Mil Inviernos 4 - Bicha, Muda e Desvairada

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Bicha, muda e desvairada Por Fábio Ramalho Quando a imagem do travesti brasileiro João Filho, que já há algum tempo havia alcançado certo reconhecimento público na periferia de sua cidade de origem, Juazeiro do Norte, alcançou circuitos muito mais difusos e multiplicadores de visibilidade graças a um vídeo que começou a circular na internet em meados de 2008, fomos confrontados com a intensificação de um dilema que já havia marcado muitos outros memes: rir ou não de uma piada que pode ser considerada extremamente ofensiva, uma vez que joga com vários estigmas articulados – a sexualidade, o travestismo, a marginalidade econômica e a deficiência auditiva (sendo este último, talvez, o elemento menos suscetível ao deboche e mais desafiador aos critérios do bom gosto e da correção numa sociedade que, em relação aos outros aspectos mencionados, não parece se envergonhar muito dos seus preconceitos). No meu caso, o primeiro e maior incômodo em relação ao vídeo foi a sua legenda. Diante da “bixa muda de Juazeiro”, o estranhamento veio para mim, em primeiro lugar, como efeito da rápida recontextualização de sua imagem. O qualificativo de Juazeiro indicava que a partir de então aquela presença havia se tornado uma imagem consumível em um escopo muito mais amplo e desterritorializado, daí a necessidade de assinalar, pela primeira vez, a sua origem. Embora bicha muda ou mudinha já fossem alcunhas correntes no bairro dos Franciscanos e do Pirajá, dentre outras, ela era sempre ainda João Filho. Que ele agora ocupasse temporariamente a posição sempre móvel do novo famoso anônimo da rede, de quem se ignorava origem, filiação e trajetória, não deixava de aparecer para mim, na época, como um tipo de violência. Na entrevista concedida à repórter Marleide Duarte, durante a cobertura de um evento anual da cidade chamado Juá Forró, quem aparece é ainda João, filho de Dona Rosa, sempre muitíssimo bem humorado, com uma forte atração pelo glamour e pela tela, pelo universo dos artistas e pelo estrelato, pelas redes de televisão e pelos seus mecanismos de captura da imagem. A cena consiste basicamente em um jogo no qual a repórter faz perguntas que o entrevistado, surdo, não pode compreender, e às quais ele responde

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Bicha, muda e desvairada

Por Fbio Ramalho

Quando a imagem do travesti brasileiro Joo Filho, que j h algum tempo havia alcanado certo reconhecimento pblico na periferia de sua cidade de origem, Juazeiro do Norte, alcanou circuitos muito mais difusos e multiplicadores de visibilidade graas a um vdeo que comeou a circular na internet em meados de 2008, fomos confrontados com a intensificao de um dilema que j havia marcado muitos outros memes: rir ou no de uma piada que pode ser considerada extremamente ofensiva, uma vez que joga com vrios estigmas articulados a sexualidade, o travestismo, a marginalidade econmica e a deficincia auditiva (sendo este ltimo, talvez, o elemento menos suscetvel ao deboche e mais desafiador aos critrios do bom gosto e da correo numa sociedade que, em relao aos outros aspectos mencionados, no parece se envergonhar muito dos seus preconceitos).

No meu caso, o primeiro e maior incmodo em relao ao vdeo foi a sua legenda. Diante da bixa muda de Juazeiro, o estranhamento veio para mim, em primeiro lugar, como efeito da rpida recontextualizao de sua imagem. O qualificativo de Juazeiro indicava que a partir de ento aquela presena havia se tornado uma imagem consumvel em um escopo muito mais amplo e desterritorializado, da a necessidade de assinalar, pela primeira vez, a sua origem. Embora bicha muda ou mudinha j fossem alcunhas correntes no bairro dos Franciscanos e do Piraj, dentre outras, ela era sempre ainda Joo Filho. Que ele agora ocupasse temporariamente a posio sempre mvel do novo famoso annimo da rede, de quem se ignorava origem, filiao e trajetria, no deixava de aparecer para mim, na poca, como um tipo de violncia.

Na entrevista concedida reprter Marleide Duarte, durante a cobertura de um evento anual da cidade chamado Ju Forr, quem aparece ainda Joo, filho de Dona Rosa, sempre muitssimo bem humorado, com uma forte atrao pelo glamour e pela tela, pelo universo dos artistas e pelo estrelato, pelas redes de televiso e pelos seus mecanismos de captura da imagem. A cena consiste basicamente em um jogo no qual a reprter faz perguntas que o entrevistado, surdo, no pode compreender, e s quais ele responde com os recursos de que dispe. Embora a bicha muda possa ser considerada o elemento mais frgil dessa relao uma vez que ela, desprovida do amparo institucional e do domnio do aparato miditico, submetida cmera como objeto de uma irreverncia efmera e inconsequente , no posso deixar de pensar que o escrnio da cena se volta sobretudo contra esse mesmo aparato. Pela figura da reprter televisiva, cuja funo se reduz a repetir lugares comuns que caracterizam a cobertura de eventos, mas tambm e sobretudo pela figura do entrevistado, que leva ao limite essa banalidade jornalstica ao conceder uma performance cmera que, esvaziada de qualquer linguagem verbal, exagera a gestualidade caracterstica da posio que ocupa.

Inserir aqui o primeiro vdeo: http://www.youtube.com/watch?v=EVfGZImxJFk

O que o vdeo parece deixar claro que, no fim das contas, pouco importa o que diz um entrevistado: sua funo meramente ratificadora. Nesse sentido, Joo Filho se mostra um sujeito particularmente equipado para dar corpo irreverncia pardica. Sua apario miditica efmera digo, at que a disseminao do vdeo na internet viesse mudar os termos desse contrato de visibilidade atesta uma dupla conscincia: ele mostra que, em seu fascnio pela imagem, aprendeu muito bem a dominar o repertrio de gestos que compem o meio jornalstico, estando portanto plenamente habilitado para acion-lo se assim lhe solicitam; e, em segundo lugar, ele demonstra entender muito bem que a esttica televisiva se sustenta muito mais por efeitos de superfcie do que por contedos, prescindindo portanto de qualquer densidade semntica. Est tudo ali, nos gestos: consideraes iniciais, momentos de intensificao e maravilhamento (elevao do tom de voz e da cabea), observaes gerais e de contexto (mo aberta que gira indicando uma observao de conjunto ou operao de sntese), ratificao (cabea acenando positivamente), pausas, retomada do argumento, interpelao direta aos espectadores, olhar para a cmera, beijo soprado audincia e, por fim, uma ltima exclamao conclusiva, concordando que sua participao pode ser considerada encerrada. Sua entrevista, afinal, no a do annimo que se encontra no meio da multido, mas da personalidade que transita pelos camarins e que est treinada para situaes como essa. (Quantos anos no ter ensaiado uma entrevista endereada aos fs e admiradores? Quanto zelo no podemos deduzir no aperfeioamento dessa pose para a cmera?).

Televiso, dinheiro e peitos

Uma situao se repetiu com frequncia ao longo dos anos: Joo Filho aparece em alguma das casas do bairro e, se a televiso est ligada, comea a comentar, com gestos que guardam um grande poder de sntese, a figura dos artistas, o universo das novelas, a grandiosidade das metrpoles e as possibilidades que estas, imagina-se, detm: viabilizar um modo de ganhar a vida e conceder os meios mais sofisticados e eficazes para a modificao do corpo. Dentre esse grande e diversificado repertrio, h um gesto seu que bastante notvel. Na verdade, trata-se da articulao de dois movimentos que, alternados, tornam-se particularmente expressivos, e que consistem primeiramente em apontar o dedo indicador para a televiso ligeiramente para cima ou como que atravs dela, assinalando uma mistura de sudeste (a So Paulo ou o Rio de Janeiro das novelas), de horizonte e de um para alm da tela e, logo em seguida, abrir as mos em forma de concha sobre o peito, projetando virtualmente os seios advindos do sonho trans de uma feminilizao glamourizada. H uma variao nesses movimentos: s vezes, depois de apontar o dedo para a imagem, ele roda uma das mos (segurando uma bolsinha imaginria) de um lado, perto do quadril, enquanto esfrega o polegar e o indicador da outra, repetindo esta que uma das formas mais conhecidas de simbolizar o dinheiro.

Joo Filho, que no bobo, sabe que est tudo ali, virtualmente, na imagem da televiso: a espetacularizao da vida, uma certa ideia de glamour, a prostituio, a circulao monetria e a prtese de silicone, sem a qual o travestismo possvel mas muito mais incerto, experimental e por vezes excessivamente arriscado. (Recentemente um homossexual muito jovem que morava nos Franciscanos morreu aps injetar silicone lquido no corpo).

De uns tempos pra c os gestos permaneceram, mas com um sentido bastante diferente: Joo Filho ainda aponta para a televiso, mas agora sabemos que ele j esteve l no sudeste, no horizonte, na metrpole. Sua participao no programa Qual o seu talento?, do canal de televiso SBT, cantando I will always love you, tambm circulou na internet sem, no entanto, alcanar o mesmo status de hit. Sua trajetria no deixou de acarretar, ento, certas revises necessrias: a televiso, antes o veculo supremo do estrelato to desejado por Joo Filho, revelou sua atual condio meramente reativa, pautada por outros meios, replicando e absorvendo aquilo que desponta em circuitos mais instveis, como a internet, tentando com isso preservar uma relevncia e um alcance que j no se sustentam.

Desconheo quem cuidou do seu figurino para a apresentao no SBT, mas, na ocasio, a sua figura foi revestida de uma caracterizao no estilo princesa, com coroa e vestido longo negro. Alm disso, sua imagem foi submetida sobrecodificao de um sentimentalismo fora de tom, fundado numa dessas tpicas bobagens televisivas: uma exaltao piegas da superao e do triunfo da persistncia. Tal exaltao se mostra, nesse caso, particularmente inadequada para dar conta dos termos da situao toda. No por acaso, ento, que cada vez menos a tela decadente da televiso aquela que condensa os valores que em certa medida parecem informar a constituio da bicha muda como personagem pblica: glamour, visibilidade, hipermidiatizao. O que os produtores do programa pareceram no entender que nem a personagem bicha muda, nem seus interlocutores em cena (reprteres, apresentadores, jurados), nem a plateia do programa ou aqueles, mais numerosos, que consomem essas imagens em suas casas, enfim, ningum se encontra em condies de (ou disposto a) sustentar, mesmo que cinicamente, os valores conservadores encapsulados no modelo da sertaneja humilde que virou princesa. A internet, mais amoral, mais informe e tambm mais permevel s dissonncias estticas, constituiu um ambiente muito mais refratrio para catalisar a disseminao da imagem da bicha muda: as suas roupas extravagantes e sumrias, a inegvel componente sexual de sua performance, a intensa corporalidade de sua presena aliada extensa exposio de seu corpo, a ambiguidade de sua recepo e, ainda, as vrias direes e desdobramentos assumidos durante a negociao de sua visibilidade.

Inserir segundo vdeo: http://www.youtube.com/watch?v=gY9omSETxJo

Qualquer que tenha sido a explorao de sua fragilidade na entrevista do Ju Forr (e esta explorao de certo modo inegvel), h no obstante uma espcie de reciprocidade que sustenta a cena toda: uma alternncia, como uma espcie de coreografia, e tambm a omisso de qualquer interpelao explicitamente ofensiva. Podemos dizer que o jogo da personalidade que desfia comentrios sobre o evento da noite se estabelece dentro de certos limites e que a reprter ratifica a personagem. Na rede nacional, os termos dessa negociao foram bem menos favorveis: os jurados frequentemente ignoram sua presena em palco e, de forma rude, conversam entre si sem nenhum cuidado de, mesmo que gestualmente, coloc-lo a par do que est acontecendo. Trata-se de um tratamento covarde, porque se aproveita da sua capacidade limitada de compreenso verbal para destilar ofensas que no seriam to facilmente ditas na cara. Durante toda a sua participao no programa, perceptvel que Joo Filho est perdido, que no sabe quando deve comear a cantar e ao que, propriamente, deve se esforar para responder (como sabe e como pode). Tem, portanto, muito menos controle sobre os desdobramentos de sua imagem. Alm disso, submetido a tratamentos degradantes que pode apenas intuir. chamado de esse troo a, convertido no objeto da dinmica regressiva machista do leva pra casa, do pra cima de mim no e do ser que homem ou mulher. Uma negociao sempre implica perdas e concesses, mas em alguns casos o preo bem maior.

As ordens da linguagem e a nova designao

Qualquer que seja a boa inteno que orienta certas crticas circulao destes vdeos como objetos de interesse coletivo, no deixa de ser um pouco ingnuo o rechao ao seu contedo como um caso de ridicularizao pblica e de explorao das fragilidades humanas, nesse caso tornada mais perversa pelo fato de que o acesso e a compreenso da protagonista aos termos estabelecidos limitado pelas circunstncias. Digo ingnuo porque, quando muito, estas observaes constatam o bvio: uma vida como a de Joo Filho marcada por uma intensa e nem sempre justa negociao de suas condies de possibilidade. Tambm porque uma crtica hiperexposio miditica de figuras que, em muitos aspectos, encontram-se marginalizadas, precisa levar em conta uma trama de complexas relaes entre sujeitos, imaginrio miditico e desejo de visibilidade. Em outras palavras, preciso ter em conta que, se veculos miditicos como a televiso voltam seu poder para o exerccio de uma irreverncia duvidosa, porque esse poder mobilizado e catalisado por inmeros indivduos que desejam essa exposio e, tendo a chance, aproveitam-na como podem.

Como disse antes, o que me incomodou no vdeo, muito mais do que a exposio de sua imagem, foi o seu batismo miditico, a designao to literal, to direto ao ponto: ela bicha, ela muda, ela de Juazeiro. Gostaria de pensar que esse sentimento no foi fruto de um pudor, como se fosse necessrio um pouco mais de sutileza na forma de sua apresentao pblica. O motivo do incmodo foi antes o fato de que me pareceu que, pela primeira vez, sua identidade feminina era nomeada, e revelia. Se no me engano, Joo nunca trocou seus documentos. margem da dimenso simblica da linguagem, sua transformao ao longo dos anos foi quase exclusivamente corporal, ou seja, as peculiaridades de sua experincia reforam a ambiguidade intrnseca do travestismo. Mesmo depois de plenamente reinventado, ele ainda chamado por muitos de Joo Filho, e no por acaso que ao longo desse texto eu me refiro ora a ele, ora a ela. Em sua vida, a designao de um nome feminino nunca pareceu ganhar predominncia. Ao operar essa nomeao desde uma instncia exterior, o ttulo do vdeo da bicha muda recoloca em primeiro plano essa fora simblica do nome.

Por motivo semelhante, as legendas acrescentadas a uma das verses do vdeo constituem uma segunda quebra. Frente afetao irreverente dos seus gestos e expressividade de sua performance, as legendas so um recurso humorstico fraco e em grande medida suprfluo, que desloca a graa para outro lugar: para aquilo que ele supostamente faz sem saber, para a significao subliminar, para o trocadilho. Em suma, a legenda recupera o humor para o mbito da linguagem verbal, que justamente aquele do qual Joo no pode partilhar. Poderamos dizer ento que essas alteraes e inseres na imagem demarcam posies concorrentes. Para usar uma diferenciao bastante comum: podemos rir com a bicha muda, com suas presepadas; ou podemos rir dela, daquilo que ela no previu, dos efeitos involuntrios de sua performance. Do mesmo modo que se pode trapacear num jogo acionando uma regra que no estava prevista, sempre que reinserimos a lngua falada o portugus ou, mais ainda, o ingls, que no deixa de favorecer uma piscadela elitista porque buscamos derrot-la. Ela adere negociao e ns a tramos.

O preconceito, s claras

A questo da lngua foi agora, mais uma vez e de maneira muito mais enftica, mobilizada como recurso para interceptar essa presena que, para muitos, parece ser impertinente. Depois de no sei quais trmites e conexes polticas, um partido poltico apresentou a Bixa Muda como candidata vereadora no municpio de Juazeiro do Norte. O Ministrio Pblico apresentou um pedido de impugnao que, segundo divulgao da imprensa, alegava incapacidade da candidata para manifestar sua vontade, bem como falta de discernimento para efetuar decises polticas. Em suma, sua impossibilidade de expressar-se pela fala foi generalizada como inaptido para comunicar-se e, por sua vez, sua conduta e seu visual excntricos foram tomados como sintomas inequvocos de insanidade. Como expresso de um preconceito, os termos que constituram as bases para a impugnao so de uma clareza desconcertante. bicha, extravagante e por isso mesmo s pode ser louca, desvairada, incapaz de cumprir com toda a responsabilidade que o cargo requer.

Da cobertura de eventos e dos programas de auditrio, a bicha muda passa agora aos noticirios ligeiros da crnica policial e urbana como caso jurdico e poltico. Joo Filho, j plenamente empenhado em gerir a imagem de sua personagem, aparece em uma externa do programa Barra Pesada cumprimentando a populao em uma praa, enquanto os meandros da sua situao so discutidos entre o reprter e um representante da comunidade LGBT. A fora pardica dos seus gestos se volta agora para a figura do candidato que pede votos e cumprimenta os cidados eleitores, moradores locais sentados nos bancos da praa. Aperto de mo, gesto de legal, dedo em v: a clara artificialidade desses gestos no denuncia em nada sua suposta inadequao para a nova faceta de sua personagem. Pelo contrrio, lembra-nos que essa forma fake e j em grande medida desacreditada a intimidade forjada, o corpo a corpo com o eleitor, o esprito bonacho aquela com que ainda hoje se apresentam os candidatos em campanha ou mesmo depois dela (basta lembrar quantas vezes vimos a Presidenta da Repblica fazendo coraezinhos para a cmera). Mais uma vez, Joo Filho revela que no apenas conhece muito bem o repertrio de gestos que compem as diferentes posies dentro de um jogo miditico, mas agora, tambm, demonstra uma aguada capacidade de adequar-se aos diferentes contextos de sua exposio pblica. Nesse sentido, interessante notar no apenas a nfase nas qualidades requeridas pela sua nova posio a pessoa de bom corao, querida pela comunidade e trabalhadora , mas tambm a nova roupagem que assumiu, mais sbria, quase recatada, provando mais uma vez que tudo se inscreve primeiro na superfcie, nas roupas e adereos.

Inserir aqui o terceiro vdeo: http://youtu.be/Z8_P1SgRbow

No me parece equivocado questionarmos a pertinncia de sua candidatura, ao menos desde que assumamos que o exerccio da representatividade poltica requer algo mais do que a capacidade de disseminar a prpria imagem e inspirar empatia ou seja, algo alm da popularidade que a exposio miditica pode proporcionar. Tambm lcito perguntar pelo seu histrico de envolvimento com a comunidade que pretende representar, bem como manifestar apreenso a respeito da desenvoltura necessria para lidar com os muitos meandros implicados no exerccio de uma funo pblica sobretudo num contexto particularmente problemtico ou mesmo, diria eu, perigoso, como o caso da vida poltica juazeirense. As instncias que julgam o mrito de uma candidatura no poderiam, no entanto, recorrer a esses argumentos para embasar a sua deciso, no apenas porque o teor dos mesmos demasiadamente subjetivo, mas tambm porque sabido que o processo eleitoral h muito tempo ocorre contra a ideia de uma especificidade do poltico, com partidos postulando candidaturas sempre que uma figura conhecida revela poder de fogo para a captao de votos. Temos visto inmeros artistas, humoristas e sub-celebridades moverem-se pelo campo da representao poltica, amparados exclusivamente no seu reconhecimento miditico. O influxo se deteve por um instante na figura da bicha muda, e no por acaso: ela incorpora muitos dos limites para aquilo que, em nossa sociedade, pode tornar-se visvel.

O que as redes de televiso responsveis por aqueles curtos intervalos de exposio supostamente incua perderam de vista que a personagem em questo quer mais, porque isso que queremos todos, sempre. O desejo de alcanar os espaos at ento interditos de perguntar por que, afinal, no pode revira os desnveis que mantm as diferenas a uma distncia segura para colocar a pergunta que importa: por que no falar de igual para igual? Muitas vezes, felizmente, a visibilidade um caminho sem volta. Semana passada veio a notcia de que a candidatura de Joo Filho foi enfim deferida. Soube que ele j est participando de comcios, acompanhado por intrpretes. Desconheo as suas propostas, qual o teor daquilo que pretende expressar agora que est mais uma vez no centro de uma cena pblica dessa vez a dos palanques, percorrendo os bairros populares de sua cidade natal. Sei apenas que, numa conjuntura dominada pelo machismo, pelo sexismo e pela homofobia, sua presena nessas eleies constitui uma interessante dissonncia.

Toda vez que revejo os seus vdeos, sobretudo aquele de sua primeira entrevista, no posso deixar de dar uma risada que, gostaria de acreditar, guarda em si certa cumplicidade. Em parte porque sei que ele gosta daquele oba-oba e ri junto; em parte, tambm, porque lembro que, junto com a sua apario em rede nacional, com as notcias que correram sobre suas andanas na capital do Estado, com essa agora inusitada candidatura e sabe l mais o que vir em seguida, esse apenas mais um dentre muitos momentos de uma vida que, ao longo dos anos, no fez outra coisa seno converter o improvvel em possvel. E embora acredite que no posso, com convico, dizer que o conheo, continuo sorrindo, s vezes com um misto de incredulidade e apreenso, sem saber onde isso tudo vai dar. O que fica claro mesmo que, vendo bem de perto, nenhuma imagem se presta unicamente ao riso ligeiro. De perto, ningum um meme.