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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MIGUEL LUIZ DA CONCEIÇÃO “O APRENDIZADO DA LIBERDADE” EDUCAÇÃO DE ESCRAVOS, LIBERTOS E INGÊNUOS NA BAHIA OITOCENTISTA Salvador 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

MIGUEL LUIZ DA CONCEIO

O APRENDIZADO DA LIBERDADE

EDUCAO DE ESCRAVOS, L IBERTOS E INGNUOS NA BAHIA OITOCENTISTA

Salvador 2007

MIGUEL LUIZ DA CONCEIO

O APRENDIZADO DA LIBERDADE :

EDUCAO DE ESCRAVOS, LIBERTOS E INGNUOS NA BAHIA OITOCENTISTA

Disser tao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histr ia da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Histr ia sob a or ientao da Prof Dr Mar ia Ceclia Velasco e Cruz.

Banca Examinadora Prof. Dr . Cndido da Costa e Silva Prof. Dr . Evergton Sales Souza Pof Dr Mar ia Ceclia Velasco e Cruz

Salvador 2007

s crianas escravas, libertas e ingnuas da Bahia do Oitocentos, e s de agora, escravas da pobreza, libertas da rua, extorquidas da sua ingenuidade. Lidiane, firme companheira, Thiago, Diego e Elaine, queridos filhos e filha, bnos e esperanas que me ensinam o novo. Dedico este trabalho.

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................ 01 CAP. I AS REFORMAS DE ENSINO NO BRASIL (SCULO XIX) ...............................................................................04 CAP. I I LIBERTOS, INGNUOS E O ENSINO ELEMENTAR NA BAHIA OITOCENTISTA ......................................................40 CAP. I I I SONHOS DE LIBERDADE, VONTADES DE APRENDER...................................................................................79 FONTES ..........................................................................................................135 OBRAS DE REFERNCIA ..........................................................................138 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .........................................................139

AGRADECIMENTOS

Temo as estradas muito planas, onde se anda sem tropeos e para cada obstculo h

sempre amplos atalhos. Nas outras, caminho.

Concluir este trabalho foi dar mais alguns largos passos nesta estrada que no s

minha, pois muitos por ela me tm ajudado a andar. Sem interromper a viagem, me valho

deste marco, que tambm portal, para, olhando aqum e em volta, agradecer.

L, bem no comeo, agradeo quela senhora, negra, magrinha e sisuda, que sentava

em torno da mesa tosca da sua minscula sala uma dezena de crianas, sob a vigilncia da

onipresente palmatria e, mais que tentar ensinar, mostrava que precisvamos aprender.

Obrigado, D. Maria Conceio, pela cartilha soletrada e pela tabuada cantada da sua escola

particular .

Seguindo em frente, digo obrigado professora Osvaldina, do Grupo Escolar, negra,

bela, irascvel, firme e competente, com incrvel habilidade para desenhar avies; adiante,

agradeo a Maria de Lourdes Ferreira da Silva (D. Morena), alegre, sbia, tolerante, grande

mestra, e logo a seguir a Jos Ramos de Souza, poltico, homem de governo que, suponho,

jamais leu Vitor Hugo, mas transformou um projeto de cadeia em Ginsio e enquanto o

construa despejou-se do prdio da Prefeitura para nele instalar os alunos, indo exercer o

mandato em uma garagem.

Antes e durante todo esse ir em frente obrigado pai e me, pela cota de esforos que

despenderam para me educar e instruir at onde lhes foi possvel.

Foi com a ajuda desses caminhantes que consegui chegar at aqui, para agradecer aos

companheiros de agora. Se pudesse, o faria com as mais belas palavras. Mas serei apenas o

andante, de pouco talento e muita gratido aos que contriburam com este trabalho.

Retomo a caminhada agradecendo, mais uma vez, a uma professora, Maria Ceclia

Velasco e Cruz, minha orientadora. Competente, firme, amvel, tolerante, Ceclia Velasco,

que continuar sempre Professora Ceclia , mais que orientar, apoiou, e soube como

ningum corrigir com elegncia, criticar com respeito, cobrar com brandura, facilitar sem

alardes e mais que tudo, acolher e confiar. Com ela aprendi mais, no s sobre a trilha em

andamento como, principalmente, a descobrir com mais argcia as mltiplas paisagens de

uma mesma estrada para perme-la de outros caminhos.

Agradeo professora Gabriela Sampaio, que me orientou no incio desse mestrado e

continuou, mesmo distncia, mantendo o interesse e a disponibilidade para auxiliar-me. A

ela devo mais que os primeiros passos, a amizade.

professora Maria Hilda, inspirao e apoio, certeza com que posso contar, agradeo

a presena marcante e a sinalizao clara e segura de alternativas de rumo.

Aos professores Cndido da Costa e Silva, pelo sereno encorajamento primeira vista

bem como pelos preciosos conselhos e importantes informaes; Luigi (Gino) Negro, por me

ajudar a redimensionar expectativas sobre distncias e obstculos; Evergton Sales, pelo

interesse e pelas relevantes indicaes; Lgia Belini, Zamparoni, Joo Reis e Lina Aras pelo

estmulo do sincero elogio ou da crtica que encoraja e me levaram a seguir em direo

pesquisa; Antonietta d'guiar Nunes, pela disposio com que me atendeu, indicando o seu

trabalho e outras fontes; aos demais da graduao

A Aldrin Castellucci, doutorando e casual companheiro no Mestrado, pela

incomparvel generosidade e disponibilidade, alm da orientao e do apoio efetivo em cada

passo que me ajudou a dar, minha amizade e gratido.

A todos(as) colegas de Mestrado pela alegre e enriquecedora convivncia. A estrada

sinuosa, mas no nos dispersemos para alm do alcance de um al ou de um @.

Aos muitos companheiros(as) no trnsito em torno das fontes, dos cursos e das salas

de aula.

s bibliotecrias e demais funcionrios das bibliotecas e arquivos. Sem essas pessoas

os caminhos da pesquisa se tornam mais longos e difceis, s vezes intransitveis.

Representando todos, obrigado, Gilda (APEBA), Lus (BEPEB), Dora (FACED), Simone

(Direito), Marina (So Lzaro) e Graa Cantalino (CEDIC). Marina e Graa vocs so

especiais: minha gratido pelo interesse dedicado e apoio entusistico.

D. Graa Lima, coordenadora, e D. Regina, diretora da Casa da Providncia, que me

acolheram com tamanha boa vontade e permitiram pleno acesso s suas instalaes e ao seu

acervo, infelizmente pequeno, mas com material suficiente para rastrear a passagem dessa

instituio pela educao na Bahia do sculo XIX. Essa Casa precisa ser melhor conhecida,

especialmente o seu trabalho com os menos favorecidos , e despertar a ateno dos

governos para as suas potencialidades.

Diretoria do Colgio da Polcia Militar Lobato, coronel Portinho e professora

Eliane, pelo apoio irrestrito, bem como professora Clia, coordenadora, e ao professor

Luciano Neri.

Aos Drs. Marambaia e Marassi, pela ajuda na convivncia com fungos e caros de

velhos documentos e livros.

Aos amigos e a todos aqueles que, momentaneamente, no foram lembrados.

Finalmente, Lidiane, companheira, e a Thiago, Diego e Elaine, filhos, pelo incentivo

e pela pacincia com que suportaram as contingncias dessa caminhada, bem como Renata,

que dela se aproximou; (a Thiago e Elaine tambm pela assessoria e ajuda preciosas); aos

avs, Ana, Bibiano, Maria, Galdino, Camila e Severiano (in memorian) de poucas letras,

muita sabedoria e todas as cores; a Nena, Graa, ngela, Ninha, Sheila e Eduardo, irmo e

irms, pela partilha da infncia atribulada; a Dundun, tia; aos sobrinhos e sobrinhas; a Manuel

Fernandes Linhares (in memorian), sogro, mestre do viver, artfice da alegria; aos meus

alunos e alunas, elementares, mas fundamentais todos significando antigas e recentes

motivaes.

A todos vocs dedico o resultado desta caminhada. Obrigado!

1

INTRODUO

Ainda transitava pela graduao em Histria quando deparei com um documento que,

na minha inexperincia de pesquisador nefito, julguei indito. Imediatamente tive a

certeza de que aquele era o comeo da busca pelas respostas a algumas das questes que

alimentavam minha presuno de vir a ser um historiador. O documento era um relatrio do

conselheiro Manoel Machado Portella, presidente da provncia da Bahia no 13 de maio de

1888, quando foi legalmente abolida a escravido no Brasil. Nele, Machado Portella

declarava que criara uma associao, a Sociedade Trese de Maio, para promover a instruo

dos libertos, defende-los e dar-lhes trabalho, bem como fundara uma escola para aqueles que

a Abolio devolvera liberdade. Descobri depois que o documento j fora citado, mas para

mim ele continuava indito , pois parecia contestar o discurso, recorrente na historiografia e

em outros meios, de que os ex-escravos teriam sido abandonados prpria sorte aps a

Abolio.

Diante daquele achado uma questo, com seus desdobramentos, se tornou

persistente: mesmo admitindo-se que o abandono dos ex-escravos em outros campos fosse

inquestionvel, teria havido ao menos no campo da educao um projeto de governo voltado

para sua incluso na sociedade baiana? Estaria o conselheiro Machado Portella tomando a

iniciativa de implementar um projeto dessa ordem com to surpreendente presteza? Teria

dado resultado? At quando? Aquela ao suscitara outras semelhantes? Que reao

provocara? A essas outras indagaes se seguiram.

Animado pela expectativa de um manancial de fontes, lancei-me ao projeto para

depois perceber o quo difcil era encontrar os personagens e suas falas naquela histria,

apesar do cenrio j bastante conhecido. Tentando interpret-la e entend-la, tal qual no teatro

recorri a outras leituras do enredo, aos comentrios, s crticas, ao texto oficial, aos prmios

conquistados, a montagens paralelas, para apresentar a verso possvel e sempre provisria do

espetculo. Esta dissertao, carregada de esforos e alguma tenso, o resultado dessa

tentativa.

O presente trabalho tem por objetivo acompanhar a discusso em torno da educao

primria popular e dos escravos, ingnuos e libertos na Bahia, bem como seguir a atuao

do governo e de particulares no atendimento dessa demanda em Salvador, no final do sculo

2

XIX. Pretende ainda investigar se houve aes autnomas dos libertos no sentido de garantir

educao e instruo para si ou para seus filhos e a que meios recorreram e quais estratgias

utilizaram para obt-las.

A partir da ao iniciada pelo presidente Machado Portela, transitamos pela segunda

metade do sculo XIX, retroagindo ou avanando um pouco alm desse perodo do

Oitocentos para tentar sondar permanncias, continuidades, ou mudanas significativas no

tratamento dessas questes. Encontramos um sem nmero de atos, leis, regulamentos, e

reformas ou propostas reformistas de pouca consistncia, e menos ainda resultados efetivos,

para a educao de escravos, libertos e ingnuos. Mas pudemos perceber tambm aes

concretas para atender a tais demandas.

O intuito no foi fazer uma histria da educao dos escravos, ingnuos e libertos na

Bahia oitocentista, mas investig-la em meio aos movimentos mais amplos do processo

histrico daquele perodo. Para tanto a educao foi considerada como parte indissocivel de

um projeto poltico mais abrangente de construo da nao, de organizao e afirmao do

Estado, de reordenamento das relaes de trabalho e definio do lugar social dos indivduos,

a partir dos conflitos e alianas, acomodaes e divergncias que toda esta movimentao

ensejava. Isso implicava em que o foco principal da investigao fosse os indivduos e suas

aes, isoladas ou conjuntas, enquanto sujeitos atuantes na construo da sua prpria histria

e suas aes, isoladas ou conjuntas. No entanto, tambm tornava indispensvel ampliar a

abordagem das aes institucionais para analisar e entender as propostas educacionais

voltadas para as classes populares, bem como os seus resultados, considerados a partir das

influncias recprocas entre esses diferentes atores.

Seguindo essa proposta, o trabalho foi dividido em trs captulos. Nos dois primeiros o

fio condutor da abordagem a atuao do Estado no mbito da instruo: o primeiro analisa a

legislao imperial para a educao, a partir das suas tendncias mais liberais ou mais

conservadoras, e como o governo central tratava o problema da instruo popular e dos

escravos e libertos assumida como uma demanda social de atendimento inadivel; o segundo

dedicado s reformas da educao e aos atos do governo da Bahia e sua relao com os do

governo central, tanto no Imprio como na Repblica, aprofundando a discusso sobre a

questo da educao dos ingnuos e remidos. Finalmente, o terceiro captulo privilegia a

investigao dos debates e das aes voltadas para a educao popular e a instruo dos ex-

escravos e seus descendentes para alm do crculo oficial; para tanto apresentada a atuao

3

de associaes leigas ou religiosas, polticos, professores, abolicionistas e dos prprios

escravos, ingnuos e libertos, envolvidos no esforo para, superando barreiras ou aceitando as

franquias que lhes eram destinadas, tentarem ampliar seu acesso instruo.

Embora o recorte temporal privilegie o perodo entre 1850 e 1900, a ele no se limita.

Julgou-se significativo retornar ocasio da independncia poltica (1822) e da outorga da

primeira Constituio brasileira (1824), por se entender que esses eventos fazem parte do

processo que envolve a problemtica da educao e da escravido durante todo o Imprio, e

tm uma relao intrnseca com a mesma, incluindo-se nesse contexto o Ato Adicional de

1834 e as reaes por ele provocadas. Do mesma forma, algumas referncias extrapolam o

Oitocentos e, ao tempo em que sugerem a confirmao de pressupostos j estabelecidos a

respeito dos temas abordados, acreditamos que apontam para a possibilidade de investigaes

inovadoras sobre os mesmos.

4

CAPTULO I

AS REFORMAS DO ENSINO NO BRASIL (SCULO XIX)

Em educao, como em tudo, vele o governo e preserve .

Benjamim Constant.

Declarada a independncia poltica que a institua, a Nao brasileira incluiu a questo

da educao nos debates em torno dos problemas nacionais que encaminhou atravs da

Assemblia Constituinte. Reconhecendo o grande atraso em que se encontrava a educao no

Brasil, a Comisso de Instruo Pblica pediu um levantamento dos estabelecimentos de

ensino e das suas condies de funcionamento em todo o Imprio, e props um concurso para

a escolha do melhor e mais completo tratado de educao fsica, moral e intelectual para a

mocidade brasileira . O prprio Imperador D. Pedro I, no discurso inaugural dessa

Assemblia, abordou o problema da instruo pblica, e apontou a necessidade de uma

legislao especial sobre a mesma. 1

Apesar das divergncias polticas em torno da aprovao de uma Constituio que

definisse atribuies entre as instncias de poder que organizariam o novo Estado, parece ter

havido um relativo consenso quanto necessidade de se promover a instruo entre um

nmero maior de cidados. Diversos deputados constituintes se pronunciaram sobre as

condies precrias da instruo em todas as provncias que representavam. Relacionando

educao a liberdade e progresso, Ribeiro de Andrade, membro da Comisso de Instruo,

afirmava que s um povo educado poderia ser realmente livre, rico e bem governado, da a

necessidade de que fosse educada a mocidade brasileira . 2

Essa preocupao generalizada com a instruo popular na Constituinte refletia em

grande parte o pensamento liberal da maioria dos seus componentes. Estes formavam uma

elite parlamentar onde predominavam os bacharis coimbros . Da, segundo Chizzoti, a

retrica exagerada dos discursos prolixos e verbosos, pontuados de arroubos jurdicos e

polticos, e a crena na eficincia das leis para a concretizao dos seus projetos. A ausncia

de clareza nas suas concepes e de unidade de ao em torno de um programa que

contivesse propostas condizentes com a realidade do pas teria levado derrota das pretenses

1 Antnio Chizzotti. A Constituinte de 1823 e a educao. in Osmar Fvero (org.). A educao nas

Constituies brasileiras: 1823-1988. Campinas; So Paulo: Editora Autores Associados, 1996. p. 36. 2 Joo Severiano da Fonseca Hermes. Cem anos de ensino primrio: 1826-1926 . in Congresso, Cmara dos

Deputados. Livro do Centenrio da Cmara dos Deputados: 1826-1926. Braslia, 2003.

5

dos liberais e ao fechamento da Constituinte.3 Para Raymundo Faoro o verdadeiro conflito se

dava entre os prprios liberais, extraviados em duas linhas, os exaltados, que vo at

repblica e federao, e os realistas, que vem no trono o meio de assegurar a conciliao

entre a liberdade e a ordem. extrema direita dos liberais exaltados, opunha-se o grupo dos

absolutistas, interessados em manter a centralizao e o controle do aparelho estatal para

garantia da continuidade dos seus interesses e privilgios sob uma ordem pacfica porque

hierrquica e autoritria. Neste embate, venceram os realistas, que apoiavam D. Pedro I e

defendiam maior concentrao de poderes nas mos do Imperador. 4

A necessidade de um Executivo mais forte era justificada por D. Pedro I e seus

seguidores como forma de enfrentar as foras centrfugas , desagregadoras e

democrticas que, do seu ponto de vista, ameaavam a integridade e a governabilidade da

jovem Nao. Dissolvendo a Assemblia Constituinte e impondo um projeto de Constituio

elaborado sob seu comando, D. Pedro confirmava a sua autoridade, mesmo que a Carta

outorgada a 25 de maro de 1824 pouco diferisse do que fora discutido antes da dissoluo da

Assemblia. Tanto que Antnio Carlos Andrada e Silva, um dos constituintes que

participaram da redao do novo projeto, acusou-o de ser pura cpia do seu texto anterior,

divergindo dele apenas a respeito do elemento federal . 5

Percebe-se na queixa de plgio expressa por Antnio Carlos Andrada a importncia

dada questo da centralizao ou descentralizao do poder, pois situa a principal

divergncia entre os dois projetos na sua proposta liberal de autonomia federativa em

oposio ao rigoroso centralismo da Constituio outorgada. Destaca-se, portanto, a

preocupao com a centralizao do poder nas mos do Imperador. A resistncia a este poder

constitudo autoritariamente permaneceria nos anos seguintes e resultou, cumulativamente a

outras questes que indispuseram grande parte das elites brasileiras contra D. Pedro I, na sua

deposio em 1831, obrigando-o a abdicar em favor de seu filho de apenas cinco anos, D.

Pedro de Alcntara. Somente em 1834, um Ato Adicional modificou a Constituio,

promovendo alguma descentralizao de poderes e dando mais autonomia s Provncias.

Inserida nestes debates sobre centralizao ou descentralizao estava a questo da

educao popular, principalmente da instruo primria, posta em evidncia, como j visto,

desde a instalao da Assemblia Constituinte. J em suas primeiras sesses, no incio de 3 Antnio Chizzoti. in Fvero (org.) A educao nas Constituies..., op. cit., p. 33-35. 4 Raymundo Faoro. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro. So Paulo: Globo, 2000. p.

293. 5 Antnio Chizzotti, op. cit., p. 35.

6

maio de 1823, o deputado Antnio Carlos Andrada Machado, apresentou um projeto de

carter visivelmente descentralizador, no qual propunha maior autonomia aos governos

provinciais, aos quais caberia promover a educao da mocidade. Tal proposta no foi

adiante. Logo em junho, um novo projeto foi apresentado pela Comisso de Instruo Pblica

da Constituinte. Atravs dele propunha-se um levantamento das condies das escolas na

Corte e em todas as provncias do Imprio, bem como a promoo de um concurso entre os

gnios brasileiros , para que apresentassem at o final do ano Assemblia um tratado

completo de educao fsica, moral e intelectual para a mocidade brasileira . Sete cidados

de conhecida literatura e patriotismo, nomeados pela Assemblia escolheriam o melhor

tratado. Seu autor seria reconhecido benemrito da ptria e como tal condecorado com a

Ordem Imperial do Cruzeiro . 6

Cobrada pela demora na apresentao de resultados, a Comisso de Instruo Pblica

desistiu do concurso e optou por acatar um projeto oferecido pelo deputado Martim

Francisco, um dos Andradas, elogiado como um verdadeiro mtodo tanto de ensinar como

de aprender . Esse projeto era uma Memria sobre a Reforma dos Estudos Menores da

Provncia de So Paulo , elaborada por Martin Francisco quando fora presidente daquela

Provncia. Organizava a escolaridade em dois graus, sendo o primeiro grau de instruo

bsica, com durao de trs anos, disponibilizado para toda a Provncia, e o segundo, com

durao de seis anos, somente para a capital. O projeto inspirava-se nos ideais liberais e

iluministas. Martim Francisco recorria s idias de Condorcet para a instruo, vendo-a

como instrumento de liberdade e igualdade, e fonte de moralidade pblica, prosperidade do

Estado e progresso da humanidade, conforme afirmava nas suas justificativas. O elogioso

parecer da Comisso de Instruo concluiu pela aceitao do projeto, lamentando que nunca

tivesse sido adotado em todas as provncias, ou sequer tido divulgao, ao tempo que

recomendava sua impresso. 7

No entanto, as divergncias polticas que envolveram os irmos Andrada impediram a

adoo do projeto de Martim Francisco. Afastados da Constituinte e do poder, fundaram o

jornal O Tamoio, firmando oposio ao Imperador e a sua poltica bem como ao partido

portugus e aos realistas que o apoiavam, o que resultou no seu banimento.8 A Memria

6 Annaes do Parlamento Brazileiro. Assemblia Constituinte, 1823, vol. I, t. 2-4 apud Fvero, A

Constituio...op. cit., p. 35-43. 7 Antnio Chizzotti, A Constituinte de 1823 e a educao . In Favero (org.), op. cit., p. 40-44. 8 A posio poltica dos irmos Andrada simbolicamente declarada ao adotarem para seu jornal o nome

genuinamente brasileiro da tribo indgena historicamente hostil aos portugueses representava bem a reao daqueles que Raymundo Faoro identificou como hostes brasileiras, nativistas e xenfobas . Alis, atitude

7

de Martim Francisco, considerado por Antnio Chizzotti o mais ambicioso e sistematizado

programa de instruo pblica formulado naquele perodo, saiu dos debates da Constituinte

sem nem chegar a ser impressa, como recomendara a Comisso.9

Segundo Chizzotti, um outro fato que prejudicou o intento de um plano geral para a

educao, relegando-o a um segundo plano, foi o debate que se deu em torno da criao de

universidades. Inicialmente, previa-se a criao de duas universidades, uma no norte e outra

no sul do pas. Em 19 de agosto a Comisso de Instruo apresentou um projeto de lei

Assemblia, decretando a criao de uma universidade na cidade de Olinda e outra na de So

Paulo. No entanto, a partir da os debates em torno da localizao e do nmero de

estabelecimentos superiores de ensino se intensificaram. Nestes, o que se viu foi a disputa de

interesses paroquiais pelos representantes de cada provncia, que buscavam justificar, sob os

mais surpreendentes argumentos, as vantagens da localizao de uma das universidades em

seu territrio. A disputa maior era entre So Paulo, Rio de Janeiro (na Corte), Bahia e Minas

Gerais, mas praticamente todas as provncias se envolveram na questo, sem no entanto

conseguirem redefinir as localizaes propostas no projeto, sancionado em 4 de novembro de

1823, pouco antes da dissoluo da Assemblia Geral Constituinte e Legislativa, ocorrida oito

dias depois.10

No do escopo desse trabalho o estudo da instruo superior no Brasil e na Bahia, no

sculo XIX. Nossa proposta se restringe instruo primria. Porm, a compreenso das

questes relativas a esta indissocivel das que dizem respeito quela. De uma anlise

conjunta das discusses naquele perodo em torno desses dois nveis de ensino que, achava-

se, deveriam ser interdependentes e complementares, o que se depreende que a opo pela

forma excludente e hierarquizante, foi estabelecida desde sempre, e a partir das primeiras

tentativas de criao e implantao de um sistema organicamente estruturado de instruo

pblica no Brasil, desprezando propostas igualitrias, embora seletivas e meritrias, do

iderio liberal tantas vezes evocado.

Isto posto, importante notar como os debates em torno da instruo na Constituinte,

nacionalista ento comum entre muitos brasileiros e at entre alguns portugueses naturalizados, que adotaram nomes ou sobrenomes indgenas ou da fauna, flora e geografia nativas como forma de identidade oposta lusitana. No entanto, tal oposio s tendncias absolutistas e s simpatias lusitanas do jovem imperador no impediu a dissoluo da Assemblia Constituinte e a outorga da Carta de 1824, com o governo concentrado, arbitrariamente, nas mos de D. Pedro I , o que esfriou as tenses e arrefeceu o mpeto liberal . Ver Faoro, op. cit., p. 293.

9 Antnio Chizzotti, in Fvero (org.), op. cit. p. 40. 10 Id., ibd., p. 44-50.

8

tida como majoritariamente liberal, se deslocam da educao primria para a superior. Note-

se que, mesmo um projeto para a instruo primria como o de Martim Francisco, cuja

excelncia os prprios constituintes reconheciam e que propunha uma gradualidade por si s

seletiva, bem de acordo com as exigncias para alcanar o nvel superior, foi relegado a uma

posio marginal e abandonado em favor da discusso sobre a criao das universidades. O

carter talvez sutilmente ameaador da proposta implicitamente descentralizadora do projeto

de Martim Francisco no parece ser suficiente para justificar seu deslocamento para um

segundo plano ou posterior abandono. Mesmo os conflitos polticos que resultaram na queda

dos Andradas no tornavam imperativa essa opo, haja vista que eles no foram

impedimento para os intensos e amplos debates em torno da criao e da localizao das

universidades, mantidos praticamente at a dissoluo da Constituinte. O que se deduz de

tudo isso que houve a opo por uma educao elitista, estabelecida pelas e para as elites

nacionais, opo que ser motivo de inmeras reclamaes, propostas e tentativas de reformas

no campo educacional brasileiro, que aconteceram de modo recorrente durante todo o perodo

Imperial, e mesmo alm dele.

Assim que, o projeto para o ensino superior precedeu e se sobreps em ateno e

interesse, no mbito da Constituinte, aos projetos para a ampliao da educao fundamental.

O reconhecimento da necessidade de um plano geral para a instruo em todo o Imprio no

foi suficiente para que a Comisso a ela dedicada fosse alm da escolha e premiao de uma

proposta considerada previamente como ideal. Nem sequer se discutiu, ainda que

superficialmente, sobre quais seriam os meios concretos de sua execuo. A este respeito,

Chizzotti comenta:

A necessidade de um plano geral esteve presente Comisso de Instruo que, para

isso, solicitara providncias relativas instruo pblica . Os Constituintes,

porm, foram incapazes de traar as diretrizes fundamentais da instruo pblica,

derivando para inmeras questinculas sobre a premiao a ser dada ao autor do

Tratado . [...] Uma nica interveno discute tangencialmente o contedo do

projeto. As 14 emendas apresentadas tambm derivaram em discursos redundantes e

justificativas singelas em torno da forma, da necessidade e do modo de premiao

do autor. [...] No foram propostas diretrizes, nem traadas orientaes,

contentando-se com uma proposio pfia de motivar algum, mediante premiao,

9

de elaborar um tratado de educao para a mocidade.11

A seu ver, esses fatos demonstram que os membros da Constituinte no tinham um

projeto para a instruo pblica, evidncia difcil de ser refutada. A nica interveno que

discutiu tangencialmente o contedo do projeto e que poderia ter levado a que algo fosse feito

pela educao nacional, foi a do constituinte Carvalho e Mello, na sesso de quatro de agosto

de 1823. Alm de requerer a urgncia e utilidade do Tratado de Martim Francisco para a

instruo primria, esse deputado propunha:

Depois de estabelecida a necessidade de haver um bom plano de educao,

adaptado s nossas circunstncias, convm que este se regule por uma maneira

convinhvel ao estado de falta de luzes em que nos achamos, e nenhum meio

mais conducente a esse fim do que procurar conseguir um plano geral, que abranja

todas as regras da educao pblica e par ticular , que se dem preceitos para a

educao fsica, e para a literria, que se reduza o ensino quelas matr ias, que so

prpr ias da idade em que se acharem os educandos; e que afinal em colgios se

ensinem as cincias maiores, e as artes liberais. [destaques nossos] 12

Em setembro de 1823, quando o debate sobre as universidades j superara a discusso

em torno do Tratado , o Projeto de Constituio apresentado Constituinte, que no se

consumou, continha a seguinte proposta para o sistema educacional:

Art. 250 Haver no Imprio escolas primrias em cada termo, ginsios em cada

comarca e universidades nos mais apropriados locais.

Art. 251 Leis e regulamentos marcaro o nmero e a constituio desses teis

estabelecimentos.

Art. 252 livre a cada cidado abrir aulas para o ensino pblico, contanto que

responda pelos abusos. 13

Era sem dvida um projeto ambicioso. O grande nmero de localidades sem escolas, a

11 Antnio Chizzotti, in Fvero, op. cit., p. 41-43. 12 Anaes do Parlamento Brazileiro. Assemblia Constituinte, 1823. apud Chizzotti, in Fvero, op. cit., p. 42. 13 Congresso. Cmara dos Deputados. Livro do Centenrio da Cmara dos Deputados: 1826-1926. Braslia,

2003. p. 466.

10

carncia de recursos materiais e humanos, aliados pouca vontade poltica para implement-

lo, como ficou demonstrado nos debates na Constituinte, eram barreiras dificilmente

superveis. Confirmando, talvez, a sua tendncia descentralizadora, transferia-se para a

legislao complementar, includa a provavelmente a das provncias, a competncia para

definir a quantidade e qualidade dos meios que garantiriam a universalizao, ao menos

geogrfica, da instruo. Ao mesmo tempo, estimulava-se o exerccio do princpio liberal da

livre iniciativa tambm nesse campo, presumindo-se uma responsabilidade e uma

competncia do indivduo empreendedor convenientemente vigiado pelo Estado.

Dissolvida a Assemblia Constituinte esse projeto virou letra morta. No entanto, os

princpios embutidos nos artigos citados permaneceram como inspirao para os debates em

torno da instruo e em outros tantos projetos que surgiram para resolver o problema

educacional do pas, ao longo de todo o perodo Imperial. Tanto que, j em 1827 uma lei

retomava a prescrio do artigo 250 do projeto de 1823, medida que pode ser considerada

complementar s determinaes da Constituio sobre a instruo pblica .

No que se referia educao, a Carta outorgada em 1824, acusada de plgio por

Martim Francisco, foi bem mais sucinta do que seu original , o Projeto de setembro de 1823.

No seu artigo 179, que tratava da garantia da inviolabilidade dos direitos civis e polticos

dos cidados brasileiros, que tem por base a liberdade, declarava apenas que A instruo

primria gratuita a todos os cidados , e que existiriam Colgios e universidades onde

sero ensinados os elementos das Cincias, Belas Artes e Letras . 14

Erigia-se a instruo primria como um direito do cidado e um dever do Estado.

Firmado em Lei o estatuto da gratuidade, somente dcadas depois a segunda parte da frmula

regulamentar que tentava garantir a sua universalidade a obrigatoriedade seria posta em

discusso. Note-se que, coerente com o conceito de cidado ento vigente, estavam excludos

do benefcio constitucional de acesso educao os escravos. Mesmo assim, foi preciso que

esse critrio de excluso se tornasse explcito na legislao complementar para barrar a

presena da criana escrava na escola pblica, o que indica a existncia de tentativas

contrrias. Com isso pretende-se afirmar que a busca por instruo, patrocinada por algum

senhor benevolente ou interessado em possuir um escravo que soubesse ler, escrever e

contar , existiu, por menor que tenha sido.

Diludos entre os muitos incisos das Disposies Gerais do texto constitucional que

14 Senado Federal e Ministrio da Cincia e Tecnologia. Constituies brasileiras: 1824. Braslia: CEE, 2001.

11

tratavam dos Direitos Civis e Polticos dos cidados brasileiros , os preceitos educacionais,

como outros com eles listados, no seriam cumpridos, ao menos na extenso que sua

generalidade sugeria. O tratamento preferencial dado na Constituinte ao debate em torno do

ensino superior sobreviveu sua dissoluo. Quanto universalizao da gratuidade para a

educao primria, [...] genericamente proclamada e candidamente outorgada na

Constituio, no derivou de interesses articulados e reclamos sociais organizados, e foi

inserida no texto mais como um reconhecimento formal de um direito subjetivo dos cidados

que uma obrigao efetiva do Estado . 15

Em 1826, o Imperador convocou as Cmaras, eleitas h dois anos. Reaberta em junho

de 1827 a Assemblia Geral voltou a discutir a educao nacional, criando a Comisso de

Instruo Pblica da Cmara dos Deputados. Logo foi submetido apreciao do plenrio um

projeto de lei do Cnego Janurio da Cunha Barbosa que propunha um sistema de ensino

integrado para o pas, no final reduzido a duas leis: uma, de 11 de agosto, criou os cursos

jurdicos de So Paulo e Olinda; a outra, depois de muitas emendas, foi aprovada em 15 de

outubro, regulamentando o ensino primrio e determinando a criao de escolas de primeiras

letras em todas as cidades do pas.

Cabe observar que a lei de 15 de outubro de 1827 resgatou em parte a proposta

apresentada Constituinte quatro anos antes por Martin Francisco. O novo texto legal

manteve a recomendao da criao das escolas de primeiras letras que fossem necessrias,

mas agora no s em todas as cidades como tambm nas vilas e lugares populosos. Competia

aos Presidentes dos Conselhos Provinciais, ouvidas as Cmaras Municipais, determinar o

nmero e a localizao dessas escolas, bem como fiscaliz-las.16 Nelas deveria ser ensinado

a ler e escrever, as quatro operaes de aritmtica, prtica de quebrados, decimais e

propores, as noes mais gerais de geometria prtica, a gramtica da lngua nacional e os

princpios da moral crist e da doutrina da religio catlica romana, proporcionados

compreenso dos meninos; preferindo para as leituras a Constituio do Imprio e a Histria

do Brasil . A lei inovava ao criar escolas para meninas, regidas por professoras e ainda

15 Chizzotti, in Fvero, op. cit., p. 53. 16 Os Conselhos Gerais de Provncia foram criados pela Constituio de 1824, que lhes determinou a forma de organizao e suas atribuies, essas bastante limitadas. Competia-lhes, em ltima instncia, transformar em projetos de lei e submeter aprovao da Cmara as resolues dos Conselhos Provinciais. No seu recesso, o Imperador decidia se mandava execut-las ou suspend-las provisoriamente. Na verdade, o rigor centralista da Constituio sobrepunha-se s possibilidades da ao provincial sobre seu prprio sistema educacional. Aos Conselhos competia apenas apresentar propostas, que poderiam ser aceitas ou no. s Cmaras cabia somente a fiscalizao das escolas. Essas competncias, portanto, no significavam de fato maior autonomia provincial e municipal para legislar e atuar sobre a instruo no seu territrio.

12

determinava que:

Art. 4 As escolas sero de ensino mtuo nas capitais das provncias, e o sero

tambm n as cidades e vilas e lugares populosos delas, em que for possvel

estabelecerem-se.

Art. 5 Para as escolas do ensino mtuo se aplicaro os edifcios que houverem

com suficincia nos lugares delas, arranjando-se com os utenslios necessrios

custa da Fazenda Pblica; e os professores que no tiverem a necessria instruo

deste ensino iro instruir-se em curto prazo, e custa dos seus ordenados, nas

escolas das Capitais.17

Apesar da escravido e do predomnio da lavoura escravista, procurava-se colocar o

pas em sintonia com o mundo industrializado. No incio do sculo XIX o Mtodo do Ensino

Mtuo ou Lancasteriano espalhara-se em alguns pases europeus, no Canad e nos Estados

Unidos e era considerado como o mais novo e revolucionrio mtodo de ensino, capaz de

multiplicar a disponibilidade de instruo por ser o meio mais rpido e eficaz de ampli-la

gratuitamente, como, alis, visava a Constituio de 1824.18 Na escola lancasteriana, as

classes eram organizadas em grupos de alunos, as decrias, cada uma orientada por um aluno

mais adiantado tirado da classe superior, os decuries. Dessa forma, garantia-se o efeito

multiplicador na transmisso dos conhecimentos, calculando-se que cada escola podia abrigar

at 500 alunos sob a direo de um s professor. 19

A forma de aprendizagem do mtodo de Lancaster era a repetio mecnica e

cadenciada para memorizao das lies. O mtodo era de um rigor cientfico , e cada

detalhe era pensado e planejado para garantir o mximo de vantagem econmica de tempo,

espao, materiais e contedos. Os prdios onde funcionariam as escolas deveriam se adequar

a esse rigor, bem como a movimentao dos alunos neles. Tudo deveria funcionar em perfeita

ordem e disciplina. Acreditava-se na caracterstica universal desse mtodo, capacitando-o a

ser aplicado em qualquer pas que necessitasse dar instruo a um grande nmero de seus

cidados, preparando-os para a vida e o trabalho ordeiro e disciplinado. Seu objetivo era

preparar as classes menos favorecidas para o exerccio de atividades s quais estavam

destinadas, os ofcios manuais e mecnicos, proporcionando-lhes apenas uma educao 17 Ana Maria Moura Lins. O mtodo Lancaster: educao elementar ou adestramento? Uma proposta para

Portugal e Brasil no sculo XIX . in Maria Helena Cmara Bastos e Luciano Mendes de Faria Filho (orgs.) A escola elementar no sculo XIX: o mtodo monitorial/mtuo. Passo Fundo: Edupf, 1999, p. 80.

18 J havia uma experincia oficial com o mtodo lancasteriano no Brasil pois, em maro de 1823, o governo imperial criara uma escola desse tipo na Corte, para servir de modelo s demais que se instalassem pelo pas.

19 Lins, in Bastos e Faria Filho (org.), op. cit., p. 78.

13

primria ou elementar, uma vez que no se previa ou desejava seu acesso ao estudo das

cincias abstratas.

Ao analisar o mtodo de Lancaster e sua adoo no Brasil, Ana Maria Moura Lins

destaca sua ideologia inspirada no liberalismo de Adam Smith e em oposio, por exemplo,

ao pensamento de Comnius quanto explorao ilimitada da capacidade humana atravs da

educao. Nesse sentido, o mtodo lancasteriano no seria de educao, mas de adestramento.

Quanto sua introduo e aplicabilidade no Brasil, essa autora relativiza as crticas

supostamente feitas pela historiografia, e segundo as quais tal adoo seria apenas uma

simples transposio de solues estrangeiras para os problemas nacionais. Da afirmar que:

O mtodo foi introduzido no Brasil atravs da Carta de Lei de 15 de outubro de

1827. O carter oficial da proposio, divulgao e institucionalizao desse mtodo

d conta de sua extenso espacial e temporal. A Carta de 1827 representa as

primeiras medidas regulamentares para a educao do novo imprio do Brasil Ao

contrrio do que afirmam os historiadores, a orientao proposta nessa carta

fundamentada no mtodo Lancaster representa uma orientao segura, objetiva e

moderna para uma sociedade mergulhada no mais profundo obscurantismo

intelectual [...].

O artigo 1, ao defender a obrigatoriedade da criao de escolas de primeiras letras

em todas as vilas, cidades e lugares mais populosos ir encontrar uma ordem social

secularmente caracterizada por uma profunda distncia entre os diversos segmentos

sociais. 20

Ou seja, a seu ver o governo imperial e as elites que o apoiavam eram coerentes em

adotar o mtodo, diante da reconhecida indigncia do ensino no Brasil e da necessidade de

preparar futuros cidados, dceis e disciplinados, para a nao que se fundava, sem que

houvesse alterao da ordem social vigente nem interferncia na diviso social do trabalho.

Portanto, possvel afirmar que na sua origem o mtodo lancasteriano se apresentava como

um resgate da classe operria preparando-a para setores produtivos com crescente demanda

por mo-de-obra cada vez mais capacitada para o desempenho de novas funes e educada

para execut-las de modo disciplinado e ordeiro, uma mo-de-obra docilmente submissa.

Contudo, no Brasil do incio do Oitocentos, a sua aplicao visava mais a educao do

cidado para torn-lo docilmente conformado ao seu lugar social, e no a instruo para o

20 Lins, in Bastos e Farias Filho (orgs.), op. cit. p. 88-89.

14

trabalho, pelo menos o trabalho nos moldes das sociedades que viviam a plena ascenso do

capitalismo industrial. Talvez isso explique, em parte, o insucesso da sua aplicao aqui e,

apesar disso, a sua permanncia extra-oficial como prtica pedaggica em muitas escolas

durante todo o sculo XIX. 21

No haveria, aparentemente, um problema de inadequao em adotar um mtodo de

educao, dirigido s sociedades industriais e suas relaes capitalistas de trabalho centradas

na mo-de-obra livre, em uma sociedade agrrio-comercial e escravista, dependente da mo-

de-obra escrava. Aqui no Brasil seu objetivo de oferecer educao adequada para as classes

menos favorecidas era exeqvel, uma vez adaptado s limitaes estruturais, principalmente

as de ordem econmica relativas indisponibilidade de recursos pelo Estado. Porm, a

aplicabilidade do mtodo inevitavelmente esbarraria nos limites impostos na prpria estrutura

escravista da sociedade brasileira. A sociedade e o Estado, atravs da legislao e a partir da

prpria Constituio, talvez pretendessem dar conta dessa contradio, quando instituam e

legitimavam uma nao tanto de cidados como de no-cidados, ou seja, de livres e

escravos, procurando garantir e ampliar o acesso instruo para aqueles, enquanto a esses

era negado.

O mtodo de ensino mtuo no resultou nas vantagens esperadas. Sucessivos

Ministros do Imprio, desde Campos Vergueiro, em 1833, a Bernardo Pereira de

Vasconcelos, em 1835, reconheceram seu resultado muito aqum das expectativas, embora

sem lhe identificar as razes. O mesmo insucesso ocorreu na Europa. No Brasil o mtodo

lancasteriano deixou de ser adotado oficialmente pelo Governo, mas continuaria sendo

utilizado na prtica. Joo Severiano da Fonseca Hermes, deputado federal em 1926,

testemunha que, em Lenis, na Bahia, no fim da Monarquia, ainda estudou em uma escola

pblica com decrias e decuries. 22

Cabe dizer, no entanto, que no foi s o mtodo de ensino mtuo que no deu certo. A

prpria Lei de 1827 no alcanou seus objetivos de criar um sistema de ensino, ampliar o

acesso escola para a populao livre, e melhorar a instruo popular, mesmo com a tentativa

de aplicao do mtodo do ensino mtuo. Talvez por isso o Ato Adicional de 1834, visando

21 Sobre a aplicao do mtodo Lancaster ou do ensino mtuo no Brasil, ver Ana Maria Moura Lins, op. cit.;

Ana Maria Arajo Freire. Analfabetismo no Brasil: da ideologia do corpo ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguau), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolnias e Grcias at os Severinos. So Paulo: Cortez; Braslia, DF: INEP, 1989. Primitivo Moacyr. A instruo e o Imprio: 1823-1855. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.

22 Hermes, op. cit. p. 467-468.

15

abrandar o carter centralizador da Constituio, concedeu mais autonomia relativa s

provncias: substituiu os Conselhos Gerais pelas Assemblias Legislativas Provinciais, e

transferiu para as mesmas a competncia para legislar sobre instruo pblica e promov-la,

o que no inclua as faculdades de medicina, os cursos jurdicos e as academias. Ou seja, o

Ato descentralizava o ensino primrio e secundrio, deixando ao Governo Central a obrigao

de cuidar exclusivamente do ensino superior em todo o pas e do ensino primrio e secundrio

apenas no Municpio Neutro, ou da Corte. 23

A descentralizao educacional definida no Ato Adicional logo foi alvo de crticas.

Questionava-se o carter privativo da competncia das Assemblias Provinciais para

legislarem sobre a matria, e se cobrava a participao efetiva do Governo Central na

promoo do ensino primrio e secundrio nas provncias, debitando-se sua absteno

grande parte do atraso em que se encontrava a instruo no Brasil. Essa discusso se

prolongou por todo o Segundo Reinado, envolvendo tambm seus Ministros, muitos dos quais

reconheciam aquela necessidade de interveno, e reprovavam tamanha descentralizao

nesse campo. Surgiram vrias propostas de mudana, prontamente combatidas, que no

avanaram.

No entanto, debitar descentralizao os males da instruo pblica no Brasil imperial

certamente desviava a ateno de uma causa bem mais plausvel: analisando tais condies de

atraso, fato reconhecido e denunciado pelos prprios ministros do Governo e por muitos

membros do parlamento nacional, Newton Sucupira aponta como causa desse fracasso no

a descentralizao que o Ato Adicional decretara, mas a omisso das classes dirigentes, o

seu desinteresse pela educao popular .24 Isso se evidencia quando, consultando-se a Lei de

1834 constata-se que a resistncia dessas classes s mudanas no se justificaria apenas pelos

limites de competncia definidos no Ato, uma vez que podiam ser revistos e ampliados pela

simples interpretao dos dispositivos da Lei. Exemplo disso o que previa e autorizava o seu

artigo 25: No caso de dvida sobre a inteligncia de algum artigo desta reforma, ao Poder

Legislativo Geral compete interpret-lo . 25

Sobre essa flexibilidade do Ato Adicional e o desinteresse das classes dirigentes em

23 Brasil. Constituio (1824). Constituies brasileiras: 1824. Braslia: Senado Federal, 2001. 24 Newton Sucupira. O Ato Adicional de 1834 e a descentralizao da educao . in Omar Fvero. A

educao nas constituintes brasileiras: 1823-1988. Campinas, So Paulo: Editora Autores Associados, 1996. p.66.

25 Otaciano Nogueira. Lei n. 16 de 12 de agosto de 1834 Ato adicional , in Senado Federal. Constituies brasileiras: 1824. Brasilia, 2001.

16

utiliz-la Newton Sucupira afirma que a Assemblia Geral jamais tomou a iniciativa de

oferecer uma interpretao liberalizante do dispositivo descentralizador , j que era parte e

representava as elites de uma sociedade patriarcal, escravagista [...], num Estado

patrimonialista dominado pelas grandes oligarquias do patriciado rural [...] . A essas

oligarquias interessaria o ensino superior, a fim de preparar os prprios quadros polticos e

profissionais para a continuidade do seu domnio e a manuteno da sua ideologia poltica e

social conservadora e excludente. A instruo popular estaria relegada a um segundo plano,

uma vez que a consideravam pouco importante. 26

Dessa forma, sem possuir uma diretriz comum para todas as provncias, o sistema de

educao nacional era mantido ao sabor dos recursos e dos interesses do governo de cada uma

delas que, na melhor das hipteses, terminavam por tentar reproduzir a organizao do

sistema de instruo pblica da Corte. No caso da instruo secundria, diversas provncias

tentaram seguir o exemplo do Colgio Pedro II, fundado na Corte em 1837, como escola

oficial modelar. Mas apesar das tentativas nesse sentido, em nenhuma regio se chegou a um

sistema escolar considerado satisfatrio. No admira que entre as dcadas de 1830 e 1880

sucessivos relatrios dos Ministros do Imprio tenham apontado as deficincias da educao

nacional e sugerido medidas visando super-las. As crticas eram muitas: havia poucas

escolas; as casas onde elas funcionavam eram inadequadas, prejudicando inclusive a

aplicao do mtodo de ensino mtuo; a maioria dos professores era mal preparada; a

fiscalizao era ineficiente, inclusive a das escolas particulares, muitas no autorizadas; pais e

tutores no mandavam seus filhos escola.

Estas eram, entre outras, as principais e mais repetidas queixas. Quanto s solues

para os problemas levantados, os relatrios ministeriais sugeriam medidas pontuais que

resultavam em aes limitadas do Governo atravs de pequenas reformas as quais no

abrangiam todo o sistema educacional e no produziam mudanas significativas de fato.

Desses relatrios, somente o do ministro Jos da Costa Carvalho, Visconde de Porto Alegre,

em 1850, propunha a organizao de um plano geral de instruo e a criao de uma comisso

para analis-lo, como soluo para os problemas repetidamente apontados. 27

Em 1851, o governo central realizou uma avaliao do ensino das aulas pblicas e

colgios particulares, executada por Justiniano Jos da Rocha, que chegou a concluses

bastante duras no sumrio do seu relatrio. Nele indicou uma srie de problemas que, por

26 Newton Sucupira. O Ato Adicional de 1834 e a descentralizao da educao , in Fvero, op. cit., p. 65. 27 Id., p. 52-57.

17

afetarem os mltiplos aspectos inerentes educao e mostrarem um amplo panorama das

condies do sistema de ensino nacional, merecem ser comentados.

Justiniano da Rocha criticou a qualidade do mtodo de ensino adotado por aquelas

escolas, considerando-o ineficiente por ser aligeirado e por demais confiante na capacidade

de reflexo e de raciocnio do aluno, descuidando da memorizao do que lhe era ensinado.

Condenou o relaxamento do ensino da lngua e da literatura nacionais, enquanto maior

cuidado era dedicado ao estudo das lnguas francesa e o inglesa, inclusive adotando-se livros

escritos nessas lnguas estrangeiras. Coerente com essa preocupao nacionalista, denunciou a

predominncia de estrangeiros na direo dos colgios, pois, segundo ele, poucos eram

brasileiros, sendo alguns franceses e a maioria portugueses. Denunciou o acmulo de funes

desses diretores que tambm ensinavam em uma ou mais escolas. Quanto aos professores,

apesar da sua dedicao missionria, os vencimentos insignificantes no lhes serviam de

estmulo e nem sequer eram suficientes para pagar a locao das casas onde davam aula.

Com relao organizao interna e administrao dos colgios, o relatrio de

Justiniano da Rocha apontou a dificuldade de encontrar pessoal auxiliar de qualidade para

controlar os alunos ou para atender aos servios domsticos, prestados por escravos que no

eram considerados bons criados. Tambm lamentou a promiscuidade entre alunos internos

e externos e em regime de semi-internato. Estabelecimentos com esses regimes eram comuns

na poca e tenderam a aumentar enquanto a disponibilidade de ensino tido como de melhor

qualidade se concentrou nas capitais e cidades maiores. Referiu-se ainda ao crescimento do

nmero de escolas particulares, tendncia que se acentuaria a partir da dcada de 1860 at a

de 1880. Tambm chamou a ateno para a presena de alunos pobres que freqentavam

gratuitamente muitos desses estabelecimentos. 28

Tratando dos colgios particulares, Justiniano da Rocha os descreveu como escolas

diferenciadas. Segundo ele, tais instituies de ensino: j no adotavam mais o mtodo

lancasteriano, da memorizao e repetio, preferindo a reflexo e o raciocnio; mantinham

alunos internos, motivo de condenada promiscuidade; nelas a quantidade e o nvel social

dos alunos, provavelmente, exigiam servios domsticos de qualidade, dos quais se reclamava

que os escravos no davam conta. Cabe destacar que essas escolas, ento comuns

principalmente nas capitais das provncias, eram voltadas para a educao dos filhos das elites

28 Segundo Primitivo Moacyr, Justiniano da Rocha apresentou um elenco de sugestes para a soluo desses

problemas que seriam incorporadas Reforma da Instruo Pblica decretada em 1854, pelo ento Ministro do Imprio, o conselheiro Pedreira do Couto Ferraz. Primitivo Moacyr, apud Freire, op. cit., p. 89-90.

18

e das pessoas de mais recursos. A sua proliferao sugere que deviam dar aos seus

proprietrios, alm de prestgio social, um retorno financeiro melhor do que o de mestre-

escola pago pelos cofres pblicos. Alm disso, na medida em que o poder pblico no dava

conta de ampliar o nmero de escolas, sua disseminao estava de acordo com o princpio

liberal que a prpria lei sancionava, permitindo que qualquer cidado idneo estabelecesse

sua escola, apenas submetendo-a a fiscalizao do Estado. 29

Esses colgios podiam ser propriedade pessoal, geralmente de algum professor

conceituado e que dispunha de recursos para instalar e dirigir seu prprio estabelecimento de

ensino. Ou ento, eram mantidos por instituies filantrpicas, sob a direo de congregaes

religiosas. Os primeiros s vezes admitiam gratuitamente alunos pobres. Os filantrpicos,

destinados a acolher crianas rfs ou desamparadas, costumavam manter tambm alunos,

principalmente alunas, pensionistas e semi-pensionistas, medida que contribua para sua

manuteno. E, surpreendentemente, podiam at acolher crianas escravas ou filhas de

escravos, a exemplo da Casa da Providncia, mantida pela Associao das Senhoras da

Caridade em Salvador, da qual se falar adiante.

Tambm em 1851, a Secretaria dos Negcios do Imprio encarregou Antonio

Gonalves Dias da misso de examinar com o maior cuidado todos os estabelecimentos

destinados ao ensino e educao da mocidade, sejam pblicos ou particulares, com exceo

somente da Academia Jurdica de Olinda e da Escola de Medicina da Bahia . Essa

investigao foi dirigida para as principais Provncias do Norte, assim compreendidas as do

Par, Maranho, Cear, Rio Grande [do Norte], Paraba, Pernambuco e Bahia, devendo

apontar, em detalhes e sem nada omitir, a real situao do ensino e da educao naquelas

provncias. Cabia-lhe, tambm, subsidiar o governo a tomar providncias para promover o seu

melhoramento e progresso, propondo medidas que julgasse necessrias para esse fim. Seu

relatrio, apresentado um ano depois, traa um panorama muito rico da instruo naquelas

regies, o qual no era muito distinto, como afirma o prprio autor, do que ocorria no restante

do pas. A ele recorreremos outras vezes, mas agora interessa apresentar uma recomendao 29 A preocupao de Justiniano da Rocha com o nmero de escolas particulares provavelmente se justificava

pela proporo dessas em relao s escolas pblicas, indicando a deficincia do Estado no cuidado com a educao popular, o que no parece ter melhorado com o tempo. Quase duas dcadas depois, um relatrio do conselheiro Paulino Jos Soares de Souza sobre a situao do ensino no pas indicava que havia 969 escolas particulares e 2 567 escolas pblicas primrias em todas as provncias, enquanto no ensino secundrio a relao era de 378 particulares para 104 pblicos. Apesar da carncia de dados estatsticos sobre o ensino nesse perodo, esses nmeros , embora incompletos e aparentemente incoerentes com relao algumas provncias, do uma idia aproximada do quadro da instruo pblica e particular no Brasil naquele perodo. Ver Jos Ricardo Pires de Almeida. Instruo pblica no Brasil (1500-1889): histria e legislao. Traduo de Antnio Chizzotti. So Paulo: EDUC, 2000. p. 120.

19

expressa feita por Gonalves Dias a respeito da situao do escravo frente educao. Nesse

sentido, afirmava no seu relatrio;

Concluirei fazendo observar que duas grandes classes da nossa populao no

recebem ensino, nem educao alguma os ndios e os escravos. No antigo

regime era costume criarem-se cadeiras primrias nas localidades, em que se

estabeleciam ndios novamente convertidos. Se nos no convm ir procurar novos

ndios s florestas para converter e civilizar, nem mesmo olharmos de perto para a

instruo dos aldeados, de necessidade atendermos ao menos a essa outra classe,

que entremeada com a populao livre, tem sobre ela uma ao desmoralizadora,

que no procuramos remediar. 30

Considerando uma questo de convenincia proporcionar ou no educao aos ndios,

Dias defendia a necessidade de estend-la outra grande classe , a dos escravos, sobretudo

por reconhecer sua influncia perniciosa sobre a sociedade de ento. Por isso, recomendava:

Quero crer per igoso dar -se-lhe instruo; mas por que no se h de dar uma

educao moral e religiosa? No ser necessr io prepar-los com muita

antecedncia para um novo estado a ver se evitamos per turbaes sociais, que

semelhantes atos tm produzido em outras partes, ou quando o reivindicam por

meios violentos ou quando o governo imprudentemente generoso os surpreende

com um dom intempestivo? Centenas de escravos existem por esses sertes, aos

quais se falta com as noes as mais smplices da religio e do dever, e que no

sabem ou no compreendem os mandamentos de Deus. Educ-los, alm de ser um

dever religioso, um dever social, por que a devassido de costumes, que neles

presenciamos, ser um invencvel obstculo da educao da mocidade. [nfases

nossas]. 31

O relatrio de Gonalves Dias certamente revela no s o seu pensamento, mas

tambm o da maior parte da sociedade da poca, inclusive o de autoridades do governo, que

viam o escravo como elemento corruptor da mocidade, e potencialmente perigoso porque

era naturalmente embrutecido pela condio do cativeiro. Pensamento que persistiu at a

30 Dias, apud Almeida, Histria da Instruo..., op. cit., p. 336-375. 31 Id., ibd.,. p. 336-375.

20

Abolio e, sob certos aspectos, mesmo aps o fim do escravismo. Por outro lado, a proposta

de educar para regenerar nos leva a indagar sobre o que foi feito, ou porque deixou de ser

feito, no sentido de proporcionar educao aos escravos e, por extenso, aos libertos. Alm

disso, deixa no ar a questo de como teriam reagido esses sujeitos quando, de uma forma ou

de outra, perceberam a existncia dos debates que inevitavelmente ocorriam em torno de tais

proposies.

Observe-se que a preocupao de Gonalves Dias com relao aos escravos no era s

por representarem um perigo para a manuteno da moral e dos bons costumes da

populao livre, mas por constiturem uma ameaa estabilidade social em decorrncia dos

processos de conquista da liberdade. Processos que, violentos ou pacficos, tendiam a se

avolumar e culminariam no previsto, mesmo que julgado remoto, fim da escravido. Portanto,

era necessrio faz-los aprender a ser livres, civilizando-os atravs da educao para que

pudessem conviver na sociedade sem corromp-la com a sua propalada devassido de

costumes.

Apesar do foco da sua inquietao ser os escravos, deduz-se que, implicitamente, ela

se estendia aos libertos, como Dias mesmo sugere ao propor que os cativos fossem preparados

para um novo estado , ou seja, o estado de liberdade que aqueles j gozavam. Era preciso

que o Governo se antecipasse em dar educao s crianas escravas, e mesmo aos escravos

adultos, flexibilizando a legislao que at ento exclura do direito de freqentar a escola

pblica esse imenso contingente de potenciais futuros cidados. Quanto aos libertos crioulos,

reconhecidos como cidados brasileiros desde a Constituio de 1824 e como tal aptos a

usufrurem desse direito, motivos que iam das prprias condies de sobrevivncia a pouca

disponibilidade de escolas deviam dificultar-lhes o acesso que a Lei no impedia. De todo

modo, libertos sem instruo no eram excees que chamassem a ateno em uma sociedade

cuja populao livre era tambm predominantemente analfabeta.

Gonalves Dias deixa claro que sua preocupao no era dar instruo, para ele uma

arma perigosa se colocada nas mos do escravo. Importante e necessrio era dar-lhe uma

educao moral e religiosa, essa sim capaz de conform-lo a uma existncia social

determinada em ltima instncia no pela igualdade de direitos e oportunidades, mas pela

permanncia das desigualdades e privilgios, garantidos por uma formao que rejeitasse o

conflito como meio de super-los. Ora, tornar possvel essa educao deixara de ser apenas

um dever religioso para se tornar um dever social de proporcionar aos escravos uma

21

educao escolar mnima, como fora dada aos ndios acolhidos nas escolas das ordens

religiosas onde aprendiam, alm da religio, as primeiras letras.

Dias sugere que a ao regeneradora da educao deveria se estender a todas as

classes, inclusive aos escravos, sem o que a prpria classe livre tambm no se recuperaria

da influncia perniciosa da escravido, ou melhor, do escravo. Ainda segundo ele, para ser

alcanado esse objetivo era preciso encarar como um dever religioso a obrigao de buscar e

proporcionar educao, o que s seria realizvel por um acordo entre o pai, o pastor e o

mestre, significando a unio da famlia, da escola e da Igreja.

Infelizmente Gonalves Dias no esclarece em seu relatrio por que considerava

perigoso dar instruo aos escravos. Deduzimos que esteja de acordo com a idia corrente na

sociedade brasileira do sculo XIX sobre qual seria a utilidade e a quem se destinavam a

educao e a instruo. Essa destinao estava intimamente ligada s prprias concepes de

educao e instruo ento vigentes. Estudando os projetos e reformas educacionais na Corte,

no contexto do processo de abolio da escravido, Alessandra Frota Martinez discute as

interpretaes da poca sobre o que era educar e instruir e indica os seus diferentes

significados:

A diferena entre os termos educao e instruo foi estabelecida, em grande parte,

pela leitura das Reformas francesas, por sua vez apoiadas em Condorcet. Segundo

ele, educao se referia aos sentimentos religiosos e morais cuja transmisso deveria

ser reservada s famlias e, instruo era o conjunto de conhecimentos que o Estado

deveria proporcionar aos cidados. No entanto, no Imprio brasileiro, tal distino

no parece ter se imposto de fato, o que mais uma vez revela as apropriaes e

redefinies dos conceitos estrangeiros em funo da realidade local. 32

Partindo dessas consideraes, entende-se por que Gonalves Dias propunha para os

escravos uma educao moral e religiosa, e no a instruo. Provavelmente, entendia essa

educao como eminentemente formadora do carter, preparando o indivduo para adequar-se

ao lugar social a que estivesse previamente destinado ou aos limites e condicionantes de uma

permissvel ascenso, aprendendo os bons costumes, a disciplina e o controle dos impulsos e

das paixes. Quanto instruo deduz-se que, sendo um conjunto de conhecimentos que se

32 Martinez. Educar e Instruir: a instruo..., op. cit., 1997.p. 25.

22

adquire e cuja responsabilidade pela transmisso deve ser assumida pelo Estado, refere-se ao

aprendizado de aes e prticas especficas voltadas principalmente para uma atividade

intelectual ou mecnica que resulte em trabalho e produo. Na verdade os dois conceitos

mais se confundem do que se distinguem, sendo mutuamente complementares. A respeito dos

conceitos de educao e instruo afirmava-se, na dcada de 80 do sculo XIX:

Instruo exprime a cincia mais vulgar, o que se aprende nas escolas. Difere a

educao da instruo, sendo que a primeira inclui a idia do bom emprego e uso da

segunda: pode pois haver instruo com m educao, se o saber no realado por

boas maneiras e bons costumes.

O fim da educao desenvolver as faculdades morais, enquanto a instruo visa

enriquecer as faculdades intelectivas. No obstante, instruo e educao se

confundem na prtica freqentemente; todavia importante extrem-las. Ora, s

mediante a inteligncia os princpios se estabelecem. Concorre pois a instruo para

a educao, tanto como a educao para a instruo.33

A educao buscaria o desenvolvimento integral do indivduo, tendo em vista a sua

perfeio, a sua felicidade e o seu destino social . Da boa educao resultaria o progresso, as

tendncias teis ao indivduo, a compresso dos instintos . J a instruo significaria um

saber adquirido e estaria relacionada educao intelectual. Mas por que seria perigoso

proporcionar instruo aos escravos? Qual o risco de desenvolver-lhes a capacidade

intelectual? A resposta mais provvel, talvez bvia, seria que para Gonalves Dias e a maior

parte da sociedade da poca, a instruo conduziria o escravo ao questionamento e

conseqentemente insubmisso ao cativeiro, bem como busca consciente pela liberdade

atravs de meios racionalmente articulados, o que, evidentemente, no se desejava.

Ao determinar uma investigao minuciosa da instruo pblica nas Provncias do

Norte o governo Imperial procurava demonstrar uma real preocupao com o futuro da

educao nacional, convencido de que o progresso do pas dependia inevitavelmente das

novas geraes e da disponibilidade e qualidade do ensino que deveriam receber. Certamente

no fazia parte desta mocidade qual o Imprio interessava educar o grande contingente de

crianas e jovens escravos. No entanto, seguindo as instrues que lhe determinavam propor

33 E. M. Campagne. Dicionario Universal de Educao e Ensino. Traduo de Camilo Castello Branco. Porto:

Casa Editora Lugan & Genelioux, 1886.

23

todas as medidas que lhe parecessem necessrias para garantir a melhor educao da

mocidade livre, Gonalves Dias aproveitou para, ao modo de concluso, apontar a

necessidade e urgncia de tambm ser educada aquela outra classe , a dos escravos. Para ele

de nada adiantaria melhorar a educao da classe livre se os escravos no fossem

reabilitados moralmente .

Era o comeo da dcada de 1850 e acabara de ser aprovada a nova lei de represso ao

trfico transatlntico que, enfim, se faria cumprir. Bloqueada a principal fonte de suprimento

e renovao da mo-de-obra escrava, o fim da escravido passou a ser tido como certo. A

Abolio era apenas uma questo de tempo, convenientemente ajustado aos interesses

escravocratas, enquanto se discutia uma outra soluo para a presumida falta de braos para o

trabalho que ela provocaria. Parece evidente que uma dessas solues, talvez menos discutida,

mas no menos importante que as outras, passava pela educao e instruo dos ex-escravos.

O relatrio de Gonalves Dias sinaliza nesta direo.

O processo de abolio da escravido esteve de fato intimamente ligado discusso

das questes referentes instruo. A extino do trabalho escravo e a universalizao do

trabalho livre exigiam um outro posicionamento frente s novas formas de relacionamento

entre os sujeitos envolvidos neste mundo do trabalho. Essas questes, que ainda no se

colocavam, seno restritamente, quando da primeira Constituio brasileira, comearam a

ganhar fora na dcada de 1850. Ampliaram-se, ento, as discusses em torno da instruo

primria e da educao popular que conduziram s Reformas nesse campo. Uma das mais

importantes foi a do Ministro Couto Ferraz.

A Reforma Couto Ferraz, como ficou conhecido o Decreto n. 1331A, de 17 de

fevereiro de 1854, aprovou o regulamento que reformava o ensino primrio e secundrio do

municpio da Corte. Como j foi comentado, incorporou vrias sugestes do relatrio de

Justiniano da Rocha, de 1851. Mais que isso, alterou o carter descentralizador do sistema

educacional, vigente desde o Ato Adicional de 1834, ao interferir no mbito do ensino

provincial. 34 Sobre sua importncia neste e em outros aspectos, Freire comenta:

Apesar de anunciar que um regulamento da instruo pblica primria e

secundria do Municpio da Corte, ao analisar este ato legal conclumos que ele

34 Brasil. Decreto n. 1 331 A, de 17 de fevereiro de 1854. Coleo de Leis do Imprio do Brasil de 1854, Tomo

XV, Parte 1.

24

extrapolou seus limites e que, na verdade, tratava-se de um cdigo pretendendo

estabelecer normas de validade nacional, desde que determinava competncias neste

espao ao representante do governo central, o inspetor geral.

[...], determinava regras de equivalncia destes ensinos [primrio e secundrio das

provncias] ao ensino do Municpio Neutro. [...]; em cada parquia deveria existir

uma escola primria de 1 grau para cada sexo; o ensino de 1 grau era obrigatrio

para meninos maiores de sete anos, e seus pais, tutores, curadores ou protetores

seriam multados se tivessem em sua companhia tais crianas, sem impedimento

fsico ou moral; [...] Estas medidas evidenciam uma clara manifestao da

interferncia do Poder Central na educao das provncias (particular ou pblica) e

nas particulares da Corte. Podemos vislumbrar aqui, ainda muito dbil, o primeiro

sinal de unificao do ensino primrio no Brasil, [...].35

H um ponto importante a ser considerado na Reforma Couto Ferraz: o seu artigo 69

proibia explicitamente a admisso de escravos nas escolas pblicas. A reiterao, nesta

Reforma, da interdio dos escravos escola pblica presente na legislao sobre a instruo

na primeira metade do Oitocentos, seguiu rumo diferente das recomendaes feitas apenas

dois anos antes ao governo Imperial por Antnio Gonalves Dias. Alm dos escravos, o

artigo 69 tambm inclua nessa interdio os que padecessem de molstias contagiosas e os

que no fossem vacinados. Na mesma poca, foram criados no Rio de Janeiro o Instituto dos

Cegos, em 1854, e o Instituto dos Surdos-mudos, em 1856.

A excluso dos escravos determinada pela lei poderia ter muitas razes, at

reconhecidas e aceitas pela sociedade brasileira escravista e elitista da poca. Mas inegvel

a fora simblica, para o imaginrio social de ento, dessa equivalncia patolgica subjacente

que se estabelecia entre escravido e doena, por conseguinte entre escravos e doentes, vistos

similarmente como incapacitados ou perigosos. Escravos, que eram surdos-mudos de

instruo deveriam continuar como tal. Por serem escravos, o mal da escravido os tornava

naturalmente menos regenerveis do que todos os ditos cidados livres, at mesmo aqueles

naturalmente limitados.

Trs dcadas aps a Carta de 1824, o Decreto da Reforma Couto Ferraz, enquanto

instrumento legal regulador do compromisso da Constituio Imperial de dar instruo a

todos os cidados, nada seqestrava aos escravos quando lhes interditava o acesso escola

pblica. Na prtica, apenas reiterava o esprito da Lei, o preceito constitucional ento vigente

35 Para maiores informaes sobre a Reforma Couto Ferraz, ver Ana Maria Freire, op. cit.

25

que, subliminarmente, negava ao escravo o estatuto da cidadania. Ora, uma vez que a Carta de

1824 determinava, no seu artigo 6, que eram cidados brasileiros os que no Brasil tivessem

nascido, quer fossem ingnuos ou libertos, deduz-se dessa afirmativa constitucional que a

cidadania de direito e seu pleno gozo teriam como premissa a liberdade, ser um sujeito livre.

Isso implica que, uma vez admitida a existncia de libertos, teoricamente cidados ,

tambm existiam escravos, embora omitidos do texto. Brasileiros porque no Brasil nasceram,

porm no-cidados.

Insistimos na abordagem dessa questo a ausncia de referncia direta escravido e

ao escravo na Constituio de 1824 j bastante discutida na historiografia, por consider-la

importante como evidncia do implcito que se instaura na regulao e nas prticas cotidianas

das relaes, individuais ou coletivas, entre os sujeitos imersos na sociedade brasileira

escravista pr-abolio. Sociedade que insistir em herdar traos desse carter escravista

aps o 13 de Maio, apesar do liberalismo proclamado por grande parte das suas elites.

A educao, como pensada pelo liberalismo ilustrado, era um direito inerente ao

indivduo, necessria sua emancipao. Para o pensamento liberal brasileiro das ltimas

dcadas do sculo XIX, a educao e a instruo eram consideradas como uma demanda da

situao social, poltica e econmica vigente que precisava ser atendida para que essa mesma

situao pudesse ser alterada, sob controle. Ou seja, a fim de serem atingidos sem

perturbaes determinados objetivos declarados de interesse geral, a exemplo da

modernizao do pas e sua insero na nova ordem econmica mundial. medida que se

atendesse demanda por educao, solucionavam-se os problemas, superava-se o atraso do

pas em relao ao mundo dito civilizado. Tudo isso graas ao crescimento intelectual e moral

que a educao e a instruo proporcionariam aos homens.

Vera Teresa Valdemarin prope que as caractersticas do liberalismo que se efetivava

no Brasil, nas ltimas dcadas do sculo XIX, podem ser delineadas a partir do

encaminhamento das questes mais significativas do perodo , porque estabelecem os

parmetros para a cidadania, para a participao no poder poltico e para a organizao social

do trabalho . Entre aquelas questes estariam a escravido, a reforma do processo eleitoral e

a criao de uma estrutura educacional . 36

O momento histrico era particularmente difcil porque a grande lavoura se via numa

36 Vera Teresa Valdemarim. O liberalismo Demiurgo: estudo sobre a reforma educacional projetada nos

Pareceres de Rui Barbosa. So Paulo: Cultura Acadmica, 2000. p. 49.

26

encruzilhada sem sada vista. De um lado, a libertao do ventre escravo, consumada em

1871, acabara com os sonhos escravistas de que a escravido poderia ser mantida por muitos

anos ainda; de outro, a experincia com a imigrao europia, principalmente pelo sistema de

parceria, no se mostrara at ento aceitvel ou vivel a agricultores endividados e

acostumados a conduzir seus negcios na base da coero. Restava a importao de coolies,

logo muito combatida. Ou o emprego mais efetivo do trabalhador nacional e do liberto,

inclusive dos ingnuos resultantes da lei de 1871, o que s poderia acontecer se uns e outros,

livres do chicote senhorial, passassem a ver no trabalho o corolrio natural do seu estado de

liberdade.

No surpreendente, portanto, que na dcada de 1870, a discusso sobre o problema

da instruo no Brasil tenha se ampliado muito. Alm dos relatrios crticos dos Ministros do

Imprio e das autoridades provinciais, freqentes a partir do anos 1850, o tema se tornou mais

presente na imprensa e nos discursos parlamentares, embora a esse interesse no

correspondessem avanos nas solues.37 Os dados mostravam a precariedade do ensino em

todo o pas e exigiam providncias imediatas que pudessem melhorar as suas condies e o

acesso da populao escola. Em 1872, dos quase dez milhes de habitantes 84,2% eram

analfabetos. As reformas da instruo eram tentativas de remediar essa situao. Ainda em

1870, no seu relatrio ao Parlamento, o Ministro do Imprio, Conselheiro Paulino de Souza

afirmava:

com verdadeira mgoa que me vejo obrigado a confessar que em poucos pases a

instruo pblica se achar em circunstncias to pouco lisonjeiras como no Brasil.

[...] Em algumas provncias a instruo pblica mostra-se em grande atraso; [...] Em

poucas sensvel o progresso; em nenhuma satisfaz o seu estado pelo nmero e

excelncia dos estabelecimentos de ensino, pela freqncia e aproveitamento dos

alunos, pela vocao para o magistrio, pelo zelo e dedicao dos professores, pelo

fervor dos pais em dar aos filhos a precisa educao intelectual, [...]. 38

Referindo-se s tentativas de melhorar a instruo nas provncias recorrendo

freqentes reformas, Paulino de Souza criticava-as por constatar que tais reformas se

limitavam organizao do ensino, mas no promoviam a sua disseminao e no buscavam 37 Valdemarim, op. cit., p. 62. 38 Hermes, Cem anos de ensino primrio: 1826-1926 . in Congresso. Cmara dos Deputados. Livro do

Centenrrio Braslia, 2003. p. 472-73.

27

garantir sua qualidade nem torn-lo atraente aos alunos, fiscalizando os encarregados da sua

distribuio. Para suprir as deficincias das provncias no campo educacional, sugeria a

interveno do governo central, criando, mantendo e dirigindo estabelecimentos de instruo

pblica nas mesmas, custeadas pelos cofres do Estado. Porm tudo isto ficou no desejo,

segundo a regra . 39

A preocupao com a educao dos libertos juntara-se importncia atribuda

educao popular. Conforme Alessandra F. Martinez, em discurso proferido em 1873 o

Conselheiro Affonso Celso j alertava para a necessidade dessa educao como meio de

evitar o aumento de brasileiros que vegetavam na ignorncia e na misria , e defendia a

adoo da obrigatoriedade do ensino primrio, sem a qual os responsveis por crianas e

libertos no cuidariam da sua instruo. 40

Em 1878, esse quadro permanecia virtualmente inalterado, pois a questo da instruo,

apesar de presente no discurso das elites polticas e letradas, pouco ou nada avanara na

prtica. Foi nesse cenrio, no qual a reforma educacional passa a ser apontada como soluo,

uma vez que iria estabelecer um sistema de ensino que qualificaria para o voto e para o

trabalho , que o Ministro Lencio de Carvalho iniciou a srie de intervenes no sistema de

ensino que iriam ficar conhecidas com o seu nome, procurando colocar em prtica os

princpios liberais que adotava. Segundo Valdemarim, as propostas de reforma na verdade

revelam, na inteno, a face liberal da elite brasileira, enquanto na execuo revelam sua face

conservadora.41

A Reforma Lencio de Carvalho foi certamente a mais importante e a de maior

impacto no Imprio, repercutindo por todo o incio do perodo republicano. Constituiu-se na

verdade de uma srie de decretos, dos quais o de n. 7.247, de 19 de abril de 1879, logo

denominado de Decreto do Ensino Livre , foi o que teve maior repercusso, por razes que

comentaremos adiante. Embora a competncia da Reforma Lencio de Carvalho se limitasse,

no caso do ensino primrio e secundrio, ao municpio da Corte, deveria ela servir de modelo

para reformas educacionais nas demais provncias do Imprio. Seguia, neste particular, a

tendncia centralizadora do governo Imperial, em oposio ao carter descentralizador que

tivera o Ato Adicional. No mbito educacional, essa tendncia centralizadora j se revelara na

Reforma Couto Ferraz, e parece ter sido aceita sem embaraos pelas provncias, pois o

39Hermes, op. cit., p. 475. 40 Martinez, op. cit., p. 38. 41 Valdemarin, op. cit., p. 48-50.

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modelo de educao proposto a partir da Corte no destoava das posies ideolgicas e dos

interesses locais. Veremos que, no caso da provncia da Bahia, essa tambm foi a regra, tanto

para a Reforma Couto Ferraz como para a Reforma Lencio de Carvalho.

Carlos Lencio de Carvalho era professor da Faculdade de Direito de So Paulo, e

participara ativamente da poltica nessa provncia, sendo integrante do grupo dos republicanos

ligados s atividades educacionais. Foi membro da Sociedade Propagadora da Instruo

Popular, que reunia liberais e republicanos, e que deu origem nos anos 1880 ao Liceu de

Artes e Ofcios, do qual foi diretor, tendo antes assumido a pasta dos Negcios do Imprio de

janeiro de 1878 a maro de 1880.42

Lencio de Carvalho foi nomeado Ministro dos Negcios do Imprio por Joo Lins

Vieira Cansanso Sinimbu, Presidente do Conselho de Ministros quando o Partido Liberal

assumiu o poder, no incio de 1878. Era da competncia deste Ministrio os assuntos relativos

Instruo Pblica. Ao assumir a pasta logo deu incio s reformas do ensino na Corte,

alterando o regulamento do Imperial Colgio Pedro II, atravs do Decreto n 6 884, de 20 de

abril de 1878. Esse Decreto introduzia as matrculas parceladas e abolia a obrigatoriedade do

ensino religioso, embora exigisse exame do catecismo da diocese para os alunos catlicos;

tornava livre a freqncia do externato, contanto que o aluno tivesse a idade exigida para as

aulas que quisesse freqentar, ou seja, tivesse um ano a mais ou a menos do limite

estabelecido para a aula do ano anterior. 43 Por outro lado, quando tratava da admisso de

alunos, esse Decreto no fazia quaisquer restries aos ingnuos e libertos, tanto que

surpreendentemente apenas determinava:

Art. 11. Para admisso matrcula do 1 ano necessrio:

1. Ter mais de onze e menos de 15 nos de idade;

2. Mostrar-se habilitado, mediante exame, em leitura, escrita, gramtica

portuguesa, aritmtica at fraes inclusive, sistema mtrico decimal, elementos de

geografia, noes dos objetos e instruo moral. Os alunos catlicos devero ainda

prestar exame do catecismo da diocese.

Art. 16. permitido a qualquer pessoa freqentar somente uma ou mais aulas do

externato [...]. 44

42 Azevedo, apud Nunes, op. cit. p. 181. Valdemarim, op. cit. p. 62. 43 Maria Lucia Spedo Hilsdorf. Histria da educao brasileira: leituras. So Paulo: Pioneira Thomson

Learning, 2005. Nunes, op. cit., p. 181. 44 Brasil, Decreto 6 884 de 20/04/1878. Coleo de Leis do Imprio do Brazil de 1878. Tomo XLI. Rio de

29

Outro importante Decreto de Lencio de Carvalho foi o de n. 7031 A, de seis de

setembro de 1878, que criou cursos noturnos de ensino elementar nas escolas pblicas

primrias de 1 grau para adultos, assim considerados os alunos maiores de 14 anos, do sexo

masculino, analfabetos. Em cada escola pblica de instruo primria do municpio da Corte

deveria ser instalado um desses cursos, nos quais seriam ensinadas pelos mesmos professores

as mesmas matrias das escolas diurnas de grau equivalente.

Esses cursos noturnos eram destinados a livres ou libertos, que neles poderiam se

matricular a qualquer tempo, conforme o Art. 5. Teriam duas horas de aula por noite, de

outubro a maro (vero), e trs horas de abril a setembro (inverno). As normas disciplinares

eram rigorosas, garantidas por um tambm rigoroso esquema de punies e recompensas. Os

alunos deviam guardar o maior sossego e respeitar quem circulasse no recinto e nas

proximidades da escola. As transgresses poderiam ser punidas com a expulso. Em caso de

desobedincia aos professores, poderia ser solicitada at a interveno da autoridade policial.

Alm das normas disciplinares, nota-se o sentido de controle sobre essa categoria diferenciada

de alunos os libertos principalmente - desde a matrcula, que s seria efetivada mediante

apresentao de uma guia emitida pelos Delegados da Instruo Pblica na qual constasse,

alm de outros dados, a profisso e residncia do matriculando. 45

importante destacar que esse decreto no proibia explicitamente os escravos de

freqentar os cursos noturnos para adultos. Essa omisso com relao ao elemento servil ,

caracterstica dos decretos anteriores, aqui no parece apenas querer evitar a reiterao

desnecessria do que j era negado por outros atos do governo, mas sugerir a necessidade de

se prover a educao ao elemento servil , questo que j vinha sendo levantada por

intelectuais e polticos, a exemplo de Gonalves Dias e Joo Alfredo, j citados

anteriormente. Por isso, chama ateno a referncia explcita franquia destes cursos

noturnos para os libertos, o que, potencialmente, eram todos os escravos de ento. O cuidado

em se referir ao liberto certamente confirma a dificuldade de acesso dessa categoria

educao, se no pelas leis, ao menos por outras formas de obstculo. Sugere tambm uma

Janeiro: Typographia Nacional, 1879. No queremos dizer que com essa omisso o Decreto 6 884 pretendesse abrir as portas do Imperial Colgio a ingnuos e a libertos, ou seus filhos, sendo o Pedro II reconhecidamente elitista. O que sugerimos que havia uma sensibilidade de Lencio de Carvalho para as questes decorrentes das mudanas nas relaes escravistas, desde a crescente interveno do Estado nessa esfera at a previsibilidade do fim da prpria escravido. Ao que parece, atento a essas transformaes, ele percebia a necessidade de promover a instruo desse contingente egresso da escravido, suprimindo os entraves legais ao seu acesso escola.

45 Coleo de Leis do Imprio do Brazil de 1878. Tomo XLI. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879; Freire, op.cit., p. 95.

30

nova poltica do Estado, graas ao pensamento liberal do seu Ministro, de incentivo procura

espontnea dos libertos por instruo. Tanto assim que o Decreto 7 031 estabelecia:

Art. 42. Tero direito de preferncia aos lugares de serventes, guardas, contnuos,

correios, ajudantes de porteiro, porteiros das reparties e estabelecimentos pblicos

e outros empregos de igual categoria os cidados que, reunindo os demais

requisitos precisos, apresentarem notas de aprovao plena obt