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Experiência Urbana e Relações de Gênero no alto rio Negro Cristiane Lasmar Bolsista de Pós-Doutorado (CNPq) no PPGSA do IFCS-UFRJ. Resumo A cidade de S. Gabriel da Cachoeira é o núcleo populacional mais expressivo do alto rio Negro, com 15 mil habitantes, sendo 80% indígenas. O objetivo da apresentação é demonstrar que embora os índios possuam uma posição desprivilegiada na cidade de um modo geral, as experiências sociais feminina e masculina divergem de maneira significativa. A possibilidade de se casar com brancos na cidade abre às mulheres novas possibilidades de agenciamento de sua situação no contexto urbano, promovendo uma reestruturação dos papéis e da posição feminina na rede de parentesco e na socialidade indígena. O ponto a explorar aqui é que a reestruturação dos papéis femininos não se faz sem sobressaltos. Concomitantemente, observa-se a fragilização da posição masculina, fator que está associado à desestruturação de muitas famílias indígenas na cidade. Palavras-chave: gênero, alto rio Negro, cidade * * * Tendo como tema de fundo a dinâmica das relações de gênero no alto rio Negro, o objetivo deste paper é analisar as transformações que ocorrem na experiência social das mulheres indígenas quando elas se mudam de suas comunidades ribeirinhas para residir na cidade de São Gabriel da Cachoeira, principal pólo urbano da região. A análise privilegia a perspectiva de mulheres pertencentes a grupos da família linguística Tukano Oriental, os quais habitam tradicionalmente a bacia do rio Uaupés, afluente do rio Negro em se curso alto. 1

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  • Experincia Urbana e Relaes de Gnero no alto rio Negro

    Cristiane Lasmar

    Bolsista de Ps-Doutorado (CNPq) no PPGSA do IFCS-UFRJ.

    Resumo

    A cidade de S. Gabriel da Cachoeira o ncleo populacional mais expressivo do alto rio Negro,

    com 15 mil habitantes, sendo 80% indgenas. O objetivo da apresentao demonstrar que embora

    os ndios possuam uma posio desprivilegiada na cidade de um modo geral, as experincias sociais

    feminina e masculina divergem de maneira significativa. A possibilidade de se casar com brancos

    na cidade abre s mulheres novas possibilidades de agenciamento de sua situao no contexto

    urbano, promovendo uma reestruturao dos papis e da posio feminina na rede de parentesco e

    na socialidade indgena. O ponto a explorar aqui que a reestruturao dos papis femininos no se

    faz sem sobressaltos. Concomitantemente, observa-se a fragilizao da posio masculina, fator que

    est associado desestruturao de muitas famlias indgenas na cidade.

    Palavras-chave: gnero, alto rio Negro, cidade

    * * *

    Tendo como tema de fundo a dinmica das relaes de gnero no alto rio Negro, o objetivo deste

    paper analisar as transformaes que ocorrem na experincia social das mulheres indgenas

    quando elas se mudam de suas comunidades ribeirinhas para residir na cidade de So Gabriel da

    Cachoeira, principal plo urbano da regio. A anlise privilegia a perspectiva de mulheres

    pertencentes a grupos da famlia lingustica Tukano Oriental, os quais habitam tradicionalmente a

    bacia do rio Uaups, afluente do rio Negro em se curso alto.1

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    Segundo podemos deduzir das descries etnolgicas sobre os grupos do rio Uaups, a distino de

    gnero apresenta, ali, um rendimento sociocosmolgico mais importante do que se percebe em

    outras regies etnogrficas das terras baixas da Amrica do Sul, onde ela parece subsumida por

    outras distines categoriais mais centrais (Descola 2001, Fisher 2001). Com efeito, a temtica da

    separao dos espaos e das atividades cotidianas ou rituais por sexo tm sido objeto de ateno

    desde os relatos mais antigos sobre os grupos do rio Uaups, comeando a receber tratamento

    sistemtico com a publicao das etnografias modernas (por exemplo, I. Goldman 1963 e 2004, S.

    Hugh-Jones 1979, C. Hugh-Jones 1979, Jackson 1983, Chernela 1993). De uma maneira ou de

    outra, todos os autores notam a alta produtividade da distino de gnero nas concepes indgenas

    sobre os princpios que organizam a comunidade, a vida social e o cosmos. Alm disso, esses

    trabalhos nos sugerem que haveria modos e capacidades de poder e agncia especificamente

    masculinos ou femininos. Por exemplo, em um livro recente sobre o pensamento dos Cubeo, Irving

    Goldman salienta a conexo entre gnero e formas distintas de poder, e afirma que um gnero se

    diferencia do outro em razo de seu enraizamento em esferas distintas [each gender differs from the

    other by its rootness in a different sphere] ( 2004: 391).

    Um ponto a ser destacado que nessa sociocosmologia extremamente sensvel diferena de

    gnero o masculino e o feminino no se equivalem em termos de valor, e as relaes entre os sexos

    se atualizam de modo assimtrico. Isso se exprime, de um lado, nas concepes sobre a origem do

    mundo e da humanidade (cf. Goldman 384-87); por outro, em alguns aspectos cruciais da

    organizao social. Sendo patrilinear o princpio de descendncia e virilocal a regra de residncia, o

    destino das mulheres solteiras sempre deixar o grupo ao qual pertencem por nascimento; e,

    quando casadas, elas so estrangeiras na comunidade em que passam a viver. Os homens, por sua

    vez, permanecem a vida inteira em sua comunidade de origem, qual se vem fortemente

    associados. Eles detm prerrogativas que os tornam capazes de recriar ritualmente a ordem mtica e

    agenciar simbolicamente o processo de reproduo social a cada gerao. Guardam o conhecimento

    dos bens esotricos do grupo, como a mitologia da origem e as rezas xamnicas, e possuem direitos

    exclusivos de acesso aos objetos utilizados durante as cerimnias em que se celebra a conexo

    vertical entre o grupo de agnatos e seus ancestrais. Tais privilgios ancoram-se na suposio de que

    existe maior proximidade dos homens com o mundo dos ancestrais fonte de vida e regenerao

    espiritual (S. Hugh-Jones 1977:214). Os rituais de iniciao masculina, nos quais ocorrem

    performances musicais com flautas interditas s mulheres, constituem o principal contexto de

    afirmao e atualizao do vnculo com o plano mtico-sagrado.2

    Em trabalhos anteriores, sugeri que um dos sentidos dos rituais das flautas marcar a exterioridade

    das mulheres que residem na comunidade, reafirmando sua alteridade e a alteridade dos grupos aos

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    quais elas pertencem ou aos quais elas se uniro por ocasio do casamento (Lasmar 2002, 2005).

    Isso explica porque, em certos momentos cruciais, elas devem se manter afastadas e invisveis para

    quem se encontra no centro da cena litrgica, sendo a alternncia entre momentos de ausncia e de

    presena feminina um dos princpios estruturantes da cerimnia. Num registro sociolgico,

    portanto, pode-se dizer que a marcao da exterioridade feminina representa a outra face da

    afirmao da identidade do grupo agntico perante os grupos afins. Esse ponto , a meu ver,

    fundamental, na medida em que esclarece a dialtica da identificao e da diferenciao que

    percorre toda atividade ritual no alto rio Negro e aparece objetivada na oposio homens/mulheres.

    Mas cabe ainda uma segunda interpretao. Em sua anlise sobre os processos espaciais e temporais

    implicados na produo e reproduo da comunidade Barasana, C. Hugh-Jones (1979) apontou a

    diferena entre dois aspectos da continuidade social no Uaups: de um lado, os processos

    relacionados criatividade masculina - direta, linear, espiritual; de outro lado, aqueles relacionados

    criatividade feminina - indireta, cclica, material. Assim, a oscilao entre momentos de presena

    e ausncia das mulheres durante o ritual das flautas poderia ser entendida como metfora da prpria

    fisiologia feminina, e tambm do modo especfico de contribuio das mulheres reproduo das

    comunidades em que vivem. Voltaremos a esse ponto adiante.

    Aquilo que estou chamando de uma maior capacidade de agncia espiritual masculina, e que

    Goldman definiu em termos de uma precedncia ou prioridade (op. cit: 385), se desdobra sobre

    o terreno das relaes cosmopolticas. Os homens so os legtimos representantes de uma

    comunidade, tanto no que se refere s relaes poltico-rituais internas e verticais, quanto s

    relaes horizontais com os outros grupos e com os brancos.3 Em ambos os contextos, as mulheres

    ocupam uma posio ambgua, descentrada. As capacidades de agncia das mulheres, em contraste

    com as dos homens, incidem sobre os domnios mais informais da vida cotidiana, onde se d o

    processo de produo e reproduo dos corpos humanos. Alm do domnio da reproduo

    fisiolgica, podemos destacar o da produo de alimentos, da roa e da culinria trabalhos

    concebidos como essencialmente femininos.

    A associao de homens e mulheres a espaos sociais distintos se explicita quando comparamos o

    ritual de iniciao dos rapazes com o das moas. Ao contrrio dos rituais de iniciao masculina,

    cuja nfase recai sobre a conexo vertical com o mundo dos ancestrais e a diferenciao em relao

    aos outros grupos, os rituais de iniciao feminina, por ocasio da menarca, abordam e retratam a

    ntima associao entre o trabalho produtivo e a condio materna.4 Alm de tema ritual, o nexo

    simblico entre a identidade feminina, a capacidade reprodutiva, e o trabalho na roa tambm

    evidenciado na mitologia dos grupos do rio Uaups. A narrativa do roubo das flautas sagradas, por

    exemplo, reporta-se a uma ocasio em que as mulheres se apoderaram desses instrumentos,

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    passando elas prprias a manej-los ritualmente. Enquanto as mulheres detiveram a posse das

    flautas, os homens, diz o mito, viraram mulheres. Eles menstruavam e cultivavam mandioca, at

    que a ordem das coisas fosse novamente estabelecida por uma outra srie de eventos (S. Hugh-

    Jones 1979:127).

    A generizao de dois modos distintos e assimetricamente dispostos de poder e agncia parece

    possuir implicaes importantes na forma como os dois sexos percebem os seus respectivos papis

    e posies na vida comunitria. Como pretendo demonstrar neste paper, a posio deslocada das

    mulheres um trao constitutivo da experincia social feminina no alto rio Negro, em contraste

    com a masculina, esta fortemente centrada na noo de pertencimento. Sendo assim, uma

    compreenso densa das transformaes contemporneas na vida dos ndios da regio s se torna

    possvel se considerarmos a diferena entre os pontos de vista de homens e mulheres.

    Partindo deste pressuposto, pretendo discutir o modo como a experincia social feminina se v

    afetada pelas novas configuraes sociais que se delineiam hoje no contexto urbano. Para tanto,

    tomarei por base a anlise de uma situao etnogrfica muito atual, suscitada pelos casamentos de

    mulheres indgenas com brancos em So Gabriel. Mas antes de adentrar a cidade e explorar o

    ambiente social que constitui e constitudo por esses casamentos, preciso trazer luz alguns

    elementos da sociocosmologia dos grupos do rio Uaups, explicitando aqueles que me parecem

    mais relevantes para a compreenso da forma como so pensadas e experimentadas as relaes

    entre homens e mulheres.

    Gnero e socialidade na comunidade ribeirinha

    A bacia do rio Uaups estende-se sobre os territrios brasileiro e colombiano, compreendendo

    dezessete grupos tnicos exgamos que seguem uma regra de descendncia patrilinear: Tukano,

    Desana, Kubeo, Wanana, Tuyuka, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaso, Karapan, Bar, Siriano,

    Makuna, Tatuyo, Yuruti, Barasana, Taiwano, Tariana. parte os Tariana5, todos os outros

    pertencem famlia lingstica Tukano Oriental.6 Os grupos do rio Uaups integram um sistema

    regional de intercmbio matrimonial e de bens, do qual fazem parte tambm povos pertencentes

    famlia lingstica Aruak.

    A mitologia de origem da humanidade tem como evento fundamental a viagem de uma grande

    cobra-canoa ou Canoa da Fermentao rio acima, durante a qual foram originados todos os

    grupos, fixados os seus territrios primordiais e distribudas as suas prerrogativas e insgnias de

    identidade (nomes, mitos, rezas xamnicas, cantos, etc). Numa formulao sucinta, pode-se dizer

    que a mitologia de origem descreve a transformao gradual de uma pr-humanidade em seres

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    humanos com identidade demarcada pelo pertencimento a um grupo exgamo e a unidades clnicas

    referidas na literatura como sibs. As relaes entre os diversos sibs de um gupo exgamo baseiam-

    se na hierarquia instituda a partir da ordem de nascimento dos seus ancestrais mticos.

    Idealmente, h uma correspondncia entre o grupo exgamo e o grupo lingstico.7 Devido regra

    de exogamia lingstica, um homem deve se casar com uma mulher que fale uma lngua diferente

    da sua, preferencialmente, sua prima cruzada patrilateral. Sendo o padro de residncia virilocal, as

    mulheres casadas de uma comunidade no pertencem a ela por nascimento. O que temos, portanto,

    uma situao em que os homens falam a mesma lngua e as mulheres falam lnguas diferentes.

    Desse modo, a comunidade local formada por um grupo de homens agnaticamente relacionados -

    isto , membros do mesmo sib - suas irms solteiras, suas esposas (estrangeiras) e seus filhos. O

    grupo agntico que compe a comunidade local possui um lugar especfico na hierarquia dos sibs e

    os membros se casam, idealmente, com mulheres pertencentes a sibs de outros grupos lingsticos

    situados no mesmo nvel hierrquico (Chernela 1983).

    Os valores do parentesco sustentam a convivncia entre os moradores da comunidade. Todos

    devem se tratar como parentes, o que significa, antes de mais nada, compartilhar alimentos, bens, e

    propsitos. Para tanto, preciso que se conte com um lder forte, capaz de agregar e influenciar os

    agnatos, neutralizando as disputas polticas e as desavenas pessoais em nome da unidade do grupo.

    Contudo, a regra de exogamia origina um recorte do grupo local que dispe, de um lado, os

    membros do grupo agntico; de outro, as mulheres vindas de fora. O lder da comunidade precisa

    administrar a tenso latente entre o ideal de coeso do grupo agntico e sua disperso em unidades

    auto-referenciadas.

    Do mesmo modo como a presena das mulheres estrangeiras crucial para o processo de produo

    de pessoas e reproduo da comunidade, a manuteno de um estado de equilbrio entre os diversos

    interesses individuais depende em larga medida da postura que elas assumem. Pode-se dizer,

    portanto, que a possibilidade de se alcanar a meta da boa convivncia comunitria (cf. Overing

    1991) , na prtica, funo da atuao positiva e cooperativa das mulheres casadas. Prevalece,

    contudo, a idia de que os homens possuem maior compromisso com o bem estar coletivo e de que

    as esposas estariam mais predispostas a fazer valer os interesses de sua famlia conjugal, ou os seus

    prprios interesses particulares. Em suma, o fato que, em uma situao de conflito, a lealdade de

    uma mulher comunidade de seu marido ser prontamente colocada sob suspeita.

    O fato da esposa estrangeira representar uma ameaa coeso do grupo agntico explica, em parte,

    a viso da mulher como elemento potencialmente anti-social. Mas o ponto crucial que, no Uaups,

    o elemento feminino associado Alteridade e as prprias mulheres do sib so, em certa medida,

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    concebidas como Outras. Em sua anlise da disposio arquitetnica da maloca Barasana, C. Hugh-

    Jones (1979) j mostrava, por exemplo, que s mulheres (solteiras ou casadas) alocado o espao

    mais perifrico da casa, e aos homens, representantes do grupo agntico, o espao do centro. Esse

    ordenamento espacial traduziria a concepo de que, na comunidade, as mulheres no ocupam a

    mesma posio estrutural que os homens, indenpendentemente do fato de serem solteiras ou

    casadas. Comecemos por observar a posio das mulheres casadas, num breve exame da gramtica

    do casamento.

    Antes de mais nada, importante observar que no h como se obrigar uma mulher a continuar

    casada caso ela no queira. E que nada estaria mais distante da realidade do que imaginar as

    mulheres como meros objetos de troca a servio da estratgia poltica de seus pais e irmos.

    Examinando, porm, alguns aspectos que diferenciam as trajetrias conjugais feminina e masculina,

    podemos supor que o estado de casado seja mais atrativo para os homens do que para as mulheres.

    No se trata de dizer que as mulheres no desejem se casar, e sim que os homens possuem mais

    motivos para insistir em um casamento insatisfatrio do ponto de vista afetivo.

    Uma vez casadas, as mulheres tm sua carga de trabalho multiplicada e assumem a

    responsabilidade permanente de alimentar o marido e os filhos. Muito embora hoje em dia os

    homens acompanhem suas mulheres com muita regularidade roa, a maior parte das atividades

    envolvidas no cultivo e preparo da mandioca possui forte conotao feminina, o que faz com que

    um homem dependa sempre de uma mulher que lhe prepare a comida. Aps a morte da me, o

    solteiro passa a depender das cunhadas, as quais provavelmente j esto sobrecarregadas em suas

    responsabilidades dirias. Alm disso, temendo a competio sexual, os outros homens podem se

    aborrecer com a presena de adultos solteiros na comunidade. Faz-se assim compreensvel a frase

    de Jean Jackson (1983:128): os ndios do Uaups acham que todos os homens casariam, se

    pudessem, e que todas as mulheres poderiam casar, se quisessem.

    Outro fator, talvez o mais importante, que torna o casamento menos interessante para as mulheres

    do que para os homens o desconforto afetivo que elas experimentam por terem que se apartar dos

    parentes. Ao lado da importncia que a noo de pertencimento a uma comunidade possui na vida

    de todo indivduo, os laos afetivos que unem as mulheres a seus pais, irmos e irms tornam

    dolorosa a mudana de residncia. Quando uma mulher se casa com o filho do irmo de sua me

    (MBS) ou com outro rapaz do grupo local materno, o problema pode ser relativamente atenuado j

    que ela vai residir em uma comunidade onde possui parentes, onde se fala a sua lnga. Mas, para as

    mulheres que se casam com homens pertencentes a grupos nos quais elas no possuem parentes,

    torna-se mais difcil atenuar as implicaes de morar longe de sua comunidade de nascimento.

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    Nas conversas cotidianas, as mulheres casadas costumam falar da tristeza de no viver com os

    parentes. A sensao de deslocamento tambm expressa de maneira contundente em certas

    cantigas rituais femininas cujos textos improvisados costumam fazer referncia ao fato de elas no

    estarem no lugar certo. Essas cantigas so parte integrante da estrutura litrgica da cerimnia

    regionalmente conhecida como Dabucuri, que celebra o encontro festivo de duas comunidades.

    Enquanto serve caxiri (bebida fermentada feita base de mandioca brava) a uma das convidadas,

    uma mulher residente na comunidade anfitri oferece-lhe um improviso, que dever ser retribudo

    logo depois que a poro de bebida tenha sido consumida. A cantiga executada na lngua da

    cantora e, em geral, faz referncia proximidade/distncia entre esta ltima e os diversos

    segmentos de sua audincia (cf. Chernela 2003). Os pequenos textos cantados soam como lamentos.

    Em uma dessas cantigas, registradas por Chernela (1993:77-78) em uma comunidade Wanana, duas

    mulheres Tariana se alternavam para falar sobre o fato de viverem misturadas: (...)Ns sofremos.

    Nascemos para ficar junto de nossos pais. Nascemos para sofrer assim. Minha irm menor, ns que

    padecemos, s as mulheres Tariana passam tristeza assim. Atadas aos lugares, cheias de

    sofrimento .

    A exterioridade das mulheres tambm aparece como um tema recorrente nas cantigas femininas

    analisadas por Piedade (1997) em uma comunidade de homens Tukano. As cantoras percebem-se

    deslocadas em meio aos parentes do marido, como fica claro no seguinte trecho de uma das

    performances registradas pelo autor: Como sou mulher, vivo perdida por aqui, vivo perdida por

    aqui. Se fosse homem, viveria nas terras de meu pai, transformada em esteio eu estaria (op. cit:

    86).

    Por outro lado, o casamento tambm traz vantagens importantes para as mulheres. No que diz

    respeito micro-poltica da vida diria, favorece o incremento da autonomia feminina. Uma

    caracterstica marcante das relaes entre os sexos no Uaups justamente a autonomia substantiva

    de que gozam as mulheres casadas. A participao na escolha do cnjuge, a possibilidade de

    abandonar o marido sem grandes conseqncias nas fases iniciais do casamento, antes do

    nascimento dos filhos e, principalmente, o domnio exclusivo sobre uma esfera importante da

    economia domstica, constituem recursos importantes para o exerccio da agncia feminina,

    sobretudo no mbito das relaes conjugais propriamente ditas. O alto grau de especializao e

    investimento que cerca as atividades executadas exclusivamente pelas mulheres, bem como a

    importncia dos produtos da roa no dia-a-dia da famlia nuclear e da comunidade, permitem s

    esposas valerem-se de sua capacidade de trabalho como moeda de negociao com os maridos. Em

    suma, a mulher casada detm capacidades das quais depende o bem-estar cotidiano dos moradores

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    da comunidade e ela sempre pode se valer disso para afirmar sua posio diante do marido e dos

    agnatos dele.

    Esse ponto me faz recordar o comentrio de uma viva que atualmente reside com o irmo solteiro

    em um stio prximo cidade de So Gabriel. Na ocasio, ela me falava sobre as saudades da

    mocidade, do marido e da vida em comunidade. Dizia que o finado havia sido um grande

    pescador e que, nos tempos de casada, ela vivia muito bem, nada lhe faltava, era um tempo de

    abundncia. Quando argumentei que o irmo tambm parecia um homem trabalhador, ela me

    respondeu: E de que adianta? Irmo diferente de marido. A gente no pode mandar nele.

    Mulher e Alteridade

    preciso agora abrir um parntese para esclarecer melhor a aproximao conceitual aqui postulada

    entre mulher e alteridade no rio Uaups. A questo que se coloca primeiramente a seguinte. Se as

    esposas estrangeiras representam a Alteridade, pelo fato de pertencerem a grupos afins, o que dizer

    das irms? Pois se elas tambm so em alguma medida Outras, no o so do mesmo modo, nem

    pelos mesmos motivos que suas cunhadas. O que difere, ento, nas respectivas posies das

    mulheres solteiras e casadas de uma dada comunidade?

    Entre os grupos do rio Uaups, a dinmica da identificao e da diferenciao se desenrola a partir

    de dois processos distintos. O primeiro, que diferencia os grupos agnticos entre si pela conexo

    vertical de cada um com seus respectivos ancestrais, atualiza-se pela transmisso patrilinear de

    nomes cerimoniais (provenientes da segunda gerao ascendente) e pela reafirmao ritual desse

    vnculo. Dependendo do grupo, o nome cerimonial (em Tukano, baske wame) pode ser

    transmitido criana assim que ela nasce ou logo depois que ela comea a andar e falar (Hugh-

    Jones 2002: 26), conferindo-lhe a alma-esprito que a conectar sua linhagem agntica. Atravs da

    posse do nome/alma proveniente da genealogia do sib, a criana passa a partilhar da essncia

    espiritual do mundo ancestral, efetivando-se, assim, sua vinculao ao grupo de descendncia

    paterno. nesse sentido que podemos afirmar que a esposa estrangeira representa a diferena

    dentro da comunidade. Ela porta um nome proveniente de outro grupo, partilha de outra essncia

    espiritual. Por isso, ela ser sempre uma afim. A irm, por sua vez, ser sempre uma consangnea:

    a identidade espiritual com os agnatos preservada ao longo de toda a vida, e ela jamais deixa de

    pertencer ao grupo em que nasceu, e atravs do qual pode traar sua conexo espiritual com o

    mundo mtico.

    O segundo processo de identificao e diferenciao se desenrola no mbito das relaes cotidianas.

    Por meio da co-residncia, da convivncia diria e da partilha de alimentos com os outros

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    moradores, as mulheres estrangeiras vem-se atradas para dentro, por meio de processos de

    consubstanciao. Nesse sentido, o destino da esposa se aparentar. A irm, por sua vez, percorre

    trajetria inversa. Mais cedo ou mais tarde, ela deixar sua comunidade para residir com um grupo

    estranho, com o qual vai conviver e para o qual vai gerar filhos. O destino da irm se

    desaparentar. Deixando de lado consideraes de ordem afetiva e observando a questo de um

    ponto de vista formal, podemos dizer que a produtividade da mulher solteira para a reproduo do

    grupo concentra-se em seu carter de elo de ligao com os outros. Somente na gerao seguinte,

    quando sua filha (idealmente) voltar como esposa do filho de seu irmo8 a capacidade criativa da

    mulher que saiu se torna efetiva para a continuidade de sua linhagem agntica (C. Hugh-Jones

    1979).

    Por tudo isso, possvel dizer que a posio da mulher solteira marcada por uma assimetria em

    relao a seus germanos do sexo masculino e que, se h um domnio das relaes interpessoais em

    que a assimetria de valor entre os sexos se atualiza de forma mais eloqente, na relao entre

    irmo e irm. No mbito da comunidade local, a tenso entre interior e exterior incide sempre sobre

    as mulheres, sejam irms ou esposas, mas sobre as primeiras que ela se materializa sem disfarces:

    enquanto os roteiros da vida cotidiana se encarregam de dissimular a diferena entre marido e

    mulher, para que a comunidade exista e o processo do parentesco siga seu curso necessrio que a

    irm v embora.

    A seguinte situao, observada em uma comunidade do rio Uaups, ilustra bem este ponto. Na

    refeio que se seguiu a uma pescaria coletiva com timb, homens e mulheres se posicionaram em

    plos opostos do centro comunitrio. Mas a comunidade se dividiu em trs grupos, e no em dois:

    homens (solteiros e casados), mulheres casadas e mulheres solteiras. Os homens, no importando se

    jovens ou velhos, casados ou solteiros, comiam todos juntos, prximo porta principal, chamada

    porta dos homens, ao passo que as mulheres solteiras ficaram mais prximas porta das

    mulheres, localizada nos fundos da edificao. No meio, as mulheres casadas.

    Resumindo, o desafio crucial da vida comunitria no Uaups assimilar produtivamente o exterior,

    de uma maneira tal que o afastamento diferencial entre os grupos afins possa ser permanentemente

    atualizado. Mas, ao tomarmos o ponto de vista das mulheres, torna-se inevitvel indagar como elas

    vivenciam o fato de estarem sempre marcadas pela condio de Outro. com essa questo em

    mente que prossigo no propsito de desvelar um pouco mais a perspectiva feminina, concentrando

    minha ateno nas percepes e experincias de mulheres que deixaram suas comunidades

    ribeirinhas para viver na cidade de So Gabriel, onde a noo de deslocamento parece se deslocar

    no eixo sexual, como veremos.

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    Da comunidade cidade

    Antigo territrio de ndios Bar, a cidade de So Gabriel da Cachoeira, sede do municpio de

    mesmo nome, localiza-se a 853 km de Manaus, numa regio rodeada de serras que guardam grande

    nmero de referncias mitolgicas para os grupos indgenas.

    Desde 1759, com a implantao de um forte militar, o territrio onde se localiza a cidade foi palco

    de diversos programas de ocupao estratgica da regio por parte dos brancos - agentes coloniais

    leigos e missionrios. De um modo geral, durante um longo perodo os brancos pautaram as suas

    relaes com as populaes nativas pela perspectiva de tirar proveito de sua fora de trabalho. A

    memria coletiva indgena povoada por lembranas de episdios de aldeamentos e descimentos

    forados, do sistema de dvidas com patres, e da intolerncia clerical para com os costumes

    indgenas (cf. Wright 1991, 1992; Meira 1994, 1996).

    Os ltimos trinta anos, porm, assistiram crescente re-organizao poltica dos povos do alto rio

    Negro. Estes passaram a lutar pela demarcao de suas terras9 e pelo direito preservao de sua

    cultura, que havia sido sistematicamente afrontada pelos salesianos durante as primeiras dcadas do

    sculo XX. Tambm durante este perodo, So Gabriel passou por um acelerado processo de

    urbanizao e crescimento populacional. No vou me deter aqui na descrio desse processo, j

    suficientemente detalhado em outras fontes (Santos 1983; Oliveira 1995, Lasmar 2005). O

    importante a destacar que foi durante esse perodo que se deu a entrada dos pees, trabalhadores

    de origem pobre que, dentre os brancos, foram aqueles que vieram a desenvolver relaes de

    convvio mais estreito com os ndios.

    Atualmente, h cerca de 15 mil pessoas residindo em So Gabriel, das quais 80% se consideram

    indgenas. Boa parte da populao (aproximadamente 44%) originria das comunidades situadas

    nas cinco Terras Indgenas que circundam a cidade.10 As principais motivaes alegadas pela

    populao indgena das comunidades para a mudana para o contexto urbano so a busca por

    educao escolar e trabalho remunerado, ambos os motivos referindo-se a processos de

    relacionamento com os brancos. Com efeito, como demonstrei em outro trabalho, o movimento da

    populao do rio Uaups em direo cidade s adquire sentido luz das concepes dos ndios

    acerca dos brancos e das cidades de um modo geral. A escola, as mercadorias e a medicina

    ocidental devem ser entendidas como eptomes de tais capacidades, as quais, crem os ndios,

    podem ser experimentadas e apropriadas de modo mais imediato no contexto urbano (Lasmar

    2005).

  • 11

    A importncia hoje conferida pelos ndios do rio Negro educao escolar deve-se em muito ao

    relacionamento de quase um sculo com a Misso Salesiana. Imbudos da tarefa de catequizar e

    civilizar a populao indgena, principalmente as crianas e os adolescentes, os salesianos se

    estabeleceram na regio em 1917, e formaram vrias geraes de alunos em regime de internato.

    Com o corte de verbas federais no incio dos anos oitenta, o sistema de internato teve que ser

    gradativamente desativado. Diante disso, e para que os alunos pudessem completar os estudos,

    muitas famlias trataram de viabilizar moradia em So Gabriel..11

    O segundo motivo alegado pelos ndios para a mudana para So Gabriel, a busca de trabalho

    remunerado, possui, na maioria dos casos, relao direta com a busca por educao escolar. Para

    muitas famlias recm-chegadas na cidade, cuja sobrevivncia depende inteiramente da produo

    obtida na roa, preciso muito empenho para manter os filhos na escola. Por um lado, necessrio

    arcar com uma srie de custos, como material didtico e uniforme. Por outro, a rotina escolar

    dificulta a preparao das crianas para o trabalho agrcola e para as outras atividades produtivas

    tradicionais, subtraindo das famlias um importante contingente de fora de trabalho. Assim, para

    que seja possvel estabelecer-se na cidade, manter os filhos na escola, e equipar o domiclio com as

    mercadorias necessrias, crucial que pelo menos um membro do grupo domstico exera uma

    atividade remunerada. Ainda assim, segundo dados recentes, 15% dos domiclios da cidade no

    possuem nenhum morador com renda fixa mensal (ISA 2005).

    A populao de So Gabriel apresenta hoje uma configurao social razoavelmente complexa. O

    fluxo de famlias indgenas do interior em direo cidade contnuo, e o modo de insero dos

    ndios na paisagem urbana varia de acordo com uma srie de fatores, dentre os quais destacam-se o

    acesso a lotes agrcolas e/ou a uma ocupao remunerada, e a possibilidade de contar com o apoio

    material de parentes na cidade. Simplificando um pouco o cenrio, podemos dizer que as famlias

    residentes em So Gabriel h mais tempo costumam ter mais acesso ao mercado de trabalho,

    enquanto os recm-chegados precisam recorrer atividade agrcola como principal meio de

    subsistncia. Numa escala de insero no modo de vida tipicamente urbano, os dois extremos

    seriam representados, de um lado, por famlias indgenas com uma renda monetria que lhes

    permite manter os filhos na escola sem dificuldades e adquirir as mercadorias de que sentem

    necessidade; de outro lado, famlias sem renda monetria ou com uma renda que no atende s

    exigncias mnimas da vida na cidade. Para estas ltimas, instalar-se em casa de parentes e

    conseguir destes autorizao para cultivar um terreno de sua propriedade na regio periurbana tem

    sido uma estratgia comum de sobrevivncia nos primeiros tempos de residncia na cidade. (cf.

    Eloy & Lasmar, 2008).

  • 12

    Transformaes no modo de vida

    Os moradores de So Gabriel costumam se referir diferena entre a vida na comunidade e a vida

    na cidade em termos de uma distino ontolgica primordial entre ndios e brancos. Para tanto,

    tomam por base suas interpretaes da mitologia de origem, mais precisamente do momento do

    mito em que ocorre a diferenciao entre ndios e brancos e estes ltimos do mostras de seu

    temperamento agressivo e ousado (Lasmar 2005). Coadunando-se com o ethos pacfico e

    moderado dos ndios, a vida comunitria teria por caracterstica principal a valorizao do

    parentesco, da partilha e do bem comum. Na cidade, por sua vez, os desejos e objetivos se

    tornariam mais individualizados, e a competio passaria a ser a regra. Comunidade e cidade

    representariam, portanto, dois modos distintos de viver, que traduziriam filosofias sociais distintas.

    No obstante o contraste ntido entre cidade e comunidade, para os ndios de So Gabriel haveria

    formas distintas de estar na cidade: h aquelas mais prximas do modo branco de viver e outras

    mais prximas do modo indgena (i.e. mais prximas da vida na comunidade). Por um lado, a

    existncia de modos diversos de estar na cidade poderia ser observada comparando-se famlias

    recm-chegadas em So Gabriel com famlias que residem ali h mais tempo; por outro lado,

    comparando-se as geraes no interior de uma mesma famlia. Qualquer que seja a situao

    socioeconmica de sua famlia, quanto mais jovem uma pessoa, mais distanciada ela se torna do

    modo de vida dos parentes que permaneceram na comunidade.

    As mulheres indgenas crescidas na cidade se percebem distanciadas das recm-chegadas pelo fato

    de levarem uma vida mais prxima do modo de vida propriamente urbano. Esto inseridas no

    mercado de trabalho e freqentam, com desenvoltura, os mesmos ambientes que os brancos vindos

    de fora. Na escala de diferenciao de estilo de vida a partir do modelo branco, elas se vem

    ocupando uma posio intermediria, ndias em contraste com a mulher branca ou a cabocla

    nascida na cidade; brancas (ou menos ndias) em contraste com a moradora da comunidade

    ribeirinha.

    O tipo de trabalho exercido por uma mulher determina, em larga medida, sua rotina de interaes

    sociais. As mulheres que cresceram na cidade e passaram boa parte de sua infncia e adolescncia

    nos bancos escolares no costumam depreciar o trabalho agrcola; ao contrrio, at com certo

    embarao que assumem jamais ter ido roa. Observando suas parentas mais velhas, elas

    compreendem que esse tipo de atividade pode ser uma fonte poderosa de orgulho e auto-estima

    feminina. Mas a roa, e todo o conjunto de valores a ela associado, articulam uma representao da

    identidade feminina que no corresponde aos seus anseios. Tendo aprendido a projetar suas

    expectativas de futuro na direo que a escola apontava, essas mulheres investem o seu tempo no

  • 13

    exerccio de ocupaes mais qualificadas no que se refere ao nvel de escolaridade. Nesse sentido,

    elas se percebem mais distanciadas tanto de suas mes e avs nascidas e crescidas nas

    comunidades, como das mulheres de sua prpria gerao recm-chegadas na cidade.

    Um fator importante no processo de transformao do modo de vida a maior freqncia de

    interaes com os brancos. No contexto urbano, a populao indgena passa a conviver de maneira

    mais intensa com brancos das mais variadas procedncias militares lotados nos pelotes do

    Exrcito, funcionrios pblicos e de ONGs, missionrios catlicos e evanglicos, ex-garimpeiros, e

    descendentes das famlias de tradio no comrcio e influncia na poltica local, muitas das quais

    ali chegaram em poca anterior exploso populacional de So Gabriel. Um dos efeitos dessa

    convivncia o estabelecimento de parcerias sexuais e, no raro, de vnculos conjugais entre as

    mulheres indgenas e os brancos.

    Irm e esposa

    No processo de transformao do modo de vida de uma mulher, o casamento com branco exerce um

    papel crucial. Ele a aproxima do modo branco de viver, uma vez que cria um contexto

    privilegiado para a realizao de novos roteiros e o desempenho de novos papis (cf. Lasmar

    2005:182:188). Do ponto de vista da estrutura da aliana, este pode ser visto como um casamento

    distante que atende necessidade de ampliar a rede de afinidade de uma famlia para fazer frente

    s demandas de um novo tempo (op. cit: 105-115). Ter uma filha casada com um branco facilita o

    acesso ao mundo da cidade, do hospital, da escola e das mercadorias. Mas, na maior parte dos

    casos, a prpria opo por um marido branco j sinal de um estilo de vida em processo de

    alterao.

    A aliana matrimonial em So Gabriel um assunto de famlia, e envolve, entre outras coisas,

    concepes de identidade, avaliaes de prestgio, noes de pertencimento a grupos sociais,

    interesses econmicos. Dizer isso no significa, de modo algum, subtrair s mulheres a capacidade

    de agncia de que elas efetivamente do mostras quando escolhem um marido branco. Muito pelo

    contrrio: perceber as mulheres como agentes de suas prprias escolhas depende justamente de

    compreender de que modo tais escolhas so infletidas pelo sistema de relaes sociais no qual elas

    se movem e se constituem como sujeitos.

    As unies conjugais entre mulheres indgenas e homens brancos so um assunto palpitante em So

    Gabriel. Como elas no se inserem em uma estrutura de aliana recproca pela irm que se d em

    troca, no se recebe mulher alguma , os ndios consideram que os brancos esto roubando suas

    mulheres. Alm dessa ruptura no sistema de troca matrimonial, o casamento com branco introduz

  • 14

    ainda um outro tipo de descontinuidade na estrutura tradicional de aliana. Enquanto esta ltima

    prev o casamento entre pessoas de mesmo status social, isto , de mesma posio na hierarquia

    interna aos grupos exgamos (Chernela 1983), o casamento com branco no s , ele prprio, uma

    espcie de unio assimtrica, se tomarmos como referncia o sistema social urbano, como institui

    uma assimetria de perspectiva matrimonial entre germanos de sexo diferente, que passam a ter

    possibilidades diferenciadas em relao a seus casamentos. Explico-me.

    Se as mulheres mais adaptadas vida urbana tendem a se casar com brancos, seus irmos, que

    possuem um estilo de vida semelhente ao delas, precisam buscar namoradas e esposas entre as

    ndias recm-chegadas na cidade ou entre as moradoras de comunidades ribeirinhas, uma vez que as

    moas com as quais convivem esto relativamente indisponveis. Poderamos dizer, assim, que a

    jovem que se casa com um branco realiza uma unio hipergmica, enquanto seu irmo tende a se

    casar com uma mulher situada em patamares inferiores na escala de classificao social que vigora

    na cidade e que diferencia as pessoas de acordo com o seu modo de vida.

    Seguindo esse raciocnio, veremos que a assimetria de perspectiva matrimonial deve se reproduzir

    na gerao seguinte. Filhos de germanos de sexos diferentes possuiro modos de vida diferenciados

    e possibilidades matrimoniais diversas. Tomemos o exemplo de um casal de irmos que chegaram a

    So Gabriel ainda pequenos. Chamemo-nos de Carlos e Maria. Carlos se casa com uma mulher

    recm-chegada do interior e Maria se une a um homem branco. O filho de Carlos no se casar com

    a FZD (filha da irm do pai), mulher qual ele teria direito por tradio, pois, repetindo o que

    ocorreu com sua prpria me, a jovem em questo vai realizar um casamento hipergmico, muito

    provavelmente com um branco. A filha de Carlos poderia se casar com o filho de Maria (FZS) pois,

    nesse caso, ela estaria se casando para cima. Porm, na cidade, devido presena dos brancos no

    mercado matrimonial, o casamento de primos cruzados perde sua qualidade de transao

    preferencial e, por isso, o casamento da filha de Carlos com o filho de Maria torna-se to provvel

    quanto qualquer outro que siga o mesmo padro de hipergamia para as mulheres e hipogamia para

    os homens.

    Por tudo isso, a preferncia das mulheres pelos brancos torna-se motivo de ressentimento para os

    homens, sobretudo para os jovens solteiros. Para os pais da moa, ter um genro branco traz muitas

    vantagens. Devido sua situao econmica mais confortvel, a filha pode abastec-los com bens

    durveis, mercadorias, remdios. bem verdade que esses benefcios estendem-se a uma vasta

    gama de parentes, inclusive aos irmos, mas nem por isso estes deixam de se sentir lesados pelo

    casamento da irm. Via de regra, eles se posicionam contra a unio, podendo apresentar

    dificuldades de relacionamento com o cunhado. Consumado o casamento, em muitos casos hesitam

    em aceitar o marido da irm como membro da parentela.

  • 15

    Mas o genro branco costuma contar com a cumplicidade contumaz da sogra, que alega que os

    pretendentes indgenas no seriam capazes de dar conforto material mulher e aos filhos.

    Ancoradas na opinio da me, que quase sempre traz o consentimento do pai a reboque, as jovens

    depositam no casamento com branco suas expectativas de futuro e a figura do afim no-indgena

    passa a fazer parte da vida de muitas famlias de So Gabriel. Entre a populao residente na cidade

    h mais uma gerao, esse tipo de casamento um fenmeno trivial.

    Alm de resultar com certa freqncia em unies matrimoniais, a preferncia das mulheres pelos

    brancos possui ainda outras consequncias importantes. Em So Gabriel, elevado o nmero de

    crianas sem paternidade reconhecida e crescente o nmero de celibatrios entre os homens

    indgenas. Quando perguntadas sobre o porqu da preferncia pelos brancos, as moas nascidas na

    cidade lanam mo de dois tipos de argumento. O primeiro que os rapazes indgenas so mais

    retrados, no sabem seduzir, no se insinuam nem mesmo para conversar. Esse juzo , de certo

    modo, compartilhado pelos homens indgenas, que costumam dizer que os brancos tm mais lbia

    e, por isso, mais sucesso quando se trata de conquistar as mulheres. O segundo argumento das

    jovens que os ndios bebem muita cachaa, e de forma desmedida, tornando-se briguentos e

    incovenientes nas festas, nos clubes noturnos.

    O consumo intenso de cachaa apontado pelas mulheres como um dos problemas mais graves

    enfrentados pelas famlias indgenas na cidade. praticamente impossvel encontrar uma que no o

    conhea de perto. Com efeito, no incomum que os homens gastem boa parte do dinheiro ganho

    com seu trabalho nas noitadas que prolongam a ingesto de cachaa, comprometendo o oramento

    familiar, em muitos casos gravemente. Alm disso, o estado de embriaguez citado como a maior

    causa de violncia domstica e fonte permanente de conflito entre os cnjuges. As mulheres

    reclamam que, quando alcoolizados, seus maridos tornam-se irascveis e agridem-nas pelos motivos

    mais banais.

    A ingesto de cachaa se associa tambm prtica de pequenos delitos e violncia juvenil. J h

    algum tempo, os moradores de So Gabriel lidam com o problema da existncia de gangues de

    adolescentes que, alccolizados, agridem os transeuntes durante as madrugadas sem motivo aparente.

    Os adultos vem a ingesto desregrada de cachaa como conseqncia da falta de perspectiva de

    futuro para os jovens indgenas.12 Entre as possveis causas dessa situao, eles citam a situao

    econmica precria das famlias que chegam a So Gabriel para fixar residncia, a dificuldade

    enfrentada pelos ndios para competir com os brancos no mercado de trabalho e conseguir uma boa

    remunerao profissional, e a posio secundria dos homens indgenas no esquema de preferncias

    sexuais e matrimoniais das mulheres. O fato que, inseridos realmente de forma desprivilegiada em

    um sistema social que garante aos brancos acesso mais fcil ao dinheiro, s mercadorias e s

  • 16

    mulheres, os jovens indgenas se retraem, diminuindo ainda mais as suas chances de namorar as

    moas da cidade. Esse retraimento pode ser visualizado na distribuio espacial dos jovens na pista

    de dana dos clubes noturnos, por exemplo. Os rapazes indgenas, principalmente os recm-

    chegados, costumam danar juntos em grupos masculinos, embriagando-se progressivamente,

    enquanto as moas interagem com os brancos. Em So Gabriel, depois dos brancos vindos de fora,

    as alternativas locais preferenciais das moas para parceiros sexuais ou matrimoniais so os

    militares nascidos na regio, brancos ou ndios - nessa ordem. Assim, se possvel encontrar uma

    moa nascida na cidade com namorado ou marido indgena, muito provvel que se trate de um

    militar.

    A gramtica dos casamentos com brancos

    Para que possamos nos aproximar de uma compreenso da preferncia das mulheres pelos brancos,

    precisamos focalizar o sistema de relaes onde se definem as suas possibilidades de agncia.

    Compreender a experincia social da mulher casada com branco implica compreender tanto a sua

    posio enquanto esposa, quanto a sua posio no crculo de relaes que se irradia a partir da

    famlia consangunea.

    A estrutura da relao conjugal nos casamentos com branco muito distinta daquela que vimos

    caracterizar as unies entre homens e mulheres indgenas no rio Uaups. Na comunidade ribeirinha,

    as mulheres se valem da importncia de suas capacidades produtivas e reprodutivas para sustentar o

    seu ponto de vista sobre questes que afetam a vida conjugal e familiar. E a complementariedade

    econmica entre marido e mulher fornece a base para o desenvolvimento de uma relao de

    cumplicidade que, com o passar do tempo, tende a se tornar cada vez mais estvel.

    A esposa de branco, por sua vez, possui meios mais reduzidos para afirmar sua perspectiva. Do

    ponto de vista econmico, o marido depende menos dela do que ela dele. Essa maior independncia

    dos maridos brancos se replica no plano afetivo-sexual. Os brancos de So Gabriel transitam em um

    circuito de relaes na cidade do qual a esposa indgena raramente participa. A partir dos

    depoimentos de mulheres casadas com brancos por um perodo de uma a duas dcadas, percebi um

    processo comum de desenvolvimento da relao conjugal, caracterizado pelo distanciamento

    gradativo entre os cnjuges. Depois dos primeiros tempos do casamento, com o abrandamento da

    paixo sexual, o marido torna-se mais disperso e menos integrado rotina da casa, passando a ser

    visto pelos bares da cidade na companhia de outras mulheres. As escapadas vo se tornando mais

    freqentes e sua ausncia constante esfria a relao do casal. Insatisfeitas com a atmosfera de

    distanciamento de que se impregnou a relao, elas pensam muitas vezes em separao, mas na

  • 17

    maioria dos casos recuam devido ao receio de que os filhos fiquem desamparados ou a famlia

    extensa passe por privaes. A esta altura, uma srie de necessidades j foram criadas e precisam

    ser continuamente satisfeitas.

    Por outro lado, afora os benefcios econmicos, o casamento com branco oferece mulher a

    possibilidade de permanecer perto de seus pais e irmos. Assim, alm de gozar de uma situao

    financeira privilegiada, que lhe permite ajudar os familiares, a esposa de branco no se v apartada

    deles, tampouco dividida em suas lealdades a consanguneos e afins. Ao contrrio, o papel de

    arrimo de famlia torna a sua casa um plo de convergncia para parentes paternos e maternos. E

    mesmo nos casos mais raros em que a famlia do marido mora em So Gabriel, a tendncia que a

    mulher mantenha uma convivncia cotidiana mais estreita com os seus prprios parentes. Quando

    na cidade, seus pais passaro boa parte do tempo em sua casa, cuidando dos netos enquanto ela se

    ausenta para trabalhar. Da uma reclamao freqente dos brancos. Eles costumam dizer que casar

    com uma mulher indgena como casar com uma comunidade inteira.

    As mulheres casadas com brancos desempenham um papel muito importante no processo de fixao

    dos parentes na cidade e na transformao de seu modo de vida. Nesse sentido, podemos dizer que

    os casamentos com brancos potencializam a capacidade de agncia das mulheres no que se refere

    aos processos de produo de identidade no mbito da famlia extensa consangunea, operando uma

    espcie de inverso na assimetria que vimos caracterizar as relaes entre irmo e irm no rio

    Uaups. Ocupando uma posio estratgica no sistema social urbano, elas atuam como elos de

    ligao entre os recm-chegados das comunidades ribeirinhas que tem na sua casa um importante

    ponto de apoio e o mundo dos Brancos.

    Mas a vantagem da esposa de branco frente a seus irmos no decorre exclusivamente da condio

    econmica de que passa a gozar e que lhe permite ajudar os parentes e aglutin-los em torno de si.

    Na cidade, h um outro campo de ao em que as mulheres costumam fazer valer uma perspectiva

    alternativa sobre o processo de reproduo social. Trata-se da prtica, por sinal bastante polmica,

    de dar um nome cerimonial s crianas nascidas de suas unies com os brancos.

    Crianas misturadas

    A identidade das crianas nascidas dos relacionamentos entre ndias e brancos objeto de

    controvrsia em So Gabriel, ensejando um conflito de perspectivas. Inicialmente, os ndios

    afirmam que tanto os filhos de mulheres indgenas com homens brancos quanto os filhos de homens

    indgenas com mulheres brancas so morgi, que significa misturado. Morgi por vezes

    traduzido como caboclo, mas os informantes no parecem realmente confortveis com o emprego

  • 18

    deste ltimo termo para referir-se identidade das crianas misturadas. A inadequao do termo

    caboclo para dar conta da identidade dessas crianas pode ser explicada pelas prprias concepes

    nativas acerca do processo de reproduo da identidade tnica e, por extenso, da identidade

    indgena.

    Como j expliquei acima, de acordo com a teoria da pessoa entre os grupos do rio Uaups, a alma

    da criana o sopro de vida, o princpio vital -lhe transmitida inteiramente pelo pai, atravs do

    nome cerimonial que ela recebe ao nascer. atravs da posse do nome/alma da genealogia do sib

    que se efetiva a vinculao ao grupo de descendncia paterno. Nesse sentido, a diferena entre o

    filho de me indgena com pai branco e o filho de pai indgena com me branca que, a rigor, o

    primeiro est privado do direito de portar um nome indgena. Conseqentemente, embora ambos

    sejam misturados, somente o segundo poderia ser considerado ndio. Nesse registro, portanto, o

    acesso legtimo a uma alma indgena o que determina a identidade de ndio.

    Em conformidade com o sistema de descendncia patrilinear, o filho de ndia com branco dito

    peksa morgi (branco misturado), enquanto o filho de ndio com branca, caso muito mais raro,

    definido como poterkihi morgi (ndio misturado).13 Suponho que o termo morgi faa aqui as

    vezes de um qualificador, no sendo o foco semntico da definio de identidade, o que explicaria a

    inadequao do termo caboclo para dar conta do caso. Enquanto caboclo no significa nem ndio

    nem branco, referindo-se a uma terceira categoria, os filhos de branco com ndia seriam brancos,

    mas de um tipo especfico, enquanto os filhos de ndio com branca seriam ndios de um tipo

    especfico. A especificidade de ambos seria determinada pela caracterstica que compartilham

    corpos misturados.

    Grande parte da polmica em torno da identidade dos filhos de branco tem origem no fato de que,

    contrariando a tradio, eles tambm acabam recebendo um nome cerimonial, de modo que possam

    ter a sade protegida ao longo da vida por meio dos ritos xamnicos apropriados. Na falta de um pai

    indgena, o nome provm do sib do av materno, o que faz com que a criana se torne identificada

    etnia da me. Embora ela seja considerada misturada, do ponto de vista de sua me, sua av, e seu

    av materno que nomeia o beb a partir de um de seus irmos ou irms o nome assegura

    criana a posse de uma alma indgena. Embora eu no disponha de dados estatsticos, meu palpite

    que se trata de uma prtica habitual.

    As mulheres costumam minimizar o carter heterodoxo desta prtica, e parecem mesmo naturaliz-

    la, com comentrios do tipo: meus filhos so misturados: meio ndios, meio brancos. Ento, a parte

    indgena deles Tukano, como eu. Ao mesmo tempo, elas sustentam ser imprescindvel que

    parte indgena do corpo da criana esteja atrelado um nome indgena. O raciocnio

  • 19

    perfeitamente coerente com a idia de que, para ser ndio (em oposio a branco), preciso

    descender de um dos ancestrais que desembarcou e se fixou no Uaups depois da grande viagem

    original, o que se atualiza atravs da posse de uma alma/nome. Mas ele demonstra, por outro lado,

    uma desateno ao princpio patrilateral firmemente defendido pelos homens.

    Em geral, os tios maternos rejeitam o esquema, considerando-o ilegtimo, e argumentam que o

    direito a portar esses nomes seria apenas de seus prprios filhos. Vejamos um caso que ilustra bem

    o tipo de conflito que pode resultar dessa situao. Depois de uma relao temporria com um

    homem branco, uma jovem Tukano solteira, que residia na cidade em companhia do irmo, deu

    luz uma criana. Como seu pai estava morando muito longe dali, ela pediu ao irmo que benzesse o

    sobrinho, dando-lhe um nome Tukano. Alegando que o beb era filho de branco, ele se recusou a

    faz-lo. Passado um ano, a criana adquiriu uma doena grave e incurvel, cuja origem creditada,

    pelos parentes, ao fato de no ter sido benzida quando beb. Nesse caso especfico, a mulher teve

    que ceder frente resistncia do irmo, o que provavelmente no teria acontecido se, epoca do

    nascimento da criana, tivesse podido contar com o apoio de seus prprios pais para dar ao beb um

    nome cerimonial.

    Consideraes finais

    O casamento com branco re-situa socialmente as mulheres. Alm de dot-las de recursos materiais

    que lhes permitem ajudar os parentes e atra-los para suas casas, ele cria uma situao propcia para

    que elas transmitam aos filhos os nomes de seus antepassados. Lembremos, porm, que isso s

    possvel se as mulheres puderem contar com a conivncia de seus prprios pais ou de outro homem

    de seu prprio sib, pois o conhecimento xamnico necessrio realizao do ritual de nominao

    prerrogativa masculina. intrigante o fato de os avs maternos da criana compactuarem

    regularmente com uma prtica onomstica que transgride o sistema tradicional de reproduo dos

    grupos indgenas. Ao dar ao filho de sua filha um nome que, por direito, pertenceria apenas aos

    filhos de seus filhos de sexo masculino, ele est, de certo modo, promovendo a dissipao de algo

    concebido como um bem que deveria permanecer no interior de sua prpria linha agntica. Nesta

    consideraes finais quero chamar ateno para a situao mais ampla que cria as condies de

    estabilidade desse tipo de transgresso, permitindo que ela se torne possvel e legtima tambm do

    ponto de vista dos av materno. Sugiro que a transferncia matrilinear de nomes, assim como, de

    uma maneira geral, a reformulao da posio subjetiva das mulheres, seja entendida como parte de

    transformaes mais amplas nos regimes de socialidade dos ndios do alto rio Negro.

  • 20

    A transferncia matrilinear de nomes parece indicar uma flexibilizao da prpria noo de

    descendncia patrilinear em favor de uma verso cogntica, resultante, a meu ver, da orientao

    global dos ndios em direo ao mundo dos brancos. A identidade do grupo agntico, sua

    atualizao enquanto unidade discreta, s se realiza na afirmao de suas diferenas em relao aos

    outros. No obstante, o surgimento de uma identidade indgena pan-tnica um fato cada vez mais

    evidente. Tome-se como ilustrao a crescente organizao poltico-burocrtica dos grupos do rio

    Negro em associaes polticas que representam comunidades localizadas em uma determinada

    faixa geogrfica, sem considerao direta filiao tica ou de sib.

    Esta tendncia ao estabelecimento de uma identidade indgena genrica se realiza de maneira mais

    radical em So Gabriel. As formas urbanas de territorialidade favorecem a convivncia entre

    pessoas de etnias diversas, e limitam, em boa medida, as possibilidades de se recriar na cidade as

    condies sociocosmolgicas necessrias para a atualizao ritual das diferenas entre os grupos.

    Embora esta diferena esteja muito longe de se dissolver - como atesta a estabilidade da regra de

    exogamia lingstica (cf. Lasmar 2005) mesmo no contexto urbano - , estamos diante de uma

    situao em que o foco da alteridade passa a recair mais diretamente sobre a figura do branco, um

    Outro diferente dos outros.14 Tendo em vista o que venho descrevendo como o movimento dos

    ndios em direo ao mundo dos brancos (op. cit), e o processo, dele decorrente, de constituio de

    uma identidade pan-tnica no alto rio Negro, esse deslizamento da posio de alteridade nada tem

    de surpreendente. Assim como tambm no deve nos surpreender que, neste cenrio de intensas

    transformaes, a posio das mulheres tambm deslize, abrindo novas possibilidades de

    agenciamento das relaes de parentesco e aliana.

    Para finalizar, gostaria de chamar ateno para um aspecto importante de toda essa situao.

    Paralelamente reestruturao dos papis femininos na cidade de So Gabriel, observamos a

    emergncia de um quadro de crise social envolvendo principalmente os rapazes indgenas. Segundo

    afirmam os moradores da cidade, este quadro de crise , em ampla medida, efeito da posio

    desprivilegiada dos ndios no cenrio atual das relaes entre homens e mulheres na cidade. A

    reestruturao dos papis femininos, portanto, tem como um de seus efeitos o enfraquecimento da

    posio social dos homens e uma decorrente fragilizao da identidade social masculina. Isso nos

    remete discusso do incio do paper, em que eu chamava ateno para o alto rendimento

    sociocosmolgico da distino de gnero entre os grupos do rio Uaups e para a atualizao desta

    distino em termos assimtricos.

    Notas

  • 21

    1 Este paper sintetiza, aprofunda e revisa questes discutidas de maneira mais dispersa em trabalhos

    anteriores (Lasmar 1998, 2002, 2005). Os dados etnogrficos apresentados so provenientes da

    literatura etnolgica sobre a regio e de uma longa experincia de pesquisa na cidade de So

    Gabriel da Cachoeira, iniciada em 1996.2 Para uma descrio compreensiva e densa dos rituais de iniciao masculina entre os Barasana do

    rio Pir-Paran, alto Uaups, ver Hugh-Jones (1979).3 particularmente ilustrativo o caso do movimento indgena, um dos principais contextos de

    agenciamento dessas relaes atualmente. Meu ponto aqui simples: uma mulher dificilmente

    ocupar posio de liderana na poltica das associaes indgenas do alto rio Negro, a no ser no

    mbito das associaes fundadas e compostas exclusivamente por mulheres, cujo vis de gnero

    costuma ser explicitado no prprio nome.4 Um relato da ndia Tuyuka Catarina Borges, sobre o seu prprio ritual de iniciao feminina,

    encontra-se hoje publicado no livro Mariya dita Ian!n!se Masire, de autoria dos Tuyuka para

    servir como material de leitura na escola. O livro foi produzido no contexto do Projeto de Educao

    Indgena/ FOIRN-ISA. A associao entre o trabalho produtivo na roa e a maternidade pode ser

    ilustrada, por exemplo, na seguinte frase que Catarina diz ter ouvido dos velhos durante o ritual:

    Fique sentada, resguarde muito bem pois tu s mulher, provedora de alimento, me das plantaes,

    resguarde... Agradeo a Flora Cabalzar a indicao e a traduo do texto da lngua Tuyuka para o

    portugus.5 O idioma original dos Tariana da famlia Aruak, mas hoje em dia eles falam majoritariamente o

    Tukano.6 necessria uma distino terminolgica: entre a famlia lingstica Tukano (Oriental) e a lngua

    Tukano propriamente dita, esta ltima falada pelo grupo exgamo patrilinear de mesma designao,

    e atualmente uma espcie de lngua franca entre os grupos da regio.7 Digo idealmente porque, embora a correspondncia entre o grupo lingustico e o grupo exgamo

    se verifique para a maioria dos casos, ela no universal no Uaups. Veja-se, por exemplo, o caso

    dos Tariana (acima, nota 5).8 A terminologia de parentesco dos ndios do Uaups de tipo dravidiano, sendo preferencial o

    casamento entre primos cruzados bilaterais.9 Em 1996, o governo federal declarou de posse permanente dos ndios cinco terras contnuas na

    regio do alto e mdio Negro, abrangendo 100 mil km2. So as seguintes: Terra Indgena Mdio Rio

    Negro I, Terra Indgena Mdio Rio Negro II, Terra Indgena Rio Ta, Terra Indgena Rio Apapris,

    Terra Indgena Alto Rio Negro.10 Estas e outras informaes estatsticas podem ser encontradas em ISA (2005).

  • 22

    11 No mbito do municpio, alm da cidade de So Gabriel, s possvel cursar o segundo grau em

    Iauaret, povoado localizado no rio Uaups, que atualmente passa ele prprio por um processo de

    urbanizao e se v sujeito a presses demogrficas. Para um estudo sobre o cotidiano e a

    socialidade dos ndios residentes em Iauaret, cf Andrello (2006).12 Sobre a questo da violncia envolvendo jovens em So Gabriel, ver Lasmar & Azevedo 2005.

    Trata-se do relatrio de resultados de uma pesquisa participativa realizada no mbito do Programa

    de Apoio a Projetos em Sade, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (PROSARE),

    desenvolvido pela Comisso de Cidadania e Reproduo (CCR) e pelo Centro Brasileiro de Anlise

    e Planejamento (Cebrap).13 Estas definies me foram dadas por homens. Quando eu indagava as mulheres sobre a sua

    pertinncia, elas a confirmavam, embora jamais tenham formulado espontaneamente definies

    parecidas. Sempre me disseram, apenas, que seus filhos eram morgi.14 Para uma anlise do enquadramento mitolgico da condio especfica dos Brancos ver Lasmar

    2005.

  • 23

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