Michel Onfray [=] O cérebro reptiliano do amante das touradas

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MicheL ONFRAY O CÉREBRO REPTILIANO DO AMANTE DAS TOURADAS

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Crônica sobre a estupidez das touradas e de seus fãs =

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MicheL ONFRAY

O CÉREBRO REPTILIANO DO AMANTE DAS

TOURADAS

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O conselho constitucional acaba de autori-zar o prosseguimento dos espetáculos onde existem tratamentos desumanos e degradan-tes... do homem. Porque assistir a uma tourada é se instalar naquilo que existe de menos hu-mano no homem: o prazer experimentado com o sofrimento e com a matança de um ser vivo. É inútil envolver esse rito bárbaro com floreios culturais, citar Goya, remeter a Picasso, apelar para Hemingway ou para Leiris – os bordões culturais dessa pobre casta; não existem boas razões para que um córtex normalmente cons-tituído trabalhe em favor do cérebro reptiliano.

Toda a civilização é um esforço para fugir da barbárie e ir para a cultura. Digamos isso de forma menos prosaica: para ir do código de talião à lei, da violação à sua condenação, da exploração das crianças à sua educação – da tourada à sua abolição. Coabitam em cada um de nós um cérebro da inteligência e um cérebro de serpente: devemos ao primeiro os artistas, os

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escritores, os construtores, os filósofos, os mú-sicos, os inventores, os pacifistas, os professo-res; ao segundo, os torturadores, os assassinos, os guerreiros, os inquisidores, os guilhotinado-res e outras pessoas que fazem correr o sangue – entre as quais os toureiros.

Sade é o guru dos amantes das touradas: ele foi antes das Luzes o último pensador feu-dal, para quem o seu prazer justificava o san-gue derramado. É necessário, com efeito, um formidável potencial sádico para pagar sua en-trada em uma arena onde o espetáculo consiste em torturar um animal, fazê-lo sofrer, feri-lo com crueldade, refinar os atos bárbaros, codifi-cá-los (como um inquisidor ou um torturador que sabe até onde é preciso ir para conservar vivo pelo máximo de tempo possível aquele que se vai matar de qualquer maneira…), e gozar de maneira histérica quando o touro desaba por-que não existe outra saída para ele.

Em seu cinismo, os amantes das touradas

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recusam essa ideia do impasse na morte e, para fazer isso, fazem referência aos touros poupa-dos – exatamente como o defensor da pena de morte justifica essa outra barbárie pela possibi-lidade que um chefe de Estado tem de exercer seu direito de mercê… A prova de que o touro nem sempre morre é que, segundo o capricho dos homens, às vezes se decide poupar um de-les sob o pretexto de bravura! Que um ser que sinta prazer com o exercício codificado da bar-bárie possa apelar para a virtude é algo que faz sorrir...

Na arena, existe tudo aquilo que se possa querer, com exceção da virtude: o sadismo, as paixões tristes, a má alegria, a crueldade, a fe-rocidade, a perversidade. Eu evito, de propósi-to, falar em bestialidade, porque a besta mata para se alimentar, para defender seu território, para proteger seus filhotes, para viver e sobre-viver. Pelo que eu saiba, não existe no reino animal esse espetáculo degradante que consiste

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em matar lentamente, pelo prazer de matar e de desfrutar desse espetáculo por si mesmo, antes de abandonar o cadáver ao seu nada. A encenação, a exibição da crueldade, o sangue derramado para se saciar com ele, eis aquilo que caracteriza o homem – e não o animal.

Gostariam igualmente que aquele que não gosta das touradas se tornasse vegetariano: isso é não querer compreender que o problema nas touradas não está em matar, apesar de tudo, mas em transformar isso num espetáculo com a finalidade de sentir prazer. Quando o açou-gueiro mata para alimentar a população, ele não sente prazer em abater – ou, pelo menos, isso não faz parte da sua função…

Nossa época tem cheiro de sangue. Alguns se sentem honrados de comungar nesta barbá-rie defendida por sua antiguidade: mas está na ordem das coisas que toda a barbárie se enraíze na tradição e na antiguidade. O argumento da tradição deveria ser um obstáculo definitivo.

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Desde os tempos mais antigos, o macho viola a fêmea, o forte degola o fraco, o lobo devora o cordeiro: será que esse é um argumento para que as coisas continuem sempre assim? Existe mais humanidade no olhar dos meus gatos do que no de um ser que urra de alegria quando o touro vacila e desaba, com os olhos cheios de lágrimas e, logo, de nada.

La chronique mensuelle de Michel Onfray

n° 89 – Octobre 2012

Tradução: Saint Guinefort