Mindelact 2012

26
Diário do Mindelact

description

O diário do mindelact de criação colectiva e publicação em exclusivo do discuro de encerramento não lido pelo Presidente da República de Cabo Verde.

Transcript of Mindelact 2012

Page 1: Mindelact 2012

Diário do Mindelact

Page 2: Mindelact 2012
Page 3: Mindelact 2012

Diário do Mindelact Coordenação e Design de Samira Pereira

Textos de Abrãao Vicente, César Schofield Cardoso e Carlos Araújo Fotografias de Diogo Bento

Dia 1 Cabeças a abanar… Abrãao Vicente

Dia 2 Monte Cara fumando nuvens… Abrãao Vicente Dia 3 Bsot Tud Abrãao Vicente Dia 4 Punhais de Prata na valsa número 6… Abrãao Vicente Dia 5 Um brinde Abrãao Vicente Dia 6 “ ” Dia 7 Nós sentimos magia César Schofield Cardoso Dia 8 Pará Moss Carlos Araújo

Dia 9 Discurso de Encerramento do Festival Presidente da República, Dr. Jorge Carlos de Almeida Fonseca

Page 4: Mindelact 2012
Page 5: Mindelact 2012

Cabeças a abanar... Mas afinal do que é que se alimentam os artistas. Da loucura, por certo. Cabeças a abanar, corpos em transe e a música das ilhas. Toda a música das ilhas. Quem são os loucos. Onde pára a lucidez. Na verdade com lúcidez há muita razão em desis-tir. Mas estes tipos não desistem. Falo dos artistas, claro, mas também das gentes do Mindelact. Cabeças no ar dizia eu, mas antes disso uma estranha e belíssima coreografia dos alunos do 14º Curso de Iniciação Teatral. A performance "As 4 Estações" na esta-ção das chuvas num dia em que fez Sol em Mindelo. Talvez por isso, hoje, as arvo-res da cidade abanam as cabeças pedindo chuva. As quatro estações com Pina Baush dentro e a rua de Lisboa em espanto. Serão loucos esses meninos de cabe-ça ao ar como as árvores da manhã de hoje pedindo chuva.E dizem que ontem foi o primeiro dia. Como é possivel o primeiro dia acontecer aos 18 anos. E esta cida-de que está sempre alerta apesar de silênciosa. Onde se bebem os vinhos, senho-res? Onde se pisam as letras, onde se compra o futuro? Porque é que as nuvens insistem em tapar a cara ao Monte Cara. E de noite esse burburinho, o jantar às pressas e o Mágico Corsa querendo mudar de camisa. Entretanto três matulões no mítico Renault4 do pintor dos monstros. Tchalê de COHIBA na boca, Corsa indicando o caminho pelas ruas de Mindelo e eu contando os minutos entre sorrisos e gargalhadas pela magia do momento. Em Mindelo, acontecem coisas sublimes enquanto se espera que a magia aconteça. Acontecem abraços inesperados e a palavra SODADI é pronunciada nas suas mais variadas formas e tonalidades. Lembrei-me de repente que este é o primeiro Min-delact sem Cesária Évora. As coisas de que se lembram quando Monte Cara se vê por toda a cidade. As àrvores abanam os ramos e talvez chova hoje em Mindelo. Tenho pena que mesmo à chuva a estátua de Cesária continue comendo gelados no aeroporto. Há monstros que devem ser destruídos e em seu lugar plantar a arte. Mas é preciso coragem para se alimentar a arte em vez de simulacros. Não há lógica nem na cobardia nem no esquecimento. No palco, Mano Preto, o coreógrafo dos Raíz de Polón consolida a sua linguagem em Cidade Velha. Todo o diccionário, todo o corpo, toda a alma do longo percurso de Raíz di Polón numa peça de extraordinária beleza. De que material é feito o artista. De carne e osso, suponho. E por isso tanta subtileza, tanto encanto. Passo e repitiçao. Traços e movimentos. Corpos e fragmentação. Da Rosa, Rosy, Kaka, Zeca, Susana e Djamila. Os 6 bailarinos no palco e umas lágrimas de emoção que me queriam assaltar a face. Esses artistas são loucos. É preciso loucura para tanta lucidez, loucura para inventar espaços tão precisos onde se pode viver sem corpo nem peso. Apenas alma e ritmo. Começou o Mindelact, pois é Setembro, chove nas ilhas e ainda há seres humanos de uma bondade e de uma força de vontade extraordinária para remar contra a maré e acreditar no sonho. O Mindelact é um oásis de optimismo nas artes em Cabo Verde. Como se constroi o corpo de um artista. De sonhos, senhores. De sonhos

Page 6: Mindelact 2012
Page 7: Mindelact 2012

Monte Cara fumando nuvens... No mindelact faz-se teatro de qualidade. Não tenhamos dúvidas disso. O Minde-lact é feito de sangue novo. Sabiam que a disciplina é remédio santo para muitos males. Onde estão os notaveis desta ilha que não os vejo, onde estão os críticos da cartola que não sinto os seus aplausos. O cego e o paralítico. Qual deles um de nós. Tens de pensar mais em mim, disse o cego. Eu disse que tinha pena de ti quando os outros te faziam mal não quando eu te faço mal, disse o paralítico. Egos e sirenes ao pé da baía. Monte cara fumando nuvens, jovens em transe na Ribeira da Craquinha. É preciso "Sabê Vivê" nha boyz. Vinte escudos ta bom mister. Silvia e Elba Lima mais uma vez com pedagogia no Jotamont e os do Craq'Otxod num jogo sedutor de corpos e silhuetas vaticinam uma nova Ordem Mundial. Tu com as minhas per-nas e eu com os teus olhos. O cego e o paralítico imitando a parafernália das ilhas. Cada uma sua virtude num negócio improvável de comadres. Meter o pau no fun-do da ferida e fazer gritar o ceguinho. Desamparar o paralítico das nossas costas e tentar a fuga. Em Mindelo há gente capaz de fazer um Mindelact em 18 temporadas. Mas é pre-ciso também haver gente capaz de impludir os tanques de combustíveis que estragam a paisagem, é preciso haver gente que ponha fim à ignorância doentia das palavras sem acção repitidas décadas após decadas. É o teatro senhores, é o teatro. Muitas polpas "pregod" na laginha sem saber que na Craquinha uma Romina, ma katelene, ma Salete, uma Gielinda, um Fabrisio e uma Janilda acreditam no teatro e transfiguram suas vidas em momentos de catarse e pasmo. Há muito talento nesta ilha. Há barcos afundados na baía. Não os vemos, mas estão lá. Piratas e sereias que encandeiam os nossos passos a cada madrugada. Se o cego consegue ver eu também posso andar. Matar o cego e descobrir o improvável. Cegos em delirios. Paralíticos visionários. Seremos nós cada um deles. Qual de nós? Raul Rosário e Correia Adão Pelinganga foram maiores que o texto. Soberba interpre-tação. As homenagens são provas de gratidão. Ontem os de Angola, irmãos do Elinga Teatro, receberam a estatueta e falaram de coraçao um "obrigado". Obrigado não, pois como disse José Mena Abrantes no momento "isto não pode ter sido somente pela amizade que nos une". Pois não. Foi pelo mérito, pela caminhada juntos, pelo talento.Obrigado sim. Os artistas, suas taras e fantasias. Conversas. É preciso mais escrita dramatúrgica caboverdiana. Proponho as penas de Filinto Elisio, de Chissana Guimarães (por onde andará a Chissana?), de Silvino Évora e de Caplan Neves. Proponho um pré-mio anual para o melhor texto dramaturgico caboverdiano. Proponho que seja financiada por uma grande empresa nacional. Mas dizia, os artistas, suas musas, suas nuvens...isso, Capitão Farel debitando his-tórias e Monte Cara indiferente ao azul enquanto caça nuvens ao acaso no céu do atlântico mar.

Page 8: Mindelact 2012
Page 9: Mindelact 2012

Bzot tud...

"Bzot tud merecé um merda" berrou o bêbedo em frente à praça nova. O Palhaço Enano imitando fucinhos, criando o non sense na cidade paralisada pelo improvável golpe da ironia."Bzot tud merecé um merda", volta a atacar o bêbedo urbano. Será isso a traduçao literal para a linguagem dos bebe-dos da clássica frase "muita merda" usada pelos actores para desejar boa sorte e um bom espetáculo aos colegas. A que espetáculo estará ele a referir: à cidade paralisada, às meninas que oferecem "cafés" em frente aos hotéis do centro, às mãos estendidas aos loucos da cidades, aos citadinos sen-tados nos cafés ou ao palhaço Enano e Nick Fortes feitos cão de raça da madame Zenaida Alfama. Isso ou o cupido louco que anda pela cidade em enanomanias. Bzot tud merecé um merda, isso digo eu. Já dizia Nelson Rodrigues que com bons sentimentos nem literatura, nem política, nem futebol.

Da varanda fotográfo Monte Cara várias vezes ao dia. Sempre diferente. Tento imaginar esse monte sem a cara, faço mil malabarismos com a mente para eliminar a cara ao monte. Desconsigo tal como as personagens de Mia Couto. Volto a tentar, agora imaginar esta cidade em Setembro sem o Minde-lact. Mil malabarismos. Desconsigo e dou por mim a saber da minha falta de imaginaçao para o improvável.Bzot tud merecé um merda. Entenderá Monte Cara a perversidade desse grito. Os da Morada, dos Calhaus, das Baías das Gatas, dos navios afundados. As crianças e os teatros de fantasia. Beckett fazendo figas.

Há muito que nos retirámos da pressa dos dias e do desassossego das noite. Escreveu Al Berto com os exactos cinco "S" da palavra contrária a sossego que por sua vez apenas três. "N ka ten tempo,N ka ten tempo,N ka ten tempo... A fisicalidade de Spinola emprestada ao coelho da Alice. Alice que perdida e mesmo assim rebelde e petulante. Laura Branco sai aos seus com graça e talento. Nós aplausos. Onde estão as crianças de Mindelo na tarde de domingo. Perdidas no mundo mágico da Alice ou será da Janaína Alves. Beckett fazendo figas, Nelson chingando "só o rosto é indecente" cavalheiros. Só o rosto é indecente..."do pescoço para baixo, podia-se andar nu".N ka ten tempo,N ka ten tempo,N ka ten tempo... Crianças em delirio, pois cabeças irão rolar.

No pátio do CCM outras magias e a ternura da descoberta.Enano insistindo em ser bailarina troca as voltas ao menino Nilo Independente e à plateia com dores nas bochechas. Isso e Arménio Vieira con-jecturando novas faunas entre Heliofante, Plurifante, Mitofante, Necrofante, Ornifante, Putifante, Androfante, Fenolofante e assim por diante. Alice, mais à frente desvendando novos talentos entre Cristian Andrade, Ricardo Fidalga, Patricia Silva, Adilson Spinola, Susy Maocha, Ná Lopes, Quelton dos Santos, Genú Delgado, Yara Azevedo, Aramis Évora, isso para não repitir Laura Branco que por razões várias devo aqui revelar ser filha do magnifico chapeleiro bebedor de chá João Branco. Algo inimagi-nável pelo próprio Lewis Corroll que também por certo não teria tanta imaginaçao como os Minde-lenses para botar nomes aos filhos."Bzot tud merecé um merda" no mais teatral dos sentidos, claro.

De resto é preciso dizer que devemos voltar à Craquinha e não deixar que os canalhas do costume boicotem a escolha da maioria. De resto é preciso dizer que a magia de Corsa cura pela fantasia e pela perspicácia e que nada nos impedirá de acreditar. Isso porque cabeças irão rolar e lá fundo o velho bêbedo tem as suas razões quando apregoa sem pudor: "Bzot tud merecé um merda".

Page 10: Mindelact 2012
Page 11: Mindelact 2012

Punhais de Prata na valsa número 6...

Onde há gente neste mundo. Um bispo promíscuo, uma raínha submissa,um cavalo que chuta

heroína nas veias, príncipe afinal,um Rei em cadeira de rodas. Fim. O bispo outra vez. Entre todos.

Cheque mate. HIV. Positivo. O monólogo das desgraças num espaço secreto do coraçao de Minde-

lo. Cheque Mate. Dei a volta ao mundo e de todos os lugares trouxe objectos típicos, característi-

cos. Em Cabo Verde não encontrei nada. Trouxe a morabeza. Xeque mate. O bispo, o príncipe, a

rainha, o rei. Positivo no sangue. Um lugar secreto de Mindelo. Sídney Bretanha. Fernando pessoa

e seus "eus" entre Nelson Rodrigues e a menina que via caras e se envergonha de ver pés nús. A

valsa número 6. O importante é não dar muita confiança à morte. Luisa Thiré perseguida por um

vestido. Deslumbrante. Sôoooooooniaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Grito. Paaauuuulooooooooooo!

Grito. A transição. Foi da transiçao. 15 anos. 14 anos! 15 ou 14 anos que importância tem. Cheque

mate. Fumar cigarros em ambar. Cravar punhais de prata na valsa número 6.O importante é não

dar confiança à morte. Onde há gente nesta terra. Ana Madureira

com cachupa no estômago e morabeza na mala. Risos. Eu não mataria ninguém...Mas ela, ela é

capaz de tudo. Meter os braços pelas ventas da vaca e ajeitar o bezerro. Repensar o contrato entre

as vacas e Deus, Quico Cadaval. Filosofias. Anoitecer em Mindelo. Uma raínha submissa.Silêncio. O

palco e suas entrelinhas. Como podem caber tantas sensações num só dia. Os palcos. Nelson Rodri-

gues e suas adúlteras bebendo grogue com as meninas e boémios de Mindelo. A escrita criativa por

um fio. Heroína pelas veias. Pessoa passeando Caeiro. Sôniaaaaaaaaaaaaaaaaa...onde estão as

vossas caras. Tantos olhos! Meu Deus.Deus? Xeque Mate. O teatro. O palco. Vida. Onde há gente

nesta cidade. Cheque mate

Page 12: Mindelact 2012
Page 13: Mindelact 2012

Um brinde... Vou lamber toda a carne podre porque é isso que as cadelas fazem, diz Sandra. Um brinde às coisas simples. Algures no coraçao da cidade, mais uma vez: um bispo promíscuo, uma rainha submissa, Um cavalo que chuta heroína nas veias e um Rei em cadeira de rodas. Sônia calada já. Luisa Thiré e seu olhar passeando por Minde-lo. Implacável fronteira. Piano nenhum. A valsa número 6 morta e enterrada. De onde veio tanto sangue. Por-que não completa sua volta de bailarina essa menina. Demasiado mulher. Não é professor. Silêncio, silêncio, silêncio. Demasiadas palavras e Janaína Alves. Sandra. Menina, vem aqui ao professor. Um brinde às coisas simples, um brinde aos muros invisíveis, um brinde às palavras nunca ditas. Um Brinde Caplan Neves. Um brinde a ti e à tua arte. Que posso dizer de ti João Bran-co. E se disser: FIXE pah! Mereces mais, bem sei. Olha já és crescidinho, tás feito um mestre. A viagem fez-te bem. E agora se te desse um abraço e "FIXE pah". Ficas por cá? Já são 20 anos pah! Ficas por cá. Porque todo esse sangue nas rodas. Íntimos pântanos. Antes disso tudo, no pátio o gigante Boniface Ofogo e seus animais invadiram CCM. Que mestria a tua Boniface. Radiante. Isso e Enano em toda a parte do Mindelact. Alô,Alô,Alô... É das urgências....Socorrroo. Tanta Janaí-na no palco. Professor de matemática, chama-me Pro-fessor de matemática. Nanda vai-se embora. Que dispa-rate. Beto em off. O absurdo. Enfim sós. Tudo termina de repente. Alô,Alô,Alô é das urgências...não? Oh des-culpe...não, não a senhôra não pode ajudar...vou desli-gar. Assume a minha morte cabritinha. Não te apresses em perdoar. A misericórdia também corrompe. Nelson Rodrigues entre nós. Teoremas. Um brinde à coisas sim-ples, um brinde a ti Fonseca Soares por te despires des-ta maneira, por encarnares o tabú. Um brinde à tua sim-plicidade, ao teu cigarro sempre acesso, ao teu silêncio e à humildade com que desces do palco. João Branco, um fixe para ti. E sabes bem que este fixe tem muitas palavras dentro. 20 anos puto. Vinte anos. Já agora um brinde à luz que também esteve à altura, um brinde a ti Edson Fortes. E tu Sandra, porque voaste do rochedo. Janaína, cresceste muito de um ano para o outro. Mui-tas texturas. Uma mulher. Demasiado mulher. Não é professor? De onde vem tanto sangue. Tanto silêncio. Palmas Mindelact. Um brinde às coisas divinas, um brin-de ao teatro das ílhas. O amor não deixa sobreviven-tes...cala-te Nelson Rodrigues. Um brinde às palavras.

Page 14: Mindelact 2012
Page 15: Mindelact 2012

“Apagaram-se as luzes nes-se teatro onde, dois dias antes, tínhamos visto o homem permitir-se brincar com a própria morte, tro-cando-lhe as voltas e até fazendo os seus próprios planos..”

Page 16: Mindelact 2012
Page 17: Mindelact 2012

Nós Sentimos magia Nós fazemos ilusionismo e vocês sentem magia, disse Corsa Fortes, o nosso mágico, perante um públi-co de crianças e pais vibrantes, no pátio do Centro Cultural do Mindelo, apelidado de Casa do Minde-lact. Seria antes Templo do Mindelact? O que se passa no Festival Internacional de Teatro do Mindelo, ou simplesmente Mindelact, é do domínio do religioso. Trata-se da fé profundamente incrustada na alma dos seus fazedores. Trata-se de devoção, sacrifício, oferendas e trabalho, até à mortificação da carne. Só a religião explica o aconteci-mento do Mindelact. No pátio do Templo do Mindelact crianças e pais vibrantes sentem a magia das estórias de Corsa. Min-delact criou um ciclo de contação de estórias. Não conheço maior investimento que se podia fazer para a Cultura. Ficamos a saber que em Alentejo, Portugal, contam-se estórias que se parecem com as que se contavam em S.Antão ou na remota ilha Brava. Ensinamos aos meninos e relembramos aos adultos as coisas fundamentais e tão básicas, como escutar os acumulados ensinamentos dos mais velhos. Ensinam-se regras de higiene, do bom comportamento, o valor das coisas, dão-se lições de moral, no meio de risos, espanto, excitação e maravilhamento. A escola devia ser um teatro. Ana Madureira faz um jogo de cabra-cega e nós sentimos uma torrente de emoções. Aconteceu assim uma peça (Ou será uma performance? Ou será uma instalação?) num palco montado na ex-esquadra da polícia de Mindelo, edifício que deixou de ser povoado de almas rancorosas para passar a ser espa-ço de inúmeras possibilidades. Ana Madureira tem o poder de cantar, dançar, transformar-se numa aranha, numa cobra, para de seguida ser uma velha bruxa e no momento a seguir uma ingénua noiva. Cabra Cega, de Ana Madureira, é um espectáculo para todos os sentidos e sentires. É sobre nós, a nos-sa ruidosa solidão, as nossas estúpidas fantasias. É sobre carinho da avó e frieza da vizinhança. Nós fazemos sons e vocês veem imagens. Khalid cria mundos em imagens 3D, somente com a sua voz. Ou aliás, com as suas 80 vozes. Faltou só sentir na pele o molhado do oceano que ele cria ou as flechas de índios que dispara contra ele. Faltou só provar o chá servido na sua aldeia povoada de cabras, gali-nhas, patos e outros sons. Nós formamos artistas e garantimos o recomeçar do ciclo. Alunos do 14º Curso de Iniciação Teatral do

Centro Cultural Português apresentam um exercício que revela já em que direcção vai continuar a

acontecer a magia. A peça, de nome Pink Punk, é isso mesmo, é punk, é rock, é universal, é do Minde-

lo, o centro do Universo.

Page 18: Mindelact 2012
Page 19: Mindelact 2012

Pará, moss! Acabaram-se os aplausos; o teatro ficou vazio e, por instantes, Helton, Ailton, Kelton e Ricardo, jovens patrocinadores anónimos do Mindelact, despreguiçam como quem acaba de saborear uma maravilhosa refeição. No entanto, têm fome, têm sono, e têm umas escadas e toda a iluminação da peça de Paulo Miranda por fazer. Não têm Ideia ou mesmo bideias de como vão aguentar e às 3 da manhã quando paro o carro em casa do Ricardo e lhe peço para descer, do mundo do Morfeu ele pergunta: Ma ondê q’nô está? São dez horas da manhã e a vida já renasceu no CCM, rostos cansados e sorridentes cruzam-se e o brilhozinho nos olhos é um abraço reconfortante que vem do coração, e não um aperto de mão que sela o negócio do dia. Esse brilhozinho é antes uma fusão de almas experienciando na união o sonho de um mundo com mais luz, e onde só a ELECTRA é a amante predileta de Hades. E é por entre esse burburinho de pessoas leves que se chega às 17h e o palhaço Xuxu, de uma forma autoritária invade a imaginação das crianças, crianças absolutamente generosas que se entregam nas asas do riso tornando real a fantasia da imaginação. Num canto uma criança observa engolindo cada gesto, cada palavra. Aproximo-me e pergunto-lhe pelo nome e ele me responde que se chama Corsino Fortes. De repente, ficamos amigos de infância. Trocamos pão por fonema e quando baixinho balbuciei: Como palhaço liberto-me da Ignorância, ele me apertou a mão com a elegância do chapeleiro da Alice, e ficamos observando o Corsa Fortes que, como o coelho, passava rapidinho pois ia contar estórias mágicas no problemático bairro da Ribeirinha. Fantástico, disse o meu amigo com aquele sorriso largo que ilumina a alma, e falo- lhe do Icebergue que é o Mindelact e do palco que tem de ser iluminado. Falamos do acervo cultural que ficará depois das inúmeras oficinas que, proporcionando a chance do homem se aproximar mais do ser humano, aumentam a luz do nosso Sol. Uma luz que agora se concentrava no antigo comando policial onde se brincava à Cabra Cega, com Ana Madureira talvez bailando numa história de amor para iludir a solidão e o desassossego. Palmas, muitas palmas e, a correr e ofegantes, sempre seguindo as técnicas de respiração, já estávamos chegando ao átrio interior do CCM onde NicK Fortes/Lais Rodrigues entravam no mundo do Nelson pela caixa de sapatos. Palmas muitas palmas que Mindelo recebe de braços abertos o grupo de teatro Salinas com as suas Bideias com Z. É o começo, que a cultura e Mindelact só são maiores se o Maio também for maior. Apagaram-se as luzes nesse teatro onde, dois dias antes, tínhamos visto o homem permitir-se brincar com a própria morte, trocando-lhe as voltas e até fazendo os seus próprios planos, enquanto ao lado no local onde Aderbal tinha recebido o incentivo de Laura para se suicidar, já se encontrava KHALID K com Alice au pays des GNAWA, dando vida a um mundo de sons e cores.

Page 20: Mindelact 2012
Page 21: Mindelact 2012

Caros amigos,

No ano passado, pouco tempo depois de ter assumido o papel de Presidente da Repúbli-

ca, através do qual o actor não se identifica com a personagem mas é ele próprio a perso-

nagem, recebi um honroso convite desta instituição, que dá pelo nome de Mindelact,

para estar aqui nesta festa do Teatro. Na ocasião, uma vez que não podia estar presente,

assumi o compromisso de compartilhar convosco, neste ano, o inigualável ambiente que

só o teatro, só vocês, podem proporcionar. É pois com um sentimento misto de privilégio

e de satisfação que aqui me encontro para esta confraternização.

Aliás, o convite para estar neste palco e neste ambiente fez-me desembrulhar do registo

de memória tempos em que fui, a par de estudante, actor de teatro, participando em

várias peças, no Liceu «Adriano Moreira», quase sempre sob a orientação de Mário San-

tos, um português exilado em Cabo Verde e professor de História ao tempo. Lembro-me,

entre outras peças, de «Auto de Alma» em que eu representava o «diabo» e contracena-

va com o «anjo» representado por Odete Macedo; de «Auto de Mofina Mendes», creio

que também «Auto da Barca…»; cheguei a fazer um monólogo, representando o papel de

clown. Participei, também, em peças de teatro musical organizadas pelo Centro Paro-

quial, na Praia. A minha paixão pelo teatro era tão grande que, numa ida a Portugal, fui

tentado a ser actor de teatro em jeito de profissional numa companhia da época, mas os

meus pais fizeram-me logo desistir da ideia, pois na altura ser actor de teatro era conside-

rado coisa menor, bom era ser «doutor» (na altura queria fazer matemática ou inglês).

A minha presença neste ambiente não deixa de ser, também, uma representação, prova-

velmente naquilo que este conceito tem de mais sublime, elevado e, contraditoriamente,

concreto. De facto sou, simultaneamente, uma pessoa concreta cujo espírito se alimenta

da emoção que apenas o génio criativo pode proporcionar e a cristalização de algo que,

felizmente, já é um lugar-comum no nosso país, o reconhecimento da excelência, que é o

Festival de Teatro Mindelact.

Se por vezes, por dever de ofício, o Presidente da República personifica a Nação, em cir-

cunstâncias nem sempre prazerosas, ou mesmo dolorosas, quando essa função é assumi-

da num contexto em que o papel de representante de todos os cabo-verdianos contem

um importante elemento da vida que é o prazer, a emoção, a arte, isto é um dos ingre-

dientes mais humanos da pessoa, esse papel passa a ter, para mim, significado muito

especial.

Nos últimos tempos não tenho podido, como desejaria, dedicar-me muito a actividades

artísticas e culturais. Por isso quando sou “obrigado” a fazê-lo, em circunstâncias espe-

ciais como esta, faço-o, confesso, com um entusiasmo quase pueril.

Page 22: Mindelact 2012
Page 23: Mindelact 2012

Porém, estar aqui hoje, contém, mas ultrapassa, de longe, as dimensões do prazer. Nós estamos hoje peran-

te um processo, um movimento, que convida à reflexão. Em primeiro lugar gostaria de ressaltar, sem qual-

quer hesitação, que a marca deste processo, que o Mindelact sintetiza e que a população de S. Vicente

abraça, é o facto de ele assumir que tão importante quanto o alimento do corpo é o da alma.

Sim, precisamos investir no alimento do nosso corpo. Precisamos ter condições que garantam a nossa

sobrevivência. Temos de procurar assegurar as condições materiais para a nossa existência.

Mas não haja ilusões. Se os nossos esforços se concentrarem apenas nessa dimensão, poderemos não ir

muito longe. O Mindelact prova que é necessário e é possível investir na arte pela arte. Tal perspectiva não

contradiz a visão que preconiza que a cultura pode e deve ter reflexos na economia. Acredito mesmo que

essa é a via que poderá permitir que a arte, e a cultura de um modo geral, se associem harmonicamente à

economia sem serem por ela desnaturadas. A arte deve existir por si mesma. O aproveitamento das suas

potencialidades económicas não deve, de forma alguma condicioná-la, pois se assim não for, mata-se a sua

essência que deve ser a liberdade absoluta, o compromisso com a criatividade e nada mais.

Todavia, nada impede que, ao atingir qualidade assinalável, ela arraste paralelamente actividades de cunho

económico, ou que estas se organizem para melhor aproveitar as possibilidades que a cultura e arte podem

abrir. Pelo contrário essa possibilidade é até desejável.

O que tem de ser salvaguardado, a todo custo, e neste aspecto o Mindelact tem feito escola, é a total inde-

pendência estética, a ausência de qualquer compromisso que não seja com a criatividade, com o que, se

bem me lembro, alguém caracterizou como a provocação do «espanto». Naturalmente o percurso, essa

construção, não é fácil e muito menos automática.

Mas não haja ilusões. As lógicas da criação (que geralmente não tem lógica) e as da economia nem sempre

regem-se pelos mesmos parâmetros e por vezes podem até seguir vias opostas.

Se não sou um seu defensor incondicional, também não sou radicalmente contra a chamada indústria cultu-

ral. Porém, insisto que a cultura não deve ser encarada apenas, ou sobretudo, na perspectiva de riquezas

materiais que pode proporcionar.

Ela vale por si. A arte vale por si e é exactamente isso que este festival tem demonstrado. O elevado nível

atingido é uma excelente lição nessa linha, que estes 18 anos têm proporcionado.

Page 24: Mindelact 2012

Do meu ponto de vista um dos elementos fulcrais desse sucesso é a clareza de objectivos que tem caracteri-

zado o festival e que assenta na compreensão da centralidade da arte na vida das pessoas. Mindelact ensina

-nos que a Arte, no caso o teatro, é algo essencial pelo qual se deve bater. É um elemento fundamental na

vida das pessoas e por isso deve ser encarada com toda a seriedade.

Apenas esta percepção, exercitada em todas as suas vertentes, pode explicar a longevidade, desta odisseia,

o aprimoramento constante da sua qualidade, a capacidade de mobilizar gente de países diversos, demons-

trando que de facto é possível conceder um rosto humano à globalização.

Mindelo orgulha-se de Mindelact, das mulheres, dos homens e dos jovens que generosamente dão tudo de

si para que esta cidade viva, anualmente, estes memoráveis dias em que a criatividade e a fantasia são um

elemento muito marcante da realidade.

São Vicente, que tem uma longa e arreigada ligação ao teatro, orgulha-se de Mindelact, pois constata a cada

dia que através do festival, que é o coroar de tudo o que se constrói nessa área ao longo do ano, a tradição

mantém-se, renova-se, recria-se.

Cabo Verde orgulha-se de Mindelact, pois cada vez mais os actores de todas as ilhas e o público de todos os

recantos sentem que o processo é um sucesso, que a presença de grupos de diversas ilhas no festival se tem

revelado um ganho que tem de ser mantido e potenciado. Acredita-se que esta dinâmica possa levar a Rin-

cão, passando por Porto Inglês, S. Filipe, Fundo das Figueiras, Coculi e Nova Sintra.

Mindelact traz o mundo a Cabo Verde e reconhece a sua dívida ao homenagear, como fez este ano, impor-

tantes criadores internacionais.

Page 25: Mindelact 2012

Tendo a criatividade por exigência orientadora e a qualidade por barómetro, o rigor e o profissionalismo

surgem como esteios essenciais para que as possibilidades, sejam aproveitadas e maximizadas, as energias

ampliadas. Apenas desta forma tem sido possível trazer aos palcos e às ruas de S. Vicente o que de melhor

em matéria teatral, se faz no país e no mundo.

Numa mensagem que no ano passado enviei do exterior ao festival ressaltava o facto de ele apontar cami-

nhos de uma abrangência exemplar, porque muito rara entre nós: formações diversas em todas as áreas

relacionadas com o teatro, envolvimento de público de todas as idades, divulgação de criações de todos os

géneros, preocupação com o público dos bairros mais periféricos, envolvimento de grupos teatrais de diver-

sas ilhas.

Esta visão é uma das maiores contribuições que este festival tem proporcionado à ilha, ao país.

Estes dias de muita alegria, intercâmbio, cumplicidade, emoção, descoberta, são, sem dúvida, a congrega-

ção de muita energia, suor, ansiedade generosidade e sobretudo de muito afecto.

A todos os que participaram na organização, a todos os actores que vivem nesta ilha, aos que vieram de

outras ilhas e muito especialmente aos que aportaram de outras terras, o nosso muito obrigado.

Penso que todos estaremos de acordo em que, se uma empreitada desta natureza que é o resultado do tra-

balho e da abnegação de muita gente tivesse que ter (e tem) um rosto, uma alma, estes seriam indubitavel-

mente os de João Branco.

Ao declarar encerrada a 18ª Edição do Festival Internacional do Teatro Mindelact, é com prazer que aban-

dono o protocolo e termino a minha intervenção com um abraço ao Mindelact na pessoa do actor, encena-

dor e director artístico João Branco.

Muito obrigado

Discurso de Sua Excelência o Presidente da República, Dr. Jorge Carlos de Almeida Fonseca,

por ocasião da Cerimónia de Encerramento do Festival Mindelact

São Vicente, 15 de Julho de 2012

Page 26: Mindelact 2012