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A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
1
RESUMO
Este trabalho pretende analisar a evolução das práticas de transmissão das
explorações agrícolas familiares, bem como das estratégias e dos comportamentos que lhes
estão associados, numa região do noroeste de Portugal. Ele decorre dos trabalhos de
investigação realizados no concelho de Barcelos e suas zonas limítrofes, tendo por objectivo o
estudo do processo da Instalação Agrícola em Portugal(*). Este processo foi então definido de
maneira alargada, referindo-se ao percurso que vai da sucessão à tomada de posse da
direcção da exploração agrícola pelo novo chefe.
(*) "L’installation agricole au Portugal: moment d’accumulation, de renouvellement et de modernisation ?";Tese de Doutoramento; Ed. ENSA Montpellier, 1996.
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A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
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ÍNDICE
1 – Introdução............................................................................................................................. 5
2 – O modelo tradicional da prática sucessória: o “Morgadio” .................................................. 5
3 – Uma caracterização sumária do objecto de estudo ............................................................ 7
4 – A sucessão contemporânea ................................................................................................ 9
5 – A transmissão das explorações agrícolas ......................................................................... 13
6 – A escolha do sucessor ...................................................................................................... 25
6.1 – As estratégias familiares ................................................................................................ 25
6.2 – As trajectórias profissionais dos agricultores ................................................................. 33
7 – Bibliografia ......................................................................................................................... 43
Quadro 1 .................................................................................................................................. 45
Quadro 2 .................................................................................................................................. 46
A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
4
A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
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1 - Introdução
Outrora da competência exclusiva das famílias agrícolas que dispunham ou
controlavam os factores de produção necessários ao exercício da actividade, a sucessão
agrícola tende, hoje em dia, a associar-se a uma lógica de inserção profissional na actividade
que procura conciliar os diferentes interesses patrimoniais que emanam dos agregados
domésticos e os objectivos produtivistas do Estado Português. Se a emergência progressiva no
espaço rural tradicional de “uma nova maneira de pensar, de agir e de consumir” vem
modificando profundamente as expectativas dos agricultores face à sua profissão, por seu lado
o recente desenvolvimento da Política de Instalação Agrícola legítima o papel preponderante
dos jovens na aquisição da inovação e reconhece os limites das famílias agrícolas para suprir
às necessidades, sempre crescentes, dos futuros chefes de exploração. Após uma breve
caracterização do modelo sucessório tradicional e a delimitação do nosso objecto de estudo,
focalizaremos a evolução das práticas de transmissão das explorações agrícolas comandada
por dois elementos principais: a nova ordem emergente no sistema socioeconómico rural e a
intervenção do Estado no processo da mudança de geração.
2 - O modelo tradicional da prática sucessória: o “Morgadio”
O “Morgadio” pode definir-se como tratando-se de uma prática sucessória ancestral,
fortemente impregnada na prerrogativa da majoração dos direitos consentidos ao primogénito e
aos indivíduos de sexo masculino, traduzindo-se na eleição de um herdeiro preferencial e numa
partilha muito desigual do património familiar entre os filhos do agricultor. Esta prática, apesar
de sujeita a interdição desde o século XIX, continuou a vigorar em algumas zonas do Entre
Douro e Minho e os seus princípios orientadores influenciaram, de maneira decisiva, as práticas
contemporâneas de transmissão das explorações agrícolas da região. Num país onde o direito
legislativo defende a igualdade entre herdeiros aquando da partilha do património familiar, o
objectivo principal desta prática tradicional parecia ser o de garantir uma dimensão física
razoável, senão máxima, à exploração agrícola, afim de assegurar uma dimensão económica
suficiente à reprodução alargada da família agricultora.
Os hábitos e costumes locais associados a esta prática sucessória ensinam-nos que,
tradicionalmente, um casal proprietário de uma exploração agrícola não desejava alcançar mais
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de três filhos, um dos quais perseguiria uma profissão liberal — médico ou advogado —, outro
destinava-se ao sacerdócio, e o restante tomava finalmente conta da exploração agrícola
familiar. Contrapunha-se assim ao princípio da partilha desigual que beneficiava
preferencialmente um dos filhos do agricultor — habitualmente o primogénito de sexo
masculino que viria a tornar-se o “Morgado” —, uma estratégia de exclusão da actividade
agrícola dos outros filhos do agricultor. Esta estratégia parecia resultar da necessidade sentida
de não fragmentar a superfície agrícola útil da exploração, bem como basear-se na escala de
valores do reconhecimento social. Ter um padre, um médico ou um advogado na família era
prestigiante para o colectivo familiar e, por outro lado, favorecia a aceitação da partilha desigual:
o padre, não tendo supostamente quaisquer interesses materiais, abandonava voluntariamente
a sua parte da herança; o detentor de uma profissão liberal tendo já recebido uma formação em
compensação apresentava-se como um herdeiro de direitos diminuidos ao património familiar.
Por norma, o herdeiro preferencial ao património familiar tornava-se, se bem que
muito tardiamente, no novo chefe da exploração agrícola. Retomava a exploração familiar por
desaparecimento dos pais mas guardava contudo a posse da quasi-totalidade do património
produtivo que a constituía e nomeadamente os terrenos agrícolas, componente maioritária
deste património. Este tipo de partilha só era possível na medida em que os pais acumulavam,
infatigavelmente, e durante todo o seu ciclo de vida, um património não directamente
relacionado com a exploração agrícola — património urbanístico, floresta. — que lhes permitia
indemnizar os outros filhos sem amputar a dimensão física da exploração familiar, seja tão
somente porque a autoridade paternal se arrogava do direito de instalar o herdeiro preferencial
nas melhores condições materiais possíveis, não se preocupando minimamente dos interesses
patrimoniais dos outros herdeiros. O “Morgado”, juntamente com o seu próprio núcleo familiar
beneficiava do direito à habitação na casa paterna, não tinha assim de se preocupar com a
ameaça do fraccionamento e divisão da exploração agrícola aquando da partilha, esta
proporcionando-lhe a chefia da unidade produtiva e uma quota parte do património familiar
muito superior à dos irmãos.
Esta prática sucessória bem particular, relembrada aqui em traços gerais, não era
portanto exclusiva ao país. Certos estudos realizados em França descrevem práticas de
devolução dos bens familiares próximas daquela que vimos de analisar, pelo menos no que diz
respeito aos seus princípios fundadores. Deverre (1993) nota assim que “a forma de
transmissão dos bens imobiliários nos municípios do alto do vale dos “Duyes” na primeira
metade do século XIX é incontestavelmente de tendência “préciputaire”: a um herdeiro,
geralmente ao filho mais velho, é-lhe atribuído, conjuntamente por ambos os pais, na altura da
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celebração do contrato de casamento, o quarto “préciput” e as partes dos bens que o código
civil autoriza... (é) a integridade patrimonial que parece ser a preocupação principal das práticas
sucessórias (observadas)... o “préciput” acompanha-se inexoravelmente de uma cohabitação
do herdeiro na casa paterna... o dote é administrado pelo marido mas continua propriedade
absoluta da esposa... as propriedades familiares não são nunca descritas como uma colecção
de parcelas, mas como um conjunto coerente e integrado de bens, compreendendo terras de
lavoura, prados e caminhos. Junta-se ainda sistematicamente ao grupo, o gado que permitia a
exploração do domínio. Este conjunto, ao mesmo tempo que bem patrimonial, parece-me
constituir uma unidade de produção agrícola de referência para o grupo doméstico que a
preserva.”
No decorrer da análise que efectuaremos seguidamente, teremos a ocasião de
observar os laços que aproximam esta prática de tendência “préciputaire” às manifestações
mais actuais da prática tradicional de transmissão dos bens familiares típica da parte sul do
Entre Douro e Minho (EDM), correntemente designada por “Morgadio”. Sem avançar muito
neste tipo de explicações, digamos que as principais diferenças entre as duas práticas
ancestrais dizem respeito à gestão do dote e à inexistência no EDM do contrato de casamento:
a transmissão do património é aqui governada por acto testamentário ou anticipada por doação.
3 - Uma caracterização sumária do objecto de estudo
Sucessão é um termo bastante referenciado na literatura contemporânea, em
particular nos estudos dos economistas agrários que se preocupam com as questões da
transmissão das explorações agrícolas. Utilizado, na maior parte das situações, para descrever
práticas de transmissão do património familiar e nomeadamente do capital das explorações
agrícolas, o sentido próprio do termo não foi ainda devidamente codificado. A amplitude das
definições que lhe estão associadas é grande, alguns autores incorporando ao seu sentido
etimológico outros elementos tais como as estratégias e os comportamentos familiares
relacionados com a transmissão da exploração agrícola. Esta solução reivindica para o termo
um sentido mais amplo que o da simples conotação à maneira como é realizada a devolução
dos bens e adequa-se assim melhor ao terreno de análise que o próprio termo é suposto
representar. A fluidez das codificações propostas incitou-nos a apresentar a nossa própria
definição do termo, que traduzimos muito simplesmente como tratando-se do modo como se
organiza a transmissão da exploração agrícola. Esta definição pretende englobar não somente
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as práticas sucessórias propriamente ditas (tratando das condições da partilha) mas também as
estratégias e os comportamentos associados à transmissão da exploração agrícola.
O uso corrente do termo legitima esta nossa proposição. Com efeito, quando nos
referimos habitualmente à noção de sucessão (agrícola) associamos-lhe imediatamente dois
acontecimentos distintos, muito embora complementares. Estes acontecimentos são: (i) a
transferência da exploração agrícola e (ii) a escolha do novo chefe de entre todos os candidatos
potenciais à retoma da unidade produtiva. De resolução por norma simultânea, tais
acontecimentos são de tal modo interdependentes que a sua análise separada não seria
coerente. A problemática da sucessão constrói-se assim a partir do momento em que um chefe
de exploração comunica a sua vontade de transmitir a sua unidade produtiva e um candidato
(um potencial sucessor) manifesta o seu interesse em assumir o destino desta exploração. A
grelha de análise do processo sucessório que seguidamente construiremos, estrutura-se a
partir destes princípios orientadores.
A transmissão de uma exploração agrícola coloca-nos, antes de mais, perante a
problemática da transferência de um património. Ora, a agricultura apresentando-se como uma
profissão práticamente hereditária, a terra predominando na constituição do capital das famílias
agrícolas e encontrando-se, na maioria dos casos, sob o controlo de redes de influência
familiares, a questão da transmissão da exploração agrícola pode reduzir-se, sem grande
perigo, e muito especialmente no EDM, à análise da transferência da terra no interior das
famílias agrícolas. Estas transferências, como teremos ocasião de observar mais adiante,
referem-se evidentemente às cedências de terra entre pais e filhos mas também às cedências
entre membros de uma mesma família, seja em doação, arrendamento, ou cedência gratuita.
Reconhecida a importância patrimonial da terra e o seu papel proeminente nos esquemas de
funcionamento da agricultura regional, a conceptualização das práticas sucessórias locais far-
se-à então em função da distribuição do património familiar (tipo e natureza da partilha) e muito
especialmente do capital fundiário, do momento em que a partilha ocorre e tendo em conta os
direitos preferenciais que possam ser acordados a alguns dos herdeiros. Definem-se assim
categorias analíticas de transmissão do património familiar que designamos por “modalidades
de sucessão”.
Por outro lado, a escolha do novo chefe da exploração agrícola assenta habitualmente
na eleição de um herdeiro preferencial e supõe resolvida a questão da compatibilidade dos
objectivos de cada um dos participantes ao processo da transferência da unidade produtiva. A
elucidação das condições de realização desta etapa passa, na nossa perspectiva, pela
identificação das trajectórias profissionais dos filhos do agricultor e pela análise das estratégias
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familiares que comandam a transmissão da exploração agrícola.
O paradigma em que se inscreve esta nossa tentativa de caracterização do processo
sucessório defende que as práticas de transmissão das explorações agrícolas, assim como as
estratégias e os comportamentos que lhes estão associados, constituem elementos centrais da
organização social das sociedades rurais, da sua análise emanando explicações sobre o
funcionamento e a dinâmica destas sociedades. O estudo das formas e mecanismos da
devolução dos bens familiares permitiu, em particular, afinar o conhecimento da dinâmica e dos
contornos da geografia das tradições e dos costumes1, melhor apreender as estratégias
matrimoniais nas sociedades a estrutura parental complexa2, e ainda enriquecer a noção
económica de património3.
4 - A sucessão contemporânea
Se bem que o modo como se organiza actualmente a transmissão das explorações
agrícolas difere substancialmente das práticas que animaram o processo sucessório nos
tempos mais remotos, tudo parece indicar contudo que o modelo normativo das práticas
sucessórias ancestrais influenciou decisivamente o comportamento e as estratégias dos
agricultores ao longo do tempo. Hoje em dia, parte dos elementos característicos do
“ Morgadio ” desapareceram ou foram profundamente alterados mas outros vieram sobrepôr-se
aos mecanismos sucessórios já existentes, conduzindo a uma reformulação das práticas de
transmissão das explorações agrícolas. Assim, as práticas sucessórias contemporâneas
demarcam-se do modelo sucessório tradicional pela afirmação de novos valores e direitos, os
quais se traduzem invariavelmente na emergência de novos comportamentos e estratégias
familiares. Neste âmbito, defendemos que a evolução das práticas sucessórias não resulta
única e exclusivamente da vontade e da acção combinada dos intervenientes no processo de
transmissão da exploração agrícola (ou seja, um predecessor, geralmente os pais, e o
candidato à retoma, habitualmente um filho) mas depende igualmente do meio envolvente
(contexto histórico, económico e social) onde este processo se desenrola.
Em particular, as práticas sucessórias que vigoram em dado momento numa
determinada sociedade tendem a dirigir o agricultor para um tipo bem definido de transmissão
1 Ver os trabalhos de Pierre Lamaison (1983;1988), Jean Yver (1966), Joseph Goy (1986).2 Ver os trabalhos de Pierre Lamaison (1983;1988), Pierre Bourdieu (1972).3 Ver os trabalhos de Robert Lifran (1988), Franco Modigliani (1964).
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da exploração agrícola, aquele que é considerado como a “norma sucessória local”, o mais
característico, senão o mais comum na região. Portanto, a multiplicidade das práticas
sucessórias observadas confirma que a sua origem não se limita a uma única fonte de
diversificação. Para além do contexto socioeconómico local, a situação da família, ou ainda a
intervenção de agentes exteriores (tal como o Estado) no processo da instalação agrícola, são
factores que influenciam e propiciam a emergência de desvios à norma local. A hipótese aqui
avançada é a de que partindo da norma sucessória local, que lhe serve como referencial de
partida, a família compõe novas fórmulas de transmissão das explorações agrícolas na
tentativa de se adaptar à evolução do contexto envolvente e deste modo preservar, da melhor
maneira, os interesses familiares.
Como todos os produtos impregnados da influência humana, as sociedades rurais têm
“uma historia e um tempo”. Quer isto dizer, que cada sociedade possui atributos específicos
que são característicos do momento e/ou do espaço em que elas foram criadas. Estes atributos
distintivos podem ser captados através do estudo das maneiras de viver, de pensar e de agir
dos indivíduos que fazem parte desta sociedade. Assim, a prática sucessória que designamos
por “Morgadio” não é mais do que um elemento particular emergindo da configuração material e
também simbólica, característica da sociedade rural tradicional. Esta sociedade estruturava-se
em torno do exercício do trabalho da terra, era a partir da terra que se organizava tanto o
trabalho como a economia dos indivíduos e das famílias residentes no espaço rural.
Esta organização social típica das sociedades agrárias era ainda predominante no
espaço rural do EDM, nos anos cinquenta. Todos os habitantes do espaço rural relacionavam-
se ou dependiam da actividade agrícola, os agricultores constituíam o grupo maioritário e o
grupo de referência, aqueles que ditavam as normas sociais do funcionamento do espaço rural.
O exercício do trabalho da terra representava o polo aglutinador em torno do qual as práticas e
os comportamentos, os códigos e as representações sociais se construíam e consolidavam, a
partilha de práticas de vida e de trabalho idênticas mas também das significações que lhes
estavam associadas contribuindo à estabilidade do grupo e à afirmação da sua identidade
social4.
Se bem que partilhando práticas de vida e de trabalho idênticas mas também uma
mesma “representação do mundo” — o que conferia aos habitantes do espaço rural tradicional
4 Isabel Rodrigo (1992), define “Identidade Social” como tratando-se do resultado de um duplo processode afirmação versus distinção que se (enraiza) nas relações de interdependência e nas redes derelações sociais que os indivíduos estabelecem e cruzam entre si no quotidiano das situações concretasda sua vida real. Este duplo processo constrói-se em torno das praticas e sistemas de significação que,sendo partilhados por um conjunto de indivíduos, tende a juntá-los em grupos.
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uma mesma identidade social —, o grupo dos agricultores não se apresentava no entanto como
uma realidade socialmente homogénea, pelo menos no que diz respeito aos direitos de
propriedade tanto da terra como dos meios de produção. Com efeito, a detenção do património
fundiário tendia a subdividir o grupo em diferentes categorias5: os proprietários fundiários
desdobravam-se em três subcategorias: “grandes agricultores”, “médios agricultores” e
“pequenos agricultores”; enquanto que os agricultores sem terra eram representados pelos
“jornaleiros” e pelos “caseiros”. Estes últimos exploravam uma unidade produtiva que não lhes
pertencia e beneficiavam assim, em princípio, de uma situação profissional mais estável que a
de todos aqueles que se viam obrigados a procurar diariamente uma ocupação para o seu
tempo de trabalho. As transformações sociais resultavam de um longo processo social
combinando mecanismos diferentes de natureza colectiva onde a acção ou a decisão individual
eram muito pouco notórias.
Ora, a partir dos anos sessenta, a sociedade rural tradicional do EDM foi submetida à
influência de processos de diversificação profissional, social e económica, os quais
transformaram profundamente a organização social deste espaço. A industrialização difusa e a
urbanização, assim como a democratização da emigração, criaram novas oportunidades de
emprego, novas maneiras de viver e de consumir, favorecendo a emergência no espaço rural
tradicional de uma nova “representação do mundo”. Além do mais, as instituições
extrafamiliares começaram a tomar conta de funções que, até aí, eram da responsabilidade
quase exclusiva das famílias agrícolas. Deste modo, a autoridade paternal e o "saber" colectivo
foram cedendo progressiva mas decididamente terreno face à afirmação do individualismo e à
importância crescente do conhecimento técnico e científico. O Estado, através das suas
delegações oficiais, passou a intervir na organização da produção agrícola (através das
políticas de mercado), nos mecanismos de reprodução das explorações agrícolas (via as
políticas de instalação agrícola) e ainda na formação dos indivíduos (quer através do
alongamento da escolaridade obrigatória, quer através da formação profissional agrícola).
Este processo de diversificação social e profissional conduziu, como o realça Rodrigo
(1992), ao aparecimento de um novo perfil de produtor agrícola, identificado ao “agricultor”. Este
rompe os vínculos com as normas do modelo social tradicional, afirmando uma manifesta
preferência pelas dimensões económicas, de gestão, técnicas e profissionais da actividade
5 J. Rémy (1987) nota que os agricultores são assim definidos na medida do seu capital económico (aterra) sem ter em conta o seu capital social. Esta analise assenta então, antes de tudo, numaclassificação de explorações e não de agricultores mas esta operação simplificatória é admitida no casodos trabalhadores independentes pouco qualificados onde a detenção do património continua a ser maisimportante que a obtenção do diploma.
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agrícola. Duas concepções distintas da profissão e do exercício da actividade agrícola vão
então, daqui para a frente, confrontar-se: o grupo dos produtores agrícolas tradicionais
correntemente designados por “lavradores” valoriza o colectivo familiar e o trabalho bem feito,
independentemente do esforço exigido para o realizar; enquanto que o grupo emergente dos
“agricultores” privilegia a utilização racional do trabalho em referência às normas empresariais e
produtivistas que emanam do poder político.
Os trabalhos de campo realizados revelam contudo que tais perfis de identidade não
permitem integrar a totalidade do universo dos produtores agrícolas actuais. Com efeito, os dois
tipos identitários supracitados representam tipos ideais ou extremos, a realidade apresentando-
se mais diversificada no que toca à identificação dos indivíduos a um grupo (sócio)profissional
de pertença. Rodrigo (1992) avança a tese da existência de três “modelos” de chefe de
exploração, compondo-se dos “lavradores”, dos “agricultores profissionais” e dos “agricultores
empresários”, estes últimos assumindo-se como sendo o segmento social mais dinâmico, os
verdadeiros inovadores, aqueles que encarnam a mística do produtor agrícola moderno. Tais
indivíduos constituiriam um sub-grupo dos “agricultores profissionais”, encontrando-se à sua
origem os projectos 797, que institucionalizam o acesso às ajudas à instalação e à
modernização das explorações agrícolas, e os cursos de formação dirigidos aos jovens
agricultores, e muito particularmente a formação dita de “empresário agrícola” tida como o
patamar legal em termos de qualificação profissional para que o jovem possa postular às ditas
ajudas.
As nossas próprias observações comprovam que os produtores agrícolas actuais se
agrupam, eles mesmos, em três grupos identitários distintos: o grupo dos “lavradores”, o grupo
dos “agricultores” e finalmente o grupo dos “empresários agrícolas” ou “agricultores
profissionais”. Nota-se deste modo uma certa similitude com a tipologia apresentada
precedentemente, se bem que a significação por nós acordada aos dois últimos tipos de chefe
de exploração muda de natureza. O “agricultor” seria a entidade intermédia intercalando-se
entre o “lavrador” e o “empresário agrícola”, aquele produtor que utiliza um discurso mais
económico que ético face ao exercício da actividade agrícola, sem contudo a encarar numa
óptica de profissionalização. A identificação ao tipo identitário “empresário” é então reservada a
todos aqueles que integram a actividade agrícola numa óptica de profissionalização, querendo
isto dizer que estes indivíduos equiparam de algum modo a exploração agrícola a uma empresa
e procuram o reconhecimento social do seu estatuto profissional.
No seguimento do nosso trabalho, teremos a ocasião de descobrir que o sentimento
de pertença e a identificação dos produtores agrícolas a um ou outro tipo identitário reveste
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uma importância capital para a adopção do progresso e para a garantia da reprodução da
unidade produtiva. Isto explica o interesse do Estado em intervir na definição de quem é
agricultor e na demarcação de grupos alvo, a emergência de um novo perfil de produtor
agrícola no seio do espaço rural estando fortemente relacionada com o conjunto de acções
levadas a cabo pelas instituições públicas em favor da agricultura. Contudo, se o Estado se
apropria de certas competências do foro familiar, o papel da família no processo da sucessão é
ainda preponderante: tanto a terra como os futuros chefes de exploração são
fundamentalmente de origem familiar. Assim, a sucessão continua a ser, antes de tudo, um
acontecimento familiar.
5 - A transmissão das explorações agrícolas
A análise da prática sucessória contemporânea assenta na observação das práticas
de transmissão das explorações agrícolas, das estratégias e dos comportamentos adoptados
por três grupos distintos de produtores agrícolas. Estes grupos integram: (i) os chefes de
exploração que aqui designamos por “agricultores em fase de sucessão”, ou seja os que
possuem mais de 55 anos e aguardam o momento da transmissão da sua exploração agrícola;
(ii) os “agricultores em fase de cruzeiro”, com idades compreendidas entre os 40-55 anos e se
encontram numa fase de estabilidade do investimento; e finalmente (iii) os “jovens agricultores”,
aqueles cuja idade é inferior ou igual a 40 anos e que retomaram a exploração agrícola mais
recentemente. Nos admitimos que cada prática sucessória se associa a um determinado
estadio de desenvolvimento da sociedade e ao tipo e natureza das relações predominantes no
interior da família agricultora, o momento temporal em que esta prática se realiza
correspondendo, no nosso estudo, à tomada de posse da direcção da exploração agrícola por
parte dos indivíduos pertencentes a cada uma das três gerações de agricultores identificadas.
Convém contudo referir que a definição usualmente atribuída ao conceito de
“Instalação Agrícola6”, pressupondo uma análise exclusivamente centrada na substituição do
chefe da unidade produtiva, nos aparece como algo redutora7. Daí que o estudo que levaremos
a cabo do processo da mudança de geração debruçar-se-à sobretudo sobre o papel do
6 Instalação Agrícola é correntemente designada como o processo de acesso à direcção da unidadeprodutiva por um novo chefe de exploração.7 Ao focalizar-se sobre o indivíduo que assume a direcção da unidade produtiva, esta definição deinspiração técnico-económica escamoteia a realidade social da agricultura familiar descurando odesempenho da restante população que reside na exploração agrícola.
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sucessor familiar, podendo este ocupar ou não o posto de novo chefe da exploração agrícola. O
sucessor familiar é aqui identificado com o indivíduo que herda a componente maioritária do
património fundiário no qual o casal candidato a agricultor se instala, pretendendo-se deste
modo ter presente o carácter manifestamente hereditário no acesso à profissão.
O quadro n° 1 reune as principais características da prática sucessória que conduziu
um “jovem agricultor” à chefia de uma exploração agrícola. O primeiro elemento que sobressai
dos dados recolhidos é o caracter familiar destas instalações. Com efeito, os jovens são
originários de famílias agrícolas e instalam-se em patrimónios fundiários pertença das
respectivas famílias. Dos vinte inquéritos efectuados a este grupo de agricultores, quatorze
referem-se a jovens que sucederam aos pais, três jovens instalam-se nas terras dos sogros e
os três restantes nas terras dos tios. As instalações familiares constituem então a regra,
notando-se também uma forte presença do factor masculino: 85 % dos predecessores (chefes
de exploração cessantes) e 95 % dos novos chefes de exploração são do sexo masculino.
Constata-se ainda que a origem familiar do predecessor influencia o estatuto do jovem
que se instala. Assim, a maioria dos jovens (65 %) obtêm o estatuto de chefe da exploração
agrícola quando sucedem aos pais. No entanto, o factor masculino parece ser mais
determinante para a aquisição da chefia da unidade produtiva que a origem familiar do
predecessor. Verifica-se que são os filhos mais velhos do agricultor os mais preferidos para a
sucessão (60 % dos jovens que se instalam são o primeiro ou o segundo filho do casal),
embora se comece a assistir a uma progressão da retoma de explorações agrícolas por parte
dos filhos mais novos. A instalação agrícola realiza-se, na maioria dos casos, no seguimento do
casamento (55 %), situando-se a 70 % se considerarmos as instalações que se efectuam por
volta do casamento. É importante referir-se que 20 % das instalações se realizaram antes do
casamento do novo chefe de exploração, acontecimento que se concretiza, em média, por volta
dos 24 anos; o mesmo sucede para a instalação.
Aquando do casamento, ou mesmo antes, o jovem recebe geralmente dos pais um
património fundiário no qual se instala: 90 % dos inquiridos receberam terras das respectivas
famílias o mais tardar aquando do casamento. A tendência recente indica que o acesso ao
património fundiário familiar se realiza bastante mais cedo que outrora, o que proporciona a
instalação dos jovens mesmo antes do casamento. Mais determinante que o casamento, o
acesso ao fundiário familiar parece então propiciar a instalação agrícola: 40 % dos jovens
inquiridos receberam terras dos pais antes do casamento; seis de entre eles (30 %) instalaram-
se no seguimento da retoma de terras, os dois restantes exerceram a actividade agrícola a
tempo parcial durante um curto período após o qual se instalaram a título principal. A
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precocidade na retoma da exploração agrícola parece acompanhar-se de um período de
acumulação, senão de reflexão sobre o futuro profissional do jovem, que aparentemente
retarda o casamento: quatro jovens de entre os oito que receberam terras antes do casamento
são ainda solteiros, três deles retomaram a exploração dos pais, o outro instalou-se nas terras
que estes últimos lhe cederam.
Os jovens instalam-se preferencialmente em explorações já criadas (75 % das
instalações referem-se a retomas de unidades produtivas) do que em explorações que eles
mesmos constituem. Regra geral, os jovens retomam a unidade produtiva dos pais (50 %) ou
instalam-se em terras cedidas por estes (20%). Deste modo, as instalações na exploração
agrícola de sogros não representam mais que 10% dos casos e nas terras cedidas por estes
somente 5%; os restantes 15 % dizem respeito às instalações realizadas em patrimónios
familiares pertença de outros parentes.
A retoma da unidade produtiva efectua-se, regra geral, gratuitamente (75% dos casos
inquiridos). Os jovens que pagam uma renda não o fazem aos pais nem aos sogros. De
salientar que as formas societárias de transmissão da exploração agrícola representam 25% do
total. Destes, 20% dizem respeito a sociedades estabelecidas entre irmãos, e somente 5% a
sociedades do tipo pais-filhos.
A aquisição da direcção da exploração agrícola (instalação efectiva) faz-se
normalmente aquando do casamento (50%), contrapondo-se assim manifestamente à norma
tradicional de uma subordinação mais ou menos longa à autoridade paternal. Factores tais
como a evolução decrescente da natalidade familiar, a escolarização e o desejo dos jovens de
se tornarem independentes, as políticas de instalação agrícola... vêm contribuindo
decisivamente para a redefinição do momento da retoma da unidade produtiva, favorecendo a
ocorrência das instalações precoces no seio das famílias agrícolas. De notar que a instalação
de jovens antes do seu casamento é um acontecimento extremamente recente na região
estudada, a retoma da exploração agrícola passando a coincidir cada vez mais, e
contrariamente ao passado, com o momento da aquisição do estatuto de chefe da exploração.
Por outro lado, torna-se absolutamente necessário analisar as condições da partilha
tendo presente a situação dos irmãos do sucessor familiar face à distribuição dos bens. Regra
geral, e como já foi referido, o filho do agricultor recebe quanto mais não seja uma parcela de
terra, o mais tardar aquando do casamento. Esta afirmação é sobretudo válida para o sucessor
familiar mas também para os respectivos irmãos. A informação empírica recolhida permite
afirmar que os pais que não atribuem terras aos filhos por altura do casamento pertencem quer
à categoria dos médios/pequenos agricultores (o que pode reflectir uma escassez de meios
A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
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para o fazer), quer à categoria dos grandes agricultores (aqueles que dispõem dos meios, e
nomeadamente financeiros, para não o fazerem). Estes últimos tendem a privilegiar as
dotações monetárias às dotações patrimoniais, a instalação dos jovens podendo então
efectuar-se sem recurso ao fundiário familiar, e isto no que diz respeito a pelo menos um dos
ascendentes.
A prática sucessória mais recente, tal como o demonstram os dados referentes aos
agricultores mais jovens, procura nortear-se pelos princípios do tratamento equitativo e da
eliminação das preferências, mas não deixa contudo de manifestar uma certa desigualdade no
tratamento dos diferentes herdeiros. Assim, mesmo se a partilha dos bens tende para um
tratamento equitativo em valor entre herdeiros, a prática sucessória é raramente igualitária. Em
particular, os filhos do agricultor não são todos tratados de maneira idêntica aquando da
distribuição das terras: regra geral, o tratamento igualitário diz unicamente respeito aos
indivíduos que pretendem exercer a actividade agrícola. Neste grupo, a tendência avança no
sentido de um tratamento igualitário (mas raramente idêntico) aplicado a todos sem excepção,
o qual se contrapõe manifestamente à norma sucessória tradicional da eleição de um herdeiro
preferencial no seio da família. Assim, os jovens que emitem o desejo de exercer a actividade
agrícola recebem por norma dos pais uma mesma dotação patrimonial, habitualmente uma
fracção das terras ou quota-parte da exploração familiar. Embora a natureza dos bens e o
momento em que estes são distribuídos pelos herdeiros sejam variáveis, a dotação em valor
tende para um montante equivalente.
De realçar ainda que, contrariamente ao passado onde a partilha da terra dependia
sobretudo do direito que os pais se reservavam em atribuí-la aos filhos que a solicitavam
permanentemente, hoje em dia, o desinteresse de um número significativo de filhos do
agricultor pelo exercício da actividade leva a que estes últimos reivindiquem cada vez menos o
direito ao uso da terra. Consequentemente, a atribuição de terra por altura do casamento tende
a tocar cada vez menos a indivíduos no seio das famílias agrícolas, restringindo-se em torno
dos filhos que pretendem exercer a profissão. Os dados recolhidos permitem afirmar que ao
mesmo tempo que as estratégias profissionais dos jovens se vão diversificando — os pais
mantendo o controlo sobre a propriedade do fundiário mas devendo ter doravante presente os
interesses patrimoniais dos filhos que partem para se instalarem noutras actividades —, o
acesso à terra passa a depender do estabelecimento de novas solidariedades familiares, as
quais estão sujeitas ao duplo consentimento quer dos pais, quer dos futuros herdeiros. Em
certos casos, o resultado deste compromisso que concilia os diferentes interesses patrimoniais
em jogo, concretiza-se no estabelecimento de uma sociedade familiar, onde cada filho do
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agricultor passa a deter uma quota parte da exploração agrícola.
Os quadros n° 2 e 3 salientam as principais características da prática sucessória
observada no grupo dos “agricultores em fase de cruzeiro” e dos “agricultores em fase de
sucessão”, respectivamente segunda e primeira geração. Dado o número reduzido de
inquéritos efectuados dentro de cada um destes grupos, é preferível limitarmo-nos a uma
interpretação meramente qualitativa das práticas recenseadas. Em todo o caso, e este
raciocínio aplica-se também à análise precedente, as explicações que aqui são avançadas não
pretendem quantificar nem avaliar a representatividade das práticas sucessórias associadas a
cada um dos grupos, mas antes devem ser consideradas como formas particulares de uma
evolução global da prática sucessória que se modula e reorganiza ao longo do tempo.
Para os agricultores da segunda geração, “agricultores em fase de cruzeiro”, a
instalação agrícola constituiu um acontecimento essencialmente familiar. As famílias agrícolas
participaram no processo de instalação quer através da cedência das terras, quer fornecendo
os novos chefes da exploração agrícola. Embora as instalações familiares sejam ainda
largamente dominantes, outros tipos de instalação se demarcam. Não somente as instalações
em terras dos sogros se tornam mais frequentes mas observa-se também a ocorrência de
instalações fora do círculo familiar. Esta evolução da prática sucessória pode, sem dúvida,
explicar-se pela composição da amostra inquirida (fundamentalmente constituída por médios e
pequenos agricultores) mas resulta também do processo de diversificação profissional que se
foi impondo progressivamente no espaço rural local. A democratização da emigração,
possibilitada pela abertura do mercado de trabalho europeu, favoreceu os desvios profissionais
e a acumulação de capital no exterior, o qual permitiu, nalguns casos, a aquisição de terras e a
instalação sem recurso ao fundiário familiar aquando do retorno ao país. Contudo, para a
grande maioria dos inquiridos, o estatuto de chefe da exploração continuou a ser alcançado no
seguimento de uma retoma de terras familiares.
Por outro lado, os jovens que se instalaram eram, regra geral, os filhos mais velhos do
agricultor. A idade média do seu casamento avizinhava os 24 anos, contudo a idade da
instalação situava-se somente à volta dos 30 anos. Este último aspecto contrasta já de forma
significativa com a norma dominante no grupo dos “jovens agricultores”, onde a instalação se
realiza predominantemente no seguimento do casamento e, nalguns casos, mesmo antes.
Para os “agricultores em fase de cruzeiro” a não atribuição de património fundiário aos
filhos aquando do casamento era uma prática frequente. E, se uma cedência de terra ocorria,
ela tomava geralmente a forma de uma partilha anticipada ou então de uma doação. Assim, os
jovens instalavam-se preferencialmente nas terras familiares e mais raramente na exploração
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familiar; aqueles que recuperavam terras familiares geralmente não pagavam renda aos pais,
ao contrário dos que retomavam a exploração familiar e que, por isso, se constituíam como os
"verdadeiros" sucessores.
Observou-se contudo, dentro do grupo, uma distribuição diferenciada do património
fundiário familiar em relação directa com a dimensão física da exploração agrícola. Assim, os
“pequenos agricultores”, aqueles que possuiam explorações agrícolas cuja dimensão física se
aproximava dos 2 ha de SAU, não distribuíam normalmente nenhuma terra aos filhos antes da
partilha final; contudo, os “médios agricultores”, aqueles cuja dimensão da exploração agrícola
avizinhava os 4 ha de SAU, praticavam uma distribuição progressiva do fundiário familiar,
atribuindo parcelas de terra aos filhos pelo casamento, o que facilitava a instalação destes
últimos fixando-os em torno dos pais.
Verificou-se ainda que a instalação agrícola tendia a ser coincidente com o momento
do casamento do jovem candidato a agricultor unicamente quando este recebia uma parcela de
terra dos pais, ocorrendo mais tarde, aquando do casamento do último filho residente na casa
paterna, quando o candidato à retoma (habitualmente o filho mais velho) esperava instalar-se
na exploração familiar. O exercício do trabalho da terra ocupava grande parte dos filhos de
agricultor. Muitos instalavam-se nas parcelas de terra cedidas pelos pais e procuravam um
complemento de rendimento nas actividades exteriores à sua própria exploração, enquanto que
outros submetiam-se à autoridade paternal e aguardavam pacientemente a sucessão. Esta
organizava-se preferencialmente entre os pais e o primogénito de sexo masculino e realizava-
se, por norma, numa data bem posterior ao casamento do candidato à retoma. A união
matrimonial deste, contrariamente ao que sucedia com todos os seus outros irmãos que deviam
abandonar a exploração agrícola por altura do seu casamento, reservava-lhe o direito à
cohabitação na casa paterna, consolidando pela mesma ocasião a sua preferência para a
retoma da exploração familiar. A partilha das terras era geralmente igualitária entre os filhos do
agricultor uma vez que a diferenciação social do trabalho não era ainda muito significativa e que
todos se encontravam mais ou menos ligados ao exercício do trabalho da terra.
O carácter familiar das instalações agrícolas não era uma novidade para os
agricultores da primeira geração, “agricultores em fase de sucessão”; porém, as instalações
nas terras dos sogros não aparecem na nossa amostra. Isto deve-se à reduzida expressão
numérica desta, mas também ao efeito “dimensão física” das explorações recenseadas. Com
efeito, ao pretender traçar a evolução, ao longo do tempo, das práticas de transmissão da
exploração agrícola e, tendo presente, a partilha desigual característica da prática sucessória
tradicional, fomos levados a concentrar os inquéritos sobre os indivíduos que beneficiaram de
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uma vantagem patrimonial importante aquando da sua instalação. A nossa amostra não é
assim representativa do grupo dos “agricultores em fase de sucessão” dado que: (i) os “grandes
agricultores” constituem o grosso dos inquiridos (aqueles que beneficiavam de uma manifesta
preferência familiar); (ii) os “médios agricultores” não fazem parte da amostra (aqueles que
partiam a instalar-se nas terras dos sogros); e (iii) somente dois “pequenos agricultores” foram
ouvidos. Tendo presente estas considerações metodológicas, vejamos quais as contribuições
que emanam da análise das práticas sucessórias deste grupo de agricultores com vista a traçar
a sua evolução ao longo do tempo.
Mais flagrante do que nos restantes dois outros grupos já analisados, os agricultores
da primeira geração adquiriram o estatuto de chefe da exploração no seguimento da retoma de
uma unidade produtiva, por norma de origem familiar e geralmente a dos pais. Os costumes
associados à prática sucessória local impunham a eleição de um herdeiro preferencial no seio
da família, o qual tomava conta dos pais em contrapartida dos benefícios que lhe eram
concedidos. Se os pais possuiam várias explorações agrícolas (quintas) ou terrenos bastante
dispersos a instalação de vários filhos no património fundiário parental podia ocorrer. Porém, na
maior parte dos casos, a prática sucessória dominante beneficiava um só herdeiro preferencial,
o primogénito de sexo masculino. Este retomava a exploração familiar habitualmente após a
morte dos respectivos pais, vendo-se os outros irmãos forçados a abandonar a exploração
familiar por altura do casamento. Regra geral, os irmãos do herdeiro preferencial partiam da
exploração familiar com uma oferta: o dote (habitualmente em capital), se os pais eram
agricultores abastados, e sem qualquer indemnização quando os pais detinham somente uma
pequena propriedade. A partilha efectiva dos bens familiares só se realizava por falecimento
dos pais, mesmo se uma doação podia intervir mais cedo em favor do herdeiro preferencial, o
qual guardava contudo a maior parte do capital da exploração agrícola.
Embora os detentores de patrimónios fundiários reduzidos se encontrem sub-
representados no quadro n° 3, os conhecimentos adquiridos ao longo da realização do trabalho
de campo permitem-nos algumas considerações. Assim, se bem que algo remaniados, os
princípios normativos da prática sucessória tradicional tendiam a aplicar-se também aos grupos
de agricultores menos abastados. Mesmo para os pequenos agricultores era corrente a
preferência pelo primogénito de sexo masculino para a retoma da exploração familiar, o qual
beneficiava de alguns dos direitos consentidos ao herdeiro preferencial. Entre outros, salienta-
se o facto do primogénito cohabitar com os pais e usufruir, aquando da partilha, de uma quota
parte do património familiar algo superior à dos irmãos. A situação destes últimos, excluídos da
retoma da exploração familiar, sem terra e sem dote, era assim manifestamente precária, a sua
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instalação tornando-se difícil e devendo passar seja pela realização de um “bom” casamento,
seja por um desvio profissional, os quais lhes permitiam aceder directamente à terra por
herança ou doação, ou então indirectamente através da acumulação exterior do capital
necessário à sua aquisição.
Compreende-se assim que quer a média das idades do casamento (31 anos), quer a
da instalação agrícola (37 anos) sejam para os “agricultores em fase de sucessão” as mais
elevadas de todos os agricultores inquiridos. A prática dominante era a da não partilha do
património familiar por altura do casamento dos filhos, aqueles agricultores que a faziam, não o
faziam voluntariamente mas por reivindicação dos filhos que exigiam a parte da herança que o
código civil lhes reservava em virtude do desaparecimento de um dos pais. A maior parte dos
inquiridos do grupo foram, como já foi referido, herdeiros preferenciais e a sua instalação
realizou-se muito naturalmente na exploração de origem familiar. A retoma da exploração
familiar não se efectuava portanto nem de forma automática nem gratuita: na situação em que
um dos pais faleceu e a instalação se tornou quase imediata, a retoma da exploração fez-se em
arrendamento, logo que o último filho a cargo abandonou a casa paterna; na situação em que a
retoma só ocorre após o falecimento de ambos os pais, esta efectuou-se por herança e
gratuitamente.
Para os filhos dos agricultores detentores de patrimónios fundiários reduzidos, a
instalação realizava-se regra geral tardiamente, logo que estes dispunham das terras
necessárias ao exercício da actividade. A distribuição do património fundiário familiar era
fortemente controlada pelos pais, pequenos agricultores, que só a efectuavam sob a pressão
dos filhos que reivindicavam o seu direito à herança. O número dos agricultores sem terra era
assim significativo, estes tendo que refugiar-se no assalariamento para acumular um capital
que, eventualmente, lhes permitisse, mais tarde, a aquisição de terras e a instalação. A partilha
das terras só se realizando por herança, tendia a efectuar-se de modo idêntico entre todos os
filhos excepto para o primogénito que recebia uma vantagem patrimonial consequente.
Para concluir esta análise da prática de transmissão das explorações agrícolas ao
longo do tempo, efectuamos, de seguida, uma síntese das características mais marcantes das
práticas sucessórias observadas, integrando-as no contexto socioeconómico em que elas se
desenrolavam.
Assim, num país onde a afirmação do direito igualitário entre herdeiros sempre
constituiu a norma dominante do código civil, é interessante notar a existência de práticas de
transmissão da exploração agrícola que beneficiam manifestamente um herdeiro preferencial.
Tradicionalmente, a prática sucessória desigual favorecia o primogénito de sexo masculino,
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vendo-se os outros irmãos excluídos da retoma da unidade produtiva e de uma importante
fracção do património familiar. Somente o colectivo familiar do herdeiro preferencial usufruía do
direito à habitação na casa paterna, todos os outros irmãos deviam abandonar a exploração
agrícola por altura do respectivo casamento. Estes últimos viam-se assim obrigados a procurar
quer uma residência, quer uma actividade de subsistência fora da casa paterna. Por outro lado,
a economia local organizava-se em torno das actividades agrícolas e a raridade da terra
propiciava o desenvolvimento de estratégias matrimoniais de aquisição fundiária e de
acumulação exterior de capital, afim de possibilitar a instalação agrícola. Estas características,
intimamente associadas ao modelo sucessório do “Morgadio”, estavam ainda bem presentes na
sociedade rural do EDM dos anos cinquenta. A ordem social desta sociedade estruturava-se
em torno do exercício do trabalho da terra, o qual conferia aos habitantes uma identidade social
especifica: a do “lavrador”.
Se bem que a coesão identitária do grupo dos agricultores tradicionais seja um facto
reconhecido, estes não formavam um grupo socialmente homogéneo, pelo menos no que toca
à dimensão da propriedade e às práticas sucessórias. As práticas de transmissão da
exploração agrícola eram significativamente diferentes entre os “lavradores” em relação com a
dimensão das suas explorações. A propriedade do fundiário hierarquizava socialmente os
indivíduos em grupos de detentores de património, cada grupo desenvolvendo práticas
sucessórias bem diferentes. Contudo, e se bem que de maneira mais ou menos diferenciada,
os princípios característicos do modelo sucessório tradicional tendiam a impôr-se a todos os
agricultores, independentemente da sua dotação patrimonial. Tal é o caso dos direitos
consentidos ao primogénito, da importância do factor sexo na eleição do herdeiro/candidato
preferencial, e da vantagem patrimonial atribuída ao filho que retomava a exploração familiar.
Explica-se assim a preferência manifesta, dentro de cada um dos grupos de agricultores, pelos
filhos mais velhos de sexo masculino para a retoma da exploração familiar, estes recebendo
uma vantagem patrimonial significativa aquando da sua instalação, a qual era suposto
indemnizá-los dos encargos decorrentes de tomarem conta dos pais até ao final da vida.
Para os “grandes agricultores” a prática sucessória mais habitual traduzia-se na
eleição de um herdeiro preferencial — o primogénito de sexo masculino — que retomava a
exploração familiar aquando do falecimento dos pais com uma vantagem patrimonial
considerável. Os seus irmãos abandonavam a casa paterna pelo casamento e recebiam o dote
(em capital), o qual lhes permitia financiar a sua instalação noutras terras que não as da
exploração familiar.
Para os “médios agricultores”, a prática sucessória dominante consistia na atribuição
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de umas parcelas de terra a cada filho por altura do casamento, a qual autorizava a fixação
imediata dos indivíduos à terra. Dada a exiguidade das suas propriedades fundiárias, estes
indivíduos começavam por trabalhar a tempo parcial na sua exploração, e as sucessivas
doações e heranças familiares, bem como a aquisição de terras, ia-lhes permitir posteriormente
aumentar progressivamente a dimensão da sua unidade produtiva. O percurso profissional
destes indivíduos era assinalado pela existência de desvios profissionais, agrícolas e não
agrícolas, repousando o desejo particular de cada um na detenção de uma fracção de terras,
julgada suficiente, para lhes permitir exercer a actividade agrícola a tempo principal, senão
completo.
Para os “pequenos agricultores” e para os agricultores sem terra a norma da prática
sucessória era a da não atribuição nem de terra nem de dote por altura do casamento. A
reduzida superfície agrícola de que estes indivíduos dispunham (pelo menos em propriedade)
não os autorizava a fragmentar a exploração sem pôrem em risco a sua própria sobrevivência.
Os filhos destes agricultores não tinham outra alternativa a não ser o assalariamento ou a
emigração, afim de acumularem um capital que lhes permitisse a instalação agrícola via a
aquisição de terras. Os indivíduos originários deste grupo formavam o grosso da reserva de
força de trabalho do mundo agrícola.
Na sociedade tradicional do EDM, as assimetrias face à detenção da propriedade
fundiária geravam a hierarquização social dos indivíduos mas as relações entre os diferentes
grupos edificavam-se nos princípios da solidariedade e da complementaridade, cimentando a
coesão dos indivíduos. O posicionamento destes na estrutura social local não se apresentava
como um processo imutável mas ao contrário dinâmico e evolutivo. Assim, os filhos dos
“grandes agricultores”, excluídos do acesso às terras familiares mas munidos do dote,
instalavam-se frequentemente na casa dos sogros, “médios agricultores”, os quais cediam
terras aos filhos por altura do casamento. Do mesmo modo, os assalariados agrícolas podiam
ver atribuir-se-lhes um novo posicionamento na estrutura social local, bastando para isso o
acesso à propriedade fundiária via a aquisição ou a herança. Tais acontecimentos eram
contudo raros em razão quer do reduzido poder de acumulação dos agricultores sem terra, quer
do controlo exercido pelos proprietários fundiários sobre a oferta. As mutações da organização
social local eram notoriamente lentas, realizando-se por assimilação de um processo de
mudança colectivo.
Todavia, no decorrer dos anos setenta inicia-se um processo de transformação mais
significativa das práticas sucessórias locais, impulsionado pela emergência no espaço rural
tradicional de um novo perfil de agricultor e de uma nova representação do mundo. A
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emigração e a industrialização difusa constituem, daqui por diante, portas abertas à
diversificação profissional dos habitantes do espaço rural, a urbanização crescente deste
espaço confrontando-os à descoberta de novas maneiras de pensar, de agir e de consumir. As
práticas de transmissão da exploração agrícola não escaparam a esta evolução geral. Assim,
os princípios estruturantes da prática sucessória tradicional dão lugar, progressivamente mas
ineluctavelmente, a novas regras, onde são patentes a afirmação do individualismo profissional
e social do filho do agricultor. Este encara cada vez menos a actividade agrícola como
profissão, o seu interesse pela terra resumindo-se, em grande parte dos casos, ao valor
monetário desta.
Tal como o afirma Rodrigo (1992), para os agricultores da segunda geração (com
idades compreendidas entre 35 e 55 anos) a terra não representa mais o símbolo de prestigio
que ela incarnava para os agricultores da primeira geração (com idades superiores a 55 anos).
Mais recentemente, os resultados dos nossos inquéritos evidenciam que certos filhos de
agricultor exercendo actividades profissionais não agrícolas não procuram mais guardar o
controlo da terra, a detenção de um património fundiário não os interessando minimamente.
Portanto, o fascínio destes indivíduos pelo fundiário familiar continua ainda bem forte, devendo-
se unicamente ao elevado valor comercial da terra. As suas reivindicações orientam-se no
sentido de uma partilha precoce do património familiar, o que lhes possibilita a venda da sua
parte da herança.
A atracção comparada da profissão de agricultor tendo fortemente decaído no seio do
espaço rural e a luta pela posse, e sobretudo pelo uso da terra tendo-se reduzido
significativamente no interior das famílias, os candidatos a agricultor tendem a não mais serem
excluídos do acesso à profissão senão de sua própria e livre vontade, tanto mais que a
intervenção do Estado no processo da mudança de geração passou a possibilitar, desde 1986,
a fixação à agricultura sem recurso ao financiamento familiar. Novos percursos de instalação
vão animar daqui para a frente o processo da renovação dos chefes de exploração, as
mulheres não são mais automaticamente excluídas da retoma da unidade produtiva e bom
número de indivíduos tornam-se agricultores no intuito de beneficiarem das ajudas à instalação
e à modernização das explorações agrícolas.
Portanto, o ingresso na profissão tende a tornar-se mais selectivo. Para beneficiarem
das ajudas estatais à instalação, critério tido como sinónimo do êxito profissional do novo chefe
de exploração, os jovens são convidados a investir massivamente no momento da sua
instalação, a completar a sua formação profissional, e a encontrar uma forma de transição com
o predecessor que seja aceite pelas entidades oficiais. Além do mais, a especialização
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progressiva das explorações agrícolas da região — integrando-as num ciclo de capitalização
crescente- associada à redução substancial das vantagens familiares consentidas por altura da
sucessão, coloca em novos termos a questão da transmissão da exploração agrícola. Não
somente os jovens que se interessam pela retoma da exploração familiar são cada vez menos
númerosos, mas também os investimentos associados ao processo de instalação aumentam
continuamente.
Daqui resulta, que as práticas sucessórias actuais testemunham inúmeras mudanças.
Elas reflectem um notório enfraquecimento da autoridade paternal quer no que respeita à
escolha do futuro sucessor, quer na definição das modalidades da partilha. A tendência da
prática sucessória evolui no sentido da retoma precoce da exploração familiar e do tratamento
igualitário (mas raramente idêntico) entre os filhos do agricultor que pretendem exercer a
profissão. A crescente reivindicação dos filhos do agricultor ao património familiar contribuiu
decisivamente para atenuar as desigualdades entre herdeiros por ocasião da partilha, mas
acarretou também uma diminuição significativa da vantagem patrimonial consentida àquele que
retoma a unidade produtiva. Outrora preservando práticamente intacta a superfície da
exploração agrícola — o “terço” atribuído ao herdeiro preferencial englobava, em muitos casos,
todo o património agrícola — , a vantagem patrimonial não diz respeito, hoje em dia, a mais do
que uma pequena parcela do património familiar, restringindo-se cada vez mais em torno do
único direito à habitação familiar. Deste modo, passou a fazer cada vez menos sentido falar-se
em "herdeiro preferencial", as vantagens consentidas ao retomador familiar não fazendo do
mesmo mais do que um mero "candidato preferencial".
Neste contexto evolutivo, compreende-se bem a importância do funcionamento das
solidariedades familiares, as quais continuam a garantir o direito ao uso da terra, e de maneira
quase gratuita, ao novo chefe da exploração familiar, este só tendo de se preocupar com a
aquisição das terras aos irmãos habitualmente aquando do falecimento dos pais. Se as políticas
de instalação e de modernização agrícola contribuem decisivamente para a difusão de um ideal
tendente a favorecer a profissionalização dos agricultores, elas mostram-se contudo bastante
limitadas no que toca à intervenção no processo da aquisição do fundiário. São as famílias
agrícolas que controlam os circuitos da oferta do fundiário e geram os futuros sucessores. Em
consequência, são elas que marcam o início da instalação agrícola. A reflexão que se segue,
centra-se em torno do modo como se organiza no seio das famílias agrícolas quer a escolha do
futuro sucessor, quer a transmissão da exploração agrícola, esta última sendo suposta
assegurar o cumprimento de algumas funções essenciais, tanto para os predecessores como
para o futuro chefe da exploração.
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6 - A escolha do sucessor
Tendo presente o caracter hereditário da profissão agrícola, o futuro sucessor é quase
sempre eleito entre os filhos do agricultor. A questão da escolha do sucessor pode assim ser
analisada no seio das famílias agrícolas, recorrendo para isso a dois eixos de investigação: (i)
as estratégias familiares e (ii) as trajectórias profissionais dos filhos do agricultor. Em particular,
pretendemos identificar os objectivos que são perseguidos pelos pais e que justificam a
transmissão da exploração familiar, bem como acompanhar os percursos profissionais que
conduzem os jovens à tomada de posse da direcção de uma unidade produtiva.
6.1 - As estratégias familiares
A análise das estratégias familiares fundamenta-se na hipótese de que a família
persegue um grupo de objectivos particulares aquando da transmissão da exploração agrícola,
o que a leva a definir uma estratégia de acção com vista a alcançar o melhor compromisso para
a satisfação dos seus objectivos. A família compõe-se no entanto de vários indivíduos,
enquanto que a realização da sucessão não exige mais do que dois intervenientes: o
predecessor (geralmente um dos pais) e o filho que retomará a exploração familiar.
Ora, os objectivos, e consequentemente as estratégias elaboradas por aqueles dois
agentes aquando da organização da sucessão não são forçosamente idênticas. A transmissão
da exploração agrícola implica então que as estratégias dos pais e as do futuro sucessor se
cruzem num certo momento, criando assim um terreno de compromisso que validará as
intenções de ambos. Se a estratégia emana dos pais e traduz preferencialmente as suas
preocupações face à sucessão, estamos na presença de uma “estratégia sucessória”; se, pelo
contrário, a estratégia que se afirma é a do candidato à retoma, a qual traduz as aspirações do
jovem quanto às condições da tomada de posse da unidade produtiva, então estamos na
presença de uma “estratégia de instalação”. Em definitivo, a estratégia sucessória explicaria a
escolha do sucessor e a prática de transmissão da exploração agrícola adoptada, enquanto que
a estratégia de instalação traduziria as condições da retoma da unidade produtiva.
A terra é, ainda hoje em dia, um elemento incontornável para todos aqueles que
pretendem exercer a actividade agrícola. Outrora cobiçada pelo prestigio que engendrava, e
actualmente ameaçada pelo fraccionamento, devido ao seu alto valor comercial e à pouca
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atracção que a profissão de agricultor manifesta entre os mais novos, as práticas sucessórias
tradicionais encontraram na eleição de um herdeiro preferencial uma solução para evitar a
atomização da propriedade fundiária. Face ao número elevado de candidatos potenciais à
retoma da exploração familiar, os pais deviam escolher um sucessor preferencial de entre todos
os seus filhos, esta escolha recaindo outrora, invariavelmente, sobre o primogénito de sexo
masculino, tal como o predicava a norma social da prática sucessória local8.
Ora, se bem que actualmente os indivíduos de sexo masculino continuem a serem
preferidos para a retoma da exploração familiar, a escolha do sucessor não se restringe
obrigatoriamente ao primogénito. Do mesmo modo, as filhas do agricultor não são mais
sistematicamente excluídas da retoma da exploração familiar. O posicionamento hierárquico no
seio da família continua a influenciar a tomada de posse da unidade produtiva mas de maneira
significativamente diferente do que sucedia outrora. Assim, enquanto que tradicionalmente a
retoma da exploração familiar se realizava tardiamente e beneficiava o primogénito de sexo
masculino, hoje em dia, a tendência evolui no sentido da tomada de posse precoce, em
sociedade ou então individualmente, neste último caso a preferência recaindo na escolha de um
sucessor de entre os filhos mais novos do agricultor. Esta evolução da prática sucessória não é
estranha ao facto dos candidatos à retoma da exploração familiar serem cada vez menos
númerosos, bem como da autoridade paternal não se exercer já de maneira tão impositiva
como no passado, o que conduz a uma redefinição da escolha do novo chefe da exploração
agrícola.
Por outro lado, a dotação que os pais atribuem aos filhos por altura do casamento
contribui, de maneira mais ou menos decisiva, para a definição do percurso profissional dos
jovens. Isto, em razão da natureza da dotação consentida mas também do seu montante. As
nossas próprias observações confirmam que uma dotação matrimonial em terra facilita a
fixação dos filhos do agricultor à profissão, enquanto que a não cedência familiar de uma
8 Relembra-se que se a eleição de um herdeiro preferencial era uma pratica manifestamentecaracterística de um grupo de agricultores detentores de patrimónios fundiários importantes, o princípioda escolha de um candidato preferencial para a retoma da exploração familiar era também “ adoptado ”pelos outros proprietários fundiários do espaço rural tradicional, muito embora as vantagens consentidasao primogénito fossem sensivelmente diferentes. Assim, a título de exemplo, citamos que se a normasucessória dominante para os médios agricultores era a da distribuição de uma parcela de terra a cadafilho por altura do seu casamento, nada impedia contudo os pais de reservarem o núcleo da exploraçãofamiliar para o seu filho mais velho, o qual seria o suporte dos pais na sua velhice. Dai, a distinção queconvém realizar entre o sucessor familiar (aquele que herdava o núcleo da exploração familiar) e osrestantes herdeiros, também agricultores, mas que recebiam unicamente uma fracção das terras dospais.
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parcela de fundiário propicia os desvios profissionais, senão o abandono da actividade. Porém,
a influência dos pais sobre as trajectórias profissionais dos filhos não resulta única e
exclusivamente das dotações materiais atribuídas. Estas mais não constituem que um
elemento formal de uma estratégia familiar pré-definida com vista a assegurar a reprodução do
grupo doméstico, que nos designamos na sua globalidade por estratégia sucessória.
No passado, a escolha do herdeiro preferencial acompanhava-se de uma “estratégia
de exclusão” dos outros filhos do agricultor do exercício da actividade agrícola. Desapossados
do direito à terra, os irmãos do herdeiro preferencial viam-se obrigados a procurar uma opção
profissional fora da exploração familiar, e de preferência fora do sector agrícola. Mais
recentemente, a diversificação profissional das actividades no espaço rural contribuiu para que
os pais desenvolvessem, pelo contrário, estratégias sucessórias de fixação dos indivíduos à
actividade agrícola. A preocupação destas novas estratégias é a de garantir a permanência de
pelo menos um dos filhos na exploração familiar, para que este retome a unidade produtiva e
assegure a sobrevivência dos pais. Isto, passa pela vantagem patrimonial consentida ao novo
chefe — mecanismo tradicional —, mas também pela participação dos jovens à tomada de
decisão, através quer da sua instalação precoce, quer da adopção da modernização agrícola,
considerada uma etapa essencial para a fixação dos jovens à actividade.
Além da dotação patrimonial e dos arranjos familiares visando a facilitar tanto o
trabalho agrícola como o acesso dos jovens à direcção da exploração familiar, os pais podem
influenciar o percurso profissional dos filhos através da educação. Ora, a escolaridade não é o
único elemento que participa à aculturação de um indivíduo. Tal como o refere Rodrigo (1992),
a transmissão do saber agrícola pela experiência não diz somente respeito ao conhecimento
técnico e científico — o qual é característico do ensino escolar ou profissional — , mas engloba
também a aquisição do conhecimento referente à organização social da família e da
exploração. Através da transmissão do saber dos pais aos filhos é toda uma cultura social da
produção agrícola que se propaga, a qual é, no entanto, e cada vez mais, confrontada com
conceitos que escapam à (exclusiva) lógica familiar. Quando os pais incitam os filhos a seguir
uma determinada opção profissional, valorizando o trabalho quotidiano ou simplesmente
glorificando as qualidades que eles pretendem inatas de cada indivíduo, não estão do mesmo
modo a projetar sobre os filhos os seus próprios desejos no que diz respeito aos percursos
profissionais que eles desejariam ver realizados para cada um dos seus filhos. E, em resposta
a esta projecção do desejo dos pais, certos filhos não responderão favoravelmente às
intenções profissionais que lhes são dirigidas?
Os resultados dos inquéritos parecem confirmar que os pais utilizam uma
A SUCESSÃO AGRÍCOLA — Um estudo de caso no Entre Douro e Minho——————————————————————————————————————————
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multiplicidade de estratégias familiares afim de obterem um sucessor para a sua exploração
agrícola. Seja através do elogio das capacidades dos filhos para o exercício de determinadas
funções — o que motiva os indivíduos a adquirirem competências nestes domínios —, seja
muito simplesmente através da afirmação da autoridade paternal que pretende impôr um futuro
sucessor, os pais servem-se de uma panóplia de meios que visam, no fundo, afastar os filhos
“não eleitos” da retoma da exploração familiar, desbravando pela mesma ocasião o caminho ao
futuro sucessor. Os comportamentos familiares que se traduzem por uma incitação à partida
dos filhos da exploração agrícola, tais como o encaminhar dos filhos para o desempenho de
actividades não agrícolas, para a conclusão de estudos superiores... podem então ser
compreendidos como elementos formais de uma estratégia sucessória respondendo a uma
preocupação principal de facilitar a retoma da exploração familiar.
Os dados de que dispomos conduzem-nos a concluir que, desde o seu nascimento, o
filho do agricultor é submetido a esta influência paternal que tende a encaminhá-lo para um
determinado percurso profissional, senão para uma dada profissão. Os pais utilizam contudo,
hoje em dia, duas variáveis cruciais para definirem o futuro chefe da exploração familiar. Estas
variáveis são: as simpatias parentais e a vocação de cada filho.
A vocação profissional do indivíduo, que admitimos ser a resultante de um
acontecimento social e não inata, age sobre todos os filhos do agricultor e tende a limitar o
número de candidatos à retoma da exploração, nomeadamente através da utilização de uma
estratégia paternal de exclusão dos filhos da profissão, baseada na projecção sobre os filhos
dos desejos profissionais dos pais. A simpatia paternal só se exprime em relação aos filhos
agricultores e tende a eleger um candidato preferencial à retoma da unidade produtiva, se
existe um.
As simpatias que os pais desenvolvem em relação aos filhos, para além de revestirem
inúmeras facetas, são, muitas vezes, de apreciação subjectiva, o que dificulta a sua explicação
e a sua análise. Todavia, na determinação do futuro sucessor, os pais avaliam sempre as
capacidades de cada indivíduo no sentido de lhes assegurar uma velhice sem problemas, o que
passa em primeiro lugar pela análise das disponibilidades e aptidões de cada filho a garantir-
lhes os cuidados necessários durante a velhice. Isto explica a manifesta preferência dos pais,
aquando da sucessão, pelos filhos que permanecem na casa paterna e se encontram já
casados, esta cohabitação garantindo-lhes a presença permanente na exploração de pelos
menos um dos elementos do jovem casal. Certos inquiridos afirmam mesmo ter recusado a
transmissão da sua unidade produtiva a familiares que, exercendo uma outra actividade
profissional, não estariam continuamente presentes na exploração. Uma ausência diária
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prolongada da exploração agrícola é apercebida como negativa pelos predecessores que
receiam muito concretamente que os assalariados não lhes possam prestar os cuidados
necessários em caso de enfermidade.
O objectivo dos pais aquando da organização da sucessão não será então, tão
somente, como o poderíamos eventualmente supôr, o de encontrar um sucessor para garantir a
continuidade da sua unidade produtiva, mas ainda assegurar-se que o candidato eleito dispõe
das aptidões necessárias para lhes proporcionar um fim de vida estável e tranquilo.
Actualmente, a satisfação deste objectivo depende do cumprimento de duas importantes
funções: (i) garantir os cuidados necessários aos pais durante toda a sua velhice e (ii)
proporcionar-lhes um rendimento mínimo de subsistência. Númerosos testemunhos de
agricultores se referem a estas expectativas paternais face à sucessão, as quais se impõem
habitualmente como condições prévias à realização da transmissão da exploração familiar.
Ora, através da escolha adequada do sucessor os predecessores esperam ainda
alcançar uma situação económica estável. A questão do rendimento de subsistência é menos
explicitada que a expectativa precedente, talvez por razões de orgulho pessoal, mas não deixa
de constituir uma preocupação menos importante. Os pais pretendem assim auferir de um
pequeno rendimento que lhes garanta uma certa independência financeira, senão mesmo a
autonomia. Esta preocupação traduz-se na prática pelas inúmeras fórmulas de transmissão da
exploração familiar onde uma compensação financeira é exigida ao sucessor: uma renda ou
uma pensão deve ser paga aos pais.
A escolha do futuro sucessor não é no entanto nem linear, nem rígida. Esta escolha
organiza-se antecipadamente mas adapta-se a todo o momento ao ciclo de vida familiar. Tudo
parece indicar que desde a sua instalação, os agricultores comecem a pensar na organização
da sua futura sucessão, a qual se modulará em função da evolução familiar e, mais
particularmente, em função do nascimento dos filhos e da conquista do património fundiário.
Observou-se, com efeito, que certos agricultores predestinam certas parcelas
agrícolas ou partes de herança a determinados filhos, enquanto que outros desenvolvem
estratégias de manutenção do património fundiário com vista a reservar o direito de poder
instalar mais tarde um filho neste património. Um agricultor a tempo parcial não interessado
pela profissão, comunicava-nos que se ele continuava mesmo assim a exercer a actividade,
isso devia-se ao facto das terras lhe pertencerem. Ele afirmava não querer hipotecar o futuro
dos filhos, um dos quais poderia vir a instalar-se na exploração familiar. Deste modo, as
projecções que os pais realizam para o futuro profissional dos filhos contribuem decisivamente
para a definição dos seus comportamentos sucessórios.
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Por outro lado, certos indivíduos pensando ter já encontrado um sucessor, definiram
estratégias de exclusão dos outros filhos da casa paterna e vêem-se, actualmente, sem
sucessor conhecido em razão da instalação do sucessor designado noutro lado. A perenidade
da exploração agrícola passa, neste caso, por uma reformulação das estratégias sucessórias
com vista a encontrar, frequentemente no seio da família, um novo candidato à retoma.
Portanto, pelo simples facto dos pais terem designado um sucessor, a retoma da
exploração agrícola não está ainda garantida. Para que esta se realize, o candidato à sucessão
deverá também implicar-se no processo e demonstrar o seu interesse pela retoma. Quer isto
dizer que para que o processo sucessório se cumpra, é necessário que os seus intervenientes
entrem em relação e encontrem um terreno de acordo mútuo, as condições emanando deste
compromisso devendo ser julgadas suficientemente vantajosas, tanto para os predecessores
como para aquele que se instala.
Ora, a diversificação profissional entre a população agrícola assim como o seu
confronto com “novas representações de si e dos outros” contribuíram manifestamente para
transformar a identidade social do grupo e, muito particularmente, aquilo que os jovens
esperam da sua instalação. Esta era outrora assimilada à “herança de uma situação” que, como
o define Rodrigo (1992), incarnava não somente uma lógica de gestão do património fundiário -
baseada na manutenção deste património, senão no seu aumento- mas também a continuidade
do processo produtivo tal como ele se realizava já anteriormente. Em oposição, hoje em dia a
instalação agrícola resulta cada vez mais de uma opção profissional explícita, através da qual
um segmento de jovens tenta angariar o reconhecimento social da actividade e a equivalência
do seu estatuto profissional. No entender destes jovens, a equiparação social do estatuto dos
agricultores só é possível com a profissionalização da actividade agrícola. Isto implica que os
agricultores: (1°) recebam uma formação profissional especializada; (2°) obtenham o
reconhecimento social do seu estatuto e (3°) disponham dos meios de produção necessários ao
exercício da actividade.
Assim, se a detenção da terra se impunha no passado como o único constrangimento
material ao exercício da actividade, hoje em dia a presença na exploração tanto de gado como
de uma série de maquinismo (ou seja, um capital de exploração importante) tornam-se
elementos cruciais para garantir a retoma da unidade produtiva. Do mesmo modo, o
individualismo e a emancipação da condição feminina induzem profundas transformações nas
opções profissionais dos habitantes do espaço rural, os raros candidatos a agricultor desejando
usufruir dos mesmos benefícios sociais que aqueles que regem as condições de vida dos
urbanos. Assim se explica que a retoma da exploração familiar esteja principalmente ameaçada
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no grupo dos “lavradores”, onde por norma os investimentos produtivos são reduzidos; que as
mulheres recusem cada vez mais o casamento com um agricultor, o qual as conduzirá a
assumir um trabalho que não lhes proporciona um estatuto profissional; que a reprodução da
agricultura a tempo parcial não suscite o interesse das novas gerações de jovens...
Se bem que estas situações se traduzam num abandono progressivo da profissão,
elas não deixam de constituir uma manifestação inequívoca das transformações que se operam
nas formas de inserção dos jovens na agricultura. Enquanto que, no passado, os jovens se
instalavam na agricultura com uma importante contribuição familiar, hoje em dia o sucesso da
instalação agrícola depende tanto do Estado como da família. O Estado coloca à disposição
dos jovens meios financeiros importantes para facilitar a modernização das unidades produtivas
e promove a instalação agrícola, mas o ingresso na profissão é submetido a um controlo
institucional. Da acção conjunta do Estado e das organizações profissionais agrícolas emanam
directivas com vista a definir as condições de acesso à profissão e à produção. Cada vez mais,
os jovens são confrontados com a exigência da construção de um projecto profissional,
considerado uma etapa fundamental para avaliar a capacidade profissional dos indivíduos e a
viabilidade dos investimentos propostos.
Durante esta etapa, os jovens são particularmente convidados a estabelecer uma
estratégia com vista a reunir os meios de produção necessários à sua instalação. Outrora, as
estratégias de instalação dependiam de maneira mais ou menos significativa de alianças e de
acordos matrimoniais. Assim, a tradicional negociação do dote, observada nas práticas
sucessórias do EDM, apresentava-se como um momento crucial para o futuro dos candidatos à
instalação. Deverre (1993) refere que as alianças matrimoniais não são certamente isentas de
cálculos e de estratégias. O arranjo do jovem pretendente com os pais da sua futura esposa,
em termos do montante mas também da natureza do dote, podia não somente favorecer a
fixação do jovem à agricultura mas ainda definir as condições de realização da sua instalação.
E, se bem que na sociedade tradicional a atribuição do dote se restringisse à categoria dos
agricultores mais abastados, a dependência dos candidatos à instalação das terras de origem
familiar era a norma dominante. Em consequência, as estratégias de instalação desenvolvidas
nesta sociedade caracteristicamente hermética, se bem que desdobrando-se em configurações
distintas, consistiam em grande medida no preservar dos direitos que a posição hierárquica no
seio da família atribuía a cada indivíduo. O momento da realização do casamento e o
desenvolvimento de actividades exteriores eram frequentemente comandadas pelo desejo da
aquisição de terras, a qual possibilitaria a instalação, senão um retorno à agricultura.
Ora, a diversificação das actividades no espaço rural e a intervenção do Estado no
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processo de mudança de geração contribuíram fortemente para transformar as estratégias e as
modalidades de instalação dos jovens. Por um lado, a industrialização e a urbanização
crescentes conduziram a um êxodo contínuo dos filhos do agricultor, os quais se dissociam
progressivamente do destino da exploração familiar e reivindicam aos pais a sua parte da
herança para financiar a sua instalação nos centros urbanos; por outro lado, o Estado
desejando promover o aparecimento de uma agricultura moderna e produtiva canaliza
importantes ajudas financeiras para a instalação agrícola, o momento da mudança de geração
sendo considerado uma etapa decisiva para acelerar a reconversão das explorações agrícolas.
Pressionados pela redução substancial das vantagens familiares consentidas aquando da
sucessão e confrontados com o custo crescente da instalação agrícola, os jovens candidatos a
agricultor não hesitam em considerar o financiamento do Estado como um recurso
complementar, senão uma alternativa à solução familiar, tanto mais que o acesso às ajudas
lhes proporciona o beneficio de um estatuto cujo reconhecimento social sanciona como
meritório.
Portanto, se bem que as ajudas do Estado propiciem o aparecimento de novas
estratégias e modalidades de instalação sem recurso ao património fundiário familiar, estes
casos mostram-se bem raros. E mesmo quando as terras são de origem não familiar, a família
participa frequentemente na sua aquisição. Resulta daqui, que o acesso à unidade produtiva
continua a depender grandemente do suporte familiar, as ajudas do Estado financiando
sobretudo a reconversão da exploração agrícola e incitando à aplicação de novos métodos de
gestão técnica e económica.
As novas estratégias de instalação que emergem nos campos portugueses
impregnam-se desta dupla participação familiar e do Estado. Elas tentam integrar os objectivos
de cada um dos intervenientes no processo da instalação, a solução de compromisso
encontrada procurando conciliar os diferentes interesses envolvidos mas devendo ser o mais
vantajosa possível para aquele que se instala. A emergência de modalidades de instalação
múltiplas — tais como a constituição de sociedades; ou a fragmentação da exploração familiar,
onde os pais atribuem a cada filho uma parcela de terra para que este ai desenvolva a sua
própria actividade especializada e adquira a sua autonomia — , testemunham claramente que
as estratégias dos jovens se definem em acordo com a evolução do contexto socioeconómico.
Face ao enfraquecimento da autoridade paternal, à crescente reivindicação patrimonial dos
filhos do agricultor e à emancipação dos jovens, as novas estratégias de instalação tentam
preservar as vantagens familiares que garantem, na grande maioria dos casos, o direito de
explorar a terra sem grande custo e apelam aos financiamentos do Estado para modernizar o
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aparelho produtivo. Deste investimento no progresso, os novos agricultores esperam, em
retorno, melhores condições de vida e o reconhecimento social do seu trabalho.
6.2 - As trajectórias profissionais dos Agricultores
A maioria dos trabalhos realizados sobre a profissão de agricultor previlegiam a
análise desta actividade humana numa óptica económico-empresarial, daí resultando uma
focalização excessiva sobre o indivíduo que assume a direcção da unidade produtiva. Com
efeito, a particularidade do sistema profissional agrícola é a de ter definido um único estatuto de
acesso à profissão, o de chefe de exploração (Allaire, 1993). Somente este estatuto é
socialmente reconhecido, os restantes actores familiares que participam na produção agrícola,
não tendo um estatuto jurídico definido, são ignorados. Portanto, no grupo doméstico do
agricultor são númerosos os indivíduos que dizem ocupar grande parte do seu tempo de
trabalho, senão a totalidade, no exercício da actividade agrícola. Em particular, a esposa do
chefe da exploração desenvolve frequentemente a actividade agrícola ao mesmo título que o
cônjuge, sem contudo beneficiar de um estatuto profissional. Para além disso, a tomada de
decisão não é uma competência exclusiva do indivíduo que assume o estatuto de chefe da
exploração.
Daí que, o estudo das trajectórias profissionais dos agricultores passe, na acepção
restrita do termo, pela identificação dos itinerários profissionais que conduzem à direcção de
uma exploração agrícola. Esta análise não estaria contudo completa se não considerássemos,
para além do percurso profissional do sucessor familiar, as trajectórias dos seus irmãos e do
seu cônjuge. Estes últimos não só partilham frequentemente o trabalho agrícola, mas ainda a
construção da trajectória profissional do sucessor familiar não é independente do percurso dos
indivíduos que com ele habitam. Por outro lado, observou-se que as principais mudanças que
intervêm na situação profissional de um indivíduo se associam dialecticamente a certas etapas
do ciclo de vida familiar. São três os momentos deste ciclo que se apresentam como decisivos
na definição de uma trajectória profissional. Estes momentos são: (1°) o final da escolaridade,
em função dos estudos adquiridos; (2°) o casamento, dado que o jovem assume a
responsabilidade de garantir a subsistência da sua própria família; e (3°) o falecimento dos pais,
pelas heranças familiares.
No ponto precedente, tivemos já ocasião de comentar a influência exercida pelos pais
na orientação dos percursos profissionais dos filhos. Outrora, o futuro profissional dos filhos do
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agricultor era comandado por dois elementos fundamentais: (i) a família, via as estratégias
sucessórias e de instalação; e (ii) a dimensão da exploração agrícola. O núcleo familiar
constituía o principal centro de aculturação dos indivíduos e as dotações materiais atribuídas
pela família assumiam um papel relevante na reprodução dos diferentes grupos sociais que
compunham a sociedade rural tradicional. No entanto, o itinerário profissional dos jovens não é
unicamente comandado pela família. Numa tentativa de sistematização dos elementos que
explicam a integração profissional dos jovens de origem rural, Dessendre (1993)muniu-se de
um quadro teórico tendo como origem o conceito do Capital Humano. Becker (1975) define este
conceito em termos de conjunto de actividades que influenciam os rendimentos monetários e
psíquicos futuros pelo aumento dos recursos do indivíduo em: (1°) formação inicial e
complementar; (2°) migração; (3°) procura de informação; (4°) assistência médica; (5°)
formação por aprendizagem.
Ora, tal como realça Dessendre, a inserção profissional de um indivíduo na agricultura
é fortemente influenciada pelos recursos de que dispõem as famílias. Ela propõe assim o
conceito do Capital Humano Alargado, o qual integra os diferentes elementos propostos por
Becker e ainda os recursos familiares. Este último, traduz o apoio que o jovem pode obter junto
da sua família (incluindo as redes de conhecimento dos jovens e dos pais), quer este apoio seja
de ordem monetária (co-habitação, ajuda financeira, serviço de informação...) ou não monetária
(apoio moral, ajuda na procura de emprego...). Assim, a criação de uma família é um
acontecimento importante, resultando daí a possibilidade de alargar as redes e as fontes de
apoio mobilizáveis.
Contudo, o alargamento que a autora propõe ao conceito não nos satisfaz
plenamente. Enquanto que para Becker o que estava em causa era a avaliação do potencial
inato ou adquirido de cada indivíduo, para Dessendre o que importa observar é não somente o
potencial de cada um mas também os apoios mobilizáveis no seio das famílias agrícolas, e
nomeadamente as dotações materiais que os candidatos à instalação aí podem encontrar
(cedência de dinheiro, terras, equipamentos, animais e construções rurais). Mas, se as
dotações financeiras de origem familiar são contabilizadas no processo de organização das
trajectórias profissionais dos jovens porque razão não consideraríamos então a dotação
financeira do Estado destinada a favorecer a instalação agrícola!
É através deste esquema teórico, fundado no Capital Humano Alargado (CHA), que
tentaremos apreender o processo que conduz os jovens a optarem pela agricultura. No entanto,
integramos no conceito a dotação do Estado à instalação agrícola e consideramos que a
proeminência explicativa de cada um dos elementos constitutivos do CHA varia em função das
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características e da evolução próprias a cada sociedade. Assim, os jovens portugueses
escolheriam preferencialmente quatro destes elementos afim de optimizarem a sua integração
profissional na agricultura. Estes elementos são: (1°) o saber; (2°) a mobilidade; (3°) os
recursos familiares e (4°) a dotação do Estado à instalação.
Porém, a opção agrícola não representa mais do que uma etapa do percurso
profissional de um indivíduo. Este seguiu uma determinada trajectória profissional antes de
escolher a profissão de agricultor. Para além disso, a construção desta trajectória nem sempre
se efectua em resposta a uma escolha profissional pré-estabelecida; num grande número de
casos, o itinerário seguido antecede a determinação da opção pela agricultura. Isto significa que
se bem que a antecipação de uma escolha profissional possa determinar uma re-orientação de
itinerário profissional, o mais frequente é que seja o percurso anterior do indivíduo a
encaminhá-lo para uma dada opção profissional.
Por outro lado, as trajectórias profissionais dos indivíduos organizam-se num universo
definido. A sua construção depende da evolução de factores sobre os quais os jovens não
podem intervir, tais as características demográficas, sociais, espaciais e económicas da
envolvência... as quais limitam as saídas profissionais. Em consequência, as escolhas dos
jovens só podem exercer-se em relação ao universo das carreiras possíveis. Allaire (1993) nota
a este propósito que os indivíduos e as suas famílias têm uma percepção dos futuros sociais
possíveis (carreiras) que resultam das suas trajectórias mas também das representações dos
seus grupos de pertença e do seu território de acção. A construção de uma trajectória
profissional é então, antes de mais, um acto social.
A socialização dos agricultores passa, em grande medida, pela aquisição das regras
que regem o funcionamento da economia agrícola e da sociedade rural. Em consequência, o
saber constitui-se como um potente instrumento de modulação das trajectórias profissionais. A
sua importância acentua-se no decorrer do tempo pelo facto da qualificação profissional
determinar a hierarquização social dos indivíduos na sociedade industrial contemporânea.
Outrora da competência exclusiva das famílias que transmitiam um saber agrícola
adquirido através da experiência, a formação dos agricultores depende, hoje em dia, e cada vez
mais, de instituições extrafamiliares, mais ou menos ligadas ao Estado. A intervenção do
Estado no processo da formação profissional dos agricultores não é alheia a uma nova
concepção da organização da produção agrícola que este mesmo Estado pretendia
progressivamente impôr no seio da sociedade rural tradicional. A emergência de um novo perfil
de agricultor, favorecida pela introdução das políticas de modernização agrícola no espaço
rural, conduziu assim à transformação da maneira de produzir mas impulsionou também uma
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mudança significativa da significação social acordada à profissão. A integração profissional dos
jovens na agricultura deveria, daqui para a frente, obedecer a critérios de profissionalização, e
não resultar de uma escolha residual -quer isto dizer, ficar na agricultura por defeito-, aquele
que retoma a exploração agrícola devendo possuir as competências profissionais necessárias
ao exercício da actividade.
Desta maneira, o Estado propunha-se intervir num processo tradicionalmente
controlado pela família — o da reprodução da agricultura familiar —, tentando afastar da prática
sucessória o facto da escolha do sucessor se realizar em função do critério da inaptidão física
e/ou do insucesso escolar. Se bem que este elemento característico da prática sucessória
tradicional tende a desaparecer dos comportamentos dos agricultores contemporâneos, ele
continua ainda bem presente na região estudada. Os "jovens agricultores" demonstram possuir
uma formação escolar, e sobretudo profissional, superior à dos seus predecessores, o que
tende a facilitar a sua inserção profissional, senão social. Contudo, a formação profissional
agrícola, para além de não se adaptar às necessidades reais dos agricultores, reúne somente
uma ínfima proporção da população agrícola, no seio da qual a taxa de analfabetismo é ainda
elevada9.
A mobilidade profissional, mas também geográfica e social, constitui um outro
instrumento de intervenção sobre as trajectórias profissionais. No passado, a mobilidade era
fundamentalmente uma característica masculina, se bem que o assalariamento agrícola
recrutava junto dos agricultores pobres as “criadas” para servir nas casas dos grandes
“lavradores”. Com o declínio do assalariamento agrícola estes deslocamentos reduziram-se, e
com eles parte da mobilidade das raparigas que habitavam o espaço rural. Estas voltam a
adquirir uma capacidade de mobilidade com o processo da industrialização, mas a autoridade
paternal impõe-lhes frequentemente ficar em casa e trabalhar na agricultura. Assim, se as filhas
do agricultor se deslocavam para se instalarem na casa do esposo, a mobilidade profissional,
geográfica e social diziam essencialmente respeito ao elemento do sexo masculino. Este
continua a ser considerado como o chefe de família, recaindo muito naturalmente sobre ele o
encargo de suprir às necessidades da família. Ele re-orientará a sua escolha profissional e
afectará o seu tempo de trabalho ao exercício de actividades exteriores se o rendimento da
exploração familiar não for julgado suficiente. A emigração constituiu durante décadas uma
importante fonte de diversificação dos rendimentos mas tem vindo a ser progressivamente
substituíada pelo recurso ao mercado de trabalho local. Inversamente, o papel da mulher
9 Segundo o Instituto Nacional de Estatística, mais de um terço da população agrícola familiar e mais de46 % dos chefes de exploração não receberam nenhuma instrução escolar; in “ Portugal Agrícola ”, 1993.
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continua marcado por um forte investimento na célula familiar, o qual restringe a sua mobilidade
e a sua independência. A esposa do agricultor exerce a actividade ao mesmo título que o
marido, chefe da exploração, mas não tira daí grande benefício. Dado que o exercício da
actividade agrícola não confere às mulheres mais do que o estatuto de dona de casa e de mãe,
confrontando-as com um trabalho duro, sujo, sem remuneração nem reconhecimento, as novas
gerações de jovens preferem o exercício de outras actividades sem ligação com a agricultura.
As estratégias familiares acompanham esta evolução do contexto socioeconómico. Os
pais preferem os elementos de sexo masculino para a retoma da exploração agrícola mas a
autoridade paternal exerce-se mais facilmente sobre as mulheres. Estas são então mais
sujeitas ao trabalho agrícola que os seus irmãos, que recusam cada vez mais o trabalho e a
profissão de agricultor. Neste situação, a retoma da exploração familiar poderá ser assegurada
por uma filha, se bem que o estatuto de chefe da exploração será atribuído ao marido. Para
evitar esta subalternização da esposa do agricultor que tende a desviar as mulheres da
profissão, várias soluções se nos apresentaram dentro do grupo dos jovens. Estas regrupam-se
em dois eixos principais: a separação de competências dentro da exploração conjugal, cada
elemento do casal possuindo o seu próprio "atelier de produção" específico; e a actividade
exterior da esposa.
Os inquérito n° 10 e n° 18 são exemplos concretos desta situação. O primeiro caso diz
respeito a um casal de jovens que, retomando a exploração familiar pelo casamento,
rapidamente se decidiram pela separação de competências no seio da exploração agrícola. Ao
marido incumbe então a tarefa de gerir as actividades ligadas à componente produção vegetal
da exploração, enquanto que a esposa foi incitada a montar um atelier de cunicultura que
depende unicamente da sua esfera de competências. Esta nova organização não impede a
utilização em comum quer do trabalho, quer dos meios de produção da exploração; somente,
as decisões de cada indivíduo exercem-se preferencialmente no atelier de produção que lhe é
específico. O segundo caso refere-se a um jovem que retoma a exploração familiar após um
desvio profissional, a sua esposa permanecendo com a actividade profissional que exercia já
antes do casamento.
Se bem que a diversificação das actividades no seio do espaço rural favoreça o
aparecimento de novas trajectórias e modalidades de instalação e a crescente mecanização do
processo produtivo liberte uma parte da mão de obra outrora indispensável ao bom
funcionamento da exploração, a situação da condição feminina não evoluiu portanto nem
rapidamente nem automaticamente. Convém assim aqui realçar que, muito embora as novas
camadas de agricultores se mostrem mais compreensivas face aos desejos de emancipação
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feminina, a norma dominante, mesmo entre os jovens agricultores, é ainda a de uma
subalternização do estatuto profissional das mulheres. Em particular, grande parte dos
agricultores que exercem a actividade a tempo completo nem sequer querem ouvir falar da
possibilidade da mulher trabalhar fora.
Ora, a mudança de estatuto matrimonial é tida como um momento chave de
delimitação da localização e de decisão sobre o futuro profissional dos indivíduos. Segundo
Dessendre (1993) é a vida em comum que é determinante da localização e não o estatuto
profissional. Allaire et Simioni (1991) afirmam, por seu lado, que o casamento (ou a formação
de um casal estabilizada por uma opção de residência) precede, em númerosos casos, o
acesso ao estatuto de chefe da exploração; a carreira do agricultor estabiliza-se com o acesso
ao estatuto de chefe da exploração, logo que o casamento assegura uma certa estabilidade
familiar. A grande maioria dos agricultores inquiridos ajusta-se a esta situação, o casamento
precedendo ou sendo simultâneo à tomada de posse de uma unidade produtiva.
Outrora, a dimensão da exploração familiar era determinante do percurso profissional.
A abundância de terras autorizava a que todos os filhos do agricultor permanecessem na
exploração, enquanto que a exiguidade das terras familiares conduzia os filhos dos agricultores
pobres para a emigração ou para um trabalho fora do sector, frequentemente antes do
casamento. A união matrimonial representava para muitos candidatos a agricultor o momento
da tomada de posse de uma pequena parcela de terra sobre a qual eles se instalavam. Para
muitos outros, o casamento constituía o ponto de partida de uma acumulação exterior de capital
tendo em vista a aquisição fundiária e a instalação posterior. Para um pequeno número, esta
união revela-se como o momento da consolidação do seu posicionamento hierárquico dentro da
família, o qual salvaguardava os direitos preferenciais consentidos ao primogénito de sexo
masculino na retoma da exploração familiar. As trajectórias profissionais destes indivíduos
caracterizavam-se por uma reduzida formação escolar e por uma participação generalizada ao
trabalho agrícola.
Hoje em dia, os empregos locais e as facilidades de transporte favorecem o
desempenho de actividades profissionais exteriores e a residência na exploração familiar.
Resulta daí, que os filhos do agricultor participam cada vez menos nos trabalhos agrícolas.
Para além disso, os jovens tendem a retardar o momento do casamento e a residência na
exploração prolonga-se. No entanto, se outrora o adiamento do casamento assentava numa
estratégia com vista a obter mais rapidamente o controlo da exploração familiar, actualmente
este diferimento seria explicado pelo alongamento do “período exploratório” do ciclo de vida dos
jovens. Durante este período, o jovem mostra-se particularmente móvel, ele experimenta ou
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consolida a sua inserção profissional. Se ele pensa no casamento, este não se realizará
enquanto o jovem não atinja uma certa estabilidade e independência profissional. Ele considera
como necessário poder assumir os encargos decorrentes da constituição da sua própria família,
o que se associa muitas vezes a uma mudança de domicílio, ou pelo menos à sua
individualização no seio do colectivo familiar.
E, se bem que o alongamento contínuo da escolaridade obrigatória e a multiplicação
das formações profissionais possam contribuir para retardar a integração profissional dos
jovens, tais considerações não justificam o diferimento do casamento no caso particular dos
jovens agricultores, onde a formação escolar é ainda manifestamente modesta e a formação
profissional selectiva. A evolução do contexto social, e nomeadamente a crescente
emancipação dos jovens em relação aos mecanismos colectivos da reprodução familiar,
parecem determinar de sobremaneira as transformações observadas nos comportamentos dos
agricultores do EDM.
A dotação do Estado à instalação agrícola é outro dos factores chave que induz
profundas alterações nos comportamentos dos candidatos ao exercício da actividade agrícola.
A intervenção do Estado no processo da reprodução social da agricultura familiar regrupa dois
mecanismos principais: (1°) a qualificação dos indivíduos e (2°) o acesso às ajudas financeiras.
Através da qualificação dos indivíduos, o Estado procura valorizar a actividade agrícola de
maneira a reter no sector uma população que não teria grandes dificuldades em encontrar
localmente outras alternativas de trabalho; via o acesso às ajudas, o Estado tenta impôr que a
escolha do sucessor obedeça a critérios pré-definidos, baseados na profissionalização dos
indivíduos. As inúmeras formações profissionais dirigidas aos jovens agricultores têm por
objectivo sensibilizar os produtores agrícolas às normas modernas de organização da
produção, favorecendo a difusão do progresso técnico e a contabilidade organizada. Por outro
lado, a dotação à instalação agrícola constitui-se como um prémio destinado a recompensar e a
estimular a opção profissional agrícola. Ela apresenta-se como um verdadeiro “motor” da
fixação dos jovens à agricultura, muitos instalando-se agricultores no intuito de beneficiarem
desta ajuda.
Em conclusão, as trajectórias profissionais dos jovens agricultores contemporâneos
caracterizam-se por algumas evoluções determinantes. Os jovens recebem uma formação
escolar mais longa que a dos seus predecessores, a qual tende a ser completada por uma
formação profissional agrícola. No caso dos jovens que se dizem “empresários” esta formação
complementar é, por norma, significativa. A formação profissional agrícola, para além de
responder a uma exigência institucional respeitante aos critérios de elegibilidade às ajudas,
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representa um instrumento de reconhecimento social e de valorização da profissão. As atitudes
bem como o discurso dos jovens são disso testemunha, nenhum deles se reconhecendo quer
nos valores, quer nos comportamentos defendidos pelos “lavradores”.
O candidato a agricultor é, quase sem excepção, originário de uma família agrícola e
instala-se nas terras familiares. O filho do agricultor participa geralmente aos trabalhos na
exploração familiar, mas cada vez mais como ajuda ocasional. O seu itinerário profissional
tende a construir-se preferencialmente fora do circulo familiar, o que se traduz na raridade dos
pretendentes à retoma da exploração agrícola. Em consequência, os pais não rejeitem mais
sistematicamente as filhas da retoma da exploração familiar, se bem que o estatuto de chefe
seja atribuído ao marido. Este estatuto tende a adquirir-se mais precocemente que no passado,
alguns jovens podendo mesmo obtê-lo antes do casamento. No entanto, para a maioria dos
jovens é em torno do momento da mudança de estatuto matrimonial que se efectua igualmente
a tomada de posse da unidade produtiva.
A opção pela agricultura tende a determinar-se cada vez mais de maneira explícita, se
bem que a garantia dos cuidados necessários aos pais durante a velhice e a falta de
oportunidades de emprego alternativas ainda imponham a alguns o exercício da actividade
agrícola, principalmente às mulheres. Para estas, o exercício da actividade pode ainda ser
encarado como uma “actividade de espera”. Isto significa que as mulheres encaram o exercício
do trabalho da terra de modo transitório, a prática da agricultura sendo suposta ocorrer
unicamente enquanto elas aguardam seja o retorno do marido do estrangeiro, seja o
casamento, um e outro sendo suposto e desejado arrancá-las para fora do sector agrícola. A
marginalização à qual a agricultura esteve submetida explica a redução da sua atracção
comparada, a qual foi acompanhada por uma evolução, também negativa, das vantagens
consentidas ao sucessor familiar. A necessária modernização da agricultura nacional e o
aumento do custo da instalação agrícola propiciaram a intervenção do Estado no processo da
inserção profissional na agricultura, tanto mais que a política sócio-estrutural comunitária
disponibiliza fundos financeiros importantes para este fim.
Mas, se o agricultor tradicional se instalava na agricultura conjugando as
potencialidades que lhe eram oferecidas pelo meio envolvente no qual ele evoluia
(nomeadamente através da combinação de actividades profissionais, agrícolas e não
agrícolas), hoje em dia a profissionalização da actividade, considerada como a chave para
aceder ao sucesso, orienta os candidatos à instalação para o exercício de uma actividade
agrícola normalizada. O candidato a agricultor é incitado a especializar-se nas produções que
beneficiam dos melhores apoios institucionais (e que, por conseguinte, apresentam uma maior
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garantia de rentabilidade) sendo ainda suposto encarar o exercício da profissão a tempo
principal, senão completo, sem contudo ver ajustada a definição do “produto agrícola” às novas
solicitações endereçadas pela sociedade aos agricultores. Para além do abandono de funções
sociais vitais até aqui graciosamente asseguradas pelos agricultores (protecção da natureza,
preservação das paisagens, manutenção de um espaço rural habitado), é toda uma multidão de
pequenas agriculturas, fortemente articuladas à indústria pelo mercado de trabalho, que se
vêem ameaçadas, o que pode conduzir a dinâmica do desenvolvimento local do EDM, apoiada
no conceito da flexibilidade da mão de obra, para uma situação de ruptura.
As sucessivas reformas da Política Agrícola Comunitária (PAC) tiveram por corolário
ratificar as considerações ambientais e o desenvolvimento rural, integrando-as nos objectivos
da PAC. Se bem que tais considerações começam a ser tidas em linha de conta aquando da
programação das diferentes intervenções estruturais, os resultados obtidos são ainda algo
modestos e o caminho a percorrer afigura-se longo. Não só a PAC deverá tratar da questão da
repartição da produção, como o tem feito até aqui, mas terá também de definir um novo
estatuto para os agricultores, integrando à sua função tradicional de produtor de matérias
primárias, a de transformador de produtos agrícolas e fornecedor de serviços ligados ao meio
ambiente. As solidariedades a estabelecer entre os intervenientes no processo da instalação
agrícola serão forçosamente diferentes das actuais, o papel importante da família
permanecendo mas a proeminência da intervenção pública devendo ser transferida para a
administração local. As trajectórias de inserção profissional na profissão diversificar-se-ão em
relação com as novas funções e os novos conhecimentos exigidos ao agricultor, o qual
integrará o meio ambiente nas suas opções de produção com os evidentes benefícios que dai
advirão para toda a sociedade.
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