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Prefácio ....................................................................................... 23 Apresentação ELIANE DEBUS: UMA ANÁLISE NEGRA DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL............................. 17 Introdução .................................................................................. 23 Capítulo I LITERATURA, LITERATURA INFANTIL E JUVENIL E A TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA.............. 27 Literatura para infância: de dizeres tantos ..................................... 35 Da possibilidade à obrigatoriedade: a Lei 10.639/2003 e as demandas para o mercado editorial ....................................... 50 Referências ................................................................................... 55 Sumário

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Prefácio .......................................................................................23

Apresentação

ELIANE DEBUS: UMA ANÁLISE NEGRA DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL .............................17

Introdução ..................................................................................23

Capítulo I

LITERATURA, LITERATURA INFANTIL E JUVENIL E A TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA ..............27

Literatura para infância: de dizeres tantos .....................................35

Da possibilidade à obrigatoriedade: a Lei 10.639/2003

e as demandas para o mercado editorial .......................................50

Referências ...................................................................................55

Sumário

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Capítulo II

DE LÁ E DE CÁ, MUITAS HISTÓRIAS PARA (RE)CONTAR: AS NARRATIVAS DE JOEL RUFINO DOS SANTOS ..........................................65

Djin, Djin, que me guarda, que me aguarda .................................68Existe só na imaginação! E então? Não é existir? ..................................72

Algumas Considerações: refl exões para um repertório plural ...........................................................................77

Outros livros para crianças e jovens ..............................................78

Referências ...................................................................................79

Capítulo III

OS (RE)CONTOS AFRICANOS DE ROGÉRIO ANDRADE BARBOSA, PALHETA MULTICOR .............................................................81

Algumas Considerações: refl exões para um repertório plural ...........................................................................88

Outros livros para crianças e jov ens ..............................................88

Referências ...................................................................................90

Capítulo IV

A LITERATURA DE JÚLIO EMÍLIO BRAZ ...........................93

Os (re)contos africanos nos livros Lendas Negras e Sikulume e outros contos africanos...................................................95

Narrativas contemporâneas: a criança negra como personagem .....98

Algumas Considerações: refl exões para um repertório plural .........................................................................102

Outros livros para crianças e jovens ............................................103

Referências ................................................................................104

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Capítulo V AS VOZES DAS MARGENS NA LITERATURA DE RECEPÇÃO INFANTIL E JUVENIL: REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DE GEORGINA MARTINS...........107

Georgina Martins e suas narrativas quase tristes ............................111

Algumas Considerações: refl exões para um repertório plural .........................................................................124

Outros livros para crianças e jovens ............................................127

Referências .................................................................................127

Capítulo VIROGÉRIO E GEORGINA: NARRATIVAS QUE SE CRUZAM .........................................129

A Caixa e a memória como herança ............................................132

O livro escolar e a memória ativada ............................................138

Algumas Considerações: refl exões para um repertório plural .........................................................................143

Referências .................................................................................145

ConclusãoUMA MALA SEM TRINCO, CHEIA DE PERTENCES: PERGUNTAS-RESPOSTAS PARA OUTROS CAMINHARES? .......................................................................147

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Eliane Debus

A temática da cultura africana e afro-brasileira para crianças e jovens abre-se com um belo poema de Conceição Evaristo. Do texto integral, na epígrafe do livro, transcrevo os últimos versos: “ (...) e me ensinou, / insisto, foi ela / a fazer da palavra/ artifício/ arte e ofício/ do meu canto/ de minha fala”. Aberto o livro, o leitor encontra, primeiro, sólida refl exão sobre a presença da temática africana e afro-brasileira na literatura infanto-juvenil contemporânea. A esse início, seguem-se ca-pítulos que discutem a produção de autores fundamentais: Joel Rufi no dos Santos, Rogério Andrade Barbosa, Júlio Emílio Braz e Georgina Martins. Ao lado de livros com diferente recorte temático, estes autores distinguem-se por sistemática e competente tematização de questões voltadas para questões de preconceito, intolerância e etnia. 

Prefácio

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

A partir de lei de 2003 (10.639/2003 ), a história da África e da cultura afro-brasileira foram incluídas no currículo da educação básica, o que multiplicou livros voltados para questões étnico raciais . Acre-dita-se que leitura e discussão de livros que tragam histórias, poemas, crônicas, peças de teatro favoreça - e favorece mesmo - o desenvolvi-mento, no Brasil, de uma sociedade que, desmontando preconceitos e desconstruindo intolerâncias, assuma sua identidade multi-étnica, orgulhando-se dela.

Nos livros de Joel Rufi no dos Santos, a contos de origem africana somam-se histórias que resgatam movimentos negros de nosso passado. Na estrutura e nos enredos dos recontos africanos de Rogério Andrade Barbosa renasce a tradição dos contadores de história (os griots). Na obra de Júlio Braz, ao lado de histórias fantásticas, outras tematizam a identidade negra no Brasil de hoje. E na obra de Georgina Martins, o leitor vivência – no envolvimento que a literatura provoca- desigualda-des sociais vividas pelas personagens. 

Ao discutir a produção dos quatro autores sobre os quais se de-bruça, Eliane encontra na obra deles alguns pontos de contato. Um deles é a ancestralidade e outro a oralidade. Foi este último traço, talvez antecipado na epígrafe do livro, que me levou a transcrever versos de Conceição Evaristo no começo destas maltraçadas... Os versos são deli-cioso portal para este oportuno livro de Eliane Debus .

Marisa Lajolo

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Este livro apresenta uma perspectiva de análise sobre a diver-sidade étnico-racial na literatura infantil e juvenil. A hipótese de Eliane Debus sobre o papel da literatura em “problematizar refl exões sobre práticas antirracistas para o universo da infância” vem discutida em múltiplas implicações, na síntese da trajetória e achados de pesquisa da autora, e tem seu potencial revelado em sua análise das contribuições de quatro autores/a de literatura infantil e juvenil: Joel Rufi no dos San-tos; Rogério Andrade Barbosa; Júlio Emílio Braz e Georgina Martins.

A seleção de escritores/as tem um ponto compartilhado com a própria Eliane; estes/as autores/as que tem a “pele cor de chocolate” (como se auto defi niu Chimamanda Adichie) revelam em seus escritos o interesse em falar dos seus, de suas histórias ancestrais, de seus confl itos, de contradições que observam. A discussão que anuncia novidadeira e

Apresentação

Eliane Debus: uma análise negra da literatura

infantil e juvenil

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

inicia no capítulo inicial é se, de forma similar aos autores que pro-põem uma literatura afro-brasileira, seria possível esta classifi cação, li-teratura negra ou afro-brasileira, para as publicações que são crescentes de literatura de recepção infantil e juvenil com temática africana ou afro-brasileira. À moda de Georgina Martins, Eliane não oferece uma resposta direta e muito menos cabal. Caberá a você, leitor, chegar à sua interpretação. Mas Debus apresenta muitos dados e uma rica dis-cussão, ao longo do livro, que subsidia em muito a afi rmação de uma literatura afrodescendente infantil e juvenil.

A poesia-epígrafe deste livro o apresenta de forma muito mais elaborada que estas linhas serão capazes de realizar. O possível para esta apresentação é propor uma interpretação das palavras do poema, que trazem a sabedoria polissêmica das mães, relacionando-a com as análi-ses desenvolvidas por Debus.

Mãe tem um sentido metafórico de raiz, de ancestralidade, de matriz. Então, este livro analisa a escrita de obras dirigidas à infância que tem tal aspecto comum, buscam e revelam matrizes.

No comentário da Eliane Debus acerca da obra Literatura e afro-descendência no Brasil: antologia crítica assinala-se uma passagem que pode ser reveladora de tal aspecto: “[...] com diferentes pontos de vista, ora até destoantes, mas empenhados em construir o projeto de uma literatura negra ou afro-brasileira.” Portanto, escritos de Joel Rufi no dos Santos, Rogério Andrade Barbosa, Júlio Emilio Braz e Georgina Martins teriam o sentido de, consciente ou insconcientemente, ope-racionalizar um projeto de literatura negra ou afro-brasileira em livros voltados, em última instância, para infantes.

Um ponto a chamar a atenção numa estética negra em tais narra-tivas voltadas para a criança é a busca da origem. Joel Rufi no dos Santos elege como temas passagens pouco exploradas sobre as formas de afi rma-ção de personagens caros para a história afro-brasileira (Luiza Mahin e

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Eliane Debus

Luiz Gama; Zumbi; Domingos Jorge Velho o “devorador de índios”). Rogério Andrade Barbosa faz a transposição das próprias histórias afri-canas para o público brasileiro. Júlio Emilio Braz também o realiza (Luiz Gama; Griot) e, nos livros aqui analisados debate os confl itos que afl igem a personagens negras mirins, ou seja, trás para a fi cção o ponto de vis-ta do eu enunciador negro/a e suas agruras, deparando-se com a dupla consciência de ser negro/a na sociedade brasileira (emparedados?). Geor-gina Martins trabalha a poética nos confl itos arraigados na condição de ser criança nesta fl oresta cheia de perigos que é a sociedade brasileira e essas crianças tem cor; a ancestralidade se manifesta em Meu tataravó africano, cujos elementos de intertextualidade com A caixa de segredos de Rogério Andrade Barbosa são percrustrados por Debus.

Temos uma temática recorrente nas obras tão distintas dos au-tores/as apresentados/as analisados/as, as manifestações nas narrativas da “mãe África”, das yabás, ancestralidade de feminina sapiência, do pranto e do consolo, da brandura e da violência, da alegria inteira e do andar descalço, das fl ores amassadas embaixo das pedras.

Uma marca correlata à ancestralidade é a importância da pa-lavra dita, da oralidade. Em todos os casos a transposição das histórias ouvidas, coletadas, criadas, (re)inventadas tem um vínculo forte com a tradição dos/as contadores/as de histórias. A escrita que se autoafi r-ma nas africanidades vem diretamente relacionada à expressão dos/as Griots, dos sábios que detém o conhecimento e o transmitem pela oratória. No caso de Joel Rufi no dos Santos a referência de contado-ra de histórias é sua mãe. A obra de Rogério Andrade Barbosa o con-fi guram, conforme argumenta Debus na obra que segue, como re-presentante da griotagem na literatura infanto-juvenil brasileira. E nas coletâneas de contos africanos copilados/reescritos por Júlio Emílio Braz as narrativas, conforme a análise de Debus, são marcas perpetuadas por gerações de narradores. Georgina Martins se apresenta como “fi lha

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

de uma contadora de histórias com um fazedor de brinquedos”1. Na tra-dição dos dizeres dos Griots os/as autores/as buscaram inspiração para sua poesia, para assuntar a vida, por brandura na fala, por propor dizeres fecundados na boca do mundo.

As palavras ganham gosto especial nas narrativas dos/as autores/as. Em Georgina Martins galgam caminhos poucos explorados, percorrem es-paços das mazelas sociais e convidam à refl exão, abrindo as interpretações aos leitores, nos informa Debus. Em Júlio Emílio Braz representam o ausente, as narrativas estão impregnadas da oralidade e também tratam sobre temas árduos como a morte. Num caso explorado por Debus o poder da palavra é sublinhado como podendo levar a este fi m trágico. Em Joel Rufi no dos Santos temos a oralidade que impregna as temáticas dos povos excluídos e de vozes silenciadas em discursos ofi ciais, revela a autora deste livro. Em Rogério Andrade Barbosa também “o fi o imemorial da oralidade” enreda as narrativas. O cuidado da poesia é revelado nas diferentes narrativas que põe reparo nas coisas, as palavras trabalhadas são dispostas de forma elaborada, com escolha lexical e gramatical que revelam ao mesmo tempo um falar que aproxima o leitor, que dirige e mantêm a atenção, ao mesmo tempo em que vigora a fruição, as frases organizadas de forma a remeter às contações orais.

A apresentação zelosa e a análise elaborada de Debus são um convite à leitura. Convite que se desdobra nas diversas perseguições de nossas escrevivências que apresenta, ao desnudar obras que buscam fazer da palavra artifício, arte e ofício, dos cantos e falas de múltiplos livros apresentados ao leitor.

Boa degustação!

Paulo Vinicius Baptista da SilvaNEAB-UFPRCuritiba, maio de 2017

1 Em apresentação em sua página pessoal na Internet <www.georginamartins.com.br>. Acesso em: 3 maio 2017.

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Eliane Debus

Contar sobre a escolha por este e não por aquele objeto de pesquisa me parece um bom início para começar esta escrita.

Pesquisadora na área de literatura e ensino, em particular da literatura infantil e juvenil há 20 anos, iniciei, em 2005, pesqui-sas com foco na temática da cultura africana e afro-brasileira a par-tir da necessidade emergente promovida pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, em julho de 2004.

Assistematicamente trazia na minha “mala sem trinco” – metáfo-ra utilizada por Edmilson Pereira em seu livro Primeiro menino (2003) que tanto me agrada – um acervo de livros que apresentava personagens negras ou tematizava a cultura africana, como os (re)contos de Rogério

Introdução

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

Andrade Barbosa. No entanto, a refl exão mais detida se deu a partir de uma conversa com a colega, a professora Vânia Beatriz Monteiro da Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e posterior-mente de um trabalho em conjunto com essa professora e um grupo de estudantes do Curso de Pedagogia da universidade. Na ocasião, Vânia me questionava sobre a necessidade de sistematização e um olhar acurado sobre os títulos infantis que versavam sobre as relações étnico-raciais.

Desse modo, a partir de 2005 me dediquei a estudar os títulos disponíveis no mercado editorial brasileiro que apresentam, em suas páginas, a temática da cultura africana e afro-brasileira, com objetivo de mapear e dar visibilidade a essa produção, por acreditar que a li-teratura pode problematizar refl exões sobre práticas antirracistas para o universo da infância, seja no espaço escolar, seja em outros espaços socioeducativos.

Este livro, construído de desejos, reúne de forma (re)organizada a produção escrita desenvolvida sobre a temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura infantil e juvenil nos últimos doze anos. Publicizados em anais de eventos, artigos em periódicos científi cos e li-vros de pouca circulação, os textos (re)aparecem com outra vestimenta, retirando trechos que se replicavam. De qualquer modo o leitor ainda pode encontrar ecos aqui e ali do já dito.

Lidos, (re)lidos e revistos, aparadas arestas, optei por me centrar naquelas publicações que traziam à cena a produção de quatro escri-tores brasileiros: Joel Rufi no dos Santos, Rogério Andrade Barbosa, Júlio Emílio Braz e Georgina Martins. Os quatro escritores temati-zaram a cultura africana e/ou afro-brasileira em suas narrativas mes-mo antes das exigências da Lei 10.639/2003, tornando-se referência, a meu ver, quando da discussão sobre esse tema.

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

Literatura, literatura infantil e juvenil e a temática

africana e afro-brasileira2

A tradição literária, como destaca Umberto Eco (2003), se re-fere ao conjunto de textos, construídos pela humanidade, que não têm uma função prática e que são lidos para o entretenimento, sem outros fi ns que não o de deleite, consumidos gratia sui, pelo prazer da leitura. No entanto, para não se fazer compreendido erroneamente e para que o texto literário não seja entendido como um mero passatempo, o es-tudioso italiano aponta as funções que a literatura desempenha tanto na vida individual como social do sujeito.

Uma das funções elencadas por Eco (2003) é o papel que a Lite-ratura tem de manter, em exercício, a língua como patrimônio cultural,

2 Parte signifi cativa deste texto foi publicada em DEBUS, Eliane. Literatura, patrimônio cul-tural e relações étnico-raciais. In: NOGUEIRA, João Carlos; TOMÁZIA, Tânia. (Org.). Patri-mônio cultural. 1. ed. Florianópolis: Atindelê, 2012.

capítulo i

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trazendo como exemplo a unifi cação da língua italiana pela obra de Dante, de modo que, ao contribuir para formar a língua, a Literatura “[...] cria identidade e comunidade.” (ECO, 2003, p. 11). Por seu cará-ter polissêmico e singular “As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de lei-tura e nos colocam diante das ambiguidades, da linguagem e da vida.” (ECO, 2003, p. 12).

O texto literário, na sua feitura por meio da linguagem, carrega consigo uma força humanizadora, considerando que, como observa Candido, “[...] satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobre-tudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo.” (CANDIDO, 1995, p. 240).

Explicitando o seu entendimento de humanização, Antonio Candido (1995, p. 249) afi rma:

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confi rma no homem aqueles traços que reputamos es-senciais, como o exercício da refl exão, a aquisição do saber, a boa dis-posição para com o próximo, o afi namento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.

A palavra fi ccional arrebata o leitor para um tempo e espaço que não são os seus. Desse modo, ele experiencia um viver distante do seu, ao mesmo tempo tão próximo, e, ao voltar desse encontro fi ccional, já não é o mesmo; ele é capaz de reconfi gurar o seu viver.

Se ler o outro e sobre o outro tem importância fundamental na formação leitora do indivíduo, o contato com textos literários, que apresentam personagens em diferentes contextos, ou a existência de escritores oriundos de diferentes contextos permite uma visão am-

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pliada de mundo. Desse modo, a literatura negra ou afro-brasileira e/ou a temática da cultura africana e afro-brasileira se faz imprescin-dível, sabendo, de antemão, que não é uma tarefa fácil, pois, como destaca Duarte (2011, p. 73), historicamente o fazer artístico dos afro-brasileiros tem sua presença registrada desde o período colonial, mas nem sempre reconhecido:

No caso da literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedi-mentos vários à sua divulgação, a começar pela própria materialização em livro. Quando não fi cou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em outros casos, existe o apagamento delibe-rado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a etnicidade afri-cana ou com os modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população.

Não é consenso a denominação do conjunto da produção de escritores negros como literatura negra ou literatura afro-brasileira, ou, como afi rma Pereira (2012), “[...] a origem étnica e o conteú-do não são sufi cientes para estabelecer a especifi cidade da Literatura Afro-brasileira”. No entanto, a temática da cultura africana e afro--brasileira, bem como a escrita de escritores afro-brasileiros fi cou si-lenciada. Contemporaneamente, é possível encontrar vários trabalhos que evidenciam esse fato; alguns de caráter cartográfi co ao apresentar um mapa quantitativo e outros trabalhos pontuais sobre determina-do autor ou título.

Zilá Bernd no Introdução à literatura negra (1988, p. 22), apre-senta um eu enunciador que se quer negro, ampliando a defi nição de literatura negra, que segundo ela requer:

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[...] a presença de uma articulação entre textos, determinada por certo modo negro de ver e de sentir o mundo, e a utilização de uma lingua-gem marcada, tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em resgatar uma memória negra esquecida, legitimam uma escritura negra, vocacionada a proceder à desconstrução do mun-do, nomeada pelo branco, e a erigir sua própria cosmogonia.

A partir de denominadores comuns em textos de língua francesa das Antilhas, a autora busca os mesmos elementos na literatura negra brasileira, apresentando a produção de Luís Gama, Castro Alves, Jorge de Lima e Lino Guedes.

Domício Proença Filho, ao escrever sobre A trajetória do negro na literatura brasileira focaliza a literatura sobre o negro e a literatura do negro, marcada por dois posicionamentos: “[...] a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada.” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 161).

No artigo “Panorama da Literatura afro-brasileira” (2012), di-vulgado no Portal da Literatura Afro-brasileira (Literafro), Edimilson de Almeida Pereira apresenta um levantamento sobre os autores afro-brasileiros dos séculos XVIII, XIX e primeira metade do sécu-lo XX. Nessa apresentação, são evidenciadas a biografi a e a produ-ção de muitos escritores desconhecidos do grande público, outros esquecidos da identidade étnico-racial: Domingos Caldas Barbosa (1738−1800), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749−1814), An-tonio Gonçalves Dias (1823−1864), Laurindo José da Silva Rabelo (1826−1864), Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830−1882), Joaquim Maria Machado de Assis (1839−1908), Tobias Barreto de Menezes (1839−1889), Antônio Gonçalves Crespo (1846−1883), José do Pa-trocínio (1853−1905), João da Cruz e Sousa (1861−1898), Afonso Henrique de Lima Barreto (1891−1922), Lino Guedes (1906−1951),

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Solano Trindade (1908−1974), Maria Firmina dos Reis, Auta de Sou-za (1876−1901) e Carolina Maria de Jesus (1914−1977).

Investido numa tarefa hercúlea, depois de dez anos de pes-quisas, o professor Eduardo Assis Duarte, juntamente com Maria Nazareth Soares Fonseca, organizou e trouxe a público a Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica3 (2011), obra composta de quatro volumes (totalizando 2008 páginas), que apresenta 100 escritores afro-brasileiros – do século XVIII aos contemporâneos – a partir de ensaios críticos, desenvolvidos por 61 pesquisadores, vin-culados a instituições brasileiras e estrangeiras. Por certo, o maior mapeamento produzido até agora em terra Brasilis e que apresen-ta um panorama da produção de escritores afro-brasileiros, muitos deles desconhecidos dos currículos escolares de ensino médio e até mesmo universitário. Essa produção, sem sombra de dúvidas, será referência para os pesquisadores da área, bem como para a introdu-ção no currículo das escolas brasileiras de tema tão necessário para a formação dos educadores. Além do amplo painel da produção literária, o Volume 4 reúne depoimentos de escritores e ensaios de estudiosos, com diferentes pontos de vista, por vezes até destoan-tes, mas empenhados em construir o projeto de literatura negra ou afro-brasileira.

Esse pequeno recorte, aqui proposto pelos trabalhos citados de-monstram o empenho de pesquisadores em produzir um referencial que amplie a discussão sobre a literatura produzida por escritores afro-brasileiros.

No que diz respeito à produção literária para infância e para juventude essa discussão ainda é novidadeira, mas posso dizer que

3 O livro, publicado no segundo semestre de 2011, foi selecionado pelo júri de O Globo para fi gurar entre os dez livros mais importantes de 2011. Para saber mais, consulte: O Globo (2011).

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os títulos que circulam atualmente no mercado editorial brasileiro estão divididos em três grandes categorias: 1) literatura que temati-za a cultura africana e afro-brasileira; 2) literatura afro-brasileira; e 3) literaturas africanas.

A primeira categoria está circunscrita a uma literatura que traz como temática a cultura africana e afro-brasileira, sem focalizar aquele que escreve (a autoria), mas sim o que tematiza. A segunda é aquela escrita por escritores afro-brasileiros – mesmo com as difi -culdades de delimitação, pois se trata “um conceito em construção” (DUARTE, 2008). A terceira é aquela de autoria africana e traz refl e-xões que podem resultar em várias subcategorias a seguir enunciadas rapidamente:

• Literaturas africanas de diferentes línguas (língua portuguesa, língua inglesa, língua francesa, entre outras) a partir da multipli-cidade linguística do continente.

• Literaturas africanas de língua portuguesa – o recorte de pes-quisa e análise pode ser demarcado pelo país (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), sem adentrar na especifi cidade da negritude dessa literatura. Essa categoria sugere outras subcategorias, como literatura vinculada à origem oral (lenda, fábulas, entre outras) e literatura contem-poraneíssima (narrativas curtas em diálogo com a ilustração).

A primeira categoria é aquela que se sobressai, embora o número da produção nas demais tenha crescido nos últimos anos. Desse modo, deixo demarcado que optei por denominar a produção aqui em análise como pertencente à primeira categoria, embora um conjunto de seus escritores seja negro.

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A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens

Literatura para infância: de dizeres tantos

O texto literário para infância tem uma especifi cidade: o leitor (criança), no entanto, não é o primeiro leitor do texto. Isto é, na maioria das vezes, antes da criança, um adulto – livreiro, pai, professor, tio, avô – faz a seleção, a compra e a leitura do livro. Zohar Shavit (2003) refl ete sobre a ambivalência desse texto literário, o qual pressupõe dois leitores-modelo. O primeiro (criança) é um leitor com reduzida experiência de vida e de repertório literário; o segundo leitor (adulto) é experiente com baga-gem sobre os processos de funcionamento do texto.

Sendo o produtor do texto, na maioria das vezes, um adulto, aca-ba por desenvolver, nas entrelinhas do seu fazer literário, a reprodução do mundo adulto,

[...] seja pela atuação de um narrador que bloqueia ou censura a ação de suas personagens infantis; seja pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estejam em consonância com os valores sociais prediletos; seja pela utilização de uma norma linguística ainda não atin-gida por seu leitor, devido à falta de experiência mais complexa na ma-nipulação com a linguagem. Assim, os fatores estruturais de um texto de fi cção – narrador, visão de mundo, linguagem – podem-se converter no meio por intermédio do qual o adulto intervém na realidade imaginária, usando-a para incutir sua ideologia. (ZILBERMAN, 2003, p. 23).

A literatura infantil e juvenil como produção cultural que tem seu foco na linguagem obedece a critérios esteticamente literários. En-tendida dessa forma compreende-se que essa produção não é a prima pobre de uma literatura rica, por isso não tem sustentação desqualifi car uma em detrimento da outra. Como afi rma Antonio Candido (1988,

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p. 331 ), “o subsolo da arte é um só” ou, ainda, nas palavras de Cecília Meireles (1984, p. 123 ), “tudo é uma arte só”.

O que ocorre é que o atrelamento histórico a um público leitor específi co – a criança – fez com que essa literatura fosse se transforman-do, ao longo do tempo, na mesma proporção em que se altera a imagem social de infância. Também é necessário destacar que as transforma-ções paulatinas no tratamento dado à palavra e aos temas fi zeram com que os títulos para crianças e jovens conquistassem espaço editorial. Assim sendo, as refl exões sobre essa produção, contemporaneamente, têm ganhado fôlego e são muitos os vieses de pesquisas que tentam abarcar a sua confecção, circulação e consumo.

No entanto, seria imaturo dizer que o livro literário para infância não possui características específi cas. Essas características se sobressaem de imediato no aspecto da materialidade do livro: tamanho e formato; paratextos que constituem a capa, as guardas e a contracapa; tipo e tamanho da letra; tipo, qualidade e textura do papel; diálogo entre a mancha textual e a ilustração, entre outros.

Dessas características elencadas, contemporaneamente, a ilustra-ção tem papel intrínseco nas publicações e é lida também como nar-rativa, fato que ganha proporções maiores quando se traz para a cena os livros de imagens. A relação entre o signo icônico e o verbal nesse tipo de produção é tão estreita que tem acompanhado os critérios de escolhas dos livros, como pode ser destacado em trabalhos recentes so-bre a avaliação dos títulos que compõem os acervos literários das escolas públicas para as séries iniciais do ensino fundamental, como o trabalho desenvolvido pelos avaliadores dos livros selecionados para comporem o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE/2005) (ANDRADE; CORSINO, 2007).

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Ciça Fittipaldi (2008) argumenta que a ilustração é lingua-gem e como linguagem criativa propicia ao leitor fruição estética e experimentação. Assim, as ilustrações de um livro infantil não de-vem ser mera reprodução do texto verbal, o diálogo tecido entre o texto verbal e texto visual devem ultrapassar essa esfera. A boa ilus-tração talvez seja aquela que “[...] busque atravessar o verbal em sua referencialidade e estabelecer a partir dele uma leitura própria, propositiva, e criativa.” (ANDRADE; CORSINO, 2007, p. 87). No entanto, a mesma ilustração que abre horizontes pode encarcerá--los, na medida em que “[...] constroem enredos e cristalizam as per-cepções sobre o imaginado.” (LIMA, 2005, p. 101).

O texto literário partilha com os leitores, independente da idade, valores de natureza social, cultural, histórica e/ou ideológica por ser uma realização da cultura e estar integrado num processo comunicati-vo. Porém pelo potencial fi ccional “[...] esses valores são dados a ler de forma não explícita, através do jogo de negociação de sentidos estabe-lecido no diálogo leitor-texto.” (AZEVEDO, 2006, p. 19).

Como já destacado, a relação entre o produtor do texto de re-cepção infantil (o adulto) e o leitor (adulto/criança) promoveu, em seu nascedouro, uma construção textual e um protocolo de leitura no qual a criança, compreendida como receptor passivo, por meio de persona-gens modelares, absorve exemplos de bom comportamento e valores a serem seguidos. Por outro lado, aquele que alicerça os modelos – os protagonistas das narrativas – apresenta características vinculadas aos grupos mantenedores do poder, por certo não contemplando a diver-sidade étnica, silenciando a representação de personagens negras, indí-genas, asiáticas, entre outras.

No que diz respeito à presença de personagens negras ou de ele-mentos da cultura africana e afro-brasileira em narrativas de recepção

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infantil e juvenil, produzidas no Brasil, quase que inexiste anterior-mente à década de 1970, e, quando isso ocorre, o negro é represen-tado com docilidade servil, submisso ao cumprimento de seu papel de subalternidade (Tia Nastácia, de Monteiro Lobato), ou é aquele que provoca o apiedamento (Menino André, da lenda do menino do pastoreio) ou, ainda, aquele que não é o que é, travestindo-se de ou-tra pele: o negro de alma branca (como Joaquim, de Joaquim, Zulu-quim, Zulu – 1983), repercutindo ideias vinculadas, seja pelo regime de subalternidade promovido pela escravização dos povos africanos, seja pela política de branqueamento.

Estudos que remetem exclusivamente a pesquisas sobre escrito-res negros e/ou afro-brasileiros na literatura infantil e juvenil brasileira ainda estão por serem realizados. No que diz respeito à temática da cultura africana e afro-brasileira, a partir da presença de personagens negras ou de elementos da cultura africana e afro-brasileira nesse tipo de narrativa, as pesquisas têm se efetivado a partir já da década de 1980 e se acentuado neste início de século.

Antes da década de 1980, os estudos sobre a literatura infantil e juvenil ainda eram embrionários, e a produção literária abordando a temática também. Dois estudos realizados no século XXI – Gou-vêa (2000) e França (2006) –, mas que usaram como referência textos literários produzidos no início do século XX, demarcam esse espaço restrito das personagens negras.

Maria Cristina Gouvêa (2000) analisa as representações sociais sobre o negro nas três primeiras décadas do século passado, desta-cando o que ela denomina de uma suposta integração racial nessa produção, marcada por uma visão etnocêntrica, na qual as persona-gens são identifi cadas pelo desejo de embranquecimento. O mesmo foi constatado por Luis Fernando França (2006), que verifi cou, por

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