.C. — Batismo de Jesus (data tradicional) no 15° ano do reinado do imperador Tibério

(Lucas, 3,1-23).

30 d.C. — Crucificação de Jesus segundo o academicismo católico.

c.35 d.C. — Em seguida ao casamento de Herodes Antipas e Herodíades, em c. 34 d.C, João

Batista é executado, segundo se conclui em Josefo.

36 d.C. — Páscoa — crucificação de Jesus (segundo cálculos de Mateus).

36-37 d.C. — Conversão de Paulo no caminho para Damasco.

c. 44 d.C. — Execução de Tiago, o irmão de Jesus.

50-52 d.C. — Paulo em Corinto. Sua primeira epístola, "aos tessalonicenses".

61 d.C. — Paulo em Roma em prisão domiciliar. Supostamente executado em c. 65 d.C.

66-73 d.C. — Guerra na Judéia. O exército romano comandado por Vespasiano invade a Judéia.

c. 55-120 d.C. — Período em que vive Tácito, historiador e senador romano que menciona

Cristo.

c. 61-C.114 d.C. — Período em que vive Plínio, o Jovem, que menciona Cristo.

c. 115 d.C. — Inácio, bispo de Antioquia, faz citações tiradas de Epístolas de Paulo.

c. 117-138 d.C. — Suetônio, historiador romano, menciona "Chrestus".

c. 125 d.C. — Primeira amostra de que se tem notícia de um evangelho cristão, João 18, 31-33.

Papiro Rylands, descoberto no Egito.

c. 200+ d.C. — Fragmento mais antigo de que se tem notícia das epístolas de Paulo. Papiro

Chester Beatty, descoberto no Egito.

c. 200+ d.C. — O mais antigo Evangelho praticamente completo (João). Papiro Bodmer,

descoberto no Egito.

325 d.C. — Concilio de Nicéia, convocado pelo imperador romano Constantino. A divindade de

Jesus torna-se dogma oficial por uma votação de 217 a 3.

391 d.C. — O imperador Teodósio proíbe todas as religiões pagãs no Império Romano.

393 d.C. — Concilio de Hipo, consolidação do Novo Testamento, completada no Concilio de

Cartago, 397.

OS MACABEUS E HERODES

401 a.C. — Completa-se a reconstrução do Templo judaico na ilha Elefantina, em Assuã, no sul

do Egito.

332 a.C. — Alexandre, o Grande invade Israel e o Egito.

323 a.C. — Morte de Alexandre. Seus generais dividem entre si o império: depois de anos de

luta, Ptolomeu fica com o Egito e Seleuco com a Síria, a Mesopotâmia e a Pérsia. Israel, no início, é

governado por Ptolomeu.

170 a.C. — Antíoco Epifanes, governante selêucida da Síria, invade a Judéia e o Egito. Onias

III, sumo sacerdote do Templo, foge para o Egito com vários sacerdotes e funda um templo judeu no

Egito.

169 a.C. — Os sírios invadem a Judéia pela segunda vez. O Templo é saqueado.

167 a.C. — Nova invasão síria, massacre dos habitantes de Jerusalém e reconsagração do

Templo a Zeus. O sacerdote do Templo, Matatias (da dinastia hasmoniana), e seus filhos dão início a

uma revolta contra os sírios.

166 a.C. — Morre Matatias. Seu filho, Judas Macabeu, assume o comando.

160 a.C. — Judas Macabeu é derrotado e morto. Seu irmão Jônatas assume seu lugar.

152 a.C. — Jônatas é nomeado sumo sacerdote do Templo de Jerusalém.

143 a.C. — Jônatas é preso. Seu irmão Simão torna-se sumo sacerdote e governante da Judéia.

142 a.C. — A Judéia fica independente sob o comando de Simão, que faz uma aliança com os

romanos.

134 a.C. — Simão é morto. Seu filho João Hircano o sucede como sumo sacerdote e governante

da Judéia.

104 a.C. — Governo de Aristóbulo, que assume o título de rei da Judéia (da dinastia

hasmoniana).

103-76 a.C. — Alexandre Janeu é rei e sumo sacerdote da Judéia.

67-63 a.C. — Aristóbulo II é rei e sumo sacerdote da Judéia.

63 a.C. — O general romano Pompeu toma Jerusalém.

37 a.C. — Herodes se casa com Mariamna, neta do rei da Judéia Aristóbulo II. Herodes toma

Jerusalém e se torna rei.

4 a.C. — Morte do rei Herodes.

O SÉCULO I

4 a.C. — Morte do rei Herodes.

6 d.C. — Revolta zelote comandada por Judas da Galiléia.

26 d.C. — Pôncio Pilatos é nomeado prefeito da Judéia (até 36 d.C).

36 d.C. — Pôncio Pilatos é chamado de volta a Roma e exilado.

38 d.C. — Levantes e morticínios anti-semitas em Alexandria, estimulados pelo prefeito Flaco.

39 d.C. — Exílio de Herodes Antipas nos Pireneus, na França, c. 44 d.C. — Execução de Tiago,

o irmão de Jesus.

46-48 d.C. — Tibério Alexandre é prefeito da Judéia. 64 d.C. — Incêndio da Roma de Nero.

Prisão de cristãos. 66 d.C. — Tibério Alexandre, general judeu do exército romano, é prefeito do

Egito.

66 d.C. — Revolta em Alexandria. O prefeito Tibério Alexandre envia seus soldados. Vários

milhares de judeus são mortos.

66-73 d.C. — Guerra na Judéia. O exército romano comandado por Vespasiano invade pela

Galiléia.

69 d.C. — Vespasiano é proclamado imperador. Nomeia o filho Tito comandante do exército.

Tito nomeia Tibério Alexandre chefe do estado-maior.

67 d.C. — Josefo, líder militar judeu na Galiléia, deserta para o lado romano após uma derrota.

Escreve histórias judaicas durante sua moradia no palácio imperial em Roma: Jewish War [A guerra

judia], 77-78 d.C, Antigüidades dos judeus, c. 94.

70 d.C. — Destruição do Templo de Jerusalém, depois da qual Vespasiano persegue e executa

todos os membros da Casa Real de Davi. Jerusalém é rebatizada de Aelia Capitolina e todos os judeus

são proibidos de entrar na cidade.

70 d.C. — Os romanos permitem que o fariseu Joana Ben Zakkai funde uma escola religiosa e

crie o Sinédrio em Jabneh. Origem do judaísmo rabínico. A escola e o Sinédrio sobrevivem até 132

d.C.

73 d.C. — Destruição de Masada. Novecentos e sessenta zelotes se suicidam para não serem

capturados. Fechamento do templo judeu (de Onias) no Egito.

O SÉCULO II

c. 55-120 d.C. — Período em que vive Tácito, historiador e senador romano que menciona

Cristo.

61-2-C.114 d.C. — Plínio, o Jovem, que menciona Cristo.

c. 115 d.C. — Inácio, bispo de Antioquia, faz citações tiradas das Epístolas de Paulo.

115 d.C. — Lucuas, o "Rei dos Judeus", lidera revolta em Alexandria. A comunidade judaica no

Egito é destruída.

117-138 d.C. — Anos de produção das obras de Suetônio, historiador romano que menciona

"Chrestus".

c. 120 d.C. — O mestre gnóstico Valentim estuda em Alexandria.

131-135 d.C. — Simão bar Kochba lidera revolta na Judéia.

133 d.C. — Nove a doze legiões romanas invadem a Judéia pelo norte.

135 d.C. — Os soldados judeus são vencidos. O imperador romano Adriano muda o nome da

Judéia para Palaestina (atual Palestina).

c. 135 — O teólogo cristão Justino Mártir discute com o intelectual judeu Tripho.

c. 140 d.C. — Marcião chega a Roma e começa a ensinar. Rejeita

0 Antigo Testamento e usa apenas o Evangelho de Lucas e algumas Epístolas de Paulo.

c. 150 d.C. — Os primeiros escritores cristãos começam a condenar os gnósticos.

154 d.C. —Justino Mártir acusa Simon Magus (meados do século

1 d.C.) de ser a fonte de todas as heresias.

c. 180 d.C. — Irineu, bispo de Lyon, escreve contra os gnósticos. Elabora a primeira lista de

textos para um Novo Testamento canônico.

c. 195 d.C. — Clemente, bispo de Alexandria, escreve a respeito do Evangelho secreto de

Marcos e contra os gnósticos, mas nutre simpatia pelos segredos, mistérios e iniciações que fazem

parte do cristianismo alexandrino.

c. 197 d.C. — Tertuliano se converte ao cristianismo: é ativamente contrário à heresia e a que

mulheres assumam posições de liderança na Igreja.

DO SÉCULO III AO SÉCULO V

250 d.C. — Perseguição aos cristãos durante o governo do imperador romano Décio, a partir da

execução do bispo de Roma, Fabiano.

254-257 d.C. — Papado de Estevão I, o primeiro bispo de Roma a reivindicar a primazia sobre

todos os outros bispos cristãos, atribuindo-a à sucessão do apóstolo Pedro.

258 d.C. — O imperador romano Valeriano ordena a execução de todo o clero cristão.

303 d.C. — Início da perseguição aos cristãos pelo imperador romano Diocleciano, seguida de

mortes e destruição.

313 d.C. — O Edito de Milão, do imperador romano Constantino, decreta a liberdade religiosa

para todos os cristãos.

324 d.C. — O imperador Constantino faz de Constantinopla (atual Istambul) a capital do

Império Romano, sede de todos os registros administrativos.

337 d.C. — Morre o imperador Constantino.

366-384 d.C. — O papa Dâmaso I intitula Roma de "sé apostólica" — o único lugar com direito

a reivindicar uma descendência contínua dos apóstolos —, ordenando que seu secretário Jerônimo

revise o texto da Bíblia.

367 d.C. — Atanásio, bispo de Alexandria, decreta que todos os livros "não-canônicos" no

Egito sejam destruídos.

386 d.C. — Prisciliano, bispo de Ávila, na Espanha, é executado por heresia, a primeira

execução pelo crime de heresia contra a doutrina da Igreja.

390 d.C. — Um exército de gauleses sitia e destrói boa parte de Roma.

401-417 d.C. — O papa Inocêncio I decreta que Roma tem autoridade suprema sobre a Igreja

Cristã.

410 d.C. — Os visigodos atacam e destroem Roma.

440-461 d.C. — O papa Leão I decreta formalmente a primazia de Roma com base na

autoridade herdada do apóstolo Pedro e no conceito de que o papa é a "encarnação mística" de Pedro.

BBIIBBLLIIOOGGRRAAFFIIAA

ABT, Theodor; HORNUNG, Erik. Knowledge for the Afterlife. The Egyptian Amduat — a

Quest for Immortality. Zurique, 2003.

APULEIO, Lúcio. Metamorphoses. Tradução J. Arthur Hanson. 2 volumes, Cambridge

(Mass.), 1989.

___________. The Golden Ass. Tradução Robert Graves. Harmondsworth, 1976.

ARISTÓFANES. Frogs. Tradução Kenneth McLeish, em Plays: Two, Londres, 1998.

ASSMANN, Jan. The Search for God in Ancient Egypt. Tradução David Lorton. Ithaca

(N.Y.) e Londres, 2001.

___________. The Mind of Egypt. Tradução Andrew Jenkins, Nova York, 2002.

BAIGENT, Michael. From the Omens ofBabylon. Londres, 1994.

BAIGENT, Michael; EISENMAN, Robert. A Ground-Penetrating Radar Survey testing the

claim for the earthquake damage of the Second Temple ruins at Khirbet Qumran, The Qumran

Chronicle, setembro de 2000, p. 131-137.

BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard; LINCOLN, Henry. Holy Blood, Holy Grail, Nova

York, 1982.

BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. The Dead Sea Scrolls Deception. Londres, 1991.

___________. The Inquisition. Londres, 2000.

BEDE. A History of the English Church and People. Tradução Leo Sherley-Price,

Harmondsworth, 1979.

BLEEKER, C.J. "Initiation in Ancient Egypt", em Initiation, ed. Dr. C.J. Bleeker, Leiden,

1965, p. 49-58.

___________. Egyptian Festivais. Leiden, 1967.

___________. Hathor and Thoth. Leiden, 1973.

BOWMAN, Alan K. Egypt after the Pharaohs. Londres, 1986.

BRANDON, S.G.F. Jesus and the Zealots. Manchester, 1967.

___________. The Fali of Jerusalém and the Christian Church. 2a ed., Londres, 1974 (Ia

ed. publicada em 1951).

BRUCE, F.F. The New Testament Documents. 5a ed. revista, Londres, 1974.

BURKERT, Walter. Lore and Science in Ancient Pythagoreanism. Tradução Edwin L.

Minar Jr., Cambridge (Mass.), 1972.

___________. Ancient Mystery Cults. Cambridge (Mass.), 1987.

BURROWS, Millar. The Dead Sea Scrolls. Londres, 1956.

CAPLICE, Richard I. The Akkadian Namburbu texts: an introduction. Malibu, 1974.

CAUVILLE, S. Dendara V-VI. Traduction. Les crypts du temple d'Hathor. Leuven, Paris e

Dudley (MA), 2004.

CHARLES, R.H. The Apocripha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English. 2

volumes, Oxford, 1979.

CHARLESWORTH, James H. (ed.). Jesus and the Dead Sea Scrolls. Nova York, 1995.

CHESTER, Greville J. A Journey to the Biblical Sites in Lower Egypt, Palestine

Exploration Fund Quarterly Statement. Londres, 1880, p. 133-158.

CHURTON, Tobias. Gnostic Philosophy. Rochester (Vt), 2005.

CLARK, RJ. "Vergil", Aeneid, 6,40ff. And the Cumaen SibyPs Cave, Latomus, XXXVI,

1977, p. 482-495.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA. The Miscellanies. Tradução William Wilson. 2 volumes,

Edimburgo, 1867, 1869 (Ante-Nicene Christian Library, vols. IV e XII).

___________. Stromateis, Books One to Three. Tradução John Ferguson, Washington,

1991.

COHN, Haim. The Trial and Death of Jesus. Nova York, 1971.

COUSIN, V. Fragments Philosophiques. Paris, 1840.

CURNOW, Trevor. The Oracles of the Ancient World. Londres, 2004.

DOLE, S.G. New Evidence for the Mysteries of Dionysos, Greek, Roman and Bysantine

Studies, 21, 1980, p. 223-238.

DRIVER, G.R. Thejudaen Scrolls. Oxford, 1965.

DUPONT-SOMMER, A. The Dead Sea Scrolls: A Preliminary Survey. Tradução E.

Margaret Rowley, Oxford, 1952.

___________. The Essene Writings from Qumran. Tradução G. Vermes, Gloucester

(Mass.), 1973.

EHRMAN, Bart D. Lost Christianities. Oxford, 2003.

EISENMAN, Robert. The Dead Sea Scrolls and the First Christians. Rockport, MA, 1996.

__________. James and the Brother of Jesus. Londres, 2002.

EISENMAN, Robert; WISE, Michael. The Dead Sea Scrolls Uncovered. Shaftesbury,

Rockport (Mass.) Brisbane, 1992.

EIS LER, Robert. The Messiah Jesus and John the Baptist. Tradução Alexander Haggerty

Krappe, Londres, 1931.

ENCYCLOPAEDIA Judaica. 16 volumes, Jerusalém, 1974.

ESTRABÃO. Geography. eds. H.C. Hamilton e W. Falconer, 3 volumes, Londres, 1854-

1857.

EUSÉBIO. The History of the Church. Tradução G.A. Williamson, Harmondsworth, 1981.

FARNELL, L.R. The Cults of the Greek States. 3 volumes, Oxford, 1907.

FAULKNER, R.O. The Ancient Egyptian Pyramid Texts. Oxford,1969.

___________. The Ancient Egyptian Coffin Texts. 3 volumes, Warminster, 1994.

FILO. On the Contemplative Life. Tradução F.H. Colson, Cambridge (Mass.) e Londres,

1967 (Loeb Classical Library, v. IX).

FORMAN, Robert K.C. Purê Consciousness Events and Mysticism, Sophia, 25, 1986, p.

49-58.

___________. The Problem of Purê Consciousness. Oxford, 1990.

FRASER, P.M. Ptolemaic Alexandria. Oxford, 1972.

FULLER, Reginald C. (ed.) A New Catholic Commentary on Holy Scripture. Londres,

1969.

GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino (tradução). The Dead Sea Scrolls Translated. Tradução

Wilfred G.E. Watson, Leiden, 1994.

GICHON, Mordechai. The Bar Kochba War — A colonial uprising against Imperial Rome

(131/2-135 C.E.). Revue International d'Histoire Militaire, 1979, p. 82-97.

GORMAN, Peter. Pythagoras. A Life. Londres, 1979.

GUTHRIE, W.K.C. Orpheus and Greek Religion. Princeton (N.J.), 1993.

HALEVI, Z'ev ben Shimon. The Way ofKabbalah. Londres, 1976.

HARDIE, Colin. The Crater of Avernus as a Cult-Site. Apensado a P. Vergili Maronis.

Aeneidos. Liber Sextus, Oxford, 1977, p. 279-286.

HASLER, August Bernhard. How the Pope became infallible. Tradução Peter Heinegg,

Nova York, 1981.

HASTINGS, James, (ed.) Encyclopaedia of Religion and Ethics. 13 volumes, Edimburgo,

1908-1926.

HELIODORO DE EMESA. An Aethiopian History written in Greek by Heliodorus

Englished by Thomas Underdowne Anno 1587. Londres, 1895.

HERMÉTICA, ed. Brian P. Copenhaver, Cambridge, 1992.

HIPÓLITO. Philosophumena or the Refutation of ali Heresies. Tradução F. Legge, 2

volumes, Londres, 1921.

HOMERO. The Odyssey. Tradução E.V. Rieu, Londres, 1952.

HORBURY, William. Jewish Messianism and the Cult of Christ. Londres, 1998.

HORNUNG, Erik. Conceptions ofGod in Ancient Egypt. Tradução John Baines, Ithaca

(N.Y.), 1996.

JÂMBLICO DE APAMEIA. On the Mysteries of the Egyptians. Tradução Thomas Taylor,

1821. Reimpressão, Frome (The Prometheus Trust), 1990.

IRINEU DE LYON. Against Heresies, em The Writings oflrenaeus.Tradução Alexander

Roberts e W.H. Rambaut, 2 volumes, Edimburgo, 1868-69.

IVERSON, Erik. Egyptian and Hermetic Doctrine. Copenhague, 1984.

JONAS, Hans. The Gnostic Religion. 2a ed., Boston, 1963.

JOSEFO, Flávio. The Jewish War. Tradução G.A. Williamson, Harmondsworth, 1978.

___________. The Antiquities ofthejews. Tradução William Whiston, Londres, s.d.

___________. The Life of Flavius Josephus. Tradução William Whiston, Londres, s.d.

JUSTINO Mártir. Dialogue with Trypho, em The Writings of Justin Martyr and

Athenagoras. Tradução Marcus Dods, George Reith, B.P. Pratten, Edimburgo, 1867.

KERÉNYI, C. Eleusis, Archetypal Image of Mother and Daughter. Tradução Ralph

Manheim, Londres, 1967.

KING, Karen L. The Gospel of Mary of Magdala. Santa Rosa (Calif.), 2003.

KINGSLEY, Peter. Ezekiel by the Grand Canal: between Jewish and Babylonian Tradition,

Journal of the Royal Asiatic Society, 3a série, fev. de 1992, p. 339-346.

___________. Poimandres: the etymology of the name and the origins of the Hermética,

Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 56, 1993, p. 1-24.

___________. From Pythagoras to the Turba philosophorum: Egypt and Pythagorean

Tradition, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 57, 1994, p. 1-13.

___________. Ancient Philosophy, Mystery and Magic. Oxford, 1995.

___________. In the Dark Places of Wisdom. Inverness (Calif.), 1999.

___________. Reality. Inverness (Calif.), 2003.

KOESTER, Helmut. Ancient Christian Gospels. Londres, 1990.

KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Tradução Montague

Summers, Londres, 1996.

LAYTON, Bentley (tradução). The Gnostic Scriptures. Londres, 1987.

LEA, Henry Charles. A History of the Inquisition of the Middle Ages. 3 volumes, Londres,

1888.

LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. 3 volumes, Berkeley, Los Angeles e

Londres, 1980.

LILLEY, A.L. Modernism: A Record and Review. Londres, 1908.

LÍVIO, Tito. The History of Rome. Tradução rev. cônego Roberts, 6 volumes, Londres,

1905.

LLOYD, Seton. The Archaeology of Mesopotamia. Londres, 1978.

MACK, Burton L. The Lost Gospel. The Book of Q and Christian Origins. Shaftesbury e

Rockport (Mass.), 1993.

MAZAR, Amihai. Archaeology of the land of the Bible. Cambridge, 1993.

MEGARRY, Tim. Society in Prehistory. Basingstoke, 1995.

MEINARDUS, Otto F.A. The Holy Family in Egypt. Cairo, 2000.

MELLAART, James. Earliest Civilisations of the Near East. Londres, 1965.

MESSORI, Vittorio. The Ratzinger Report. Tradução Salvator Attanasio e Graham

Harrison, São Francisco, 1985.

MODRZEJEWSKI, Joseph. The Jews of Egypt. Edimburgo, 1995.

MURPHY, R. Lagrange and Biblical Research. Chicago, 1966.

NAYDLER, Jeremy. Temple of the Cosmos. Rochester (Vermont), 1996.

___________. Shamanic Wisdom in the Pyramid Texts. Rochester (Vermont), 2005.

NOONAN, John T. Contraception. Nova York, 1967.

OGDEN, Daniel. Greek and Roman Necromancy. Princeton e Oxford, 2001.

O'SHEA, Stephen. The Perfect Heresy. Londres, 2000.

OULTON, John Ernest Leonard; CHADWICK, Henry. Alexandrian Cbristianity. Londres,

1954.

PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. Londres, 1980.

___________. Beyond Belief. The Secret Gospel of Thomas. Nova York, 2003.

PAGET, R.F. In the Footsteps of Orpheus. Londres, 1967.

PARPOLA, Simo. The Assyrian Tree of Life: tracing the origins of Jewish Monotheism

and Greek Philosophy, Journal of Near Eastern Studies, 52, 1993, p. 161-208.

PARRINDER, Geoffrey. Jesus in the Qur'an. Londres, 1965.

PATRICH, Joseph; ARUBAS, Benny. A Juglet Containing Balsam Oil (?) From a Cave

Near Qumran, Israel Exploration Journal, 39, 1989, p. 43-59.

PERRY, Paul. Jesus in Egypt. Nova York, 2003.

PETRIE, W.M. Flinders. Hyksos and Israelite Cities. Londres, 1906.

PLATÃO. Phaedo. Tradução David Gallop, Oxford, 1999.

PLÍNIO. Natural History. Tradução H. Rackman e W.H.S. Jones, 10 volumes, Londres,

1938-42.

PLUTARCO. Isis and Osiris. Tradução Frank Cole Babbitt, Cambridge (Mass.) e Londres,

1993 (Loeb Classical Library, Mor alia, v. V).

QUIRKE, Stephen. Ancient Egyptian Religion. Londres, 1992.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunuchs for the Kingdom of Heaven. Tradução de Peter

Heinigg, London, 1991.

RATZINGER, Joseph. Church, Ecumenism and Politics. Slough, 1988.

REINER, Erica. Enuma Anu Enlil, Tablets 50-51. Malibu, 1981.

ROBINSON, James M. The Nag Hammadi Library in English. Traduzido por membros do

projeto Coptic Gnostic Library para o Instituto de Antigüidade e Cristianismo, Leiden, 1977.

ROSTOVTZEFF, M. The Social and Economic History of the Hellenistic World. Oxford,

1941.

RUMI, Jelaluddin. The Glance. Tradução Coleman Barks, Nova York e Londres, 1999.

RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades. 3 volumes, Harmondsworth, 1978.

SANTA TERESA. The Life of Saint Teresa of Ávila by Herself. Tradução J.M. Cohen,

Londres, 1957.

SCHONFIELD, Hugh J. The Pentecost Revolution. Londres, 1974.

___________. The Passover Plot. Londres, 1977.

___________. The Essene Odyssey. Shaftesbury, 1984.

SHAW, Gregory. Theurgy and the Soul, The Neoplatonism of lamblichus. University Park

(Pensilvânia), 1995.

SHREEVE, James. The Neanderthal Enigma. Londres, 1995.

SMITH, Morton. The Secret Gospel. Clearlake (Calif.), 1982.

___________. Jesus, the Magician. Londres, 1978.

___________. Clement of Alexandria and Secret Mark: the score at the end of the first

decade. Harvard Theological Review, 75, 1982, p. 449-461.

STANLEY, Arthur Penrhyn. Lectures on the History of the Eastern Church. 4a ed.,

Londres, 1869. STARBIRD, Margaret. The Woman with the Alabaster Jar, Rochester, 1993.

STECKOLL, S.H. The Qumran sect in relation to the Temple of Leontopolis. Revue de

Qumran, 6, 1967, p. 55-69.

STROUMSA, Guy G. Hidden Wisdom. Esoteric Traditions and the roots of Christian

Mysticism. Leiden, 1996.

SUETÔNIO. The Twelve Caesars. Tradução Robert Graves, Harmondsworth, 1979.

SZPAKOWSKA, Kasia. Behind closed eyes. Dreams and Nightmares in Ancient Egypt.

Swansea, 2003.

TÁCITO. The Annals of Imperial Rome. Tradução Michael Grant, Harmondsworth, 1979.

___________. The Histories. Tradução Kenneth Wellesley, Harmondsworth, 1988.

TARN, W.W. Hellenistic Civilizations. 3a ed., Londres, 1952.

TAYLOR, Joan E. A Second Temple in Egypt: the evidence for the Zadokite Temple of

Onias, Journal for the Study of Judaism, XXIX, 3, 1998, p. 297-321.

TAYLOR, Joan E.; DA VIÉS, Philip R. The So-Called Therapeutae of De Vit

Contemplativa: Identity and Character, Harvard Theological Review, 91, 1998, p. 3-24.

TEMPLE, Robert. Conversations tvitb Eternity. Londres, 1984.

___________. Netberworld. Londres, 2002.

THE BOOK of Enoch. Ver Charles, R.H. The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old

Testament, vol. II, "Pseudepigrapha", p.163-277.

THE JERUSALÉM Bible. Alexander Jones (editor-geral), Londres,1966.

THE KORAN. Tradução Arthur J. Arberry, Oxford, 1998.

TERTULIANO. The Writings of Tertullian. 3 volumes, eds. Rev. Alexander Roberts e

James Donaldson, Edimburgo, 1869 (Ante-Nicene Christian Library, vols. XI, XV, XVIII).

VAUX, R. de. Fouille au Khirbet Qumrân, Revue Biblique, LX,1953, p. 83-106.

___________. Archaeology and the Dead Sea Scrolls. Oxford, 1977.

VIRGÍLIO. The Georgics. Tradução L.P. Wilkinson, Harmondsworth, 1982.

___________. The Aeneid. Tradução Robert Fitzgerald, Londres, 1985.

VERMES, Geza. The Dead Sea Scrolls. Qumran in Perspective. Londres, 1977.

___________. The Complete Dead Sea Scrolls in English. Londres e Nova York, 1997.

WAKEFIELD, Walter L. Heresy, Crusade and Inquisition in Southern France 1100-1250.

Londres, 1974.

WENTE, Edward F. Mysticism in Pharaonic Egypt?, Journal of Near Eastern Studies, 41,

1982, p. 161-179.

WILLIAMS, Margaret H. (ed). The Jews among the Greeks & Romans. Baltimore, 1998.

ZIAS, Joseph; SEKELES, Eliezer. The Crucified Man from Giv'atha-Mivtar: A

Reappraisal, Israel Exploration Journal, 35, 1985, p. 22-27.

ZUCKERMAN, Arthur J. A Jewish Princedom in Feudal France 768-900. Nova York,

1972.

AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

SURJO DA NOITE AFINAL, com os olhos injetados e o rosto pálido,

agarrado a um manuscrito, sem saber que dia é hoje. Não o teria conseguido

sem ajuda.

Acima de tudo, quero agradecer a minha mulher, Jane, pelo apoio

e pela capacidade de levar uma vida normal enquanto a minha me

empurrava para o Oriente com crescente insistência. A estrela do dia

finalmente nasceu; vim a reboque em sua cauda.

Quero agradecer à minha família, que tolerou o fato de um laptop

se transformar em vício; nem uma vez sugeriram que eu procurasse ajuda

profissional.

É claro que ela já existia, na pessoa da minha agente maravilhosa,

Ann Evans, da Jonathan Clowes Ltd., em Londres. Obrigado, Ann.

Ajuda adicional veio da melhor editora que conheço, Hope Inneli,

editora sênior da Harper Collins, em Nova York. Obrigado, Hope.

Também quero agradecer a Claudia Riemer Boutote, gerente sênior

de publicidade da Harper Collins, em São Francisco, uma iniciada nos

Grandes Mistérios da publicidade e promoção. Obrigado, Claudia.

Finalmente, como ficará evidente para todos que lerem este livro,

há muito me impulsiona o encanto pelo potencial de humanidade, embora

temperado pela cautela (mas não muito), frente ao poder dos que estão

sempre tentando limitar a nossa liberdade para abordar como quisermos as

coisas Divinas.

Pois a verdade é que muitos caminhos levam ao topo da montanha;

quem há de dizer qual o melhor?

Michael Baigent nasceu em 1948, na Nova Zelândia, e se formou em psicologia.

Desde 1976 mora na Inglaterra, onde se tornou especialista em história da religião. É autor de

muitos livros importantes que desafiam a maneira como percebemos o passado, entre eles

Ancient Traces e From the Omens of Babylon. Escreveu também vários livros com Richard

Leigh, inclusive o best-seller O Santo Graal e a linhagem sagrada e A herança messiânica

(ambos com Henry Lincoln), Intrigas em torno dos manuscritos do mar Morto, O templo e a

loja e A Inquisição.

Capa:

Guilherme Schneider e Lilian Raco

EEssttee lliivvrroo ffooii ddiiggiittaalliizzaaddoo ee ddiissttrriibbuuííddoo GGRRAATTUUIITTAAMMEENNTTEE ppeellaa eeqquuiippee DDiiggiittaall SSoouurrccee ccoomm aa

iinntteennççããoo ddee ffaacciilliittaarr oo aacceessssoo aaoo ccoonnhheecciimmeennttoo aa qquueemm nnããoo ppooddee ppaaggaarr ee ttaammbbéémm

pprrooppoorrcciioonnaarr aaooss DDeeffiicciieenntteess VViissuuaaiiss aa ooppoorrttuunniiddaaddee ddee ccoonnhheecceerreemm nnoovvaass oobbrraass..

SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//VViicciiaaddooss__eemm__LLiivvrrooss

SSeerráá uumm pprraazzeerr rreecceebbêê--lloo eemm nnoossssoo ggrruuppoo..

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros