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PARA ALÉM DA CRIMINOLOGIA DE GABINETE os visitantes do Presídio Central de Porto Alegre e seus saberes VERA M. GUILHERME

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PARA ALÉM DA CRIMINOLOGIA DE GABINETEos visitantes do Presídio Central de Porto Alegre e seus saberes

VERA M.GUILHERME

VERA M. GUILHERME

Possui graduação em Educa-ção pela Pontifícia Universida-de Católica do Rio de Janeiro (1987). Possui graduação em Direito pelo Centro Universi-tário Ritter dos Reis (Laureate International Universities) de Canoas - RS (2012/2). Mestre no Programa de Pós-Gradu-ação em Ciências Ciminais - Violência, Crime e Segurança Pública (2015)

A ideia de fazer uma pesquisa sobre o Presídio Central de Porto Alegre começou ainda na graduação em Direito, após a primeira visita acadêmica àquela casa prisional, com colegas e a Prof. Doutoranda Simone Schroeder. À época, em 2011, fiquei impressionada com as péssimas condições em que os presos viviam. O cheiro do Central é algo que nunca mais esqueci - algo semelhante a carne putrefata, a restos orgânicos em decomposição. Depois de visitar algumas galerias fiquei sem ar, perdida mesmo. Não conseguia acreditar no que eu havia presenciado.

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Vera dá voz a quem normalmente não tem possibilidade de dizer abso-

lutamente nada sobre os efeitos do cárcere: as famílias de presos e, por conseguinte, também aos próprios

encarcerados. Ou seja, às partes dire-tamente interessadas, que são normal-mente substituídas, academicamente,

por discursos rebuscados, com palavras difíceis e que, ao final, pouco têm a di-zer. A estes, a autora dá o provocativo nome de “criminologia de gabinete”.

Estão em discussão não apenas as es-truturas que mantêm o cárcere como elemento central do sistema punitivo, mas principalmente o papel dos inte-

lectuais diante disso. Seguirão falando sozinhos em frente ao espelho?”

GUSTAVO NORONHA DE ÁVILA

ISBN 978-85-8425-661-7

editora

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VERA M.GUILHERME

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VERA M.GUILHERME

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Copyright © 2017, D’Plácido Editora.Copyright © 2017, Vera M. Guilherme.

Editor ChefePlácido Arraes

Produtor EditorialTales Leon de Marco

Capa, projeto gráficoLetícia Robini

DiagramaçãoEnzo Zaqueu Prates

Catalogação na Publicação (CIP)Ficha catalográfica

GUILHERME, Vera M.

Para além da criminologia de gabinete: os visitantes do Presídio Central de Porto Alegre e seus saberes. -1. Reimp. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

Bibliografia.ISBN: 978-85-8425-661-7

1. Direito 2. Direito Penal. I. Título. II. Autor

CDU343 CDD341.5

Editora D’PlácidoAv. Brasil, 1843, Savassi

Belo Horizonte – MGTel.: 31 3261 2801

CEP 30140-007

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,

por quaisquer meios, sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.

W W W . E D I T O R A D P L A C I D O . C O M . B R

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“Sempre insisti em não desempenhar o papel do intelectu-al profeta que diz antecipadamente às pessoas o que elas devem fazer e lhes prescreve quadros de pensamentos, de objetivos e de meios retirados de seu próprio cérebro, ao trabalhar fechado em

seu escritório entre seus livros....

A partir do momento em que uma instituição (a prisão) que apresenta tantos inconvenientes, que suscita tantas críti-

cas só ocasiona a repetição indefinida dos mesmos discursos, a <<tagarelice (criminológica)>> é um sintoma sério.”

(FOUCAULT, Michel. Segurança, Penalidade, Prisão. Coleção Ditos e Escritos VIII. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Mota: Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio

de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2012, pp. 282-283.)

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Este trabalho é dedicado ao meu pai (in memoriam) que frequentou, durante parte de sua infância, a fila dos visitantes de uma casa prisional em Niterói, RJ. Meus eternos agradeci-

mentos por nunca ter escondido essa parte da sua história, e ter enfrentado, com valentia, as adversidades e os preconceitos.

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Agradeço à minha mãe Joanna e à minha filha Ana Luísa pelo carinho e pela paciência durante o mestrado e também agora na fase de reorganização desta versão do texto.

Meus agradecimentos à Pontifícia Universidade Ca-tólica do Rio Grande do Sul. Foram dois anos com toda a infraestrutura necessária para a realização do Mestrado e a concretização do projeto de pesquisa.

À CAPES, por ter financiado o Mestrado e a pesquisa realizada no Presídio Central de Porto Alegre.

Ao meu professor de Filosofia da Educação, Leandro Konder (in memoriam). Foi um encontro revolucionário.

Todo meu respeito e gratidão à minha orientadora Prof. Dra. Ruth Maria Chittó Gauer. Seu constante ten-sionamento me fez avançar intelectualmente de forma admirável. Minha pesquisa não teria se concretizado sem a sua parceria e compreensão.

Aos professores do PPGCCRIM Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho, Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloe-ckner, Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Prof. Dra. Clarice Beatriz Sohngen.

A Márcia C. Lopes, Andrews Luiz Bianchi, Uilliam Vargas e Caren Andrea Klinger.

AGRADECIMENTOS

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Ao Silva, meu livreiro desde meus 16 anos, a quem devo muito do que sou, muito do que leio e muito do que escrevo. Sem ele a minha história teria sido totalmente outra. Eterna gratidão, respeito, e amizade.

Ao Prof. André Bencke, inspiração para meu estudo em criminologia.

Ao Prof. Ms. José Francisco de Fyschinger, por acredi-tar em mim quando foi meu professor e me orientou, com total liberdade acadêmica no TCC, no Uniritter Canoas, e por me incentivar a fazer o mestrado. Meus agradeci-mentos profundos pela confiança e pela oportunidade de crescimento. Sobrancelhas zequianas repletas de gratidão.

Ao Prof. Dr. Gustavo Noronha de Ávila, ex-professor de graduação, de pós- graduação, e grande interlocutor ao longo da minha vida acadêmica. Minha infinita gratidão pela parceria, pela amizade/fraternidade, pelo respeito, pela generosidade, e por tantas outras qualidades que nem caberiam aqui. Raro caso de dignidade acadêmica.

Ao meu primeiro professor de graduação no Uniritter, Prof. Ms. Claudio Maraschin.

Ao meu amigo do Direito do Trabalho, Prof. Dr. Ro-drigo Wassem Galia, por tudo.

Aos Profs. Drs. Mauro Fonseca Andrade, Érika Mendes de Carvallho e Pablo Alflen, por tudo que me ensinaram através de seus livros, suas aulas e suas palestras. Foram fundamentais para a realização deste trabalho. Sou extre-mamente grata por sua generosidade e por sua amizade.

Ao Dr. Sidinei Brzuska, sempre pronto para colaborar quando precisei.

Às minhas amigas para a vida toda Rosana Silveira Martins, Ana Paula Schmidt, Deise Angra e Manuela Vitório Guedes, por tudo.

À Maria Helena Viegas, uma amiga que ganhei a partir de leituras e conversas fundamentais, minha gratidão.

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Aos colegas Tábata Mendonça, Antonio Soares Lopes Silveira, Eduardo Schmidt Jobim, Jean M. Severo e Gui-lherme Ceolin. Nossos encontros dentro e fora das salas de aula provocaram leituras, contribuíram com reflexões, conferiram o humor necessário o mestrado.

Ao amigo David Queiroz, meus agradecimentos por sua amizade, seu respeito e sua autenticidade. Ao amigo Marcello Jahn dos Santos, por tudo.

À Gecelda, minha terapeuta.Aos meus alunos, por me desafiarem a estudar cada vez

mais, por crescerem comigo ao longo da nossa convivência e me fazerem acreditar em um mundo bem diferente desse que está aí.

Aos visitantes da fila do PCPA, protagonistas dessa dissertação, pela acolhida e colaboração. Vocês revolucio-naram meu olhar!

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PCPA Presídio Central de Porto Alegre

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

LEP Lei de Execução Penal

GIP Groupe d’Information sur les Prisons

KROM Norsk Forening for Kriminalreform

LISTA DE SIGLAS

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Prefácio 19

Primeiras palavras 21

Introdução 29

1. A escolha da prisão como a “melhor” punição para situações problemáticas: permanências e mudanças no modelo prisional 35

1.1. A prisão enquanto resposta “civilizada” 39

1.2. Tecnologias de punição e economia política do corpo 42

1.3. O desejo de controle do crime e a prisão como um dos instrumentos de exercício desse desejo 44

1.4. O controle social exercido pelo Estado 48

1.5. Por uma nova leitura do sistema de justiça criminal 58

1.6. A prisão no século XXI: a busca por estabelecimento de padrões internacionais aceitáveis para tratamento dispensado aos presos 72

SUMÁRIO

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2. A execução penal à brasileira e suas repercussões no cenário prisional do Rio Grande do Sul – o caso do Presídio Central de PortoAlegre 89

2.1. Princípios da execução penal no Brasil 93

2.2. Decretos estaduais vigentes no Rio Grande do Sul 96

2.3. Dados sobre a população carcerária no Rio Grnade do Sul 105

2.4. Presídio Central de Porto Alegre: crônica de um fracasso anunciado (ou de um sucesso estrondoso?) 106

2.5. As facções criminosas no Presídio Central de Porto Alegre e na região metropolitana 117

3. O Presídio Central de Porto Alegre pelo olhar de seus visitantes: “ineficiência” do Estado e ilegalismos 127

3.1. Opções metodológicas 127

3.2. A fila dos visitantes e seus saberes 131

3.3. Diferentes tratamentos dispensados aos presos em uma mesma casa prisional 154

3.4. O tráfico de drogas 158

3.5. O poder de barganha das mulheres 162

4. Algumas Considerações 167

5. De lá para cá 173

Referências bibliográficas 177

Anexos 185

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7.1. Anexo 1: Horário para confecção de carteirinhas 185

7.2. Anexo 2: Sacola da primeira visita 186

7.3. Anexo 3: Lista de sacolas (frente) 187

7.4. Anexo 4: Lista de sacolas (verso) 188

7.5. Anexo 5: Declaração de união estável 189

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O processo de escrita é sempre redutor. Jamais dará conta das complexidades e subjetividades envolvidas nas entrelinhas, nos escaninhos de cada um dos caracteres que juntos formam palavras, frases, parágrafos, textos inteiros.

Por outro lado, escrever/reduzir é sempre mais difícil quando falamos sobre algo que transcende os limites com os quais estamos acostumados a lidar. É o caso deste precioso trabalho de Vera Guilherme.

Aqui, após demonstrar os limites das análises crítico--criminológicas em relação aos problemas derivados do proibicionismo e da política de drogas1, a autora novamente vai além. Propõe verdadeira subversão dos objetos tradicio-nalmente tratados em Criminologia, ao inverter as lógicas das análises trazidas de dentro do poder.

Não apenas essas análises, invariavelmente, recaem em uma perspectiva notadamente neofuncionalista, como também acabam por (mesmo não intencionalmente) relegitimar o po-der punitivo do Estado. Essa espécie de déjà-vu é justamente o que o sortudo leitor não encontrará nas linhas que virão.

1 Cf. GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; GUILHERME, Vera M.; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Abo-licionismos Penais. 2a ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

PREFÁCIO

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Mesmo trabalhando com um exemplo específico, o presídio central de Porto Alegre, as conclusões quanto à (in)operância ilegalista do Estado podem ser generalizadas para outras realidades. Realidades estas onde as insensibilidades aumentam, enquanto o ódio segue sendo o combustível das nossas interações. De lado a lado. A naturalização destas diferenças serve a algo e Vera (com apoio em Simon) alerta: enquanto a lógica da punição for a tônica dos discursos políticos (com ampla adesão popular), seguiremos sendo governados através do crime.

Vera dá voz a quem normalmente não tem possibi-lidade de dizer absolutamente nada sobre os efeitos do cárcere: as famílias de presos e, por conseguinte, também aos próprios encarcerados. Ou seja, às partes diretamente interessadas, que são normalmente substituídas, academi-camente, por discursos rebuscados, com palavras difíceis e que, ao final, pouco têm a dizer. A estes, a autora dá o provocativo nome de “criminologia de gabinete”.

Estão em discussão não apenas as estruturas que man-têm o cárcere como elemento central do sistema punitivo, mas principalmente o papel dos intelectuais diante disso. Seguirão falando sozinhos em frente ao espelho?2

O corajoso trabalho de Vera Guilherme traz inspiração e esperança para a articulação de uma criminologia, como ela própria diz, “com gente”.

Gustavo Noronha de Ávila

Ex-Professor de Vera M. Guilherme; Mestre e Doutor em Ciências Cri-minais pela PUCRS; Professor da Graduação e do Mestrado em Ciências

Jurídicas do Unicesumar; Professor do Departamento de Direito Público da UEM; Professor da Especialização em Direito Penal e Processo Penal da

ABDConst; Bolsista de Produtividade do ICETi

2 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Questão Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

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A ideia de fazer uma pesquisa sobre o Presídio Central de Porto Alegre começou ainda na graduação em Direito, após a primeira visita acadêmica àquela casa prisional, com colegas e a Prof. Doutoranda Simone Schroeder. À época, em 2011, fiquei impressionada com as péssimas condições em que os presos viviam. O cheiro do Central é algo que nunca mais esqueci - algo semelhante a carne putrefata, a restos orgânicos em decomposição. Depois de visitar algu-mas galerias fiquei sem ar, perdida mesmo. Não conseguia acreditar no que eu havia presenciado. O incômodo não passou com o tempo. Ao contrário, foi ganhando cada vez mais espaço. Do ponto de vista pessoal, passei a valorizar pequenas coisas, como a minha possibilidade de ir ao banheiro quando quisesse, comer quando quisesse, sair de um cômodo para outro, tomar banho quando desejasse, ter acesso a medicamento, poder ver televisão, ler um livro, ouvir música, poder estar com família ou amigos. A minha liberdade cotidiana passou a remeter àquela falta de liberdade que eu havia presenciado, ainda que por poucas horas. Momentos em que os presos andam de cabeça baixa, sem permissão para olharem os visitantes nos olhos, com as mãos para trás dos corpos, andando pelos corredores por dentro de um “curralzinho’’ entre paredes e uma barreira

PRIMEIRAS PALAVRAS

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e metal, em silêncio enquanto andávamos pelos corredores. Na maioria das vezes de cara para as paredes, sob a vigilân-cia bastante rigorosa dos brigadianos. Passei a ver que nas pequenas coisas, até então consideradas costumeiras, havia uma grande riqueza. Aquelas pequenas coisas elementares, normais, cotidianas passaram a ganhar um valor estupendo. E tem sido assim desde então.

Depois dessa primeira visita acadêmica, ocorreram três outras (2012, 2013, 2015), cada uma delas enfatizando determinados aspectos que a direção do presídio conside-rava relevantes. Além das galerias, passaram a fazer parte do roteiro de visita a cozinha, a enfermaria, os pátios (ainda que vistos de cima), a cantina, gabinete odontológico, salas de aula, oficinas, espaços usados para encontros religiosos, setor de triagem, área de revista de visitantes (nas primeiras vezes com revistas íntimas e, posteriormente, com uso de scanner corporal), outra galerias. Em uma delas, enquanto nos despedíamos do responsável pela visita, encontrei uma senhora idosa que havia passado por revista íntima. Ia saindo do cômodo destinado à revista íntima, com dificuldade para conseguir andar depois dos agachamentos. Naquele momento senti vontade de conversar com ela, ouvir sua história. Pensei no quanto ela teria para me dizer sobre sua chegada até ali, suas impressões do que era o PCPA. E também pensei no quanto a pena do seu familiar também era sua.

O interior do PCPA foi ganhando cada vez mais forma, e a arquitetura daquilo tudo foi começando a fazer sentido de uma forma intensa, como um quebra-cabeça que ia tomando forma, mas que precisava de mais elementos de análise. Porque uma coisa era o que a administração dese-java ou achava poder nos apresentar; outra bem diferente poderia ser o que acontecia por trás daqueles muros. Apenas na última visita, no final de semana posterior à entrega do

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meu texto para a revisão final da minha orientadora, pude conversar com alguns dos presos diretamente, na presença de um membro da administração. Assim mesmo, com presos que faziam parte de oficinas, selecionados por ela. Àquela altura eu já era capaz de entender melhor o significado de tudo aquilo. Os silêncios eram importantes. Também de-correm desta visita os anexos presentes ao final deste texto.

Considerando o direcionamento das visitas e os di-versos percursos e discursos feitos a cada visita ao interior do Central, optei por uma pesquisa que não fosse institu-cional. Não me interessava pelo que a administração ou os presos indicados por ela tinham a dizer. Eu queria mais: queria ouvir pessoas que podiam adentrar aqueles muros, mas que não tinham vínculos institucionais com a casa prisional. Veio, a partir da leitura do livro de Karina Biondi1 a ideia de um trabalho com a fila dos visitantes. Seu ponto de partida seria o meu objeto. Ali eu estaria conversando com pessoas que, como eu, entravam no presídio mas que, diferentemente de mim, o faziam com outra finalidade que não a acadêmica.

Quando defendi o projeto de dissertação minha ideia era pesquisar o tráfico de drogas dentro do PCPA, buscando entender como se organizava lá dentro e ver que reper-cussões essa organização estendia às áreas de onde aqueles traficantes vinham. Mas desde o primeiro dia no campo percebi que as questões colocadas nas filas iam muito além do tráfico de drogas. Primeiro porque dificilmente na fila as pessoas, uma vez perguntadas pelas razões para as prisões de seus partentes e amigos, afirmavam ser o tráfico de drogas. Havia muita narrativa de receptação, roubo, crimes contra o patrimônio em geral, mas o tráfico era objeto de um silên-

1 BIONDI, Karina. Junto e Misturado: uma etnografia do PCC. SP: Editora Terceiro Nome, 2010.

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cio. Passei a perceber que o silêncio mediante essa pergunta apontava para o tráfico, mas constituía uma barreira para que as conversas avançassem. Além desse silêncio quando a palavra tráfico era mencionada, outras questões apareciam com uma frequência muito maior nas rodas de conversa, e essas questões remetiam às condições de funcionamento do PCPA. Decidi mudar o rumo da pesquisa, e seguir o que parecia ser, para as pessoas da fila, mais relevante. Com o passar do tempo o tráfico foi aparecendo nas conversas, mas não como o principal assunto. Não aparecia como o fator estruturante do cotidiano do PCPA, ao contrário do que a mídia em geral apresentava.

Devo dizer que, ao longo do período em que estive na fila (2014-2015), minha preocupação era preservar as identidades das pessoas com quem eu conversava, para evitar que de alguma forma nossas conversas resultassem em alguma represália ou tentativa de controle por parte do Estado. Muito menos que as conversas repercutissem no cotidiano dos presos relacionados às pessoas com quem eu conversava. Esse foi um ponto amplamente debatido com a orientadora, no sentido de não cadastrarmos os “informantes”, garantindo sua liberdade para dizerem o que desejassem ou sentissem necessário, impossibilitando que fosse rastreada a informação a uma ou outra pessoa. Nos quatro últimos meses de campo, mais próximos da data de entrega do texto, eu já estava uma pesquisadora mais experiente, sem aquelas ansiedades e tensões dos primeiros encontros com as pessoas na fila.

Durante meses de 2014 e 2015 frequentei a fila do PCPA, sem qualquer gravador ou papel para registrar o que me era dito. Fui aos poucos construindo um roteiro mental básico, a partir do que eu ia vivendo na fila, mas não que-ria inibir ou intimidar as pessoas, passando a ideia de que havia alguma resposta que eu desejava ouvir ou cercear sua

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liberdade para conversas muitas vezes paralelas. Optei por simplesmente estar na fila e puxar conversas com as pessoas, deixando que elas, de certa forma, pudessem estabelecer os limites do que era dito. Minha preocupação era de não dizer ao Estado nada que ele já não soubesse, mas colocar no papel coisas que a sociedade aqui fora sequer imaginava.

Os encontros de madrugada, a partir das 3:30 da manhã até o horário da abertura da grade para a sala de espera para a revista corporal, aconteciam 4 vezes por semana. Depois de aproximadamente 3 horas de conver-sas, eu passava a colocar no papel o que tinha ouvido das pessoas, sem restringir o registro a questões inicialmente elaboradas por mim. O material era rico demais para sofrer cortes ou edições. Com o passar dos meses, alguns pontos apareciam de forma recorrente, apontando a necessidade de um aprofundamento teórico nessas questões. Mas preciso deixar claro que não foi aplicado um modelo pronto, fil-trando o que as conversas me apontavam. Dei às conversas o protagonismo.

Durante esse tempo na fila precisei recorrer a diversos autores que trabalharam a questão prisional. Campo e literatura se faziam mutuamente fundamentais. Só quan-do “terminei” o texto, à medida que eu ia organizando as referências bibliográficas, eu me dei conta de que os autores com quem mais havia dialogado haviam tido, de alguma forma, vivência do sistema prisional – sobrevi-vente de campo de concentração, pesquisador em pri-sões, propositor de mudanças na política prisional. Meus principais interlocutores conheciam, de alguma forma, as entranhas da prisão. Ela não era apenas um objeto de pesquisa cercado de teorias; era algo concreto que, por experiência direta, necessitava ser debatida e questionada em sua essência. E esses autores me acompanharam antes e depois dessas conversas na fila. Não houve uma separação

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entre o tempo das leituras e o tempo do campo. E, olhando para trás, hoje percebo que, embora isso tenha sido feito de forma intuitiva, acabou se tornando essencial para o texto que acabei escrevendo. Em meus momentos de crise foi nesses autores que encontrei alguma orientação ou capacidade de problematização. Meus dilemas não me eram exclusivos. Minhas angústias muito menos. E foi um alívio saber que eu não tinha a obrigação de ter resposta para tudo. Até porque nem tudo era relevante para as pessoas com quem eu conversei. As crises iam se acentuando, as certezas se desfazendo, mudanças de rumo tendo que ser feitas, mas passei a não mais ficar angustiada com isso. Fui entendendo que isso era parte do processo, e que eu teria que lidar com isso e ir analisando o que ia percebendo aos poucos, em constantes idas e vindas.

Ao longo da redação da dissertação, algumas partes foram retiradas do texto, para que pudesse ser apresentado à banca de forma mais enxuta, objetiva e sem número ex-cessivo de páginas, atendendo às recomendações da orien-tadora. Mas eu tinha em mente a ideia de um dia tornar públicos não só o texto apresentado à banaca avaliadora (presente no acervo da biblioteca da PUCRS), mas também elementos sobre como a pesquisa havia se desenvolvido, incorporando partes que foram retiradas do texto pelas razões já mencionadas.

Demorei muito a colocar em prática essa “nova versão” que agora se apresenta. Seria um outro texto, baseado na dissertação, mas com maior liberdade tanto em termos de estilo de escrita quanto em conteúdo. Sem aquelas amarras que o academicismo muitas vezes incentiva e valoriza. Algo que se parecesse com uma conversa com o leitor inclusive sobre as angústias enfrentadas por uma pesquisadora ao descobrir que a realidade é muito maior e bem diferente do que projetos de pesquisa podem prever.

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É dessa forma que apresento a você, leitor, esse texto “sem cortes”, como eu gostaria que tivesse sido originalmente.

Porto Alegre, 06 de julho de 2017.

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VERA M.GUILHERME

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