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UNIVERSIDADE DE COIMBRA Miriam Andreia Real Gomes Mendes UNIÃO EUROPEIA: a construção da unidade no respeito pela diversidade ___________________________________________ Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2009

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Miriam Andreia Real Gomes Mendes

UNIO EUROPEIA: a construo da unidade no respeito

pela diversidade

___________________________________________

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

2009

II

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Miriam Andreia Real Gomes Mendes

UNIO EUROPEIA: a construo da unidade no respeito

pela diversidade

___________________________________________

Dissertao de Mestrado em Estudos Europeus

apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

sob a orientao do Professor Doutor Fernando Jos de Almeida

Catroga

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

2009

III

R E S U M O

A autora da presente dissertao aborda o processo da construo europeia numa fase em que, na

sua ptica, so de novo evidentes alguma hesitao e muitas dvidas sobre o caminho a seguir;

usando de um paralelismo metafrico, assente no exemplo das vias de comunicao terrestre, a sua

anlise aponta para uma opo que arrisca prosseguir no sentido da criatividade, da inovao, at

mesmo no risco de abrir e trilhar pistas inditas, sem, contudo, perder o p relativamente ao que j

encontra conquistado e consolidado.

Tendo como pano de fundo os derradeiros impasses que afectaram a ratificao do Tratado de

Lisboa pelos Estados-membros, entende colocar todo o nfase na necessidade de inventariar e

analisar os principais factores que considera poderem contribuir para o reforo da coeso na Unio

Europeia - as foras centrpetas - bem como aqueles que, pelo contrrio, se revelam ou parecem

revelar-se como possveis constrangimentos (bottlenecks) a essa pretenso - as foras centrfugas.

Daqui avana para uma apreciao detida de cada um deles, procurando nas suas razes e no seu

trajecto histrico as causas do posicionamento que assumem, favorvel ou no integrao e

consolidao da construo europeia; e busca nuns, evidenciar a sua propenso e potencialidades

para operar a incluso e unidade e, nos outros, descobrir formas de recuperar as suas caractersticas

ainda passveis de terem grande utilidade para o objectivo prosseguido.

E isto mesmo quando alguns desses factores e elementos aparentam j nada ter a oferecer ao

projecto, quando, afinal e bem vistas as coisas, as tarefas da reconverso, da reformulao e da

adaptabilidade que sobre eles incidem (tarefas, sem dvida, exigentes, reclamando e impondo um

grande rigor analtico e exegtico), se revelam surpreendentemente teis e eficazes no

aproveitamento de mecanismos precocemente descartados e marginalizados, s vezes at por

questes de mero modismo ou de formalismos estreis.

Neste sentido, temas como o Estado-nao, a problemtica multifacetada da fronteiras, as pulses

autonmicas e as regies autnomas, os mais diferentes modelos de regionalismo e os mltiplos

formatos e facetas do federalismo vo ser escalpelizados sob vrios pontos de vista, com o objectivo

de neles encontrar um tronco comum que contribua para que a Unio Europeia possa reforar a

construo da sua unidade com mais solidez, com maior legitimao, com crescente participao dos

povos que nela vivem; e assim sendo, logo com maior legitimidade, na plena afirmao dos seus

valores de democraticidade, diversidade, verdadeira igualdade de oportunidades, defesa e proteco

do meio ambiente, progressivo desenvolvimento social e econmico e com a incontornvel e

imprescindvel procura de um mundo com um sentimento real de paz e segurana para todos.

IV

Essa ser, muito provavelmente, a Unio Europeia que os pais fundadores e muitos outros dos

seus posteriores artfices um dia ousaram sonhar (naturalmente, dentro dos respectivos quadros

contextuais histricos e das vises pessoais de cada um), um objectivo primordial que s actuais e

futuras geraes aderentes a este ideal cumpre continuar a prosseguir, batendo-se por um projecto

que, face s ambiciosas e positivas finalidades visadas, nunca poder ser dado como concludo.

V

RSUM

L'auteur de la prsente dissertation aborde le processus de la construction europenne dans une

phase o, dans son optique, sont nouveau videntes quelque hsitation et beaucoup de doutes sur le

chemin suivre; en utilisant d'un paralllisme mtaphorique, bas dans l'exemple des manires de

communication terrestre, son analyse indique pour une option qui risque de continuer dans le sens de

la crativit, de l'innovation, mme si dans le risque d'ouvrir et marcher des voies indites, sans,

nanmoins, perdre le pied l'gard dont dj trouve conquis et consolid.

En ayant comme chiffon de fond les dernires impasses qui ont affect la ratification du Trait de

Lisbonne par les tats membres, comprend placer tout l'accent dans la ncessit d'inventorier et

analyser les principaux facteurs qui considre pouvoir contribuer au renforcement de la cohsion

dans l'Union Europenne - les forces centriptes - ainsi que ceux qui, par contre, se rvlent ou

semblent se rvler comme de possibles contraintes ( bottlenecks ) cette prtention - les forces

centrifuges.

D'ici elle avance pour une apprciation retenue dans chacun d'eux, en cherchant dans leurs racines

et dans son passage historique les causes du positionnement qui supposent, favorable ou non

l'intgration et la consolidation de la construction europenne ; et elle cherche dans quelques,

prouver sa propension et potentialits pour oprer l'inclusion et l'unit et, dans les autres, dcouvrir

des formes de rcupration de leurs caractristiques encore passibles d'avoir une grande utilit pour

l'objectif continu.

Et ceci mme quand certains de ces facteurs et lments semblent dj rien ne pas avoir offrir au

projet, quand, aprs tout et bien vues les choses, les tches de la reconversion, de la rformation et de

l'adaptabilit (sans aucune doute exigeants, en se plaignant et en imposant une grille svrit

analytique et exgtique que sur eux arrivent), se rvlent surprenamment utiles et efficaces dans

l'exploitation de mcanismes prcocement carts et marginaliss, quelquefois, mme par des

questions simples modismes ou de formalismes striles.

Dans ce sens, des sujets comme l'tat-nation, la problmatique facettes multiples des frontires,

les pulsions autonomiques et les rgions indpendantes, les plus diffrents modles de rgionalisme

et les multiples formats et les facettes du fdralisme vont tre analyss critiquement sous plusieurs

points de vue, avec l'objectif d'eux trouver un tronc commun qui contribue que l'Union europenne

puisse renforcer la construction de son unit avec plus solidit, avec plus grande lgitimation, avec

plus grande participation des peuples que y vivent et meurent ; et, ainsi en tant, ensuite avec plus

grande lgitimit, dans la complte affirmation de leurs valeurs de dmocratisation, de diversit, de

VI

vraie galit d'occasions, de dfense et de protection du demi environnement, de progrs et de

dveloppement social et conomique et avec l'incontournable et indispensable dfense d'un monde

avec un sentiment rel de paix et de scurit pour tous.

Celui-l serait, trs probablement, l'Union europenne que les parents fondateurs et beaucoup

autres de leurs postrieurs artisans un jour ont os rver (naturellement, l'intrieur des respectifs

tableaux contextuels historiques et des visions personnelles de chacun), un objectif primordial qui

accomplit continuer par les actuels et futures gnrations qui croient dans cet idal, en se battant par

un projet qui, face aux ambitieuses et positives finalits vises, jamais ne pourra pas tre donn

comme non conclu.

VII

ABSTRACT

The author of this thesis discusses the process of European integration when, in her view, are

obvious some hesitation and many questions about the path to be followed; using a metaphorical

parallelism, based on the example of land communication ways, her analysis points to an option that

take the risks to proceed in the direction of creativity, of innovation, even at the risk of opening

innovatory clues to tread, without, however, lose the foot regarding what is already won and

consolidated.

Having as background the remaining impasses that have affected the ratification of Treaty of

Lisbon by Member States, puts all the emphasis on need to record and analyse the main factors that

considers to contribute to the strengthening of cohesion in the European Union - the centripetal forces

- as well as those who, on the contrary, are or may seem to be possible constraints ("bottlenecks") -

the centrifugal forces.

Here, she advances for an appraisal arrested in each one of them, looking at their roots and historic

route of causes which are (or not) favourable positioning, the integration and consolidation of

European integration; and seek some highlight the propensity and potential to operate the inclusion

and unity, and, in others, discover ways to revert to its still liable to have great usefulness to the

objective pursued.

And this same when some such factors and elements seem no longer have to offer to project, when,

after all, the tasks of the conversion, recasting and adaptability incising on them (certainly

demanding, complaining and imposing an grid analytical and exegetic rigour), show surprisingly

useful and effective leveraging mechanisms prematurely dropped and marginalised, sometimes even

by merely issues of short-lived buzzword or sterile formalisms.

In this sense, issues such as the nation State, the multifaceted problem of borders, the regional

impulses and autonomous regions, the most different models of regionalism and multiple formats and

facets of federalism will be carefully analysed under multiple points of view, with the aim of them

find a common core that contributes to the European Union can enhance construction of its unit with

more solidity, with greater legitimacy, with greater participation of the people who live and die in its

territory; and so, with greater legitimacy, in the full assertion of its values of democracy, diversity,

genuine equality of opportunities, defence and protection of the environment, progressive economic

and social development and the inevitable and essential defence for a world with a real feeling of

peace and security for everyone.

VIII

This would be, in all likelihood, the European Union that the "founding fathers" and many other of

its subsequent tradesmen have dared to dream one day (of course, within their own historical

contextual frames and personal visions of each), a aim meets continue to proceed by current and

future generations who believe in this ideal, fighting for a project which, given the ambitious and

positive purposes covered, can never be given as completed.

IX

AGRADECIMENTOS

Naturalmente que qualquer trabalho de investigao deste jaez, de maior ou menor dimenso, ser

sempre tributrio de uma rede mais ou menos alargada de contribuies, ajudas, sugestes e toda a

forma de colaboraes, por vezes indetectveis, mas que se tornam frequentemente de muita utilidade

para os autores.

E se verdade que existem os esteios principais e estruturantes, aqueles que so os mais visveis e,

naturalmente, os que maior relevo assumem na consecuo final do trabalho, nunca sero ignorados

nem esquecidos todos os outros, mesmo que, muitas vezes no surjam concretamente referidos, at

por notria impossibilidade prtica; afinal, toda a produo humana, qualquer que seja a sua temtica

e a especialidade versada, nunca deixar de ser o resultado de um esforo colectivo, naturalmente

com diversos nveis de importncia e participao.

Por isso, ao deixar aqui expressos os meus reconhecidos agradecimentos ao Instituto de Histria

Econmica-Social, Instituto de Histria e Teoria das Ideias, Biblioteca Central da Faculdade de

Letras, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e, last but not least, ao Senhor Professor

Doutor Fernando Jos Almeida Catroga, nunca estarei a esquecer os outros, pois a sua interveno foi

tambm para mim deveras importante e significativa.

X

NDICE

INTRODUO .................................................................................................................................... 1

PRIMEIRA PARTE

Foras centrfugas na construo e aprofundamento da Unio Europeia ...................................... 4

1. O Estado-nao e o Estado .............................................................................................................. 4

1.1. O Estado-nao: surgimento e evoluo ...................................................................................... 4

1.2. A crise de soberania do Estado-nao europeu ............................................................................ 8

1.3. Da real necessidade e utilidade do Estado e dos mecanismos que gera o contexto actual ........ 11

1.4. A imprescindibilidade do Estado ............................................................................................... 15

1.5. Fronteira e democracia ............................................................................................................... 18

1.6. A Fronteira enquanto dispositivo: as exigncias da contemporaneidade .................................. 21

1.7. A relevncia da historicidade ..................................................................................................... 23

1.8. A invisibilidade: uma caracterstica intrnseca da fronteira ....................................................... 27

1.9. Trs componentes duma reformulao crtica sobre a fronteira ................................................ 30

1.10. A legitimao das fronteiras da Unio Europeia: o contributo ainda actual do Estado-nao 33

2. As pulses autonmicas e as regies autnomas .......................................................................... 34

2.1. O caso espanhol: reflexo sobre uma proposta de modelo federal ............................................ 34

2.1.1. O que o Federalismo ......................................................................................................... 36

2.1.2. Convenincia da adopo pela Espanha de um modelo federal ......................................... 41

2.1.3. O significado da abertura ao federalismo ............................................................................ 43

2.1.4. Que tipo de federalismo ser o mais adequado ao caso espanhol? ..................................... 47

2.1.4.1. Um federalismo cooperativo, leal e integrador do conjunto ........................................ 47

2.1.4.2. Um federalismo pluralista, respeitador dos factores de diferena ............................... 51

2.2. Itlia: uma experincia pioneira na Europa ................................................................................ 53

2.2.1. A XIII Legislatura (1996/2001): a refundao de Estado regional e a abertura ao

federalismo .................................................................................................................................... 54

2.3. O caso da Blgica a iminente desintegrao de um Estado .................................................... 58

2.3.1. O Estado regional, o federalismo bipolar e a tentao confederal ...................................... 62

2.4. O caso alemo ............................................................................................................................ 64

3. A legitimao das fronteiras da Unio Europeia: o contributo ainda actual do Estado-nao65

SEGUNDA PARTE

Foras centrpetas na construo da Unio Europeia ..................................................................... 66

1. Os Regionalismos e as Regies ...................................................................................................... 66

XI

1.1. A regionalizao em Portugal .................................................................................................... 66

1.1.1. O Municpio ........................................................................................................................ 66

1.1.2. A Provncia e o Distrito: uma querela no mbito da organizao territorial....................... 67

1.1.3. O papel dos Congressos Provinciais e Regionais ............................................................... 68

1.1.4. Regionalismo e patriotismo no Estado Novo ...................................................................... 70

1.1.5. A interveno dos Gegrafos .............................................................................................. 72

1.1.6. Provncia versus Distrito ..................................................................................................... 74

1.1.7. O triunfo do Distrito ............................................................................................................ 77

1.1.8. O III Plano de Fomento e a institucionalizao do planeamento regional .......................... 84

1.1.9. O Regime Democrtico implantado em 25 de Abril de 1974 a Constituio da Repblica

de 1976 .......................................................................................................................................... 85

1.1.10. O referendo sobre a regionalizao efectuado em 1998 ................................................... 86

1.1.11. A Regionalizao em Portugal no dealbar do sculo XXI ................................................ 90

CONCLUSES ................................................................................................................................... 92

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 97

1

In varietate concordia

(Lema da Unio Europeia)

Nada es verdad ni mentira,

Todo es segn el color

Del cristal com que se mira

(Ramn de Campoamor)

UNIO EUROPEIA: A CONSTRUO DA UNIDADE NO RESPEITO PELA

DIVERSIDADE

INTRODUO

O processo de construo da Unio Europeia desembocou, neste final da primeira dcada do sculo

XXI, numa encruzilhada de percursos, cada um deles deixando adivinhar um caminho eivado de

alguns planos inclinados (criados e acicatados pelos interesses nacionais), de diversas superfcies

pouco slidas (na estabilidade e cumprimentos do P.E.C.), contendo no seu traado curvas e

contracurvas sinuosas e assaz fechadas (na poltica externa comum), para alm de outros pontos

negros existentes no traado dessas vias; factores como estes tornam extremamente difcil e

arriscada a opo por aquele que ser o mais seguro e adequado para prosseguir uma viagem que,

certamente, nunca estar definitivamente concluda.

Mas, tal qual escrevia o poeta Antnio Machado, exemplarmente cantado por Joan Manuel Serrat

(caminante no hay camino; se hace camino al andar) e, seguindo nesse sentido, haver que,

efectivamente, ou escolher essas vias que se nos apresentam ou, ento, em alternativa, ir construindo,

passo a passo, com esforo, denodo e inteligncia, o trilho que melhor possa servir os objectivos

traados e o fim que se tem em vista, por mais que saibamos que esta ser uma tarefa sempre

inacabada, pois constantemente requer um repensar das escolhas feitas, uma experimentao contnua

dos seus resultados, uma busca perptua de solues para os novos problemas que despontam e as

exigem.

Se verdade que uma parte do caminho j desbravado desde 1957 nos fez atingir patamares cada

vez mais elevados de cooperao, entendimento, modernidade e desenvolvimento, a par de um

incremento da promoo de mecanismos de negociao destinados, prioritariamente, a resolver

diferendos e conflitos internacionais por essa via, verdade seja dita que este desenvolvimento se

2

pautou por avanos e recuos, acertos e desacertos, confianas e desconfianas, hesitaes,

indefinies e muita burocracia mistura.

Hoje, com o Tratado de Lisboa ainda bloqueado por uma resistncia residual de ltima hora,

assiste-se, de novo, abertura de uma cratera poltica, por onde pretendem emergir as mais variadas e

sui generis expresses de projectos para uma unidade europeia que, no seu mago, at contm

sementes (se no j frutos) mais propensas sua imploso

Talvez se possa afirmar que, actualmente, as tarefas primordiais da construo da U.E. passaro

muito mais por analisar, identificar, estudar exaustivamente e procurar pontos de encaixe, slidos e

bem fundamentados, para questes que, desde h muito, esto a minar e a corroer os ainda frgeis

laos de integrao j constitudos; urge manter, reforar e captar os factores centrpetos que impelem

congregao e localizar, abordar, procurar absorver e integrar os factores centrpetos que a ela

resistem e que a combatem, tendo sempre como limite a real impossibilidade de cumprir essa tarefa

e, assim sendo, avanar para o seguinte passo que, compreensvel e inexoravelmente, ser o da

neutralizao ou excluso, verificada que seja a sua manifesta incompatibilidade.

As questes que se prendem com as problemticas do Estado-nao, a realidade efectiva dos

sentimentos regionalistas e das regies, das pulses autonmicas e das regies autnomas, sugerem

feridas e cicatrizes ainda no devidamente curadas e reintegradas no tecido social europeu, que

devero merecer um estudo cuidado sobre as respectivas razes objectivas; deveremos procurar

perceber a respectiva evoluo histrica, as fundamentaes e o grau de ligao efectiva s

populaes e aos sistemas de implantao, diviso e gesto do territrio, de forma a sabermos

encontrar meios de as compatibilizar e sintetizar no contexto mais global do espao europeu, tendo

em vista a indispensvel perspectiva da sua manuteno o mais prximo possvel da respectivas

configurao e funes actuais, obviamente num quadro de compatibilizao com os princpios

fundamentais de funcionamento e organizao do todo no espao comunitrio.

Neste mbito prope-se, como exemplo concreto a ser estudado, o caso espanhol, visto pela

perspectiva apresentada por Argimiro Rojo Salgado, Professor da Universidade de Vigo, no que diz

respeito eventual implementao de um modelo federal no Estado-nao espanhol, teoria que

ultimamente tem sido objecto de um aceso debate no pas vizinho.

Parece legtimo afirmar que o reforo da unidade e a estruturao das bases polticas da Unio

Europeia indispensvel para que esta se possa apresentar ao mundo, em termos de uma alternativa

credvel, como um bloco econmico, poltico, social e cultural coeso, afirmando-se como uma

referncia incontornvel dos milenrios valores e concepes europeias de democracia e de

liberdade, conjugados com outros que se foram incorporando mais recentemente, como sejam o

3

desenvolvimento sustentvel, a proteco e conservao do meio ambiente e a defesa da paz mundial,

promovendo a negociao como instrumento primordial dos conflitos. Ora, todo este lastro

axiolgico e conceptual vai exigir que, no contexto interno, se ultrapassem as clivagens, se

apaziguem os factores de desagregao, se componham os naturais interesses conflituantes na

procura de uma homogeneizao que, no entanto, nunca poder significa linearidade; e isto porque

so as diferentes realidades especficas dos vrios povos enquadrados dentro do espao da Unio que

lhe conferem a sua matriz, nica e distintiva.

Todavia, para se alcanar esse desiderato exige-se que as solues organizativas e a estruturao

poltica dos rgos dirigentes da Unio Europeia sejam institudas de uma forma transparente e

genuinamente democrtica, construindo a sua legitimidade atravs da participao actuante e

interventiva das populaes, para que estas se reconheam como verdadeiramente representadas

nesses elencos directivos.

Fica, assim, aqui delineado e exposto o projecto deste despretensioso trabalho, cujo objectivo

consiste em permitir a abertura de mais linhas de pensamento para debate neste vasto, sem dvida

complexo (e, talvez por isso) e muito aliciante tema da construo europeia; se, no final, tivermos,

pelo menos, conseguido fornecer algumas pistas novas ou recriar e redireccionar outras em que j se

opera, ento daremos por bem empregue o trabalho, o esforo e a entrega que presidiu sua

elaborao, sempre cientes de que, pelo menos, esta experincia nos valorizou, nos enriqueceu e nos

permitiu contactar, conhecer e percepcionar realidades, passadas e presentes, do mesmo passo que

nos habilitou a vislumbrar as que muito provavelmente se concretizaro num futuro, este muito mais

prximo daquilo que, por vezes, imaginamos e pressupomos.

4

PRIMEIRA PARTE: Foras centrfugas na construo e aprofundamento da Unio

Europeia

1. O Estado-nao e o Estado

1.1. O Estado-nao: surgimento e evoluo

A construo europeia, embora rena um alargado consenso dos maiores e mais influentes partidos

polticos dos Estados-membros, tem despoletado sistematicamente enormes debates e acirradas

discusses quando se coloca a questo de estabelecer, estruturar e definir a repartio de poderes que

cabero aos Pases e aos rgos de governo da Unio.

Esta dissonncia apresenta-se de forma recorrente e acompanhou, desde logo, o caminho do

alargamento da Europa a seis membros at presente formatao, comportando vinte e sete pases e

percorrendo todas as fases intermdias que foram ocorrendo.

Detecta-se, assim, uma oposio antiga e bastante profunda entre os Pases defensores de uma

Europa de cunho federal, detentora de poderes delegados em instituies comuns no que respeita a

competncias de poltica econmica, de poltica externa, de moeda e de defesa e aqueles que se

batem pela manuteno integral das prorrogativas inerentes ao poder soberano dos Estados nacionais;

a fundadora Frana do General De Gaulle e, posteriormente, o Reino Unido, com Margaret

Thatchter, protagonizaram o papel dos adeptos de uma Europa de Estados, apenas fundada numa

cooperao intergovernamental, sem afectao da autonomia das administraes nacionais, enquanto

que a Blgica, a Itlia e a Espanha iam um pouco mais longe, apoiando um reforo dos poderes da

Comunidade e a sua progressiva evoluo no sentido de uma unio descentralizada, com as

competncias principais a serem exercidas num quadro de actuao comum, mediante a

implementao de frmulas de funcionamento e deciso obtidas por maioria.

E se estas diferentes sensibilidades ainda permanecem actuais, conforme facilmente se verifica,

embora muito provavelmente, sob roupagens e temas diferentes e at mais complexos, porque, na

realidade, as posies defendidas tinham fundamentos concretos e importantes para os seus interesses

como Pases.

Todavia, se podemos compreender a opo de naes mais pequenas, menos poderosas e com

menor influncia face s potencialidades de algumas das suas congneres e, fundamentalmente,

perante o crescente aumento do poder econmico global, que j manifestava a sua importncia e

deixava adivinhar tendncias para se agigantar e, consequentemente, pr em causa o respectivo poder

poltico, tambm compreensvel que Pases com uma larga tradio de independncia nacional e em

5

cuja histria de muitas centenas de anos o Estado-nao desempenhou uma funo extremamente

importante e decisiva, pugnassem por conservar as suas prorrogativas em sede de soberania nacional.

Poder afirmar-se que o conceito de Estado-nao teve a sua origem na Europa, emergindo dos

escombros da Respublica Christiana, da cristandade medieval, como consequncia do

desmoronamento e fragmentao dos grandes imprios.

Posteriormente, o Tratado de Mster e Osnabr e outros que se lhe seguiram e que instituram a

chamada Paz de Vesteflia, pondo termo ao longo conflito de trinta anos entre vrias potncias

europeias, so reconhecidos como pactos em que a figura do Estado-nao e o conceito da soberania

se comea a afirmar nas relaes internacionais.

Todavia, a ideia de Estado-nao foi ganhando mais fora e relevncia j no dealbar do absolutismo

europeu, quando se verifica o surgimento dos Estados soberanos e da teoria da soberania e quando o

Estado-nao consegue emancipar-se da tutela do poder real e do poder papal; a denominada

nacionalizao do Estado significa, objectivamente, o processo de secularizao da autoridade

poltica, da emancipao do Estado face a supremacia da Igreja e da concentrao do poder sob a

gide dos reis; foi por esta forma que os monarcas absolutos efectivamente se libertaram do

controle religioso e moral da Igreja.

De facto, a doutrina da soberania absoluta constituiu, na realidade, um instrumento eficazmente

funcional para facultar a emancipao do Estado relativamente Igreja ecumnica, para o que se

serviu da teoria do direito divino dos reis; como resultado, ao Estado nacional associa-se, agora, a

Igreja nacional.

Durante a poca absolutista, o Estado identificava-se com o soberano, do mesmo passo que a

soberania era uma prerrogativa exclusiva do Prncipe; da que as relaes estabelecidas entre os

Estados se reduzissem a relaes criadas entre Monarcas e Prncipes e, por seu lado, as guerras no

englobassem a totalidade dos sbditos mas apenas aqueles que se apresentavam em armas, ou seja,

aqueles a quem o seu soberano concedia o armamento para por si combaterem; tambm os

mecanismos da economia no estavam ao servio das populaes e o seu objectivo ltimo era o de o

contribuir para a grandeza do monarca, com o que se faria a grandeza da Nao.

Todavia, a expresso suprema do Estado-nao e a sua consolidao apenas veio a acontecer com a

Revoluo Francesa; na verdade, foi este movimento revolucionrio que consagrou politicamente a

figura de Nao, promovendo a sua identificao com o Estado e dotando-a de soberania, ao defini-la

6

e compreend-la como um corpo de cidados, ao reconhec-la como poder constituinte e como

continuidade histrica de um povo. 1

A transio do absolutismo para o liberalismo, a substituio do governo autocrtico pelo governo

popular e a derrogao do direito divino dos reis pela soberania popular, deu azo ao surgimento do

nacionalismo poltico moderno, evoluo bem ilustrada pela afirmao proferida por Hans Konh: o

crescimento do nacionalismo est intimamente ligado s origens da soberania popular2. E foi

precisamente a reivindicao da soberania popular a forar a definio do Povo-Nao, que para si

reivindicava o direito de soberania, a dar voz comunidade popular e nacional, agora chamada a

exercer essa nova noo de soberania inscrita na Declarao dos Direitos do homem de 1789 - Le

principe de toute souverainet reside essenciallement dans la Nation3.

O surgimento do Estado-nao foi condio prvia e indispensvel para que se pudesse implantar

uma poltica democrtica, assim como foi a soberania popular a fornecer medidas e personalidade

Nao. E se a Revoluo Francesa, criando e impondo a noo de cidado, contribuiu,

simultaneamente, para dar igual relevo e importncia Nao, a verdade que s com o advento do

liberalismo que o conceito de Nao se tornou uma categoria poltica essencial, pelo que no ser

de estranhar que, somente a partir do Sculo XIX, as populaes se tenham comeado a identificar

verdadeiramente com as respectivas Naes

O crescente aumento da participao do povo como agente e sujeito poltico activo constituiu o

factor decisivo para operar transformaes em sede da soberania e no seu prprio entendimento

conceptual; inicialmente concebida, nos primrdios do Estado moderno, como majestade do

soberano ou como soberania do prncipe, foi sendo substituda pela ideia de soberania do povo,

a qual se veio a impor e consagrar nos finais sculo XVIII.

Se Bodin a afirmou como suprema potestas, perptua e absoluta, da Respublica, com Rousseau

transformou-se numa vontade geral colectiva, inalienvel e indivisvel do Povo-Nao4.

Chegado o tempo dos governos representativos, o conceito de soberania passa a ser tributrio do

conceito de cidadania, um produto da vontade geral dos cidados e doravante, soberano o povo-

nao de cidados, sendo que a soberania de sbditos cede o lugar soberania de cidados;

consequentemente, verificou-se a passagem do mandato real ao mandato popular ou, se se pretender

1 Pierre Nora, Nation in Dictionnaire critique de la Rvolution Franaise, 1988, p.801.

2 Hans Kohn, Nationalism, 1966, cit. Manuel Braga da Cruz, Europesmo, nacionalismo, regionalismo,1992, p.830.

3Pierre Nora, Nation in Dictionnaire critique de la Rvolution Franaise, 1988, p.804.

4 F. H. Hinsley, Sovereignty, 1986, cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.830.

7

utilizar a dicotomia de Carl Schmitt, a soberania passou de constituda a constituinte5; a

soberania passa a pertencer universalidade dos cidados sem que nenhum nem ningum possa dela

apoderar-se, a no ser que esta lhe tenha sido expressa e legalmente delegada.

Posteriormente e em resultado da aco moderada do liberalismo, a soberania passa a entender-se

como sendo mais propriamente da Nao do que do Povo e a ser concebida como algo que pode ser

limitado, partilhado ou fraccionvel; Benjamim Constant vem dizer que ela no existe seno

limitada e relativa, porquanto no ponto onde comea a independncia e a existncia dos indivduos

a que a jurisdio da soberania se detm; os direitos da soberania so, neste sentido, direitos

limitados. O mesmo Autor esclarecia que a soberania do povo no ilimitada, mas circunscrita aos

limites que lhe traam a justia e os direitos do indivduo. A vontade de um povo no pode tornar

justo o que injusto6; e Alexis de Tocqueville, ao descrever as virtudes da democracia americana,

defende os mritos do fraccionamento da soberania7 e assim, a soberania deixou de ser algo de

desptico, convertendo-se numa realidade relativa e limitada.

Com o advento do princpio das nacionalidades8, decalcado do princpio da liberdade individual,

surgiu uma tese que propugnava pela correspondncia de cada Nao a um Estado e que,

semelhana da liberdade reconhecida s Naes, tambm os povos tinham o direito de dispor de si

mesmos. A formulao deste princpio das nacionalidades, que veio substituir o princpio da

legitimidade dinstica, redundou, a partir do incio do sculo XIX, num processo de formao de

novos e mltiplos Estados, resultante da desagregao dos grandes imprios, ao longo do sculo XIX

e at meados do sculo XX.

Reconhece-se ao nacionalismo moderno a sua matriz de fenmeno revolucionrio, combatendo a

centralizao absolutista e arvorando-se no paladino dos valores das liberdades individuais, do

autogoverno e da descentralizao do poder; para alm disto, foi o nacionalismo que fez ressaltar a

emergncia das massas populares na participao da luta poltica como fenmeno tipicamente

europeu - ou, melhor dito, de ideologia marselhesa utilizada pelos jacobinos e que rapidamente

ganhou foros de realidade mundial, alastrando, ainda no sculo XIX, por toda a Europa e pela

Amrica Latina, atingindo o Mdio Oriente aps a Primeira Guerra Mundial e a sia e a frica,

depois da Segunda, isto j em pleno sculo XX.

5 Carl Schmitt, La dittatura. Dalle origini dellidea moderna di sovranita alla lotta di classe proletria, 1975, Thologie Politique, 1988,

cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.831. 6 Benjamin Constant, Oeuvres politiques de Benjamin Constant, s.d, cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.831.

7Alexis de Tocqueville, De la Democratie en Amrique, 1988, 17ed., cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.831.

8 Machado Vilela, Direito Internacional, 1904 -1905, cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.831.

8

1.2. A crise de soberania do Estado-nao europeu

A soberania do Estado-nao caracterizava-se pelo facto de possuir autonomia interna e

independncia externa, incumbindo-lhe a capacidade de legislar e governar internamente, celebrar

tratados e fazer a guerra, poderes que no eram passveis de sofrer qualquer tipo de intromisso ou

limitao; a sua soberania, um poder autnomo e superior exercido num determinado territrio,

consistia na possibilidade de emitir ordens respectiva populao cujo cumprimento se concretizava

atravs de um sistema administrativo e esse poder autnomo determinava, simultaneamente, que o

povo tinha o direito de dispor de si prprio e de afirmar a sua identidade e, mais ainda, que se podia

livremente organizar sem existirem interferncias exteriores; ou seja, o povo detinha a faculdade de

escolher o sistema e tipo de governo que melhor entendesse, isto porque os princpios da

autodeterminao, da no-ingerncia externa e da livre organizao foram sempre considerados como

componentes da soberania.

Nas ltimas dcadas assiste-se a uma generalizada crise do Estado-nao, muito particularmente no

espao europeu, cuja soberania est a ser crescentemente colocada em causa, quer em termos

factuais, quer mesmo j no campo jurdico; para esta situao de contestao contriburam

decisivamente vrios factores em que avultam a quebra de identificao entre o Estado e a Nao e a

eroso da soberania do Estado, exercida, tanto no topo da edificao estatal, como na sua base,

devido, respectivamente, aos processos de integrao internacional e de regionalizao dos Pases.

Este fenmeno remontar ao tempo da instituio dos Estados europeus, com as dificuldades

sentidas para implementar um Estado em todas as realidades nacionais, sendo certo que a

preocupao na coincidncia entre Estado e Nao somente logrou xito em raros casos; por outro

lado, a multiplicao da criao de Estados no se revelou como a mais aconselhvel e prudente,

tendo-se verificado graves violaes ao princpio da nacionalidade, o que veio a ocasionar a

formao de Estados plurinacionais ou de complexa coexistncia pluritnica que, mais tarde ou mais

cedo, resvalaram para conflitos de muito difcil soluo. Esta falta de coincidncia entre Estado e

Nao mereceu a ateno de Jellinek que a classificou como fragmentao do Estado9, uma vez

que se traduzia, ou na decomposio dos seus elementos tradicionais, ou (em sentido inverso) na

decomposio da Nao em vrias formas estaduais confederadas.

Porm, talvez que o maior contributo recente para a referida desconexo entre o Estado e a Nao

tenha sado do movimento de independncias verificado no fim da Segunda Guerra Mundial, de onde

emergiram um nmero aprecivel de Estados, criados a partir das ex-colnias, muitos deles sem

9 Georg Jellineck, Fragmentos de Estado, 1981, cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.834.

9

qualquer laivo de identidade nacional e outros ainda institudos apenas com base em critrios

advindos da geografia territorial colonial.

Concomitantemente com o afastamento entre Estado e Nao, assiste-se, gradualmente, separao

dos conceitos de Estado e de Soberania, resultante da crescente internacionalizao das reas da

economia, da cultura e das questes poltico-militares; no aspecto econmico, a magnitude das trocas

comerciais, a mundializao dos investimentos financeiros, a sincronizao e integrao de diferentes

sistemas produtivos, a livre circulao das pessoas e de bens, a extino das barreiras aduaneiras, a

mundializao das interdependncias, todos estes factores tiveram um importante papel no

apagamento da dimenso estadual-nacional face ao mercado, claramente ultrapassada por um modelo

mais amplo, de cariz transnacional e intercontinental. De h muito que os mecanismos econmicos

ganharam contornos mundiais de influncia, sem que os governos nacionais tenham poderes para

continuar a deter o controlo dos respectivos sistemas econmicos, no dispondo de meios suficientes

para evitar a propagao de ciclos de inflao ou recesso e estando completamente merc dos

interesses e das agendas dos grandes emprios internacionais gerados pela concentrao econmica;

estes, hoje em dia, possuem uma capacidade quase ilimitada para influenciarem as orientaes das

polticas nacionais e internacionais, facto que afecta consideravelmente a autonomia interna e a

independncia externa dos governos.

Acresce, tambm, o fenmeno da criao e desenvolvimento de numerosas organizaes,

governamentais e no-governamentais, que conseguem intervir nos processos decisrios com

potencialidades superiores s dos Estados-nao, aos quais chegam a impor as suas posies de uma

forma verdadeiramente irredutvel.

Quanto ao aspecto poltico-militar, a constituio de grande blocos e a difuso da teoria das

esferas de influncia, que legitima intervenes militares em pases estrangeiros, com base na

chamada noo da soberania limitada e, at mesmo, permite o estacionamento de tropas e bases

militares das grandes potncias em territrio de outros Pases, deram um golpe mortal numa das mais

emblemticas vertentes da soberania - a deciso de declarar e fazer a guerra, o jus belli, que j no

reside na esfera dos poderes do Estado nacional, mas sim na vontade expressa do ncleo duro das

organizaes militares transnacionais.

Em relao questo scio-cultural, presenciamos como se desenvolveu desenfreadamente uma

massificao dos gostos e das preferncias, tudo ficando padronizado, desde a roupa msica, da

alimentao aos comportamentos e aspectos de imagem pessoal, e, mais importante ainda, na

tentativa de formatao da opinio pblica, segundo os critrios dominantes que as multinacionais da

informao e das TIC (Tcnicas de Informao Computorizadas) pretendem propalar, esvaziando a

10

seja, vinda margem de escolha e de reflexo prprias e estreitando a faixa de exposio,

conhecimento e divulgao das ricas diversidades existentes ao nvel tnico e cultural, isto embora,

tambm e em contraponto, haja oportunidade para divulgar amplamente os ideais-base da Revoluo

Francesa - democracia e direitos do Homem, que compelem milhes de pessoas a reclamar para si

esses valores.

Todos os factos e situaes atrs aludidos formam um somatrio impressionante de violentas e

poderosas presses que se abateram sobre o Estado-nao, justificando que se fale na eroso que

sofre a partir de cima, ou seja, provinda de instncias exteriores e supranacionais; e, juntamente

com esta, existe a denominada eroso a partir de baixo, que se reconduz s questes da proliferao

dos regionalismos e das regies.

A actual ideia de regionalizao tem origem na crise que se foi estabelecendo entre o Estado e a

sociedade, melhor dizendo, na crescente crispao e a falta de sintonia verificada entre o centro e a

periferia10

, pelo que a exigncia da regionalizao do Estado irrompe historicamente como uma

reaco crise de legitimidade e de capacidade operativa do Estado para dar resposta aos problemas

concretos e correntes das populaes.

O falhano das orientaes neoclssicas que apontavam para o estabelecimento automtico do

equilbrio entre diferentes nveis de desenvolvimento regional conduziu implementao de medidas

e de planos pblicos destinados a promover maior homogeneidade nessa rea, tendo como

preocupao bem vincada uma progresso autosustentada. Neste sentido, o Estado procedeu, numa

primeira fase, desconcentrao tcnica do aparelho adminisrativo-burocrrico e, posteriormente,

descentralizao poltica de competncias e de capacidades de deciso.

Daqui resultou uma estruturao do governo central desenvolvida de forma vertical e subdividida

em polticas sectoriais; no fundo, tudo isto se resumiu difuso das actividades dos servios da

administrao central em reas regionais, sem que tal viesse ao encontro dos interesses locais, pois

que os resultados dessa orientao no lograram resolver os seus problemas.

Consequentemente, verifica-se uma rplica, dir-se- que de baixo para cima, protagonizada pelas

regies que pretendiam, na verdade, obter uma soluo concreta para as suas aspiraes, mas

desenhada sob a orientao de uma delegao de poderes no contexto de um plano de estruturao e

organizao horizontal; e estas aces reivindicativas tornaram-se tanto mais crescentes quanto maior

era o nvel de desenvolvimento dessas regies mais perifricas.

10

Stein Rokkan e Derek W.Urwin, The Politics of Territorial Identidy.Studies in European Regionalism,1982, cit. Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.837.

11

Deste modo, se numa fase inicial a regionalizao se pautou por uma simples desconcentrao

administrativa, sem quaisquer delegaes de poderes, ou de cima para baixo, rapidamente recebeu

uma rplica de sentido inverso, de baixo para cima, correspondente ineficcia concreta e provada

dos resultados da interveno provinda do centro, caracterizando-se claramente essa resposta como

uma reaco contra o poder centralista.

Mas, se for encarada de uma outra perspectiva, a regionalizao pode significar, tambm, uma

resposta crise de legitimao do Estado-nao; um facto que a regionalizao genericamente

surge no mbito da expanso da interveno da esfera pblica, mais concretamente, a partir do

alargamento e expanso das atribuies sociais do Estado-Providncia, temporalmente fixada pouco

depois da Segunda Guerra Mundial; e, curiosamente, foram as debilidades e incapacidades concretas

das instituies e das estruturas do Estado-nao (um Estado de caractersticas amplamente

centralizadas) em colmatar as exigncias resultantes da complexificao funcional do Estado social

que geraram a distribuio de funes entre o governo central e outros nveis intermdios da

governao local, no sentido de tentar suprir essas deficincias.

A soluo que se deve dar aos problemas mais prementes dos cidados, se, em alguns casos,

suscita a ultrapassagem dos nveis de actuao nacionais, noutras situaes so precisamente estes

problemas que obrigam as administraes governamentais a descer ao nvel em se encontram essas

dificuldades, de forma a melhor e mais eficazmente as resolver; na interessante afirmao de Daniel

Bell o Estado-nao est-se a tornar demasiado pequeno para a resoluo de grandes problemas e

demasiado grande e distante para entender e resolver capazmente os pequenos problemas de ordem

local 11

.

Em suma, o factor regionalizao impe-se, tanto por motivos de eficcia e de legitimidade, como

por questes de estratgia, de mobilizao social e de participao poltica das populaes; poder-se-

dizer, at, que o regionalismo evoca em si mesmo uma nova expresso de patriotismo, j que opera

a transferncia do conceito de Ptria, da Nao para a Regio. Aqui se detecta a influncia e

consequncia lgica do caminho para o cosmopolitismo: quanto maior abertura existe para o mundo,

quanto mais a influncia desse mundo se reflecte nos espaos territoriais e tanto maior a expresso

da necessidade de pertencer a uma regio; a consistncia do grande espao tributria e radica na

intensidade de afirmao da pertena ao pequeno espao.

1.3. Da real necessidade e utilidade do Estado e dos mecanismo que gera no contexto actual

Mesmo considerando toda a panplia de asseres menos positivas anteriormente referidas quanto

ao Estado-nao e quanto ao Estado tout court, enquanto estruturas organizativas e reguladoras das

11

Daniel Bell,Esto as naes preparadas para enfrentar problemas globais?, 1989,cit, Manuel Braga da Cruz, ibidem, p.838.

12

sociedades humanas, afasta-se, desde j, a adeso a determinadas teorias que o afirmam como

extinto, sem utilidade ou valor operativo no presente momento histrico; muito longe disso, o Estado

apresenta-se como regressado e reintegrado nos debates polticos, indiferente queles que o davam

como definitivamente morto e enterrado.

Desde logo, Anthony D. Smith12

relembra o acrscimo da interveno estatal, assumida um pouco

por toda a parte, nomeadamente nos sectores da educao pblica, na sade, no planeamento familiar

e na gentica, na emigrao, nos meios de comunicao de massas, na arte, no desporto e na cultura,

no emprego, nos sindicatos, nas profisses liberais, nos impostos e na poltica fiscal: em todos estes

sectores existem provas concretas de uma actividade profcua e actuante do Estado. Ademais, na rea

judicial, consagradamente uma funo principal do Estado, o controle e o poder continuam na sua

posse e disponibilidade.

Adianta mesmo este Autor que, na sua actuao ao nvel securitrio, regulador e administartivo-

burocrtico, o Estado continua bastante interventivo e at de uma forma muito directa, persistente e

exaustiva.

Alis, um outro Autor, o professor Rui Cunha Martins13

, parece, de alguma forma, possuir uma

viso semelhante sobre o Estado; na sua apreciao sobre esta entidade, que considera catalogada de

vrias formas (em funo da opinio emitida por diversos autores), como, por exemplo, regulador e

reconstrutor, supervisor e estratega, garantidor, contratualizador ou articulador de escalas jurdicas e

de redes constitucionais; refere, mesmo, concludentemente que ele (o Estado) est de volta, neste

comeo do sculo XXI. Num sentido mais rigoroso, afirma que o Estado verdadeiramente est e o

facto da sua efectiva e comprovada vigncia ser apercebida no sentido de um retorno, nada tem a ver

com uma eventual ausncia, afastamento ou desapario da realidade histrica; relaciona-se muito

mais com a constatao de que, afinal, as teorias cujo vaticnio durante aproximadamente os ltimos

trinta anos apontavam para a perda definitiva do seu lugar na Histria, evocando razes ligadas ao

seu arcasmo, ao esvaziamento da sua funcionalidade central ou ao esgotamento das potencialidades

terico-operativas que possua, acabaram por no se concretizar: e assim, o debate hoje existente em

volta do Estado escora-se, principalmente, na sua continuidade. que se o Estado, na verdade, ainda

existe, ainda est, porque ele permanece, o que nem ser de estranhar pois que, ao reconhecer o seu

lugar tpico, implicitamente se aceita a sua inerente feio de durao.

E se parece acertado entender que neste desdobramento se encontra a razo para a continuidade do

Estado face a uma ordem poltica que, desde logo, propenderia a exclu-lo, tambm ser avisado

12

Anthony D. Smith, Nacionalismo, 2006,p.184. 13

Rui Cunha Martins, O Mtodo da Fronteira, 2008.

13

compreender o porqu do contexto em que se aborda a sua capacidade de adaptao e reconverso

funcional; e, ento, o caminho adequado para a dilucidao destas questes passar por seguir uma

linha reflexiva sobre a forma como historicamente evoluiu um Estado que, estando tradicionalmente

voltado para operar a sntese continuada de processos interpenetrantes de espacializao do tempo e

temporalizao do espao, tem neste facto uma das caractersticas fundamentais da sua historicidade;

por outro lado, importa, ainda, perceber de que forma que ele, Estado, se consegue afirmar como

uma instituio transhistrica e, simultaneamente (conforme o faz hoje em dia), assume uma postura

pragmtica, demonstrando plena capacidade para ser operativo, ao acompanhar cada conjuntura nas

suas concretas modalidades, transmitindo a ideia de que parece ser essa dualidade da sua aco que

sustenta a perenidade patenteada.

Em sequncia, o Autor identifica um dos eixos analticos que preside sua investigao sobre um

dos principais esteios de fundamentao do Estado, mais especificamente o da permanncia, em cuja

rea de aco os conceitos de soberania, de histria e de fronteira redesenham, de forma contnua, a

imagem estatal14

. E adianta que s com anlises deste tipo, incidindo sobre a actuao dos

mencionados eixos de fundamentao estatal se torna pertinente colocar uma questo respeitante ao

grau e forma de compatibilidade que liga essas estruturas de fundamentao aos actuais modelos

poltico-jurdicos de enquadramento do Estado.

Do que se apurar neste contexto, sair necessariamente a compreenso sobre as actuais formas de

reformulao do Estado e quanto s actuais interpretaes sob as perspectivas ps-estatais; ser esta a

discusso a lanar, sendo certo que a temtica da fronteira dela no abdica; por isso mesmo, a sua

permanncia exige que, em cada conjuntura histrica, ele merea e justifique essa perenidade, atravs

da utilidade das aces que consiga realizar, sem o que, certamente, seria duramente contestado na

sua legitimidade e fundamentao.

Em consequncia, precisamente neste quadro que, recorrentemente e de forma directa ou

indirecta, se vm formulando um conjunto de perguntas interessadas em obter explicaes e em

apurar qual ser a capacidade de actuao concreta que apresenta o Estado (enquanto entidade

poltico-institucional que funda a sua auto-instituio, em termos de continuao e perenidade, na

historicizao dos elementos que o compem) perante um mundo hodierno que se rotula estar perto

da deshistorizao, por obra e graa das concomitantes contribuies provindas da mundializao e

da crise da razo prognstica.

14

Rui Martins Cunha, Frontire et fonction: le cas europen, 2007, pp. 59-69; Jos Manuel Sobral, A formao das naes e o nacionalismo: os

paradigmas explicativos e o caso portugus, 2003, pp. 1093-1126.

14

As interrogaes colocadas justificam uma abordagem mais pormenorizada; ab initio, a lgica da

sua formulao parecer inatacvel; mas, para o objectivo visado, interessa encar-las enquanto

manifestaes dos discursos da ps-estatalidade, principalmente pelo modo como expem dois do

lugares-comuns basilares destas teorizaes: por um lado, entende-se que a contemporaneidade se

encontra numa fase de predomnio do espao sobre o tempo; por outro, interpreta-se a mudana

histrica e o surgimento do novo pelo prisma de vises claramente tributrias das ideias de

sequencialidade ou alternncia evolutiva entre os opostos - ontem, predominava o tempo, hoje o

espao; ontem, a histria, hoje, a ps-histria; ontem, o Estado, hoje o ps-Estado.

Ora, estas posies surgem-nos to umbilicalmente ligadas ao tipo de pensamento linear que fazem

ressaltar a incongruncia de se pretender anular, afastar e substituir determinado modelo de

pensamento recorrendo a uma argumentao e a uma fundamentao baseada em pressupostos

tericos precisamente idnticos ou, pelo menos, similares aos que se pretendem derrogar.

O Autor constata que, na rea historiogrfica, os ltimos decnios foram palco de alguma

desconfiana recproca entre espao e tempo, indo mesmo at ao ponto de se considerar o fenmeno

da mundializao (perspectivada como manifestao de diversas especialidades, estas mesmas

concebidas como emanaes dos vrios finalismos ps-coloniais, ps-histricos e ps-nacionais)

como um prolongamento de uma anterior verso da actual contemporaneidade, sob a forma de ps-

temporalidade e, em consequncia, como ps-estatalidade.

Todavia, foi-se tambm e paralelamente verificando a impossibilidade de concretizao das

previses mais radicais dessas vises crticas, na medida em que, provindo do prprio mago do

pensamento ps-colonial, se notava um afastamento crtico relativamente esttica ps-histrica,

apercebendo-se as dificuldades apresentadas por um espao desprovido de historicidade. A este

factor juntou-se a circunstncia de se reconhecer a inevitabilidade da histria global ser pensada

em funo do inter-relacionamento entre as dimenses histricas transnacionais e nacionais, pois que

o facto que as naes no esto prestes a desaparecer e o Estado ainda um actor maior na cena

internacional e global.

Consequentemente, se esta propenso para a compatibilidade resulta da gradual denncia do

verdadeiro sentido dos finalismos (como se poder inferir de reparos tais como o de que se est

assistir, no ao fim da histria, mas, to-s, ao fim das filosofias do fim da histria15) e tambm do

crescente reconhecimento dos desvios essencialistas, matriz principal dos discursos sobre o fim da

histria e da crtica ps-histrica, ser legtimo concluir que a referida compatibilizao significa,

fundamentalmente, que, nos dias de hoje, no possvel pensar a mudana como uma superao, no 15

Fernando Catroga, Caminhos do Fim da Histria, 2003, p.158.

15

sentido de que o novo procede substituio integral do que existe; muito pelo contrrio, defende-se

a instituio de um pensamento novo, que se traduz muito mais em situaes de compatibilidade ou

concomitncia, em que o novo poder no ser o mais, mas sim a outra forma 16

.

Na verdade, o modo de mudana parece ser o mais adequado para analisar um tempo cujas

caractersticas fundamentais consistem na articulao sistemtica de elementos contrastantes e no

qual, devido sua necessidade de reconverso e adaptao, so os factores de permanncia que se

apresentam como os grandes operadores da mudana.

Por conseguinte, a capacidade operativa dos actores, dos mecanismos, das tradies e instituies

no actual contexto histrico-poltico mundial centra-se, fundamentalmente, na suas potencialidades

para se adaptarem s exigncias da compatibilidade inter-escalar e no no grau de intensidade da sua

ligao a determinado modelo de relacionamento entre o tempo e o espao; acresce que ser de

extrema importncia a eventual possibilidade, historicamente fundamentada, de alguns desses

elementos poderem criar o respectivo horizonte de permanncia, partindo da sua materializao em

lugares concretos, o que, certamente, constituir uma mais-valia no contexto de um mundo global

que enfrenta o desafio da gesto da pluralidade, a que compelido pelo fenmeno duplo da

acelerao do tempo e da extenso do espao.

E foi este mesmo fenmeno que afectou a integridade do Estado, causando-lhe vrias perdas: da

sua centralidade, da sua exclusividade (em vrios nveis), da sua operatividade (em dimenses

substanciais) e da sua relevncia (pelo efeito somado de todos os factores atrs apontados); para alm

disto, provocou-lhe, ainda, a perda de uma grande parte da sua dimenso, enquanto projecto.

Porm, manteve-se intacta a dimenso do Estado enquanto mecanismo ou criador de mecanismos,

capacidade que lhe transmitida pela estrutura de fundamentao da permanncia, que onde se

incrusta a fronteira e onde se processa, como vimos, o esforo de concatenao entre o espao e

tempo.

E, precisamente porque a razo global necessita de mecanismos possuidores destas valncias, o

Estado congrega a sua tendncia para a perenidade com a competncia funcional de que dotado e

que a conjuntura histrica sempre lhe requisita; e por isso que se mantm e que perdura. Enquanto

houver necessidade de convocar mecanismos de estatalidade, ser muito difcil que (para aqueles que

a compreendem como um fim) a histria esteja em vias de acabar.

1.4. A imprescindibilidade do Estado

16

Fernando Catroga, Caminhos do Fim da Histria, 2003, pp.158-161;Peter Koslowski, The discovery of historicity in german idealism and historism, 2005, cit. Rui Cunha Martins, ibidem, p.221.

16

No parece plausvel que a tese da ps-estatalidade possa, malgr elle mme, prescindir do

Estado; se o quadro terico da contemporaneidade convoca para a sua construo um mecanismo

regulador, ele vai, inevitavelmente, ter que colh-lo junto das competncias da estatalidade e apenas

as potencialidades existentes na permanncia lhe vo permitir enfrentar os desafios que, hoje em dia,

lhe so colocados. Ora, convenhamos que essas solicitaes obrigam a uma ponderao exigente

sobre as alternativas que se deparam entre a dispensabilidade do Estado e aquilo que a sua utilidade

prtico-concreta pode acrescentar, parecendo que as caractersticas da durabilidade que este ltimo

detm incitam procura de solues de cooperao ou negociao.

Exemplificando o que se acaba de referir, nomeiem-se as questes ligadas s concepes da

sustentabilidade e s temticas ambientais, cuja concretizao pressupe durabilidade e permanncia,

ideias manifestamente integradoras do conceito de intergeracionalidade.

A temporalidade faz convergir no mesmo sentido as ideias de sustentabilidade e estatalidade, at

porque so manifestos os prejuzos que as soberanias estatais provocaram ao estatuto transnacional

do ambiente; evidente a tradicional incapacidade das fronteiras para se enquadrarem em polticas de

desenvolvimento sustentvel, revelando-se, diversas vezes, como verdadeiras barreiras sua

progresso, como , ainda, inegvel a interferncia directa e responsabilidade dos Estados em

situaes de esgotamento de recursos, catstrofes naturais e/ou humanitrias e at em conflitos

armados regionais.

Todavia, pesem embora todos estes registos altamente negativos que justamente se imputam

aco estatal, os quais, inapelavelmente, foram a causa directa de desprestgio ao nvel da sua

tradicional centralidade e de descrdito quanto s suas capacidades operativas, acontece que as

finalidades que a sustentabilidade prossegue no podem ser desligadas do efeito durabilidade

(permanncia), factor e motivo porque so levadas a empregar o conceito de geraes futuras nas

prticas discursivas e nos debates sobre o desenvolvimento.

E precisamente nesta circunstncia que a estatalidade evidencia a sua utilidade e compatibilidade

com a dimenso projectiva da sustentabilidade, at porque aqui se trata, tambm, de uma matria de

regulao, embora, naturalmente, remetendo para a rea da historicidade dos regimes de

sustentabilidade.

A resultante desta confluncia ser ento o designado Estado ambiental; este constituir, assim, o

ponto de equilbrio, nsito no modelo de racionalidade econmica, entre a necessria progresso do

desenvolvimento, sem que tal implique alienar e/ou eliminar os meios e as bases que permitem a

padres imprescindvel durabilidade e continuao desse mesmo desenvolvimento (veja-se, por

exemplo, a questo energtica). E tal desiderato convoca, inexoravelmente, mecanismos de reflexo e

17

actuao, tais como a planificao (mas a de matriz dinmica e adaptvel e no a tradicional,

tributvel do imobilismo anti-histrico), a demarcao e o limite - a fronteira - ferramentas de que

no possvel prescindir, mesmo que se trate, como aqui o caso, de garantir o futuro da

Humanidade em termos de sustentabilidade ambiental e desenvolvimento econmico.

que esta tarefa quase herica tem forosamente de incluir, como elemento estruturante, uma

fronteira, um limite, mas entendidos estes conceitos num plano diametralmente oposto aos de

matriz estatal/nacional, antes compreendidos numa dimenso de recomposio e reinveno

interactiva com o que est e o que h-de estar, no futuro, prximo ou longnquo; no se trata de

contestar o Estado ou as fronteiras nas suas diversas dimenses, at porque elas prprias constituem

um marco e exercem uma funo dissuasora de impunidades no que respeita a infraces ambientais,

enquanto meio de prova determinante em sede de responsabilidades a atribuir aos prevaricadores.

Com tudo isto se podem alinhar alguns tpicos para apreciao e reflexo; no crvel que o

Estado possa ser descartvel, pelo menos em relao a determinado conjunto de funes que

desempenha, enquanto um dos fulcros organizadores da vivncia em sociedades humanas. E isto

porque, no plano histrico (que onde, hoje em dia, necessariamente, se tm de colocar estas

questes) a sua utilidade prtica no parece ter chegado ao fim; apesar de todos os seus

desajustamentos, falhas, deficincias e, mesmo, comprovadas iniquidades, limitado na sua anterior e

plena autorictas, desacreditado pelos nvios caminhos muitas vezes utilizados para se manter e

perpetuar, afastado da sua posio central de deciso ao nvel internacional e amplamente

questionado na sua operatividade, eficcia e capacidade reguladora e como garante da projeco

futura do progresso social - malgr todo este quadro, bem negativo, mesmo assim, o certo que o

Estado ainda existe. E, poder-se- legitimamente perguntar: porque razo?

Segundo o investigador Rui Cunha Martins, precisamente o facto de se ter verificado uma

transformao na tipologia funcional historicamente definidora do Estado e, mais acentuadamente, na

sua especfica teleologia auto-identificadora que provoca e permite o apelo ao recurso e

implementao das respectivas funcionalidades mais especficas, nas quais, certamente, se inclui a

fronteira.

Ultrapassando a questo de eventuais motivaes mais enviesadas que a ela possam subjazer, esta

apetncia revelada pelo recurso a determinados mecanismos caracteristicamente estatais radica na

ambiguidade e na instabilidade das solues advenientes das instncias de regulao e das

insuficincias dos novos de elaborao e configurao de planeamento; e, por outro lado, provm,

ainda, do facto evidente de certos elementos estruturais do Estado terem extravasado o seu natural

campo de aco, demonstrado capacidade e utilidade para serem funcionalmente empregues noutras

18

reas bem distintas; destaquemos o caso concreto da fronteira que, de um papel tradicionalmente

nsito identificao nacional, passou a ser empregue em contextos qualificadores mais alargados.

Estes fenmenos actuais de interaco e articulao escalar e as reflexes sobre o seu significado e

resultados objectivos impelem-nos muito mais a pensar em termos de uma reapreciao e de uma

requalificao do conceito de Estado do que a optar por decretar a sua liminar extino e o seu

desaparecimento.

1.5. Fronteira e democracia

Importante ser, certamente, analisar as articulaes e a relao que se estabelece (ou pode

estabelecer) entre a fronteira e a democracia; poder a fronteira ter uma participao til e

fundamental ou, pelo contrrio, despicienda, na constituio do processo democrtico? Estando ns a

abordar um dispositivo que se foi dotando, ao longo da sua existncia histrica, de diversas

capacidades e funcionalidades, o que lhe permite dispor de uma variedade assinalvel de mecanismos

operativos, ser interessante saber qual a relao que ele poder estabelecer com o iderio

democrtico, ou melhor dizendo, que abertura ou propenso face ao mesmo, ter (ou no) este

fenmeno fronteirio.

Dir-se-, desde logo, que ser errado considerar a democratizao da fronteira como sinnimo de

erradicao de determinadas propriedades que ela encerra; o que se pretende traz-la, por inteiro,

para a arena da disputa democrtica, tendo a conscincia de que ela tem um cariz eminentemente

poltico. Esta constatao obriga a uma constante aco de gesto sobre a sua actividade e tambm a

que continuamente se produzam escolhas sobre as suas qualidades, competncias e desempenho.

Reconhecer a fronteira enquanto facto poltico, ser notar a conflitualidade que ela encerra no seu

seio, passar por reconhecer-lhe a apetncia para inventar e recriar novos pontos referenciais,

surpreender-lhe a faculdade de provocar, tanto a adeso e o consenso, como a conflitualidade e a

oposio, mas, fundamentalmente, nunca ignorar que, sobre as extrincadas questes que arrasta e

sobre a factualidade onde, muitas vezes, exteriormente se projecta, devem ser tomadas, just in time,

as decises entendidas como apropriadas; isto sob o risco de, tal no sucedendo, se deixar ao alcance

de outrm essa possibilidade de actuar ou de no o fazer, sendo certo que os fundamentos, o sentido,

os objectivos e as consequncias, sero, inelutavelmente, diferentes.

Se a fronteira, sob o ponto de vista da poltica, considerada como uma questo de oportunidade,

ento pode aduzir-se que essa uma oportunidade de distino; a sua funo essencial consiste em

demarcar, aqui englobando o lugar de onde provm a deciso demarcadora e o respectivo objectivo;

assim, frise-se que a fronteira, em termos polticos, faculta a actividade de demarcao e,

19

funcionalmente, a sua aco se traduz em propiciar os dispositivos inerentes e necessrios a essa

tarefa.

A ressonncia da palavra demarcao poder suscitar receios, sobressaltos e suspeies, evocando

eventualmente memrias de formulaes fronteirias do passado, com o seu rasto pleno de opes

soberanistas e concepes de estanticidade e segregao, ou mesmo saudosistas ecos de apelos

ordem e lei, curiosamente ainda com alguma repercusso ou visibilidade nos nossos dias, mas

unicamente suportados por fundamentos e finalidades meramente securitrios; todavia, esses receios

so comprovadamente infundados, tendo por seguro ser o prprio acto demarcador o verdadeiro

garante contra a deriva totalitria; que esta no se limita a desejar a demarcao, ela anseia, sim,

pela implantao de divisrias monolticas, quais barreiras de excluso e, o que ainda se torna mais

preocupante, clama pela generalizao desses dispositivos, descambando para o demaggico cenrio

da completa ausncia de limites. Ora, mesmo contra este populista queimar de etapas que a

demarcao pretende lutar.

Nesta altura, porm, coloca-se a questo de saber como se proceder tarefa demarcatria, quais os

critrios a utilizar, que limites a considerar; se vamos utilizar o filtro do acervo dos valores e das

concepes democrticas, o campo das opes, logicamente, estreita-se, dado que existem

determinados tipos de demarcaes que so inadmissveis; todavia, muitas das opes que restam,

tm diversos graus de identificao, mesmo que tambm apresentem focos de diversidade entre si;

atentemos neste bom exemplo: Al igual que el poder aprende a hacerse valer no siendo absoluto, la

mejor seguridad no es la seguridad completa, que adems tampoco existe. La mejor seguridad es la

que se obtiene en el frgil marco de una sociedad democrtica, con toda su apertura, contingencia e

indeterminacin. Y al igual que el poder aprende a desarollar estrategias indirectas, el afn de

seguridad debe evolucionar desde el enfrentamiento y la proteccin hacia la cooperacin. Esta es la

mejor seguridad de la que pode dotarse una sociedad democrtica17

Ora, se a segurana total um puro mito, ser sobre os conceitos de abertura, de contingncia e

de indeterminao, tpicos das sociedades democrticas (pese embora a fragilidade do respectivo

equilbrio), que se vai construir o mais adequado formato de segurana; ora, precisamente, os

conceitos acima aludidos constituem elementos que a fronteira opera e que foram sendo, de forma

gradual e sem adulterao das suas propriedades intrnsecas, historicamente integrados na sua

componente estrutural; deste modo, estaro disponveis para ser utilizados, quando tal for entendido

como conveniente.

17

Daniel Innerarity, La Sociedad Invisible, 2004, cit. Rui Cunha Martins, ibidem, p.230.

20

que o cerne da problemtica demarcatria centra-se nestas questes: se no a implementamos,

ela, necessariamente, no existe e podemos estar a abrir o caminho para que outros a construam,

muito provavelmente sobre caboucos e fundamentos cuja democraticidade ser duvidosa, ou

mesmo inexistente.

Alm disto, no ser admissvel nem aconselhvel decretar a extino de um dispositivo s porque

entendemos que a sua validade histrica foi ultrapassada; mais avisado procurar detectar as formas

e as evidncias atravs do qual ele ainda se manifesta e aprender a interpret-las e a torn-las

operativas. Isto porque at a sua prpria inaco poder ser o modo como esse dispositivo quer (ou

pode) manifestar e transmitir a sua ainda efectiva existncia.

Por todos estes motivos, ser errado admitir a incapacidade das fronteiras cumprirem os seus

objectivos, ou delas excluir determinadas propriedades e funes, apenas por serem entendidas como

menos conformes ou convenientes; o importante saber manter todo o seu multifacetado potencial e

a capacidade de as utilizar politicamente, ao mesmo tempo que se criam canais para uma

comunicao e um acesso mais simplificados, efectivos e dinmicos a tais propriedades, assim

democratizando o fulcro decisivo em que consiste a negociao das fronteiras; a democratizao do

dispositivo fronteirio ser tributria de uma constante praxis democrtica no dia-a-dia, tanto

quanto do enraizamento de hbitos de uma correcta negociao.

Dir-se- que, neste caso, como em quase tudo na vida, haver um preo a pagar e aqui, este poder

revelar-se particularmente elevado; que nada est garantido partida, nada est integralmente

previsto e controlado.

No previsvel como vai a fronteira actuar, como que os seus mecanismos vo reagir, nem quais

e de que forma as suas caractersticas e as suas potencialidades vo (ou no) interagir com o

concreto, ou seja, em funo da realidade que se lhe vai deparar. No podemos assegurar, permita-se

a expresso, o controle sobre a sua reconhecida disponibilidade e isto porque a fronteira tem um autor

(e no sabemos, de antemo, quem vai ser), possui uma funo dimensional (e desconhecemos qual o

objectivo final que ser definido) e apresenta-se indefinida no momento da sua activao, em termos

tericos (escapam-se-nos as razes legitimadoras da deciso poltica que vai accionar o dispositivo).

De uma forma inelutvel, a evidncia de que a fronteira , verdadeira e intrinsecamente, disponvel

coloca-se perante ns; e assim, inapelavelmente sujeita s vicissitudes das conjunturas, das

oportunidades e da inovao, do modo e das consequncias que resultaro da interaco destes

factores com cada uma das propriedades da fronteira, iro definir-se as alteraes na sua forma e no

seu contedo, as suas relaes com o concreto e com o visvel ou ainda com as inovaes que vo

surgir (porque a fronteira tambm proporciona oportunidades de adaptao).

21

E, de igual modo, haver probabilidades de que essa mesma fronteira, to cuidadosamente

projectada, construda e instalada, possa vir a ser contaminada por interveno de outros tipos de

escalas fronteirias, dada a sua gnese estrutural, referida a regimes de reprodutibilidade. Na verdade,

cada deciso tomada no contexto do dispositivo fronteirio no deixar de suportar o peso histrico

inerente ao processo de construo do conceito.

E mesmo perante este quadro, surge a pergunta: haver compensao?

Existindo uma inegvel e confessada incerteza na resposta, poder, pelo menos, concluir-se que,

em matria do processo demarcador, permanece esta firme convico: apenas a deciso ser (ou no)

democrtica.

1.6. A Fronteira enquanto dispositivo: as exigncias da contemporaneidade

O autor qualifica a fronteira como um dispositivo, assemelhando-o a um centro emanador de

competncias, que se desdobra em diversas escalas; este modelo tem potencialidades para adquirir

um status elevado e relevantemente operativo (at mesmo predominante) perante determinados

contextos e condicionalismos histricos, j que estes podem estimular e catalisar, at fases extremas,

o respectivo potencial, quer em termos funcionais, quer, mesmo, at ao estdio de perspectiva

estrutural predominante.

Hoje em dia surgem, de vrios quadrantes, posies que questionam a fronteira; seja porque,

tradicionalmente e perante o tendencial aumento, historicamente perceptvel, da sua importncia e

poderio (aliado a algumas utilizaes pontuais mais desviantes), sempre se lhe colou o rtulo da

suspeio; e seja pelo af da apropriao de determinadas das suas propriedades, com os mais

diversos objectivos, o certo que essa contestao visvel.

No entanto e bem vistas as coisas, deste facto nunca poder sair beliscada a imagem da fronteira em

si mesma, ou do dispositivo, enquanto sua emanao; o que poder ficar em causa sero,

eventualmente, os respectivos meios operativos.

De qualquer modo, uma pergunta se impe: qual a razo, para alm da suspeio j atrs aludida,

desta contestao? Surgem ao autor, trs hipteses a considerar, tendo a primeira a ver com a

possibilidade dos mecanismos utilizados pela fronteira haverem perdido a capacidade de exercer as

suas funes especficas; esta possibilidade ficar, desde logo, descartada, porque surge como

inegvel evidncia a faculdade que a fronteira continua a possuir de se adaptar a novas situaes, de

se reproduzir, assumindo expresses escalares diferenciadas e continuando a demonstrar todas as

aptides para funcionalmente assegurar as suas tarefas e misses habituais.

22

Quanto segunda hiptese formulada, ela prender-se-ia com uma eventual ausncia hodierna da

necessidade de manter esses mecanismos, porque inteis; tambm aqui o que na verdade acontece

que, sob o aparente esbatimento das fronteiras, est subjacente um verdadeiro fenmeno de

sobreposio destas, ou seja, a proliferao da convocao e do apelo a vrias modalidades

fronteirias.

No que respeita derradeira suposio, esta parte do princpio de que as fronteiras, no estando em

desagregao, esto, isso sim, a deslocar-se; e o Professor Rui Cunha Martins considera que desta

premissa que se deve partir, pois dela advm novas problemticas que, conjuntamente com as

anteriormente formuladas, vai permitir outra abordagem, daqui resultando uma nova perspectiva para

proceder anlise de posies anteriormente colocadas.

O autor defende que aquilo que verdadeiramente est em causa so reptos colocados ao dispositivo

da fronteira e no a inteno concreta de eliminar esta; mas, curiosamente, existe a expectativa de

que a fronteira consiga proceder assimilao desses mesmos reptos e, em consequncia, voltar a

consolidar e a aumentar o seu poderio. Por tal motivo, ser mais avisado e enriquecedor observar a

evoluo da respectiva reaco do que nos fixarmos no seu to anunciado mas, muito provavelmente

falhado, decesso.

Seguidamente, questiona a possibilidade de se estar a verificar uma sobrevalorizao do conceito

de margem; segundo a linha de orientao do pensamento de Nelly Richard, consubstanciada no

entendimento dessa sobrevalorizao se reflectir na renovao da importncia atribuda a algumas

categorias perifricas, anteriormente subestimadas pelos centros da modernidade ocidental (tais como

a latinidade, o barroco, o gnero e, inclusive, a fronteira, para alm de outras), tal maximizao das

margens parece ter sido impulsionada por estes mesmos centros; e, neste contexto, coloca-se a

questo de saber se estaremos perante uma ofensiva do centro versus as suas prprias fronteiras,

procurando, assim, apoderar-se das caractersticas tpicas e da relevncia contra-predominante da

periferia.

Identificando e aprofundando as preocupaes expostas por N. Richard, notaremos que foi a crtica

ps-moderna que consciencializou o Centro18

sobre a sua prpria crise de centralidade, que o levou

a aperceber-se do alastramento das respectivas margens, bem como evidenciou o potencial que elas

encerram enquanto de zonas de ensaio.

Por outro lado e agora na perspectiva das periferias, veio a tornar-se premente a urgncia de

delinear uma estratgia de diferenciao em vrios patamares: entre uma marginalidade latino-

18

Nelly Richard, Cultural Peripheries: Latin America and Postmodernist De-centering, 1993, p.157.

23

americana19

e a defesa ps-moderna das margens, entre a equiparao da diferena ao exotismo e o

verdadeiro reconhecimento do direito dos sujeitos perifricos a essa mesma diferena, permitindo-

lhes negoci-la, independentemente de esteretipos ou de modelos pr-concebidos ou impostos.

Ademais, haver que precaver a genuidade da igualdade de armas posicionais neste debate, dado

que no so raras as vezes em que aqueles que afirmam defender o descentralismo se colocam, eles

prprios, no centro da discusso, por razes de prestgio, institucional ou acadmico.20

Certamente devido a possibilidade de criao deste tipo de enquadramentos indesejveis, surge

uma reaco de distanciamento crtico relativamente ideia que se pretende fazer passar, no sentido

de que a actualidade, relativamente fronteira, se caracteriza pelo facto de ela se encontrar num

momento de diluio. Ora, este entendimento dever ser analisado no campo das fronteiras

culturais e das fronteiras epistemolgicas, plano que se demonstra mais propcio a concluses

meramente especulativas.

Segundo os Autores Antnio Sousa Ribeiro e Maria Irene Ramalho, os propalados fim das

fronteiras epistemolgicas e diluio das fronteiras constituem concluses errneas e ilusrias, j

que, segundo realam aqueles investigadores, um pensamento crtico, pelo contrrio, , por

definio, um pensamento fronteirio, exerce-se, no para alm das fronteiras, mas na fronteira, isto

, mostra-se capaz de se situar nos espaos de articulao.21

E, por isso, urgir reagir, reafirmando esta potencialidade inequvoca e objectivamente localizada

do pensamento crtico, cuja aco se desenvolve interactivamente com a mobilidade da fronteira; na

verdade, ele vai acompanhado a sua capacidade constitutiva, em sede de reconfigurao face s

novas situaes com que confrontada e, assim, comprovar, caso a caso, o seu pragmatismo e

utilidade reais nas situaes concretas.

1.7. A relevncia da historicidade

O denominado n conceptual da fronteira tem claramente identificados os factores que o

constituem: so, por um lado, o aproveitamento psicolgico das condies actualmente dominantes

no debate sobre a concepo de fronteira, com remotas origens kantianas, mas que vem,

recentemente, adquirindo suficiente visibilidade e aceitao, de forma a posicionar-se como modelo

de anlise credvel; depois, a progressiva e adequada reformulao do conceito, em termos histricos,

conferindo-lhe o papel de elemento objectivamente legitimador daquilo que, apenas e afinal, nada

19

Jos Joaqun Brunner, Notes on Modernity and Postmodernity in Latin American Culture, 1993, pp.34-54. 20

Nelly Richard, Cultural Peripheries: Latin America and Postmodernist De-centering, 1993, p.161. 21

Antnio Sousa Ribeiro e Maria Irene Ramalho, Dos estudos literrios aos estudos culturais?, 1999, p.76.

24

mais do que uma metfora; adiciona-se a manifesta incompatibilidade de uma eficaz interaco

teleolgica dos dois primeiros factores, dado que se demonstram incompatveis para atingir as

finalidades que lhes foram impostas; ainda, a conflitualidade que eclode, por vezes, entre a vertente

poltica (geralmente por motivaes geopolticas ou histricas) e os actos concretos que a

funcionalidade dspar exige, como prtica, fronteira; aduz-se a abusiva e especulativa predisposio

para publicitar instabilidades que, alis, sendo inerentes ao conceito de fronteira, deveriam e

poderiam ser antecipadamente evitadas, desde que houvesse vontade poltica para lhe atribuir os

meios dissuasores e operativos de demarcao adequados, mas que no se disponibilizam, para,

hipocritamente, a posteriori, se invocar a sua funo inadmissivelmente redutora; por fim, a

emergncia de paradoxos, cujo contedo deve enformar o conceito sub judice, os quais, embora

no provindo do mesmo tronco dos raquitismos j aludidos, devem deles claramente ser

diferenciados e, em contraposio, serem antes referidos interveno das dependncias que

penetram o conceito e o integram, de que so exemplo adequado as decorrncias emanadas da tenso

verificada entre as aces de regulao e as de emancipao.

Deixando os paradoxos para uma posterior abordagem, o Autor lembra que se impe fixar a

ateno nos restantes elementos assinalados, at porque requerem um tratamento conjunto; e o que

estes parecem revelar , fundamentalmente, uma extrema dificuldade em inter-relacionar a (por assim

mais simplesmente dizer) fronteira histrica com a fronteira metafrica. A questo a colocar a

de que, sendo a fronteira uma metfora, afinal, ela uma metfora de qu?

Ora, em funo da concepo metafrica de Kant, eminentemente radicada na vertente poltica,

estaremos a referir-nos s fronteiras estatais; j nos nossos