MIRANTE

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Subir a montanha Em 1336, Francesco Petrarca atingiu o topo do monte Ventoux, na Provence. O nome do monte vem do fato de ventar terrivelmente em seu topo, e a viagem era bastante complicada naquela época. Mas o pensador italiano convenceu o irmão e dois servos a acompanhá-lo, apenas porque queria enxergar aquilo que existia montanha abaixo com outra perspectiva. Ao conquistar seu monte-mirante, voltar para casa e escrever o relato da expedição, Petrarca plasmou para o Ocidente a noção de paisagem a construção que o homem realiza para apreender o mundo que o cerca para se comparar e se medir com ele. Das geleiras de Caspar Friedrich à onda de Hokusai; do céu de Vermeer às ilhas encapadas por Christo; do sertão de Deus e o diabo ao navio iluminado de Amarcord: tudo é reinvenção da natureza e daquilo que foi erguido sobre ela. Tudo é filtro para compreender como aquilo que nos invade os olhos ecoa na cabeça, no coração e nas entranhas, modificando paisagens internas. Sim, há um horizonte do lado de dentro, como nos provam os artistas reunidos nesta exposição. Nas últimas décadas, a arte vem embaralhando paisagem, natureza-morta e retrato, sampleando fragmentos destes estatutos que orientaram a pintura clássica para criar categorias ainda não nomeadas, feitas de fusões e fragmentos. Na subida da encosta do Joá, construímos este nosso MIRANTE trazendo na bagagem a vertigem e o estranhamento desta paisagem híbrida. Encontramos nesta seleção de artistas os que atualizam e subvertem a relação com o sublime e com o “natural”. Também vemos a relação com a arquitetura e com a casa e um mergulho na piscina dos afetos, da subjetividade e da memória. No jogo de espelhos com o mundo, somos constantemente engolidos, mas também podemos comer na mesa, na cama. Somos névoa e nuvem, estados que se precipitam. Miramos a miragem. Navegamos em nós mesmos como a canoa da Terceira margem de Guimarães Rosa, identidades fluidas: “eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio”. Daniela Name

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Texto da crítica de arte Daniela Name para a exposição "Mirante", inaugurada na MUV Gallery, no Joá, Rio de Janeiro, em 7 de setembro de 2013.

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Subir a montanha

Em 1336, Francesco Petrarca atingiu o topo do monte Ventoux, na Provence. O

nome do monte vem do fato de ventar terrivelmente em seu topo, e a viagem era bastante

complicada naquela época. Mas o pensador italiano convenceu o irmão e dois servos a

acompanhá-lo, apenas porque queria enxergar aquilo que existia montanha abaixo com

outra perspectiva.

Ao conquistar seu monte-mirante, voltar para casa e escrever o relato da expedição,

Petrarca plasmou para o Ocidente a noção de paisagem – a construção que o homem realiza

para apreender o mundo que o cerca para se comparar e se medir com ele. Das geleiras de

Caspar Friedrich à onda de Hokusai; do céu de Vermeer às ilhas encapadas por Christo; do

sertão de Deus e o diabo ao navio iluminado de Amarcord: tudo é reinvenção da natureza e

daquilo que foi erguido sobre ela. Tudo é filtro para compreender como aquilo que nos

invade os olhos ecoa na cabeça, no coração e nas entranhas, modificando paisagens

internas.

Sim, há um horizonte do lado de dentro, como nos provam os artistas reunidos nesta

exposição. Nas últimas décadas, a arte vem embaralhando paisagem, natureza-morta e

retrato, sampleando fragmentos destes estatutos que orientaram a pintura clássica para criar

categorias ainda não nomeadas, feitas de fusões e fragmentos.

Na subida da encosta do Joá, construímos este nosso MIRANTE trazendo na

bagagem a vertigem e o estranhamento desta paisagem híbrida. Encontramos nesta seleção

de artistas os que atualizam e subvertem a relação com o sublime e com o “natural”.

Também vemos a relação com a arquitetura e com a casa e um mergulho na piscina dos

afetos, da subjetividade e da memória. No jogo de espelhos com o mundo, somos

constantemente engolidos, mas também podemos comer – na mesa, na cama.

Somos névoa e nuvem, estados que se precipitam. Miramos a miragem. Navegamos

em nós mesmos como a canoa da Terceira margem de Guimarães Rosa, identidades fluidas:

“eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio”.

Daniela Name