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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE BIOCIÊNCIAS
CURSO DE BIOMEDICINA
FERNANDA DANTAS DE CASTRO
TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA EM PACIENTES COM ANEMIA FALCIFORME NO BRASIL: UMA REVISÃO DE LITERATURA
NATAL - RN 2017
TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA EM PACIENTES COM ANEMIA
FALCIFORME NO BRASIL: UMA REVISÃO DE LITERATURA
por
FERNANDA DANTAS DE CASTRO
Orientador: Prof. Christiane Medeiros Bezerra
NATAL - RN
2017
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Coordenação do Curso de Biomedicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Bacharel em Biomedicina.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE BIOCIÊNCIAS
CURSO DE BIOMEDICINA
O Trabalho de Conclusão de Curso:
TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA EM PACIENTES COM ANEMIA FALCIFORME NO BRASIL: UMA REVISÃO DE LITERATURA
Elaborado por Fernanda Dantas de Castro
E aprovado por todos os membros da Banca examinadora foi aceito pelo Curso de Biomedicina e homologado pelos membros da banca, como requisito parcial à obtenção do título de
BACHAREL EM BIOMEDICINA Aprovado em: 05/12/2017 BANCA EXAMINADORA:
__________________________
Christiane Medeiros Bezerra
(Departamento de Microbiologia e Parasitologia da UFRN)
____________________________
Karina Carla de Paula Medeiros
(Departamento de Morfologia da UFRN)
_______________________________________
Thales Allyrio Araújo de Medeiros Fernandes
(Departamento de Ciências Biomédicas - UERN)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Leopoldo Nelson - Centro de Biociências - CB
Castro, Fernanda Dantas de.
Transplante de Medula Óssea em pacientes com anemia
falciforme no Brasil: uma revisão de literatura / Fernanda
Dantas de Castro. - Natal, 2017.
47 f.: il.
Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Biociências. Curso de Biomedicina. Orientadora: Profa. Dra. Christiane Medeiros Bezerra.
1. Anemia Falciforme - Monografia. 2. Tratamento -
Monografia. 3. Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas - Monografia. I. Bezerra, Christiane Medeiros. II. Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/UF/BSE-CB CDU 616.155.194
AGRADECIMENTOS
Primeiramente à Deus, que me deu forças para enfrentar todas as dificuldades
encontradas na realização desse curso.
Também agradeço à minha família, em especial à minha mãe, meu pai,
padrasto, irmão, avô e avó, que fizeram de tudo para que meus estudos pudessem
caminhar da melhor forma possível, oferecendo tanto apoio material quanto
emocional.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por toda a infraestrutura
oferecida, e aos docentes que contribuíram para minha formação acadêmica, em
especial à professora Christiane Medeiros pela paciência e dedicação na realização
deste trabalho, e pela disponibilidade para tirar qualquer dúvida; e a professora Karina
Carla, pelos ensinamentos adquiridos durante os dois anos de monitoria.
Por último, mas não menos importante, às minhas amigas Ana Beatriz, Stefanie
da Paz e Anne Nathália, que sempre estiveram ao meu lado, tirando dúvidas,
compartilhando dificuldades, me apoiando e compartilhando risadas. E ao meu
namorado, Rômulo Santos, que no finalzinho do curso foi essencial para me dar apoio
emocional e me ajudar, na medida do possível, com qualquer dúvida.
RESUMO
As doenças falciformes são as desordens monogênicas mais comuns em todo o
mundo, sendo a mais prevalente destas, a anemia falciforme, que resulta da
homozigose da hemoglobina S (Hb SS), a qual provoca deformação nos eritrócitos
que passam a adquirir um formato de foice, quando desoxigenados. Tal característica
favorece a obstrução de vasos, gerando as crises vaso oclusivas, muito frequentes
nessa doença, e que provocam crises de dor intensa no paciente. Estima-se que, a
cada ano, nasçam aproximadamente 250 mil crianças com anemia falciforme em todo
o mundo. Desse modo, devido à alta prevalência e por ter grande impacto na
morbimortalidade da população afetada, concentrando maiores taxas de mortalidade
nos dois primeiros anos de idade, passou a ser reconhecida pela Organização Mundial
da Saúde como um grave problema de saúde pública mundial. No Brasil, em 2001,
passou a ser inclusa no Programa de Triagem Neonatal, possibilitando o diagnóstico
precoce da doença. Os principais tratamentos convencionais para a anemia falciforme
incluem transfusões sanguíneas, analgésicos e hidroxiuréia, além de medidas
profiláticas, como a vacinação. Ainda que estas terapias proporcionem melhoras nas
taxas de sobrevida desses pacientes, possuem seus efeitos adversos e não oferecem
possibilidade de cura aos mesmos. Dessa forma, o transplante alogênico de células-
tronco hematopoiéticas constitui-se como o único tratamento curativo para a anemia
falciforme. Embora haja indicações que restrinjam o transplante a determinados
pacientes e complicações relacionadas a esse procedimento, além da dificuldade de
se encontrar doador compatível, estudos mostram que o transplante pode aumentar
em até 95% a taxa de sobrevida livre de doença dos pacientes. Apesar de ainda haver
poucos estudos existentes sobre o transplante de medula óssea em pacientes com
anemia falciforme no Brasil, essa terapêutica tem se mostrado promissora e estima-
se que novos estudos sejam feitos para viabilizar ainda mais sua realização.
PALAVRAS-CHAVES: Anemia Falciforme; Tratamento; Transplante de Células
Tronco Hematopoiéticas.
ABSTRACT
Sickle-cell disease are the most common monogenic disorders in the world, being the
sickle cell anemia, the most prevalent. People with sickle cell anemia are homozygous
for hemoglobin S (Hb SS), which causes erythrocytes falcization when in
deoxygenated state. This characteristic can lead to vessels obstruction, causing vaso
occlusive crises, very common in this disease, and episodes of intense pain in the
patients. Estimates suggest that every year approximately 250,000 infants are born
worldwide with sickle cell anemia. Therefore, due to the high prevalence and major
impact on the morbidity and mortality of affected population, concentrating higher
mortality rates in the first two years of age, it was recognized by the World Health
Organization as a serious global health problem, and, in Brazil, in 2001, it was included
as a part of neonatal screening program, allowing an early diagnosis of the disease
and the adoption of adequate prophylactic measures and patient follow-up.
Conventional treatment for sickle cell anemia includes blood transfusions, analgesics
and hydroxycarbamide, besides the prophylactic measures such as vaccination. Even
though they have improved the survival rates of these patients, they have their adverse
effects and offer no possibility of cure. Thus, allogeneic hematopoietic stem cell
transplantation is the only curative treatment for sickle cell anemia. Although there are
indications that restrict transplantation to certain patients and complications related to
this procedure, in addition to the difficulty of finding a compatible donor, studies show
that transplantation can increase patients' disease-free survival rate by up to 95%.
Despite the few existing studies related to bone marrow transplantation in patients with
sickle cell anemia in Brazil, this therapy has been shown to be promising and it is
estimated that further studies will be done to make it even more feasible.
KEYWORDS:
Sickle cell anemia; Treatment; Hematopoietic stem cell transplantation.
LISTA DE ABREVIATURAS
AF Anemia Falciforme
ATG Globulina Antitimocitária
AVE Acidente Vascular Encefálico
BU Busulfan
CTH Células Tronco Hematopoiéticas
CY Ciclofosfamida
DECH Doença do Enxerto contra o Hospedeiro
DF Doença Falciforme
ESH Escola Europeia de Hematologia
FE Fator Endotelial
FLU Fludarabina
HbF Hemoglobina Fetal
HbS Hemoglobina S
HLA Antígeno de histocompatibilidade humana
HPLC Cromatografia líquida de alta performance
HU Hidroxiuréria
ILT Irradiação Linfonodal Total
MRT Mortalidade Relacionada ao Transplante
OMS Organização Mundial da Saúde
PNTN Programa Nacional de Triagem Neonatal
ROS Espécies Reativas de Oxigênio
SCU Sangue de cordão umbilical
SG Sobrevida Global
SLD
SLT
Sobrevida Livre de Doença
Sobrevida Livre Total
STA Síndrome Torácica Aguda
SUS Sistema Único de Saúde
TCTH Transplante de Células Tronco Hematopoéticas
TMO Transplante de Medula Óssea
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Representação gráfica do fenômeno de vaso-oclusão..............................20
Figura 2: Alterações nas propriedades físico-químicas da molécula de Hb S no interior
dos eritrócitos.............................................................................................................21
Figura 3: Número estimado de recém-nascidos com anemia falciforme em cada país
no ano de 2015...........................................................................................................25
Figura 4: Prevalência percentual da doença falciforme nas regiões Norte e Nordeste
em comparação com as regiões Sul e Sudeste.........................................................26
Figura 5: Eletroforese em pH alcalino (acetato de celulose) ......................................28
Figura 6: Objetivos do teste do pezinho relacionados à doença falciforme.................29
Figura 7: Resultados do TMO alogênico em pacientes com anemia falciforme. ........39
Figura 8: Sobrevida livre de eventos em pacientes transplantados para anemia
falciforme pelo grupo francês......................................................................................40
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Principais manifestações clínicas e causas de óbito relacionadas à anemia
falciforme. ................................................................................................................ 24
Tabela 2 - Incidência de doença falciforme em alguns estados brasileiros .............. 27
Tabela 3 - Indicações para o TCTH em pacientes com doenças falciformes. .......... 34
Tabela 4 - Complicações do transplante de medula óssea. ..................................... 37
Tabela 5 - Transplante de células-tronco hematopoéticas alogênico mieloabiativo para
anemia falciforme. .................................................................................................... 41
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 13
2. OBJETIVOS ...................................................................................................... 16
2.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................................. 16
2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...................................................................................... 16
3. MATERIAIS E MÉTODOS ................................................................................. 17
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ......................................................................... 19
4.1 DOENÇAS FALCIFORMES ....................................................................................... 19
4.2 FISIOPATOLOGIA DA ANEMIA FALCIFORME .............................................................. 19
4.3 MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS.................................................................................... 22
4.3.1 Complicações Agudas ................................................................................... 22
4.3.2 Complicações Crônicas ................................................................................. 23
4.4 EPIDEMIOLOGIA .............................................................................................. 25
4.4.1 Epidemiologia da Anemia Falciforme no Mundo ............................................ 25
4.4.2 Aspectos epidemiológicos da Doença Falciforme no Brasil ........................... 26
4.5 DIAGNÓSTICO DA DOENÇA FALCIFORME ................................................................. 27
4.6 TRATAMENTOS CONVENCIONAIS ............................................................................ 30
4.6.1 Transfusão sanguínea ................................................................................... 30
4.6.2 Hidroxiuréia ................................................................................................... 31
4.7 TRANSPLANTE DE CELULAS-TRONCO ..................................................................... 32
4.7.1 Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas na Anemia Falciforme ........ 33
4.7.1.1 Indicações ................................................................................................. 33
4.7.1.2 Doadores ................................................................................................... 35
4.7.1.2.1 Doadores HLA-idênticos e Estudos Clínicos....................................................................... 35
4.7.1.2.2 TCTH com doadores não aparentados ................................................................................... 35
4.7.1.2.3 Transplante haploidêntico de Medula Óssea ...................................................................... 36
4.7.1.3 Complicações do transplante .................................................................... 36
4.7.1.3.1 COMPLICAÇÕES PRECOCES ................................................................. 36
4.7.1.3.2 Complicações Tardias .......................................................................................................................... 37
4.7.1.4 Experiências Mundiais com o TMO para Anemia Falciforme ....................... 38
4.7.1.5 Experiências brasileiras com o TMO para Anemia Falciforme ..................... 40
4.7.1.6 Perspectivas futuras .................................................................................... 42
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 43
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 45
13
1. INTRODUÇÃO Os distúrbios hereditários das hemoglobinas são as doenças genéticas mais
frequentes entre os seres humanos. Estima-se que mundialmente haja
aproximadamente 270 milhões de portadores de hemoglobinopatias, dentre as quais
destacam-se as talassemias e a anemia falciforme. A cada ano, no mundo, 60 mil
crianças nascem com talassemia e 250 mil com anemia falciforme, resultando em uma
frequência de 2,4 crianças afetadas para cada 1.000 nascimentos (SIMÕES et al.,
2010).
No Brasil, a anemia falciforme é a hemoglobinopatia mais comum,
principalmente entre afrodescendentes, estimando-se que haja aproximadamente 25
a 30 mil portadores dessa doença, segundo dados do Ministério da Saúde
(MONTEIRO et al., 2015). Embora possua distribuição heterogênea, em decorrência
da forte miscigenação da população brasileira, os estados do Norte e Nordeste são
os que apresentam maiores frequências em virtude da contribuição dos grupos étnicos
formadores (SIMÕES et al., 2010).
A anemia falciforme caracteriza-se por ser uma anemia hemolítica hereditária
grave que surge em decorrência de uma mutação na cadeia beta da globina, gerando
uma hemoglobina diferente da normal, denominada hemoglobina S (HbS). Pessoas
com anemia falciforme são homozigotas para essa hemoglobina (Hb SS), a qual
provoca deformação nos eritrócitos que passam a adquirir um formato de foice. Estes,
por serem reconhecidos como defeituosos, são retirados precocemente da circulação
sanguínea (hemólise), e o aspecto morfológico alterado predispõe o indivíduo portador
a um aumento de eventos vaso-oclusivos (REES; WILLIAMS; GLADWIN, 2010).
Fernandes et al (2010), investigando a mortalidade de crianças com doença
falciforme em Minas Gerais, identificaram elevada taxa de mortalidade (71,8%) em
crianças de até 2 anos de idade. Esses dados enfatizam a importância da realização
de diagnóstico precoce e instituição da terapia adequada para promover a redução
nesse índice de morbimortalidade.
No Brasil, em 2001, o diagnóstico das doenças falciformes passou a ser incluso
no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), o que tem permitido a
identificação precoce de crianças acometidas com a doença. A adoção desta medida
no país tem colaborado com melhor qualidade de vida desses pacientes, uma vez que
na anemia falciforme, o simples esquema de vacinação contra pneumococo e
14
Haemophilus influenza, acompanhado de penicilinoterapia profilática, diminui o
número de mortes no período crítico situado entre os seis meses e três anos de idade,
época em que, pelas características imunológicas, o paciente falciforme é sensível às
septicemias fulminantes por bactérias encapsuladas (DUCATTI et al., 2001).
As opções terapêuticas existentes atualmente para tratamento da anemia
falciforme incluem: transfusões sanguíneas, uso de analgésicos, tratamento com
hidroxiuréia e transplante de medula óssea (TMO), sendo, esta última, o único
tratamento curativo (SILVA; SHIMAUTI, 2006; WARE et al., 2017). Recentemente,
novos medicamentos estão sendo avaliados em estudos clínicos (Fases 1, 2 ou 3)
para que seja analisada a eficácia no tratamento dessa hemoglobinopatia (WARE et
al., 2017).
As transfusões sanguíneas, apesar de promoverem melhora no curso clínico
da doença, quando feitas de forma crônica, podem levar, em poucos meses, a uma
sobrecarga de ferro no fígado após transfusão de 10 a 20 unidades de concentrado
de hemácias. Tal fato contribui para o desenvolvimento de maiores complicações,
como doença cardíaca e morte precoce (SILVA; SHIMAUTI, 2006).
Outra opção terapêutica utilizada para amenizar os sintomas da anemia
falciforme é a administração da hidroxiuréia. Ainda que seu uso em crianças
portadoras de anemia falciforme tenha proporcionado redução de complicações
clínicas e aumento da expectativa de vida, é considerada uma droga com potencial
carcinogênico, podendo causar alterações irreversíveis no material genético, com
sérias consequências ao organismo, embora não se tenha estudos que comprovem
tal suspeita (SILVA; SHIMAUTI, 2006). Desse modo, o transplante de medula óssea
ainda constitui-se como o único tratamento capaz de promover a cura nesses
pacientes, uma vez que reestabelece uma hematopoese normal, eliminando as
obstruções e complicações causadas pelas hemácias falcizadas (PIERONI et al.,
2007).
Em 2015, experiências mundiais e brasileiras bem-sucedidas contribuíram para
a inclusão do transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH) entre parentes,
no rol de procedimentos cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Estudos
demonstram que o procedimento permite um aumento da sobrevida de dois anos em
aproximadamente 90% dos casos transplantados e em outros, os pacientes com
doenças falciformes transplantados deixaram de utilizar a morfina para o controle da
dor (RUAS, 2015).
15
Diante deste contexto, o presente trabalho tem como objetivo abordar as
experiências brasileiras e mundiais quanto aos TMO em pacientes com anemia
falciforme, destacando seus riscos e benefícios por meio de uma revisão bibliográfica.
16
2. OBJETIVOS
2.1 Objetivo Geral
Realizar levantamento bibliográfico, em bases de dados científicas, referente
ao tema “transplante de medula óssea em pacientes com anemia falciforme no Brasil”.
2.2 Objetivos Específicos
• Fazer uma breve introdução sobre a doença foco do estudo, anemia falciforme,
abordando seus aspectos fisiopatológicos e epidemiológicos;
• Relatar e descrever de forma sucinta os tratamentos convencionais utilizados
para melhorar o prognóstico dos pacientes que possuem a anemia falciforme;
• Fazer uma breve introdução sobre o transplante de células-tronco, destacando
sua realização em pacientes com anemia falciforme, além de apontar as
indicações para sua realização, os tipos de doadores e suas possíveis
complicações;
• Relatar as experiências do transplante de medula óssea em pacientes com
anemia falciforme no mundo e no Brasil;
• Apontar as perspectivas futuras quanto a esse tratamento.
17
3. MATERIAIS E MÉTODOS
Para a elaboração desta revisão de literatura, foram pesquisadas publicações
por meio dos bancos de dados Science Direct, SciELO, PubMed, Periódicos Capes e
Google Acadêmico. Foram considerados artigos nas línguas portuguesa e inglesa,
publicados entre 2001 e 2017, escolhidos conforme a qualidade e relevância do
conteúdo para elaboração deste trabalho.
As palavras chaves utilizadas na busca em português foram: “Anemia
Falciforme”, “Manifestações Clínicas Anemia Falciforme”, “Epidemiologia Anemia
Falciforme Brasil”, “Diagnóstico Anemia Falciforme”, “Tratamentos Anemia
Falciforme”, “Transfusões Sanguíneas Anemia Falciforme”, “Hidroxiuréia Anemia
Falciforme”, “Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas”, “Transplante de
Células-Tronco Anemia Falciforme”, “Indicações Transplante Células-Tronco Anemia
Falciforme”, “Doadores HLA-idênticos”, “Doadores não-aparentados”, “Doadores
haploidênticos”, “Complicações Transplante Medula óssea”, “Transplante de Medula
Óssea Experiências”, “Transplante Medula Óssea Brasil”, “Perspectivas Futuras
Tratamento Anemia Falciforme”.
Para a pesquisa em inglês foram usadas as seguintes palavras chaves: “Sickle
Cell Anemia”, “Sickle Cell Anemia Review”, “Sickle Cell Anemia Pathophysiology”,
“Sickle Cell Anemia Manifestations”, “Sickle Cell Anemia Dignosis”, “Blood
Transfusions Sickle Cell Anemia”, ”Iron Chelation”, “Hydroxyorea Theraphy”, “Bone
Marrow Transplantation”, “Hematopoietic Stem Cell Transplantation Sickle Cell
Anemia”, “Bone Marrow Transplantation Complications”, “Sickle Cell Anemia Future
Treatment”.
Além da pesquisa em periódicos, foram utilizados também boletins
epidemiológicos e cartilhas educativas emitidas pela Secretaria de Vigilância em
Saúde (Ministério da Saúde) para a obtenção de dados epidemiológicos de incidência
e prevalência relativos à anemia falciforme no Brasil, bem como livros de referência
na área de hematologia e de transplante de células tronco.
A escolha dos artigos foi realizada por meio de uma análise sequencial dos
mesmos, a começar pela observação dos títulos e ano de publicação e posterior leitura
dos resumos. Em caso de haver concordância entre algum trabalho e a proposta de
elaboração deste, o artigo foi acessado na íntegra e as principais informações foram
18
extraídas. Após a leitura dos trabalhos selecionados, as informações foram
organizadas e compiladas na forma desta revisão.
No total foram utilizados 22 artigos científicos, 3 cartilhas/boletins
epidemiológicos e 2 livros texto.
19
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Doenças Falciformes
As doenças falciformes são as desordens monogênicas mais comuns no
mundo. Caracterizam-se por serem doenças multissistêmicas, associadas com
episódios de doenças agudas e danos progressivos aos órgãos, decorrentes de vaso-
oclusões ocasionadas pelos eritrócitos defeituosos e intenso processo hemolítico
(REES; WILLIAMS; GLADWIN, 2010). Foram primeiramente descritas em 1910, pelo
médico James Bryan Herrick, em seu artigo intitulado Peculiar Elongated and Sickle-
Shaped Red Blood Corpuscles in a Case of Severe Anemia, na revista americana
Archives of Internal Medicine. Nele, Herrick demonstrou a presença de eritrócitos em
formato de foice em um jovem negro com anemia grave, icterícia e com dores fortes
nas articulações (DI NUZZO; FONSECA, 2004; BRASIL, 2015).
O termo doença falciforme (DF) engloba um grupo de anemias hemolíticas
hereditárias caracterizadas pela anormalidade da hemoglobina em decorrência de
uma alteração estrutural na cadeia da globina beta. De acordo com o tipo de alteração
presente na hemoglobina, pode-se classificar essa hemoglobinopatia em formas
clínicas distintas: forma homozigótica, denominada anemia falciforme (HbSS), e as
formas heterozigóticas, representadas pelas associações de HbS com outras
variantes de hemoglobinas, tais como: HbC, HbD e as interações com as talassemias
(β0 e β+) (FELIX; SOUZA; RIBEIRO, 2010).
4.2 Fisiopatologia da Anemia Falciforme
Dentre as doenças falciformes, a anemia falciforme é a que possui maior
prevalência, sendo, portanto, foco de maiores estudos. Ela surge em decorrência da
substituição de uma adenina por uma timina (GAG ->GTG), codificando o aminoácido
valina ao invés de ácido glutâmico, na posição 6 da cadeia da beta globina, com
produção de Hb S. Essa mutação produz o surgimento de uma região hidrofóbica na
molécula de Hb S no estado desoxigenado (PIEL; STEINBERG; REES, 2017)
20
Quando desoxigenadas, as cadeias β1 e β2 das moléculas de hemoglobina S
polimerizam-se, levando à perda de cátions e água pelos eritrócitos. Estes, por sua
vez, passam a ter um comprometimento da sua arquitetura e flexibilidade, adquirindo
um formato de foice a cada vez que ocorre a liberação de oxigênio pela molécula de
hemoglobina. O fenômeno da falcização é reversível com a oxigenação, desde que a
membrana da célula não esteja definitivamente alterada. Quando isto ocorre, os
eritrócitos sofrem uma falcização irreversível e permanecem deformados
independentemente do estado da Hb S intracelular (Figura 1) (REES; WILLIAMS;
GLADWIN, 2010).
Figura 1: Representação gráfica do fenômeno de vaso-oclusão (Fonte: LOBO et al., 2007).
Esses eritrócitos alterados possuem anormalidades nas suas características
reológicas e na expressão de moléculas de adesão, o que provoca sua destruição
prematura pelo sistema monocítico fagocitário, levando ao quadro de anemia
hemolítica. Além disso, o formato de foice facilita e promove a oclusão de pequenos
21
vasos, o que causa as vaso-oclusões características dessa doença (Figura 2) (PIEL;
STEINBERG; REES, 2017).
Embora as vaso-oclusões e a anemia hemolítica sejam eventos centrais na
fisiopatologia da doença falciforme, eles iniciam uma cascata de eventos patológicos
que culminam em uma série de complicações, as quais incluem: disfunção endotelial-
vascular, deficiência funcional do óxido nítrico, inflamação, estresse oxidativo e lesões
de reperfusão, hipercoagulação, aumento da adesão de neutrófilos e ativação de
plaquetas. Essas interações e relativa importância dessas desordens são pouco
entendidas e, provavelmente, diferem conforme complicações particulares (PIEL;
STEINBERG; REES, 2017).
Figura 2: Alterações nas propriedades físico-químicas da molécula de Hb S no interior dos eritrócitos (Fonte: BRASIL, 2015).
A severidade da doença varia conforme a quantidade de Hb S existente no
paciente e a presença ou não da hemoglobina fetal. Quanto maior o número de
polimerizações da Hb S, mais grave é o quadro clínico do paciente e, quanto maior a
22
concentração da hemoglobina fetal, menor a de Hb S, contribuindo para um melhor
prognóstico (AZAR; WONG, 2017).
4.3 Manifestações Clínicas
As vaso-oclusões provocadas pelos eritrócitos falcizados, juntamente com o
processo hemolítico e outros fatores celulares e plasmáticos, resultam em uma gama
de complicações agudas e crônicas no paciente portador da anemia falciforme. As
isquemias recorrentes e as inflamações endoteliais, são alguns dos eventos
patológicos que contribuem para as manifestações clínicas observadas nesses
indivíduos (WARE et al., 2017).
4.3.1 Complicações Agudas
A dor aguda é a principal característica clínica da anemia falciforme e é
decorrente das vaso-oclusões que impedem a perfusão do oxigênio para o tecido.
Costumam durar de 4 a 6 dias, e ocorrem nos braços, nas pernas, nas articulações,
no tórax, no abdômen e nas costas (WARE et al., 2017).
Na maioria das crianças a primeira manifestação de dor decorre de um
processo inflamatório que provoca inchaço nos tornozelos, nos punhos, nos dedos ou
nas articulações. Esses sinais são conhecidos como síndrome mão-pé ou dactilite
(BRASIL, 2015).
Além da dor aguda, as vaso-oclusões provocam danos ao baço, que sofre,
então, atrofia e perde sua funcionalidade (asplenia funcional). Dessa forma, pessoas
com anemia falciforme são mais propensas a adquirir infecções, principalmente por
microorganismos encapsulados como Streptococcus pneumoniae e Haemophilus
influenzae tipo b, que podem causar pneumonia, sepse e meningite especialmente
em crianças (WARE et al., 2017).
Além das infecções, outro quadro clínico comum nesses pacientes são os
acidentes vasculares encefálicos (AVEs), que ocorrem principalmente na infância,
com início agudo de disfunção neurológica decorrente de isquemia e infarto,
23
entretanto, a hemorragia cerebral ocorre primariamente em adultos (WARE et al.,
2017).
Já entre os adultos, a principal causa de morte é a Síndrome Torácica Aguda
(STA) que é decorrente da vaso-oclusão pulmonar, infecção, embolia ou sequestro
pulmonar. Suas manifestações clínicas incluem dor no peito, febre, taquipneia, chiado
ou tosse (WARE et al., 2017).
4.3.2 Complicações Crônicas
Entre os pacientes adultos, as principais causas de morbimortalidade
decorrentes de complicações crônicas são as disfunções e falha de órgãos.
Complicações como as retinopatias, necroses avasculares, declínio neurológico,
úlceras nas pernas e priapismo recorrente estão associados com a morbidade e
diminuição da qualidade de vida, enquanto que disfunção renal e doenças
cardiopulmonares são as mais letais. Tais manifestações surgem em decorrência de
repetidas vaso-oclusões, infartos e anemia hemolítica crônica, e são responsáveis
pela diminuição da sobrevida desses pacientes (WARE et al., 2017). Na tabela 1
abaixo podem ser visualizadas as principais manifestações clínicas dos pacientes de
acordo com diferentes fases da vida.
24
Tabela 1 - Principais manifestações clínicas e causas de óbito relacionadas à anemia falciforme.
(Fonte: BRASIL, 2015).
25
4.4 EPIDEMIOLOGIA
4.4.1 Epidemiologia da Anemia Falciforme no Mundo
Apesar de ser a desordem monogênica mais comum em todo o mundo, sua
prevalência é maior em grande parte da África subsaariana, na bacia do Mediterrâneo,
no Oriente Médio e na Índia por causa do notável nível de proteção que o traço
falciforme confere contra à malária. Entretanto, devido ao tráfego de escravos e as
migrações populacionais, a anemia falciforme se espalhou além das suas origens
(PIEL; STEINBERG; REES, 2017).
Estimativas populacionais sugerem que nasçam, a cada ano,
aproximadamente 250 mil crianças com esta enfermidade, sendo que os 3 principais
países com maiores números de nascidos com anemia falciforme são: Nigéria,
República Democrática do Congo e Índia (Figura 3) (PIEL; STEINBERG; REES,
2017).
Figura 3: Número estimado de recém-nascidos com anemia falciforme em cada país no ano de 2015 (Fonte: PIEL; STEINBERG; REES, 2017).
26
4.4.2 Aspectos epidemiológicos da Doença Falciforme no Brasil
No Brasil, as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam maiores
prevalência da doença, uma vez que possuem elevada concentração de população
afrodescendente. Sendo assim, essas duas regiões apresentam prevalência de 6% a
10%, ao passo que no Sul e Sudestes essa taxa é de 2% a 3% (Figura 4) (BRASIL,
2015).
Figura 4: Prevalência percentual da doença falciforme nas regiões Norte e Nordeste em comparação com as regiões Sul e Sudeste (Fonte: BRASIL, 2015).
A Bahia é estado que apresenta o maior número de pessoas com a doença
falciforme, sendo um doente para cada 650 nascimentos. Outros estados como Rio
de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão e Pernambuco também apresentam números
significativos quanto à presença da doença na população (Tabela 2) (BRASIL, 2008).
27
Tabela 2 - Incidência de doença falciforme em alguns estados brasileiros.
(Fonte: BRASIL, 2012).
4.5 Diagnóstico da Doença Falciforme
Por ser considerada uma doença com grande impacto na morbimortalidade da
população afetada, a doença falciforme é reconhecida pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) como um grave problema de saúde pública mundial. Dessa forma, a
partir da década de 1990 começaram a surgir no Brasil as primeiras ações
governamentais (BRASIL, 2015).
A mortalidade na doença falciforme inicia-se muito cedo, principalmente por
infecção bacteriana ou sequestro esplênico, concentrando as maiores taxas nos dois
primeiros anos de vida, o que justifica a importância do diagnóstico precoce através
do exame de triagem neonatal (teste do pezinho). A identificação precoce desses
indivíduos permite a consequente introdução da profilaxia adequada e
acompanhamento ambulatorial regular (DI NUZZO; FONSECA, 2004).
O exame laboratorial confirmatório para a anemia falciforme se dá por meio da
eletroforese de hemoglobina em pH alcalino, em acetato de celulose, que revela
banda única na posição S e certa elevação da hemoglobina fetal (Figura 5). Além
destes, testes de falcização e/ou solubilidade também podem ser utilizados como
complementares ao diagnóstico (BATISTA; ANDRADE, 2002).
28
Figura 5: Eletroforese em pH alcalino (acetato de celulose) 1. Controles: A, F, S e C; 2. Hb AA; 3. Hb AS; 4. Hb AS; 5. Hb SS; 6. Hb SC; 7. Hb AE (Fonte: FERRAZ; MURAO, 2007).
Outra forma de diagnóstico é mediante a triagem neonatal realizada na primeira
semana de vida da criança em sangue total colhido do calcanhar, por eletroforese de
hemoglobina ou HPLC ou focalização isoelétrica. É importante salientar que para um
diagnóstico laboratorial completo, é importante a realização do hemograma, que
revelará anemia de moderada a acentuada, bem como contagem de reticulócitos e
dosagem de bilirrubina indireta, que normalmente encontram-se elevados (BRASIL,
2012).
Devido à grande proporção de pessoas com a doença no Brasil, em 2001 a
portaria nº 822, do Ministério da Saúde, estabeleceu o Programa Nacional de Triagem
Neonatal (PNTN), com o objetivo de estender a acessibilidade ao programa de triagem
neonatal (teste do pezinho) que inclui a pesquisa de várias doenças nos recém-
nascidos, dentre elas, a anemia falciforme (BRASIL, 2015) (Figura 6).
29
Figura 6: Objetivos do teste do pezinho relacionados à doença falciforme (Fonte: BRASIL, 2015).
Atualmente, a triagem neonatal da doença falciforme é realizada em todos os
estados brasileiros, possibilitando o diagnóstico precoce, o tratamento e a melhoria
da qualidade de vida das pessoas que apresentam essa doença genética. Com base
nos dados produzidos pelo PNTN sabe-se que, a cada mil crianças nascidas vivas no
país, uma tem a doença falciforme, estimando-se o nascimento de cerca de 3.000
crianças por ano com doença falciforme e de 180.000 com traço falciforme (BRASIL,
2015).
Além da Triagem Neonatal, outra estratégia adotada pelo Ministério da Saúde
para o diagnóstico precoce da doença falciforme foi a Rede Cegonha, cujo objetivo é
de estruturar e organizar a atenção à saúde materno-infantil no país, por meio de uma
rede de cuidados para assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e
a atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como assegurar às
crianças o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento
saudáveis (BRASIL, 2017).
Dessa forma, em 2011, o diagnóstico da doença falciforme passou a ser
incluído na rotina do pré-natal para todas as gestantes, assegurando ambulatório
adequado para o pré-natal de alto risco e, desse modo, contribuindo para a redução
da morbimortalidade materna (BRASIL, 2015).
30
4.6 Tratamentos convencionais
4.6.1 Transfusão sanguínea
A transfusão sanguínea é o principal tratamento para a anemia falciforme, com
mais de 90% dos pacientes adultos tendo recebido ao menos uma transfusão em sua
vida. Isso acontece devido aos benefícios imediatos que ela proporciona, como, por
exemplo, aumento da capacidade do transporte de oxigênio pelo sangue (WARE et
al., 2017).
As transfusões têm como objetivo aumentar a concentração de Hb A e reduzir
a concentração de Hb S por meio da diluição. Além disso, elas inibem a produção
endógena de eritropoetina e, subsequentemente, reduz a formação de novas células
vermelhas contendo Hb S (AZAR; WONG, 2017).
No geral, as transfusões podem ocorrer de forma aguda, como uma primeira
linha de tratamento em casos de urgência, ou como parte de um programa de
transfusão periódico, em que os eritrócitos são transfundidos em intervalos de tempo
regulares baseado nos sintomas ou testes laboratoriais para prevenir ocorrências
iniciais ou recorrência de complicação (AZAR; WONG, 2017).
Acidentes vasculares cerebrais e síndrome torácica aguda representam danos
agudos a órgãos que se beneficiam com as transfusões; entretanto um consenso
profilático comum é manter a percentagem de Hb S abaixo dos 30% do total de
hemoglobina e, ao mesmo tempo, atingir uma concentração total de hemoglobina que
aumente a capacidade de transporte de oxigênio pelo sangue sem colocar o paciente
em risco de vir a desenvolver um quadro de hiperviscosidade (WARE et al., 2017;
AZAR; WONG, 2017).
Embora as transfusões tenham seus benefícios comprovados, elas também
apresentam riscos a longo ou a curto prazo e podem provocar efeitos adversos nos
pacientes (FERNANDES, 2017). A aloimunização eritrocitária é uma das
complicações que mais acomete pacientes transfundidos, sendo que do total de
pacientes que possuem doença falciforme e foram transfundidos, 6-85% são
aloimunizados. Os mais frequentes aloanticorpos são contra os antígenos Rh
(nomeados C e E) e Kell. (AZAR; WONG, 2017). Além disso, outro problema
ocasionado pela transfusão sanguínea crônica é a sobrecarga de ferro exógeno, que
31
pode acumular, circular de forma livre, ou seja, sem estar em associação com a
transferrina, adentrar nos tecidos, formar espécies reativas de oxigênio (ROS) e
resultar em danos a órgãos (RAGHUPATHY; MANWANI; LITTLE, 2010). Nesses
pacientes, complicações induzidas pelo ferro constantemente aparecem durante o
tratamento, ocasionando, eventualmente, cirrose hepática e deposição de ferro no
coração ou pâncreas (FERNANDES, 2017).
Apesar do risco da sobrecarga de ferro, atualmente parece estar havendo uma
tendência ao incentivo da transfusão sanguínea periódica, fato este que pode ser
atribuído às opções disponíveis para o manejo da sobrecarga de ferro, como, por
exemplo, o uso de quelantes de ferro. Dois quelantes orais, Deferiprona e
Deferasirox, representam as melhores opções terapêuticas por conta das suas
relativas segurança e eficácia, e porque a adesão à medicação é melhorada em
comparação com a desferoxamina parenteral (FERNANDES, 2017).
Porém, embora a terapia com quelantes possa reduzir a sobrecarga de ferro
decorrente das transfusões nos pacientes falciformes, ainda se faz necessário o
monitoramento contínuo da concentração de ferro no fígado para orientar a dosagem
e avaliar a eficácia do tratamento (WARE et al., 2017).
Outra complicação associada ao uso das transfusões é o risco aumentado do
desenvolvimento de tromboembolismo, uma vez que a anemia falciforme é um estado
de hipercoagulação, em que os pacientes apresentam elevados níveis de trombina,
fibrina e do Fator Endotelial (FE) no plasma, sendo este último um fator ativador da
cascata de coagulação. Isso ocorre porque o dano vascular e endotelial é comum na
anemia falciforme e, consequentemente, há a exposição do FE nessas regiões,
promovendo a coagulação (FERNANDES, 2017).
4.6.2 Hidroxiuréia
Em 1995, a hidroxiuréia (HU) tornou-se o primeiro medicamento que,
comprovadamente, previne complicações da DF. Ela tem efeito direto no mecanismo
fisiopatológico da doença, aumentando a síntese da Hb F bem como, promovendo
diminuição no número dos neutrófilos e das moléculas de adesão dos eritrócitos.
Dessa forma, contribui diretamente para diminuir os fenômenos inflamatórios e de
vaso-oclusão. Na prática, os efeitos já são observados nas primeiras semanas, com
32
o aumento de reticulócitos repletos de Hb F e diminuição da viscosidade sanguínea.
Além disso, observou-se que a terapia com HU está associada ao aumento de
produção intravascular e intraeritrocitária de óxido nítrico, o que facilita a
vasodilatação (BRASIL, 2012).
Embora sua administração tenha tido impacto positivo na sobrevida dos
pacientes com doenças falciformes, diminuindo, por exemplo, a frequência dos
episódios de dor e a necessidade por transfusões sanguíneas, a hidroxiuréia também
pode apresentar efeitos colaterais. Citopenias são os efeitos adversos mais comuns,
mas são geralmente brandas e rapidamente reversíveis. Além disso, outros efeitos
colaterais incluem: distúrbios gastrointestinais, mudança na pele e unhas e úlceras de
perna, embora a associação causativa entre esses efeitos e a HU ainda não tenha
sido comprovada (AZAR; WONG, 2017).
Outro grande problema acerca da HU é o seu possível potencial genotóxico,
podendo levar à infertilidade, causar teratogênese e câncer, embora, ainda não
existam estudos que comprovem tais hipóteses, até o momento. Logo, a HU é
considerada a melhor opção terapêutica atualmente disponível na obtenção da
melhora clínica e hematológica dos pacientes portadores de anemia falciforme
(SILVA; SHIMAUTI, 2006).
4.7 Transplante de Células-Tronco
Segundo Hoffbrand (2013), o transplante de células-tronco é um procedimento
cujo objetivo é a eliminação dos sistemas imunológico e hematopoético de um
paciente por quimioterapia e/ou radiação com posterior substituição por células-tronco
de outro indivíduo ou por uma porção previamente selecionada de células-tronco
hematopoéticas do próprio paciente. O termo engloba: o transplante de medula óssea,
o transplante de células-tronco do sangue periférico e o transplante de células-tronco
do cordão umbilical, podendo ocorrer de três formas: singênico (de gêmeo idêntico),
alogênico (de outra pessoa) ou autólogo.
33
4.7.1 Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas na Anemia
Falciforme
Embora a sobrevida de pacientes com anemia falciforme tenha melhorado
significativamente nas últimas duas décadas e 94% das crianças com essa doença
agora sobrevivam até os 18 anos graças as medidas profiláticas, como a vacinação
contra pneumococcos, transfusões sanguíneas e hidroxiuréia, a mortalidade é ainda
significante na fase adulta. A morbidade e a mortalidade associada à anemia
falciforme em adultos são devido, principalmente, a complicações como o priapismo,
necrose avascular, doenças pulmonares crônicas, hipertensão, AVE e crises
vasoclusivas recorrentes (ANGELUCCI et al., 2013).
O único tratamento curativo para anemia falciforme é o transplante alogênico
de células-tronco hematopoéticas. Historicamente, a indicação para o transplante das
doenças falciformes era principalmente baseada na morbidade associada a essas
doenças: quanto mais doente a criança, mais forte era a indicação. Com a redução da
mortalidade relacionada ao transplante (MRT) nos últimos anos, e com o crescente
conhecimento da gravidade das complicações em pacientes não tratados, as
indicações aceitas para o transplante de medula óssea tornaram-se um pouco menos
restritivas (ANGELUCCI et al., 2013).
Estudos coordenados por Belinda Simões constataram que os transplantes
mieloablativos com doador HLA idêntico proporcionam uma sobrevida livre de doença
de 80% a 85% em pacientes com doença avançada e grave. Desse modo, através de
um resultado de sucesso, o paciente poderá estar livre de frequentes transfusões
sanguíneas e especialmente das crises oclusivas dolorosas e também das demais
complicações que a doença apresenta (PIERONI et al., 2007).
4.7.1.1 Indicações
Não existe um consenso geral sobre o encaminhamento de pacientes com
anemia falciforme que devem ser submetidos ao transplante. A decisão pode
depender de fatores incluindo a idade do paciente, existência de severa comorbidade,
disponibilidade de um doador HLA-idêntico e o contexto sócio-econômico
(GLUCKMAN, 2013).
34
Apesar disso, no momento, porém, fora de estudos clínicos, os critérios mais
aceitos para se indicar um TCTH em pacientes com anemia falciforme são os
recentemente publicados pela Escola Européia de Hematologia (ESH) (Tabela 3). O
grupo ainda indica o TCTH para pacientes que já fizeram uso de hidroxiuréia por pelo
menos quatro meses e que mesmo com o uso da droga cursem com um ou mais dos
fatores relacionados (PIERONI et al., 2007).
Tabela 3 - Indicações para o TCTH em pacientes com doenças falciformes.
Critérios Alguns dos Achados
Idade Sem limites
Crises vaso oclusivas
a. Dois episódios de b. STA nos últimos dois anos c. ≥ 3 episódios de crises de dor
severa por ano nos dois últimos anos
SNC
a. Eventos neurológicos (derrame ou déficit neurológico que dura por mais de 24h.
b. Sinais neurológicos ou sintomas c. Doppler transcraniano> 200cm/seg
(2x)
Dano a Órgão
a. Patologias respiratórias b. Hipertensão pulmonar c. Redução da função renal d. Osteonecrose em mais de uma
articulação e. Retinopatias
Aloimunização ≥ 2 anticorpos em pacientes em programa regular de transfusão
Hidroxiuréia Redução < 50% das crises sob tratamento com HU ou intolerância à HU.
(Fonte: Adaptada de SIMÕES, B., 2013).
Ainda que não haja limite de idade, a seleção para o TCTH é realizada de
maneira rigorosa, principalmente devido à falta de fatores prognósticos bem
estabelecidos para esta doença e da alta variabilidade do quadro clínico dos doentes.
Assim, há que se pesar o benefício de uma modalidade terapêutica potencialmente
curável, porém com risco de toxicidade e mortalidade em torno de 10%. O Comitê de
Hemoglobinopatias do Consenso Brasileiro de TCTH recomenda que sejam
35
considerados todos os fatores que oferecem riscos ao paciente, tanto clínicos e
laboratoriais quanto sociais e econômicos (SIMÕES et al., 2010).
4.7.1.2 Doadores
4.7.1.2.1 Doadores HLA-idênticos e Estudos Clínicos
Irmãos doadores HLA-idênticos representam a maior parte dos transplantes
mundiais para as doenças falciformes. A maioria dos centros usam a terapia
mieloablativa, ou seja, que destrói a medula óssea, juntamente com a administração
de busulfan (BU), ciclofosfamida (CY) e globulina antitimocitária (ATG) ou
alentuzumabe (GLUCKMAN, 2013).
Estudo multicêntrico recente feito por Panepinto et al., (2007), analisou 67
pacientes com AF, que receberam TCTH aparentado HLA-idêntico. As principais
indicações do transplante foram acidentes vasculares cerebrais (38%) e crises vaso-
oclusivas recorrentes (37%). A idade mediana foi de 10 anos e o condicionamento
consistiu de BU-CY em 94% dos casos. As taxas de doença do enxerto contra
hospedeiro (DECH) aguda e crônica foram, respectivamente, de 10 e 22% e as
probabilidades de sobrevida livre de doença (SLD) e sobrevida global (SG) foram de
85 e 97%, respectivamente. Houve falha de enxertia com recuperação da eritropoese
falciforme em 9 casos, sendo que em 8 destes houve recorrência dos eventos
relacionados à AF. Desse modo, o estudo constatou que o TCTH de doadores-HLA-
idênticos oferece uma taxa de sobrevivência maior, com poucas complicações
relacionadas ao transplante e a eliminação de complicações relacionadas à falcização
na maioria dos pacientes submetidos ao transplante.
4.7.1.2.2 TCTH com doadores não aparentados
Como apenas cerca de 30% dos pacientes possuem doador aparentado HLA-
idêntico, há necessidade de se recorrer às fontes alternativas de células-tronco, como
doadores não aparentados, SCU e transplante haploidêntico. Entretanto, a
experiência com fontes alternativas de células-tronco hematopoiéticas (CTH) no TMO
para pacientes com anemia falciforme é bastante limitada, e, atualmente, está sendo
36
avaliada em estudos prospectivos de fase II (VOLTARELLI, 2009). Alguns relatos do
uso de sangue de cordão umbilical demonstram que esta é uma abordagem possível,
porém com taxa de falha de enxertia mais elevada do que com o uso de medula óssea
como fonte CTH (HAMERSCHLAK et al., 2012).
4.7.1.2.3 Transplante haploidêntico de Medula Óssea
Na ausência de doadores HLA-idênticos aparentados ou não aparentados com
compatibilidade 10/10 ou mesmo 12/12, outras possibilidades usando-se doadores
alternativos de medula óssea, como doadores haploidênticos, os quais possuem
compatibilidade de 50% ou um pouco mais com o receptor, têm sido avaliadas. A
experiência inicial com 29 casos de transplantes haploidênticos demonstrou alta
probabilidade de rejeição (55%) e baixa SLT (21%), sendo ainda considerada
modalidade experimental de transplante para hemoglobinopatias (VOLTARELLI,
2009).
4.7.1.3 Complicações do transplante
4.7.1.3.1 Complicações Precoces
A principal causa de óbito por complicações precoces é a DECH aguda, que
ocorre nos primeiros 100 dias pós-transplante. Ela surge em decorrência de reação
das células imunológicas derivadas do doador, particularmente linfócitos T, contra os
tecidos do receptor, acometendo principalmente a pele, o trato gastro-intestinal e o
fígado (HOFFBRAND, 2013).
Além da DECH aguda, outras complicações precoces incluem: infecções virais,
bacterianas e fúngicas; doença venoclusivas e rejeição do enxerto (Tabela 4). Para
pacientes que evoluem com falha de enxertia ou que rejeitam o enxerto precoce ou
tardiamente, no geral, um segundo transplante, apesar de ser associado à alta
toxicidade, acaba sendo a única possibilidade de tratamento (VOLTARELLI, 2009)
37
Tabela 4 - Complicações do transplante de medula óssea.
(Fonte: HOFFBRAND, 2013).
4.7.1.3.2 Complicações Tardias
A toxicidade e as complicações tardias, como infertilidade, insuficiência
gonadal, neoplasias secundárias e a doença do enxerto-contra-hospedeiro crônica,
são pontos que devem ser levados em consideração para o TCTH em casos de
doenças benignas (VOLTARELLI, 2009).
Os pacientes portadores de hemoglobinopatias transplantados com sucesso
(os chamados ex-falciformes) ainda devem ser acompanhados de forma criteriosa
devido às complicações adquiridas durante os anos de hemotransfusões e quelação
de ferro. Dentre as complicações que requerem maior atenção estão a sobrecarga de
ferro, a hepatite crônica e a disfunção endócrina (VOLTARELLI, 2009).
A infecção pelo vírus da hepatite C e a sobrecarga de ferro são fatores de risco
independente para o desenvolvimento de cirrose e a concomitância dos dois fatores
aumenta muito o risco. Sendo assim, a depleção de ferro deve ser levada em
consideração nesses pacientes de elevado risco, através de sangrias regulares ou
quelação de ferro. Ademais, o tratamento da hepatite crônica pelo vírus C também
38
deve ser indicado com a finalidade de evitar a progressão da doença (VOLTARELLI,
2009).
Dentre as disfunções endócrinas encontra-se o retardo de crescimento, o qual
tem risco aumentado entre crianças transplantadas depois dos 8 anos e aqueles que
desenvolvem DECH crônico. A disfunção gonadal é um efeito colateral comum do
esquema BU-CY, acometendo cerca de 1/3 das crianças transplantadas
(VOLTARELLI, 2009).
4.7.1.4 Experiências Mundiais com o TMO para Anemia Falciforme
Atualmente, mais de 200 TCTH para pacientes portadores de AF já foram
realizados no mundo. Estudos clínicos feitos na Europa e Estados Unidos tiveram
como objetivo definir os riscos e benefícios dessa terapêutica e avaliar o curso clínico
do paciente pós transplante de medula óssea. Seus critérios de elegibilidade foram:
idade entre 2 e 16 anos e presença de AVE, STA ou crises dolorosas graves
recorrentes. Foram administrados BU e CY, com ou sem ATG ou irradiação linfonodal
total (ILT). A maioria desses pacientes recebeu enxertos de medula óssea (MO), e
ciclosporina e metotrexato como profilaxia para a doença do enxerto contra o
hospedeiro (DECH) e falha de enxertia. Após uma mediana de cinco anos de
seguimento, a sobrevida global e a sobrevida livre de doença foram de
aproximadamente 90-95% e 80-85% para pacientes com doador aparentado HLA- -
compatível em todos os estudos (Figura 7). Entretanto, 5% a 10% desses pacientes
morreram de complicações relacionadas ao transplante, sendo a DECH e o seu
tratamento as principais causas de morte (HAMERSCHLAK et al., 2012).
39
Figura 7: Resultados do TMO alogênico em pacientes com anemia falciforme. Mediana de seis anos (Fonte: HAMERSCHLAK et al., 2012).
Em 2011, o grupo francês liderado pela Dra. F. Bernaudin apresentou uma
grande série de casos no Congresso Europeu de TMO. Foram transplantados 144
pacientes, em sua maioria crianças (mediana de idade de nove anos) com diversas
indicações, principalmente vasculopatia cerebral (89) e crises vaso-oclusivas
recorrentes (41). O condicionamento utilizado foi BU e CY com adição de ATG. A fonte
de células predominante foi a medula óssea. Praticamente todos os pacientes
enxertaram (142/144), com exceção de duas crianças que receberam células-tronco
de cordão umbilical. Ocorreram seis óbitos, sendo quatro relacionados a DECH, um
por AVE hemorrágico e um caso por sepse grave no período da aplasia. Com uma
mediana de seguimento de 3,1 anos, o grupo francês observou sobrevida livre de
eventos de 95,8% (Figura 8) (HAMERSCHLAK et al., 2012).
40
Figura 8: Sobrevida livre de eventos em pacientes transplantados para anemia falciforme pelo grupo francês. Mediana de seguimentos de 3,1 anos (Fonte: HAMERSCHLAK et al., 2012).
4.7.1.5 Experiências brasileiras com o TMO para Anemia Falciforme
Em julho de 2015, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União a
portaria de nº 30, que incorpora ao SUS o transplante de células-tronco
hematopoéticas entre parentes a partir da medula óssea, de sangue periférico ou de
sangue de cordão umbilical. Apesar disso, ainda são poucos os casos de pacientes
submetidos ao TCTH alogênico. Além disso, a maior parte dos casos de transplantes
no Brasil é constituída por pacientes com doenças avançadas, portadores de
limitações e intensamente transfundidos (RUAS, 2017).
A experiência brasileira em TCTH para doença falciforme relatada na literatura
se resume a sete pacientes, com mediana de idade de 12 anos, variando de 7 a 38
anos. As indicações foram AVE, STA, priapismo recorrente, aloimunização grave, e
um paciente falciforme transplantado por doença de Hodgkin. Três pacientes
receberam condicionamentos mieloablativos, sendo dois com BU, Cy e ATG e um
com BU e Cy. Os quatro outros receberam regimes não-mieloablativos, sendo dois
com Flu, Cy e ATG, um com Bu, Flu e Cy e um com Bu, Flu e ATG. A fonte de células-
tronco foi a MO em seis pacientes e sangue periférico em um. O paciente com doença
41
de Hodgkin teve DECH aguda e morreu como consequência do DECH. Outro teve
DECH crônica controlada com tratamento. Dois pacientes são quimeras completas e
dois são quimeras mistas. Destes últimos nenhum apresenta manifestações clinicas
de doença falciforme. Dois tiveram reconstituição autóloga e recorrência da doença
(PIERONI et al., 2007).
Desse modo, percebe-se que poucos são os estudos randomizados para o
TMO em pacientes com anemia falciforme. Segundo Simões et al., 2010, isto pode
dever-se ao quadro clínico por vezes muito complexo e às muitas comorbidades
presentes nesta doença, o que torna a realização de estudos randomizados
discutíveis do ponto de vista ético e faz com que tenhamos que tirar conclusões, pelo
menos, de eficácia e toxicidade de estudos observacionais.
Tabela 5 - Transplante de células-tronco hematopoéticas alogênico mieloablativo para anemia falciforme.
(Fonte: SIMÕES, B., 2010).
Como demonstrado na Tabela 5, apesar do número limitado de casos
transplantados fica evidente o potencial desta abordagem terapêutica, sua eficácia e
baixa toxicidade, tendo em vista que a sobrevida de pacientes com anemia falciforme
é reduzida pelas complicações da própria doença (SIMÕES et al., 2010).
42
4.7.1.6 Perspectivas futuras
Até o presente momento, o único tratamento curativo para a anemia falciforme
é o TCTH, proporcionando até 80% de sobrevida livre para os pacientes com doença
avançada e grave. Apesar disso, essa terapêutica ainda é pouco utilizada no Brasil
devido as suas limitações quanto às indicações, complicações pós-transplante e a
dificuldade de se encontrar doador compatível. Estima-se que menos de 25% das
crianças com doença falciforme tenham um doador aparentado HLA-compatível.
(PIERONI et al., 2007).
Segundo, Simões et al., 2010, uma abordagem interessante seria submeter
pacientes jovens sem complicações ainda, ao TCTH, com o intuito de prevenir as
complicações futuras. Um único estudo avaliou o TCTH em pacientes portadores de
anemia falciforme jovens sem complicações. Tratava-se de um grupo de 14 crianças
africanas que moravam na Bélgica e que pretendiam voltar ao seu país de origem
onde sabiam que não teriam um suporte terapêutico adequado e, desta maneira,
quiseram submeter-se a um procedimento potencialmente curável. Nestas 14 crianças
com menos de 14 anos não houve nenhum óbito e apenas em um caso houve recidiva
da doença.
Além do transplante precoce, os transplantes haploidênticos de medula óssea
também se constituem como uma esperança para viabilizar ainda mais os
transplantes para as hemoglobinopatias. Apesar de, no momento, serem indicados
apenas para pacientes selecionados, novos estudos estão sendo planejados com
doadores familiares haploidênticos usando estratégias de indução de imunotolerância
(REES; WLLIAMS; GLADWIN, 2010).
43
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa revisão bibliográfica foi realizada com o intuito de relatar as experiências
mundiais e brasileiras com o transplante de medula óssea em pacientes com anemia
falciforme, realizando, primeiramente uma breve revisão sobre essa doença,
destacando sua fisiopatologia, epidemiologia, manifestações clínicas, diagnóstico e
tratamentos.
De modo geral, os objetivos determinados para esse trabalho foram
alcançados, observando-se que:
• Foi feita uma breve introdução sobre as doenças falciformes, com posterior
enfoque na anemia falciforme, abordando seus aspectos fisiopatológicos, nos
quais foi descrita a alteração genética que provoca a falcização, os efeitos que
esta causa aos eritrócitos e a resposta do sistema imune frente a este evento,
levando ao quadro de anemia. Além disso, foi relatado também a epidemiologia
dessa doença, no Brasil e no mundo, mostrando ser esta a mais prevalente doença
falciforme;
• As principais manifestações clínicas agudas e crônicas em crianças e adultos
foram relatadas, decorrentes, principalmente das vasoclusões, provocando, por
exemplo, crises de dor e asplenia funcional;
• Foram descritas as terapêuticas convencionais utilizadas para o tratamento da
anemia falciforme, as quais incluem: transfusões sanguíneas, que podem ser feitas
de forma aguda, em casos de crises de dor, ou de forma crônica, como parte de
um programa periódico de transfusão; uso de analgésicos para alívio das dores e
hidroxiuréia, que é o único medicamento existente, no momento, para o tratamento
da AF e que, apesar dos seus efeitos adversos, ainda é considerado a melhor
opção terapêutica para amenizar as manifestações clínicas provocadas por essa
doença;
• Foi relatado como é feito o diagnóstico da AF e as medidas instituídas pelo
Ministério da Saúde do Brasil, o qual inseriu o diagnóstico da anemia falciforme na
triagem pré-natal (teste do pezinho) e na Rede Cegonha, permitindo a detecção
precoce da doença e adoção de profilaxia adequada;
44
• O transplante de células-tronco em pacientes com anemia falciforme foi abordado,
com destaque nas suas indicações, tipos de doadores, complicações precoces e
tardias;
• Foram relatadas as experiências mundiais e brasileiras quanto ao transplante de
medula óssea em pacientes com AF, podendo-se concluir que, apesar das poucas
evidências na literatura, ele se constitui como uma ótima opção terapêutica,
aumentado em até 95% a taxa mundial de sobrevida livre, apesar da existência de
possíveis complicações;
• Foram apontadas as perspectivas futuras quando ao transplante, destacando um
estudo que observou os efeitos benéficos do transplante precoce como uma forma
de prevenir complicações futuras. Além da expectativa quanto a novos estudos
sobre os transplantes haploidênticos, que aumentariam as chances de se
encontrar um doador compatível para o paciente.
Por fim, foi possível constatar também que, apesar de ser o único tratamento
curativo para a anemia falciforme, o TMO alogênico ainda é subutilizado no Brasil,
devido, por exemplo, as suas complicações tanto precoces quanto tardias, o que leva
a sua realização, principalmente, em casos mais graves, nos quais os outros
tratamentos convencionais não conseguem provocar uma resposta satisfatória.
Considerando a importância e o impacto benéfico que essa terapêutica
proporciona aos portadores da AF, conhecer melhor o que limita sua eficiência é
essencial para que novos estudos possibilitem melhores abordagens terapêuticas,
elevando a eficiência do procedimento.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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