MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do...

6
18 PERSONALIDADES Financeiras É MICROCRÉDITO REMÉDIO Hugo Duarte é, antes de tudo, um educador. Professor de Administração Pública, ex-conselheiro do Ministério da Educação e Cultura e empresário do setor há 30 anos. Participou da gestão municipal paulistana nas administrações de Olavo Setúbal e Reinaldo de Barros, em áreas ligadas a projetos sociais, e atualmente preside o Conselho Consultivo do São Paulo Confia, o banco de microcrédito da Prefeitura. Admirador do trabalho do banqueiro dos pobres Mohammad Yunus, encontra na adaptação do bem-sucedido modelo de Bangladesh a solução para males sociais tipicamente brasileiros. Como o senhor chegou ao São Paulo Confia? Sempre gostei muito de administração pública, pelo resultado de curto prazo dos trabalhos voltados para a área social. Trabalhei na gestão de Olavo Setúbal, fui assessor de ONGs do gabinete. Com o prefeito Reinaldo de Barros fui diretor do gabinete e tam- bém supervisor geral da Secretaria do Bem Estar Social. Participei ativamente da implantação da rede de creches em São Paulo. Foi a primeira vez que se falou em mutirão para a construção da casa própria e na urbanização das favelas. Outra coisa dessa épo- ca foi o Pró-Doc, que consistia de trailers que iam às periferias tirar fotos das pessoas gratuitamente e fazer documentos. Acredito que tenha sido o mo- delo para a criação do Poupatempo. Fui convidado agora, na gestão do prefeito Gilberto Kassab, a tra- balhar na Secretaria do Trabalho, voltado à atividade do São Paulo Confia. O quê o programa tem de diferente em relação a suas atividades anteriores? Gosto muito por não ser um projeto essencial- mente assistencialista. Não tenho nada contra os programas assistencialistas, mas sou contra os que não abrem uma porta para pessoa sair. Em al- guns casos, os projetos têm que permanecer como assistencialistas, mas o microcrédito me empolgou muito. Estudei bastante o Prêmio Nobel e papa do microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei para desenvolver o projeto da São Paulo Con- fia, para atirar na base da pirâmide e resgatar essa população sem medo, por meio da inclusão social. Como garantir que os recursos cheguem à base da pirâmide? O banco de microcrédito São Paulo Confia é pio- neiro, diferenciado na concessão do crédito. Em uma época na qual não se acredita nas pessoas, em que se faz uma investigação tão profunda para a concessão de crédito, a São Paulo Confia não tem medo de conceder crédito até mesmo às pessoas que têm restrição no nome, porque elas fazem parte de um grupo solidário. Os grupos têm no O personalidades.indd 18 17/03/2011 12:56:32

Transcript of MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do...

Page 1: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

18

PERSONALIDADESFinanceiras

ÉMICROCRÉDITO

REMÉDIOHugo Duarte é, antes de tudo, um educador. Professor de Administração Pública, ex-conselheiro do Ministério da

Educação e Cultura e empresário do setor há 30 anos. Participou da gestão municipal paulistana nas administrações de

Olavo Setúbal e Reinaldo de Barros, em áreas ligadas a projetos sociais, e atualmente preside o Conselho Consultivo do São

Paulo Confia, o banco de microcrédito da Prefeitura. Admirador do trabalho do banqueiro dos pobres Mohammad Yunus,

encontra na adaptação do bem-sucedido modelo de Bangladesh a solução para males sociais tipicamente brasileiros.

Como o senhor chegou ao São Paulo

Confia?Sempre gostei muito de administração pública, pelo resultado de curto prazo dos trabalhos voltados para a área social. Trabalhei na gestão de Olavo Setúbal, fui assessor de ONGs do gabinete. Com o prefeito Reinaldo de Barros fui diretor do gabinete e tam-bém supervisor geral da Secretaria do Bem Estar Social. Participei ativamente da implantação da rede de creches em São Paulo. Foi a primeira vez que se falou em mutirão para a construção da casa própria e na urbanização das favelas. Outra coisa dessa épo-ca foi o Pró-Doc, que consistia de trailers que iam às periferias tirar fotos das pessoas gratuitamente e fazer documentos. Acredito que tenha sido o mo-delo para a criação do Poupatempo. Fui convidado agora, na gestão do prefeito Gilberto Kassab, a tra-balhar na Secretaria do Trabalho, voltado à atividade do São Paulo Confia.

O quê o programa tem de diferente em

relação a suas atividades anteriores?Gosto muito por não ser um projeto essencial-

mente assistencialista. Não tenho nada contra os programas assistencialistas, mas sou contra os que não abrem uma porta para pessoa sair. Em al-guns casos, os projetos têm que permanecer como assistencialistas, mas o microcrédito me empolgou muito. Estudei bastante o Prêmio Nobel e papa do microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei para desenvolver o projeto da São Paulo Con-fia, para atirar na base da pirâmide e resgatar essa população sem medo, por meio da inclusão social.

Como garantir que os recursos cheguem à

base da pirâmide?

O banco de microcrédito São Paulo Confia é pio-neiro, diferenciado na concessão do crédito. Em uma época na qual não se acredita nas pessoas, em que se faz uma investigação tão profunda para a concessão de crédito, a São Paulo Confia não tem medo de conceder crédito até mesmo às pessoas que têm restrição no nome, porque elas fazem parte de um grupo solidário. Os grupos têm no

O

personalidades.indd 18 17/03/2011 12:56:32

Page 2: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

19

Hugo Duarte.

O conselheiro da SP Confia é também um beatlemaníaco e faz

artesanato em madeira

personalidades.indd 19 17/03/2011 12:56:43

Page 3: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

20

PERSONALIDADESFinanceiras

mínimo três pessoas e no máximo dez, que vão à SP Confia obter um empréstimo para tocar o seu negócio, sua vida e serem donas dos seu próprios narizes. É um instrumento bárbaro contra o pre-conceito e a discriminação. Para ter seu próprio negócio, basta ter vontade.

Não existem perfis definidos para os to-

madores de recursos?

Não tem critério no banco. A gente empresta di-nheiro para pessoas que não têm dente. Não existe nenhuma discriminação. Por isso o projeto é fan-tástico. Depende da voluntariedade das pessoas. E não esperamos que as pessoas tenham vocação para ter um negócio. Se você ficar esperando que a vocação para o empreendedorismo se manifeste nessa população, vai esperar muito tempo.

Como identificar o potencial dos empreen-

dedores?O grande sucesso da SP Confia é a qualificação do nosso agente de microfinanças. Eles não são agiotas. O importante não é emprestar dinhei-

ro, o importante é emprestar dinheiro para alguém que vá desenvolver o seu próprio negócio. Eles passam constantemente por cursos de formação. Faz parte do estatuto a recém-criada Academia de Microfinanças, que tem por objetivo qualificar e capacitar os agentes de crédito, oferecendo dis-ciplinas de várias áreas para dar a eles instruções sobre Segurança, Higiene do Trabalho, Legislação Previdenciária, Direito do Trabalho, Matemáti-

ca Financeira. Ou seja, várias ferramentas para o agente trabalhar melhor.

Uma vez treinado, como é possível

manter esse profissional no programa?

Não há o risco de ele receber propostas

de outras instituições?

Podemos dizer que a SP Confia tem sido vítima da qualificação que oferece aos seus agentes de crédito, porque os concorrentes vêm buscá-los. Recentemente, nós perdemos 14 agentes de cré-dito. Mas eu acredito que a SP Confia acaba tendo também essa função, de formar profissionais des-sa área para que eles sejam absorvidos por outras instituições financeiras. Tanto que, em janeiro, começamos um processo seletivo, muito parecido com um concurso público, para dar um curso de 360 horas a cem agentes de finanças, 50 mulheres e 50 homens. Os 60 melhores serão contratados pela SP Confia e terão um salário de R$ 1.200, mais diversos benefícios. Mas eles deverão obri-gatoriamente morar na comunidade na qual pas-sarão a exercer a função. Dentro do seu próprio bairro, eles poderão render muito mais.

Como o microcrédito atua sobre a vida das

pessoas?

O microcrédito só pode dar certo se for como um remédio, prescrito pelo agente de crédito, treinado para detectar se a pessoa tem formação para exercer a função, orientação, se a atividade é compatível com a região. O interessante é que o dinheiro empres-tado não seja simplesmente para comprar produ-tos. A pessoa pode obter o crédito para pintar a sua loja, comprar móveis ou aumentar seu capital de giro. Com a mesma doença, as pessoas têm dosagens dife-rentes do mesmo remédio. O mesmo acontece com o crédito. O agente sabe a dosagem que aquele em-preendedor necessita para que não se endivide. Não adianta emprestar 1.500 reais se 1.000 bastam. Ele tampouco ganha comissão pelo valor emprestado, ganha para orientar a comunidade. Isso evita casos de desvio de dinheiro, ou empréstimo de dinheiro para quem não exerce uma atividade econômica. Acredito

A São Paulo Confia não tem medo de conceder crédito

até mesmo às pessoas que têm

restrição no nome

“ ”

personalidades.indd 20 17/03/2011 12:56:51

Page 4: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

muito mais em um agente de crédito do que em um banqueiro que vá visitar a comunidade.

Qual é o trâmite para a concessão do

microcrédito?

Um dos grandes objetivos do projeto é que o em-préstimo saia no menor tempo possível. O prazo é muito curto. Em uma semana se pode obter o crédito com o grupo solidário. Não precisa de fia-dor, já que eles são solidários entre si. Você monta um grupo com quatro pessoas e o pagamento é semanal, porque dinheiro, em casa, corre riscos. Em uma determinada semana, se uma dessas pes-soas não tiver o dinheiro, eles dividem e pagam a parcela daquela pessoa. O sucesso é muito grande. Nós conseguimos, em 2009/2010, conceder cré-dito para 18 mil clientes. Emprestamos R$ 85 mi-

lhões nos últimos três anos, sendo que somente em 2010, até setembro, emprestamos R$ 33 milhões, e a carteira ativa é de R$ 9 milhões emprestados.

O trabalhador informal tem acesso ao

crédito do banco?

A lei diz que o empréstimo deve ser oferecido a for-mais e informais. Por que informais? Se pensarmos em uma pessoa que é aposentada, já contribuiu com o INSS, recebe sua aposentadoria e quer apenas au-mentar sua renda, ela não precisa e não quer se for-malizar. Ela continua na informalidade, não vejo mal nenhum nisso. Muito pelo contrário, eu acho muito difícil você ter mais formais do que informais a cur-to prazo, porque muitos querem o complemento da renda familiar. A vantagem dos formalizados é que, como eles podem emitir nota fiscal, passam a poder

personalidades.indd 21 17/03/2011 12:57:05

Page 5: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

22

PERSONALIDADESFinanceiras

vender para empresas. Nós só não emprestamos di-nheiro para a comercialização de produtos ilícitos (CDs piratas, produtos contrabandeados).

Quando é a hora do empreendedor deixar

o microcrédito?Temos casos de pessoas para as quais tivemos que

restringir o crédito, porque superaram em muito o tamanho máximo da atividade. É muito bonito ver a saída do microcrédito. Nossa maior preocupação é diminuir a mortalidade dessas empresas. Isso está muito ligado ao agente de crédito, ele é a peça fundamental de uma instituição de microcrédito. Um agente de microfinanças bem formado torna tanto o banco quanto o microempreendedor sustentáveis. Sustentabilidade não se cria por decreto, mas por técnica.

Além dos agentes, há outras formas de

divulgar o programa?

Fizemos recentemente a maratona MEI (Micro

Empreendedor Individual ), uma olimpíada realizada entre os agentes de crédito da SP Confia, para que eles motivassem as pessoas que trabalham infor-malmente a procurar a formalização. Criamos a maratona com o objetivo de formalizar mil empre-endedores da SP Confia. O sucesso foi tão grande que nós conseguimos atingir 1,6 mil clientes, dos 10 mil do programa. Por isso, passou a ser uma função do agente de crédito orientar também os clientes para a formalização, que traz ao trabalha-dor uma série de vantagens, dentre elas a aposen-tadoria. Uma mulher de 45 anos pode contribuir 15 anos e aposentar-se aos 60 anos. Se for homem, aos 65. E recebe os benefícios como seguro contra acidentes, entre tantos outros.

Há outros públicos na mira do São Paulo

Confia?No ano que vem, lançaremos as franquias sociais, para desenvolver atividades econômicas empreende-doras para deficientes físicos, para que eles possam abrir suas próprias atividades nas suas casas. Vamos contratar uma instituição que cuida exclusivamente de deficientes físicos para formatar atividades que possam ser exercidas por pessoas com diferentes li-mitações. Mais do que isso ainda, teremos consultoria para adequar o deficiente às atividades e adequar o local à deficiência. Isso resume o grande passo que as franquias sociais serão, tanto para o deficiente físico quanto para os não deficientes.

O microcrédito só pode dar certo

se for como um remédio, prescrito

pelo agente de crédito

“ ”

personalidades.indd 22 17/03/2011 12:57:23

Page 6: MICROCRÉDITO É REMÉDIO · microcrédito Mohamed Yunnus, o banqueiro dos pobres. Gostei muito do livro A Riqueza na Base da Pirâmide, do (C.K.) Prahalad. Na verdade, eu o usei

23

Vamos montar showrooms para

pessoas que querem exercer uma atividade econômica,

mas não sabem exatamente qual

Como os participantes poderão escolher

as atividades?A São Paulo Confia montará showrooms para pessoas que querem exercer uma atividade eco-nômica, mas não sabem exatamente qual. Esses espaços serão montados em parceria com os em-presários e terão equipamentos que sirvam de exemplo para uma atividade econômica, como máquinas para carregar cartuchos de tonner, uma atividade que pode ser exercida no canto do supermercado ou em casa. Hoje em dia, exis-tem fornos muito pequenos, a gás, e você pode ter uma pizza para viagem na sua própria casa. O showroom terá essas atividades e com as fran-quias formatadas. No maximo no 1° semestre deste ano teremos o projeto iniciado.

O que é presciso para melhorar ainda

mais os resultados da SP Confia?O prefeito de São Paulo estabeleceu uma agenda para que a SP Confia atenda, até o ano de 2012, 21 mil empreendedores. Nós já atingimos 80% desse número. Em 2009 e 2010, atendemos a aproxima-damente 18 mil empreendedores. A nossa grande meta agora é superar todos esses números. Foram repassados ao banco pela prefeitura mais R$ 3,55 milhões a serem investidos no microcrédito, tota-lizando R$ 4,5 milhões este ano. Nós vamos cres-cer muito e o agente de microfinanças vai ser nosso trampolim, é ele que vai trazer fórmulas para me-

lhor atender a população.É possível levar o São Paulo Confia para outras partes do País?

Queremos pegar nossa experiência e levar para as prefeituras. Acho que essa experiência é de uma valia incomensurável para os prefeitos. Nós atuamos somente na cidade de São Paulo, mas também damos consultorias, ajudamos municípios do interior a abrir as suas próprias instituições de microcrédito.

Medidas de aperto da política monetária

e exigências de ajuste fiscal podem prejudicar o avanço do programa?

Não, muito pelo contrário. Esse é um programa irreversível. É uma das melhores medidas que se criou para inclusão social. Pesa muito pouco no bolso da comunidade. Como eu disse, não tenho nada contra o assistencialismo, mas ele pesa. Por exemplo, se o Bolsa Família estivesse voltado para que as pessoas se tornassem empreendedores, ia pesar muito menos no bolso da sociedade. Essas recentes medidas do Banco Central não afetam em nada o microcrédito. É um segmento que vai crescer independentemente de qualquer situação de mercado, já que o consumo é realizado dentro da própria comunidade.

Quais são as suas principais referências

nas pesquisas sobre o tema?

Além de Prahalad, os brasileiros Marcelo Néri e Mario Monzoni, da Fundação Getúlio Vargas. São pessoas de uma credibilidade enorme e que escrevem muito sobre o assunto.

Além do microcrédito, que outras atividades

ocupam suas horas vagas?

Gosto muito de artesanato ligado à marcenaria, e pinturas exóticas na madeira. E meu outro hobbie é tocar violão. São atividades que levam ao lazer e à reflexão. Eu também sou um beatlemaníaco. Fora isso, como eu trabalho para o povo e me preocupo muito com ele, sou corintiano.

(M.R.)

personalidades.indd 23 17/03/2011 12:57:23