Miolo Nunca Perdoar Nunca Esquecer 2Emendas · vestida para ir para a cama de camisa de dormir de...

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Tradução de Rui Azeredo nunca perdoar, nunca esquecer chelsea cain

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Tradução de Rui Azeredo

nunca perdoar,nunca esquecerchelsea cain

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Para Marc Mohan, E l iza Fantast ic Mohan e Luc y.

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Eu não temo o homem que praticou 10 000 pontapés uma vez, mas sim o homem

que praticou um pontapé 10 000 vezes.

— b r u c e l e e

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P R Ó L O G O

Disseram-lhe o que fazer caso a polícia alguma vez aparecesse. Tinham treinado — logo de manhã; a meio da noite; a meio de uma refeição — até ela conseguir chegar em menos de um mi-

nuto ao alçapão no armário a partir de qualquer ponto da casa. Era uma miúda ágil e rápida, e treinava. Quando o pai parava o cronómetro e lhe acenava, orgulhoso, sentia uma onda de felicidade a arder-lhe no peito.

Sabia que ele fazia tudo aquilo por ela. Via o peso que o stresse cau-sava, as rugas nos cantos dos olhos, os fi os cinzentos no cabelo louro; o cor de rosa da cabeça visível onde o cabelo se tornava mais ralo no cimo. Ainda era forte. Ainda podia contar com ele para a proteger. A propriedade deles fi cava num condado rural, a quilómetros da casa mais próxima, e ele assegurava que conseguia ouvir um carro a aproximar-se mal virasse para o caminho de gravilha. Fora aqui que ele lhe ensinara a disparar. O modo de posicionar os pés de forma a que a arma de calibre .22 fi casse mais fi rme nas suas mãos. Disse-lhe que, caso a polícia apare-cesse, e ele não estivesse em casa, deveria disparar sobre quem quer que a tentasse impedir de chegar ao alçapão. Tinha andado com ela pela casa, mostrando-lhe o esconderijo de cada arma, fazendo-a dizer em voz alta a localização de cada uma. — Debaixo da banca da cozinha. — Na gaveta

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do aparador da sala de jantar. — Atrás dos livros na estante. — Ela não tinha medo. O pai estava sempre em casa. Se fosse preciso disparar sobre alguém, ele trataria disso.

A chuva batia nas frágeis janelas da quinta, mas sentia-se segura, já vestida para ir para a cama de camisa de dormir de algodão com girafas e uma manta sobre os ombros. O cheiro a molho de esparguete e almôn-degas em lata — a sua refeição favorita — ainda perdurava no ar, junta-mente com a madeira que crepitava na lareira. A mesa da sala de jantar já tinha sido levantada. A mãe desaparecera para a cozinha. O tabuleiro de Scrabble estava montado e ela e o pai estudavam as peças. Jogavam todas as noites depois do jantar. Fazia parte da sua educação em casa. A lareira da sala de estar tremeluzia com um brilho quente e cor de laranja, mas jogavam sobre a mesa da sala de jantar. O pai dizia que era melhor para a postura. O pai pegou numa das peças de madeira do Scrabble e colocou-a no tabuleiro. C. Sorriu-lhe, e ela reconheceu aquele olhar, sabia que ele tinha uma das boas. Colocou outra peça no tabuleiro. A. Estava prestes a colocar a peça seguinte quando ecoou pela casa o som de alguém a bater na porta da frente. Apercebeu-se do medo no rosto dele, pela forma como os olhos piscavam. Deixou cair a peça. K.

A mãe materializou-se na entrada da cozinha, com um pano da louça ainda agarrado nas mãos molhadas. Ficou tudo quieto. Como no momento em que uma fotografi a é tirada — aquela pausa em que o mundo inteiro aguarda, tentando não piscar os olhos.

— É o Johnson — gritou uma voz familiar do exterior. — A tem-pestade fez cair uma árvore nos meus cabos de eletricidade. Não tenho telefone. Nada. Posso usar o vosso para chamar o xerife?

Os pais dela trocaram um olhar intenso e então o pai fechou os punhos em cima da mesa e debruçou-se neles, sem reparar sequer que derrubara o seu suporte para as peças do Scrabble e que todas elas des-lizaram pela toalha de mesa. A mãe tinha bordado aquela toalha com campainhas e fl ores de tremoço. A peça K do suporte do pai estava ali, sobre uma campainha, mesmo à sua frente. Só aquela peça valia cinco pontos.

— Quero que vás para a janela junto do piano — disse o pai. Falou no tom de sussurro sério a que recorria quando ela devia seguir as suas instruções sem fazer perguntas. Os seus olhos viraram-se para a mãe, passando então as mãos pelo próprio cabelo louro fi no, tão diferente da

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melena escura, espessa e emaranhada dela. — Deves conseguir ver a casa do Johnson ao fundo da colina, logo a seguir ao lago — disse-lhe ele. — Diz-me se vês alguma luz acesa.

Desta vez era diferente dos treinos. Podia ver a forma como os pais olhavam um para o outro. Perguntava-se se deveria estar assustada, mas quando procurou por sinais de medo no seu corpo, não encontrou ne-nhum. O pai ensinara-lhe a importância de estar preparada.

Arrastou calmamente a cadeira da mesa e levantou-se, deixando cair a manta do corpo para o chão enquanto se dirigia, descalça, da sala de jantar para a sala de estar. A lareira parecia um círculo cor de laranja no meio da escuridão. Contornou o piano da mãe em bicos de pés e encaixou-se entre ele e a parede. Olhou então através do vidro molhado para a escuridão lá fora. O ar frio que se embrenhava do exterior fê-la esquecer-se da lareira. Espreitou na direção que o pai lhe indicara. Mas não havia luzes — apenas o seu leve refl exo a bruxulear como brasas que se extinguem. Voltou a cabeça para a sala de jantar. — Não vejo luz nenhuma — relatou Kick. — Está escuro lá em baixo.

A mãe pronunciou o nome do pai, um som fraco seguido de um sorvo, como se o estivesse a engolir. O pai aclarou a garganta. — Vou já ter contigo — gritou ele em direção à porta.

Ouviu o arrastar das pernas da cadeira quando o pai se levantou da mesa e fi tou-o enquanto ele se dirigiu para o armário da sala de jantar e retirou a Colt da gaveta ao lado da prataria. Ajeitou a arma na parte de trás das calças de ganga que a mãe lhe tinha comprado no Walmart.

Viu a mãe a retirar-se lentamente para a cozinha.Estava frio junto à janela. A chuva batia como se fossem dedos

contra o vidro. O homem continuava a bater à porta com força. Sentiu qualquer coisa na mão dela, um pequeno quadrado duro de madeira, e espantou-se ao ver a peça K fi rmemente agarrada nos seus dedos. Não se lembrava de lhe ter pegado.

O pai apanhou a manta do chão e levou-lha. Embrulhou-a à volta dos ombros e ela, de súbito envergonhada, escondeu a peça de Scrabble no punho, não querendo que ele fi casse desapontado com o roubo. Fixou os olhos nela e aproximou-se tanto da sua cara que ela conseguiu cheirar-lhe o molho de esparguete no hálito, assim como a carne picada cozinhada. — Para já, deixa-te estar onde estás — sussurrou-lhe, com a voz a falhar. Um reluzir da chama refl etiu-se no escuro nos seus globos

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oculares. Apertou ainda mais a peça de Scrabble na mão, sentindo os cantos a enterrarem-se-lhe na carne.

Viu o pai tocar no punho da arma no fundo das costas enquanto atravessava a sala de jantar em direção à porta, como se certifi casse de que ainda lá estava. Calçava os mocassins com contas que comprara no verão quando moraram em Oklahoma, daqueles feitos por genuínos co-manches. As solas eram em couro, macias e silenciosas.

Ele não olhou para ela enquanto atravessava para o hall de entrada, mas deixou a porta entreaberta. Ouviu a porta da frente a abrir e o es-talido e o ranger da porta interior de alumínio ao fechar. Escutou a voz do pai, num tom de simpatia fi ngida, assim como o barulho no tapete de boas-vindas provocado pelas botas de Johnson, que se desculpava de novo pelo incómodo.

O corpo dela relaxou e afrouxou um pouco o aperto da manta que trazia pelos ombros.

Não era necessário fugir.O vizinho usaria o telefone. Iriam acabar o jogo de Scrabble.

Encostou-se contra a parede, passando a peça de Scrabble por entre os dedos, questionando-se quanto tempo deveria permanecer ali enquanto os homens conversavam sobre a tempestade. O brilho do seu próprio refl exo captou-lhe a atenção. Estudou-o no vidro ondulado da janela. O seu cabelo negro desapareceu até ela se tornar apenas uma cara na janela, um brilho de olhos e dentes. Aproximou-se mais até o nariz fi car tão perto do vidro que conseguia sentir o ar a fi car mais frio. A esta dis-tância, podia ver os seus olhos em detalhe. Cada pestana. Até as imagens refl etidas começarem a misturar-se e a sobrepor-se.

Foi então que viu a luz.Deu um passo atrás, assustada, e pestanejou com força. Mas quan-

do abriu os olhos, ainda a via. Não era luz de uma lareira. Não era um refl exo. Olhou fi xamente para o único ponto desfocado de claridade ao fundo da colina, do outro lado do lago, tentando compreender aquilo enquanto o seu coração tremia. Uma luz. Tinham algumas luzes daque-las na sua propriedade, fi xadas nos cantos superiores dos anexos. Essas luzes tinham sensores de movimento que eram às vezes acionados por gatos ou guaxinins. O pai tinha retirado a lâmpada de uma delas na sua propriedade, porque estava constantemente a acender do lado de fora da janela do quarto dela e a acordá-la durante a noite.

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O vizinho estava a mentir. Ainda tinha eletricidade.Precisava de contar a alguém. Mas o pai dissera-lhe para fi car onde

estava. Olhou para a porta da cozinha, mas não havia sinal da mãe. As vozes dos homens ainda se ouviam no hall de entrada. O pai a rir-se demasiado alto.

Conseguia ouvir a porta de tela a bater com o vento. Johnson não a fechara bem. A tela iria romper-se com a tempestade. Sentia-se como um nó a ser apertado por alguém, todo o seu ser a contrair-se, e o ar a ser espremido para fora dos pulmões.

A porta interior bateu com força.O som parecia o de uma estalada com a mão aberta. Os seus pul-

mões expandiram, recebendo ar, levantando-a até fi car em bicos de pés. A peça de Scrabble caiu-lhe da mão para o chão.

E correu. Apressou-se pela sala de jantar escura, com a manta a es-voaçar atrás de si como uma capa, e abriu com força a porta para o hall. O pai olhou para ela, com as sobrancelhas erguidas e de boca aberta. Era tão alto — podia levantá-la até tocar no teto. O Sr. Johnson estava de costas viradas para ela, um homem de tamanho normal. As suas botas molhadas estavam cuidadosamente pousadas mesmo à porta. A sua ga-bardina molhada encontrava-se pendurada no cabide. Estava parado no tapete, a secar-se com a toalha que o pai mantinha junto à porta.

— Vi uma luz — disse ela, ofegante.O pai fi cou pálido.A porta de tela bateu novamente e a porta da frente abriu-se com

estrondo. O pai tropeçou para trás quando os homens forçaram a entrada. Não se deram ao trabalho de tirar botas ou os casacos escuros. Voava água de cima deles, salpicando-a. Gritavam, berrando ordens para o pai, que se acocorou à frente deles. Alguém estava a tentar puxá-la para trás, para longe dele. Gritou que a deixassem e viu o pai a tentar alcançar a pistola. Mas os homens também estavam armados, viram-no e gritaram «Arma!». As armas deles fi caram-lhe ao nível dos olhos, de modo que ela, para onde quer que olhasse, via o cano de uma delas apontado para o pai, encolhido no fundo das escadas, com a Colt a tremer-lhe na mão. O olhar dele era frenético, brilhante devido às lágrimas. Nunca o vira chorar.

O ambiente era ruidoso e calmo ao mesmo tempo, toda a gente quieta, os estalidos e bips dos walkie-talkies, os adultos com a respiração ofegante, a chuva, a porta da frente.

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Um dos homens pôs-se à frente dela. Foi o primeiro a mover-se, o que signifi cava que era ele quem mandava. Eram do FBI. As letras esta-vam impressas a branco nas costas dos seus casacos. Federal Bureau of Investigation. Polícia estadual, polícia local, DHS, DEA, Interpol, ATF1. O pai ensinara-a a identifi cá-los, e quais os que devia temer mais. O FBI, explicara, era o mais assustador de todos. Imaginara-os com olhos de bode e caras zangadas.

Mas este agente do FBI não era assim. Era mais novo e mais baixo do que o pai, com um rosto sardento, barba arruivada e cabelo despente-ado. Os seus óculos de armação de arame estavam gotejados com água. Não parecia mau, mas também não parecia simpático. Estava a falar com o pai num tom rígido, num tipo de voz como nunca antes ouvira alguém usar com ele. As suas palavras cortavam o ar. «FBI.» «Mandado de bus-ca.» «Detenção.» «Violação de condicional.»

— Não fi z nada de errado — cuspiu o pai, e o agente de cabelo ruivo aproximou-se dele, tapando a visão dela, de modo que tudo o que conseguiu ver foram aquelas três letras nas suas costas, FBI, e um dos mocassins do pai.

— Calma, Mel — disse o agente de cabelo ruivo. — Não queres que a miúda se magoe.

Os dedos dos pés dela encolheram-se, agarrando-se à madeira.— Ponha as mãos na nuca — ordenou o agente de cabelo ruivo,

dando um passo para o lado. Ela fi cou surpreendida ao ver o pai levantar os cotovelos e a cruzar os dedos na nuca, como se já o tivesse feito antes. A Colt do pai estava na mão do agente ruivo. Viu o agente a entregá-la a um dos outros homens. Não compreendia. O pai tinha de se levantar, de mostrar àqueles homens o quão forte era.

O agente ruivo aclarou a garganta. — Tenho um mandado para re-vistar a propriedade — anunciou ao pai dela.

O pai não respondeu. O seu corpo encurvado tremeu.— Quantas pessoas estão na casa? — perguntou o agente.Desejou que o pai levantasse o rosto, que lhe desse instruções, mas

1 A sigla DHS é relativa a Department of Homeland Security, ou seja, Departamento de Segurança Nacional. DEA é Drug Enforcement Administration, que pode traduzir-se por Administração de Cumprimento da Lei das Drogas. A Interpol é a polícia internacional. Por fi m, a sigla ATF é relativa ao Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives, ou seja, Agência para o Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos. (N. do T.)

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os olhos dele viravam tão depressa para todo o lado que parecia que não conseguia focar-se em nada.

Um dos outros agentes levantou o pai com brusquidão e alge-mou-lhe as mãos atrás das costas. — É melhor começares a falar, Mel — disse ao pai. — Sabes o que fazem a pessoas como tu na prisão. — Sorriu quando disse aquilo, como se fosse algo merecedor de nota.

— À frente da rapariga, não — disse o agente ruivo.Minúsculos pontos vermelhos e pretos pincelavam o chão, contas

dos mocassins do pai. A pele dela parecia cintilar, como uma luz inter-mitente, uma lâmpada moribunda.

Outro homem encaminhava o pai para a cozinha. — Vamos lá en-contrar um lugar para falarmos — disse, enquanto empurrava o pai.

Tentou falar, chamar o pai, mas o seu corpo não se lembrava de como se formavam as palavras. Estava a ser levado para longe dela, com os mocassins a arrastar pelo chão e as contas a deixar um trilho atrás.

— Encontrem a mulher — alguém disse.Mãe. A palavra fi cou-lhe presa na garganta. Não conseguia dizê-la.

Por dentro, gritava, mas por fora permanecia imóvel, com os pés bem plantados no chão. Observava enquanto os outros três homens armados seguiam as instruções, entrando na casa de arma em punho.

O agente de cabelo ruivo falava para o walkie-talkie. — Estamos no local — anunciou. — Foi tudo muito rápido. Ainda à espera de reforços. — Voltou a olhar para ela com preocupação e limpou a testa com a mão sardenta. — Temos aqui uma miúda — acrescentou.

Ela forçou-se a engolir em seco. O Sr. Johnson encolheu-se ao entrar pela porta, fi tando-a com um ar circunspecto, ainda em meias. Os pais tinham tido o cuidado de não permitir que ela fosse vista pelos vizinhos. Se, por algum motivo, um vizinho aparecesse, ela es-condia-se. Não eram permitidos estranhos na casa. Encostou a parte de trás da cabeça à parede, à procura da voz do pai. Mas o barulho da tempestade e a estática do walkie-talkie encobriam tudo o resto. Quanto mais tentava ouvir, mais difícil era distinguir um barulho de outro. Perguntava-se se a mãe teria conseguido escapar pela porta das traseiras.

A arma do agente de cabelo ruivo estava no coldre por baixo do ombro. Ele dobrou os joelhos e baixou-se até fi car à altura dela. — Sou um agente da polícia — anunciou —, mas podes chamar-me Frank.

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O pai tinha razão. Os adultos mentiam. — É um agente do FBI — corrigiu ela.

— Eu disse-lhe que havia aqui uma criança — disse o Sr. Johnson.Era tudo por causa dela. Ele tinha-a visto. A parte de trás da cabeça

doía-lhe. Tinha saudades dos pais. Tirou a mão de dentro da manta e subiu-a pela perna do armário do corredor que estava ao seu lado.

O agente chamado Frank estendeu a mão como se quisesse pousá-la no ombro dela, mas em vez disso passou-a pelo seu cabelo molhado. — Há mais miúdos aqui? — perguntou.

Não devia responder a perguntas como aquela. Estava a tentar en-ganá-la, a arranjar-lhe sarilhos.

— Agora estás a salvo — referiu Frank.Com os dedos, encontrou o puxador metálico da gaveta. A de cima,

à esquerda.Então deixou a manta cair. Tanto os olhos de Frank como os do Sr.

Johnson seguiram-na enquanto se amontoava no chão. Quando volta-ram a olhar para cima, ela já tinha a arma nas mãos.

— Santo Deus! — ouviu o Sr. Johnson dizer.Firmou bem os pés no chão, afastados, como o pai lhe ensinara e

apontou a arma a Frank. Ele fi cou de certa forma imóvel, mas não parecia assustado.— Agora estás a salvo — repetiu ele.A respiração dela estava pesada. Tornava difícil manter a arma

quieta. Mas a arma dava-lhe coragem. Arrancou as palavras da garganta. — Quero os meus pais — disse.

— Vamos levar-te até eles — disse Frank.Abanou a cabeça de um lado para o outro. Ele não estava a perceber.

— Quero a minha mãe e o meu pai.A arma de Frank ainda estava no coldre. Fez um pequeno gesto com

a cabeça na direção do Sr. Johnson. — Vá lá para fora, senhor — ordenou.O Sr. Johnson não se mexeu. Conseguia sentir o medo dele a encher

a divisão, a consumir todo o oxigénio. — Vá — disse ela. Não era suposto ele estar ali, de qualquer forma. O Sr. Johnson assentiu, pegou nas botas e saiu pela porta da frente sem a gabardina.

As mãos dela eram pequenas, mesmo para a .22, e teve de segurar a arma de uma forma especial, com dois dedos no gatilho.

— Como te chamas, querida? — perguntou Frank.

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— Beth Riley — respondeu. Conseguia ouvir passos acima da ca-beça enquanto os agentes revistavam em passadas pesadas o quarto dos pais no andar de cima.

— Qual é o teu verdadeiro nome? — perguntou ele.A pele dela arrepiou-se. — Beth Riley — repetiu.Um som repentino fê-la saltar, um estrondo como o da porta de tela

ao fechar, mas mais alto. Um lampejo repentino de terror enrijeceu-lhe a espinha. Conhecia aquele som de quando praticava tiro ao alvo com o pai. Era um tiro.

Parecia vir das traseiras da casa.— Mãe — disse ela.Frank levou o walkie-talkie à boca e ela não protestou, não lhe disse

para não se mexer.— Preciso que me reportem sobre aquele tiro — disse para o

walkie-talkie.— A mãe acabou de dar um tiro nos miolos — respondeu uma voz

por entre a estática.A tempestade fez abanar os vidros e toda a casa tremeu.Beth sentiu algo começar a revolver dentro dela e a inundar-lhe as

entranhas com emoção. Mas as emoções eram misturadas, desordena-das. Tentou afastá-las, mas elas gritavam e reviravam-se para sair.

Frank estava a olhar para ela. Queria que ele parasse de olhar para ela.

Pensou que as janelas se fossem partir. O vento soprava tão alto que o conseguia ouvir a assobiar através das paredes. Um trovão ribombou por cima deles. Mas não era como os outros trovões. Era ritmado. Estava cada vez mais alto e mais próximo. A lâmpada do hall tremeu.

— São helicópteros — disse Frank por cima do barulho. — Os ti-pos da sede gostam de fazer entradas em grande. Podes dar-me a arma agora?

Ela sentia-se dividida. Queria dar a arma ao homem chamado Frank. Queria deixar-se levar.

Foi então que a porta da sala de jantar se abriu e o pai apareceu. Todas as suas emoções turvas se evaporaram quando o viu. Tinha vindo salvá-la. Ia fi car tão orgulhoso dela, por se ter lembrado de onde encon-trar a arma. Por ele, mataria Frank. Faria exatamente o que ele quisesse. Sempre tinha feito exatamente o que ele queria. Tudo o que era preciso

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era um aceno e puxaria o gatilho e mataria Frank e o seu pai levá-la-ia para longe disto tudo.

Frank tinha as mãos no ar. Ela olhou para o pai, à espera do seu sinal para matar, mas os olhos dele estavam ensombrados. Depois viu o agente do FBI por cima do ombro do pai. O agente fi cou vermelho de raiva quando viu a arma dela apontada ao amigo. Deu uma forte cotove-lada nas costas do pai, fazendo com que ele caísse ao chão.

O terror serpentava-lhe na barriga. — Papá? — chamou ela. Mas ele não respondeu.

O agente nivelou a arma até à altura dela, apontando-lhe o cano negro. Estava a gritar, a chamar os outros, os homens no andar de cima. O pai estava deitado sobre o estômago, com a bochecha no chão, a cara virada para a direção contrária à dela.

— Baixe a sua arma, agente — rosnou o polícia chamado Frank.Os olhos dela viraram-se para o pai, mas a .22 não se mexeu. Os he-

licópteros faziam tanto barulho agora que não conseguia pensar. Parecia que estavam a aterrar em redor da casa.

Conseguia ouvir os outros homens a descer as escadas. Todos se aproximavam cada vez mais dela.

— É só uma miúda — disse Frank. — Eu trato disto.Tinha de disparar. Tinha de disparar contra todos eles.— Papá? — perguntou, desesperada.Desta vez o pai levantou o queixo. A cara dele estava suada e verme-

lha, e ainda tinha os pulsos algemados por trás das costas. Mas os seus olhos estavam nítidos e perigosos. — Eles mataram a tua mãe, Beth! — berrou ele por cima do barulho. — Autodestruição! Agora!

Foi como se tivessem ligado um interruptor. Todos aqueles treinos que tinham feito. Deixou que o corpo tomasse conta dela. Voou pelo hall, em direção às traseiras da casa, enfi ou-se no armário por baixo das escadas, atravessou o painel secreto na parede, levantou o alçapão do chão e correu pela escada abaixo agarrada só com uma mão, com a arma ainda bem fi rme na outra. Conseguia sentir as vibrações dos homens que a perseguiam, as suas botas a bater no chão, enquanto descia para a escuridão. Saltou do quinto degrau, com os pés descalços a aterrar no tapete, e contornou a secretária onde a única luz da divisão era a da pro-teção de ecrã do computador que mostrava um aquário. Sentou-se com a arma no colo e apalpou à volta da gaveta da secretária à procura da pen.

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Um peixe-leão passou a nadar. Inseriu a pen no computador tal como o pai lhe havia ensinado. Carregou na barra de espaço do teclado. Num pestanejar, todos os peixes desapareceram e uma janela azul surgiu no ecrã. Nunca tinha visto a caixa azul antes, mas sabia o que fazer. Um cursor branco piscava na parte inferior da caixa. Teclou uma palavra: «autodestruição».

Depois encostou-se às costas da cadeira, levou os joelhos até ao pei-to e esperou.

Conseguia ouvir os agentes do FBI a discutir por cima dela e sabia que desceriam as escadas em breve e prendê-la-iam para sempre, mas não se importava. Tinha feito o que era suposto fazer.

O alçapão abriu-se, fi nalmente, e ela virou-se para ver Frank a es-preitar na sua direção. Pôs a mão sobre a arma.

— Posso descer, Beth? — perguntou.Viu outras caras atrás da dele, a aglomerarem-se no retângulo de

luz, a olhar para ela. Pessoas novas. As pessoas dos helicópteros.— Ainda tenho a arma — disse ela.— Só quero falar contigo — disse Frank. Disse algo a uma das pes-

soas novas e depois lançou o corpo sobre a borda do alçapão e começou a descer as escadas.

Virou-se para o ecrã azul do computador. — Está feito — disse ela. — Não podes pará-lo.

Os pés de Frank aterraram com um estrondo. Esperava que os pés dele não estivessem muito enlameados. A mãe não gostava que lhe su-jassem o tapete. Frank pôs-se ao lado dela e espreitou para o ecrã do computador, com as mãos nas ancas. Ela viu as palavras «autodestruição completa» refl etidas nos seus óculos.

— Apagaste os fi cheiros? — perguntou Frank. Ela conseguia perce-ber que ele estava a tentar não parecer zangado.

Encolheu-se na cadeira. O branco da sua camisa de noite parecia azul à luz do computador e as girafas estavam desbotadas. Há anos que não lhe servia. Puxou a bainha sobre os joelhos.

— Fazes ideia do que acabaste de fazer? — resmungou Frank. Mexeu-se tão repentinamente que ela pensou que lhe iria bater, mas es-tava apenas a alcançar o interruptor da luz.

O estúdio de fi lmagens da cave iluminou-se. Quatro cenários: um quarto de princesa, uma sala de aulas, um consultório de médico e uma

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masmorra assustadora. O pai de Beth desmontava cada cenário em pe-ças e empacotava-as de cada vez que se mudavam. Não estava autorizada a mexer nas câmaras. Tinha de ter cuidado para não tropeçar em todos os fi os pretos que serpenteavam pelo chão.

Frank virou-se lentamente para ela. O pai dissera-lhe que as pesso-as, se soubessem, olhariam para ela de forma diferente. Dizia que enfu-receria os adultos. Mas Frank não parecia zangado. Parecia um pouco assustado, como se ela fosse uma bomba que poderia explodir caso não soubesse qual fi o cortar.

— Agente Moony? — gritou um homem por cima deles. — Está tudo bem aí em baixo?

Frank levou algum tempo antes de responder. Provavelmente nun-ca tinha visto um cenário de fi lmagens.

— Frank? — chamou o homem.— Subimos num minuto — disse Frank. Os seus olhos percorreram

os cenários. — Depois vai querer ver isto — acrescentou.O ar da cave cheirava a mofo. As caves cheiravam sempre assim.Frank não dizia mais nada. Limitava-se a esfregar a parte de trás do

pescoço.— A minha mãe está viva? — perguntou ela.Frank tirou os óculos e limpou-os à camisa. — Não sei quem é a tua

mãe — disse ele num tom brando.— Linda — lembrou-lhe ela, enquanto torcia a bainha da camisa

de noite entre os dedos. — Deu um tiro em si própria. — Ela conhecia os calibres das armas. Quanto mais rápida e pesada fosse uma bala, mais estragos fazia. Algumas pessoas sobreviviam a tiros na cabeça. — Vou perceber se estiver a mentir — disse ela.

Frank voltou a prender os óculos nas orelhas e fi tou-a por mais alguns segundos. Os olhos dele estavam bem abertos. As suas sobran-celhas e barba ruivas tinham madeixas louras, como se tivesse passado algum tempo ao sol. Até as suas orelhas tinham sardas. — Está morta, Beth.

Ela puxou a camisa de noite, esticando as girafas. — Oh — disse ela. O seu nariz encheu-se de muco quente e ardiam-lhe os olhos, mas não chorou. — Ela era simpática. Não podia ter fi lhos, sabia?

— Foi isso que te disseram? — perguntou Frank.— Tomaram conta de mim — disse ela.

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Frank ajoelhou-se ao lado da cadeira para a olhar nos olhos. — Preciso de saber: houve outros miúdos?

Os seus óculos eram octogonais e não ovais. Os seus caracóis des-grenhados ainda estavam molhados da tempestade; a barba despontava selvaticamente em todas as direções. Era suposto os homens barbea-rem-se todos os dias. Era um sinal de disciplina. — Quero fi car com ele — disse ela.

Frank parecia consternado. — Tenho a certeza de que a tua família nunca deixou de te procurar — disse ele.

Beth perguntou-se se isso seria verdade.Frank não tinha feito um bom trabalho a limpar os óculos.

Conseguia ver as suas impressões digitais nas lentes. Mas os olhos pare-ciam sufi cientemente simpáticos.

Um cão ladrava lá fora. Não era deles. Não tinham cães. Não lhe era permitido.

— Quantos anos tens, Beth? — perguntou Frank.— Dez. — Hesitou. Doía-lhe o peito. Parecia que alguém o estava a

apertar. — Mas…Frank levantou as sobrancelhas amareladas do sol na sua direção. Ainda conseguia ouvir o ladrar. Ou então era apenas a porta de tela

a bater. Não sabia. Sentia a pele quente.— Eu tinha um cão — disse ela, recordando.Frank permaneceu imóvel. — Como é que se chamava? — perguntou.— Monster. — Sentiu lágrimas mornas a escorregar-lhe pelas bo-

chechas. Estava a tremer. As memórias subiam-lhe pela garganta acima. Tinha trabalhado tanto, durante tanto tempo, para as engolir. Era um alívio. — O meu antigo aniversário era em abril — acrescentou, enquan-to limpava o nariz com a mão. — O Mel mudou-o. O que quer dizer que afi nal tenho onze anos.

Frank cerrou os olhos e inclinou a cabeça. Estava perto, mas não demasiado perto. — Quanto tempo viveste com o Mel?

Pensou durante alguns segundos, tentando juntar todos os deta-lhes. — O Monster costumava fugir. Eu estava no jardim da frente à pro-cura dele e o Mel disse que me podia ajudar a encontrá-lo. Disse que me levava de carro à volta do quarteirão. Eu estava na 1.ª classe.

— Qual é o teu nome? — perguntou Frank, e ela conseguiu perce-ber que a voz dele tremia.

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O nome dela. Ela sabia-o. Conseguia senti-lo debaixo da clavícula. Era como ter uma palavra debaixo da língua, quando se consegue vê-la, à forma, mas não se consegue lembrar exatamente qual é. Concentrou-se. — Kick? — tentou adivinhar.

Frank inclinou ainda mais a cabeça e aproximou-se um pouco. — Como é que disseste que era?

— Kick? — Tentou novamente. Mas não era isso. Algo semelhante…— Kit? — disse Frank. — Queres dizer Kit Lannigan?Foi como se tivesse tocado numa vedação elétrica, aquela sensação

de todas as suas células a gritarem ao mesmo tempo. Subiu pela cadeira. — Não devemos dizer esse nome — murmurou.

Os olhos de Frank percorreram-lhe as feições. — És mesmo tu — disse.

Via caras, imagens, fl ashes de cores. Não conseguia respirar. Tudo se estava a desvendar. — Eu não queria deixar fugir o Monster — disse depressa, com as palavras a sair aos tropeções. — Abri a porta para tirar alguma coisa do alpendre e ele fugiu lá para fora antes que eu conseguis-se apanhá-lo. — Engoliu um soluço choroso e levou a mão à boca. — A culpa é minha — disse ela, por entre os dedos.

— Ei, ei, ei… — disse Frank. Parecia que lhe queria fazer uma festa na mão, mas não o fez. — Calma — disse. — Acabou. Acabou tudo. Ninguém está zangado contigo por causa do cão. Juro-te. Não estás em apuros. — Tirou algo do bolso. — Toma — disse ele, estendendo-lhe a mão com a palma virada para cima. — Acho que deixaste cair isto. — Tinha a peça de Scrabble do pai na palma da mão. Kick começou a alcançá-la com cautela.

— Está tudo bem — disse Frank. — Toma.Tirou-lhe a peça da mão e apertou-a no punho até a mão lhe doer.Frank apoiou-se nos calcanhares. — Kit Lannigan — disse. — Santo

Deus. — Pestanejava, de boca aberta. — Estiveste longe de casa durante muito tempo.

Conseguia ver a cama de dossel de princesa, cor de rosa e aos fo-lhos, atrás de Frank. Estava a tremer. Não conseguia parar. — Acabou? — perguntou ela.

Frank assentiu com a cabeça. — A pior parte, sim, miúda. — E sorriu-lhe, e ela sabia que devia sorrir-lhe de volta, estar feliz, mas não conseguia encontrar nela os sentimentos certos.

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Era como morrer. Era o que Mel tinha dito. A Kit está morta, dis-sera-lhe. Agora és a Beth. Mas a Beth também morrera. E se a Kit estava morta, e a Beth também, então ela era outra pessoa nova, alguém que nem sequer tinha nome.

— E agora, como é que vai ser? — perguntou, entorpecida.— Agora levo-te a casa — disse Frank.

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1

D E Z A N O S M A I S T A R D E

Kick Lannigan apontou a mira da Glock, alinhou o tiro e apertou o gatilho. O alvo de papel tremeu. Kick inalou o cheiro agradável da pólvora e do cimento e premiu o gatilho outra vez. E outra vez.

Esvaziou o cartucho. A arma quase não se movia na sua mão. Aprendera a disparar uma .22, mas andava a disparar uma .45 desde que completara catorze anos e começara a frequentar a carreira de tiro. Até com catorze anos sabia que queria algo que conseguisse abater um alvo maior.

Pousou a arma no balcão, carregou no botão que recolhia o alvo e viu-o a esvoaçar na sua direção. Metade dos alvos que vendiam agora na carreira de tiro eram zombies — toda a gente adorava disparar sobre zombies —, mas Kick preferia a antiga imagem a preto e branco do tipo com maxilar quadrado e gorro preto. O alvo chegou e Kick inspecionou o seu trabalho. Os buracos de bala aglomeravam-se no peito, virilhas e no meio da testa.

Sentiu as bochechas a arder quando corou de satisfação. Durante os últimos sete anos só lhe tinham permitido disparar ar-

mas de aluguer na carreira de tiro. Agora, fi nalmente, disparava a sua própria arma. Algumas pessoas saíam e embebedavam-se quando atin-giam a maioridade; Kick tinha escolhido uma Glock com carregador de

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nove balas e pedira uma licença de porte de arma, das que teriam de andar ocultas.

A Glock .37 atuava exatamente como a ACP .45, mas tinha um pu-nho mais curto. Era uma arma grande feita para mãos pequenas. A cula-tra biselada e o acabamento negro polido, as ranhuras para os dedos e os apoios para o polegar — Kick adorava cada milímetro daquela pistola. Os nós dos dedos dela estavam em carne viva e o verniz azul das unhas lascado, mas na sua mão aquela Glock continuava linda.

Olhou por cima da arma e pôs-se à escuta.A carreira de tiro estava demasiado silenciosa.A pele do braço de Kick arrepiou-se. Pousou a Glock novamente no

balcão e inclinou a cabeça, esforçando-se para ouvir através dos auscul-tadores de redução de ruído.

O som abafado de tiros tinha sido constante em seu redor. Havia apenas três pessoas a utilizar a carreira de tiro naquela manhã e Kick re-parara em todas. O seu sensei de artes marciais chamava a isso ser atento. Kick chamava-lhe ser vigilante. Agora ouvia os tiros abafados à sua volta e tentava descobrir o que mudara.

A mulher no corredor ao lado de Kick tinha parado de disparar. Kick vira a arma da mulher quando passara atrás dela, uma bela Beretta Stampede com um acabamento em níquel e uma câmara giratória de seis balas. A Stampede era uma réplica de uma arma de pistoleiro do Velho Oeste, uma arma grande. Se fosse disparada contra um carro, a bala per-furaria o painel da carroçaria e partiria o bloco de motor. Era uma arma excessiva para aquela mulher. Por isso é que Kick tinha reparado nela.

A mulher disparara as seis balas, voltara a carregar a arma e depois disparara apenas três tiros.

Kick sentiu, de imediato, o seu coração a bater mais depressa. Os músculos entesaram-se. Doeu-lhe a barriga das pernas. Lutar ou fugir. Era como os psiquiatras o explicavam. Durante alguns anos, após ter re-gressado a casa, os sentimentos assoberbavam-na e ela limitava-se a fu-gir, sem rumo, a pé. Uma vez, a mãe encontrara-a a quase dez quilóme-tros de casa no parque de estacionamento de um supermercado Safeway. A mãe e a irmã forçaram-na a entrar no carro, aos berros.

Biofeedback2. Meditação. Psicoterapia. Farmacoterapia. Terapia

2 Trata-se de uma técnica a que se pode recorrer para controlar as funções do corpo. (N. do T.)

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do grito. Tanques de privação sensorial. Ioga. Tai chi. Ervas chinesas. Hipoterapia. Nada resultara.

Fora Frank quem sugerira que, aos onze anos, a deixassem ter aulas de kung fu. O FBI tinha-o transferido para Portland para a auxiliar a tes-temunhar e ele dissera à mãe de Kick que as artes marciais a ajudariam a ganhar confi ança, a aguentar o julgamento. Mas provavelmente sabia que ela apenas precisava de bater em alguma coisa. Depois disso, não houvera maneira de a enfi ar novamente no tanque de privação senso-rial. Começou nas artes marciais, boxe, tiro ao alvo, tiro com arco, e até lançamento de facas. Os pais pensavam que o fazia para se sentir segura e, de certa forma, estavam certos. Queria assegurar-se de que ninguém — nem mesmo a mãe — pudesse forçá-la de novo a entrar num carro. Depois de o seu pai se ter ido embora, inscreveu-se em mais aulas: esca-lada, alpinismo, aulas de voo — qualquer coisa para a manter ocupada e fora de casa.

Kick inspecionou o chão à procura de cartuchos vazios. Agora, quando sentia formigueiro na barriga das pernas, já não pensava em correr; pensava em como atirar o braço direito para a frente de manei-ra a que a parte carnuda da mão, entre o polegar e o dedo indicador, entrasse em contacto com a garganta do seu adversário. Reparou num cartucho no cimento e deu-lhe um toque com a ponta da biqueira de aço da bota. Ficou a olhar enquanto o cartucho de latão matraqueava para fora da cabina de tiro. Então seguiu-o. A mulher do corredor ao lado es-tava encostada à parede, a enviar uma SMS a alguém. Kick tinha o capuz do casaco subido, a cobrir-lhe o cabelo, com os auscultadores por cima; usava óculos de proteção, calças de ganga pretas, botas e um casaco com o fecho apertado até ao pescoço. Podia ter assaltado um banco sem ser identifi cada. Mas a mulher reconheceu Kick. Nem sequer foi subtil; ins-pirou tão depressa que quase deixou cair o telemóvel. Instintivamente, Kick virou-se para esconder a cara, apanhou o cartucho do chão e voltou rapidamente para a sua cabina.

Em tribunal, Kick não se revelara lá muito boa testemunha. A acu-sação tinha-a chamado por quatro vezes durante os três meses que Mel esteve em julgamento. Pretendiam saber do que ela se lembrava em rela-ção a outras pessoas que tinham ido à casa, outras crianças, o que tinha visto ou ouvido, por onde tinham viajado. Mas havia tanto que se tinha desvanecido na escuridão.

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Passara a última década a treinar para reparar em detalhes.Enquanto apertava o punho à volta do cartucho, ainda quente,

na sua mão, Kick invocou uma imagem na sua cabeça. A mulher ti-nha uns cinquenta anos e gostos caros. Estava completamente ma-quilhada às nove da manhã e o cabelo negro à volta dos auscultadores cor de rosa à prova de ruído fora ripado com perfeição, o que deveria ter requerido uns quinze minutos e um espelho. Kick deitou o cartu-cho usado num balde de plástico onde estava o resto dos seus cartu-chos. Mas a mulher estava numa carreira de tiro às nove da manhã de uma terça-feira, por isso não trabalhava das nove às cinco. Não tinha aliança. Algumas pessoas tiram-nas para disparar, mas Kick calculou que a mulher não soubesse disso. Kick deu uma olhadela aos corredores abertos mas não conseguiu ver o alvo da mulher. Uma mulher de meia-idade começa a aprender a atirar para autodefesa, após um incidente violento ou uma mudança na sua vida, como um divórcio. A mulher não estava à procura dela. Tropeçara nela por acaso. Agora estava a mandar uma SMS… a quem? O cabelo e ma-quilhagem podiam signifi car que era uma repórter de televisão. Kick não a reconheceu mas, também, o interesse de Kick nos noticiários era muito específi co.

Kick retirou o carregador vazio da Glock e voltou a carregá-lo com 9 balas .45 GAP.

Aproximava-se o décimo aniversário do seu resgate. Vinham sem-pre procurá-la antes dos aniversários. Onde estava ela agora? Como es-tava a lidar com a situação? A mãe estava já, provavelmente, a negociar outra presença no programa Good Morning America.

Kick pôs a mochila sobre o ombro, guardou a Glock no bolso do casaco, baixou a cabeça e saiu da cabina. Não ia correr.

Mesmo com a cabeça baixa, Kick conseguia ver que a mulher ain-da lá estava. Tinha-se colocado no caminho dela. Disse algo, mas Kick limitou-se a tocar nos auscultadores e começou a contorná-la. A mulher voltou a pôr-se à sua frente, mas Kick era ágil e esgueirou-se por entre ela e a parede. A mulher não desistiu. Kick conseguia senti-la atrás de si, a menos de um metro de distância. Quando Kick abriu a porta de vidro da carreira de tiro para a armaria do átrio de entrada, a mulher segurou-a antes de se fechar.

Kick voltou-se. — O que foi? — perguntou. Podia executar um

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pontapé frontal no queixo daquela mulher, desfazer-lhe a laringe, esti-lhaçar-lhe os dentes e partir-lhe o maxilar.

A mulher exibiu um sorriso resplandecente e disse algo que Kick não conseguiu ouvir.

Kick tirou os auscultadores. A mulher fez o mesmo.O punho de Kick apertou com força a Glock que estava no bolso. — Só queria dizer… — disse a mulher. Mordeu os lábios e os seus

olhos encheram-se de lágrimas. — Ficámos todos tão contentes por ter conseguido voltar para casa.

Kick tirou a mão da arma. A mulher tinha um pendente de ouro com quatro joias diferentes

à volta do pescoço e brincava nervosamente com ele na mão. Quatro joias — as pedras tradicionalmente associadas ao mês de nascimento dos fi lhos. A mulher tinha a idade da mãe dela, o que queria dizer que provavelmente teria fi lhos da idade dela.

A mulher não era uma repórter. Era uma mãe.As paredes da loja estavam tapadas por caixas de exposição em vi-

dro repletas de armas por baixo de alvos de papel: Osama bin Laden, uma mulher de boina e com uma AK-47, zombies, um homem de gorro e com um saco cheio de dinheiro.

— Rezei por si — disse a mulher.Kick viu o ex-polícia que trabalhava por detrás do balcão a olhar

por cima da página da revista Guns & Ammo que estava a ler e a voltar ao seu artigo.

Muitas pessoas tinham dito a Kick que haviam rezado por ela. Era como se quisessem mérito, que isso contasse para alguma coisa. Kick nunca sabia como responder. Pelos vistos Deus não estava a ouvir durante os primeiros cinco anos? — Obrigada — disse Kick, entre dentes.

A mulher colocou as mãos nos ombros de Kick e esta estremeceu. As pessoas queriam sempre tocar nela, em especial as mães.

— Foi salva por uma razão — disse a mulher, e Kick rosnou por dentro. Ela sabia a razão de ter sido salva. O endereço IP de Mel tinha aparecido durante uma investigação sobre comércio online de porno-grafi a infantil. Segundo Frank, toda a operação fora uma série de deci-sões falhadas e drama entre agências. Não sabiam sequer que ela estava ali. A razão de ter sido salva fora pura sorte. — Se quer que lhe diga

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— continuou a mulher —, aquele fi lho da mãe merece o que está para vir. Cá se fazem, cá se pagam, de uma maneira ou de outra.

— Com licença — disse Kick, com gentileza. — Tenho de ir com-prar um taser. — Recuou um passo, para longe do alcance da mulher.

— Pensámos todos que estava morta — disse a mulher. Olhava para Kick com os olhos vidrados numa espécie de reverência, como se tivesse acabado de descobrir o rosto de Jesus numa torrada. Na parede por trás dela, o assaltante de bancos apontava o cano da arma às suas costas. — É como uma ressurreição — disse a mulher, com um brilho nos olhos. Apontou para cima, para os painéis do teto falso da loja de armas. — Há um plano para si — disse ela. A língua dela estava um pouco de fora, uma pequena ponta cor de rosa. Se Kick lhe desse um toque no queixo, a mulher mordia-a logo.

A mulher deu um passo em direção a Kick. — Confi e em si, Kit — disse ela.

Kick estremeceu ao som do seu velho nome. — Kick — corrigiu-a.Não havia qualquer sinal de compreensão na cara da mulher.— Agora chamo-me Kick — disse ela, sentindo o seu interior a en-

durecer. — Não é Kit. Já não. — Não tinha conseguido habituar-se ao seu velho nome quando voltara a casa. Fazia-a sentir-se uma impostora.

— Bem — disse a mulher, voltando a tocar no pendente —, o tempo cura tudo.

— A sua arma é demasiado grande — disse Kick. — Tem demasia-do recuo; é por isso que não consegue atingir o alvo. Comece com algo mais pequeno, como uma .22. E aponte para a cabeça.

A mulher coçou levemente o canto da boca. — Obrigada.Olharam uma para a outra em silêncio durante um instante. Kick

sentiu uma vontade repentina de correr, como há muito não acontecia. — Tenho de ir fazer chichi — disse Kick, virando a cabeça na direção da placa da casa de banho. A mulher deixou-a ir. Kick apressou-se a entrar na casa de banho e trancou a porta. Via-se o contorno da Glock através do bolso do casaco. Tinha linhas vermelhas na cara, na testa e boche-chas, onde os óculos de proteção lhe deixaram uma impressão. Puxou o capuz para trás e examinou o próprio refl exo. As pessoas conheciam-na dos pósteres de Crianças Desaparecidas. A sua fotografi a de escola do 1.º ano, com franja e tranças, um sorriso forçado. Tinha sido famosa duran-te a sua ausência — em painéis publicitários, nos noticiários nacionais,

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como tema de talk-shows e histórias de jornais. Tinha saído em capas de revista. A primeira fotografi a dela, após ter sido salva, correu o mundo inteiro. Mas não era a rapariga de quem as pessoas se lembravam — onze anos de idade, de olhos zangados, um emaranhado de longos cabelos negros pelas costas abaixo. A mãe de Kick cortou-lhe a franja e fez-lhe tranças no cabelo e a família divulgou outra fotografi a: Kick reunida com a irmã, abraçadas uma à outra. Essa fora capa da revista People. Todos os anos depois disso, até Kick sair de casa, a mãe vendia fotografi as por altura do aniversário. Deviam-no ao público, dizia a mãe, deixá-los ver Kick a crescer.

Kick abriu a água fria no lavatório, arregaçou as mangas e começou a lavar as mãos. As munições deixavam resíduos de chumbo em todo o lado. Pôs as mãos em concha por baixo da torneira e baixou a cabeça em direção à água. Depois de se ter secado, voltou a inspecionar-se no espelho.

Desfez o rabo de cavalo e soltou o cabelo. Chegava-lhe aos cotove-los. Não cortara o cabelo. Nunca mais.

O telemóvel vibrou no bolso das calças e ela desenterrou-o com os dedos gelados.

Releu a mensagem três vezes. Fez-lhe doer o estômago.A polícia do Estado de Washington tinha acabado de emitir um

Alerta Amber à procura de uma menina de cinco anos raptada por um estranho e vista pela última vez numa carrinha SUV branca com ma-trícula do Estado de Washington, que se dirigia pela I-5 a caminho de Oregon.

Kick hesitou. Sabia o que ia acontecer.Mas não conseguia evitá-lo.Abriu no telemóvel a aplicação de deteção de comunicações da po-

lícia, levantou a mochila do chão da casa de banho e dirigiu-se para a porta, com a Glock carregada ainda no bolso do casaco. De cada vez que viajavam, Mel punha-a debaixo de uma manta no chão do banco traseiro e substituía a matrícula do carro por uma falsa de um stand. As matrículas de concessionário eram mais difíceis de ler, e mostravam muito pouca informação, por isso os polícias em patrulha raramente se preocupavam em passá-las pelo sistema.

Não é que ela pensasse que ia encontrar o carro. Era algo que ne-nhum dos psiquiatras dela tinha conseguido compreender. Kick sabia

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exatamente que era em vão. Sabia que iria percorrer a interestadual de cima a baixo até fi car exausta, e passar metade da noite a atualizar o seu browser, a passar cada detalhe a pente fi no, à procura de alguma coisa familiar. Sabia que, provavelmente, a criança já estaria morta e, quando a polícia encontrasse o corpo, ia parecer que uma parte dela tinha morrido também.

Era assim que se iria passar.Como se passava sempre.Não é suposto a penitência ser divertida.