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Experincia Urbana e Relaes de Gnero no alto rio Negro
Cristiane Lasmar
Bolsista de Ps-Doutorado (CNPq) no PPGSA do IFCS-UFRJ.
Resumo
A cidade de S. Gabriel da Cachoeira o ncleo populacional mais expressivo do alto rio Negro,
com 15 mil habitantes, sendo 80% indgenas. O objetivo da apresentao demonstrar que embora
os ndios possuam uma posio desprivilegiada na cidade de um modo geral, as experincias sociais
feminina e masculina divergem de maneira significativa. A possibilidade de se casar com brancos
na cidade abre s mulheres novas possibilidades de agenciamento de sua situao no contexto
urbano, promovendo uma reestruturao dos papis e da posio feminina na rede de parentesco e
na socialidade indgena. O ponto a explorar aqui que a reestruturao dos papis femininos no se
faz sem sobressaltos. Concomitantemente, observa-se a fragilizao da posio masculina, fator que
est associado desestruturao de muitas famlias indgenas na cidade.
Palavras-chave: gnero, alto rio Negro, cidade
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Tendo como tema de fundo a dinmica das relaes de gnero no alto rio Negro, o objetivo deste
paper analisar as transformaes que ocorrem na experincia social das mulheres indgenas
quando elas se mudam de suas comunidades ribeirinhas para residir na cidade de So Gabriel da
Cachoeira, principal plo urbano da regio. A anlise privilegia a perspectiva de mulheres
pertencentes a grupos da famlia lingustica Tukano Oriental, os quais habitam tradicionalmente a
bacia do rio Uaups, afluente do rio Negro em se curso alto.1
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Segundo podemos deduzir das descries etnolgicas sobre os grupos do rio Uaups, a distino de
gnero apresenta, ali, um rendimento sociocosmolgico mais importante do que se percebe em
outras regies etnogrficas das terras baixas da Amrica do Sul, onde ela parece subsumida por
outras distines categoriais mais centrais (Descola 2001, Fisher 2001). Com efeito, a temtica da
separao dos espaos e das atividades cotidianas ou rituais por sexo tm sido objeto de ateno
desde os relatos mais antigos sobre os grupos do rio Uaups, comeando a receber tratamento
sistemtico com a publicao das etnografias modernas (por exemplo, I. Goldman 1963 e 2004, S.
Hugh-Jones 1979, C. Hugh-Jones 1979, Jackson 1983, Chernela 1993). De uma maneira ou de
outra, todos os autores notam a alta produtividade da distino de gnero nas concepes indgenas
sobre os princpios que organizam a comunidade, a vida social e o cosmos. Alm disso, esses
trabalhos nos sugerem que haveria modos e capacidades de poder e agncia especificamente
masculinos ou femininos. Por exemplo, em um livro recente sobre o pensamento dos Cubeo, Irving
Goldman salienta a conexo entre gnero e formas distintas de poder, e afirma que um gnero se
diferencia do outro em razo de seu enraizamento em esferas distintas [each gender differs from the
other by its rootness in a different sphere] ( 2004: 391).
Um ponto a ser destacado que nessa sociocosmologia extremamente sensvel diferena de
gnero o masculino e o feminino no se equivalem em termos de valor, e as relaes entre os sexos
se atualizam de modo assimtrico. Isso se exprime, de um lado, nas concepes sobre a origem do
mundo e da humanidade (cf. Goldman 384-87); por outro, em alguns aspectos cruciais da
organizao social. Sendo patrilinear o princpio de descendncia e virilocal a regra de residncia, o
destino das mulheres solteiras sempre deixar o grupo ao qual pertencem por nascimento; e,
quando casadas, elas so estrangeiras na comunidade em que passam a viver. Os homens, por sua
vez, permanecem a vida inteira em sua comunidade de origem, qual se vem fortemente
associados. Eles detm prerrogativas que os tornam capazes de recriar ritualmente a ordem mtica e
agenciar simbolicamente o processo de reproduo social a cada gerao. Guardam o conhecimento
dos bens esotricos do grupo, como a mitologia da origem e as rezas xamnicas, e possuem direitos
exclusivos de acesso aos objetos utilizados durante as cerimnias em que se celebra a conexo
vertical entre o grupo de agnatos e seus ancestrais. Tais privilgios ancoram-se na suposio de que
existe maior proximidade dos homens com o mundo dos ancestrais fonte de vida e regenerao
espiritual (S. Hugh-Jones 1977:214). Os rituais de iniciao masculina, nos quais ocorrem
performances musicais com flautas interditas s mulheres, constituem o principal contexto de
afirmao e atualizao do vnculo com o plano mtico-sagrado.2
Em trabalhos anteriores, sugeri que um dos sentidos dos rituais das flautas marcar a exterioridade
das mulheres que residem na comunidade, reafirmando sua alteridade e a alteridade dos grupos aos
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quais elas pertencem ou aos quais elas se uniro por ocasio do casamento (Lasmar 2002, 2005).
Isso explica porque, em certos momentos cruciais, elas devem se manter afastadas e invisveis para
quem se encontra no centro da cena litrgica, sendo a alternncia entre momentos de ausncia e de
presena feminina um dos princpios estruturantes da cerimnia. Num registro sociolgico,
portanto, pode-se dizer que a marcao da exterioridade feminina representa a outra face da
afirmao da identidade do grupo agntico perante os grupos afins. Esse ponto , a meu ver,
fundamental, na medida em que esclarece a dialtica da identificao e da diferenciao que
percorre toda atividade ritual no alto rio Negro e aparece objetivada na oposio homens/mulheres.
Mas cabe ainda uma segunda interpretao. Em sua anlise sobre os processos espaciais e temporais
implicados na produo e reproduo da comunidade Barasana, C. Hugh-Jones (1979) apontou a
diferena entre dois aspectos da continuidade social no Uaups: de um lado, os processos
relacionados criatividade masculina - direta, linear, espiritual; de outro lado, aqueles relacionados
criatividade feminina - indireta, cclica, material. Assim, a oscilao entre momentos de presena
e ausncia das mulheres durante o ritual das flautas poderia ser entendida como metfora da prpria
fisiologia feminina, e tambm do modo especfico de contribuio das mulheres reproduo das
comunidades em que vivem. Voltaremos a esse ponto adiante.
Aquilo que estou chamando de uma maior capacidade de agncia espiritual masculina, e que
Goldman definiu em termos de uma precedncia ou prioridade (op. cit: 385), se desdobra sobre
o terreno das relaes cosmopolticas. Os homens so os legtimos representantes de uma
comunidade, tanto no que se refere s relaes poltico-rituais internas e verticais, quanto s
relaes horizontais com os outros grupos e com os brancos.3 Em ambos os contextos, as mulheres
ocupam uma posio ambgua, descentrada. As capacidades de agncia das mulheres, em contraste
com as dos homens, incidem sobre os domnios mais informais da vida cotidiana, onde se d o
processo de produo e reproduo dos corpos humanos. Alm do domnio da reproduo
fisiolgica, podemos destacar o da produo de alimentos, da roa e da culinria trabalhos
concebidos como essencialmente femininos.
A associao de homens e mulheres a espaos sociais distintos se explicita quando comparamos o
ritual de iniciao dos rapazes com o das moas. Ao contrrio dos rituais de iniciao masculina,
cuja nfase recai sobre a conexo vertical com o mundo dos ancestrais e a diferenciao em relao
aos outros grupos, os rituais de iniciao feminina, por ocasio da menarca, abordam e retratam a
ntima associao entre o trabalho produtivo e a condio materna.4 Alm de tema ritual, o nexo
simblico entre a identidade feminina, a capacidade reprodutiva, e o trabalho na roa tambm
evidenciado na mitologia dos grupos do rio Uaups. A narrativa do roubo das flautas sagradas, por
exemplo, reporta-se a uma ocasio em que as mulheres se apoderaram desses instrumentos,
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passando elas prprias a manej-los ritualmente. Enquanto as mulheres detiveram a posse das
flautas, os homens, diz o mito, viraram mulheres. Eles menstruavam e cultivavam mandioca, at
que a ordem das coisas fosse novamente estabelecida por uma outra srie de eventos (S. Hugh-
Jones 1979:127).
A generizao de dois modos distintos e assimetricamente dispostos de poder e agncia parece
possuir implicaes importantes na forma como os dois sexos percebem os seus respectivos papis
e posies na vida comunitria. Como pretendo demonstrar neste paper, a posio deslocada das
mulheres um trao constitutivo da experincia social feminina no alto rio Negro, em contraste
com a masculina, esta fortemente centrada na noo de pertencimento. Sendo assim, uma
compreenso densa das transformaes contemporneas na vida dos ndios da regio s se torna
possvel se considerarmos a diferena entre os pontos de vista de homens e mulheres.
Partindo deste pressuposto, pretendo discutir o modo como a experincia social feminina se v
afetada pelas novas configuraes sociais que se delineiam hoje no contexto urbano. Para tanto,
tomarei por base a anlise de uma situao etnogrfica muito atual, suscitada pelos casamentos de
mulheres indgenas com brancos em So Gabriel. Mas antes de adentrar a cidade e explorar o
ambiente social que constitui e constitudo por esses casamentos, preciso trazer luz alguns
elementos da sociocosmologia dos grupos do rio Uaups, explicitando aqueles que me parecem
mais relevantes para a compreenso da forma como so pensadas e experimentadas as relaes
entre homens e mulheres.
Gnero e socialidade na comunidade ribeirinha
A bacia do rio Uaups estende-se sobre os territrios brasileiro e colombiano, compreendendo
dezessete grupos tnicos exgamos que seguem uma regra de descendncia patrilinear: Tukano,
Desana, Kubeo, Wanana, Tuyuka, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaso, Karapan, Bar, Siriano,
Makuna, Tatuyo, Yuruti, Barasana, Taiwano, Tariana. parte os Tariana5, todos os outros
pertencem famlia lingstica Tukano Oriental.6 Os grupos do rio Uaups integram um sistema
regional de intercmbio matrimonial e de bens, do qual fazem parte tambm povos pertencentes
famlia lingstica Aruak.
A mitologia de origem da humanidade tem como evento fundamental a viagem de uma grande
cobra-canoa ou Canoa da Fermentao rio acima, durante a qual foram originados todos os
grupos, fixados os seus territrios primordiais e distribudas as suas prerrogativas e insgnias de
identidade (nomes, mitos, rezas xamnicas, cantos, etc). Numa formulao sucinta, pode-se dizer
que a mitologia de origem descreve a transformao gradual de uma pr-humanidade em seres
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humanos com identidade demarcada pelo pertencimento a um grupo exgamo e a unidades clnicas
referidas na literatura como sibs. As relaes entre os diversos sibs de um gupo exgamo baseiam-
se na hierarquia instituda a partir da ordem de nascimento dos seus ancestrais mticos.
Idealmente, h uma correspondncia entre o grupo exgamo e o grupo lingstico.7 Devido regra
de exogamia lingstica, um homem deve se casar com uma mulher que fale uma lngua diferente
da sua, preferencialmente, sua prima cruzada patrilateral. Sendo o padro de residncia virilocal, as
mulheres casadas de uma comunidade no pertencem a ela por nascimento. O que temos, portanto,
uma situao em que os homens falam a mesma lngua e as mulheres falam lnguas diferentes.
Desse modo, a comunidade local formada por um grupo de homens agnaticamente relacionados -
isto , membros do mesmo sib - suas irms solteiras, suas esposas (estrangeiras) e seus filhos. O
grupo agntico que compe a comunidade local possui um lugar especfico na hierarquia dos sibs e
os membros se casam, idealmente, com mulheres pertencentes a sibs de outros grupos lingsticos
situados no mesmo nvel hierrquico (Chernela 1983).
Os valores do parentesco sustentam a convivncia entre os moradores da comunidade. Todos
devem se tratar como parentes, o que significa, antes de mais nada, compartilhar alimentos, bens, e
propsitos. Para tanto, preciso que se conte com um lder forte, capaz de agregar e influenciar os
agnatos, neutralizando as disputas polticas e as desavenas pessoais em nome da unidade do grupo.
Contudo, a regra de exogamia origina um recorte do grupo local que dispe, de um lado, os
membros do grupo agntico; de outro, as mulheres vindas de fora. O lder da comunidade precisa
administrar a tenso latente entre o ideal de coeso do grupo agntico e sua disperso em unidades
auto-referenciadas.
Do mesmo modo como a presena das mulheres estrangeiras crucial para o processo de produo
de pessoas e reproduo da comunidade, a manuteno de um estado de equilbrio entre os diversos
interesses individuais depende em larga medida da postura que elas assumem. Pode-se dizer,
portanto, que a possibilidade de se alcanar a meta da boa convivncia comunitria (cf. Overing
1991) , na prtica, funo da atuao positiva e cooperativa das mulheres casadas. Prevalece,
contudo, a idia de que os homens possuem maior compromisso com o bem estar coletivo e de que
as esposas estariam mais predispostas a fazer valer os interesses de sua famlia conjugal, ou os seus
prprios interesses particulares. Em suma, o fato que, em uma situao de conflito, a lealdade de
uma mulher comunidade de seu marido ser prontamente colocada sob suspeita.
O fato da esposa estrangeira representar uma ameaa coeso do grupo agntico explica, em parte,
a viso da mulher como elemento potencialmente anti-social. Mas o ponto crucial que, no Uaups,
o elemento feminino associado Alteridade e as prprias mulheres do sib so, em certa medida,
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concebidas como Outras. Em sua anlise da disposio arquitetnica da maloca Barasana, C. Hugh-
Jones (1979) j mostrava, por exemplo, que s mulheres (solteiras ou casadas) alocado o espao
mais perifrico da casa, e aos homens, representantes do grupo agntico, o espao do centro. Esse
ordenamento espacial traduziria a concepo de que, na comunidade, as mulheres no ocupam a
mesma posio estrutural que os homens, indenpendentemente do fato de serem solteiras ou
casadas. Comecemos por observar a posio das mulheres casadas, num breve exame da gramtica
do casamento.
Antes de mais nada, importante observar que no h como se obrigar uma mulher a continuar
casada caso ela no queira. E que nada estaria mais distante da realidade do que imaginar as
mulheres como meros objetos de troca a servio da estratgia poltica de seus pais e irmos.
Examinando, porm, alguns aspectos que diferenciam as trajetrias conjugais feminina e masculina,
podemos supor que o estado de casado seja mais atrativo para os homens do que para as mulheres.
No se trata de dizer que as mulheres no desejem se casar, e sim que os homens possuem mais
motivos para insistir em um casamento insatisfatrio do ponto de vista afetivo.
Uma vez casadas, as mulheres tm sua carga de trabalho multiplicada e assumem a
responsabilidade permanente de alimentar o marido e os filhos. Muito embora hoje em dia os
homens acompanhem suas mulheres com muita regularidade roa, a maior parte das atividades
envolvidas no cultivo e preparo da mandioca possui forte conotao feminina, o que faz com que
um homem dependa sempre de uma mulher que lhe prepare a comida. Aps a morte da me, o
solteiro passa a depender das cunhadas, as quais provavelmente j esto sobrecarregadas em suas
responsabilidades dirias. Alm disso, temendo a competio sexual, os outros homens podem se
aborrecer com a presena de adultos solteiros na comunidade. Faz-se assim compreensvel a frase
de Jean Jackson (1983:128): os ndios do Uaups acham que todos os homens casariam, se
pudessem, e que todas as mulheres poderiam casar, se quisessem.
Outro fator, talvez o mais importante, que torna o casamento menos interessante para as mulheres
do que para os homens o desconforto afetivo que elas experimentam por terem que se apartar dos
parentes. Ao lado da importncia que a noo de pertencimento a uma comunidade possui na vida
de todo indivduo, os laos afetivos que unem as mulheres a seus pais, irmos e irms tornam
dolorosa a mudana de residncia. Quando uma mulher se casa com o filho do irmo de sua me
(MBS) ou com outro rapaz do grupo local materno, o problema pode ser relativamente atenuado j
que ela vai residir em uma comunidade onde possui parentes, onde se fala a sua lnga. Mas, para as
mulheres que se casam com homens pertencentes a grupos nos quais elas no possuem parentes,
torna-se mais difcil atenuar as implicaes de morar longe de sua comunidade de nascimento.
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Nas conversas cotidianas, as mulheres casadas costumam falar da tristeza de no viver com os
parentes. A sensao de deslocamento tambm expressa de maneira contundente em certas
cantigas rituais femininas cujos textos improvisados costumam fazer referncia ao fato de elas no
estarem no lugar certo. Essas cantigas so parte integrante da estrutura litrgica da cerimnia
regionalmente conhecida como Dabucuri, que celebra o encontro festivo de duas comunidades.
Enquanto serve caxiri (bebida fermentada feita base de mandioca brava) a uma das convidadas,
uma mulher residente na comunidade anfitri oferece-lhe um improviso, que dever ser retribudo
logo depois que a poro de bebida tenha sido consumida. A cantiga executada na lngua da
cantora e, em geral, faz referncia proximidade/distncia entre esta ltima e os diversos
segmentos de sua audincia (cf. Chernela 2003). Os pequenos textos cantados soam como lamentos.
Em uma dessas cantigas, registradas por Chernela (1993:77-78) em uma comunidade Wanana, duas
mulheres Tariana se alternavam para falar sobre o fato de viverem misturadas: (...)Ns sofremos.
Nascemos para ficar junto de nossos pais. Nascemos para sofrer assim. Minha irm menor, ns que
padecemos, s as mulheres Tariana passam tristeza assim. Atadas aos lugares, cheias de
sofrimento .
A exterioridade das mulheres tambm aparece como um tema recorrente nas cantigas femininas
analisadas por Piedade (1997) em uma comunidade de homens Tukano. As cantoras percebem-se
deslocadas em meio aos parentes do marido, como fica claro no seguinte trecho de uma das
performances registradas pelo autor: Como sou mulher, vivo perdida por aqui, vivo perdida por
aqui. Se fosse homem, viveria nas terras de meu pai, transformada em esteio eu estaria (op. cit:
86).
Por outro lado, o casamento tambm traz vantagens importantes para as mulheres. No que diz
respeito micro-poltica da vida diria, favorece o incremento da autonomia feminina. Uma
caracterstica marcante das relaes entre os sexos no Uaups justamente a autonomia substantiva
de que gozam as mulheres casadas. A participao na escolha do cnjuge, a possibilidade de
abandonar o marido sem grandes conseqncias nas fases iniciais do casamento, antes do
nascimento dos filhos e, principalmente, o domnio exclusivo sobre uma esfera importante da
economia domstica, constituem recursos importantes para o exerccio da agncia feminina,
sobretudo no mbito das relaes conjugais propriamente ditas. O alto grau de especializao e
investimento que cerca as atividades executadas exclusivamente pelas mulheres, bem como a
importncia dos produtos da roa no dia-a-dia da famlia nuclear e da comunidade, permitem s
esposas valerem-se de sua capacidade de trabalho como moeda de negociao com os maridos. Em
suma, a mulher casada detm capacidades das quais depende o bem-estar cotidiano dos moradores
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da comunidade e ela sempre pode se valer disso para afirmar sua posio diante do marido e dos
agnatos dele.
Esse ponto me faz recordar o comentrio de uma viva que atualmente reside com o irmo solteiro
em um stio prximo cidade de So Gabriel. Na ocasio, ela me falava sobre as saudades da
mocidade, do marido e da vida em comunidade. Dizia que o finado havia sido um grande
pescador e que, nos tempos de casada, ela vivia muito bem, nada lhe faltava, era um tempo de
abundncia. Quando argumentei que o irmo tambm parecia um homem trabalhador, ela me
respondeu: E de que adianta? Irmo diferente de marido. A gente no pode mandar nele.
Mulher e Alteridade
preciso agora abrir um parntese para esclarecer melhor a aproximao conceitual aqui postulada
entre mulher e alteridade no rio Uaups. A questo que se coloca primeiramente a seguinte. Se as
esposas estrangeiras representam a Alteridade, pelo fato de pertencerem a grupos afins, o que dizer
das irms? Pois se elas tambm so em alguma medida Outras, no o so do mesmo modo, nem
pelos mesmos motivos que suas cunhadas. O que difere, ento, nas respectivas posies das
mulheres solteiras e casadas de uma dada comunidade?
Entre os grupos do rio Uaups, a dinmica da identificao e da diferenciao se desenrola a partir
de dois processos distintos. O primeiro, que diferencia os grupos agnticos entre si pela conexo
vertical de cada um com seus respectivos ancestrais, atualiza-se pela transmisso patrilinear de
nomes cerimoniais (provenientes da segunda gerao ascendente) e pela reafirmao ritual desse
vnculo. Dependendo do grupo, o nome cerimonial (em Tukano, baske wame) pode ser
transmitido criana assim que ela nasce ou logo depois que ela comea a andar e falar (Hugh-
Jones 2002: 26), conferindo-lhe a alma-esprito que a conectar sua linhagem agntica. Atravs da
posse do nome/alma proveniente da genealogia do sib, a criana passa a partilhar da essncia
espiritual do mundo ancestral, efetivando-se, assim, sua vinculao ao grupo de descendncia
paterno. nesse sentido que podemos afirmar que a esposa estrangeira representa a diferena
dentro da comunidade. Ela porta um nome proveniente de outro grupo, partilha de outra essncia
espiritual. Por isso, ela ser sempre uma afim. A irm, por sua vez, ser sempre uma consangnea:
a identidade espiritual com os agnatos preservada ao longo de toda a vida, e ela jamais deixa de
pertencer ao grupo em que nasceu, e atravs do qual pode traar sua conexo espiritual com o
mundo mtico.
O segundo processo de identificao e diferenciao se desenrola no mbito das relaes cotidianas.
Por meio da co-residncia, da convivncia diria e da partilha de alimentos com os outros
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moradores, as mulheres estrangeiras vem-se atradas para dentro, por meio de processos de
consubstanciao. Nesse sentido, o destino da esposa se aparentar. A irm, por sua vez, percorre
trajetria inversa. Mais cedo ou mais tarde, ela deixar sua comunidade para residir com um grupo
estranho, com o qual vai conviver e para o qual vai gerar filhos. O destino da irm se
desaparentar. Deixando de lado consideraes de ordem afetiva e observando a questo de um
ponto de vista formal, podemos dizer que a produtividade da mulher solteira para a reproduo do
grupo concentra-se em seu carter de elo de ligao com os outros. Somente na gerao seguinte,
quando sua filha (idealmente) voltar como esposa do filho de seu irmo8 a capacidade criativa da
mulher que saiu se torna efetiva para a continuidade de sua linhagem agntica (C. Hugh-Jones
1979).
Por tudo isso, possvel dizer que a posio da mulher solteira marcada por uma assimetria em
relao a seus germanos do sexo masculino e que, se h um domnio das relaes interpessoais em
que a assimetria de valor entre os sexos se atualiza de forma mais eloqente, na relao entre
irmo e irm. No mbito da comunidade local, a tenso entre interior e exterior incide sempre sobre
as mulheres, sejam irms ou esposas, mas sobre as primeiras que ela se materializa sem disfarces:
enquanto os roteiros da vida cotidiana se encarregam de dissimular a diferena entre marido e
mulher, para que a comunidade exista e o processo do parentesco siga seu curso necessrio que a
irm v embora.
A seguinte situao, observada em uma comunidade do rio Uaups, ilustra bem este ponto. Na
refeio que se seguiu a uma pescaria coletiva com timb, homens e mulheres se posicionaram em
plos opostos do centro comunitrio. Mas a comunidade se dividiu em trs grupos, e no em dois:
homens (solteiros e casados), mulheres casadas e mulheres solteiras. Os homens, no importando se
jovens ou velhos, casados ou solteiros, comiam todos juntos, prximo porta principal, chamada
porta dos homens, ao passo que as mulheres solteiras ficaram mais prximas porta das
mulheres, localizada nos fundos da edificao. No meio, as mulheres casadas.
Resumindo, o desafio crucial da vida comunitria no Uaups assimilar produtivamente o exterior,
de uma maneira tal que o afastamento diferencial entre os grupos afins possa ser permanentemente
atualizado. Mas, ao tomarmos o ponto de vista das mulheres, torna-se inevitvel indagar como elas
vivenciam o fato de estarem sempre marcadas pela condio de Outro. com essa questo em
mente que prossigo no propsito de desvelar um pouco mais a perspectiva feminina, concentrando
minha ateno nas percepes e experincias de mulheres que deixaram suas comunidades
ribeirinhas para viver na cidade de So Gabriel, onde a noo de deslocamento parece se deslocar
no eixo sexual, como veremos.
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Da comunidade cidade
Antigo territrio de ndios Bar, a cidade de So Gabriel da Cachoeira, sede do municpio de
mesmo nome, localiza-se a 853 km de Manaus, numa regio rodeada de serras que guardam grande
nmero de referncias mitolgicas para os grupos indgenas.
Desde 1759, com a implantao de um forte militar, o territrio onde se localiza a cidade foi palco
de diversos programas de ocupao estratgica da regio por parte dos brancos - agentes coloniais
leigos e missionrios. De um modo geral, durante um longo perodo os brancos pautaram as suas
relaes com as populaes nativas pela perspectiva de tirar proveito de sua fora de trabalho. A
memria coletiva indgena povoada por lembranas de episdios de aldeamentos e descimentos
forados, do sistema de dvidas com patres, e da intolerncia clerical para com os costumes
indgenas (cf. Wright 1991, 1992; Meira 1994, 1996).
Os ltimos trinta anos, porm, assistiram crescente re-organizao poltica dos povos do alto rio
Negro. Estes passaram a lutar pela demarcao de suas terras9 e pelo direito preservao de sua
cultura, que havia sido sistematicamente afrontada pelos salesianos durante as primeiras dcadas do
sculo XX. Tambm durante este perodo, So Gabriel passou por um acelerado processo de
urbanizao e crescimento populacional. No vou me deter aqui na descrio desse processo, j
suficientemente detalhado em outras fontes (Santos 1983; Oliveira 1995, Lasmar 2005). O
importante a destacar que foi durante esse perodo que se deu a entrada dos pees, trabalhadores
de origem pobre que, dentre os brancos, foram aqueles que vieram a desenvolver relaes de
convvio mais estreito com os ndios.
Atualmente, h cerca de 15 mil pessoas residindo em So Gabriel, das quais 80% se consideram
indgenas. Boa parte da populao (aproximadamente 44%) originria das comunidades situadas
nas cinco Terras Indgenas que circundam a cidade.10 As principais motivaes alegadas pela
populao indgena das comunidades para a mudana para o contexto urbano so a busca por
educao escolar e trabalho remunerado, ambos os motivos referindo-se a processos de
relacionamento com os brancos. Com efeito, como demonstrei em outro trabalho, o movimento da
populao do rio Uaups em direo cidade s adquire sentido luz das concepes dos ndios
acerca dos brancos e das cidades de um modo geral. A escola, as mercadorias e a medicina
ocidental devem ser entendidas como eptomes de tais capacidades, as quais, crem os ndios,
podem ser experimentadas e apropriadas de modo mais imediato no contexto urbano (Lasmar
2005).
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A importncia hoje conferida pelos ndios do rio Negro educao escolar deve-se em muito ao
relacionamento de quase um sculo com a Misso Salesiana. Imbudos da tarefa de catequizar e
civilizar a populao indgena, principalmente as crianas e os adolescentes, os salesianos se
estabeleceram na regio em 1917, e formaram vrias geraes de alunos em regime de internato.
Com o corte de verbas federais no incio dos anos oitenta, o sistema de internato teve que ser
gradativamente desativado. Diante disso, e para que os alunos pudessem completar os estudos,
muitas famlias trataram de viabilizar moradia em So Gabriel..11
O segundo motivo alegado pelos ndios para a mudana para So Gabriel, a busca de trabalho
remunerado, possui, na maioria dos casos, relao direta com a busca por educao escolar. Para
muitas famlias recm-chegadas na cidade, cuja sobrevivncia depende inteiramente da produo
obtida na roa, preciso muito empenho para manter os filhos na escola. Por um lado, necessrio
arcar com uma srie de custos, como material didtico e uniforme. Por outro, a rotina escolar
dificulta a preparao das crianas para o trabalho agrcola e para as outras atividades produtivas
tradicionais, subtraindo das famlias um importante contingente de fora de trabalho. Assim, para
que seja possvel estabelecer-se na cidade, manter os filhos na escola, e equipar o domiclio com as
mercadorias necessrias, crucial que pelo menos um membro do grupo domstico exera uma
atividade remunerada. Ainda assim, segundo dados recentes, 15% dos domiclios da cidade no
possuem nenhum morador com renda fixa mensal (ISA 2005).
A populao de So Gabriel apresenta hoje uma configurao social razoavelmente complexa. O
fluxo de famlias indgenas do interior em direo cidade contnuo, e o modo de insero dos
ndios na paisagem urbana varia de acordo com uma srie de fatores, dentre os quais destacam-se o
acesso a lotes agrcolas e/ou a uma ocupao remunerada, e a possibilidade de contar com o apoio
material de parentes na cidade. Simplificando um pouco o cenrio, podemos dizer que as famlias
residentes em So Gabriel h mais tempo costumam ter mais acesso ao mercado de trabalho,
enquanto os recm-chegados precisam recorrer atividade agrcola como principal meio de
subsistncia. Numa escala de insero no modo de vida tipicamente urbano, os dois extremos
seriam representados, de um lado, por famlias indgenas com uma renda monetria que lhes
permite manter os filhos na escola sem dificuldades e adquirir as mercadorias de que sentem
necessidade; de outro lado, famlias sem renda monetria ou com uma renda que no atende s
exigncias mnimas da vida na cidade. Para estas ltimas, instalar-se em casa de parentes e
conseguir destes autorizao para cultivar um terreno de sua propriedade na regio periurbana tem
sido uma estratgia comum de sobrevivncia nos primeiros tempos de residncia na cidade. (cf.
Eloy & Lasmar, 2008).
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Transformaes no modo de vida
Os moradores de So Gabriel costumam se referir diferena entre a vida na comunidade e a vida
na cidade em termos de uma distino ontolgica primordial entre ndios e brancos. Para tanto,
tomam por base suas interpretaes da mitologia de origem, mais precisamente do momento do
mito em que ocorre a diferenciao entre ndios e brancos e estes ltimos do mostras de seu
temperamento agressivo e ousado (Lasmar 2005). Coadunando-se com o ethos pacfico e
moderado dos ndios, a vida comunitria teria por caracterstica principal a valorizao do
parentesco, da partilha e do bem comum. Na cidade, por sua vez, os desejos e objetivos se
tornariam mais individualizados, e a competio passaria a ser a regra. Comunidade e cidade
representariam, portanto, dois modos distintos de viver, que traduziriam filosofias sociais distintas.
No obstante o contraste ntido entre cidade e comunidade, para os ndios de So Gabriel haveria
formas distintas de estar na cidade: h aquelas mais prximas do modo branco de viver e outras
mais prximas do modo indgena (i.e. mais prximas da vida na comunidade). Por um lado, a
existncia de modos diversos de estar na cidade poderia ser observada comparando-se famlias
recm-chegadas em So Gabriel com famlias que residem ali h mais tempo; por outro lado,
comparando-se as geraes no interior de uma mesma famlia. Qualquer que seja a situao
socioeconmica de sua famlia, quanto mais jovem uma pessoa, mais distanciada ela se torna do
modo de vida dos parentes que permaneceram na comunidade.
As mulheres indgenas crescidas na cidade se percebem distanciadas das recm-chegadas pelo fato
de levarem uma vida mais prxima do modo de vida propriamente urbano. Esto inseridas no
mercado de trabalho e freqentam, com desenvoltura, os mesmos ambientes que os brancos vindos
de fora. Na escala de diferenciao de estilo de vida a partir do modelo branco, elas se vem
ocupando uma posio intermediria, ndias em contraste com a mulher branca ou a cabocla
nascida na cidade; brancas (ou menos ndias) em contraste com a moradora da comunidade
ribeirinha.
O tipo de trabalho exercido por uma mulher determina, em larga medida, sua rotina de interaes
sociais. As mulheres que cresceram na cidade e passaram boa parte de sua infncia e adolescncia
nos bancos escolares no costumam depreciar o trabalho agrcola; ao contrrio, at com certo
embarao que assumem jamais ter ido roa. Observando suas parentas mais velhas, elas
compreendem que esse tipo de atividade pode ser uma fonte poderosa de orgulho e auto-estima
feminina. Mas a roa, e todo o conjunto de valores a ela associado, articulam uma representao da
identidade feminina que no corresponde aos seus anseios. Tendo aprendido a projetar suas
expectativas de futuro na direo que a escola apontava, essas mulheres investem o seu tempo no
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exerccio de ocupaes mais qualificadas no que se refere ao nvel de escolaridade. Nesse sentido,
elas se percebem mais distanciadas tanto de suas mes e avs nascidas e crescidas nas
comunidades, como das mulheres de sua prpria gerao recm-chegadas na cidade.
Um fator importante no processo de transformao do modo de vida a maior freqncia de
interaes com os brancos. No contexto urbano, a populao indgena passa a conviver de maneira
mais intensa com brancos das mais variadas procedncias militares lotados nos pelotes do
Exrcito, funcionrios pblicos e de ONGs, missionrios catlicos e evanglicos, ex-garimpeiros, e
descendentes das famlias de tradio no comrcio e influncia na poltica local, muitas das quais
ali chegaram em poca anterior exploso populacional de So Gabriel. Um dos efeitos dessa
convivncia o estabelecimento de parcerias sexuais e, no raro, de vnculos conjugais entre as
mulheres indgenas e os brancos.
Irm e esposa
No processo de transformao do modo de vida de uma mulher, o casamento com branco exerce um
papel crucial. Ele a aproxima do modo branco de viver, uma vez que cria um contexto
privilegiado para a realizao de novos roteiros e o desempenho de novos papis (cf. Lasmar
2005:182:188). Do ponto de vista da estrutura da aliana, este pode ser visto como um casamento
distante que atende necessidade de ampliar a rede de afinidade de uma famlia para fazer frente
s demandas de um novo tempo (op. cit: 105-115). Ter uma filha casada com um branco facilita o
acesso ao mundo da cidade, do hospital, da escola e das mercadorias. Mas, na maior parte dos
casos, a prpria opo por um marido branco j sinal de um estilo de vida em processo de
alterao.
A aliana matrimonial em So Gabriel um assunto de famlia, e envolve, entre outras coisas,
concepes de identidade, avaliaes de prestgio, noes de pertencimento a grupos sociais,
interesses econmicos. Dizer isso no significa, de modo algum, subtrair s mulheres a capacidade
de agncia de que elas efetivamente do mostras quando escolhem um marido branco. Muito pelo
contrrio: perceber as mulheres como agentes de suas prprias escolhas depende justamente de
compreender de que modo tais escolhas so infletidas pelo sistema de relaes sociais no qual elas
se movem e se constituem como sujeitos.
As unies conjugais entre mulheres indgenas e homens brancos so um assunto palpitante em So
Gabriel. Como elas no se inserem em uma estrutura de aliana recproca pela irm que se d em
troca, no se recebe mulher alguma , os ndios consideram que os brancos esto roubando suas
mulheres. Alm dessa ruptura no sistema de troca matrimonial, o casamento com branco introduz
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ainda um outro tipo de descontinuidade na estrutura tradicional de aliana. Enquanto esta ltima
prev o casamento entre pessoas de mesmo status social, isto , de mesma posio na hierarquia
interna aos grupos exgamos (Chernela 1983), o casamento com branco no s , ele prprio, uma
espcie de unio assimtrica, se tomarmos como referncia o sistema social urbano, como institui
uma assimetria de perspectiva matrimonial entre germanos de sexo diferente, que passam a ter
possibilidades diferenciadas em relao a seus casamentos. Explico-me.
Se as mulheres mais adaptadas vida urbana tendem a se casar com brancos, seus irmos, que
possuem um estilo de vida semelhente ao delas, precisam buscar namoradas e esposas entre as
ndias recm-chegadas na cidade ou entre as moradoras de comunidades ribeirinhas, uma vez que as
moas com as quais convivem esto relativamente indisponveis. Poderamos dizer, assim, que a
jovem que se casa com um branco realiza uma unio hipergmica, enquanto seu irmo tende a se
casar com uma mulher situada em patamares inferiores na escala de classificao social que vigora
na cidade e que diferencia as pessoas de acordo com o seu modo de vida.
Seguindo esse raciocnio, veremos que a assimetria de perspectiva matrimonial deve se reproduzir
na gerao seguinte. Filhos de germanos de sexos diferentes possuiro modos de vida diferenciados
e possibilidades matrimoniais diversas. Tomemos o exemplo de um casal de irmos que chegaram a
So Gabriel ainda pequenos. Chamemo-nos de Carlos e Maria. Carlos se casa com uma mulher
recm-chegada do interior e Maria se une a um homem branco. O filho de Carlos no se casar com
a FZD (filha da irm do pai), mulher qual ele teria direito por tradio, pois, repetindo o que
ocorreu com sua prpria me, a jovem em questo vai realizar um casamento hipergmico, muito
provavelmente com um branco. A filha de Carlos poderia se casar com o filho de Maria (FZS) pois,
nesse caso, ela estaria se casando para cima. Porm, na cidade, devido presena dos brancos no
mercado matrimonial, o casamento de primos cruzados perde sua qualidade de transao
preferencial e, por isso, o casamento da filha de Carlos com o filho de Maria torna-se to provvel
quanto qualquer outro que siga o mesmo padro de hipergamia para as mulheres e hipogamia para
os homens.
Por tudo isso, a preferncia das mulheres pelos brancos torna-se motivo de ressentimento para os
homens, sobretudo para os jovens solteiros. Para os pais da moa, ter um genro branco traz muitas
vantagens. Devido sua situao econmica mais confortvel, a filha pode abastec-los com bens
durveis, mercadorias, remdios. bem verdade que esses benefcios estendem-se a uma vasta
gama de parentes, inclusive aos irmos, mas nem por isso estes deixam de se sentir lesados pelo
casamento da irm. Via de regra, eles se posicionam contra a unio, podendo apresentar
dificuldades de relacionamento com o cunhado. Consumado o casamento, em muitos casos hesitam
em aceitar o marido da irm como membro da parentela.
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Mas o genro branco costuma contar com a cumplicidade contumaz da sogra, que alega que os
pretendentes indgenas no seriam capazes de dar conforto material mulher e aos filhos.
Ancoradas na opinio da me, que quase sempre traz o consentimento do pai a reboque, as jovens
depositam no casamento com branco suas expectativas de futuro e a figura do afim no-indgena
passa a fazer parte da vida de muitas famlias de So Gabriel. Entre a populao residente na cidade
h mais uma gerao, esse tipo de casamento um fenmeno trivial.
Alm de resultar com certa freqncia em unies matrimoniais, a preferncia das mulheres pelos
brancos possui ainda outras consequncias importantes. Em So Gabriel, elevado o nmero de
crianas sem paternidade reconhecida e crescente o nmero de celibatrios entre os homens
indgenas. Quando perguntadas sobre o porqu da preferncia pelos brancos, as moas nascidas na
cidade lanam mo de dois tipos de argumento. O primeiro que os rapazes indgenas so mais
retrados, no sabem seduzir, no se insinuam nem mesmo para conversar. Esse juzo , de certo
modo, compartilhado pelos homens indgenas, que costumam dizer que os brancos tm mais lbia
e, por isso, mais sucesso quando se trata de conquistar as mulheres. O segundo argumento das
jovens que os ndios bebem muita cachaa, e de forma desmedida, tornando-se briguentos e
incovenientes nas festas, nos clubes noturnos.
O consumo intenso de cachaa apontado pelas mulheres como um dos problemas mais graves
enfrentados pelas famlias indgenas na cidade. praticamente impossvel encontrar uma que no o
conhea de perto. Com efeito, no incomum que os homens gastem boa parte do dinheiro ganho
com seu trabalho nas noitadas que prolongam a ingesto de cachaa, comprometendo o oramento
familiar, em muitos casos gravemente. Alm disso, o estado de embriaguez citado como a maior
causa de violncia domstica e fonte permanente de conflito entre os cnjuges. As mulheres
reclamam que, quando alcoolizados, seus maridos tornam-se irascveis e agridem-nas pelos motivos
mais banais.
A ingesto de cachaa se associa tambm prtica de pequenos delitos e violncia juvenil. J h
algum tempo, os moradores de So Gabriel lidam com o problema da existncia de gangues de
adolescentes que, alccolizados, agridem os transeuntes durante as madrugadas sem motivo aparente.
Os adultos vem a ingesto desregrada de cachaa como conseqncia da falta de perspectiva de
futuro para os jovens indgenas.12 Entre as possveis causas dessa situao, eles citam a situao
econmica precria das famlias que chegam a So Gabriel para fixar residncia, a dificuldade
enfrentada pelos ndios para competir com os brancos no mercado de trabalho e conseguir uma boa
remunerao profissional, e a posio secundria dos homens indgenas no esquema de preferncias
sexuais e matrimoniais das mulheres. O fato que, inseridos realmente de forma desprivilegiada em
um sistema social que garante aos brancos acesso mais fcil ao dinheiro, s mercadorias e s
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mulheres, os jovens indgenas se retraem, diminuindo ainda mais as suas chances de namorar as
moas da cidade. Esse retraimento pode ser visualizado na distribuio espacial dos jovens na pista
de dana dos clubes noturnos, por exemplo. Os rapazes indgenas, principalmente os recm-
chegados, costumam danar juntos em grupos masculinos, embriagando-se progressivamente,
enquanto as moas interagem com os brancos. Em So Gabriel, depois dos brancos vindos de fora,
as alternativas locais preferenciais das moas para parceiros sexuais ou matrimoniais so os
militares nascidos na regio, brancos ou ndios - nessa ordem. Assim, se possvel encontrar uma
moa nascida na cidade com namorado ou marido indgena, muito provvel que se trate de um
militar.
A gramtica dos casamentos com brancos
Para que possamos nos aproximar de uma compreenso da preferncia das mulheres pelos brancos,
precisamos focalizar o sistema de relaes onde se definem as suas possibilidades de agncia.
Compreender a experincia social da mulher casada com branco implica compreender tanto a sua
posio enquanto esposa, quanto a sua posio no crculo de relaes que se irradia a partir da
famlia consangunea.
A estrutura da relao conjugal nos casamentos com branco muito distinta daquela que vimos
caracterizar as unies entre homens e mulheres indgenas no rio Uaups. Na comunidade ribeirinha,
as mulheres se valem da importncia de suas capacidades produtivas e reprodutivas para sustentar o
seu ponto de vista sobre questes que afetam a vida conjugal e familiar. E a complementariedade
econmica entre marido e mulher fornece a base para o desenvolvimento de uma relao de
cumplicidade que, com o passar do tempo, tende a se tornar cada vez mais estvel.
A esposa de branco, por sua vez, possui meios mais reduzidos para afirmar sua perspectiva. Do
ponto de vista econmico, o marido depende menos dela do que ela dele. Essa maior independncia
dos maridos brancos se replica no plano afetivo-sexual. Os brancos de So Gabriel transitam em um
circuito de relaes na cidade do qual a esposa indgena raramente participa. A partir dos
depoimentos de mulheres casadas com brancos por um perodo de uma a duas dcadas, percebi um
processo comum de desenvolvimento da relao conjugal, caracterizado pelo distanciamento
gradativo entre os cnjuges. Depois dos primeiros tempos do casamento, com o abrandamento da
paixo sexual, o marido torna-se mais disperso e menos integrado rotina da casa, passando a ser
visto pelos bares da cidade na companhia de outras mulheres. As escapadas vo se tornando mais
freqentes e sua ausncia constante esfria a relao do casal. Insatisfeitas com a atmosfera de
distanciamento de que se impregnou a relao, elas pensam muitas vezes em separao, mas na
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maioria dos casos recuam devido ao receio de que os filhos fiquem desamparados ou a famlia
extensa passe por privaes. A esta altura, uma srie de necessidades j foram criadas e precisam
ser continuamente satisfeitas.
Por outro lado, afora os benefcios econmicos, o casamento com branco oferece mulher a
possibilidade de permanecer perto de seus pais e irmos. Assim, alm de gozar de uma situao
financeira privilegiada, que lhe permite ajudar os familiares, a esposa de branco no se v apartada
deles, tampouco dividida em suas lealdades a consanguneos e afins. Ao contrrio, o papel de
arrimo de famlia torna a sua casa um plo de convergncia para parentes paternos e maternos. E
mesmo nos casos mais raros em que a famlia do marido mora em So Gabriel, a tendncia que a
mulher mantenha uma convivncia cotidiana mais estreita com os seus prprios parentes. Quando
na cidade, seus pais passaro boa parte do tempo em sua casa, cuidando dos netos enquanto ela se
ausenta para trabalhar. Da uma reclamao freqente dos brancos. Eles costumam dizer que casar
com uma mulher indgena como casar com uma comunidade inteira.
As mulheres casadas com brancos desempenham um papel muito importante no processo de fixao
dos parentes na cidade e na transformao de seu modo de vida. Nesse sentido, podemos dizer que
os casamentos com brancos potencializam a capacidade de agncia das mulheres no que se refere
aos processos de produo de identidade no mbito da famlia extensa consangunea, operando uma
espcie de inverso na assimetria que vimos caracterizar as relaes entre irmo e irm no rio
Uaups. Ocupando uma posio estratgica no sistema social urbano, elas atuam como elos de
ligao entre os recm-chegados das comunidades ribeirinhas que tem na sua casa um importante
ponto de apoio e o mundo dos Brancos.
Mas a vantagem da esposa de branco frente a seus irmos no decorre exclusivamente da condio
econmica de que passa a gozar e que lhe permite ajudar os parentes e aglutin-los em torno de si.
Na cidade, h um outro campo de ao em que as mulheres costumam fazer valer uma perspectiva
alternativa sobre o processo de reproduo social. Trata-se da prtica, por sinal bastante polmica,
de dar um nome cerimonial s crianas nascidas de suas unies com os brancos.
Crianas misturadas
A identidade das crianas nascidas dos relacionamentos entre ndias e brancos objeto de
controvrsia em So Gabriel, ensejando um conflito de perspectivas. Inicialmente, os ndios
afirmam que tanto os filhos de mulheres indgenas com homens brancos quanto os filhos de homens
indgenas com mulheres brancas so morgi, que significa misturado. Morgi por vezes
traduzido como caboclo, mas os informantes no parecem realmente confortveis com o emprego
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deste ltimo termo para referir-se identidade das crianas misturadas. A inadequao do termo
caboclo para dar conta da identidade dessas crianas pode ser explicada pelas prprias concepes
nativas acerca do processo de reproduo da identidade tnica e, por extenso, da identidade
indgena.
Como j expliquei acima, de acordo com a teoria da pessoa entre os grupos do rio Uaups, a alma
da criana o sopro de vida, o princpio vital -lhe transmitida inteiramente pelo pai, atravs do
nome cerimonial que ela recebe ao nascer. atravs da posse do nome/alma da genealogia do sib
que se efetiva a vinculao ao grupo de descendncia paterno. Nesse sentido, a diferena entre o
filho de me indgena com pai branco e o filho de pai indgena com me branca que, a rigor, o
primeiro est privado do direito de portar um nome indgena. Conseqentemente, embora ambos
sejam misturados, somente o segundo poderia ser considerado ndio. Nesse registro, portanto, o
acesso legtimo a uma alma indgena o que determina a identidade de ndio.
Em conformidade com o sistema de descendncia patrilinear, o filho de ndia com branco dito
peksa morgi (branco misturado), enquanto o filho de ndio com branca, caso muito mais raro,
definido como poterkihi morgi (ndio misturado).13 Suponho que o termo morgi faa aqui as
vezes de um qualificador, no sendo o foco semntico da definio de identidade, o que explicaria a
inadequao do termo caboclo para dar conta do caso. Enquanto caboclo no significa nem ndio
nem branco, referindo-se a uma terceira categoria, os filhos de branco com ndia seriam brancos,
mas de um tipo especfico, enquanto os filhos de ndio com branca seriam ndios de um tipo
especfico. A especificidade de ambos seria determinada pela caracterstica que compartilham
corpos misturados.
Grande parte da polmica em torno da identidade dos filhos de branco tem origem no fato de que,
contrariando a tradio, eles tambm acabam recebendo um nome cerimonial, de modo que possam
ter a sade protegida ao longo da vida por meio dos ritos xamnicos apropriados. Na falta de um pai
indgena, o nome provm do sib do av materno, o que faz com que a criana se torne identificada
etnia da me. Embora ela seja considerada misturada, do ponto de vista de sua me, sua av, e seu
av materno que nomeia o beb a partir de um de seus irmos ou irms o nome assegura
criana a posse de uma alma indgena. Embora eu no disponha de dados estatsticos, meu palpite
que se trata de uma prtica habitual.
As mulheres costumam minimizar o carter heterodoxo desta prtica, e parecem mesmo naturaliz-
la, com comentrios do tipo: meus filhos so misturados: meio ndios, meio brancos. Ento, a parte
indgena deles Tukano, como eu. Ao mesmo tempo, elas sustentam ser imprescindvel que
parte indgena do corpo da criana esteja atrelado um nome indgena. O raciocnio
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perfeitamente coerente com a idia de que, para ser ndio (em oposio a branco), preciso
descender de um dos ancestrais que desembarcou e se fixou no Uaups depois da grande viagem
original, o que se atualiza atravs da posse de uma alma/nome. Mas ele demonstra, por outro lado,
uma desateno ao princpio patrilateral firmemente defendido pelos homens.
Em geral, os tios maternos rejeitam o esquema, considerando-o ilegtimo, e argumentam que o
direito a portar esses nomes seria apenas de seus prprios filhos. Vejamos um caso que ilustra bem
o tipo de conflito que pode resultar dessa situao. Depois de uma relao temporria com um
homem branco, uma jovem Tukano solteira, que residia na cidade em companhia do irmo, deu
luz uma criana. Como seu pai estava morando muito longe dali, ela pediu ao irmo que benzesse o
sobrinho, dando-lhe um nome Tukano. Alegando que o beb era filho de branco, ele se recusou a
faz-lo. Passado um ano, a criana adquiriu uma doena grave e incurvel, cuja origem creditada,
pelos parentes, ao fato de no ter sido benzida quando beb. Nesse caso especfico, a mulher teve
que ceder frente resistncia do irmo, o que provavelmente no teria acontecido se, epoca do
nascimento da criana, tivesse podido contar com o apoio de seus prprios pais para dar ao beb um
nome cerimonial.
Consideraes finais
O casamento com branco re-situa socialmente as mulheres. Alm de dot-las de recursos materiais
que lhes permitem ajudar os parentes e atra-los para suas casas, ele cria uma situao propcia para
que elas transmitam aos filhos os nomes de seus antepassados. Lembremos, porm, que isso s
possvel se as mulheres puderem contar com a conivncia de seus prprios pais ou de outro homem
de seu prprio sib, pois o conhecimento xamnico necessrio realizao do ritual de nominao
prerrogativa masculina. intrigante o fato de os avs maternos da criana compactuarem
regularmente com uma prtica onomstica que transgride o sistema tradicional de reproduo dos
grupos indgenas. Ao dar ao filho de sua filha um nome que, por direito, pertenceria apenas aos
filhos de seus filhos de sexo masculino, ele est, de certo modo, promovendo a dissipao de algo
concebido como um bem que deveria permanecer no interior de sua prpria linha agntica. Nesta
consideraes finais quero chamar ateno para a situao mais ampla que cria as condies de
estabilidade desse tipo de transgresso, permitindo que ela se torne possvel e legtima tambm do
ponto de vista dos av materno. Sugiro que a transferncia matrilinear de nomes, assim como, de
uma maneira geral, a reformulao da posio subjetiva das mulheres, seja entendida como parte de
transformaes mais amplas nos regimes de socialidade dos ndios do alto rio Negro.
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A transferncia matrilinear de nomes parece indicar uma flexibilizao da prpria noo de
descendncia patrilinear em favor de uma verso cogntica, resultante, a meu ver, da orientao
global dos ndios em direo ao mundo dos brancos. A identidade do grupo agntico, sua
atualizao enquanto unidade discreta, s se realiza na afirmao de suas diferenas em relao aos
outros. No obstante, o surgimento de uma identidade indgena pan-tnica um fato cada vez mais
evidente. Tome-se como ilustrao a crescente organizao poltico-burocrtica dos grupos do rio
Negro em associaes polticas que representam comunidades localizadas em uma determinada
faixa geogrfica, sem considerao direta filiao tica ou de sib.
Esta tendncia ao estabelecimento de uma identidade indgena genrica se realiza de maneira mais
radical em So Gabriel. As formas urbanas de territorialidade favorecem a convivncia entre
pessoas de etnias diversas, e limitam, em boa medida, as possibilidades de se recriar na cidade as
condies sociocosmolgicas necessrias para a atualizao ritual das diferenas entre os grupos.
Embora esta diferena esteja muito longe de se dissolver - como atesta a estabilidade da regra de
exogamia lingstica (cf. Lasmar 2005) mesmo no contexto urbano - , estamos diante de uma
situao em que o foco da alteridade passa a recair mais diretamente sobre a figura do branco, um
Outro diferente dos outros.14 Tendo em vista o que venho descrevendo como o movimento dos
ndios em direo ao mundo dos brancos (op. cit), e o processo, dele decorrente, de constituio de
uma identidade pan-tnica no alto rio Negro, esse deslizamento da posio de alteridade nada tem
de surpreendente. Assim como tambm no deve nos surpreender que, neste cenrio de intensas
transformaes, a posio das mulheres tambm deslize, abrindo novas possibilidades de
agenciamento das relaes de parentesco e aliana.
Para finalizar, gostaria de chamar ateno para um aspecto importante de toda essa situao.
Paralelamente reestruturao dos papis femininos na cidade de So Gabriel, observamos a
emergncia de um quadro de crise social envolvendo principalmente os rapazes indgenas. Segundo
afirmam os moradores da cidade, este quadro de crise , em ampla medida, efeito da posio
desprivilegiada dos ndios no cenrio atual das relaes entre homens e mulheres na cidade. A
reestruturao dos papis femininos, portanto, tem como um de seus efeitos o enfraquecimento da
posio social dos homens e uma decorrente fragilizao da identidade social masculina. Isso nos
remete discusso do incio do paper, em que eu chamava ateno para o alto rendimento
sociocosmolgico da distino de gnero entre os grupos do rio Uaups e para a atualizao desta
distino em termos assimtricos.
Notas
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1 Este paper sintetiza, aprofunda e revisa questes discutidas de maneira mais dispersa em trabalhos
anteriores (Lasmar 1998, 2002, 2005). Os dados etnogrficos apresentados so provenientes da
literatura etnolgica sobre a regio e de uma longa experincia de pesquisa na cidade de So
Gabriel da Cachoeira, iniciada em 1996.2 Para uma descrio compreensiva e densa dos rituais de iniciao masculina entre os Barasana do
rio Pir-Paran, alto Uaups, ver Hugh-Jones (1979).3 particularmente ilustrativo o caso do movimento indgena, um dos principais contextos de
agenciamento dessas relaes atualmente. Meu ponto aqui simples: uma mulher dificilmente
ocupar posio de liderana na poltica das associaes indgenas do alto rio Negro, a no ser no
mbito das associaes fundadas e compostas exclusivamente por mulheres, cujo vis de gnero
costuma ser explicitado no prprio nome.4 Um relato da ndia Tuyuka Catarina Borges, sobre o seu prprio ritual de iniciao feminina,
encontra-se hoje publicado no livro Mariya dita Ian!n!se Masire, de autoria dos Tuyuka para
servir como material de leitura na escola. O livro foi produzido no contexto do Projeto de Educao
Indgena/ FOIRN-ISA. A associao entre o trabalho produtivo na roa e a maternidade pode ser
ilustrada, por exemplo, na seguinte frase que Catarina diz ter ouvido dos velhos durante o ritual:
Fique sentada, resguarde muito bem pois tu s mulher, provedora de alimento, me das plantaes,
resguarde... Agradeo a Flora Cabalzar a indicao e a traduo do texto da lngua Tuyuka para o
portugus.5 O idioma original dos Tariana da famlia Aruak, mas hoje em dia eles falam majoritariamente o
Tukano.6 necessria uma distino terminolgica: entre a famlia lingstica Tukano (Oriental) e a lngua
Tukano propriamente dita, esta ltima falada pelo grupo exgamo patrilinear de mesma designao,
e atualmente uma espcie de lngua franca entre os grupos da regio.7 Digo idealmente porque, embora a correspondncia entre o grupo lingustico e o grupo exgamo
se verifique para a maioria dos casos, ela no universal no Uaups. Veja-se, por exemplo, o caso
dos Tariana (acima, nota 5).8 A terminologia de parentesco dos ndios do Uaups de tipo dravidiano, sendo preferencial o
casamento entre primos cruzados bilaterais.9 Em 1996, o governo federal declarou de posse permanente dos ndios cinco terras contnuas na
regio do alto e mdio Negro, abrangendo 100 mil km2. So as seguintes: Terra Indgena Mdio Rio
Negro I, Terra Indgena Mdio Rio Negro II, Terra Indgena Rio Ta, Terra Indgena Rio Apapris,
Terra Indgena Alto Rio Negro.10 Estas e outras informaes estatsticas podem ser encontradas em ISA (2005).
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11 No mbito do municpio, alm da cidade de So Gabriel, s possvel cursar o segundo grau em
Iauaret, povoado localizado no rio Uaups, que atualmente passa ele prprio por um processo de
urbanizao e se v sujeito a presses demogrficas. Para um estudo sobre o cotidiano e a
socialidade dos ndios residentes em Iauaret, cf Andrello (2006).12 Sobre a questo da violncia envolvendo jovens em So Gabriel, ver Lasmar & Azevedo 2005.
Trata-se do relatrio de resultados de uma pesquisa participativa realizada no mbito do Programa
de Apoio a Projetos em Sade, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (PROSARE),
desenvolvido pela Comisso de Cidadania e Reproduo (CCR) e pelo Centro Brasileiro de Anlise
e Planejamento (Cebrap).13 Estas definies me foram dadas por homens. Quando eu indagava as mulheres sobre a sua
pertinncia, elas a confirmavam, embora jamais tenham formulado espontaneamente definies
parecidas. Sempre me disseram, apenas, que seus filhos eram morgi.14 Para uma anlise do enquadramento mitolgico da condio especfica dos Brancos ver Lasmar
2005.
-
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