Milton Hatoum e o Regionalismo Revisitado

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Milton Hatoum e o regionalismo revisitado

Por Tnia PellegriniSou um tupi tangendo um alade.Mrio de Andrade I. auspicioso constatar que, a despeito das tantas vezes anunciada morte do romance, ele sobrevive e parece ter cada vez mais flego, depois dos vrios prognsticos anteriores da sua substituio pelo conto, um gnero que, por curto e sinttico, seria mais ajustado pressa e imediatez dos tempos atuais, um tanto avessos a leituras de largo flego. No Brasil de hoje, so inmeras as formas que o romance vem assumindo, no corpo a corpo com os novos modos de produo cultural, com o novo horizonte tcnico, enfim, com a multiplicidade de situaes que a vida contempornea prope, nestes tempos de violncia social, ceticismo poltico e fascinao tecnolgica. E apesar de tantas transformaes no campo histrico-social - que constitui a matria viva da qual se nutre qualquer tipo de narrativa - subsiste ainda uma concepo de romance que Antonio Candido1definiu com clareza e objetividade:O fundamento da forma romance a realidade elaborada por um processo mental que guarda intacta a sua verossimilhana externa, fecundando-a interiormente com um fermento de fantasia que a situa alm do quotidiano em concorrncia com a vida. Os seus melhores momentos so aqueles em que ele permanece fiel vocao de elaborar conscientemente uma realidade humana, extrada da observao direta, construindo assim um sistema imaginrio e durvel. Tais consideraes parecem bastante adequadas para iniciar alguns comentrios sobre os dois livros de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmos (2000), num momento do desenvolvimento do gnero, no Brasil, em que a prpria idia de elaborar conscientemente uma realidade humana parece tarefa no mnimo problemtica, na medida em que essa elaborao, que se quer lenta, profunda e meticulosa, pela sua prpria essncia, vem sendo freqentemente atropelada ou at quase impedida de se realizar devido s imposies opostas do ritmo do mercado editorial, que um dos fatores a compor os novos modos de produo cultural acima referidos.A concepo de tempo que tal ritmo impe, acelerada, superficial e genrica, parece no condizer com o critrio fundante da narrativa romanesca, a fidelidade a uma experincia individual, sempre nica, nova e original, mas no efmera, sobretudo pelo grau de ateno necessrio sua particularizao. Ento, talvez no por acaso, nos dois romances em questo note-se que dez anos separam a publicao de um e de outro -, contrariando a tendncia geral da fico contempornea mais ligeira, que centrar-se na ao2, o tempo a viga principal a sustentar a arquitetura narrativa. Aquele tempo, descoberta da modernidade, cujo fluir permite ao indivduo manter contacto com o continuum de sua prpria identidade, por meio da lembrana de fatos, atos e pensamentos passados, seus e de outrem. o fluxo da memria, criando uma cadeia de causas e efeitos, elaborando a realidade por meio de um processo mental, fecundando-a com um fermento de fantasia e, assim, reconstituindo o cerne do indivduo que narra.Naquela poca, tentei, em vo, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combusto, acenderem em ns o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, tambm cmplice delas.3 O primeiro dos dois romances, Relato de um certo Oriente, a narrativa da volta de uma mulher casa de sua infncia, aps longos anos de ausncia, numa tentativa de recuperar o que ali se perdeu, narrando suas descobertas a um irmo distante. Ela busca reencontrar nos desvos da memria a casa e os jardins de sua meninice, que agora so runas. A narrao volta ao passado por meio de outros relatos retrospectivos, outras vozes que a narradora vai ouvindo e recolhendo, juntando-as dentro da moldura da sua prpria voz: a do seu tio Hakim, a do fotgrafo alemo Dorner, a da amiga da famlia Hindi Conceio. Todos vo lanando novas luzes, lacres ou sombrias, nos recantos da vida da famlia, sobre a qual paira a figura fortssima da matriarca Emilie. Assim desfilam o suicdio nunca explicado de Emir, o nascimento e a morte da menina surda-muda Soraya ngela, o amor amaldioado de Samara Dlia, que a gerou, e muitas outras histrias que o tempo encobriu. Em Dois irmos, o autor retoma o tema do drama familiar e da casa que se desfaz. Tem-se agora um nico narrador, premido pela dvida, buscando descobrir quem seu pai entre os homens da famlia, em meio a retalhos de outras histrias, depois de trinta anos passados, quando quase todos j esto mortos. Narrando em primeira pessoa, esse narrador observador, testemunha privilegiada, tenta reconstruir sua prpria identidade em meio aos estilhaos das histrias dos outros, que ouviu e guardou, ou dos fatos que presenciou, do seu quartinho afastado no fundo do jardim. Brotam de seu relato as figuras de Omar e Yaqub, os dois gmeos inimigos, um dos quais pode ter engravidado sua me, a ndia Domingas, empregada da casa; a relao incestuosa de Rnia com seus dois irmos; a dedicao desmedida da matriarca Zana ao preferido Omar; o desalento de Halim, seu marido, preterido por esse amor excessivo. Os dois romances executam um mergulho vertical nos meandros da memria, sondando as inconcluses do passado e tentando refazer o desfeito, por meio de um exame preciosista de cada elemento que deles brota: perfumes e odores, sons e silncios, luzes e sombras, palavras ditas e caladas, gestos concludos ou esboados, vozes e passos que se estendem horizontalmente por muitos anos de atos e fatos. O vertical e o horizontal tecendo uma trama de tempos por meio de uma delicadssima composio lingstica que no permite estabelecer um sentido nico e definitivo, pois trabalha com dois eixos, o anncio e o segredo4, que se alternam e complementam. E nesse jogo, mais no segundo que no primeiro romance, avulta tambm o tempo da histria brasileira, disfarado como tema secundrio: o do processo de modernizao do pas, com ecos especficos na regio norte, que, talvez mais do que em outros lugares, revela com crueza as marcas da convivncia de progresso e atraso, de avano e estagnao, de permanncia e mudana. Sim, pois os dois livros tm Manaus como seu espao privilegiado, a cidade ilhada pelo rio e pela floresta, que, desde o fim da belle poque da borracha, adaptou-se como foi possvel a cada nova circunstncia dada pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, tem-se a histria do pas refletida num pequeno mundo e a ele circunscrita, transmitindo valores humanos especficos, assim fazendo a passagem do local para o universal. Manaus surge nos dois livros, por esse vis, como um espao scio-cultural e histrico, formado por estratos humanos que se cruzam e misturam, quase desaparecendo e deixando poucos vestgios: o estrato indgena, o do imigrante estrangeiro, o do migrante de outras regies do pas5. Cenrio perfeito para ser fecundado pelo fermento de fantasia do autor que, filho de uma famlia libanesa, ali nasceu e viveu at os quinze anos, voltando tempos depois para lecionar literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas. Os dois enredos, portanto, tm como foco principal uma realidade humana, extrada da observao direta: a dos imigrantes libaneses, que l se estabeleceram no incio do sculo, tentando reconstituir ou ampliar a riqueza trazida de longe, integrando-se uma comunidade multivria, acabando por sobreviver dos faustos arruinados do ciclo da borracha, at serem tangidos pela leva dos novos ricos da modernizao industrial.A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por conveno ou comodidade, seus habitantes teimavam em situ-lo no Brasil; ali, nos confins da Amaznia, trs ou quatro pases ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de rvores; naquele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos os brasileiros (...)6 A Amaznia como um todo aparece assim, como um universo outro, extico mesmo, mas de um exotismo claro apenas para um olhar de fora, no para quem, como o autor (e os narradores), sendo parte dele, o v sem idealizao, com a lucidez melanclica de quem conhece o calor e a chuva, as muitas guas, frutas, pssaros e peixes, o cheiro do lodo e o da floresta. Referendando esse olhar, so muitas as passagens descritivas que apelam aos sentidos tambm de quem no lhes conhece a referncia:Emilie ajudava Anastcia Socorro a trazer pes de massa folheada (...) e uma cesta com figos da ndia, genipapos, biribs, abacaxis e melancias; e numa cumbuca de barro cozido, entre papoulas colhidas no jardim, havia cachos de pitomba, rstias de maracuj do mato e outras frutas azedssimas, que em contato com a lngua provocavam calafrios no corpo e crispaes no rosto7. Ou ento:Olha as baturas e os jaans, dizia apontando esses pssaros que triscavam a gua escura ou chapinhavam sobre folhas de matup; apontava as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos aturis e os jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o cu grandioso, pesado de nuvens.8 A relativizao do extico, nesses romances, no sentido de que s est presente para quem no o conhece, coloca-nos frente a frente com a questo do regionalismo, que alimenta uma das mais fecundas vertentes da literatura brasileira. O fato de o autor situar suas tramas numa regio to especfica do pas, detalhando-lhe os traos marcantes (mais em Dois Irmos), pintando o espao que a caracteriza com cores peculiares e doces sonoridades , povoando-a de cunhants e curumins, de peixeiros, caboclos e regates, impregnando-a do perfume das aucenas e do sabor do cupuau, espraiando a vista ao longo do rio e perdendo-se no labirinto das palafitas recendendo a lodo, ser suficiente para inseri-las no filo regionalista? Veja-se essa outra passagem:(...) passeava ao lu pela cidade, atravessava as pontes metlicas, perambulava nas reas margeadas por igaraps, os bairros que se expandiam quela poca, cercando o centro de Manaus. (...) O porto j estava animado quela hora da manh. Vendia-se tudo na beira do igarap de So Raimundo: frutas, peixes, maxixe, quiabo, brinquedos de lato (...) Mas a viso de dezenas de catraias alinhadas impressionava mais. No meio da travessia j se sentia o cheiro de midos e vsceras de boi. Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente, as canoas emparelhadas pareciam um rptil imenso que se aproximava da margem. Quando atracavam, os bucheiros descarregavam caixas e tabuleiros cheios de vsceras (...) e o cheiro forte, os milhares de moscas, tudo aquilo me enfastiava (...). Mirava o rio. A imensido escura e levemente ondulada me aliviava, me devolvia por um momento a liberdade tolhida. Eu respirava s de olhar o rio.9 Percebe-se nos trechos citados uma ambincia que pertence a um territrio nico, diferente de outros, com sua histria e geografia prprias, espao real e ao mesmo tempo simblico, no qual as pessoas se encontram ou desencontram, entretecendo suas relaes de identidade, que, naturalmente, so diversas das de outros territrios com outras configuraes histrico-geogrficas. Ou seja, de acordo com Angel Rama10, ao meio fsico representado nos textos corresponde a composio tnica, a produo econmica dominante, o sistema social, os componentes culturais produzidos e transmitidos dentro desses marcos, mas sobretudo a expanso de uma espcie de subcultura que estabelece comportamentos, valores e hbitos. Podem-se a reconhecer usos culinrios, manejos lingsticos, crenas fundamentais que impregnam por igual os membros da comunidade e permitem que se reconheam a si mesmos, diferenciando-se ou opondo-se a outros territrios. nesse sentido que estamos diante de dois exemplares da fico regionalista. Juntamente com a urbana, a fico regionalista representa, no processo de desenvolvimento da literatura brasileira, uma das faces da oposio entre o local e o universal, entre o particular e o geral ou ainda entre a periferia e o centro, que a alimentaram desde o nascimento. Essa terminologia, diversa para cada enfoque terico, expressa, na verdade, uma mesma idia: a dificuldade de explicitar a tenso que liga o nacional e o estrangeiro, componentes do cerne das culturas coloniais e que, com modificaes mais ou menos importantes, no Brasil veio se mantendo at por volta dos anos 60.Desde o Romantismo, pode-se perceber que da idia de um pas novo, a construir, e que, por isso mesmo, tem diante de si um vasto horizonte de possibilidades temticas e expressivas diferentes daquelas da metrpole, emerge a valorizao da terra, da paisagem e do homem que a habita. ndios e sertanejos expressando uma brasilidade ingnua, que, contraditoriamente, bebia em fontes europias, pois europeu era todo o nosso iderio da poca. Todavia, esse regionalismo, segundo Candido11, teve a funo da conquista do espao brasileiro, da descoberta do pas e da sua incorporao aos temas literrios. A sua originalidade, entretanto, relativa: enquanto gnero, no tinha efetivamente nenhum modelo europeu consolidado no qual se inspirar, mas, no que se refere aos temas sem falar na linguagem -, procurou adaptar sentimentos, emoes e reaes das personagens romnticas em geral ao quadro da natureza regional. Um pouco antes, das cidades em formao, basicamente do Rio de Janeiro, onde um pequeno pblico leitor j consumia folhetins traduzidos do francs12, surgira a narrativa urbana. Sobrepondo-se diversidade regional como uma viso de certa forma unificadora, era na verdade uma espcie de crnica de costumes, acrescida de algumas pitadas de sentimento, fantasia e aventura, conforme preconizava o padro romntico europeu.Desde o incio, portanto, criou-se uma falsa dicotomia, pois o que se tem uma zona hbrida, na qual campo e cidade, ou seja, fico urbana e fico regionalista, longe de significar uma oposio entre nacional e estrangeiro, constituram um slido amlgama de temas e situaes, que expressavam, em formas literrias na maioria importadas, a condio especfica de um pas novo, povoado basicamente com alguns poucos ncleos urbanos, na maioria litorneos. A fico brasileira efetivamente nasceu como resposta a uma busca de expresso nacional. Desde o sculo XIX, com Jos de Alencar, passando por Machado de Assis, Alusio de Azevedo, chegando a Lima Barreto, Monteiro Lobato e outros (salvaguardadas todas as diferenas entre eles), tanto o campo quanto a cidade procuravam retratar um pas que se formava, diverso da metrpole. Essa busca da expresso nacional continua durante o Modernismo, agora tambm entendida como a tarefa de lanar luz sobre graves questes sociais, como, por exemplo, a explorao do homem do campo, com Graciliano Ramos e a gerao de 30, no nordeste; a decadncia do latifndio, a ascenso da burguesia e o crescimento das cidades, com Erico Verissimo e Dionlio Machado, no sul.13 Nos dois decnios seguintes, Guimares Rosa, j em outro diapaso, d amplitude e espessura ao retrato da terra, incorporando experincias mticas e lingsticas originalssimas. Em toda essa trajetria, portanto, os territrios continuam se definindo literariamente, constituindo as vrias rotas de um mesmo mapa. Desde meados dos anos 60, porm, vinha se enfraquecendo a convencional distino urbano/regional, que alimentava uma pluralidade temtica especfica. Assim, aos poucos foram rareando, mas sem desaparecer, os temas ligados terra, natureza, ao misticismo, ao cl familiar, ao sincretismo religioso, peculiares a uma narrativa de fundamento telrico, ancorada num tipo de organizao econmico-social ainda de bases na maioria agrrias14. A industrializao crescente desses anos veio mudando a geografia humana do pas e em ltima instncia - deu fora fico centrada na vida das grandes cidades, as quais, atraindo trabalhadores do campo, incham e se deterioram; da a nfase em todos os aspectos que compreendem esse outro tipo de vivncia, relacionados aos problemas sociais e existenciais postos nesse outro territrio. Ao longo desse processo, a regio amaznica deu-nos vrios exemplos de textos regionalistas, cuja especificidade j est presente nos prprios ttulos, em alguns dos quais ecoam sonoridades indgenas, provavelmente como forma de indicar a diferena logo de incio: Pussanga (1929) e Matup (1933), de Peregrino Jnior; Terra de Icamiaba (1937), de Abguar Bastos; Os igaranas (1938), de Raimundo de Morais; Maraj (1947), Trs casas e um rio (1956), Belm do Gro-Par (1960), de Dalcdio Jurandir15. Mas foi apenas nos anos 70 que a narrativa ficcional dessa regio ganhou expressividade nacional, com a obra de Mrcio Souza. Desde seu primeiro livro, Galvez, imperador do Acre (1976), ele procurou fundamentar uma atitude de preservao das peculiaridades culturais amazonenses, por meio de tcnicas narrativas folhetinescas combinadas com formas tradicionais, tais como rituais ou encenaes indgenas, alm de um aproveitamento das influncias dos meios de comunicao, sobretudo o cinema, produzindo um conjunto dissonante, quase barroco e muito sofisticado na sua aparente simplicidade. Mais recentemente publicou Lealdade (1997), romance histrico em que narra a formao histrico-poltica da Amaznia. nessa linhagem, portanto, que se inserem Relato de um certo Oriente e Dois irmos. Nessa perspectiva, pode-se dizer que tais romances tambm constituem algo novo, pois revisitam com habilidade e traos particulares os referidos temas de fundamento telrico, mas de uma maneira totalmente diferente da de Mrcio Souza. O que se v em Hatoum a reinsero deles numa ambincia peculiar, construda pela memria, amparada ao mesmo tempo na lembrana e no esquecimento. As especificidades geogrfico-sociais que suporiam, para um olhar de fora, provavelmente eurocntrico, questes mais marcadamente brasileiras, precisamente pelo fato de a atmosfera narrativa situar-se em Manaus, centro importante do norte do pas, encravado no meio da floresta amaznica, cujos esteretipos dizem respeito sobretudo cultura indgena, esbatem-se numa atmosfera quase onrica, dada pelo fluir de um tempo construdo pelos narradores, que lembram o que sabem ou supem saber e imaginam o que no sabem. Assim, inserida nesse territrio nico e outro, cuja aura de exotismo queira-se ou no - j faz parte das representaes simblicas do resto do pas e do mundo, o autor situa mais um territrio, a Manaus imaginria da sua memria, e ainda um outro, no menos extico para quem no o conhece, o das famlias libanesas ali radicadas, seu ncleo afetivo principal.16 Sabe-se que essas famlias comearam a chegar Amaznia na primeira dcada do sculo XX, continuando a vir durante todo o ciclo da borracha. No incio, dedicaram-se ao comrcio ribeirinho, destacando-se principalmente como regates. Aos poucos, passaram a atuar nos principais centros urbanos, com a criao de estabelecimentos fixos ou ambulantes, por meio dos quais ascenderam social e economicamente. J nessa fase, solidamente estabelecidos, mudaram-se, em Manaus, para os bairros mais novos, livres de uma ligao maior com o rio Negro e com os igaraps que cortavam a zona mais marginal. A prpria construo de suas casas refletia essa ascenso e o distanciamento em relao s populaes mais pobres, valorizando-se os casares situados em amplos terrenos ou chcaras, que so mais um territrio importante transposto para os romances em questo. No estilo delas e na disposio de pomares e jardins luxuriantes, expressava-se a diversidade da origem de seus habitantes, bem como no convvio entre parentes, vizinhos e amigos, em festas e comemoraes de carter religioso ou no17. So como territrios concntricos, um dentro do outro: a Manaus real e seu duplo, a Manaus imaginria; dentro, a colnia libanesa, no centro da qual as casas das famlias avultam como espao privilegiado. Desses territrios fecundos - aos quais corresponde a prpria forma narrativa, montada com relatos que brotam uns de dentro dos outros -, Hatoum extrai sua matria, constituda por uma malha cultural variada e tpica, baseada na interrelao entre imigrantes, estrangeiros e nativos18, que estabelecem relaes de identidade e de estranhamento com um mundo diverso, no qual um difuso sentido de perda est sempre presente.Se algo havia de anlogo entre Manaus e Trpoli, no era exatamente a vida porturia, a profuso de feiras e mercados, o grito dos mascates e peixeiros, ou a tez morena das pessoas; na verdade, as diferenas, mais que as semelhanas, saltavam aos olhos dos que aqui desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase sempre pressupe uma mudana na vida: a paisagem ocenica, as montanhas cobertas de neve, o sal martimo, outros templos, e sobretudo o nome de Deus evocado em outro idioma19. Assim, esses territrios concntricos na verdade comportam um descentramento de fundo, que o leit-motiv das duas narrativas: so famlias de imigrantes j adaptadas a uma outra cultura e que com ela dialogam, num jogo em que se alternam o lugar e o no-lugar da prpria identidade, pois bem no mago delas subsiste o estranhamento. Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes de uma matria dada por uma regio especfica, com outros advindos de matrizes narrativas de inspirao europia e urbana, formadoras da nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contm horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo. Com isso, o autor revitaliza o gnero, num momento da histria da fico brasileira em que ele parecia aos poucos estar se esgotando. Talvez essa seja a chave para entender a repercusso que a fico de Hatoum encontrou: dentro da estrutura geral da sociedade brasileira, o seu regionalismo ainda tem o papel de acentuar as particularidades culturais que se forjaram nas reas internas, contribuindo para definir sua outridade, ao mesmo tempo que as reinsere no seio da cultura nacional como um todo, por meio de sua temtica universal. Por isso, como se v nos dois romances, conserva intactas na memria, como fontes de referncia, o que hoje so as runas dos aspectos do passado que contriburam para o processo de singularizao cultural da Amaznia e, conseqentemente, do Brasil; para obter esse efeito, o autor alonga e explora o arco temporal, abrangendo vrias dcadas e suas transformaes. No por acaso, portanto, o que emana do discurso com mais contundncia o sentido de busca de uma identidade: manauara, brasileira, mestia, libanesa ou tudo isso ao mesmo tempo, expressa sobretudo na figura do narrador. No se trata aqui de uma relao com o que se tem denominado multiculturalismo20; este, na verdade, parece expressar o desejo e a possibilidade de integrao de setores de grupos social e economicamente subalternos ao mercado capitalista, por meio de uma representao apenas formal das identidades, que se do a conhecer como uma mercadoria entre outras. Nos textos em questo, a busca da identidade corresponde histrica busca da expresso nacional que sempre orientou a fico brasileira, pois, alm da experincia compartilhada da desigualdade - mais que o essencialismo desta ou daquela identidade -, elabora-se sobre uma dupla comprovao: de um lado registra que a cultura presente na comunidade manauara, em permanente mutao, compe-se de valores particulares, historicamente elaborados; so os elementos indgenas, os mestios e os resultantes dos vrios fluxos migratrios; de outro, corrobora a energia criadora que move essa cultura, fazendo-a muito mais que um simples conjunto de normas, comportamentos, crenas, culinria e objetos, pois trata-se de uma fora que atua com desenvoltura, criando nexos profundos e originais no interior das narrativas. Tem-se, pois, o que Rama21chama transculturao: Um processo no qual ambas as partes da equao saem modificadas e do qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, uma realidade que no uma aglomerao mecnica de caracteres, nem mesmo um mosaico, mas um fenmeno novo, original e independente. Esse tipo de construo ficcional supe uma a linguagem que expresse a pluralidade dos enfoques. Desse modo, o autor trabalha com a incorporao de termos que migraram para a lngua portuguesa pelo contato com a cultura rabe, com o tupi e outras lnguas, num equilbrio dinmico. uma algaravia de lnguas diferentes que povoa as ruas e o porto de Manaus, dando a medida das identidades particulares gestadas naqueles territrios e refletidas no universo dos romances. Muitos desses termos referem-se a alimentos, enfatizando o paladar como uma das formas mais importantes de apreenso e conhecimento do mundo, mas o seu sentido de transculturao que importa.O homem que deixara a clientela do restaurante manauara com gua na boca j era um exmio cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do azul. (...) E quando visitava uma casa beira mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultan Ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com tucupi jambu e regava o peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortel e zatar, talvez22. Como se v, esse tratamento da linguagem reveste tambm um componente obrigatrio de toda definio de cultura: a tradio, pois, embora novo e original, esse territrio hbrido criado pelos relatos construdo com base na histria das culturas a representadas, na lngua e na literatura que as expressam. Assim, o regionalismo de Hatoum, como apontamos, recorre a articulaes literrias europias incorporadas e consagradas, buscando amplitude e espessura, sobretudo no recurso s histrias em moldura, que exigem meticuloso trabalho com os narradores e remetem to longe quanto s Mil e uma noites. E sendo enformado por esse componente da tradio literria, aparentemente conservador, que d respaldo aos dramas humanos ali expressos como tema central, o aspecto particularizante e inovador, dado pela matria regional, brasileira, ganha vida e contedo crtico, principalmente porque assim faz ressaltar um dos temas secundrios dos romances, que j apontamos antes e mais evidente em Dois Irmos: o conflito das regies interiores com a modernizao que dirige capitais e portos, instrumentada pelas elites dirigentes urbanas, sobretudo das regies mais desenvolvidas, imbudas da ideologia do progresso a qualquer preo. Em Dois irmos, surge assim, por exemplo, como duplo deformado de Manaus, a imagem ansiada da So Paulo dos anos 50, de onde chegam as cartas de um dos gmeos, que l fora estudar:Com poucas palavras, Yaqub pintava o ritmo da vida paulistana. A solido e o frio no o incomodavam; comentava os estudos, a perturbao da metrpole, a seriedade e a devoo das pessoas ao trabalho. De vez em quando, ao atravessar a Praa da Repblica, parava para contemplar a imensa seringueira. Gostou de ver a rvore amaznica no centro de So Paulo, mas nunca mais a mencionou. (...) Agora no morava numa aldeia, mas numa metrpole.23 Mais tarde, chegam a Manaus tambm os ecos da euforia da inaugurao de Braslia, denunciando outras ideologias, a da integrao nacional juscelinista e do discurso modernizador do regime militar. Nessa transculturao problemtica, so os dois brasis que se defrontam o mormao e o atraso do norte, o frio e o progresso do sul -, numa praa de Manaus, onde a crueldade da represso mata o professor de francs Antenor Laval, personagem marcante na vida dos dois irmos, num dos episdios mais pungentes do livro. E a nsia do progresso que completa a derrocada da famlia, transformando-lhe a casa numa grande loja de quinquilharias importadas de Miami:No chegou a ver a reforma da casa (...) Os azulejos portugueses foram arrancados. E o desenho sbrio da fachada, harmonia de retas e curvas, foi tapado por um ecletismo delirante. A fachada, que era razovel, tornou-se uma mscara de horror, e a idia que se faz de uma casa desfez-se em pouco tempo.24 J no Relato... h um outro territrio imaginrio e ideal servindo de contraponto a Manaus, instituindo uma disparidade ainda maior, a da desigualdade norte/sul globalizada, e referendando as fontes europias do romance; trata-se de Barcelona, auratizada pela distncia, onde habita o interlocutor de quem organiza o (R)relato:(...) imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Famlia e o Mediterrneo, talvez sentado em algum banco da praa do Diamante, quem sabe se tambm pensando em mim, na minha passagem pelo espao da nossa infncia: cidade imaginria, fundada numa manh de 1954... 25 Um outro aspecto a considerar no que tange presena da fora da tradio na construo narrativa diz respeito aos dois eixos que a ambas sustentam, como dissemos antes, o anncio e o segredo. Tanto em um como em outro livro, essa construo prende a ateno do leitor durante todo o relato, por meio de indcios aqui e ali disseminados pelos narradores, cuja identidade a princpio se desconhece e que vo introduzindo novas chaves ou prenunciando um desenlace sempre adiado. um recurso narrativo que Aristteles j descrevia como reconhecimento e peripcia, como lembra Leyla Perrone Moiss, no artigo citado, afirmando que, atualmente, tais recursos foram redescobertos como uma demanda permanente do ser humano e por isso tm sido usados em inmeros textos ficcionais. Nessa linha, pode-se mesmo afirmar, pois, que existe uma dimenso mtica presente na urdidura dos textos. Por conseguinte, os narradores, que detm o poder do segredo e do anncio, funcionam como os ugures que decifram os indcios ao seu redor, recuperando-os pela memria ou reconstruindo-os na imaginao, apontando assim os caminhos da leitura e sendo responsveis por toda a fabulao romanesca.Eu no sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infncia sem nenhum sinal de origem. como esquecer uma criana dentro de um barco num rio deserto, at que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gmeos era meu pai.26 Ou ainda:Na fala da mulher que permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranas, um mundo paralisado espera de movimento. Sim, com certeza Emilie j lhe havia contado algo a nosso respeito. A mulher sabia que ramos irmos e que Emilie nos havia adotado.27 O regionalismo de Hatoum, com sua dimenso particular, requer personagens densas e bem estruturadas, com espessura e vivncia profunda de sentimentos e emoes. Elas existem em profuso, nesse reino de figuras fugazes mas fortes28, tanto do Relato... como de Dois Irmos. Protagonistas, adjuvantes, todas brotam verossmeis do cho manauara, tal como ele se constituiu historicamente e continua vivo na memria dos narradores.O que mais chama a ateno, nesse aspecto, que os dois romances trabalham com um grupo de personagens centrais semelhantes na sua caracterizao, desempenhando papis parecidos, o que evidencia a matriz narrativa do autor, gestada justamente no seu territrio particular, mistura original de culturas e estratos sociais. H um primeiro grupo, o das figuras femininas, no qual avulta a presena fortssima de duas matriarcas, memria viva das histrias da famlia, depositrias de relquias e segredos, espcie de pilar bsico a sustentar a casa e os textos: em Relato..., Emilie, a matriz de tudo, traz suas histrias escondidas simbolicamente na cavidade de um velho relgio quebrado, sob a forma de antigos objetos, cartas e fotografias; em Dois irmos, Zana, a me dos gmeos, guarda por toda a vida os gazais que Halim, seu marido, recitou para conquist-la, smbolos da sua cultura de origem. So essas mulheres que decidem os rumos da famlia, enquanto o destino inexorvel no lhes toma as rdeas das mos. As figuras femininas, portanto, so o centro difusor da ao e das narrativas. Por elas passam as decises, as lembranas e o passado da famlia. Elas s no dominam o futuro, dado por outras coordenadas. O mundo dos homens mais direto e aberto e, sem que eles tenham muita conscincia disso, os fios de suas vidas so tecidos pelas escolhas feitas por elas. Pode-se mesmo dizer que as mulheres so causa e os homens conseqncia; elas so matrizes e nutrizes da vida e dos textos, mesmo quando no so narradoras principais.(...) j podias fixar-te no solo e andar sozinho, mas continuavas cercado por uma muralha de mulheres exalando odores to estranhos quanto seus nomes: Mentaha, Hindi, Yasmine.29 Nos dois romances existem irms: Rnia e Samara Dlia, belas e enigmticas, tomam a frente dos negcios da famlia, revelando um tino comercial que culturalmente atributo masculino e que lhes permite sobreviver depois da derrocada. Sua sexualidade oculta entre as quatro paredes das casas, que s se realiza com os homens da famlia ou com algum desconhecido de todos, uma fora represada que, entretanto, poreja toda a narrativa. H tambm as empregadas, crias da casa, a ndia Domingas, me do narrador de Dois irmos, que morre sem revelar o segredo de sua verdadeira paternidade, e Anastcia Socorro, que no chega a ser parte importante da histria do Relato.... Mas Hindi Conceio, a amiga maior, com seu cheiro mais enjoativo que o do gato maracaj, quem vai dar os ltimos pontos, referentes morte de Emilie, no intrincado bordado das histrias colhidas pela narradora do Relato... No grupo das personagens masculinas, avultam as de Dois Irmos, talvez porque a narrativa seja mais dramtica, os embates sejam mais concretos e contenham uma certa crueza que no h no Relato..., mais lrico, menos direto nas suas motivaes, pois a narradora, recm-sada de uma clnica para distrbios mentais, ouve as antigas histrias da famlia, que lhe chegam como ecos distantes, para tentar desenredar os fios de sua existncia. Em Dois Irmos, a figura do narrador masculina, o que faz diferena. Alm disso, pertence a um estrato subalterno: trata-se de um curumim, filho de uma ndia domesticada e estuprada por um descendente de imigrantes libaneses, o que atualiza o tema central do romance, como vimos, a busca da identidade, em meio a um territrio marcado pela multiplicidade. Esse tema se reafirma na histria dos gmeos Omar e Yakub, cada um tendo que conviver com seu duplo, disputando um lugar na famlia e no corao da me. Nessa trama, imediatamente se podem identificar ecos bblicos e machadianos. Esa e Jac, de Machado de Assis, a referncia mais forte e a crtica j apontou isso,30mas o conflito entre gmeos tem sido fartamente explorado em todas as culturas e em todos os gneros; assim sendo, tambm um mito amerndio, o que refora por outras vias a questo do regionalismo, tambm j esboada pela escolha desse narrador especfico.31 Dentre todas essas personagens masculinas, merece destaque Halim, o pai dos gmeos, uma espcie de rplica do patriarca do Relato..., como este marcado pelo deslocamento geogrfico e interior, embora em tom menor. Mais que todas as outras figuras dos dois romances, ele quem revela o aspecto de transculturao acima referido. Halim passeia seu desalento ao longo do livro, mas este se deve mais ao fato de ter perdido o amor da mulher para o filho Omar do que propriamente por no estar mais no seu pas de origem. Ele no um nostlgico, no se sente desterrado, pois gosta de Manaus; no seu quotidiano h traos do Amazonas e do Lbano: a lngua, a comida, as relaes sociais e de trabalho. So dois mundos porosos, que se interpenetram, ficando a clara a transculturao, da qual o restaurante Biblos e o porto de Manaus - onde o portugus se mistura a outras lnguas, condimentado com cheiros e sabores variados -, so o smbolo maior. Ento, o paralelismo que se pode observar entre as personagens centrais dos dois romances, todas pertencentes a um territrio geogrfico e afetivo particular, tambm se v em outros aspectos: no tema da busca da identidade; no tratamento do tempo que isso implica, pois se est procura do tempo perdido; na atmosfera de segredo e espera; no erotismo, velado ou explcito; na nostalgia e melancolia de quem perdeu algo que no sabe bem o que e sobretudo na combinao original de traos urbanos, universais, pertencentes s narrativas de todos os tempos, com traos regionais, locais, dados pela Amaznia do autor. O regionalismo revitalizado de Hatoum repousa, assim, em dois pontos centrais, a memria e a observao, sendo aquela inteiramente responsvel pela carga afetiva que a esta dinamiza. A memria, nesse sentido, tanto pode ser entendida como a do autor, que revisita ficcionalmente a Amaznia de sua infncia, quanto a dos narradores, que buscam por meio de um relato, os traos perdidos de sua identidade. Trata-se de um processo mental duplamente trabalhado, se assim se pode dizer, o qual, como quer Candido, elabora conscientemente uma realidade humana, extrada da observao direta de seus territrios materiais e subjetivos, com sensibilidade plstica, apuro lingstico e acuidade psicolgica. Sobretudo a partir da acomodao das transformaes modernistas, que paradoxalmente lhe deram nova dinmica e angulao, o regionalismo tem sido visto, por uma parte da crtica, como um tipo de literatura presa a razes que se querem esquecer ou, no melhor dos casos, superar32. Razes agrrias, de extrao colonial, que se expressariam sempre num modelo de alguma forma realista e nacionalista, de fidelidade ao meio a descrever, baseado numa concepo mimtica da arte. Dessa espcie de fatalidade, que perseguiria a quase todos os que se aventuraram por esse caminho, a despeito das diferenas entre si, poucos escapariam sem ressalvas, provavelmente apenas Graciliano Ramos e Guimares Rosa, por terem sublimado a suposta deficincia do modelo com uma viso mais crtica das relaes sociais, no caso do primeiro, ou com um tratamento mitopotico, no caso do segundo. Com relao a essa espcie de preconceito, Alfredo Bosi, escrevendo sobre um outro regionalista, o sergipano Francisco Dantas33, faz uma indagao ilustrativa e bastante pertinente: lcito subtrair ao escritor que nasceu e cresceu em um engenho sergipano o direito de recriar o imaginrio da sua infncia e de seus antepassados, pelo simples fato de ele ser professor de universidade ou digitar os seus textos em computador?. No no caso de Hatoum e de tantos outros antes dele e como ele, que utilizaram o gnero com evidente qualidade esttica, fazendo-o funcionar como um instrumento de descoberta do pas (que tanto ainda tem a descobrir!), sem descurar do aspecto humano e sem exaltar o pitoresco da fala e do gesto, sem tratar o homem como apenas mais um elemento da paisagem extica, que se d a conhecer aos leitores das cidades do pas e do mundo. Desde sempre, os centros urbanos foram os principais plos criadores e transmissores de cultura; hoje, em tempos de mdia e mercado, so as grandes cidades do sul e sudeste do pas que disseminam a cultura globalizada que nos chega dos plos emissores do primeiro mundo, permitindo, entretanto, conservar como rentvel folclore ou artesanato a pluralidade cultural das regies mais afastadas ou dos setores subalternos, integrando-os num multiculturalismo de mo nica. a esse tipo de situao que responde o regionalismo de Hatoum: lanando mo das contribuies das matrizes literrias urbanas clssicas, modernas e contemporneas, j incorporadas, e sua luz revendo os contedos regionais, compe um tecido rico no seu hibridismo, que conserva vivas todas as suas fontes e capaz de continuar transmitindo a herana delas recebida. uma herana renovada que, todavia, ainda se identifica completamente com o passado, resgatando-lhe a identidade e impedindo sua transformao em texto multicultural. Nesse sentido, ele consegue no esquecer, mas lembrar; no superar, mas resgatar em termos artsticos de inegvel valor o impasse criado pelas desigualdades de fundo da vida social e da multifacetada cultura brasileira, num movimento de incorporao simultnea de termos heterogneos e numa sntese de profundo significado humano e poltico.Bibliografia citada: Arrigucci, Davi. Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, in: Outros achados e perdidos. So Paulo, Companhia das Letras, 2000.. Beverly, John. Subalternidad/Modernidad/Multiculturalismo, in: Revista de Crtica Literaria Latinoamericana. Ao XXVII, no. 53, 1er. Sem. del 2001.. Bosi, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. So Paulo, Cultrix, 1994.. Candido, Antonio. Formao da Literatura Brasileira Momentos decisivos. So Paulo, Martins Fontes, 1969, 2 vol.. Daou, Ana Maria. A belle poque amaznica. Rio de Janeiro, J. Zahar Ed., 2000.. Hatoum, Milton. Dois Irmos. So Paulo, Companhia das Letras, 2000.. Hatoum, Milton. 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Literatura brasileira contempornea: a busca da expresso nacional, in Anos 90 Revista do curso de Ps-graduao em Histria, UFRG. Porto Alegre, no. 2, maio 1994.Tnia Pellegrini professora e doutora. Possui graduao em Letras Portugus Francs pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (1971), mestrado em Teoria e Histria Literria pela Universidade Estadual de Campinas (1987) e doutorado em Teoria e Histria Literria pela Universidade Estadual de Campinas (1993). Pesquisadora Associada ao Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford. Foi professora visitante na Universidade da California, Santa Barbara (2002). Atualmente Adjunto 4 da Universidade Federal de So Carlos. Tem experincia na rea de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Sociologia, com nfase em Sociologia da Cultura e da Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: fico brasileira contempornea, indstria cultural e narrativas visuais (cinema e televiso).