Miseria Brasileira e Macrofilantropia Psicografando Marx

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237 MISÉRIA BRASILEIRA E MACROFILANTROPIA PSICOGRAFANDO MARX * Mário Duayer ** João Leonardo Medeiros *** Se filantropia fosse solução para a miséria, Chá de caridade seria subversão. RESUMO O artigo procura sugerir o que Marx teria a dizer sobre as teorias de po- breza contemporâneas caso se baseasse em sua análise do pauperismo e de suas in- terpretações em meados do século XIX, publicada na Vorwärts sob o título “Critical Marginal Notes on the Article: ‘The King of Prussia and Social Reform. By a Prus- sian’”. Considerando alguns traços recorrentes da literatura brasileira sobre pobre- za, o artigo sublinha a atualidade da crítica realizada por Marx das formas de cons- ciência que não podem se libertar do ponto de vista da sociedade civil e, por esta razão, agora como antes, não podem senão entreter idéias infantis e tolas sobre as causas da pobreza e da miséria. Palavras-chave: pauperismo; bem-estar; crítica marxista; políticas macrofilan- trópicas Códigos JEL: B51; D63 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003 * Artigo recebido em novembro de 2002 e aprovado em outubro de 2003. Uma versão em inglês deste artigo foi apresentada na VI Annual Conference of the International Association for Critical Rea- lism (IACR), Brydford (UK), agosto de 2002. ** Professor do Departamento de Economia, Faculdade de Economia da UFF – Universidade Federal Fluminense. R. Tiradentes, 17, Ingá, CEP 24210-510, Niterói, RJ, Brasil, e-mail: [email protected] *** Doutorando do IE/UFRJ – Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur, 250, Campus da Praia Vermelha, Urca, CEP 22290-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, e-mail: [email protected]

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Filosofia; crítica social; marxismo; política social; pobreza; miséria;

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    MISRIA BRASILEIRA EMACROFILANTROPIAPSICOGRAFANDO MARX*

    Mrio Duayer**

    Joo Leonardo Medeiros***

    Se filantropia fosse soluo para a misria,

    Ch de caridade seria subverso.

    RESUMO O artigo procura sugerir o que Marx teria a dizer sobre as teorias de po-

    breza contemporneas caso se baseasse em sua anlise do pauperismo e de suas in-terpretaes em meados do sculo XIX, publicada na Vorwrts sob o ttulo CriticalMarginal Notes on the Article: The King of Prussia and Social Reform. By a Prus-sian. Considerando alguns traos recorrentes da literatura brasileira sobre pobre-za, o artigo sublinha a atualidade da crtica realizada por Marx das formas de cons-cincia que no podem se libertar do ponto de vista da sociedade civil e, por estarazo, agora como antes, no podem seno entreter idias infantis e tolas sobre ascausas da pobreza e da misria.

    Palavras-chave: pauperismo; bem-estar; crtica marxista; polticas macrofilan-trpicas

    Cdigos JEL: B51; D63

    R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    * Artigo recebido em novembro de 2002 e aprovado em outubro de 2003. Uma verso em ingls desteartigo foi apresentada na VI Annual Conference of the International Association for Critical Rea-lism (IACR), Brydford (UK), agosto de 2002.

    ** Professor do Departamento de Economia, Faculdade de Economia da UFF Universidade FederalFluminense. R. Tiradentes, 17, Ing, CEP 24210-510, Niteri, RJ, Brasil, e-mail: [email protected]

    *** Doutorando do IE/UFRJ Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Av. Pasteur, 250, Campus da Praia Vermelha, Urca, CEP 22290-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil,e-mail: [email protected]

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    BRAZILIAN POVERTY AND MACROPHILANTROPHY:

    SPIRIT-WRITING MARX

    ABSTRACT This article is an attempt to suggest what Marx would have to sayabout contemporary theories of poverty if he were relying on his analysis of pau-perism and its interpretations by the middle of the 1800s, which was published inVorwrts under the title Critical Marginal Notes on the Article: The King ofPrussia and Social Reform. By a Prussian. Taking into account recent studies onpoverty made by Brazilian economists, the paper attempts to showing the topicalityof his critique of the forms of consciousness, which cannot free themselves from thepoint of view of civil society and, for that matter, now as before, can only come for-ward with childish and silly ideas in respect of the causes of poverty and misery.

    Key words: Poverty; Welfare; Marxist Critique; Macrophilanthropy.

  • 239Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    INTRODUO

    A massa de miserveis na sociedade capitalista do sculo XXI ultrapassa os

    cenrios mais pessimistas que, no sculo XIX, pude imaginar. Misria to

    mais infame diante do extraordinrio desenvolvimento das foras produti-

    vas. Expressa a magnitude atemorizante do problema, e no me refiro aqui

    a aspectos sentimentais, o rol infindvel de instituies pblicas e privadas,

    supranacionais, nacionais, estaduais, municipais, oficiais e no-oficiais, que

    realizam e/ou patrocinam, aparentemente sem economia de recursos finan-

    ceiros e humanos, toda sorte de investigaes com o propsito de diagnosti-

    car o mal social da misria e pobreza e de sugerir terapias correspondentes.

    Evidentemente, uma vez definidas, as terapias reclamam outras tantas insti-

    tuies em todos os nveis e mbitos para p-las em prtica.

    J em 1844, em uma apreciao crtica de um artigo publicado pela re-

    vista Vorwrts,1 analisei o fenmeno do pauperismo no caso clssico do ca-

    pitalismo quela altura a Inglaterra. Embora endmico na sociedade

    capitalista, o pauperismo, quando em escala epidmica, reclama com mais

    urgncia algum tipo de entendimento (interpretao) para sua administra-

    o e gerenciamento. Por isso, a crtica focalizou as formas de conscincia da

    burguesia inglesa sobre o pauperismo. Hoje, quando se assiste a uma epide-

    mia do pauperismo em escala global, dada a extenso mundial das relaes

    capitalistas, possvel igualmente analisar as formas de conscincia suben-

    tendidas na verdadeira coqueluche universal de estudos sobre a pobreza.

    Em 1844 o pauperismo clssico era o ingls. Atualmente, o pauperis-

    mo clssico mundial. Apesar disso, parece ser possvel investig-lo to-

    mando um clssico dos clssicos, o pauperismo brasileiro, como o suge-

    rem os inmeros indicadores internacionais de desigualdade e o demonstra

    a sbita compaixo pelos pobres que, no Brasil, parece animar as interven-

    es de um vasto espectro de tcnicos, polticos e empresrios.

    1. FORMAS DE CONSCINCIA BURGUESA DO PAUPERISMO

    NO SCULO XIX

    Os leitores vo me permitir recordar os elementos centrais de minha anlise

    do pauperismo do sculo XIX e a crtica s formas de conscincia que infor-

    mavam o gerenciamento poltico-administrativo deste mal social.

  • 240 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    No artigo em questo, tratei de criticar a interpretao elaborada por

    Arnold Ruge sobre a revolta dos teceles da Silsia (4 a 6 de junho de 1844),

    primeira grande luta do proletariado alemo. Em virtude do registro politi-

    cista2 de sua interpretao, o autor v na reao oficial do governo prus-

    siano ao levante dos trabalhadores a expresso da natureza apoltica da so-

    ciedade alem. Da por que, para ele, a misria dos distritos fabris alemes

    ingrediente central do referido levante no poderia ser entendida pe-

    las autoridades polticas prussianas seno como o resultado de uma defi-

    cincia administrativa e de beneficncia. Em outras palavras, o prussiano

    (Ruge) explica esta falsa concepo alem da misria dos trabalhadores a

    partir da idiossincrasia de um pas apoltico a Alemanha (Marx, 1978,

    p. 230). Como, no entanto, a Inglaterra era o pas do pauperismo e, indiscu-

    tivelmente, o pas poltico por excelncia, cabia examinar se as concepes

    inglesas sobre a misria no eram igualmente falsas.

    Perguntei-me, portanto, como a burguesia inglesa, juntamente com

    seu governo e sua imprensa, entende o pauperismo. Em primeiro lugar, a

    burguesia inglesa imputa o pauperismo poltica. Os partidos polticos

    (Tory e Whig) culpam-se reciprocamente pela misria. Nenhum dos dois

    partidos encontra a razo do mal na poltica em si mesma, mas apenas na

    poltica do outro partido. Uma reforma da sociedade algo com o que am-

    bos os partidos sequer sonham (ibid., p. 231).

    Por sua vez, a Economia nacional inglesa, forma de conscincia cientfica

    das condies da economia nacional inglesa, constitui a expresso mais

    radical da concepo inglesa (governo e burguesia) do pauperismo. Um

    conjunto de autores (Mac Culloch, por exemplo) simplesmente enaltece a

    capacidade da cincia de vislumbrar sem valoraes os detalhes ltimos da

    realidade social, naturalizando por conseguinte a misria. Um segundo

    conjunto de autores, ciente do perigo representado pelo pauperismo, o

    concebe, assim como a seus remdios, de uma forma no somente particu-

    lar mas tambm, para coloc-lo francamente, infantil e ridcula (ibid.,

    p. 232). Ilustrei esta ltima concepo com as formulaes do Dr. Kay, nas

    quais tudo fica reduzido a uma negligncia com a educao. Sem educao,

    o trabalhador no compreenderia as leis naturais do comrcio, que em seu

    funcionamento necessariamente o conduziriam misria. Estado de mis-

    ria que motivaria sua revolta. Revolta que perturbaria a prosperidade das

  • 241Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    manufaturas e do comrcio ingleses, abalaria a confiana mtua dos comer-

    ciantes e produziria instabilidade das instituies polticas e sociais3 (Kay

    apud Marx, ibid., p. 232). Concepes como essas mostram at que ponto

    chegava a irreflexo da burguesia inglesa e sua imprensa sobre o pauperis-

    mo, aquela epidemia inglesa (ibid.).

    Em suma, a concepo inglesa do pauperismo, tanto em sua verso pol-

    tico-partidria como em sua forma de conscincia cientfica, se resolvia na

    reduo da misria a insuficincias poltico-administrativas. Com isso, fiz

    ver a Ruge que as medidas contra o pauperismo preconizadas pela polti-

    ca burguesia inglesa eram semelhantes s propostas idealizadas na supos-

    tamente apoltica Alemanha, a saber: polticas pblicas filantrpicas e/ou

    administrativas.

    Na verdade, contra Ruge, pude demonstrar, num rpido panorama que

    me permito aqui sumariar, que as aes implementadas na Inglaterra para

    lidar com o pauperismo no diferiam em absoluto das medidas vislumbra-

    das pelo governo prussiano. De fato, recordei que a legislao inglesa sobre

    os pobres, datada do sculo XVI, institua um aparato oficial, centrado nas

    parquias, destinado a amparar os trabalhadores pobres sob os auspcios da

    taxa dos pobres. Em outras palavras, durante os dois sculos de vigncia

    dessa legislao, a Inglaterra cuidou do pauperismo atravs da beneficn-

    cia pelo caminho burocrtico. No final do sculo XVIII, diante do terrvel

    aumento do pauperismo, o Parlamento ingls considerou imperativo re-

    formar a legislao. A epidemia da pobreza foi de imediato atribuda a uma

    deficincia administrativa. Da a reforma da administrao da taxa dos

    pobres, que resultou num aparato burocrtico to formidvel a ponto de

    o capital controlado por essa administrao quase igualar a soma que custa

    o exrcito francs. Diante da exorbitncia dos gastos envolvidos, o Parla-

    mento ingls, em 1834, vai alm de uma reforma formal da administrao

    do pauperismo. A partir desse momento, viu na prpria lei dos pobres

    a fonte principal da situao extrema do pauperismo ingls. Na verdade,

    descobriu o Parlamento que a [prpria] medida legal contra o mal social, a

    beneficncia, alimentava o mal social (concluso esta fundamentada de-

    certo nas idias de Malthus, para quem os pobres tm a lamentvel inclina-

    o de se multiplicarem mais rapidamente do que os meios de subsistn-

    cia).4 Segundo esta interpretao, a beneficncia seria uma loucura, pois

  • 242 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    representaria um estmulo pblico misria (Malthus apud Marx, ibid.,

    p. 233). O Parlamento ingls associa a filantrpica teoria de Malthus com

    a opinio de que o pauperismo a misria de que so culpveis os prprios

    trabalhadores. No custou concluir portanto que a misria, em lugar de

    ser prevenida como uma desgraa, deve ser reprimida e castigada como um

    crime. Inspirado por tais idias que encaravam a misria como falha moral

    dos miserveis, o Parlamento eliminou qualquer proteo para os trabalha-

    dores aptos, exceto o trabalho nas workhouses, concebidas para desencora-

    jar os miserveis a buscar refgio contra a morte por fome. Ali, nas work-

    houses, a beneficncia foi inteligentemente combinada com a vingana do

    burgus contra o msero que apela sua beneficncia5 (ibid., p. 233-234).

    Em suma, na Inglaterra, assim como na Alemanha, o pauperismo, julga-

    do resultante ora da falta de beneficncia, ora do excesso de beneficncia, foi

    sempre manejado com medidas filantrpico-administrativas. Portanto, em

    ambos os casos, jamais foi considerado conseqncia necessria das relaes

    sociais de produo, em particular da indstria moderna. A poltica Ingla-

    terra, ao contrrio do que pensa Ruge, conferiu ao pauperismo uma signifi-

    cao geral que o concebe simplesmente como resultado do desenvolvimen-

    to e que, a despeito de todas as medidas administrativas, converteu-se em

    uma instituio nacional, requerendo um massivo e intrincado aparato ad-

    ministrativo. E que j no tem o propsito de erradicar o pauperismo, mas

    sim de gerenci-lo. Desse modo, ao naturaliz-lo, eterniza-o, e desiste de eli-

    minar por meios positivos a fonte do pauperismo, limitando-se a cavar-lhe

    uma tumba com policial ternura, toda vez que aparece na superfcie do pas

    oficial (ibid., p. 234).

    Para no ser acusado de realizar uma anlise unilateral, trouxe tambm

    discusso as desventuras da burguesia francesa com o pauperismo. Recordei

    a infrutfera tentativa de Napoleo de eliminar instantaneamente a mendici-

    dade. Tendo encarregado as autoridades de desenvolver projetos com este

    propsito, Napoleo recebeu escasso retorno. Em razo disso, expediu or-

    dem ao ministro do Interior com um ultimato: a mendicncia deveria acabar

    no prazo de um ms. O formidvel desfecho de tal ordenao, embora haja

    excedido o prazo imperial, materializou-se no aprisionamento dos pobres.

    Poupou assim o Imperador, segundo um seu sicofanta, ao pas oficial o es-

    petculo desagradvel das enfermidades e da vergonhosa misria. Essa inca-

  • 243Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    pacidade de Napoleo deixa patente que a misria no eliminvel por me-

    didas administrativas, nem sequer pelo poderoso Imperador. Isso vale igual-

    mente para medidas administrativas filantrpico-educacionais reclamadas

    por Ruge ao rei da Prssia. Eliminar o pauperismo alemo mediante a edu-

    cao de todas as crianas abandonadas, como quer Ruge, na verdade pres-

    supe nada menos do que

    a supresso do proletariado. Para educar crianas h que se aliment-las eliber-las do trabalho assalariado. A alimentao e educao das crianas de-samparadas, quer dizer, a alimentao e educao de todo o proletariado emmaturao, significaria a supresso do proletariado e do pauperismo. (ibid.,p. 234-235)

    Tampouco a Conveno [Assemblia Francesa de 1792-1795] teve suces-

    so no combate ao pauperismo, no obstante haver adotado procedimentos

    diversos. preciso reconhecer que ao menos pretendeu abolir o pauperis-

    mo, se bem que no imediatamente. Abordou o problema com uma atitude

    substancialmente investigativa: comissionou planos e propostas a um co-

    mit; o comit mergulhou nas extensas investigaes da Assemblia Cons-

    tituinte sobre o estado da misria na Frana; e, com base nisso, props-se o

    decreto dispondo sobre a caridade nacional etc. Todas essas tremendas ra-

    ciocinaes redundaram em nada alm de mais um decreto no mundo

    [U]m ano mais tarde mulheres famintas sitiaram a Conveno (ibid.,

    p. 235-236).

    No se deve surpreender com este pfio remate, mesmo considerando

    que a Conveno, como assinalei, representou o mximo de energia polti-

    ca, de poder poltico e de entendimento poltico. O Estado no pode atuar

    de outra maneira. Sempre que os Estados se ocuparam com o pauperismo,

    cingiram-se no mximo a medidas administrativas e de beneficncia. Tal re-

    gra, naturalmente, clama por explicao.

    2. PARA A CRTICA DO PAUPERISMO COMO PROBLEMA POLTICO,

    ADMINISTRATIVO E FILANTRPICO

    Antes de tudo, necessrio ter presente que o Estado jamais descobrir a

    causa dos males sociais no Estado e na organizao social. Esta uma

    questo fundamental. Sequer os partidos radicais e revolucionrios, quando

  • 244 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    vem na forma do Estado e no na sua natureza a causa dos males sociais,

    chegam a compreend-la. Da a razo pela qual essencial fazer uma crtica

    ao registro politicista sob o qual tais questes so em geral interpretadas.

    Desde um ponto de vista poltico, o Estado e a organizao da sociedade

    no so duas coisas distintas. O Estado a organizao da sociedade. Quan-

    do chega a reconhecer a existncia de abusos sociais, o Estado os atribui seja

    a leis naturais, fora do alcance das foras humanas, seja vida privada, que

    lhe independente, seja a disfuncionalidades da administrao, dele depen-

    dentes. Como vimos, a Inglaterra acredita que a misria conseqncia do

    crescimento da populao a taxas maiores do que as do crescimento dos

    meios de produo, uma lei natural; o pauperismo, da m vontade dos po-

    bres. J para o rei da Prssia, o problema reside na falta de sentimento cristo

    dos ricos. A Conveno, por sua vez, culpa a atitude contra-revolucionria e

    suspeita dos proprietrios. Ento: a Inglaterra castiga os pobres, o rei da

    Prssia exorta os ricos e a Conveno guilhotina os proprietrios. Por fim,

    todos os Estados vem nos defeitos da administrao a causa dos males so-

    ciais. Corrigir a administrao seria portanto a terapia correspondente.

    Justamente porque a administrao a atividade organizadora do Estado

    (ibid., p. 236).

    Todos esses insucessos em lidar poltico-administrativamente com o

    pauperismo ilustram a natureza contraditria do Estado.

    A contradio entre, por um lado, o carter e a boa vontade da administra-o e, por outro, seus meios e capacidade, no pode ser superada pelo Esta-do sem que este se supere a si mesmo, posto que o Estado se baseia nestacontradio. O Estado se baseia na contradio entre a vida pblica e priva-da, entre os interesses gerais e os particulares. Por essa razo, a administra-o tem que se limitar a uma atividade formal e negativa toda vez que seupoder acaba onde comea a vida civil e seu trabalho. (ibid., p. 237)

    Diante da ltima de minhas mortes e refiro-me aqui, claro, s mor-

    tes espirituais, j que a fsica foi uma e definitiva , e da conseqente disso-

    luo contempornea da significao crtica da vida humano-social para

    cuja formulao penso ter contribudo a tradio do pensamento socia-

    lista conformada ao menos nos ltimos dois sculos , estou convencido

    de que ser necessrio acompanhar ainda com mais detalhe os argumentos

    que fundamentam a minha crtica queles que depositam no Estado, inde-

  • 245Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    pendentemente de sua forma, todas as esperanas de construo de um

    mundo genuinamente humano. Tais argumentos constituem um esboo,

    longe de completo, de minhas concepes sobre o Estado e, em particular,

    da concepo negativa do poltico. A necessidade de tal detalhamento ser

    hoje to mais compreensvel porque, rudo o imprio do pensamento posi-

    tivista ao qual sucumbiram at mesmo sinceros correligionrios, todos sa-

    bem que as teorias no apenas descrevem assepticamente os fatos, mas

    sobretudo os significam. Portanto, se nos dias atuais todos esto prontos a

    admitir que as teorias, alm de construrem uma imagem do mundo, uma

    ontologia, tambm a pressupem, ento ningum h de se surpreender se

    insisto neste momento na reafirmao enftica, como alis sempre o fiz,

    no s da natureza explicitamente ontolgica de minhas formulaes teri-

    cas, mas do carter distintivo da ontologia do ser social que procurei deli-

    near em minhas obras.6 Para diz-lo nos termos de outra obra, A questo ju-

    daica, os traos essenciais da ontologia do ser social so apresentados, em

    meu caso, sob a perspectiva da sociedade humana, enquanto a ontologia, de

    hbito velada, das tradies tericas que critico expressa a tica historica-

    mente limitada da sociedade civil (Marx, 1977, p. 347-377).

    A crtica recproca de teorias proferidas desde ontologias radicalmente

    distintas ininteligvel, portanto, quando suprimido o referencial ontol-

    gico que lhes fornece sentido e sustentao. A crtica ontolgica, longe de

    subentender o dilogo impossvel entre habitantes de mundos diversos,

    absurda hiptese das teorias do progresso da cincia que grassam em vossa

    poca, justamente a condio e o pressuposto das disputas tericas subs-

    tantivas. Enfim, se as teorias significam o mundo, o embate terico o em-

    bate de significaes. E no h como ser indiferente ao resultado do con-

    flito, que vale como a representao mais adequada da realidade. Pois se o

    mundo, tanto o natural como o social, existe independentemente de nossas

    representaes, a sua representao mais adequada possvel condio

    para a satisfao de nossas necessidades e desejos possveis. Neste particu-

    lar, a questo do pauperismo oferece uma ilustrao exemplar. Nunca fal-

    taram, como vimos, o desejo, a inteno e as polticas pblicas para acabar

    com a pobreza. Mas, dada a falsa representao da realidade social em que

    esto baseadas, as polticas pblicas jamais poderiam tornar o desejo rea-

    lidade.

  • 246 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    A falsa representao subjacente s aes contra o pauperismo, constru-

    da a partir da tica da sociedade civil, torna a impotncia a lei natural da

    administrao diante das

    conseqncias que brotam da natureza anti-social desta vida burguesa, destapropriedade privada, deste comrcio, desta indstria, deste saque mtuodos diversos setores burgueses que esta dilacerao, esta vileza, este es-cravismo da sociedade burguesa o fundamento natural no qual se baseiao Estado moderno, do mesmo modo que a sociedade burguesa do escravismofoi o fundamento natural no qual se apoiava o Estado antigo. A existnciado Estado e da escravido so inseparveis. O Estado antigo e a escravidoantiga contraste clssico e franco no estavam fundidos entre si maisintimamente do que o moderno Estado e o moderno mundo do lucro hi-pcrita contraste cristo. Se o Estado moderno quisesse terminar com a im-potncia de sua administrao, teria que abolir a atual vida privada. No en-tanto, ao querer abolir a vida privada, teria que abolir a si mesmo, j que sexiste por oposio a ela. Porm, no h um ser vivo que acredite que os de-feitos de sua existncia estejam fundados em seu princpio vital, na essnciade sua vida, mas em circunstncias que lhe so extrnsecas. O suicdio an-tinatural. Portanto, o Estado no pode crer na impotncia interna de suaadministrao, ou seja, de si mesmo. Pode apenas reconhecer defeitos for-mais, acidentais e tratar de remedi-los. Tais modificaes no solucionamnada? Ento o mal social uma imperfeio natural, independente do serhumano, uma lei divina; ou a vontade das pessoas privadas encontra-se de-masiadamente pervertida para corresponder s boas intenes da adminis-trao, e como tergiversam!: queixam-se quando o governo limita a liberda-de e exigem dele que impea suas inevitveis conseqncias.7 (Marx, 1978,p. 237)

    De modo que as aporias da razo poltica so expresses das antinomias

    da sociedade civil, da qual razo necessria. Por isso,

    quanto mais poderoso o Estado e, portanto, mais poltico um pas, tantomenos disposto est a buscar a razo dos males sociais no princpio do Estado ou seja, na atual organizao da sociedade, da qual o Estado expressoativa, consciente de si e oficial , tanto menos disposto est a compreenderque o Estado o princpio universal desses males. A razo poltica precisa-mente razo poltica, porque pensa sem sair dos limites da poltica. Quantomais aguda, quanto mais viva, tanto mais incapaz de compreender os ma-les sociais. (...) O princpio da poltica a vontade. Quanto mais parcial, ou

  • 247Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    seja, quanto mais perfeita a razo poltica, tanto mais cr na onipotncia davontade, tanto maior sua cegueira frente aos limites naturais e mentais davontade, tanto mais incapaz portanto de descobrir a fonte dos males so-ciais. (ibid., p. 237-238)

    3. O PAUPERISMO CONTEMPORNEO: NOVAS TEORIAS DA POBREZA

    Consideradas as formas de conscincia, polticas e tericas, por meio das

    quais o sculo XIX equacionava o pauperismo, interessa agora cotej-las,

    como sugeri no incio, com as idias correspondentes do sculo XXI. No

    entanto, o pauperismo atual, preciso frisar, vem complicado pelo desen-

    cantado reconhecimento de que o capital hoje, ao contrrio do que ocorreu

    nos anos dourados do ps-guerra, no capaz de ser crescentemente in-

    clusivo como pretenderam as teodicias do crescimento econmico.

    A acumulao de capital nas ltimas dcadas requereu mudanas substanti-

    vas nas instituies que a caracterizaram nas primeiras dcadas do ps-

    guerra, dentre as quais em geral se sublinham as seguintes: aumento da fle-

    xibilidade de todos os mercados, reduo da atuao direta do Estado na

    economia, enfraquecimento do papel dos sindicatos, hipertrofia da esfera

    financeira etc. Por contraste com o perodo imediatamente anterior, esta

    etapa vem sendo caracterizada como contra-revoluo conservadora.

    Evidentemente, nessas circunstncias, a razo terica de inspirao neo-

    clssica estava mais do que habilitada a se tornar a interpretao da econo-

    mia por excelncia. Nenhuma outra tradio terica poderia com ela riva-

    lizar na exortao das qualidades intrnsecas do mercado e, portanto, na

    celebrao da reduo do papel do Estado e dos sindicatos, e da desregula-

    mentao geral dos mercados. Por isso a sua interpretao a interpretao

    hegemnica das novas circunstncias e exigncias deste momento especfi-

    co da acumulao do capital. Por ser, portanto, a significao hegemnica

    da nova economia, o manancial terico das polticas necessrias para

    seu gerenciamento.

    Apresento a seguir um esboo dessa interpretao da nova economia

    em seu momento de sntese, quando j foi convertida, por depuraes e

    simplificaes sucessivas, em instrumentos ideolgicos manuseados pelos

    organismos internacionais gestores do capital no plano global (Banco Mun-

    dial, FMI, OMC etc.).8 Neste momento, a interpretao se despe de sua rou-

  • 248 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    pagem terica e assume a figura de diretrizes gerais, normas de conduta,

    planos de interveno, objetivos estratgicos e assim por diante. Enquanto

    tal, funciona como um pacote interpretativo, pacote de significao, sob a

    forma de polticas econmicas cujos objetivos e valores j no mais se ofere-

    cem inspeo crtica verdadeiro ncleo rgido lakatosiano.

    Tome-se, a ttulo de ilustrao, a caracterizao da dinmica e dos impe-

    rativos da nova economia elaborada por um autor insuspeito de tramar

    contra o mercado.9 Convencido da emergncia definitiva da nova econo-

    mia, Foxley nos presta o servio de sintetizar as concepes de um daqueles

    organismos internacionais (Banco Mundial). Aps muitos estudos, o Banco

    Mundial parece ter descoberto os processos pelos quais os pases devem

    inexoravelmente passar para se conformarem aos imperativos da nova

    economia. Os processos compem-se, presumivelmente, de trs fases.

    A primeira fase, ligada crise da dvida (dos pases subdesenvolvidos), im-

    pe pura e simplesmente a necessidade de estabilizar a economia. A segun-

    da fase d incio a uma transformao estrutural (abertura da economia,

    processo de privatizao e processo muito rpido de liberalizao finan-

    ceira). Finalmente, na terceira fase, bem-sucedidas as anteriores, os pases

    teriam condies de elevar substancialmente e de maneira sustentvel o in-

    vestimento e a produtividade (Foxley, 1996, p. 1).

    razo terica burguesa no escapa o nexo entre este processo de irra-

    diao da nova economia e o pauperismo. um nexo admitido e de-

    monstrado pelos prprios apologistas da contra-revoluo conservadora.

    Os processos acima subentendem na verdade as transformaes que as eco-

    nomias subdesenvolvidas (economias emergentes, em desenvolvimento,

    entre outros neologismos) teriam forosamente que experimentar em seu

    trnsito para o novo. Novo do qual as economias dos pases desenvolvi-

    dos seriam por suposto a encarnao. Lamentavelmente, essa moderniza-

    o tem drsticos efeitos colaterais temporariamente, espera-se tais

    como desemprego, reduo de salrio, precarizao do trabalho, enfim, to-

    dos fenmenos ligados pobreza. Da se depreende de imediato a forma de

    conscincia burguesa contempornea sobre o pauperismo, resumida na se-

    guinte equao: a dinmica econmica envolve uma incessante moderni-

    zao que, transitoriamente e em algumas reas, produz efeitos pernicio-

    sos. Diante desse movimento quase natural, sobretudo quanto sua forma

  • 249Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    (burguesa), conscincia no resta seno o papel de aliviar os seus even-

    tuais inconvenientes.

    Foxley descreve com riqueza de detalhes, alm de notvel impassibili-

    dade cientfica, como a conscincia burguesa vossa contempornea conce-

    be esse vnculo entre acumulao de capital e pauperismo. Segundo ele, o

    processo acima mencionado produz os seguintes danos colaterais:

    Fase 1: Os programas de estabilizao econmica (ps-crise da dvida) sem-pre foram sustentados por organizaes econmicas internacionais quepropunham, essencialmente, um conjunto uniforme de polticas cujo resul-tado, ao menos durante esta fase, seria, com freqncia, a desacelerao docrescimento econmico, o aumento do desemprego, redues nos salrios reais ereduo do gasto pblico onde seria mais fcil, a saber, gasto em setores sociais.(...) [Polticas que no poderiam] seno resultar na deteriorao da distribui-o de renda e, muito provavelmente, no nvel de pobreza.

    Fase 2: (...) os dois possveis resultados do processo de privatizao refor-am o impacto negativo da distribuio de renda observado na fase anterior.[Para resumir: como a privatizao em geral de servios de utilidade pbli-ca, Foxley quer dizer, ainda que o faa de modo oblquo, que as companhiasprivatizadas aumentam o preo para alm da capacidade de pagamento dasfamlias de baixa renda. Por outro lado, a combinao de privatizaocom abertura da economia competio internacional faz com que o setorde tradables redefina, com efeitos negativos sobre a distribuio de renda, aestrutura de salrios para alavancar sua capacidade competitiva.]

    Fase 3: Com a concluso do processo de privatizao e o insuficiente in-vestimento em infra-estrutura, necessrio para produzir um aumento sus-tentado na produtividade, torna-se uma questo crtica a oferta e qualidadedos bens e servios pblicos, que produzem estrangulamentos nas estradas,portos, aeroportos, telecomunicaes e assim por diante. Mas tambm setorna crtica no impacto na distribuio de renda ou... no impacto na quali-dade de vida dos estratos de renda mais baixos. (idem, p. 2-5. Itlicos adicio-nados)

    A frieza arrepiante de tal relato, que observa a misria necessariamente

    produzida pela lgica do capital com o mesmo distanciamento com que os

    cientistas naturais observam o movimento dos corpos celestes, talvez se

    possa explicar, por um lado, pela crena incondicional na naturalidade do

    mercado e, por outro, pela convico crist de que o bem sempre pressupe

    a purgao do mal.

  • 250 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    O vnculo entre a nova economia e o pauperismo, no entanto, tem

    efeitos prticos prejudiciais prpria ordem do capital. A razo que consta-

    ta aquele vnculo a mesma, naturalmente, que capaz de vislumbrar os

    tremendos problemas polticos e sociais por ele gerados, com seus efeitos

    negativos para a legitimao ideolgica da nova economia. Afinal, multi-

    des de miserveis no desaparecem por milagre, com meras exortaes

    publicitrias. Demandam, antes, aes concretas que ao menos dem a

    impresso de cuidado, zelo, enfim, de compaixo pelos pobres. As agncias

    internacionais podem ser encaradas como instncias deste momento hu-

    manitrio da razo terica, seu brao prtico.

    Sob outra tica, este momento humanitrio nada mais seria do que

    um aspecto necessrio, diante do pauperismo alarmante, do programa sis-

    temtico para o estabelecimento e consolidao do capitalismo em escala

    global (Cammack, 2002, p. 127). O aparente interesse em cuidar dos po-

    bres e desassistidos, proclamado em diretrizes e aes dos organismos inter-

    nacionais capitaneados pelo Banco Mundial, em verdade dissimulam ne-

    cessidades do capital. Em outras palavras:

    O agir intencional de agentes humanos, dirigido ao estabelecimento da he-gemonia de uma forma social particular de organizao da produo, veioapresentado como se fosse o resultado natural de foras abstratas, cujo po-der supera a capacidade de resistncia da humanidade. (ibid., p. 132)

    Em um item intitulado Manifesto capitalista, em aluso ao meu Mani-

    festo comunista, o autor condensa com extrema felicidade as particularida-

    des da acumulao de capital que marcam a nova economia. O ambiente

    reclamado nessa nova ofensiva na direo de alargar e aprofundar o dom-

    nio das relaes mercantis capitalistas, agora supostamente desimpedido de

    alternativas sociais viveis, envolve uma estratgia destinada a proletarizar

    os pobres do mundo, estender ao mximo o alcance da produo de merca-

    dorias, projetar uma matriz institucional para fomentar a troca capitalista,

    entre outras coisas. Obviamente, a viabilizao a longo prazo deste projeto

    pressupe municiar o capital de um volume apropriado de pessoas com

    educao e sade suficientes para funcionarem como trabalhadores assala-

    riados, providenciar infra-estrutura pblica necessria para a produo ca-

    pitalista e, ao lado disso, criar estruturas institucionais com o propsito de,

    por um lado, garantir que o comportamento dos trabalhadores reforce o

  • 251Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    regime capitalista e, por outro, fomentar a competio intercapitalista e in-

    duzir o apoio dos governos ao capital domstico e internacional. Por l-

    timo, mas no menos relevante, combinar tudo isso com uma ofensiva

    ideolgica tendo em vista a persuaso da populao mundial de que no h

    outra alternativa e que o sistema globalizado de livre mercado constitui a

    nica soluo ao problema da pobreza mundial (ibid., p. 127).

    Instrumento ativo e consciente deste projeto, o Banco Mundial vem

    procurando implement-lo com todos os fantsticos recursos sua disposi-

    o, como o demonstra Cammack pela inspeo de seus celebrados Relat-

    rios de Desenvolvimento Mundial. Basta acompanhar o roteiro dos temas

    especficos desses relatrios para se verificar a sistematicidade com que o

    Banco Mundial vem atuando em conformidade com o referido projeto.

    O relatrio de 1990-1991, intitulado Poverty, demandava nada menos que a

    criao do proletariado mundial; o de 1991-1992 defendia a expanso hori-

    zontal e vertical dos mercados; o de 1992-1993 centrava na necessidade de

    preservar a ecoestrutura adequada expanso da acumulao; o de 1993-

    1994 propunha mecanismos market-friendly para prover um proletariado

    pronto para o trabalho; o de 1994-1995 estendia a atuao da iniciativa pri-

    vada na proviso de infra-estrutura. Aps ter dado ateno a tais requisitos

    macroestruturais, o Banco Mundial tratou, nos relatrios subseqentes, das

    estruturas institucionais das quais deveriam estar acompanhados. Assim, o

    relatrio de 1995-1996 versava sobre as condies que poderiam facilitar a

    explorao irrestrita do trabalho pelo capital mundial; o de 1996-1997, sob

    o sugestivo ttulo de From Plan to Market, focalizava os pases ps-comunis-

    tas em apuros com o propsito de, definidas as estratgias para a sua tran-

    sio, organizar as necessrias instituies de uma economia de mercado;

    o de 1997-1998 retomou a questo do papel do Estado no novo regime ca-

    pitalista internacional; o de 1998-1999 props o prprio Banco Mundial

    como depositrio global e disseminador da inteligncia dos pases em de-

    senvolvimento; o de 1999-2000 retratou a globalizao como uma fora ir-

    refrevel levando inexoravelmente Estados e povos ao mercado mundial e o

    localismo como presso dos de baixo que obrigaria os governos a adminis-

    trarem as conseqncias em conformidade com as necessidades regionais;

    finalmente, no relatrio de 2000-2001, o Banco Mundial reassumiu a sua

    misso central: Atacar a pobreza. Em adio, oferecia seu programa para a

  • 252 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    expanso do capitalismo mundial como nico meio pelo qual se poderia li-

    dar com a pobreza (ibid., p. 127).

    Curiosa razo essa que sustenta e promove uma ordem social que pro-

    duz misria e se quer redeno da pobreza. Curiosa instituio essa cujo

    slogan Atacar a pobreza um cruel eufemismo para Atacar os pobres (ibid.,

    p. 134). Curiosa razo cientfica (teoria econmica) essa que doutrina sobre

    as relaes econmicas que produzem o pauperismo e, adiante, comparece

    distraidssima para acudir os pobres. Parodiando um crtico perspicaz, que

    sociedade essa cuja razo cientfica se lana a clculos complexos para dis-

    tribuir sanduches para pobres e miserveis (Fiori, 2001, p. 20)? Que socie-

    dade essa em que a razo cientfica, ocupada numa pletora de aes filan-

    trpicas, funciona como verdadeira rentista da misria alheia?

    Creio que isso bastante para ilustrar a natureza dramtica e o carter

    internacional do pauperismo atual, sua origem nas transformaes do capi-

    tal e, ao mesmo tempo, as formas de conscincia burguesa que pressupe e

    promove. As formas de conscincia regionais refletem e reforam esse mi-

    lieu mundial. Quando essas razes locais se defrontam com seus prprios

    pobres, no assalto, na mendicncia ou na mais aptica indigncia, j dis-

    pem dos recursos para lidar com o problema: arsenal analtico, institui-

    es e meios financeiros. Por isso, na anlise do caso brasileiro que se segue,

    preciso no esquecer que a conscincia local sobre o pauperismo no

    original, no discrepa daquele milieu intelectual.

    4. A MISRIA BRASILEIRA: CASO CLSSICO DOS CLSSICOS

    E SUA NOVA SOLUO

    O pauperismo hoje, como o demonstram os cuidados do Banco Mundial,

    global. O seu caso clssico no se situa portanto apenas em um pas, como

    outrora. No entanto, quando se trata de pauperismo, pode-se recorrer ao

    caso clssico dos clssicos o Brasil. Essa condio detectada por auto-

    res de renome como Habermas e Lipietz. Ambos os autores, ao denuncia-

    rem a possibilidade de que os processos de transformao da sociedade ca-

    pitalista contempornea conduzam a graus crescentes de concentrao de

    riqueza e concomitante excluso social, inclusive nos pases ditos desenvol-

    vidos, empregam a expresso brasilizao do mundo para denotar tal pos-

  • 253Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    sibilidade. Quanto a isso, alis, os indicadores internacionais de misria,

    pobreza e desigualdade so insofismveis, a despeito de seus critrios eufe-

    msticos. De acordo com o assim chamado Relatrio de Desenvolvimento

    Humano do PNUD, o Brasil exibe os seguintes indicadores da performance

    do capitalismo no pas: 8 economia do mundo em termos de Produto In-

    terno Bruto; 54 em termos de renda per capita; 47% da renda apropriada

    pelos 10% mais ricos, enquanto 1% da renda atende os 10% mais pobres.

    Dos 162 pases constantes da amostra, o Brasil um dos ltimos (157)

    quando o critrio a voracidade da burguesia (PNUD, 2001). Segundo esti-

    mativas oficiais, agora brasileiras, h no pas 22 milhes de famintos (14%

    da populao) e 53 milhes de pobres (34% da populao) (Barros et al.,

    2000, p. 23). Uma situao to calamitosa, como insinuada por essas estats-

    ticas, no escapa nem ao mais distrado pedestre.

    Naturalmente o pas oficial no poderia pretender que o problema ine-

    xiste. Governo, partidos, igrejas e imprensa mostram-se consternados e in-

    conformados com a misria brasileira. A razo cientfica, evidentemente,

    no poderia estar imune a sentimentos to elevados. Vejamos como ela tem

    se manifestado. Henriques, na apresentao de uma extensa coletnea de

    estudos sobre o tema, aponta a vergonhosa desigualdade histrica brasilei-

    ra que, para ele, no decorre de nenhuma fatalidade histrica, apesar da

    perturbadora naturalidade com que a sociedade a encara10 (2000, p. 2). Em

    associao com outros autores, sublinha ainda a extraordinria persistncia

    das desigualdades da sociedade brasileira, que resistiu inabalada a variadas

    transformaes estruturais e diferentes conjunturas (Barros et al., 2000,

    p. 46). Ramos e Vieira, e devo confessar que no estou seguro se compreen-

    di inteiramente suas razes, chamam ateno para a importncia de se

    constatar o quadro de misria do pas:

    O fato de a distribuio de rendimentos no Brasil ser caracterizada por umdos mais elevados graus de iniqidade no mundo inteiro j foi registradopor vrios autores, assim como as conseqncias perversas dessa desigualda-de em termos de uma significativa incidncia de pobreza, realados pelo fatode a renda per capita do pas no ser suficientemente elevada. Embora noconstitua novidade, essa constatao continua se revestindo de fundamentalimportncia, particularmente em um momento em que o pas atravessa di-ficuldades na capacidade de crescer e o mercado de trabalho vem se revelan-

  • 254 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    do incapaz de gerar empregos em quantidade suficiente para absorver aoferta de mo-de-obra, e os rendimentos do trabalho apresentam contnuasquedas. (2000, p. 159)

    Talvez Ferreira ajude a elucidar a relevncia dos insuperveis esforos

    envidados para constatar vale dizer, mensurar o pauperismo brasilei-

    ro. De acordo com o autor,

    cabe ao pesquisador tentar entend-las [as causas da desigualdade], e parteda compreenso vem de isolar aquelas causas cujos efeitos sobre a desigual-dade so os principais. Essa tarefa deixa de ser mera curiosidade acadmicana medida em que: (a) o Brasil continua a ser um dos pases mais desiguaisdo mundo, e (b) essa desigualdade, alm de desgostosa [sic] em si mesma,parece ter efeitos negativos sobre o desempenho agregado da economia.(2000, p. 155)

    Diante da dimenso epidmica do pauperismo, a razo cientfica faz o

    que dela se espera, como exorta Ferreira: cuida de entender suas causas. No

    entanto, como as estruturas sociais que produzem o pauperismo brasileiro

    so essencialmente as mesmas que produziam o pauperismo no sculo XIX,

    lcito presumir que a razo cientfica oficial, hoje como outrora, brasileira

    ou no, incapaz de descobrir as suas causas. Cumpre agora demonstr-lo

    empiricamente.

    O enquadramento terico do pauperismo brasileiro no foge, e nem po-

    deria, dos referenciais usados para o enquadramento do pauperismo no

    passado. Suas causas so atribudas ou operao de leis naturais, ou

    vida privada, ou a deficincias administrativas e/ou filantrpicas.

    As leis naturais hoje, quando tudo encarado como capital, se manifes-

    tam tradio terica que informa os estudos do pauperismo como, entre

    outras coisas, capital geogrfico, capital demogrfico e, qui, capital

    atmosfrico. Para no entediar o leitor alm do necessrio, basta conside-

    rar os supostos efeitos do capital geogrfico sobre a misria.

    Diferentes nveis de capital geogrfico, tais como clima, infra-estruturalocal, acesso aos servios de utilidade pblica, conhecimento sobre a realida-de fsica local e tecnologias adequadas, influenciam o uso do capital privado.(...) Pessoas pobres tendem a viver em regies com ms condies de supri-mento. Dadas as mesmas caractersticas pessoais, elas estariam melhor se es-tivessem vivendo em regies mais ricas. (Azzoni et al., 2000, p. 299)

  • 255Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    No admira que a singular concepo, que tem por geogrficas coisas tais

    como acesso aos servios pblicos, conhecimento sobre a realidade fsica

    local e tecnologias, possa atribuir geografia uma parcela da culpa da po-

    breza. Alivio o leitor do capital demogrfico, pois estou seguro de que

    perceber que tal linha de raciocnio, com sua insupervel liberdade de cria-

    o de categorias, vale igualmente para este caso.

    Em suas consideraes acerca das particularidades da vida privada, as

    correntes tericas da pobreza identificam suas causas em traos pernicio-

    sos, seja de pobres, seja de ricos. No caso das elites, pode-se mencionar o

    estudo que, na inteno de viabilizar as polticas pblicas mediante a exorta-

    o e o convencimento das elites, props-se a tarefa de investigar sua viso

    sobre a pobreza. Em suas concluses, a autora, apesar de assinalar diversos

    vcios privados das elites brasileiras, aposta ainda assim na possibilidade

    de manipular suas motivaes em prol, seno da eliminao da pobreza, ao

    menos de sua reduo a dimenses aparentemente tolerveis:

    (...) resta-nos concluir que se bem que seja to difcil arregimentar apoiopara implementar polticas de combate pobreza e desigualdade, aindacom o recurso persuaso e/ou coero que preciso contar para alterarresultados de mercado que nos paream inaceitveis por questes ticas oupragmticas. Parece ser possvel concluir tambm que se identificarmos asmotivaes das elites ser mais fcil assegurar sua adeso. Se pudermosidentificar que argumentos sensibilizam os interesses desses atores teremosexpandido nosso conhecimento de forma a precisar melhor que tipo de in-centivos seletivos podem ser administrados para fomentar a cooperao oupelo menos a aquiescncia das elites. (Reis, 2000, p. 500)

    Embora seja possvel especular que a educao depende tambm de

    particularidades da vida privada, como o reduzido pendor dos pobres para

    o estudo, a educao faz figura principalmente como causa administrativa

    da pobreza. Seguindo os passos de Dr. Kay, que quela altura no se pode-

    ria suspeitar precursor de uma prolixa abordagem, os tericos do pau-

    perismo repetem unnimes a sua explicao, infantil e tola, que reduz

    tudo a uma deficincia de educao, melhor dizendo, a uma deficincia ad-

    ministrativa no provimento do ativo educao. So suficientes umas

    poucas remisses para comprovar aonde tais autores vo buscar a causa

    da pobreza:11

  • 256 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    A sustentabilidade do desenvolvimento socioeconmico est diretamenteassociada velocidade e continuidade do processo de expanso educacio-nal. Essa relao direta se estabelece a partir de duas vias de transmisso dis-tintas. Por um lado, a expanso educacional aumenta a produtividade dotrabalho, contribuindo para o crescimento econmico, o aumento de sal-rios e a diminuio da pobreza. Por outro, a expanso educacional promovemaior igualdade e mobilidade social, na medida em que a condio de ativono transfervel faz da educao um ativo de distribuio mais fcil do quea maioria dos ativos fsicos. (Barros et al., 2000, p. 406)

    Com a assistncia de outro autor, somos instrudos no s do nexo da

    educao com a riqueza, mas tambm com o poder poltico. De acordo com

    ele,

    (...) a grande desigualdade de renda ou riqueza [produzida pela grande de-sigualdade educacional] (...) pode implicar uma distribuio desigual de po-der poltico, na medida em que a riqueza gera influncia sobre o sistemapoltico. E a desigualdade de poder poltico reproduz a desigualdade educa-cional, j que os detentores do poder no utilizam o sistema pblico de edu-cao, e no tm interesse na sua qualidade, dependendo apenas de escolasparticulares. Os mais pobres, por sua vez, no tm meios prprios (nemacesso a crdito) para freqentar as boas escolas particulares, nem tampou-co poder poltico para afetar as decises fiscais e oramentrias que pode-riam melhorar a qualidade das escolas pblicas. (Ferreira, 2000, p. 155)

    Caberia tratar, na continuao, dos outros problemas administrativos

    em geral contemplados ao lado da educao: distribuio de terra e de cr-

    dito. No seria necessrio ilustrar com citaes as outras causas do paupe-

    rismo usualmente apontadas por tais estudos. A matriz terica do problema

    prontamente identificvel. Trata-se da teoria neoclssica da remunerao

    proporcional dos chamados fatores de produo, cujos inspiradores qualifi-

    quei como economistas vulgares.12 A lgica do argumento se funda na

    idia de que qualquer propriedade potencialmente rendimento. Com a

    propriedade da educao, o indivduo obtm emprego e, em decorrncia,

    renda. Com a propriedade da terra o indivduo produz bens, os vende e

    obtm renda. Com a propriedade do crdito, o indivduo, agora microem-

    presrio, compra bens de capital e aufere lucro, isto , renda. Portanto,

    assim como as deficincias no provimento da educao causam desigual-

    dades, o mesmo acontece com as imperfeies no provimento dos outros

  • 257Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    ativos ou capitais terra e crdito. Insuficincias e imperfeies que,

    na qualidade de deficincias administrativas, esto no mbito das atribui-

    es do governo e, em conformidade, se traduzem em objetos de polticas

    administrativas. Dando voz a um requisitado defensor dessa viso:

    (...) altos nveis de ativos podem aumentar a capacidade de gerao de rendados pobres tornando-se um condutor potencial para a reduo das medi-das-padro de pobreza. Em termos de polticas de alvio de pobreza, deve-seseparar as de transferncia compensatria (por exemplo, programa de im-posto de renda negativo, previdncia e seguro desemprego) daquelas queaumentam a renda per capita permanente dos indivduos pelas transfern-cias de capital (por exemplo, proviso pblica de educao, polticas de mi-crocrdito e reforma agrria). A avaliao das taxas de retorno e a utilizaodos diferentes tipos de ativos podem ajudar no desenho de polticas de re-foro de capital para a erradicao da pobreza. (Neri, 2000, p. 503-504)

    Aparentemente, h uma diferena radical entre o tratamento filantrpi-

    co que merecia o pauperismo no sculo XIX e as novas terapias. As ltimas,

    supostamente, partilham de um diagnstico moderno, atacando as causas

    estruturais da pobreza. A questo saber se de fato as interpretaes so em

    algum sentido distintas.

    Como mostrei no incio deste texto, o mximo de conscincia que a bur-

    guesia do sculo XIX alcanou ao refletir sobre a epidemia do pauperismo

    foi compreend-la, descontadas suas inabordveis causas naturais e pri-

    vadas, como conseqncia de falhas no aparato administrativo do Estado.

    Jamais aventou, e nem poderia, conforme mostrei, a possibilidade de que

    nas relaes sociais presididas pela lgica do capital residisse a verdadeira

    causa do pauperismo. Jamais suspeitou, e nem poderia, que naquelas rela-

    es residia a impotncia do Estado diante da misria. Para repetir meu ar-

    gumento, o Estado no pode lidar com as conseqncias que brotam da na-

    tureza anti-social desta vida burguesa, desta propriedade privada, deste

    comrcio, desta indstria, deste saque recproco dos diversos setores bur-

    gueses. O prussiano (Ruge), cujo texto considerei urgente criticar, recla-

    mava do rei da Prssia a educao de todos os trabalhadores como medida

    para acabar com o pauperismo. Fiz-lhe ver a absurdidade de tal cometi-

    mento na sociedade burguesa. Os autores contemporneos aqui ilustrados

    em sua verso brasileira aberram da prpria doutrina, parafraseando Ma-

  • 258 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    chado de Assis, ao demandarem a distribuio no s da educao (capital

    humano), mas igualmente de todos os outros capitais (terra, crdito).

    Pois no h contra-senso maior do que imaginar que o Estado pode dis-

    por, alm da distribuio da educao, sobre a distribuio de terra e crdito.

    Para coloc-lo em termos simples, se o capital sinnimo de concentrao

    da riqueza social objetiva e subjetiva, e o Estado moderno a organizao da

    sociedade capitalista (ver p. 244, 4 linha), exigir do Estado a distribuio do

    capital uma patente contradio em termos. Em razo disso, as teorias mo-

    dernas da pobreza, que aparentam uma ruptura radical e prometem trans-

    formaes estruturais, tm que se resolver necessariamente em fracasso. Ou

    no simples comrcio de iluses sob a forma de polticas pblicas compensa-

    trias, manifestaes de uma sbita compaixo pelos pobres.

    5. CONCLUSO

    O que o exame desses dois momentos da conscincia burguesa possvel in-

    discutivelmente revela que, impedida de fugir da tica da sociedade civil,

    ela apresenta sob novas roupagens a mesma concepo naturalizada da so-

    ciedade do capital. Se com isso incapaz de descobrir as verdadeiras causas

    dos problemas com que se defronta e sendo obrigada por dever de ofcio a

    instrumentalizar solues que jamais solucionam, a conscincia burguesa

    tampouco se molesta. Dispe de um manancial de solues, todas sempre

    implausveis. Atividade que, admite-se, confere dinamismo administra-

    o governamental pela permanente substituio de antigos planos, cujos

    defeitos insanveis calhou-se descobrir, por novos planos elaborados com

    os ltimos recursos tcnicos. Processo que apresenta a importante vanta-

    gem colateral de arregimentar uma espcie de solidariedade social fundada

    no sentimento de compaixo pelos pobres. Nisto consiste o momento pro-

    priamente catrtico das teorias da pobreza recentes, pois, ao oferecerem

    diagnstico e terapia para a pobreza, alimentam o consolo de que o terrvel

    espetculo cotidiano de restos de biomassa pelas ruas, como algum definiu

    a sorte dos excludos do sistema, ser finalmente solucionado.

    Sabe-se que a prtica cotidiana povoada por falsas concepes. Mas do

    fato de os agires prticos poderem ser movidos e motivados por falsas con-

    cepes no se deduz, evidentemente, que representaes adequadas sobre

  • 259Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    o mundo no sejam o pressuposto necessrio da realizao das finalidades.

    Em sntese, ao contrrio do que se difunde com notvel insistncia em vossa

    poca, a verdade no uma quinta roda. Assim, para retomar o pauperis-

    mo, se a sua existncia abala nossa sensibilidade e por isso desejamos sua

    superao, enfim, se essa uma finalidade socialmente legtima, segue-se

    que a busca de suas verdadeiras causas imprescindvel. E que a crtica de

    falsas teorias, que na melhor das hipteses servem para seu gerenciamento,

    uma obrigao.

    Para fazer justia a um autor vosso contemporneo que soube articular

    com grande plasticidade este nexo entre teoria e prtica e sua conseqente

    relevncia para a realizao de valores que podem de fato humanizar o

    mundo social, permito-me concluir com uma sua citao:

    Se a norma fundamental do discurso terico A adequao descritiva ou representativa ou verdade,A norma fundamental do discurso prtico A consecuo, realizao ou satisfao dosDesejos, necessidades e propsitos humanos.Se h razes reais (causas) para a crena ou ao,Ento podemos nos equivocar sobre elas,E se fracassamos na verdade,Podemos igualmente fracassar na satisfao. (Bhaskar, 1978, p. 206)

    NOTAS

    1. Ruge, A. El Rey de Prusia y la Reforma Social. Por un Prusiano, Vorwrts, n 60, 1884.

    2. Nos argumentos apresentados adiante este qualificativo ficar devidamente esclarecido,

    espero.

    3. Expresses contemporneas das mesmas idias so legio. Por exemplo: ()[h argu-

    mentos que sustentam que] a desigualdade tende a ter efeitos diretos sobre o crescimen-

    to, pois ela reduz oportunidades de investimento (principalmente em capital humano),

    piora os incentivos dos emprestadores e gera volatilidade macroeconmica (Menezes-

    Filho, 2001, p. 14). Um exemplo extrado da imprensa brasileira: H razes de sobra,

    alm do bvio constrangimento moral, para tentar de vez minorar (itlicos adiciona-

    dos) esse problema (da pobreza e da injustia social). Do ponto de vista econmico, a

    pobreza extrema e inelutvel reduz a competitividade do pas e restringe suas possibili-

    dades de mover a economia pela fora do mercado interno (Veja, 23.01.02, p. 86-87).

    4. Incidentalmente, os pobres tm propenses sempre lamentveis. Outro dia mesmo foi

    descoberto por um Prmio Nobel (D. L. McFadden) que os negros tm a curiosa pro-

    penso a andar de nibus. E isso no pas dos automveis... De acordo com Varian,

  • 260 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 7(2): 237-262, jul./dez. 2003

    McFadden descobriu que os operrios negros tm menor propenso a dirigir e maiorpropenso a andar de nibus (Varian, 1994, p. 75).

    5. O assim chamado workfare, implementado de incio nos EUA e posteriormente introdu-

    zido em outros pases desenvolvidos, pode ser visto como equivalente contemporneodas workhouses. Para interpretao nesta linha, ver Forrester (2001, p. 66) e Callinicos(2000, p. 96).

    6. Para autores vossos contemporneos que, em minha opinio, enfatizam a dimenso

    ontolgica de meu pensamento, ver Lukcs (1984) e Bhaskar (1978).

    7. A teoria de A. Sen, para citar outro Prmio Nobel de Economia, constitui um exemplorecente das antinomias do pensamento limitado s categorias da sociedade civil e que,por isso, hipostasia a sociedade do capital, com seus indivduos irredutveis e a sociabili-

    dade episdica que constituem ao exercitarem sua liberdade de trocar. Ao analisar acontradio entre a liberdade constitutiva de o indivduo trocar e a possibilidade de oexerccio irrestrito desta liberdade resultar no constrangimento da liberdade dos outrosindivduos, ele no hesita em se decidir pelo plo individualista da anttese: Mesmo seesses direitos [individuais de fazer transaes e trocas] no fossem aceitos como invio-lveis (), pode-se ainda argumentar que h uma perda social quando se nega s pes-

    soas o direito de interagir economicamente umas com as outras. Caso acontea de osefeitos dessas transaes serem to danosos para terceiros que essa presuno primafacie de permitir s pessoas transacionar como bem entenderem possa ser sensatamenterestringida, ainda assim existe alguma perda direta quando se impe essa restrio(mesmo se ela for mais do que compensada pela perda alternativa dos efeitos indiretosdessas transaes sobre terceiros) (Sen, 2000, p. 42).

    8. Esse seu formato de manual pode ser acessado, se me permitida essa expresso de vos-sa poca, no site do Banco Mundial (www.worldbank.org/poverty/portugues.htm). Ali possvel consultar manuais de gerenciamento da pobreza, um dos quais recebe o su-gestivo ttulo de Estratgias de Reduo da Pobreza: Guia de Consulta e destina-se,querem seus autores, a oferecer orientao tanto no tocante aos aspectos do processo

    das Estratgias de Reduo da Pobreza como no que diz respeito aos aspectos substanti-vos do diagnstico da pobreza e da formulao de uma estratgia para abordar a pobre-za em suas diversas dimenses. O assim chamado pblico-alvo dessa orientao espe-cializada consiste em funcionrios do prprio Banco Mundial e de outras organizaesinternacionais, como o FMI, e oficiais dos governos de todos os pases assolados pelopauperismo.

    9. Como o comprovam alguns poucos itens do currculo de Alejandro Foxley: doutor emEconomia (Wisconsin), atual senador pelo Partido Democrata Cristo, do qual foi pre-sidente no binio 1994-1996, ministro da Fazenda do Chile (1990-1994) durante todo operodo presidencial de Don P. Aylwin (sucessor de Pinochet), governador do Banco

    Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (1990-1994), presidente do Co-mit de Desenvolvimento dos Governadores do Banco Mundial Fundo MonetrioInternacional (1991-1992).

    10. Expressando os dados utilizados para descrever a posio relativa do pauperismo brasi-

    leiro no ranking da misria global, as teorias estabelecem uma imediata associao entre

  • 261Mrio Duayer e Joo Leonardo Medeiros Misria brasileira e macrofilantropia...

    pauperismo e desigualdade. Barros et al. (2000), embora tenham certa dificuldade em

    distinguir uma tese de seus corolrios, assim formulam o problema: Nossa hiptese

    central (...) que, em primeiro lugar, o Brasil no um pas pobre, mas um pas com

    muitos pobres. Em segundo lugar, os elevados nveis de pobreza que afligem a sociedade

    encontram seu principal determinante na estrutura da desigualdade brasileira, uma

    perversa desigualdade brasileira na distribuio de renda e das oportunidades de inclu-

    so econmica e social (p. 22 ).

    11. Tais argumentos baseiam-se em formulaes de autores internacionais renomadssi-

    mos, como por exemplo Sen: Se a educao torna uma pessoa mais eficiente na produ-

    o de mercadorias, temos ento claramente um aumento de capital humano. Isso pode

    acrescer o valor da produo na economia e tambm a renda da pessoa que recebeu a

    educao. Mas at com o mesmo nvel de renda uma pessoa pode beneficiar-se com a

    educao ao ler, comunicar-se, argumentar, ter condies de escolher estando mais

    bem informada, ser tratada com mais considerao pelos outros etc. Os benefcios da

    educao, portanto, excedem seu papel como capital humano na produo de merca-

    dorias. A perspectiva mais ampla da capacidade humana levaria em considerao

    e valorizaria esses papis adicionais tambm (Sen, 2000, p. 332-333).

    12. Ver, por exemplo, A frmula trinitria (Marx, 1980).

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