Miranda,AnaLuisa

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 O USO DO TERRITÓRIO PELOS HOMENS LENTOS:  A EXPERIÊNCIA DOS CAMELÔS NO CENTRO DE RIBEIRÃO PRETO - ANA LUISA MIRANDA - AGOSTO/2005.

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O USO DO TERRITRIO PELOS HOMENS LENTOS: A EXPERINCIADOS CAMELS NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO - ANA LUISA MIRANDA - AGOSTO/2005.

INSTITUTO DE GEOCINCIASPS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

NMERO: 16/2005

ANA LUISA MIRANDA

O USO DO TERRITRIO PELOS HOMENS LENTOS: A EXPERINCIA DOS CAMELS NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO

Dissertao apresentada ao Instituto de Geocincias como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Geograa.

PROFA. DRA. ARLUDE BORTOLOZZI ORIENTADORA

CAMPINAS - SO PAULO AGOSTO/2005

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Bibliotecrio: Helena Joana Flipsen CRB-8 / 5283

M672u

Miranda, Ana Luisa. O uso do territrio pelos homens lentos: a experincia dos camels no centro de Ribeiro Preto / Ana Luisa Miranda. -- Campinas, SP : [s.n.], \c 2005. Orientador: Arlude Bortolozzi.. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geocincias. 1.Geograa urbana - Ribeiro Preto (SP). 2.Territorialidade humana. 3. Vendedores ambulantes. 4. Comportamento espacial. I. Bortolozzi, Arlude. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geocincias. III. Ttulo.

Traduo do ttulo e subttulo da tese em ingls: The use of territory by the slow mens : the experience of the camelos at Ribeiro Pretos downtown. Palavras-chave em ingls (Keywords): Urban geography, Human territoriality, Door-to-door selling, Spatial behavior. rea de concentrao: Anlise Ambiental e Dinmica Territorial. Titulao: Mestre em Geograa. Banca examinadora: Eugenio Fernandes Queiroga, Juleusa Maria Theodoro Turra. Data da defesa: 30-08-2005.

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INSTITUTO DE GEOCINCIASPS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

AUTORA: ANA LUISA MIRANDA

O USO DO TERRITRIO PELOS HOMENS LENTOS: A EXPERINCIA DOS CAMELS NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ARLUDE BORTOLOZZI

EXAMINADORES: Profa. Dra. Arlude Bortolozzi Prof. Dr. Eugenio Fernandes Queiroga _________________- Presidente _________________

Profa. Dra. Juleusa Maria Theodoro Turra _________________

CAMPINAS, 30 DE AGOSTO DE 2005

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DEDICATRIA Ao Henrique pelo amor, pacincia e estmulo em todos os momentos.

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AGRADECIMENTO

professora Arlude, pela convivncia das mais agradveis, e pela seriedade e respeito na orientao desta dissertao; professora Tereza Luchiari pelo cuidado na minha primeira experincia com a docncia; professora Claudete Vitte pela disponibilidade sempre; professora Juleusa Turra, com admirao pela seriedade e pelas contribuies fundamentais; Ao professor Eugenio Queiroga pela preciso nas conversas, consideraes e provocaes sempre de Arquiteto para Arquiteto; Ao Marcelo, meu interlocutor na convivncia com os camels no centro de Ribeiro Preto; Las e Walter pelo apoio, carinho e compreenso; Mel, pelas incontveis horas de terapia coletiva ao telefone nos momentos difceis; Aos novos e grandes amigos gegrafos Clayton, Karen, Samuel, Fbio, pela pacincia e disposio com as minhas incessantes dvidas; Ao Fbio, mais uma vez, pela bela e carinhosa amizade; Cris pela presena importante e pelas inmeras e necessrias baladas; Ao Marcelo pela companhia sempre requerida e, portanto, sempre prazerosa; Aos sempre amigos Jonas, Marina, Gabi, Geraldo Zuleika, Claudinho, Marcinho, Rico, pela convivncia deliciosa;V

Ao Murilo, queridssimo, por proporcionar numerosos momentos de diverso; Ao Eduardo, pela amizade e pelas inndveis conversas loscas; Val e Edinalva, pela ecincia e, sobretudo pela imprescindvel humanidade que inserem na burocracia universitria; Andria pela existncia fundamental; Iai e a Marlia pelos deliciosos momentos; Em especial e com admirao, minha me, pelo amor incondicional e ao meu pai, pelo gosto e responsabilidade com a poltica. Esse o meu maior legado.

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[...] a utopia, antes de mais nada, a tenso do presente (Hugo Zemelman)VII

SUMRIO

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APRESENTAO

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INTRODUO: O ESPAO GEOGRFICO COMO CATEGORIA DE ANLISE SOCIAL

22 23 33 41 48 49 57 66 70 77 78 90 96 103 111

CAPTULO I RECONHECENDO O ESPAO GEOGRFICO E SUAS CONTRADIES O ESPAO NA CONTEMPORANEIDADE: A EMERGNCIA DO PERODO POPULAR DA HISTRIA CIDADE E CONFLITO: A INSERO DOS CAMELS NO ESPAO PBLICO UM OLHAR SOBRE A CIDADE: ENTRE A RAZO DE DOMINAO E A RAZO COMUNICATIVA CAPTULO II O CENTRO DE RIBEIRO PRETO: O LUGAR COMO RESISTNCIA O CENTRO DE RIBEIRO PRETO: BREVE HISTRICO DO PROCESSO DE POPULARIZAO A APROPRIAO DO CENTRO DE RIBEIRO PRETO PELOS CAMELS O PROCESSO DE NEGOCIAO: O ESPAO PBLICO COMO DISCURSO O CENTRO DA CIDADE DE RIBEIRO PRETO HOJE: ESPAO PBLICO POR EXCELNCIA CAPTULO III DO TERRITRIO USADO AO TERRITRIO PRATICADO TERRITRIO E PODER: ESTRATGIAS E TTICAS NO USO DO CENTRO DE RIBEIRO PRETO PLANEJAMENTO URBANO: RAZO DE DOMINAO NA ORGANIZAO DO TERRITRIO A NOVA ROUPAGEM DO PLANEJAMENTO URBANO: INDCIOS DA AO ESTRATGICA NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO AS PRTICAS ESPACIAIS: A EXPERINCIA POPULAR DO ESPAO A TERRITORIALDADE DOS CAMELS: RACIONALIDADE ALTERNATIVA, ORGANIZAO E SENTIDOS DA AO

120 CONSIDERAES FINAIS 125 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 136 ANEXOS

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LISTA DE MAPAS E FIGURAS

51 MAPA O1 LOCALIZAO DO MUNICPIO DE RIBEIRO PRETO Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto; organizao: Ana Luisa Miranda, 2005. 54 MAPA 02 SETORIZAO DO CENTRO/RIBEIRO PRETO 1980-2005 Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto; organizao: Ana Luisa Miranda, 2005. 56 MAPA 03 USO E OCUPAO DO CENTRO/RIBEIRO PRETO 2005 Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto; organizao: Ana Luisa Miranda, 2005. 59 FIGURA 01 Localizao do municpio de Ribeiro Preto. Fonte: Clayton Luiz da Silva, 2005. 59 FIGURA 02 Ocupao da avenida Jernimo Gonalves pelos camels. Fonte: Valria Valado, 1999. 59 FIGURA 03 Ocupao do Terminal Carlos Gomes pelos camels. Fonte: Ana Carolina Knudsen Cardoso, 1999. 59 FIGURA 04 Foto area do Terminal Carlos Gomes (e praa XV de Novembro). Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto, 1994. 59 FIGURA 05 Ocupao do Terminal Carlos Gomes pelos camels. Fonte: Ana Carolina Knudsen Cardoso, 1999. 59 FIGURA 06 Camel prximo ao Terminal Carlos Gomes. Fonte: Ana Carolina Knudsen Cardoso, 1999. 59 FIGURA 07 Ocupao da avenida Jernimo Gonalves pelos camels. Fonte: Valria Valado, 1999. 62 FIGURA 08 Apreenso de mercadorias comercializadas pelos camels. Fonte: Ana Luisa Miranda, janeiro de 2005. 62 FIGURA 09 Cameldromo Duque de Caxias. Fonte: Henrique Telles Vichnewski, julho de 2005. 62 FIGURA 10 Apropriao do calado pelos camels. Fonte: Ana Luisa Miranda, dezembro de 2004. 62 FIGURA 11 Barracas dos camels decientes fsicos. Fonte: Ana Luisa Miranda, agosto de 2004.

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62 FIGURA 12 Ambulante no calado. Fonte: Ana Luisa Miranda, maio de 2005. 62 FIGURA 13 Polcia Civil - scalizao do calado. Fonte: Ana Luisa Miranda, maio de 2005. 62 FIGURA 14 Barracas dos camels decientes fsicos. Fonte: Ana Luisa Miranda, dezembro de 2004. 62 FIGURA 15 Fonte: Ana Luisa Miranda, agosto de 2004. 62 FIGURA 16 Fonte: Ana Luisa Miranda, dezembro de 2004. 62 FIGURA 17 Planta baixa do Centro Popular de Compras (sem escala). Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto. 62 FIGURA 18 Centro Popular de Compras Isaura Salim Latuf (entrada principal). Fonte: Ana Luisa Miranda, agosto de 2004. 62 FIGURA 19 Praa XV de Novembro e Praa Carlos Gomes. Fonte: Secretaria de Planejamento e Gesto Ambiental de Ribeiro Preto, 2004. 76 FIGURA 20 Catadora de papelo. Fonte: Ana Luisa Miranda, agosto de 2004. 76 FIGURA 21 Artista de rua no calado (prximo a Esplanada do teatro Pedro II). Fonte: Ana Luisa Miranda, maio de 2005. 76 FIGURA 22 Movimento dos Sem Terra em manifestao na praa XV. Fonte: Ana Luisa Miranda, dezembro de 2004. 76 FIGURA 23 Vendedor de sorvetes na praa XV de Novembro. Fonte: Ana Carolina Knudsen Cardoso, 1999. 76 FIGURA 24 Artista de rua na praa XV de Novembro. Fonte: Ana Luisa Miranda, maio de 2005. 76 FIGURA 25 Engraxate no calado. Fonte: Ana Luisa Miranda, maio de 2005. 76 FIGURA 26 Carrinho de frutas na avenida Jernimo Gonalves. Fonte: Ana Luisa Miranda, agosto de 2004.

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RESUMO

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Nesta dissertao, parte-se da idia que o uso do territrio envolve diferentes matrizes de racionalidade e, portanto, impe o reconhecimento da diversidade e das contradies inscritas no espao geogrco. Com isso, a conituosidade, como um dado da anlise espacial, essencial para a valorizao da diferena e, sobretudo, para a valorizao de sujeitos sociais historicamente ocultados. Nesse sentido, esta pesquisa vale-se do territrio usado como categoria de anlise, j que nos remete ao espao de todos e, com isso, nos convida a atentar para as relaes sociais e de poder. Assim, busca-se desvendar as estratgias e tticas que conduzem as aes dos diferentes agentes - destacando a presena dos camels - na luta pelo uso do centro de Ribeiro Preto. Por meio da noo de homens lentos, procura-se valorizar a territorialidade dos camels que, estando fora do modelo hegemnico, dicilmente confrontada como portadora de valores e, sobretudo, como uma nova possibilidade de uso da cidade. Nesse contexto, os camels resistem ao planejamento urbano dominante e, dentro de suas circunstncias, tentam impor suas especicidades, trazendo para o debate uma outra congurao scio-espacial possvel. Assim, ao instalar um dissenso sobre a organizao do centro de Ribeiro Preto constituem-se, ainda que potencialmente, como sujeitos polticos. nesse processo de constituies, negociaes e represses, que se procura apreender e, sobretudo, iluminar a geograa desses sujeitos.

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RSUMEXPERIENCE DES MARCHANDS AMBULANTS EN CENTRE VILLE DE RIBEIRAO PRETO

USAGE DU TERRITOIRE PAR LES HOMMES LENTS :

Dans ce mmoire de matrise, nous partons de lide que lusage du territoire implique diffrentes matrices de rationalit ce qui donc impose non seulement la reconnaissance de la diversit mais galement celle des contradictions inscrites dans lespace gographique. Ainsi, la conituosit en tant que donne de lanalyse spatiale est essentielle la mise en valeur de la diffrence et, surtout, la mise en valeur de sujets sociaux historiquement occults. En ce sens-l, notre recherche sutilise du territoire utilis en tant que catgorie danalyse, vu quil nous remet lespace de tous et, encore, quil nous invite entreprendre des relations sociales et de pouvoir . Donc, nous chercherons dvoiler les stratgies et les tactiques qui conduisent les actions des diffrents agents - tout en faisant ressortir la prsence des marchands ambulants - dans la lutte pour lusage du centre ville de Ribeirao Preto. Avec la notion dhommes lents nous cherchons mettre en valeur la territorialit des marchands ambulants qui, hors du modle hgmonique, tre trs difcilement confronte, non seulement en tant que porteuse de valeurs, mais aussi en tant que nouvelle possibilit de lusage de la ville. Dans ce contexte, les marchands ambulants rsistent lamnagement du territoire urbain dominant et, grce leurs circonstances, ils tentent dimposer leurs spcicits tout en apportant au dbat une possible autre conguration socio-spatiale. De cette manire, en installant un dsaccord sur lorganisation du centre ville de Ribeirao Preto, ils se constituent, mme potentiellement, en tant que sujets politiques. Cest ce processus de constitutions, ngociations et rpressions, que nous tentons aprhender an dilluminer la gographie de ces sujets.O USO DO TERRITRIO PELOS HOMENS LENTOS: A EXPERINCIA DOS CAMELS NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO

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ABSTRACT

THE USE OF THE TERRITORY BY THE SLOW MEN:THE EXPIRIENCE OF THE CAMELS AT RIBEIRO PRETOS DOWNTOWN

This paper discusses the idea that the use of a territory envolves different sources of rationality, therefore, it imposes the recognition of diversity and contradictions inscribed in geographical space. Through it, the conictuality as a known element of the spacial analysis is essencial to the appreciation of the difference and specially, for the appreciation of social subjects historically hidden. Therefore, this research makes use of used territory as a category of analysis, since it remits us to the space of everybody, in such a way, it invites us to consider the social relations and the power relations. In this way, it seeks in revealing the strategies and tactics which carry the actions out of the different subjects pointing out the presence of camels ghting for the use of Ribeiro Pretos downtown. Through the notion of slow men we value the territoriality of the camels who has been out of the hegemonic model, it is hardly faced as a value bearer and, above all, as a new possibility to make use of the city. Therefore, the camels withstand to the dominant urban planning and under these circumstances, they try to impose their specialities bringing to debate another possible conguration of socialspace. Thus, installing a disagreement about the organization of Ribeiro Pretos downtown, however, it constitutes potentially as political subjects. In this process of constitutions, negotiations and repressions that we seek to undestand and beyond that, to enlighten the geography of these subejts.XIII

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APRESENTAO

As formas alternativas de uso da cidade sempre foram de meu interesse, desde a graduao em Arquitetura e Urbanismo. Uma inquietao quanto a falta de reconhecimento de inmeras prticas que ocorrem na cidade, sobretudo pelos projetos urbansticos, me levaram a pesquisar o uso do centro de Ribeiro Preto pelos moradores de rua, o que resultou, no ano 2000, no TFG (Trabalho Final de Graduao) Propostas para nmades urbanos. Foi esta mesma inquietao que deniu a temtica desta pesquisa de mestrado, j que acompanhava, de perto, as intervenes do poder pblico na territorialidade dos camels do centro de Ribeiro Preto. O freqente descolamento dos projetos urbansticos da real experincia urbana, em conformidade a quase totalitria mercantilizao da cidade, tem trazido grandes custos sociais no que se refere ao direito cidade. Nesse sentido, acredita-se que a anlise da luta dos camels pelo uso do centro de Ribeiro Preto, contribui no desvendamento dos atuais processos de segregao espacial, especialmente pelas polticas e projetos urbanos. A apropriao das ruas e caladas das cidades, por esses sujeitos, no vista aqui unicamente como privatizao do espao pblico, como querem algumas leituras simplistas. Essa apropriao, ao nosso ver, demonstra, sobretudo, a necessria auto-reproduo, de grande parte da populao, que marca a formao scioespacial do territrio brasileiro. Sem pretender romantismo, mas procurando desconstruir a imagem folclorizada (RIBEIRO, 2004c) dos camels, esta dissertao busca reconhecer os reais sentidos que essa territorialidade carrega. O incio desta pesquisa na Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, contextualiza-se num momento de grandes mudanas no cenrio acadmico, somado a diculdades inerentes a um programa de ps-graduao que se inicia. Por esse ngulo, gostaria de destacar dentro das inmerasA P R E S E N TA O

questes da universidade que necessitam de um debate tico os obstculos

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postos ao conhecimento, na atualidade, ao aceitarmos sem crtica o alinhamento dos programas de ps-graduao velocidade do mercado. Esse formato que as universidades brasileiras vem adotando faz com que o processo de construo do conhecimento se torne cada vez mais opressivo. Vemos formar-se, continua e precocemente, mestres e doutores o que nos remete a uma certa nostalgia aos tempos em que o mestrado processo inicial de formao dos pesquisadores signicava uma experincia lenta e profunda, o que resultava na formao de grandes intelectuais. Hoje, a presso exercida para que se cumpra os curtos prazos dos programas de ps-graduao reduz esse processo a um processo burocrtico, de cumprimento de certas exigncias, onde as publicaes e a titulao se restringem a dados estatsticos exigidos pela CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) como contrapartida liberao de recursos. preciso destacar que essa a escolha poltica feita pelo programa de ps-graduao do departamento de geograa do Instituto de Geocincias da Unicamp, e essa constatao coloca a necessidade de admitir os riscos e limitaes assumidos ao optar pelo desenvolvimento deste trabalho nesse contexto. Essas colocaes tm como intuito central estimular o debate, ainda incipiente, sobre quem so esses novos mestres e doutores curtos que a universidade brasileira vm formando, e, sobretudo, qual a funo social que suas pesquisas assumem na atualidade. Contudo, na contramo desse difcil percurso, a descoberta da cincia geogrca constituiu-se como a positividade dessa experincia acadmica. Desenvolver esta dissertao no programa de geograa apesar das diculdades iniciais pelo rigor terico-metodolgico dessa disciplina signicou uma intensa experincia de conhecimento. O mais importante, porm, foi perceber que o dilogo entre as disciplinas que tem o espao como objeto de estudo como a arquitetura e urbanismo e a geograa constitui um caminho possvel e promissor no entendimento da complexa realidade scio-espacial atual.A P R E S E N TA O

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O ESPAO GEOGRFICO COMO CATEGORIA DE ANLISE SOCIAL

INTRODUO

Para compreender a realidade scio-espacial, no presente, imprescindvel um olhar interdisciplinar capaz de desvendar os complexos processos contemporneos. Assim, o espao objeto de estudo de diferentes disciplinas das cincias humanas adquire centralidade, sobretudo nas ltimas dcadas, quando h uma rearmao desse conceito como categoria de anlise social (SMITH, 2000, p.138). Nos diversos campos do conhecimento, o espao assume distintas signicaes. Nesse sentido, h o espao do arquiteto e urbanista, h o espao do gegrafo, h o espao do economista, h o espao do socilogo... E nessa multiplicidade de interpretaes, o espao aparece ora como receptculo, ora como produto, ora como meio. Mas acredita-se, como Milton Santos, que o que realmente interessa o espao do homem (SANTOS, M., 1986), espao humano, [...] que contm e contido por todos esses mltiplos de espao (SANTOS, M., 1978, p.120). Carlos Walter Porto Gonalves destaca, apoiando-se em Michel Foucault, que na tradio do pensamento ocidental h uma supremacia do tempo em relao ao espao (GONALVES, 2002b, p.226). Assim, por muito tempo, sobretudo na modernidade, houve uma desqualicao do espao, onde a utilizao dos termos espaciais tinha [...] um qu de anti-histria (FOUCAULT, 2004, p.159). No entanto, segundo esse autor:[...] se a histria se faz geograa porque, de alguma forma, a geograa uma necessidade histrica e, assim, uma condio de sua existncia que, como tal, exerce uma coao que, aqui, deve ser tomada ao p da letra, ou seja, como algo que co-age, que age com, co-agente (GONALVES, 2002, p.229).

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INTRODUO

Desse ngulo, v-se reaparecer na teoria social, nas ltimas dcadas, a tenso constitutiva (criativa) (GONALVES, 2002b, p.231) entre a materialidade e a imaterialidade, entre os objetos e as aes, entre os xos e os uxos, entre o espao e a sociedade. No entanto, na arquitetura e no urbanismo1, o espao , comumente, pensado como receptculo, como [...] um vazio a ser preenchido (QUEIROGA, 2001, p.37). A transitividade dessa disciplina nos domnios da tcnica, da arte e do social, diculta a denio terica de seu objeto de estudo. O espao do arquiteto e urbanista, freqentemente, prioriza a forma e a funo e, nesse sentido, desconsidera importantes contextos da realidade social. Ao mesmo tempo, o arquiteto e urbanista tem uma importante funo social, j que, alm da anlise, ele tambm participa da construo (tcnica) do espao. Como bem coloca Milton Santos , [...] os urbanistas puros, so meros executantes (SANTOS, M., 2001a, p.05). Nesse sentido, o que esse autor denuncia o abandono da anlise como princpio tico e idealizador, e invoca os urbanlogos, de uma poca em que a vocao para a anlise, de um lado, e o conhecimento tcnico, do outro, eram as bases de formao desses prossionais. Passar do espao vazio ao espao do homem (QUEIROGA, 2001) uma tarefa urgente dos arquitetos e urbanistas, e assim armar, ante a funo tcnica, sua funo social. Dessa perspectiva, acredita-se que a geograa que tem o espao como objeto fundante (QUEIROGA, 2001, p.02) - traz uma enorme contribuio para todas as cincias humanas, sobretudo as que tm o espao como objeto de estudo. Assim, nesta dissertao nos valemos da proposta de Milton Santos, que entende o espao como uma instncia social (SANTOS, M., 1978). Para esse autor:O espao no nem uma coisa, nem um sistema de coisas, seno uma realidade relacional, coisas e relaes juntas [...]

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INTRODUO

Nessa reexo, o espao do arquiteto e urbanista, assim como o espao do gegrafo, so destacados, precisamente por corresponderem minha formao.1

O espao deve ser considerado como um conjunto indissocivel de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geogrcos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento [...] (SANTOS, M., 1988, p.26)

Essa denio permite abordar o espao como categoria de anlise social, o que nos aproxima da realidade, pois considera a diversidade de elementos nele presentes, as interaes entre eles e as mudanas de valor desses elementos no movimento da histria. Com isso, torna-se operacional nas diversas disciplinas das cincias humanas, permitindo, no entanto, que se conservem as especicidades de cada uma. O espao proposto por Milton Santos humaniza o espao vazio do arquiteto e urbanista. com essa premissa que esta dissertao tem como objetivo analisar o uso do centro de Ribeiro Preto pelos camels, atentando para as interaes, disputas e negociaes envolvidas nessa problemtica. O centro da cidade de Ribeiro Preto lido como o lugar da resistncia, onde a presena crtica dos camels insere um contedo poltico nesse espao. Tendo o lugar como recorte espacial possvel uma aproximao do olhar sobre a realidade, j que o espao vivido, onde o tecido social se (re)constri continuamente. No entanto, por meio da categoria territrio usado (SANTOS, M., 1998) que o espao se concretiza, permitindo a apreenso da ao na construo das condies materiais e imateriais da vida. O territrio, segundo Carlos Walter Porto Gonalves:[...] uma categoria espessa que pressupe um espao geogrco que apropriado e esse processo de apropriao territorializao enseja identidades territorialidades que esto inscritas em processos sendo, portanto, dinmicas e mutveis, materializando em cada momento uma denominada ordem, uma determinada congurao territorial, uma topologia social (Bourdieu, 1989) (GONALVES, 2002b, p.230).

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INTRODUO

Assim, procura-se abordar o centro da cidade de Ribeiro Preto como lugar onde operam, na sua produo e no seu uso, diferentes matrizes de racionalidade (GONALVES, 2002b), e essa co-presena de valores e interesses divergentes que o compe como lugar do conito. Os camels2 aparecem como os sujeitos desse conito que, ao se inserirem no espao pblico, instalam um dissenso sobre a congurao dominante desse espao. Desse modo, procura-se abordar a presena dos camels nas ruas do centro de Ribeiro Preto como resistncia que tensiona os projetos hegemnicos de organizao desse espao, que comearam a se desenhar na dcada de 90. Para tanto, no se pode prescindir de que os camels so sujeitos de conhecimento, e isso signica partir da premissa de que so sujeitos de ao, construtores de sua prpria histria (GONALVES, informao verbal, 20 de julho de 2004)3. Segundo Hannah Arendt, a ao no pode ser vista dissociada do discurso (ARENDT, 2003). Se a ao corresponde ao iniciar, o discurso que expe os sentidos desse incio e corresponde singularizao do sujeito, revelando sua identidade pessoal (ARENDT, 2003, p.192). Atravs da fala, possvel identicar os sentidos da ao, desvendando valores e, sobretudo, projetos de futuro (RIBEIRO, 2000). Assim, os sujeitos devem ser vistos [...] com palavras e atos (ARENDT, 2003, p.189). Dessa perspectiva, valemos-nos das entrevistas como um importante instrumento da anlise4. preciso ressaltar que a ausncia de dados estatsticos sobre a realidade dos camels - o que denuncia a ausncia de reconhecimento desses sujeitos, tanto pelo poder pblico quanto pelas instituies deUtilizamos a expresso camel, dentre tantas outras atribudas aos sujeitos que encontram no comrcio de rua sua sobrevivncia marreteiros, ambulantes, etc. , j que assim que os sujeitos em estudo se autodenominam.2

Minicurso Geograa e movimentos sociais: a Amrica Latina e o Caribe em questo, no VI Congresso Brasileiro de Gegrafos, realizado em Goinia - GO, de 18 a 23 de julho de 2004.3

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INTRODUO

Ao todo, foram realizadas 18 entrevistas com os camels, entre estes, os que continuam nas rua do centro, e os ex-camels que agora trabalham nos dois cameldromos da cidade.4

pesquisa - tambm contribuiu para que as entrevistas assumissem tal importncia nesta dissertao. Mesmo com algumas diculdades para conseguir os depoimentos dos camels, sobretudo pela uidez dessa prtica e por um certo receio pela condio de irregularidade no uso do espao pblico, obteve-se, nas entrevistas, grande parte do dados que permitiram a apreenso da geograa desses sujeitos. A leitura da espacialidade dos camels apoiou-se na noo de homens lentos ainda pouco trabalhada na geograa, o que colocou algumas diculdades iniciais proposta por Milton Santos . O homem lento uma categoria losca de um humanismo concreto (RIBEIRO, 2005a), que nos remete dinmica do espao a partir dos de baixo dos que esto fora da velocidade dos processos hegemnicos , proporcionando, com isso, uma valorizao desses outros espao-temporalidades presentes na cidade, reconhecendo valores nessas aes e, dessa forma, desnaturalizando a pobreza e (re)colocando a centralidade no social. Desse ngulo, [...] as lutas de apropriao passam a ser lidas como confrontos entre representaes sociais, universos simblicos, valores e diferentes formas de interpretao das condies materiais de vida (RIBEIRO, 2005a, p.95). Reconhecer esses sujeitos - historicamente presentes nas grandes e mdias cidades dos pases perifricos como uma presena ativa na construo e no uso do territrio uma tarefa importante da atualidade, e nessa direo que se pretendeu conduzir esta dissertao. No primeiro captulo, Reconhecendo o espao geogrco e suas contradies, busca-se apreender como o espao se constitui na contemporaneidade, reconhecendo diante da ao hegemnica essas outras aes baseadas em outras racionalidades, outras temporalidades e, sobretudo, em outros valores. Assim, mesmo que na contramo do discurso hegemnico, a leitura do espao geogrco revela a diversidade que o compe, rearmando que os futuros so muitos (SANTOS, 2004a, p.161).INTRODUO

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No segundo captulo, O centro de Ribeiro Preto: o lugar como resistncia, sero abordados os principais elementos que contriburam para a atual congurao do centro de Ribeiro Preto, considerando o processo de apropriao desse espao pelos camels e, sobretudo, as intervenes na espacialidade desses sujeitos. O terceiro captulo, Do territrio usado ao territrio praticado, procura destacar por meio da prtica espacial dos camels em confronto, principalmente, com o novo modelo de planejamento urbano os conitos e as solidariedades, o pragmatismo e a originalidade, as normas e a espontaneidade, isto , as diferentes possibilidades de uso do territrio.

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INTRODUO

RECONHECENDO O ESPAO GEOGRFICO E SUAS CONTRADIES

1.

O ESPAO GEOGRFICO NA CONTEMPORANEIDADE:A EMERGNCIA DO PERODO POPULAR DA HISTRIA

No atual perodo histrico, a experincia social, especialmente na Amrica Latina, encontra-se mergulhada em uma crise advinda, histrica e principalmente, dos projetos de modernizao5 por que passaram os pases dessa regio, e das conseqncias desses projetos no tecido social. O aprofundamento do neoliberalismo, sobretudo a partir da dcada de 90, e o conseqente agravamento das condies de vida (RIBEIRO, 2001/02, p.34) da grande maioria da populao constituem os desaos atuais no enfrentamento dessa realidade. Muito embora todas as inovaes anteriores tenham redenido a organizao do espao geogrco, o impacto da atual modernizao com complexas transformaes estruturais, decorrentes dos ajustes na esfera da produo e apoiadas nas inovaes tecnolgicas, especialmente nos avanos da comunicao e da informao altera a geograa da economia e das relaes para realizar-se na escala-mundo. Essa redenio do espao geogrco, no presente, tem como grandes pilares a tirania da informao e a tirania do dinheiro (SANTOS, M., 2004a,C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

sociais de todos os pases, armando um novo meio, onde o capital se apia

Segundo Milton Santos, cada perodo caracterizado pela existncia de um conjunto de elementos de ordem econmica, social, poltica e moral, que constituem um verdadeiro sistema. Cada um desses perodos representa uma modernizao, isto , a generalizao de uma inovao vinda de um perodo anterior ou da fase imediatamente precedente. Em cada perodo histrico assim denido, as regies polarizadas ou centros de disperso do poder estruturante dispem de energias potenciais diferentes e de diferentes capacidades de transform-las em movimento. A cada modernizao, o sistema tende a desdobrar sua nova energia para os subsistemas subordinados. Isso representa uma presso para que, nos subsistemas atingidos, haja tambm modernizaes. No sistema dominado, aqui chamado subsistema, as possibilidades de inovao esto abertas, assim, s mesmas variveis que foram objeto de modernizao no sistema dominado (SANTOS, M., 2004b, p.31).5

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p.35). A informao torna-se a ferramenta do convencer6, pois, no momento em que transmitida, j est impregnada de ideologia, servindo como instrumento de controle dos espritos, possibilitando, com isso, que as aes sejam previamente aceitas. O dinheiro adquire o estatuto de autonomia, subordinando todas as outras dimenses da vida ao econmico (SANTOS, M., 2004a, p.3944). Esses pilares so, portanto, o que viabiliza a armao da globalizao, expressando que essa opera e se mantm por meio de uma intensa mquina ideolgica7, pois, cria novos smbolos como competitividade, uidez, homogeneizao do planeta, aldeia global , os quais justicam esse processo (globalizao) como nico caminho possvel para sair da crise (SANTOS, M., 2004a, p.18). Como sujeitos dessas aes aparecem as empresas transnacionais e os Estados Nacionais. Juntos, erigem-se como os grandes protagonistas desse perodo (DREIFUSS, 1998, p.29). As primeiras, instalando-se em qualquer parte do mundo em busca da concentrao de capital, e os segundos, possibilitando, atravs de estmulos e regulamentaes, a instalao dessas empresas no seu territrio. E isso se d s custas de privatizaes dos setores econmique organiza e garante a vida social, colocando-o como esfera garantidora dos programas de ajustes estruturais da atual fase do capitalismo.C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

cos e de servios pblicos, que diminuem o papel do Estado enquanto esfera

Milton Santos fala do trao dramtico que, em nosso tempo, obtiveram o medo e a fantasia, em conseqncia da manipulao da informao: Sempre houve pocas de medo. Mas esta uma poca de medo permanente e generalizado. A fantasia sempre povoou o esprito dos homens. Mas agora, industrializada, ela invade todos os momentos e todos os recantos da existncia ao servio do mercado e do poder e constitui, juntamente com o medo, um dado essencial de nosso modelo de vida (SANTOS, M., 1994, p.23).6

Sobre o contedo ideolgico do processo de globalizao temos que: A construo intelectual dominante se articula em torno de idias como produtividade, qualidade, velocidade. Nada disso um dado do real, apenas ideologia. Um sistema ideolgico comanda a economia e, por conseguinte, comanda o resto [...] Houve uma preparao prvia para a chamada globalizao, com a produo de idias encomendadas a determinados centros de pensamento. [...] Criou-se a violncia da informao, que precede e acompanha a implantao do processo concreto da globalizao (SANTOS, M., 1998a, p. 96).7

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Portanto, o neoliberalismo apoiado nas novas tecnologias difunde a globalizao perversa (SANTOS, M., 2004a, p.19), com uma violncia de propores enormes no tecido social, principalmente nos pases da Amrica Latina, por terem sido um dos principais laboratrios das experincias neoliberais (SADER, 2003, p.28). Essa violncia explcita quando se verica que apenas quatro cidados americanos possuem [...] tanta riqueza quanto o conjunto de 43 pases menos desenvolvidos, com uma populao de 600 milhes de pessoas (SANTOS, B. S., 2002). Outro dado alarmante, divulgado pelo Banco Mundial no relatrio Indicadores de Desenvolvimento Mundial 2004, que 52% da populao do mundo sobrevive com menos de dois dlares por dia, o que representa 2,73 bilhes de pessoas vivendo no limite da pobreza. Essa a face da globalizao mercantil, que nos aparece como pensamento nico, conduzindo os lugares a modernizaes que acabam causando grandes fraturas na sociedade e aprofundando as desigualdades. Mas preciso, assim como propem Ana Clara Torres Ribeiro e Ctia Antonia da Silva, apreender a parcialidade8 e a incerteza dos processos contemporneos como obrigao tica (RIBEIRO & SILVA, 2004a, p.348). Isso signica um reconhecimento das tenses do presente, das contradies inerentes da sociedade,C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

colocando, portanto, a ao social no centro do debate. Segundo Milton Santos, no atual perodo histrico o que estrutural , tambm, crtico. Isso se deve ao fato de que as mesmas variveis que o constituem como perodo - pois, instalam-se em toda parte -, concomitantemente, entram em choque ordenando, continuamente, novos arranjos (SANTOS, M.,

Segundo Ana Clara Torres Ribeiro, a hegemonia articula-se ao sentido provisrio e parcial, j que orientador da ao de apenas alguns, destilado por caractersticas do discurso dominante da globalizao, esclarecedor da permanncia da pretenso moderna de apreender e sintetizar o Todo e o novo (RIBEIRO & SILVA, 2004a, p.347) (grifos no original). Para Milton Santos, a gestao do novo na histria, d-se, freqentemente, de modo quase imperceptvel para os contemporneos, j que suas sementes comeam a se impor quando ainda o velho quantitativamente dominante. exatamente por isso que a qualidade do novo pode passar despercebida. Mas a histria se caracteriza como uma sucesso ininterrupta de pocas. Essa idia de movimento e mudana inerente evoluo da humanidade. dessa forma que os perodos nascem, amadurecem e morrem (SANTOS, M., 2004a, p.141).8

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2004a, p.34). As crises so de toda ordem; no entanto, as solues dirigem-se unicamente manuteno e preservao do setor nanceiro, o que acaba por gerar mais crise nas outras instncias da vida. Assim, vivemos um momento de incerteza generalizada, onde, segundo Gilberto de Mello Kujawski,[...] faltam vigncias, isto , crenas e idias dominantes, de alcance coletivo [...] Falham os paradigmas em todos os setores, tanto na vida como na cultura. Mas o que mais falha, o que mais falta a realidade sob nossos ps; o que mais falta o mundo, como um sistema integrado de referncias. Em ltima anlise, crise signica falta de realidade, falta de algo rme a que se ater para projetar e construir cada um a sua vida (KUJAWSKI, 2005).

No entanto, essa situao permanente de crise que traz a possibilidade de disputa do futuro, onde novos paradigmas para a vida social possam ser formulados. De fato, a ao hegemnica adquire, cada vez com mais veemncia, a capacidade de conduzir a vida de todos. Mas preciso reconhecer as aes que se dirigem contramo desse movimento dominante, explicitando que os futuros so muitos (SANTOS, 2004a, p.161). Portanto, onde o neoliberalismo fundado no meio tcnico-cientco-informacional (SANTOS, M., 1994) parece triunfar, preciso somar os novos contornos que conguram na Amrica Latina, especialmente, um aparente esgotamento desse modelo e a crise de sua hegemonia. Em decorrncia de uma das maiores crises vividas na regio, onde se encontram economias fragilizadas, problemas sociais aprofundados, Estados desestruturados, h uma mudana no curso, sobretudo, da poltica:[...] h uma dcada, quem assumia os preceitos do Consenso de Washington se elegia presidente e se reelegia quase que automaticamente como foram os casos paradigmticos de Menem, Fujimori e FHC. Atualmente, ao contrrio, quem assume e mantm o modelo, fracassa imediatamente como De la Rua e Toledo ou tem seu governo esgotado rapidamente - como Vicente Fox e Jorge Battle (SADER, 2003, p.28).C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

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Emir Sader (SADER, 2003, p.28) refora essa idia de crise do neoliberalismo na Amrica Latina atentando para a eleio de Hugo Chvez o primeiro presidente eleito fora dos moldes do neoliberalismo, alm do governo de Cuba e para a alta votao da Frente Ampla do Uruguai e de Evo Morales, na Bolvia, primeiro indgena campons que tem destaque numa eleio presidencial (GONALVES, 2002a, p.07). Esses fatos evidenciam, ainda que parcialmente, a crescente necessidade popular de uma outra forma de poltica. , no entanto, desde a manifestao indgena no Mxico, em 1994, contra o primeiro tratado neoliberal de integrao, passando pelas mobilizaes de Seattle, em 1999, e de Praga, em 2000, at a organizao dos Foros Sociais Mundiais9, que parece estar se congurando uma juno de foras contra o neoliberalismo, tendo grandes reexos na Amrica Latina (CECEA, 2002; SADER, 2003; GONALVES, 2004a; SANTOS, B. S., 2001). Essa resistncia aos efeitos da ao hegemnica, essa capacidade de auto-reinventar-se para sobreviver num territrio que, se no impede, diculta a presena dos pobres caracteriza e diferencia as prticas scio-espaciais de grande parte da populao da Amrica Latina, que historicamente marcada nas ltimas dcadas, a imerso da grande maioria da populao no mundo das carncias e necessidades tem levado emerso novos sujeitos polticos que, atravs de diferentes formas de lutas, reanimam a idia de espao pblico. No se pode perder de vista que a racionalidade instrumental (HABERMAS, 1987), apoiada nas novas tcnicas e fundada nos interesses de mercado, que cria, intencionalmente, carncias e necessidades (materiais e imateriais) (SANTOS, M., 2004a, p.128). nesse sentido que, nos dias de importante destacar que o Frum Social Mundial tem um claro carter globalizado, indicando que a essa escala de anlise est denitivamente ligado o destino dos povos de cada lugar do planeta. [...] esses movimentos sociais que se articulam escala mundial so movimentos inscritos local, regional e nacionalmente nessa teia contraditria por meio do que o capitalismo desigual e combinadamente, se desenvolve (GONALVES, 2004, p.203/204).9

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pela [...] auto-construo de condies de vida (RIBEIRO, 1998, p.91). Mas,

hoje, a experincia da escassez levada a fundo medida que a produo de objetos de consumo e, sobretudo, a produo de desejos inclusive desejo de participao e cidadania (SANTOS, M., 2002, p.326) intensicada, e, em contrapartida, os acessos a esse consumo so cada vez mais restritos a uma pequena parcela da populao. Mesmo a classe mdia que, durante anos, manteve-se garantida pelos processos de modernizao, vem sofrendo nos ltimos tempos uma grande presso econmica, conhecendo, portanto, tal experincia. por esse ngulo que Milton Santos aponta que, nessa fase da globalizao, em decorrncia dessa acelerao contempornea, dessa acelerao na produo da escassez, h, tambm, uma acelerao na descoberta da realidade. Essa tomada de conscincia tem a ver com a (re)descoberta, pela populao, da importncia da poltica como instrumento ecaz no enfrentamento das desigualdades. nesse sentido, portanto, que a escassez um importante dado do presente, medida que condiciona s lutas e aos conitos. Como exemplo, pode-se remeter a experincia da populao da Venezuela10 que, principalmente pela escassez vivida nos ltimos anos, e vendo na gura de Hugo Chvez a possibilidade da retomada de esperana, diante de contundentes da Amrica Latina, onde:C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

uma tentativa de golpe liderada pela oposio11, vivencia um dos eventos mais

Todo o clima poltico que se vive hoje na Venezuela tem que ser visto em perspectiva histrica, particularmente a que se passou nas duas ltimas dcadas, onde a corrupo e a misria aumentaram signicativamente o que levara, inclusive, a massacres por parte de governos hoje invocados como democrticos como o Caracazzo de 1989 e, ainda, a tentativa de golpes de estado, como o que se envolveu o prprio Hugo Chvez em 1992 (GONALVES, 2003, p.5).10

Para a oposio, [...] Chvez permaneceria no poder caso no mexesse na questo da terra, no propiciasse que, pela primeira vez na histria, as populaes indgenas tivessem direito demarcao de seus territrios, no institusse uma nova lei para a pesca, no mexesse no petrleo e com a minoria daqueles que, at aqui, s tm se beneciado dessa riqueza que deveria estar servindo a todos os venezuelanos e como fonte de nanciamento para um outro modelo de desenvolvimento sustentado para o pas (GONALVES, 2003, p.5).11

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Foi o povo pobre das favelas, de Caracas, sobretudo, que com o uso de celulares e pequenas motocicletas se mobilizou, convocando cada um para se concentrar no s junto ao Palcio Miraores, mas tambm cercando as redes de comunicao, para recolocar Chvez na Presidncia (GONALVES, 2003, p.04).

Na Bolvia, os conitos que se desenrolaram em 2000, tendo como causa a privatizao da gua, demonstram o grau de mercantilizao que os pases, principalmente perifricos, enfrentam, mas demonstram tambm a fora da ao popular. Diante da privatizao da gua, por uma lei aprovada em tempo recorde de 48 horas, dando a concesso a uma transnacional, houve uma forte mobilizao popular que se estendeu por alguns meses e, frente a essa presso que paralisou o pas,[...] el gobierno no tuvo ms remedio que romper el contrato y modicar la ley en un tiempo record. Por primera vez em quince aos la poblacin le haba ganado al gobierno, haba recobrado la conanza y la esperanza en su propria fuerza. A partir de entonces ya nada volvi a ser igual para los neoliberales en Bolivia (SOLN, 2003, p.19).

social, poltica e cultural, e que vem ocorrendo no Brasil, a emergncia de um contradiscurso vindo dos territrios da pobreza e que denuncia a realidade de grande parcela da populao. Trata-se do Rap que, principalmente a partir da dcada de 90, vem ganhando visibilidade na mdia e mostrando a potencialidade em mobilizar e seduzir os jovens de todas as classes sociais, com um discurso de rebeldia (BENTES; HERSCHMANN, 2002). O que merece destaque, alm da incorporao dessa cultura, antes marginalizada pela indstria cultural, com grande repercusso12, que os rappers tornam-se sujeitos polticos, portadores de um discurso que, alm da denncia, carrega o peso da reivindicao.Sobre essa questo da evidncia da cultura popular, Milton Santos coloca que isso signica uma revanche sobre a cultura de massas, e isso se d [...]quando, por exemplo, ela se difunde mediante12

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Outro evento que evidencia a entrada de novos protagonistas na cena

Essa visibilidade tambm conseguida pelo MST (Movimento dos Sem Terra), que se tornou, nas ltimas dcadas, o movimento social mais atuante do Brasil. Com suas marchas incessantes, pressionam o governo nacional, no s a reformar o sistema fundirio, como trazem para o debate uma necessria reviso do encaminhamento da agricultura no pas. As inmeras paralisaes dos trabalhadores brasileiros13 em 2004 - entre elas a greve dos funcionrios e professores das universidades estaduais paulistas, greve dos servidores judicirios do Estado de So Paulo e greve nacional dos bancrios , ainda que fragmentrias e corporativistas, apontam para uma experincia democrtica que se faz na abertura de espaos de reivindicao, argumentao e negociao. Esses exemplos que buscamos destacar, alm de representarem momentos de visibilidade da contradio do espao geogrco, tambm evidenciam a experimentao social que vem passando a Amrica Latina e a potncia da ao popular em contra-restar o agir hegemnico. So mltiplos movimentos populares que, inscritos na esfera local, regional, nacional ou global - independente de sua escala de atuao -, representam [...] verdadeiros nichos de criao de formas renovadas de manifestao social (RIBEIRO, 2001/02, troca, entre o uso econmico e o uso social, entre a apropriao e a dominao do espao mesmo que na contramo do discurso hegemnico ainda se faz presente. Assim, nesta dissertao, o que se pretende apreender so essas manifestaes na escala do cotidiano, ou seja, nossa leitura constri-se em direoC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

p.36). Representam, ainda, que a dialtica entre o valor de uso e o valor de

o uso dos instrumentos que na origem so prprios da cultura de massas. [...] se aqui os instrumentos da cultura de massa so reutilizados, o contedo no , todavia, global[...] sua cultura, por ser baseada no territrio, no trabalho e no cotidiano, ganha a fora necessria para deformar, ali mesmo, o impacto da cultura de massas. [...] desse modo que, gerada de dentro, essa cultura endgena impe-se como alimento da poltica dos pobres, que se d independentemente e acima dos partidos e das organizaes (SANTOS, M., 2004a, p.144/145).13

Essas paralisaes puderam ser acompanhadas atravs da imprensa nacional.

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ao espao vivido, s pequenas - mas no menos signicativas resistncias que se desdobram no lugar. preciso ser dito que essa movimentao popular ainda uma questo aberta, onde sua sustentao est por se estabelecer (SANTOS, B. S., 2001). Mas, quando novos personagens entram em cena (SADER, 1988), obrigam o reconhecimento de tenso do presente, contrariando a ideologia dominante da inexistncia de projetos alternativos ao da globalizao mercantil e, sobretudo, joga luz realidade, indicando que [...] o projeto de futuro ainda encontra-se em disputa (RIBEIRO, 2004, p.354). Nas palavras de Carlos Walter Porto Gonalves:As possibilidades de superao das enormes desigualdades sociais que marcam a Amrica Latina s tero oportunidade de ser consistentes se, de fato, forem capazes de incorporar o prprio conito enquanto dimenso instituinte da vida social e, assim, oferecer a oportunidade para que novos protagonistas se faam presentes na vida poltica (GONALVES, 2002a, p.12).

O espao geogrco, portanto, prenhe de contradies, conitos, diHugo Zemelman, [...] para dar cuenta de cualquier problema social, econmico, poltico o cultural no se pueda prescindir del ngulo de lectura conformado por el par sujeito-conictividade; ya que alude a las dinmicas constituyentes de la realidad social (ZEMELMAN, 2000, p.109). Assim, a Amrica Latina, sobretudo por sua formao scio-espacial, demonstra desde os protestos com repercusso nacional buscando a efetivao da democracia aos protestos locais lutando pelo direito cidade - a existncia de projetos alternativos aos hegemnicos, balizados por princpios como justia social, democracia e liberdade. A partir dos exemplos mencionados rapidamente acima, dentre muitos outros que se desenrolam nessa regio, que se pode dizer que o PeroC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

ferenas e tenses, e essa a sua essncia. Dessa perspectiva, como nos diz

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do Popular da Histria onde [...] o Homem estar colocado no centro das preocupaes do mundo, como um dado losco e como inspirao para as aes (SANTOS, M., 2004a, p.147) se congura com intensidade e, especialmente, nesse processo, a principal arma a poltica.

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A INSERO DOS CAMELS NO ESPAO PBLICO

CIDADE E CONFLITO:

Na atualidade, com o intenso processo de mercantilizao da vida e um aparente esvaziamento do signicado da ao poltica (RIBEIRO, 2004b, p.41), poderamos nos colocar a questo que Hannah Arendt se colocou: Ser que a poltica ainda tem de algum modo um sentido? (ARENDT, 1993, p.117). A resposta a essa questo perpassa pelo entendimento do que vem a ser poltica. , ento, com base em uma denio proposta por Jacques Rancire, que se entende a poltica14 como congurao do dissenso. O dissenso no como uma simples diferena de maneiras de sentir, mas como uma diviso no ncleo mesmo do mundo sensvel (RANCIRE, 1996a, p.368), diviso essa que expressa quando se opem dois mundos, um mundo em que a contagem das parcelas da sociedade tida como natural e um mundo em que essa contagem posta em questo. Nesse sentido, a poltica surge, precisamente, para corrigir as assimetrias de poder (OLIVEIRA, 2004) prprias do princpio policial15 que dene, por meio da ordem, da vigilncia ou da segregao, o lugar e a funo de cada qual. Ela vem suprimir a dominao tida como natural (RANCIRE, 1996a,C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

O autor reformula o conceito de poltica, restringindo-o [...] ao conjunto das atividades que vm perturbar a ordem da polcia pela inscrio de uma pressuposio que lhe inteiramente heterognea. Essa pressuposio a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Essa igualdade, como vimos, no se inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais originrio do termo: uma perturbao no sensvel, uma modicao singular do que visvel, dizvel, contvel (RANCIRE, 1996a, p.372).14

Para restringir o conceito de poltica, o autor faz o movimento contrrio com o conceito de polcia, ampliando o seu sentido habitual para: [...] o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregao e o consentimento das coletividades, a organizao dos poderes e a gestao das populaes, a distribuio dos lugares e das funes e os sistemas de legitimao dessa distribuio. [...] Proponho cham-lo polcia, ampliando portanto o sentido habitual dessa noo, dando-lhe tambm um sentido neutro, no pejorativo, ao considerar as funes de vigilncia e de represso habitual15

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p.370), conferindo poder aos que no tm poder e desaando a polcia com a instituio de um conito. Nas palavras de Jacques Rancire, a poltica existe ali onde a contagem das parcelas e das partes da sociedade perturbada pela inscrio de uma parcela dos sem-parcela (RANCIRE, 1996b, p.123). Essa inscrio, no entanto, s possvel por meio da apropriao, pelos sem-parcela, da qualidade comum de todos os cidados, que a igualdade (RANCIRE, 1996b, p.24). Para compreender de uma outra forma, a desigualdade que os sem-parcela vm evidenciar s pode justicar-se ao preo de pressupor a igualdade (RANCIRE, 1996a, p.374). nesse sentido, que esse trazer tona colocar em comum o descumprimento da promessa de igualdade, construindo, com isso, um campo de contestao (OLIVEIRA, 2004) congura a racionalidade prpria da poltica. Diante dessas consideraes, podemos responder que o sentido da poltica o da liberdade (ARENDT, 1993, p.117). Liberdade que , aqui, entendida como possibilidade de ao16. Fazer poltica, ento, agir sobre a ordem estabelecida, reivindicar aquilo que no lhe naturalmente conferido. Fazer polticaC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

a armao e a proposio de direitos estendida a todos os cidados. A herana, deixada pelos antigos, da idia de plis, cidade poltica onde a igualdade na participao dos negcios pblicos institua cidados, apagada, sobretudo a partir da modernidade, com a expanso do capitalismo. A maneira como a racionalidade capitalista atinge a vida social instala uma contradio entre a igualdade, inerente cidadania, e a desigualdade, inerente ao sistema capitalista (MARSHALL apud SANTOS, 2000a, p.8). Nos pases perifricos, essa contradio profundamente sentida por grande parte da popula-

mente associadas a essa palavra como formas particulares de uma ordem muito mais geral que a da distribuio sensvel dos corpos em comunidade (RANCIRE, 1996a, p.372). E agir signicando, a partir do termo grego archein, iniciar, comandar, isto , ser livre e, tambm, do termo latim agere = pr em movimento, desencadear um processo (ARENDT, 1993, p.121/122).16

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o, fazendo com que os no cidados sejam a grande maioria. Portanto, se a poltica a arma de quem est margem dos processos sociais e econmicos, na reivindicao de suas partes, preciso que se faa poltica. Nesse sentido, que a poltica ainda tem algum sentido. Para Hannah Arendt, agir o grande milagre humano, exatamente por representar a potncia de iniciar novos processos, de comear algo novo, mesmo em situaes de impossibilidades innitas (ARENDT, 1993, p.121). Essa idia no nos deixa esquecer que a histria feita, exatamente, de aes humanas que continuamente rompem o processo histrico com novas iniciativas (ARENDT, 1993, p.120). No atual perodo, onde os novos processos, principalmente econmicos, indicam o fechamento do futuro prximo (RIBEIRO & SILVA, 2004a, p.347), necessrio o reconhecimento de conito no territrio, exatamente por representar essa possibilidade de ruptura e de transformao. O conito se torna, portanto, um importante dado do presente, medida que destaca as contradies da sociedade e inscreve no territrio a ao social constantemente ocultada pelo discurso dominante, ajudando a registrar a histria, no s dos vencedores, a partir de sua prpria verso, mas, tambm, a dos vencidos (SANTOS, B.S., 2001). importante considerar que qualquer congurao scio-espacial que se desenhe como uma nova ordem instituda histrica e geogracamente por protagonistas que buscam re-signicar o mundo (GONALVES, 2002b, p.225). O conito traz essa possibilidade (de re-signicar) quando inscrito por sujeitos que pensam, falam, e por isso so iguais e requerem o seu lugar no territrio. As lutas sociais como os exemplos dados rapidamente acima evidenciam essa potncia da ao em tensionar a realidade e que, aqui, se l como capacidade de subjetivao poltica, ou seja:[...] uma capacidade de produzir essas cenas polmicas, essas cenas paradoxais que revelam a contradio de duas lgicas, ao colocar existncias que so ao mesmo tempo inexistncias ou inexistncias que so ao mesmo tempo existncias (RANCIRE, 1996b, p. 52).C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

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Nesse movimento que se impe o reconhecimento dos sujeitos e dos valores desses sujeitos que at ento eram encobertos pela lgica da dominao. essa capacidade dos sujeitos de singularizar o universal17 (RANCIRE, 1996a, p.377) que legitima a cidadania por meio da participao requerida. Ento, onde h conito no signica, como entende o senso comum, que h ausncia de democracia, mas exatamente onde ela est sendo exercida como liberdade de expresso de valores e vontades, como liberdade de ao. Por esse ngulo, a democracia se d pela conquista de direitos, ou melhor, a sociedade democrtica se institui pela [...] abertura do campo social criao de direitos reais, ampliao de direitos existentes e criao de novos direitos (CHAU, 2001, p.433). Com isso, constri-se a cidadania ao avesso daquilo que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de cidadania regulada18 (SANTOS, W., 1994). A cidadania, portanto, uma conquista (SANTOS, M., 2000a, p.07). por essa via que a ao social adquire centralidade em sua potencialidade de dissenso, de requerimento de direitos que a simples declarao, tal como a igualdade, no pressupe sua instituio real.C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

Mas no se pode prescindir que o conito um evento indicativo de uma dinmica scio-espacial especca e que, portanto, precisa ser inscrito no tempo e no espao, atentando para a compreenso das continuidades e das

Essa singularizao do universal pode ser entendida melhor atravs de um exemplo dado por Jacques Rancire: [...] o que Jeanne Deroin fez de maneira exemplar quando, em 1849, se candidatou a uma eleio legislativa qual no podia candidatar-se, isto , demonstrando a contradio de um sufrgio universal que exclua o seu sexo dessa universalidade. Ela se mostra e mostra o sujeito as mulheres como necessariamente includo no povo francs soberano que goza do sufrgio universal e da igualdade de todos perante a lei e ao mesmo tempo como radicalmente excludo. [...] Construindo a universalidade singular, polmica, de uma demonstrao, ela faz o universal da repblica aparecer como universal particularizado, torcido em sua prpria denio pela lgica policial das funes e das parcelas (RANCIRE, 1996b, p.53).17

Wanderley Guilherme dos Santos chama de cidadania regulada o conceito de cidadania cujas razes encontram-se, no em um cdigo de valores polticos, mas em um sistema de estraticao ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estraticao ocupacional denido por uma norma legal (SANTOS, W., 1994, p.68).18

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rupturas que desenvolve (SEOANE & TADDEI, 2000, p.62). indispensvel a identicao dos processos scio-espaciais que o constitui e que so constitudos por ele. Nesse contexto, a anlise da conituosidade traz a possibilidade de apreender como se d, hoje, na cidade contempornea, a democracia; onde se faz poltica e como se faz; quem so os sujeitos polticos e como a cidadania se constri. Por isso, entender a geograa19 desses sujeitos do conito visto nesta dissertao com grande relevncia, a m de contribuir para o entendimento da ao social, atentando para seus potenciais e seus limites. Nesta dissertao, so os camels que ganham evidncia como sujeitos do conito que, ao se inserirem nas ruas das cidades, instalam um dissenso sobre a congurao desse espao. Ao se apropriarem do espao pblico desenvolvem, mesmo que por meio de prticas muitas vezes silenciosas, pequenas resistncias que lhes conferem um contedo poltico. Esse contedo relaciona-se, diretamente, a essa apropriao do espao que instala um dissenso a partir do momento em que cria um contraponto organizao dominante do territrio e, ao mesmo tempo, quando traz tona camels constituem-se em uma parcela da sociedade sem parcela e, no espao pblico, do visibilidade, de imediato, ao dano do desemprego, crescente precarizao das relaes de trabalho e necessria auto-reproduo20. A prpria situao em que se encontram na busca de formas alternativas de sobrevivncia faz com que a sua presena no territrio se torne crtica, instalando, segundo Milton Santos, uma poltica dos de baixo, que alimentada pela simples necessidade de continuar existindo (SANTOS, M.,Geograa no sentido proposto por Carlos Walter Porto Gonalves como forma de signicar a terra, de grafar a terra criando territorialidades (GONALVES, 2002b, p.226).19 20

Esses temas sero retomados no terceiro captulo dessa dissertao.

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C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

alguns dos principais danos da sociedade contempornea. Por esse ngulo, os

2004a , p.133). Assim, pode-se ler essa prtica dos camels, historicamente presente no espao urbano das grandes e mdias cidades brasileiras, como espacialidade da resistncia, conquistada e formalizada na dimenso do cotidiano. Resistncia, sobretudo, no que concerne criao de alternativas que atenuam as desigualdades, funcionando como uma auto-reincluso no mundo do trabalho. Nesse sentido, no se pode atribuir aos camels a categoria excludos, j que participam mesmo que marginalmente do plano econmico. Com isso, associamos os camels noo de homens lentos. Tal noo atribuda por Milton Santos (SANTOS, M., 1994; 2002; 2004a) aos pobres e migrantes que, pela prpria circunstncia em que se encontram no territrio, so condicionados a reavaliar [...] a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e nalidades para os objetos e tcnicas e, tambm, novas articulaes prticas e novas normas na vida social e afetiva (SANTOS, M., 2002, p.326). A noo de homens lentos uma categoria losca de um humanismo concreto (RIBEIRO, 2005a), que nos remete dinmica do espao a partir dos de baixo, dos que esto fora da velocidade dos processos (econmico, poltico, social) hegemnicos que, diga-se de passagem, isso, uma valorizao desses outros espao-temporalidades presentes na cidade, reconhecendo valores nessas aes e, dessa forma, desnaturalizando a pobreza e (re)colocando uma nova centralidade no social. Os camels, em sua grande maioria, mesmo considerando-se a diversidade de situaes que permeia essa prtica, fazem parte dessa categoria da existncia21, ajustando-se de maneira insubordinada conjuntura. Essa orC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

a grande maioria da populao dos pases perifricos proporcionando, com

O homem lento, segundo Ana Clara Torres Ribeiro, a [...] verdadeira categoria da reexo existencialista dos praticantes do espao. Essa categoria orienta a compreenso das relaes inteligentes com o prtico inerte local (SARTRE, 1967), que so indispensveis sobrevivncia dos que no dispem dos recursos que permitem, s classes mdias e altas, omitir o trabalho morto concentrado nos lugares e as rugosidades e interstcios que retm a ao dominante, possibilitando a permanncia do mais fraco nos territrios desenhados para impedir sua presena (RIBEIRO, 2001/02, p.37).21

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ganicidade, essa capacidade de adaptar-se constitui, segundo Milton Santos, uma grande riqueza, pois lhes garante um autntico pragmatismo existencial (SANTOS, M., 2004a, p.134). Nas palavras de Ana Clara Torres Ribeiro, [...] so os que experimentam a escassez22 que precisam desvendar as mltiplas aes possveis permitidas pelo espao herdado e costurar projetos num tecido social esgarado e precrio (RIBEIRO, 2005a, p.97). Contudo, essa auto-reincluso dos camels ocorre apenas no plano econmico; dicilmente conseguem incluir-se sem deformaes no plano moral (MARTINS, 1997, p.33). Como exemplo disso, podemos recorrer s inmeras aes repressivas que sofrem e que vo de encontro idia de polcia proposta por Jacques Rancire (RANCIRE, 1996a; 1996b). Apesar da visibilidade autorizada pela presena nas ruas, dicilmente conseguem construir um espao de argumentao, ou seja, um espao pblico onde os seus valores possam ser expressos, onde novos direitos possam ser propostos, onde a sua fala se torne possvel. Assim, pode-se dizer, usando uma expresso de Antonio A. Arantes Neto, que esses sujeitos so culturalmente invisveis (ARANTES NETO, 2000, p.115), tendo, com isso, a sua existncia transformada em inexistncia. cilmente so confrontadas como portadoras de valores e, sobretudo, como uma nova (e factvel) possibilidade de uso da cidade. No se pode deixar de considerar que a prpria articulao entre legalidade e ilegalidade, contida na prtica dos camels, relativa tanto questo do uso do espao urbano, quanto problemtica do contrabando e da sonegao de impostos, diculta a armao de direitos e o reconhecimento de sua identidade. No entanto, essa negao s colabora para o prosseguimento daA escassez, como j dito, no se limita apenas ausncia de condies materiais. No caso especco dos camels, ela est relacionada tanto questo do desemprego, quanto ausncia de reconhecimento da espacialidade desses sujeitos enquanto parte constituinte do territrio.22

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Dessa perspectiva, as lutas que desenvolvem pela apropriao do espao, di-

desigualdade e para o acirramento dos conitos. Nesse contexto, os camels resistem por meio de tticas (CERTEAU, 2002) e tentam dentro de suas circunstncias - impor suas especicidades, isto , seu modo prprio de permanecer no territrio. Um modo que, na dimenso cotidiana, adquire o estatuto de saber duramente construdo na experincia urbana (RIBEIRO, 2000). Na atualidade, cresce cada vez mais nas cidades brasileiras essa prtica e, conseqentemente, crescem os conitos entre camels, poder pblico e comerciantes, demonstrando a implicao de uma ampla problemtica e, principalmente, evidenciando a diversidade de racionalidades envolvidas na produo e no uso de um determinado lugar. Dessa forma, a leitura da espacialidade dos camels obriga o reconhecimento da complexidade do espao urbano, expressa na multiplicidade de apropriaes (materiais e imateriais) que os lugares conformam e em sua coexistncia conituosa. Portanto, iluminar essas outras existncias que se realizam na cidade se torna fundamental, sobretudo no sentido de confrontar a idia, amplamente difundida, da cidade do pensamento nico (ARANTES, et al., 2002). Assim, rem reconhecidos e valorizados e, ainda, vozes a serem ouvidas e inscritas na formulao dos futuros possveis (RIBEIRO, 2000, p.240).C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

como Ana Clara Torres Ribeiro, acredita-se que ainda [...] existem atos a se-

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ENTRE A RAZO DE DOMINAO E A RAZO COMUNICATIVA

UM OLHAR SOBRE A CIDADE:

A Razo, sinnimo de liberdade para os pensadores do Iluminismo, atinge o sculo XX absorvida pelo capital, reduzindo-se, com isso, razo econmica (QUEIROGA, 2001, p.21). Nesse sentido, pode-se dizer que o projeto original do Iluminismo23, onde o homem seria racionalmente livre para construir o seu destino, no se realiza. Segundo Eugenio Queiroga, trata-se, efetivamente, de uma metamorfose, da razo iluminista para uma razo de dominao, onde a primeira vira apenas ideologia da segunda (QUEIROGA, 2001, p.21). essa racionalidade24 econmica que vem conduzindo os processos de modernizao das cidades e radicalizando a experincia urbana. Presenciamos, portanto, cada vez mais, sobretudo hoje, com a globalizao econmica, um processo de racionalizao que se entende, aqui, como a ampliao das esferas sociais, que cam submetidas aos critrios da deciso racional previamente formulada e dirigida a ns especcos, que, segundo Jrgen Habermas, j atingiu a economia, a cultura e a poltica. Considerando o espaoC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

(HABERMAS, 1987, p.45). Nesse processo, prevalece a ao instrumental,

O Iluminismo foi, [...] apesar de tudo, a proposta mais generosa de emancipao jamais oferecida ao gnero humano. Ele acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstio. Props ideais de paz que at hoje no se realizaram. Mostrou o caminho para nos libertarmos do reino da necessidade, atravs do desenvolvimento das foras produtivas. Seu ideal de cincia era o de um saber posto a servio do homem [...] Sua moral era livre e visava uma liberdade concreta, valorizando como nenhum outro perodo a vida das paixes e pregando uma ordem em que o cidado no fosse oprimido pelo Estado [...] e a mulher no fosse oprimida pelo homem. Sua doutrina dos direitos humanos era abstrata, mas por isso mesmo universal, [...] suscetvel de apropriaes sempre novas e gerando continuamente novos objetivos polticos (ROUANET, 1987 apud QUEIROGA, 2001, p.19).23

Seguindo o pensamento de Max Weber, Jrgen Habermas dene a racionalidade como a forma da actividade econmica capitalista, do trfego social regido pelo direito privado burgus e da dominao burocrtica (HABERMAS, 1987, p.45).24

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uma instncia social, ele tambm no escapa desse processo. Mas atravs da tcnica, contida nas aes e nos objetos, que podemos falar em espao racional (SANTOS, M., 2002, p.294). A cada modernizao o espao chamado a adaptar-se nova lgica da produo, isto , novos sistemas tcnicos so introduzidos no espao, intencionalmente, buscando a realizao de determinados projetos. A que ocorre a produo de um espao racional que [...] supe uma resposta pronta e adequada s demandas dos agentes, de modo a permitir que o encontro entre a ao pretendida e o objeto disponvel se d com o mximo de eccia (SANTOS, M., 2002, p.300). O espao, nesse sentido, disciplinado de acordo com o projeto dos agentes hegemnicos, funcionando como condio das aes de alguns e como controle das aes de outros. Flix Guattari chama esse processo de alisamento do espao onde ocorre uma reterritorializao capitalstica, portanto, articial, apagando ou ao menos constrangendo traos culturais originais (GUATTARI, 1985). Pode-se fazer, com isso, uma aproximao com o que Milton Santos chama de tecnoesfera e psicoesfera (SANTOS, 1994). No espao, a tecnoesfera o resultado da articializao da materialidade que, juntamente com a psicoesfera, controlam o meio tcnico-cientco-informacional. Assim, a matematizao do espao o torna propcio a uma matematizao da vida social [...], instalando no s as condies do maior lucro possvel para os mais fortes, mas, tambm, as condies para a maior alienao possvel, para todos (SANTOS, 1994, p.17/18). Na atual fase do capitalismo, as aes conduzidas pela racionalidade instrumental e apoiadas no conhecimento tcnico, cientco e na informao, adquirem um crescente poder de dirigir e transformar o mundo de todos os homens (HABERMAS, 1987, p.95). Quanto mais o espao se racionaliza mais os sujeitos que nele vivem so absorvidos por essa racionalidade, experimentando, portanto, uma existncia empobrecida, alienada, controlada pelos manC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

resultado da construo dos hbitos, comportamentos, desejos, organizam e

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damentos do tempo hegemnico. Mas nem tudo absorvido e conduzido por essa racionalidade dominante25. Nas cidades, sobretudo dos pases perifricos, a seletividade com que os investimentos em modernizaes as atingem faz com que esse processo seja acompanhado por uma profunda desigualdade scio-espacial. Assim, ante o espao racional, co-existem outros espaos, menos tecnicizados e menos normados, tecidos por aes fundadas em outras racionalidades (SANTOS, M., 1994; 2002). preciso ressaltar que essas diferenciaes no se limitam apenas ao acesso aos bens materiais; envolvem, tambm, diferentes modelos culturais. essa diversidade scio-espacial que, segundo Milton Santos, compe nas cidades dos pases perifricos uma exibilidade tropical por serem, de um lado, rgida e originalmente vocalizadas para os interesses internacionais e, por outro, dotadas de uma exibilidade dada pela prpria congurao scio-espacial desigual, o que resulta na realizao de outros tipos de aes, outros tipos de capital, outros tipos de trabalho, servindo como resistncia para a difuso generalizada da racionalidade capitalista (SANTOS, M., 1994, p.79).C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

Hoje, com o processo de globalizao econmica em andamento, a produo da escassez nos pases perifricos acelerada, construindo, com isso, uma base cada vez maior para que a racionalidade hegemnica seja contrariada (SANTOS, 2002, p.307). nesse sentido que Milton Santos nos fala que, na cidade, as irracionalidades26 se criam mais numerosas e incessantemente

E, diga-se de passagem, dominante no do ponto de vista da extenso, mas no que diz respeito conduo dos processos econmicos e polticos (SANTOS, M., 1994, p.76).25

O que muitos consideram, adjetivamente, como irracionalidades e, dialeticamente, como contraracionalidade, constitui, na verdade, e substancialmente, outras formas de racionalidade, racionalidades paralelas, divergentes e convergentes ao mesmo tempo. [...] O fato de que a produo limitada de racionalidade associada a uma produo ampla de escassez conduz os atores que esto fora do crculo da racionalidade hegemnica descoberta de sua excluso e busca de formas alternativas de racionalidade, indispensveis sua sobrevivncia. A racionalidade dominante e cega acaba por produzir os seus prprios limites (SANTOS, M., 2002, p.309/310).26

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que as racionalidades, sobretudo quando h, paralelamente, produo de pobreza (SANTOS, M., 2004a, p.115). Assim, na atualidade, a desejada expanso das reas luminosas defronta-se, no lugar, com essas espacialidades construdas por grande parte da populao que encontra formas alternativas de sobrevivncia escapando da racionalidade e da regulamentao direta dos agentes hegemnicos (SANTOS, M., 2002). Como exemplo, destacamos, alm da prtica dos camels, a histrica virao popular (ARANTES NETO, 2000; RIBEIRO, 2002) no que se refere auto-produo da moradia, formalizada em favelas e loteamentos ilegais. nesse contexto que, paralelamente racionalidade dominante, instalam-se na cidade essas outras racionalidades, muitas delas permeadas por relaes de proximidade e comunicao. Dessa perspectiva, pode-se fazer uma aproximao com a razo comunicativa27 proposta por Jrgen Habermas. Para este autor, alm da razo instrumental que conduz as esferas da economia e da poltica (Estado) h uma razo objetivada na comunicao lingstica cotidiana (HABERMAS, 1987, p.57). Essa razo pertenceria, assim, ao mundo da vida, possuindo uma natureza intersubjetiva, que se constri na interao social, e tendo como ponto deC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

partida um entendimento recproco (HABERMAS, 2000, p.439). Diferentemente da razo sistmica, voltada dominao, a razo comunicativa abarca argumentaes pautadas, simultaneamente, no mundo objetivo (verdade proporcional), num mundo social (justeza normativa) e num mundo subjetivo (veracidade subjetiva e adequao esttica), envolvendo, com isso, um contedo de emoo prprio ao mundo da vida. Essa razo encontra-se na dialtica do saber e no-saber, que a lgica do entendimento mtuo envolve,

Nessa proposta de razo comunicativa, Jrgen Habermas tenta resgatar o poder emancipatrio da Razo. Segundo ele, a modernidade um projeto inacabado e, nesse sentido, este autor recusa-se a reduzir a noo de racionalidade razo instrumental (HABERMAS, 2000).27

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e sua potencialidade est, exatamente, na base da validade do discurso28 (Habermas, 2000, p.437/438). A comunicao proposta por Habermas, no entanto, no se aproxima do consenso - to desejado pelos agentes hegemnicos - que se d por meio do convencimento, mas de um entendimento que tem o prprio dissenso como parte constitutiva. esse campo de argumentao possibilitado pela comunicao que remete idia de espao pblico, ou seja, de novos cdigos e novas relaes sendo tecidos na convivncia cotidiana. Assim, a ao comunicativa, fundada no debate e no entendimento, confere uma legitimidade coletiva razo. Comunicar, lembra-nos Milton Santos, signica pr em comum, e nesse movimento que a diversidade de interpretaes das coisas do mundo entra em contato e, a partir do reconhecimento recproco, realiza-se a verdadeira negociao social (SANTOS, M., 2002, p.316). A comunicao aparece para estes dois autores como um importante dado, sobretudo, por trazer a possibilidade de ampliao da conscincia, produzida no choque entre cultura objetiva e cultura subjetiva (SANTOS, M., 2002, p.326).C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

Mas no se pode perder de vista que na espacialidade cotidiana que essa comunicao se potencializa. O cotidiano uma importante dimenso do espao, se considerado portador do passado como herana e do futuro como projeto (SANTOS, 1996, p.10). Nesse sentido, onde repeties e rupturas interagem; o momento presente da constante mutao do espao. Cabe ressaltar que essa valorizao no signica um [...] elogio irresponsvel do cotidiano, reprodutor de tantos preconceitos e subordinaes, mas, sim, reconhec-lo como dimenso que permite a apreciao de [...] contextos, lugares e narrativas (RIBEIRO, 2001/02, p.37).

Essa racionalidade comunicativa lembra as mais antigas representaes do logos, na medida em que comporta as conotaes da capacidade que tem um discurso de unicar sem coero e instituir um consenso no qual os participantes superam suas concepes inicialmente subjetivas e parciais em favor de um acordo racionalmente motivado (HABERMAS, 2000, p.438).28

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Os camels se realizam nessa dimenso, aproveitando as oportunidades e as lacunas da ordem dominante e construindo redes de socialidade que contribuem para a sua permanncia no territrio. Nas palavras de Ana Clara Torres Ribeiro, na agncia cotidiana que o homem lento, conduzido pela cultura ordinria, aparece como portador de futuros e tambm como inventor de solues (RIBEIRO, 2005a, p.96). O cotidiano, deste modo, revelador da dialeticidade do espao geogrco. Nele, normas e espontaneidade, tecnoesfera e psicoesfera, pragmatismo e originalidade formam os pares de variveis que permitem uma anlise geogrca, reconhecendo seu contedo poltico, medida que evidencia as diferenas e, com isso, aconselha a tomada de posio (SANTOS, M., 1996). Desse ngulo, Milton Santos destaca o papel fundamental dos pobres na construo do futuro. Os pobres, homens lentos, vivem mais o espao devido sua prpria condio de sobrevivncia. A acomodao na ordem dominante no lhes permitida, no podendo, portanto, desconsiderar as rugosidades do espao e, com isso, descobrem recursos nos lugares menos previsveis e criam novas normas para a vida. nessa [...] esfera comunicacional, que eles, diferentemente das classes ditas superiores29, so fortemente ativosC A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

(SANTOS, M., 2002, p.326) e orientam-se para o futuro. Assim, [...] ao lado da busca de bens materiais nitos cultivam a procura de bens materiais innitos como a solidariedade e a liberdade: estes, quanto mais se distribuem, mais aumentam (SANTOS, M., 2004a, p.130). Os homens lentos vivem, portanto, uma existncia permeada por outros valores alm dos hegemnicos, e esses valores tambm conduzem suas aes. Nesse movi-

Quem na cidade, tem mobilidade e pode percorr-la e esquadrinh-la acaba por ver pouco da Cidade e do Mundo. Sua comunho com as imagens, freqentemente prefabricadas, a sua perdio. Seu conforto, que no desejam perder, vem exatamente do convvio com essas imagens. Os homens lentos, por seu turno, para quem essas imagens so miragens, no podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginrio perverso e acabam descobrindo as fabulaes (SANTOS, M., 1994, p.84).29

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mento acabam por criar um contraponto razo hegemnica, servindo como resistncia localmente construda. H, deste modo, uma co-presena de espao-temporalidades na cidade que, geralmente, negada na apreenso e na interveno no espao. Isso, sem dvida, colabora para a efetivao dos processos de segregao e fragmentao. Assim, preciso reconhecer a cidade como o lugar onde operam mltiplas espacialidades, tecidas a partir de diferentes matrizes de racionalidade (GONALVES, 2002b), que apreendidas dialeticamente constituem a realidade scio-espacial. Da a complexidade desse meio construdo por um destino coletivo e plural, numa trama de relaes desiguais, permeadas por interaes de cooperao e conito que levam a uma constante negociao (SANTOS, M., 1996). A cidade, portanto, o lugar do conito e no do consenso; da pluralidade e no de uma homogeneidade alienante; o lugar da velocidade e dos tempos lentos; da racionalidade hegemnica e da razo comunicativa. por esse ngulo, que deve ser apreendida como o lugar do debate constante, onde novos contedos (culturais, normativos) possam ser propostos, garantindo, com isso, a concretizao da liberdade (SOUZA, 1997). Dessa perspectiva, o lugar como um recorte espacial de anlise, nos permite apreender essas dinmicas microscpicas (CERTEAU, 2002) do cotidiano e, assim, nos aproxima do espao vivido. O lugar onde a existncia se realiza, onde a possibilidade de ao se torna concreta e onde o tecido social se (re)constri diariamente. No lugar, possvel apreender o autntico movimento da vida.C A P T U L O I - R E C O N H E C E N D O O E S PA O G E O G R F I C O E S U A S C O N T R A D I E S

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O CENTRO DE RIBEIRO PRETO: O LUGAR COMO RESISTNCIA

2.

BREVE HISTRICO DO PROCESSO DE POPULARIZAO

O CENTRO DE RIBEIRO PRETO:

Os centros das cidades, em geral, so reas especialmente ricas, precisamente por conterem uma pluralidade de pessoas e, portanto, de espacialidades, o que favorece a apreenso da contradio existente no uso do espao geogrco. Com isso, o centro da cidade de Ribeiro Preto o lugar que privilegiamos nesta dissertao, destacando a presena dos camels em sua relao com esse espao e com as outras espacialidades ali presentes. Dessa perspectiva, busca-se destacar, nesta parte do trabalho, os aspectos histricos relevantes que contriburam de alguma forma para a realidade atual dessa rea da cidade. Hoje, a dinmica do centro30 apresenta uma problemtica que se liga, diretamente, maneira como se do as transformaes na estrutura urbana da cidade. preciso destacar que, desde a dcada de 30, com a crise do caf que atingiu diretamente a produo dessa regio, suas cidades tiveram que encontrar alternativas econmicas de sobrevivncia. Ribeiro Preto, devido, sobrefuncional, foi armando-se como cidade com forte potencial para o comrcio e a prestao de servios, tornando-se, ao longo dos anos, um plo regional desses setores (RIBEIRO PRETO, 1994, p.08). O centro, at a dcada de 60, apresentava-se como uma rea signicativa para o conjunto da populao, j que concentrava os principais equipamentos urbanos, residncias e, sobretudo, um intenso comrcio. No entanto,CAPTULO II O CENTRO DE RIBEIRO PRETO: O LUGAR COMO RESISTNCIA

tudo, existncia de um comrcio bastante estruturado e uma estrutura viria

Quando nos referimos ao centro da cidade de Ribeiro Preto, estamos falando da rea compreendida pelas Avenidas Francisco Junqueira, Jernimo Gonalves, Nove de Julho e Independncia, o que constitui o chamado quadriltero central. Essa leitura - que se diferencia de alguns estudos realizados sobre o centro pauta-se na contigidade da rea, o que compe uma visvel unidade territorial.30

O USO DO TERRITRIO PELOS HOMENS LENTOS: A EXPERINCIA DOS CAMELS NO CENTRO DE RIBEIRO PRETO

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nessa dcada que o centro comea a apresentar alguns sinais de desvalorizao imobiliria, impulsionada31, principalmente, pela aprovao de novos loteamentos em grandes reas da cidade (RIBEIRO PRETO, 1994). A partir de ento, ocorre um expressivo abandono da rea central pela elite e, conseqentemente, um deslocamento do comrcio de alto padro. O desinteresse da elite local pelo centro voltada agora para os vetores sudeste e sul afeta diretamente os investimentos pblicos e privados dessa rea. Esse processo de abandono dos centros das cidades pela elite interpretado por outros autores como principal varivel para a degradao fsica e para a desvalorizao imobiliria dessas reas em vrias cidades brasileiras, evidenciando uma proximidade no processo de urbanizao em todo o pas, sobretudo na regio sudeste (VILLAA, 2004; SILVA, 2004; FRGOLI JUNIOR, 2000). Desse ngulo, Flvio Villaa destaca como o discurso dominante, na maioria das vezes, tenta conferir natureza as causas dos problemas sociais (VILLAA, 1999, p.228). Assim, segundo este autor, o rtulo deteriorao que se liga idia de envelhecimento32, ou seja, a um processo natural , criado pelas elites para explicar a situao dos centros urbanos, tem a pretenso de funcionar como ocultamento de sua responsabilidade nesse processo (VILLAA, 1999, p.228/229). A sada da elite do centro da cidade tambm diferenciarem-se do conjunto da populao (SILVA, 2004, p.56). No centro de Ribeiro Preto, bastante evidente que o abandono dessa rea pela elite a principal varivel de sua desvalorizao, o que resulta na degradao de sua materialidade. Nesse processo, verica-se, na dcada deCAPTULO II O CENTRO DE RIBEIRO PRETO: O LUGAR COMO RESISTNCIA

atribuda, por alguns autores, a um anseio de segregarem-se espacialmente e

A expanso da malha urbana no nal da dcada de 60, segundo Ozrio Calil Junior, estimulada pelo Plano de Vias, que prev uma estrutura viria que direciona o crescimento da cidade, alm de potencializ-la como plo regional ao articul-la rede rodoviria estadual. Segundo esse autor, esse plano [...] concebido tendo como premissas o novo modelo de acumulao do capital, que tem a indstria automobilstica como propulsora desse modelo (CALIL JUNIOR, 2003).31

Tambm fazem referncia a esse sentido as expresses Decadncia, Centro Velho e, mais recentemente, Revitalizao, demonstrando que o discurso dominante busca, constantemente, atualizarse.32

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70, o surgimento de novos eixos comerciais voltados ao consumo da classe alta, iniciando essa reorganizao pela rua Baro do Amazonas (MAPA 2). Isso tambm ocorre na avenida Nove de julho, at ento de uso residencial, e que pass