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Miss Grey ANNE BRONTe Romance - Obra Condensada Literatura Inglesa - século XIX Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina- se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Tradução de Maria Isabel de Mendonça Soares Capa e ilustrações de António Martins VERBO Juvenil Título original: Agnes Grey ÍNDICE I - O presbitério... . .5 II - Primeiras lições da arte de ensinar... ... ... . 16 III - Mais algumas lições... ... . 23 IV - A avó... . 34 V - O tio... . . 43 VI - Novamente no presbitério... ... . 49 . VII - Horton Lodge... . 55 VIII - A apresentação na sociedade... . 69 IX - O baile. . 72 X - A igreja 77 XI - Os aldeões... ... . 82 XII - O aguaceiro... . . 95 XIII - As primaveras... . . 99 XIV - O reitor . 107 XV - O passeio... ... . . . 119 XVI - A substituição. . . . 126 XVII - Confissões... ... . . 130 XVIII - Alegrias e tristezas... ... . . . 140 XIX - A carta. . . 148 XX - As despedidas. . . . 151 XXI - A escola . . 156 XXII - A visita . 162 XXIII - O parque... ... . . . 169 XXIV - A praia . 173 XXV - Epílogo . 180 Obras desta Colecção 1. Ivanhoé, de Walter Scott 2. Ben-Hur, de Lewis Wallace

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Miss GreyANNE BRONTeRomance - Obra CondensadaLiteratura Inglesa - século XIX

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina- se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Tradução de Maria Isabel de Mendonça Soares Capa e ilustrações de António MartinsVERBO Juvenil Título original: Agnes Grey ÍNDICEI - O presbitério... . .5 II - Primeiras lições da arte de ensinar... ... ... . 16III - Mais algumas lições... ... . 23IV - A avó... . 34V - O tio... . . 43VI - Novamente no presbitério... ... . 49 .VII - Horton Lodge... . 55VIII - A apresentação na sociedade... . 69IX - O baile. . 72X - A igreja 77XI - Os aldeões... ... . 82XII - O aguaceiro... . . 95XIII - As primaveras... . . 99XIV - O reitor . 107XV - O passeio... ... . . . 119XVI - A substituição. . . . 126XVII - Confissões... ... . . 130XVIII - Alegrias e tristezas... ... . . . 140XIX - A carta. . . 148XX - As despedidas. . . . 151XXI - A escola . . 156XXII - A visita . 162XXIII - O parque... ... . . . 169 XXIV - A praia . 173XXV - Epílogo . 180

Obras desta Colecção 1. Ivanhoé, de Walter Scott 2. Ben-Hur, de Lewis Wallace 3. As Minas de Salomão, [tradução] de Eça de Queirós 4. O Corsário Negro, de E. Salgari 5. Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz 6. Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas 7. A Ilha do Tesouro, de R. L. Stevenson

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8. O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas 9. A Jangada, de Júlio Verne 10. Robinson Crusoé, de Daniel Defo 11. O Juramento do Corsário Negro, de E. Salgari 12. Oliver Twist, de Charles Dickens 13. Miguel Strogoff, de Júlio Verne 14. Guerra e Paz, de Leon Tolstoi 15. Moby Dick, de H. Melville 16. David Copperfield, de Charles Dickens A publicar: O Último Moicano, de Tenimore Cooper

IO Presbitério Meu pai foi um ministro da Igreja Anglicana, no Norte de Inglaterra, condignamente respeitado por todos aqueles que o conheciam; e, na sua juventude, viveu com desafogo do rendimento de um pequeno benefício, juntamente com o de uma modesta propriedade que possuía. Minha mãe, que casou com ele contra a vontade da famlia, era filha de um fidalgo de província e de uma mulher inteligente. Em vão lhe foi explicado que, se ela se tornasse mulher de um pobre pároco, tinha de renunciar a carruagens, criadas particulares e a todos os luxos e requintes da sociedade, o que para ela era pouco menos do que o essencial da vida. Uma carruagem e uma criada particular éram uma grande comodidade, mas, graças a Deus, ela tinha pés para andar e mãos para prover a todas as suas necessidades. Uma casa elegante e vastos terrenos não eram para desprezar, mas ela preferia viver numa casa pequena com Richard Grey do que num palácio com qualquer outro homem. Por fim, não conseguindo encontrar argumentos de maior peso, o [5)pai disse aos apaixonados que podiam casar se era esse o seu desejo; porém, se assim procedessem, a filha perderia o direito a qualquer parte da sua fortuna. Esperava, com isto, arrefecer o entusiasmo dos dois. Mas enganava-se. Meu pai conhecia por demais o valor e a dignidade de minha mãe para compreender que ela por si só valia uma fortuna, e que se ela anuísse a tornar mais belo o seu humilde lar sentir-se-ia feliz em aceitá-la fosse em que condições fosse; por seu lado, ela preferiria trabalhar com as suas próprias mãos a ver- se separada do homem a quem amava, para cuja felicidade seria uma alegria contribuir e a quem se sentia unida de alma e coração. Assim, a sua fortuna foi engrossar a bolsa da irmã, que, mais sensata, casara com um rico nababo. . E ela com grande espanto e pesar de todos os que a conheciam, foí enterrar-se no humilde presbitério de uma aldeia, nas colinas de... E, no entanto, a despeito de tudo isto, do seu

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excessivo entusiasmo e das extravagâncias de meu pai, creio que se poderia procurar por toda a Inglaterra, que se não encontraria um casal mais feliz. Dos seis filhos que tiveram, só minha irmã Mary e eu sobrevivemos aos riscos da infância e da meninice. Sendo mais nova do que ela cinco ou seis anos, era olhada como a bebé, o mimalho da famlia: pai, mãe e irmã pareciam combinados em me estragar com mimos, não por indul gência disparatada, de modo a tornarem-me birrenta e insubordinada, mas por contínua benevolência, o que fez de mim um ser indefeso e dependente, incapaz de enfrentar os cuidados e complicações desta vida. Mary e eu fomos criadas no mais estrito isolamento. Minha mãe, tendo sido tão extremamente bem educada quanto instruída e gostando de estar sempre ocupada, tomou a seu cargo a nossa educação, com excepção do latim, que o meu pai se encarregou de nos ensinar. Dessa maneira, nunca frequentámos uma escola e, como não havia vida de sociedade na vizinhança, o nosso único contacto com o mundo consistia em alguns chás muito solenes, de vez em quando, com os principais lavradores e comerciantes das proximidades (apenas para não sermos alcunhados de soberbos demais por nos não darmos com os nossos vizinhos) e uma visita anual a casa do nosso avô paterno, onde ele, a nossa bondosa avó, uma tia solteira e dois ou três senhores já idosos eram as únicas pessoas que víamos. Por vezes, a nossa mãe entretinha-nos com histórias ou anedotas dos seus tempos de juventude, que, ao mesmo tempo que nos divertiam e assombravam, despertavam com frequênciapelo menos em mim - um secreto desejo de ver um pouco mais do mundo. [6) Achava que ela devia ter sido muito feliz, mas nunca me pareceu lamentar os tempos passados. Contudo, o meu pai, cujo temperamento não era nem pacífico nem alegre por natureza, afligia-se freQuentemente sem razão, ao pensar nos sacrifícios que a sua querida esposa tinha feito por ele, e, dando voltas à cabeça, procurava a maneira de aumentar o seu pecúlio por amor a ela e a nós.Em vão minha mãe lhe assegurava que se sentia plenamente feliz e que, se apenas ele pusesse de lado um pouco para as filhas, teríamos o suficiente, tanto para o tempo presente como para o futuro. Mas poupar não era o forte de meu pai. Ele nunca contraía dívidas (pelo menos, minha mãe tomava cuidado para que isso não acontecesse), masenquanto tinha dinheiro ia gastando. Gostava de sentir a casa confortável, ver a mulher e as filhas bem vestidas e bem servidas e, além disso, era generoso e gostava de dar aos pobres segundo as suas posses ou, como algumas pessoas pensavam, acima delas. Até que um dia, um amigo dedicado sugeriu- lhe um meio de duplicar o seu património de uma só vez, e depois, mais tarde, fazê-lo aumentar até atingir uma considerável

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quantia. Esse amigo era um exportador, um homem de espírito empreendedor e indubitável talento, que estava a passar dificuldades nas suas actividades comerciais por falta de capital. Propôs generosamente dar a meu pai umaboa parte dos seus lucros, se ele, ao menos, lhe confiasse tudo o que pudesse dispensar, e achou que podia prometer com toda a segurança que, qualquer que fosse a quantia que ele decidisse pôr-lhe nas mãos, lhe daria cem por cento. O pequeno património foi rapidamente vendido e a quantia total depositada nas mãos do amigo, que prontamente embarcou o carregamento e se preparou para a viagem. Meu pai ficou encantado, tal como todas nós, com as nossas bri lhantes perspectivas. Quanto ao presente, a verdade é que estávamos . . reduzidos ao magro rendimento do curato, mas meu pai pensava que não havia necessidade de restringir escrupulosamente a esse rendimento os nossos gastos: Assim, com uma conta aberta no Mr Jackson, outra no Smith e uma terceira no Hobson, nós íamos vivendo com mais conforto ainda do que antes, embora minha mãe afirmasse que era preferível mantermo- nos dentro de certos limites, pois que afinal as nossas perspectivas eram bastante precárias. E se meu pai tivesse confiado tudo à sua administração, nunca se veria em dificuldades. Mas ele, na verdade, era incorrigível.

Quantas horas de felicidade passámos, Mary e eu, enquanto trabalhávamos junto à lareira, ou passeávamos nas colinas revestidas de urze, ou preguiçávamos debaixo do salgueiro-chorão (a árvore mais importante do jardim), falando da nossa felicidade futura, nossa e de nossos pais, do que iríamos fazer, ver e gozar, sem base mais firme para a nossa admirável superestrutura do que as riquezas com que seríamos inundados devido ao bom êxito das especulações daquele honrado negociante. O nosso pai era quase pior do que nós; só que ele procurava não se mostrar tão convencido, e expressava a sua viva esperança e ardente expectativa com gracejos e brincadeiras que me pareciam excessivamente espirituosos e divertidos. Minha mãe ria com prazer por o ver tão esperançoso e feliz; no en tanto, temia que ele tivesse posto demasiadas esperanças naquele ne gócio, e uma vez ouvi-a murmurar ao sair da sala: "Deus permita que ele não tenha uma desilusão! Não sei como a iria suportar!" E desiludido ficou; e amargamente. Caiu como um raio sobre todos nós a notícia de que o navio que encerrava a nossa fortuna tinha naufragado e ido para o fundo com toda a sua mercadoria, juntamente com alguns membros da tripulação e até mesmo com o próprio negociante. Lamentei-o. Lamentei a derrocada de todos os castelos no ar que tínhamos construído; mas, com a flexibilidade peculiar à juventude, depressa me recompus do choque.

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Embora a riqueza tivesse os seus encantos, a pobreza não aterrori zava uma rapariguinha tão experiente como eu. E, para falar a verdade, havia qualquer coisa de estimulante no facto de sermos atirados para dificuldades e vermo- nos entregues aos nossos próprios recursos. Só desejava que meu pai, minha mãe e Mary sentissem o mesmo que eu, e assim, em vez de lamentarem calamidades passadas, pudéssemos deitar mãos ao trabalho, com ânimo, para as remediar; e quanto maiores fossem as dificuldades, mais duras as nossas privações presentes, maiores deviam ser o nosso ânimo para as suportar e a nossa energia para lutar contra o passado. Mary não se lamentava, mas aludia constantemente à nossa adversidade, e caiu em tal desânimo que nenhum esforço meu a animava. Não conseguia levá-la a encarar o assunto pelo lado melhor, como eu fazia; a verdade é que eu temia tanto ser acusada de inconsciente e de criança, ou de estúpida insensibilidade, que guardava para mim todas as minhas ideias mais brilhantes e as minhas fantasias mais animadoras, compreendendo que elas não seriam apreciadas.Minha mãe só pensava em consolar o meu pai, pagar as nossas dívi das e reduzir os nossos gastos por todos os meios possíveis; mas meu pai ficara completamente acabrunhado com tal calamidade: saúde, energia e boa disposição foram-se abaixo sob tão duro golpe e nunca mais as recuperou por completo. Em vão minha mãe se esforçava por o animar, apelando para a sua fé, para a sua coragem, para a sua afeição por ela e por nós. Essa sua afeição era o seu maior tormento: fora por nossa causa que ele tão ardentemente desejara aumentar a sua fortuna; fora o nosso interesse que dera tanto ânimo às suas esperanças e que conferia tanta amargura à sua presente angústia. Sentia-se atormentado pelo remorso, por ter negligenciado o conselho de minha mãe, que, pelo menos, o teria salvo do fardo adicional da dívida; não parava de se censurar por a ter arrancado do seu meio, de uma vida mais cómoda, do luxo da sua anterior situação, para labutar com ele contra os cuidados e os trabalhos árduos da pobreza. Era para a sua alma fel e absinto ver aquela excelente mulher, tão primorosamente educada, que outrora fora cortejada e admirada, transformada numa dona de casa activa e trabalhadora, permanentemente ocupada com os trabalhos e a economia doméstica. O sincero gosto com que ela executava essas obrigações, a alegria com que suportava os reveses e a bondade que a levava a não lhe fazer a mais pequena censura, tudo era subestimado por ele, que, atormentando-se, agravava mais os seus sofrimentos. O espírito ia consumindo o corpo e perturbando o sistema nervoso. De tal modo que a sua saúde física se ia debilitando cada vez mais e nenhuma de nós era capaz de o convencer de que a nossa situação não era nem metade tão sombria e tão desesperada como a sua imaginação mórbida lha apresentava. O faetonte, que tão útil nos era, juntamente com o pónei robusto e bem tratado que o puxava, do qual tanto gostávamos

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e que tínhamos determinado firmemente que iria acabar os seus dias em paz e nunca sair das nossas mãos, foram vendidos e a cocheira e a cavalariça alugadas. O criado e a mais eficiente (por ser a mais bem paga) das duas criadas foram despedidos. Os nossos vestidos foram remendados, voltados e cerzidos até ao extremo limite da decência; a nossa alimentação, sempre bastante simples, fora ainda mais simplificada, até um grau sem precedentes - excepto os pratos predilectos de meu pai. O nosso carvão e velas eram aflitivamente economizados: duas velas reduzidas a uma, e esta usada com parcimónia; o carvão cuidadosamente poupado na grelha meio vazia, especialmente quando o meu pai saía para os seus deveres paroquiais, ou estava retido no leito, devido à doença; então, nós sentávamo-nos com os pés no guarda-fogo, esgaravatando as brasas meio apagadas de vez em quando e juntando uma leve camada de pó e de pedacinhos de carvão, apenas para as não deixar apagar. Quanto aos nossos tapetes, acabaram por ficar no fio, e remendados e cerzidos a um limite ainda maior do que o nosso vestuário. Para poupar a despesa de um jardineiro, Mary e eu resolvemos cuidar do jardim; os cozinhados e os trabalhos de casa, que não podiam ser feitos só por uma criada, eram executados por minha mãe e por minha irmã, com uma pequena ajuda eventual da minha parte: apenas uma pequena ajuda, porque, embora, em minha opinião, eu já fosse uma mulher, na delas continuava a ser uma criança; minha mãe, como a maior parte das mulheres muito activas e decididas, não era dotada de filhas muito activas. Sendo ela própria muito habilidosa e diligente, nunca confiava os seus trabalhos a outras pessoas; bem pelo contrário, era propensa a agir e pensar pelos outros e melhor do que ninguém. E fosse qual fosse o trabalho que tivesse em mão, era levada a acreditar que ninguém o faria tão bem quanto ela; por isso, sempre Que eu me oferecia para a ajudar, recebia como resposta: - Não, minha querida, realmente não podes, não há aqui nada que possas fazer. Vai ajudar a tua irmã, ou vão as duas passear... Diz-lhe que não deve estar tanto tempo sentada e dentro de casa, como costuma fazer... Pode emagrecer e ficar deprimida. - Mary, a mãe disse para te vir ajudar, ou então ires dar um passeio comigo. Diz que podes emagrecer e ficar deprimida se estiveres sempre sentada dentro de casa. - Ajudar-me não podes, Agnes, e sair contigo não posso... Tenho muito que fazer. - Então, deixa-me ajudar-te. - Realmente não podes, menina. Vai estudar música ou vai brincar com o gato. Havia sempre imenso que costurar, mas eu não fora ensinada a cortar a mais simples peça de roupa. E, excepto bainhas simples e costuras, havia pouco que eu pudesse fazer mesmo nessa matéria, porque ambas estavam de acordo em que era mais fácil fazerem elas próprias o trabalho do que prepará-lo para mim. E além disso preferiam que eu prosseguisse os meus estudos

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ou brincasse; iria ter tempo de sobra para estar sentada e curvada sobre o meu trabalho, como uma respeitável matrona, quando o meu bichaninho predilecto se tornasse num[10] gato calmo e ajuizado. Em táis circunstâncias, embora eu não tivesse muito mais préstimo do que o gatinho, a minha ociosidade não era in teiramente indesculpável. No meio de tantas preocupações, apenas ouvi uma vez a minha mãe queixar-se da nossa falta de dinheiro. Como o Verão se aproximasse, ela observou para Mary e para mim: - Que agradável seria para o vosso pai passar umas semanas numa praia. Estou convencida de que o ar do mar e a mudança de ambiente lhe prestariam um serviço incalculável. Mas, como sabem, não há dinheiro - acrescentou ela com um suspiro. Ambas o desejávamos ardentemente e lamentámos de todo o coração que aquilo não pudesse acontecer. - Pronto! - continuou ela. - Não serve para nada uma pessoa la mentar-se. Pode ser que afinal se possa fazer qualquer coisa para pôr em execução este projecto. Mary, tu desenhas muito bem. Que dirias se fizesses mais alguns quadros, o melhor que souberes, lhes mandasses pôr molduras e, juntamente com as aguarelas que já fizeste, tentasses mostrá-las a um vendedor de quadros generoso que seja capaz de descobrir o mérito deles? - Mamã, eu ficaria encantada. Se acha que eles poderiam ser ven didos por um preço compensador... - Seja como for, vale a pena tentar, minha querida. Arranja os desenhos, que eu vou esforçar-me por encontrar um comprador. - Quem me dera poder fazer qualquer coisa - disse eu. - Tu, Agnes! Quem sabe? Tu também desenhas bastante bem; se escolheres um motivo simples como assunto, acho que serás capaz de fazer qualquer coisa que todos nós teremos orgulho em exibir. - Mas eu já tenho outros planos na minha cabeça, mamã, e já há bastante tempo, mas não tenho querido dizer. - Verdade? Por favor diz-nos o que é. - Eu gostava de ser preceptora. Minha mãe soltou uma exclamação de surpresa e desatou a rir. Minha irmã deixou cair o trabalho, com o espanto, exclamando: - Tu, preceptora, Agnes? Estás a sonhar! - Bom! Não vejo nada de muito extraordinário nisto. Eu não pretendo ser capaz de ensinar meninas crescidas; mas podia de certeza ensinar as pequeninas. E gostava tanto... Gosto tanto de crianças. Deixe, mamã! - Mas, meu amor, tu ainda nem sequer aprendeste a cuidar de ti. E[11) as crianças mais pequenas requerem maior capacidade e experiência para lidar com elas do que as mais velhas. - Mas, mamã, eu já fiz dezoito anos e sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma e dos outros também.

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Não conhecem o meu juízo nem a minha ponderação porque nunca me puseram à prova. - Imaginas - disse Mary - o que farias numa casa cheia de pessoas estranhas, sem mim ou a mamã para falarem e agirem por ti, com uma quantidade de crianças, além de ti, para tomar conta e sem ninguém a quem pedires conselho? Nem saberias sequer o que vestir. - Julgas isso porque eu sempre faço o que me mandam, e que não tenho capacidade por mim própria. Mas experimentem-me. É tudo quanto peço, e vão ver do que sou capaz. Nessa altura entrou meu pai e o assunto da nossa discussão foi-lhe explicado. - O quê? A minha pequenina, a minha Agnes, preceptora? - exclamou, e a despeito do seu desânimo, essa ideia fê-lo rir. - Sim, papá, não se oponha. Eu gostava tanto... E tenho a certeza de que havia de me saber desembaraçar. - Mas, minha querida, nós não nos poderíamos separar de ti. - E uma lágrima brilhou-lhe nos olhos enquanto acrescentava: - Não, não! Por muitas necessidades que tenhamos, com certeza ainda não chegámos a tal extremo. - Ah, não! - atalhou minha mãe. - De qualquer modo, não há necessidade de tomar essa medida; é apenas um capricho dela. Por isso, minha mazinha, cala a boca, porque, embora estejas desejosa por nos deixares, sabes muito bem que não nos podemos separar de ti. Naquele dia não disse mais nada e também nos muitos outros que se lhe seguiram; no entanto, eu não renunciava, de modo algum, ao projecto que acalentava. Mary arranjou o material de desenho e deitou mãos ao trabalho com afinco. Eu também; mas enquanto trabalhava ia pensando noutras coisas. Que bom seria ser preceptora! Ir conhecer outros mundos, começar uma nova vida, agir por conta própria, exercitar as minhas faculdades que ainda nunca utilizara, experimentar os meus desconhecidos poderes; ganhar o meu próprio sustento e mais qualquer coisa para proporcionar o bem-estar ao meu pai, a minha mãe e a minha irmã, além de os aliviar das despesas com o meu sustento e o meu vestuário, mostrar ao papá o que a sua Agnes podia fazer e con vencer a mamã e a Mary de que eu tinha algum préstimo, que não era a estouvada que eles julgavam. E depois, que coisa encantadora, confiarem-me [12)os cuidados e a educação de crianças! Dissessem o que dissessem, sentia-me cheia de competência para tal cargo: a lembrança clara dos meus próprios pensamentos, na minha infância não longínqua, seria um guia mais seguro do que os ensinamentos do mais experiente dos conselheiros. Só tinha de, ao cuidar dos meus alunos, melembrar de mim naquela idade, e saberia, de imediato, como ganhar a sua confiança e afeição, como despertar o seu arrependimento por uma falta, como encorajar os tímidos e

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consolar os infelizes, como fazer a Virtude praticável, a Instrução desejada e a Religião agradável e compreensível. Tarefa encantadora! Ensinar aos jovens como crescer! Cultivar plantas tenras e ver os botões abrirem-se, de dia para dia!Influenciada por tais atractivos, continuava determinada a manter-mefirme, embora o medo de desagradar a minha mãe ou ferir os sentimentos de meu pai me impedissem de voltar a falar no assunto durante muitos dias. Por fim, voltei a referir-me ao caso a minha mãe, em particular; com alguma dificuldade, consegui que ela me prometesse queme ajudava. A seguir, venci a relutância de meu pai e obtive o seu consentimento. Depois, embora Mary ainda suspirasse e mostrasse asua desaprovação, a minha querida e bóa mãe começou a procurar uma situação para mim. Escreveu a pessoas conhecidas de meu pai e consultou os anúncios do jornal. Com os seus conhecimentos anterioreshavia muito que deixara de se relacionar: eventualmente, uma trocaformal de carttas era tudo o que havia desde o seu casamento, e emcaso algum lhes iria pedir uma coisa desta natureza. Mas tão longo etão completo fora o isolamento de meus pais do resto do mundo que decorreram muitas semanas antes que uma situação conveniente fosseencontrada. Por fim, para minha grande alegria, foi decidido que eu me poderia encarregar dos membros mais novos de uma certa Mrs Bloomfield, que a minha tia Grey, boa senhora mas um tanto afectada, havia conhecido na sua juventude, e afirmava ser uma mulher educada. O marido era um negociante aposentado, que tinha amealhado umaconsiderável fortuna, mas não estava disposto a dar um salário maior do que vinte e cinco libras à professora dos filhos. Contudo, eu preferiaceitar do que recusar aquela situação, que os meus pais julgavam ser a melhor.Mas muitas semanas foram ainda dedicadas aos preparativos. Quelongas e maçadoras me pareceram essas semanas! E, no entanto, de um modo geral, foram felizes, cheias de luminosas esperanças e ardente [13] expectativa. Com que prazer especial eu assistia à confecção dos meus vestidos novos e, subsequentemente, ao arrumar das minhas malas! Mas, ao mesmo tempo, havia também uma certa amargura à mistura com estas ocupações. E quando tudo ficou

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pronto... quando tudo ficou pronto para a minha partida no dia seguinte, e se aproximou a última noite passada em casa, uma angústia súbita apertou-me o coração. Os meus entes mais queridos pareciam tão tristes e falavam-me com tanto carinho que dificilmente evitava que as lágrimas me acudissem aos olhos; mas eu procurava aparentar alegria. Dera o meu último passeio com Mary pela charneca, a minha última volta pelo jardim e em redor da casa; dera, também com ela e pela última vez, de comer aos nossos pombinhos preferidos - umas lindas criaturinhas que tínhamos ensinado a vir debicar nas nossas mãos - e fizera-lhes uma carícia de despedida nas penas sedosas quando eles me vieram pousar no colo. Ternamente beijara o casal de pombos de leque, brancos de neve, meus favoritos; tocara a minha última melodia no velho piano da família e cantara a minha última canção para meu pai: não que esperasse que fosse realmente a derradeira, mas a última, segundo pensava, por bastante tempo. É que talvez quando eu voltasse a fazer estas coisas os sentimentos fossem diversos, as circunstâncias tivessem mudado e esta casa já não fosse o meu lar. O meu gatinho, tão meu amigo, certamente teria mudado: estaria mais crescido e transformado num belo gatarrão; e quando eu voltasse, mesmo que para uma visita breve pelo Natal, provavelmente já esquecera tanto a sua companheira de brincadeiras como as suas divertidas travessuras. Brinquei com ele pela última vez e quando lhe acariciei o pêlo brilhante e macio, enquanto ele ronronava e adormecia no meu colo, apoderou-se de mim uma tristeza que eu não pude dissimular facilmente. Depois, à hora de deitar, quando recolhemos, Mary e eu, ao nosso quartinho tão sossegado, onde as minhas gavetas e a minha prateleira da estante já se encontravam vazias - e onde ela dali por diante iria dormir só, tristemente só, como dizia -, o meu coração quase fraquejou. Achava que tinha sido egoísta e que errara ao teimar em deixá-la; e quando ajoelhei mais uma vez ao lado da nossa cama, orei, invocando as graças divinas para ela e para os meus pais com um fervor nunca antes sentido. Para ocultar a minha emoção, escondi a cara nas mãos, e estas ficaram banhadas pelas lágrimas. Ao levantar- me, percebi que também ela chorara, mas nenhuma de nós disse nada; em silêncio, entregámo-nos ao sono, mais unidas uma à outra, conscientes de que em breve nos iríamos separar. [14]Mas a manhã trouxe um renovar de esperanças e de coragem. Tinha de partir cedo, pois o carro que me levaria (um cabriolé alugado a Mr Smith, negociante de panos e merceeiro da aldeia) tinha de voltar nesse mesmo dia. Levantei-me, lavei-me, vesti-me, engoli à pressa o pequeno-almoço, fui abraçada afectuosamente por meu pai, minha mãe e minha irmã, beijei o gato, com grande escândalo de Sally, a criada, a quem apertei a mão, subi para o cabriolé, puxei o véu para a cara e então, mas não antes, desfiz-me em lágrimas. O cabriolé partiu. Voltei-me para trás. A minha querida mãe e a minha irmã ainda se encontravam paradas

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à porta, olhando- me e acenando-me com a mão. Retribuí-lhes o adeus e supliquei, de todo o meu coração, a Deus que as abençoasse. Começámos a descer a colina. Deixei de as ver. - Está uma manhã muito fria, Miss Agnes - observou Smith -, e também muito escura, mas pode ser que consigamos chegar ao seu destino antes que a chuva caia com força. - Espero bem que sim - repliquei, tão calma quanto me foi possível. - Ontem à noite caiu uma boa carga de água. - É verdade. - Mas este vento frio pode ser que a mantenha afastada. - Talvez. Aqui acabou a nossa conversa. Atravessámos o vale e começámos a subir a outra colina. Enquanto a trepávamos penosamente, olhei de novo para trás; lá estava a torre da aldeia e o velho presbitério cinzento, banhado por um raio de sol - era apenas um raio extremamente débil, mas a aldeia e as colinas que a circundavam estavam todas mergulhadas na sombra, e eu saudei aquele raiozinho desgarrado como um feliz presságio para o meu lar. De mãos postas, implorei fervorosamente a bênção para os seus moradores e apressei-me a desviar a vista, porque percebi que a luz do Sol estava a desaparecer. Cuidadosamente evitei voltar a olhar, com medo de o ver envolvido pela sombra escura, tal como o resto da paisagem. [15] II PRIMEIRAS LIÇÕES DA ARTE DE ENSINAR À medida que prosseguíamos o caminho, o meu ânimo renascia e eu voltava, com prazer, a reflectir sobre a nova vida que ia agora iniciar. Mas, embora Setembro fosse a pouco mais de meio, as nuvens carregadas combinavam com o forte vento nordeste para tornar o dia extremamente frio e triste; a viagem parecia não ter fim, pois, como observara Smith, as estradas estavam "muito pesadas". E possivelmente o cavalo também, porque se arrastava pelas colinas acima e as descia quase de rojo, e só condescendia a sacudir os flancos, num trote mais rápido, quando a estrada era perfeitamente plana ou muito levemente inclinada, o que era muito raro naquela região tão acidentada. Por isso, já batera quase uma hora quando atingimos o nosso destino.Contudo, quando por fim entrámos o imponente portão de ferro, quando deslizámos pela superfície lisa e bem nivelada da alameda, ladeada por grandes arrelvados salpicados de árvores novas e nos aproximámos da mansão de Wellwood, de construção recente mas majestosa, que se destacava por sobre o pequeno bosque de choupos, o meu

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coração desfaleceu e desejei encontrar-me a uma ou duas milhas dali., Pela primeira vez na vida, eu tinha de enfrentar tudo sozinha, sem poder voltar atrás. Tinha de entrar naquela casa e viver entre os desconhecidos que lá moravam. Mas como o iria conseguir? Era verdade que eu estava quase com dezanove anos; mas, graças à vida isolada e à protecção de minha mãe e de minha irmã, bem sabia que muitas jovens de quinze anos, ou até menos, eram dotadas de modos mais senhoris e de maior à-vontade e autodomínio do que eu. No entanto, se Mrs Bloomfield fosse uma mulher afectuosa e maternal, eu podia, no fim de contas, sair-me bem; e decerto, com as crianças, dentro em pouco estaria à vontade; e com Mr Bloomfield, esperava não ter muito a ver. "Mantém-te calma, mantém-te calma, aconteça o que acontecer", dizia comigo mesma; na verdade, estava tão empenhada neste propósito e tão ocupada a acalmar os meus nervos e a tranquilizar a agitação rebelde do meu coração que, quando me mandaram entrar e me levaram à presença de Mrs Bloomfield, quase me esqueci de responder à sua amável saudação. E, mais tarde, tive a consciência de que havia falado no tom de alguém meio morto ou meio a dormir. Também, de certo modo, aquela senhora se mostrou pouco cordial, como depois me apercebi quando tive mais tempo para reflectir. Era uma mulher alta, magra, altiva, de cabelo negro e basto, olhos acinzentados e frios e pele extremamente macilenta. Contudo, com a devida delicadeza, acompanhou-me ao quarto e ali me deixou para descansar um pouco. Quando vi o meu aspecto ao espelho, fiquei horrorizada: as mãos estavam inchadas e vermelhas pelo vento excessivamente gelado, o cabelo solto e em desalinho e a cara de uma palidez arroxeada. A juntar a tudo isto tinha a gola horrivelmente amarrotada, o vestido salpicado de lama e os pés metidos numas botas novas e muito grossas. E como a bagagem ainda me não fora trazida para cima, nada podia fazer; por isso, limitei-me a alisar o cabelo o melhor possível, a tentar endireitar uma gola que se mostrava resistente e a procurar serenar-me, enquanto descia os dois lanços de escada em demanda do caminho para a sala onde Mrs Bloomfield me aguardava. Esta conduziu-me à casa de jantar, onde o almoço da familia havia sido já servido. Puseram-me na frente algumas fatias de carne e batatas meio frias; e enquanto eu comia, ela sentou-se diante de mim, observando-me (pelo menos era o que eu pensava) e esforçando-se numa espécie de conversa que consistia principalmente numa sucessão de lugares- comuns, expressos com uma formalidade glacial, mas isso devia ser mais por minha culpa, pois na verdade sentia-me incapaz de conversar. De facto, quase toda a minha atenção estava concentrada no almoço.

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Não porque o meu apetite fosse grande, mas porque a dureza da carne e o entorpecimento das mãos, quase paralisadas por cinco horas de exposição ao vento áspero, me colocavam numa situação angustiante. Teria preferido comer apenas as batatas e pôr de parte a carne, mas sendo um pedaço enorme não podia ser mal educada e deixá-la no prato. Depois de várias tentativas desastradas e infrutíferas para a cortar(17] com a faca ou rasgá-la com o garfo, ou dividi-la com os dois, desesperada e consciente de que todo aquele espectáculo estava a ser presenciado por tão respeitável senhora, empunhei por fim a faca e o garfo, como uma criança de dois anos, e meti mãos à obra com redobradas forças. Mas como isto necessitava de uma desculpa, disse meio a rir:- As minhas mãos estão de tal modo entorpecidas que mal posso agarrar na faca e no garfo.- Eu calculei que estivesse com frio - replicou ela, com uma gravidade fria e inalterável, que não me ajudou a tranquilizar. Quando esta cerimónia acabou, levou-me de novo para a saleta, onde tocou para mandar vir os filhos. - Não os vai achar muito adiantados nos estudos - disse - porque eu tenho muito pouco tempo para me dedicar à sua educação e pensámos que, até agora, eles eram ainda muito pequenos para teremuma preceptora. Mas acho que são umas crianças espertas e muito ávidas de aprender, especialmente o rapazinho. É a flor do rancho - um rapaz generoso, de bom carácter, que deve ser guiado e não obrigado, [ e extraordinário porque diz sempre a verdade. Parece ter horror à mentira (isso era uma boa notícia). A irmã, Mary Ann, precisa de ser vigiada - continuou ela -, mas, de um modo geral, é uma boa menina.No entanto, quero que ela deixe a nursery o mais depressa possível, pois agora já tem quase seis anos e pode adquirir maus hábitos com as criadas. Ordenei que a caminha dela fosse colocada no seu quarto, e se quiser ter a bondade de se encarregar de a lavar, de a vestir e das suas roupas, ela deixará de ter contacto com a criada. Retorqui que de boa vontade o faria. E, nessa altura, os meus jovens educandos entraram na sala, com as irmãs mais novas. Tom Bloomfield era um rapaz de sete anos, bem desenvolvido, com o rosto emoldurado por uma cabeleira cor de linho, olhos azuis, narizinho arrebitado e peleclara. Mary Ann era uma menina alta também, morena como a mãe,

mas com carinha redonda e corada. A outra irmã, Fanny, era muito bonita. Mrs Bloomfield assegurou-me de que era uma

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criança extremamente afável e que necessitava de ser incentivada. Ainda não aprendera nada, mas dali a poucos dias faria quatro anos, e então poderiacomeçar a aprender o alfabeto e passar a ir à sala de estudo. A última era Harriet, uma boneca rechonchuda, alegre, com poúco mais de doisanos, que me agradou mais do que os outros, mas com a qual eu nada iria ter. [18]Tentei falar um pouco com os meus discípulos, procurando tornar-me simpática, mas penso que com pouco sucesso, pois a presença da mãe causava-me um constrangimento desagradável. Mas eles nãoeram crianças envergonhadas. Pareciam desembaraçadas e cheias de vida, e eu tinha esperança de que, dentro de pouco tempo, me relacionaria bem com elas, especialmente com o rapazinho, de cujo bom carácter a mãe me falara. Em Mary Ann havia um certo sorriso tolo eafectado e um desejo de se fazer notada de que não gostei. Mas o irmão atraía toda a minha atenção: encontrava-se entre mim e o fogão, muito direito, com as mãos atrás das costas, falando como um orador einterrompendo de vez em quando o seu discurso para repreender severamente as irmãs quando faziam mais barulho.- Oh, Tom, meu querido! - exclamou a mãe. - Vem dar um beijo à tua mamãzinha. E agora não queres ir mostrar a Miss Grey a sala de estudo e os teus livrinhos novos?- Eu não quero dar-lhe um beijo, mamã, mas vou mostrar a MissGrey a minha sala de estudo e os meus livros novos.- E a minha sala de estudo e os meus livros novos, Tom - disseMary Ann. - Também são meus. - São meus - replicou ele, com decisão. - Venha, Miss Grey.Eu acompanho-a.Quando a aula e os livros foram mostrados, no meio de algumas discussões entre os dois irmãos, Mary Ann trouxe-me a boneca e começou a tagarelar sobre os lindos vestidos, a cama, a cómoda e outros pertences dela. Mas Tom mandou-a calar, porque Miss Grey tinha de ver o seu cavalo de baloiço que, com enorme azáfama, arrastara lá do seu canto para o meio da sala, chamando a minha atenção em alta gritaria. Depois, ordenando àirmã que segurasse nas rédeas, montou-o e fez-me estar dez minutos aobservar como ele manobrava o chicote e as esporas. Entretanto, eu iaadmirando a linda boneca de Mary Ann e os seus haveres; e, depois, disse a Tom que ele era um excelente cavaleiro, mas que esperava quenão utilizasse tanto o chicote e as esporas quando montasse

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um pónei verdadeiro.- Pois com certeza que os hei-de utilizar! - disse ele, manobrando-os com redobrado ardor. - E hei-de desfazê-lo! Palavra que o hei-de fazer suar.Isto era muito antipático, mas eu esperava que com o tempo seria capaz de operar uma modificação. [19) - Agora tem de ir pôr o chapéu e o xaile - disse o pequeno herói - para eu lhe ir mostrar o meu jardim. - E o meu - disse Mary Ann. Tom ergueu o punho, ameaçador. Ela soltou um grito muito agudo, correu para mim e fez-lhe uma careta.- Tom, com certeza que não vai bater na sua irmã! Espero não voltar a vê-lo fazer isso. - Vai voltar, vai, porque eu sou obrigado a fazê-lo, de vez em quando, para a meter na ordem. - Mas sabe que metê-la na ordem não é consigo... Isso é para... - Bom, vá lá pôr o seu chapéu. - Não sei... Há tantas nuvens e faz tanto frio que parece que vai chover... E o Tom sabe que eu fiz uma grande viagem. - Não faz mal... Tem de vir; não admito desculpas - replicou o pretensioso rapazinho. E como era o primeiro dia que nos conhecíamos, pensei que seria melhor satisfazer- lhe o desejo. Fazia frio demais para Mary Anh, por isso esta ficou com a mãe, com grande alívio do irmão, que me queria só para ele.O jardim era grande e arranjado com gosto; além de magníficas dálias, havia outras flores ainda em botão, mas que o meu companheiro não me dava tempo para apreciar; tinha de ir com ele, por cima da relva húmida, até ao canto mais afastado, o lugar mais importante, pois era onde se encontrava o seu jardim. Havia dois canteiros redondos, bem sortidos com uma enorme variedade de plantas. Num deles, florescia uma roseira. Parei para lhe admirar os belos botões de rosa. - Deixe lá isso! - disse ele, com desdém. - Esse é o jardim de Mary Ann. Olhe, o meu é este.Depois de ter observado cada uma das flores e ouvido uma dissertação sobre cada uma das plantas, tive licença para me ir embora; mas antes, com grande solenidade, ele arrancou um narciso e ofereceu-mo, como alguém que concede um enorme favor. Tendo notado, em toda a volta do jardim de Tom, um engenho com vários paus e uma corda, perguntei o que era aquilo. - São armadilhas para pássaros. - Por que é que os apanha?

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- O meu pai diz que eles fazem mal. - E o que é que lhes faz Quando os apanha? - Várias coisas. Às vezes, dou-os ao gato; outras vezes, corto- os [20]aoS bocados com o canivete; ao próximo que apanhar, faço tenção de o assar vivo. - E porque é que tenciona fazer uma coisa tão horrorosa ?

- Por duas razões: a primeira, para ver quanto tempo resiste; depois, para ver a que é que sabe. - Mas não vê que é uma grande maldade fazer essas coisas? Lembre-se de que os pássaros sentem da mesma maneira que as pessoas e pense o que sentiria se fosse consigo. - Ora! Eu não sou um pássaro e não posso sentir o que lhes faço. - Mas o Tom àlguma vez o há-de sentir. Já ouviu dizer para onde vão as pessoas más quando morrem? Lembre-se de que, se não deixar de torturar os passarinhos inocentes, vai para lá e sofre o mesmo que os fez sofrer.- Ora! Não vou. O papá sabe o que lhes faço e nunca me censura; diz que era o que ele fazia quando era pequeno. No Verão passado, deu-me um ninho cheio de pardalinhos e viu-me arrancar-lhes as pernas e as asas e as cabeças e nunca disse nada. Só disse que eram maus e para eu não sujar as calças. E o meu tio Robson também lá estava, e ria-se, e dizia que eu era um rapaz como deve ser. - E o que diria a sua mãe? - Oh! Ela não se importa! Diz que é uma pena matar os passarinhos bonitos que cantam, mas aos pardais que são maus, aos ratos e às ratazanas eu posso fazer o que quiser deles. Por isso, Miss Grey, como vê, não é maldade. - Eu continuo a pensar que é; Tom, e talvez o seu pai e a sua mãe o achassem também se pensassem mais um pouco nisso. No entanto - acrescentei comigo mesma -, eles podem dizer o que quiserem, mas eu estou determinada a não deixar fazer essas coisas, na medida em que o possa evitar. Depois, levou-me por cima da relva a ver a armadilha para as toupeiras, e depois ao celeiro para ver a armadilha para as doninhas, uma das quais, para grande alegria sua, continha uma doninha já morta; depois, à cavalariça, não para ver os belos cavalos que lá se encontravam, mas um pequeno potro guedelhudo,

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informando-me que tinha sido criado de propósito para ele e que o iria montar assim que estivesse convenientemente amansado. Eu procurava agradar ao rapazinho, ouvindo todo aquele tagarelar, tão complacentemente quanto podia, pois pensava que se ele, tinha sentimentos, eu devia esforçar-me para lhos despertar; e depois, a seu tempo, seria capaz de lhe mostrar o erro (21] do seu procedimento. Mas em vão procurei aquele bom carácter generoso de que a sua mãe falara, embora se visse que não era destituído de um certo grau de sagacidade e discernimento quando resolvia fazer um esforço. Quando voltámos a casa, eram horas do chá. Tom disse-me que, como o pai não estava, ele, eu e Mary Ann iríamos tomar o chá com a mamã. Nessas ocasiões, ela jantava sempre com eles à hora do almoço, em vez de ser às seis horas. Logo a seguir ao chá, Mary Ann foi para a cama, mas Tom brindou-nos com a sua companhia e conversa até às oito. Depois de ele ter saído, Mrs Bloomfield informou-me de mais pormenores a respeito das aptidões e conhecimentos dos filhos esobre o que iriam aprender e como se deveria lidar com eles; avisou-me de que não devia falar dos seus defeitos senão com ela. Minha mãe já antes me avisara que falasse neles o menos possível, pois as pessoas não gostam que se fale nos defeitos dos filhos; por isso, resolvi que o melhor seria não falar deles a ninguém. Cerca das nove e meia, Mrs Bloomfield convidou-me a participar numa ceia frugal composta de carnes frias e pão. Fiquei satisfeita quando ela acabou, pegou no castiçal e se foi deitar, pois, embora eu desejasse agradar-lhe, a sua companhia era-me extremamente fastidiosa e não podia deixar de a achar fria, severa e intimidativa - o extremo oposto à bondade da mãe de familia que as minhas esperanças me haviam feito esperar. [22] IIIMAIS ALGUMAS LIçÕES Levantei-me, no dia seguinte, bem-humorada e cheia de esperança, a despeito do desapontamento anteriormente sentido; mas descobri que pentear Mary Ann não era tarefa fácil, porque a sua abundante cabeleira devia primeiro ser amaciada com uma pomada, dividida em três grandes tranças e atada com laços de fita: um trabalho ao qual os meus dedos não estavam acostumados e que tiveram dificuldade em executar. Ela dizia-me que a ama era capaz de o fazer em menos de metade do

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tempo e, irrequieta e impaciente, ainda me obrigava a demorar mais. Depois de pronta, fomos para a sala de estudo, onde já encontrei o meu outro discípulo, e com eles conversei até serem horas de ir para baixo almoçar. Acabada a refeição, e tendo trocado algumas palavras corteses com Mrs Bloomfield, retirámo-nos de novo para a sala de estudo e começámos o trabalho do dia. Na verdade, encontrei os meus discípulos muito atrasados, mas Tom, embora avesso a qualquer espécie de esforço mental, não era destituído de capacidades. Mary Ann mal sabia ler, e era tão desinteressada e desatenta que eu mal podia fazê-la avançar. Contudo, à força de grande trabalho e paciência, consegui que se fizesse alguma coisa nessa manhã, e a seguir acompanhei os meus jovens alunos ao jardim e suas imediações, para um pequeno recreio antes do jantar. E lá andámos juntos, relativamente bem, a não ser eu ter percebido que eles não tinham a noção de andar comigo, mas eu com eles para onde me quisessem levar. Tinha de correr, andar ou ficar parada, conformne a sua fantasia. isto, pensava eu, era o inverso da ordem das coisas, tanto mais que o pior era, como verifiquei em outras ocasiões, eles parecerem ter preferência pelos lugares mais sujos e pelas mais disparatadas[23] ocupações. Mas não havia remédio; ou ia atrás deles ou medeixava ficar para trás, e isso parecia negligência da minha parte.Naquele dia manifestaram especial preferência por uma fonte, ao fim da alameda, onde persistiram em chafurdar com paus e pedras durante mais de meia hora. Temi, todo esse tempo, que a mãe os visse da janela e me censurasse por permitir que eles sujassem os fatos e molhassem os pés e as mãos, em vez de os levar a fazer exercício; não houve argumento, ordem ou súplica que os conseguisse afastar dali. Se ela os não viu, outra pessoa o fez - um senhor a cavalo que passou o portão e começou a subir a rua. A poucos passos de nós parou e, chamando as crianças com voz irritada e severa, intimou: - Deixem imediatamente essa água. Miss Grey (suponho que é Miss Grey) - disse ele -, estou admirado por permitir que eles sujem os fatos dessa maneira! Não vê como Miss Bloomfield manchou o vestido? E as meias de Master Bloomfield estão todas molhadas! E qualquer deles não traz luvas! Rogo-lhe que, daqui para o futuro, ao menos os saiba manter limpos e asseados! E, dizendo isto, voltou as costas e continuou o caminho até casa.Era Mr Bloomfield. Fiquei surpreendida por ele ter tratado os filhos por Master e Miss Bloomfield e ainda mais por me ter falado com tanta indelicadeza, a mim, a preceptora deles e uma

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estranha. Nessa altura, tocou a campainha para nos chamar. Jantei com as crianças à uma hora, enquanto ele e a mulher comiam, à mesma mesa.O seu comportamento não o fez subir na mimha consideração. Eraum homem de estatura vulgar, mais baixo do que alto, mais magro do que gordo, aparentando uns trinta a quarenta anos; tinha umaboca grande, pele terrosa e pálida, olhos azuis desbotados e cabelocor de cânhamo. Na sua frente encontrava-se uma perna de carneiro assada; serviu Mrs Bloomfield, os filhos e a mim, e pediu-me para eu cortar a carne às crianças. Então, depois de ter voltado o carneiro em várias direcções e o ter mirado por todos os lados, decretou que não estava bom para ser comido, e pediu carne de vaca fria. - O que é que tem o carneiro, meu amigo? - perguntou- lhe a esposa.- Está assado demais. Não acha, Mistress Bloomfield, que perdeu por completo a sua suculência? E não vê que o molho está compeltamente seco? - Então, acho que a vaca lhe irá agradar.A carne foi-lhe posta na frente, e ele começou a trinchá-la; mas com o mais lastimável dos descontentamentos. - O que é que tem a carne, mister Bloomfield? Eu tinha a certeza de que estava boa.- E estava muito boa. Não podia ser uma peça melhor; mas está completamente estragada - replicou ele, em tom doloroso. - Como assim? - Como assim! Então não vê como foi cortada? Oh, meu Deus! É extremamente revoltante!- Devem tê-la cortado mal na cozinha. Tenho a certeza de que ontem aqui eu cortei-a como deve ser. - Não há a mais pequena dúvida de que foi mal cortada na cozinha por aquelas selvagens! Oh, meu Deus! Se alguma vez se viu uma peça tão boa de carne desperdiçada desta maneira! Mas fique a saber que, daqui para o futuro, quando um prato de carne for levado daqui da mesa convenientemente cortado, não lhe devem tocar lá na cozinha. Lembre-se disso, Mistress Bloomfield! Não obstante o tão ruinoso estado da carne, Mr Bloomfield conseguiu cortar algumas fatias muito finas, parte das quais comeu silenciosamente. Quando falou a seguir, foi num tom menos impertinente, para perguntar o que havia para o jantar. - Peru e faisão - foi a resposta concisa. - E além disso? - Peixe. - Que espécie de peixe?

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- Não sei.- Não sabe?! - exclamou ele, erguendo a vista do prato, com ar solene e interrompendo o que estava a fazer, tal era a sua estupefacção. - Não. Eu disse à cozinheira que comprasse peixe... Não especifi quei qual. - Isto passa todas as marcas! Uma senhora que pretende saber go vernar uma casa e que nem mesmo sabe que peixe há para o jantar! Declara ter mandado comprar peixe e nem especifica qual! - Talvez seja melhor, Mister Bloomfield, passar o senhor a determinar o jantar daqui para o futuro. Nada mais foi dito; e eu fiquei satisfeita quando saí da sala com os meus discípulos, porque nunca me sentira tão envergonhada e incomodada na minha vida com uma coisa de que não era culpada. Durante a tarde, dedicámo-nos outra vez às lições; depois voltámos [25] a sair, tivemos o chá na sala de estudo e, a seguir, arranjei Mary Ann para ir assistir à sobremesa dos pais. Quando ela e o irmão desceram para a sala de jantar, aproveitei a oportunidade para começar a escrever uma carta para os meus queridos, mas as crianças voltaram antes de eu ter tempo de a acabar. Às sete, tive de deitar Mary Ann; depois, joguei com Tom até às oito, quando chegou a sua vez. E acabei a minha carta, desfiz as malas, coisa que eu ainda não tivera oportunidade de fazer, e por fim meti-me também na cama. Mas este dia fora apenas uma amostra, muito favorável, dos que vinham a seguir. A minha tarefa de ensinar e de tomar conta das crianças, longe de se tornar mais fácil à medida que os meus pupilos e eu nos íamos acostumando melhor uns aos outros, foi-se tornando também mais di fícil à medida que os seus sentimentos se iam revelando. Em breve percebi que a palavra "preceptora" era uma mera irrisão no modo como me era aplicada: os meus discípulos não tinham mais noção do que era obediência do que um poldro selvagem e indomável. O vulgar medo do mau-humor do pai e o temor do castigo que este costumava infligir quando estava irritado geralmente continham-nos dentro de uns certos limites sempre que ele estava presente. As meninas também sentiam um certo receio quando a mãe se zangava; o rapaz, de vez em quando, era levado a fazer o que ela lhe mandava na mira de uma recompensa. Mas eu não tinha recompensas para dar, e quanto a castigos depressa concluí que os pais reservavam esse privilégio para si; no en tanto, esperavam que conseguisse mantê-los em ordem. Outras crianças seriam levadas pelo medo de que me zangasse ou pelo desejo de merecerem aprovação, mas nem uma coisa nem outra tinha efeito sobre estas. Tom, não contente em não gostar de ser mandado,

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precisava de ser ele a mandar, e manifestava a decisão de meter na ordem não só as irmãs, mas também a preceptora, usando com violência as mãos e os pés, e como era um rapazinho alto e forte para a sua idade, isto ocasionava contusões nada leves. Uns puxões de orelhas, nessas ocasiões, poderiam resolver o caso facilmente. Mas como ele poderia ir inventar qualquer história para a mãe, em que esta acreditaria piamente, pois tinha uma confiança inabalável na sua veracidade - embora eu já tivesse descoberto que não era de modo algum irrepreensível -, resolvi evitar bater-lhe, mesmo para me defender. E quando se mostrava mais violento, o meu único recurso era deitá-lo de costas no chão e segurar-lhe [26)as mãos e os pés até que a fúria se fosse acalmando. À dificuldade de evitar que ele fizesse o que não devia acrescentava-se a de o forçar a fazer o que devia. Frequentes vezes se recusava a aprender ou a recitar as lições ou até a olhar para o livro. Também aqui um bom açoite teria sido útil, mas, como os meus poderes eram limitados, eu devia utilizar apenas os que tinha. Como não havia horas determinadas para o estudo e para o recreio, resolvi estabelecer para os meus alunos pequenas tarefas que, com mo derada atenção, poderiam ser feitas em pouco tempo. E até que tudo estivesse acabado, por mais cansada que me sentisse ou por mais im pertinentes que eles se mostrassem, nem a menor interferência dos pais me levaria a tolerar que saíssem da sala de estudos; nem que me tivesse de sentar com a cadeira encostada à porta para os manter lá dentro. Paciência, firmeza e perseverança eram as minhas únicas armas; e essas, eu resolvera usá-las o mais possível. Procurava sempre cumprir rigorosamente as ameaças e as promessas que fazia; e, por essa razão, tinha de me acautelar e não fazer ameaças nem promessas que não pudesse cumprir. Então, tinha de evitar cuidadosamente tanto irritar-me como ser indulgente demais; e quando eles se portassem razoavelmente, seria tão boa e condescendente quanto pudesse, a fim de fazer a maior distinção entre um bom e um mau comportamento; e chamá- los-ia à razão, também, da mais simples e eficaz maneira. Quando os repreendesse ou me recusasse a satisfazer os seus desejos, depois de uma falta evidente, seria de um modo mais penalisado do que zangado. Os hinos e as orações deveriam ser claros e simples; para que eles os entendessem; e quando dissessem as orações da noite e pedissem perdão pelas suas ofensas, lembrar- lhes-ia os pecados desse dia, com ar sério mas bondoso, para que não sentissem vontade de os repetir; os hinos penitenciais deveriam ser ditos pelos que se haviam portado mal e os de louvor pelos que se tivessem portado melhor. E qualquer espécie de ensinamento ser-lhes-ia transmitido, tanto quanto possível, por meio de uma conversa divertida -

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aparentemente sem outro objectivo que não fosse a sua distracção. Por estes processos, eu esperava, com o tempo, beneficiar as crianças e ganhar a aprovação dos pais; e também convencer a minha família de que não era tão falha de jeito e tão imponderada como eles supunham. Sabia que as dificuldades a vencer eram grandes; mas sabia também (pelo menos acreditava nisso) que a paciência e a perseverança contínuás poderiam superá-las, e noite e dia eu implorava o auxílio[27]divino para o conseguir. Mas ou as crianças eram incorrigíveis e os pais pouco razoáveis, ou eu própria errara completamente os meus propósitos ou fora incapaz de os levar a cabo, o caso é que as minhas melhores intenções e os meus persistentes esforços não conseguiam obter melhores resultados do que a zombaria das crianças e o descontentamento dos pais e uma tortura para mim. O trabalho de os ensinar era tão árduo para o corpo como para o espírito. Tinha de correr atrás dos meus alunos para os apanhar, os levar ou os arrastar para a mesa, e frequentemente os segurar ali à força até a lição estar dada. Punha muitas vezes Tom a um canto, sentava-me em frente dele numa cadeira, com o livro que continha a pequena tarefa que devia recitar ou ler na minha mão, para só depois o soltar. Ele não tinha força para me empurrar e à cadeira, por isso ali ficava a contorcer o corpo e a fazer caretas grotescas - que davam vontade de rir sem dúvida a quem as presenciasse, mas não a mim -, soltando gritos ferozes e lamentações e fingindo que chorava, mas tudo sem deitar uma lágrima. Eu sabia que aquilo tinha apenas o propósito de me arreliar, e, por conseguinte, embora pudesse tremer interiormente de impaciência e irritação, esforçava-me por esconder qualquer sinal de mal- estar e afectava estar ali sentada com calma indiferença, esperando até que ele se dignasse parar com aquela brincadeira e se decidisse a ir dar uma corrida pelo jardim depois de uma olhadela ao livro e ler ou repetir o pouco que lhe ordenara que fizesse. Por vezes, resolvia escrever a página de caligrafia toda mal, e eu tinhha de lhe segurar a mão para evitar que ele propositadamente deitasse borrões ou estragasse o papel. Com frequência, ameaçava-o de que, se não fizesse melhor, o obrigaria a escrever uma linha a mais; então, como obstinadamente se recusava a escrever essa linha, eu, para não dar o dito por não dito, recorria ao expediente de lhe segurar os dedos na pena e forçar a mão a desenhar as letras, apesar da sua resistência, para que a linha ficasse completa de qualquer maneira. No entanto, Tom não era de modo algum o mais intratável dos meus alunos. Por vezes, para grande alegria minha, ele tinha o bom senso de ver que era mais assisado acabar os trabalhos e ir lá para fora brincar até que eu e as irmãs fôssemos ter com ele, o que não acontecia com frequência porque

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Mary Ann muitas vezes seguia o seu exemplo, com a particularidade de preferir rebolar-se pelo chão. Deixava-se cair como um peso de chumbo, e quando eu, com grande dificuldade, conseguia arrancá-la dali, segurava-a com um braço [28]enquanto com o outro pegava no livro onde ele havia de ler ou soletrar a lição. Como o peso morto do corpo de uma rapariguinha de seis anos se tornava pesado demais para um braço, eu transferia-o para o outro; ou se os dois estavam já cansados daquele fardo, levava-a para um canto e dizia que só poderia sair de lá quando descobrisse para que serviam os pés e se levantasse; mas geralmente ela preferia ficar para ali deitada como um cepo até à hora do jantar ou do chá, quando, por não poder privá-la das refeições, a libertava e ela se afastava rastejando, com um sorriso de triunfo na cara redonda e vermelha. Muitas vezes recusava-se obstinadamente a pronunciar uma determinada palavra da lição: lamento agora o trabalho perdido para vencer tanta obsti nação. Se eu a tivesse ignorado, não lhe ligando importância, teria sido melhor para ambas as partes, em vez de me esforçar em vão para a obrigar, como eu fazia. Mas julgava ser meu instante dever subjugar tão repreensível tendência logo à nascença; e assim seria se eu o tivesse pedido. Se os meus poderes fossem menos limitados, eu tê-la-ia obrigado a obedecer; mas, assim, era uma prova de força entre ambas, da qual geralmente era ela quem saía vitoriosa, e cada vitória servia para a encorajar e fortalecer para uma futura contenda. Em vão eu argumentava, lisonjeava, suplicava, ameaçava, ralhava, em vão eu a proibia de ir brincar ou, se era obrigada a sair, me recusava a brincar com ela ou a falar-lhe com afabilidade ou a fazer- lhe qualquer coisa; em vão tentava mostrar-lhe as vantagens de ela fazer aquilo que eu ordenava e ser amada e acarinhada por causa disso, e as desvantagens de persistir naquela absurda obstinação. Por vezes, quando ela me pedia para lhe fazer qualquer coisa, eu respondia: - Está bem, Mary Ann, só faço se me disser esta palavra. Vá, é melhor dizê-la já e não ter mais aborrecimentos. - Não. - Então, é claro que não posso fazer nada pela menina. Comigo, quando tinha a idade dela, ou menos, desprezo e indiferença eram o maior dos castigos; mas a ela não lhe causavam qualquer mossa. Por vezes, exasperada ao máximo, sacudia-a violentamente pelos ombros ou puxava-lhe os cabelos compridos ou punha-a a um canto; a sua vingança era castigar- me com gritos e guinchos agudos, que me penetravam na cabeça como facas. Sabendo quanto eu o detestava, depois de já ter gritado o mais alto que pudera, olhava para a minha cara com ar de satisfação e exclamava: - Aí tem! Isto é para si! - e voltava a guinchar, até que eu me via

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[29] forçada a tapar os ouvidos. Por vezes, essa horrível gritaria trazia cáacima Mrs Bloomfield a perguntar o que acontecera.- Mary Ann é uma menina mal comportada, minha senhora. - Mas o que são estes gritos horríveis? - Está a gritar de fúria.- Nunca ouvi um barulho assim! Com certeza que a estava a matar. Porque é que ela não está lá fora com o irmão. - Não consegui que me acabasse as lições. - Mas Mary Ann tem de ser uma menina bonita e acabar as suaslições - dizia ela, brandamente, para a criança. - E espero nunca mais tornar a ouvir tais gritos!E fitava-me com um olhar gelado e duro. Para que eu não tivesse dúvidas, fechava a porta e ia-se embora. Por vezes, tentava apanhar de surpresa aquela teimosa criaturinha, e perguntava- lhe inesperadamente a palavra, quando ela estava a pensar noutra coisa; às vezes começava a pronunciá-la, mas de repente detinha-se, com um olhar provocador que parecia dizer: "Sou mais esperta do que tu!" Não me consegues enganar! Numa outra ocasião, fingi esquecer o assunto e falei e brinquei comela como habitualmente, até à noite, quando a meti na cama; então, quando toda ela era sorrisos e boa disposição, eu disse- lhe, tão alegre e carinhosa como antes: - Agora, Mary Ann, diga-me aquela palavra antes de eu lhe dar I um beijo de boas-noites. É uma bonita menina e com toda a certeza ma vai dizer. - Não, não digo. - Então, não lhe dou um beijo.- Eu também não me ralo.Em vão lhe mostrei a minha pena, em vão esperei por algum indício de contrição, mas na realidade ela "não se ralava"; e eu deixei-a sozinha, às escuras, e saí meditando, acima de tudo, nesta última prova de tão tola obstinação. Na minha infância, eu não podia conceber maior castigo do que a minha própria mãe se recusar a beijar-me à noite; só essa ideia me deixava aterrorizada. Nunca experimentei mais do que aideia, porque, felizmente, nunca cometi uma falta que merecesse tal penalidade, mas lembro-me de que uma vez, por causa de qualquer desobediência de minha irmã, a nossa mãe chegou a pensar infligir-lha.O que ela sentiu não sei dizer, mas o quanto chorei e sofri

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por ela não mais esquecerei.Outra faceta aborrecida de Mary Ann era a sua incorrigível tendência para fugir para a nursery e ir brincar com as irmãs mais pequenase a ama. Era muito natural, mas contra o desejo expresso pela mãe;claro que eu não a deixava e fazia o que podia para a conservar junto de mim. Mas isso ainda aumentava mais a sua vontade de para lá ir, equanto mais a afastava, mais ela fugia, com grande desagrado de MrsBloomfield, que, como sempre, me atribuía a culpa de tudo o que sepassava. Outra das minhas provações era arranjá-la de manhã. Umas vezes não se queria lavar, outras não se queria vestir, a menos que pusesse um vestido especial, que eu bem sabia não agradaria à mãe; e outras, gritava e fugia se eu tentava tocar-lhe no cabelo. Por isso, erafrequente, quando depois de muitas dificuldades a conseguia trazerpara baixo, o almoço já estar quase no fim. E os olhares carregados da"mamã" e as observações impertinentes do "papá", indirectas quando não mesmo directas, eram a minha recompensa, pois poucas coisas irritavam tanto este último como a falta de pontualidade à hora das refeições. A seguir, entre os aborrecimentos de somenos importância, estava a minha incapacidade em satisfazer Mrs Bloomfield a respeitodo vestuário da filha; e o cabelo, então, "nem se podia ver". Por vezes, em ar de reprovação, tornava a penteá- la, queixando-se amargamente do trabalho que aquilo lhe dava.

Quando a pequena Fanny passou a ir à sala de estudos, a minha esperança era que ela fosse meiga, ou pelo menos inofensiva. Mas al guns dias, se não algumas horas, foram o suficiente para dissipar essa ilusão. Descobri que ela era uma criaturinha perversa e intratável, falsa e impostora, embora tão pequena ainda, e amiga de usar de um modo assustador as suas duas armas favoritas de ataque e defesa: cuspir na cara daqueles que incorriam no seu desagrado e berrar como um touro quando os seus desejos despropositados não eram satisfeitos. Como de um modo geral se conservava muito sossegada na presença dos pais, estes, convencidos de que ela era uma criança extraordinariamente dócil, prontamente esqueciam as suas falsidades. Os gritos que dava faziam-nos suspeitar do tratamento severo e

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injusto daminha parte, e quando, por fim, a sua má índole se tornou manifesta até mesmo para quem o não queria ver, eu senti que tudo me era atribuído. - Mas que menina tão mal comportada em que Fanny se está a tornar - dizia Mrs Bloomfield para o marido. - Não reparou, meu amigo, como ela mudou desde que passou para a sala de estudo? [31) Daqui a pouco está tão má como os outros dois; penaliza-me bastante ter de o dizer, mas eles ultimamente estão muito piores. - Pode dizê-lo - era a resposta. - Tenho vindo a pensar o mesmo. Imaginava que depois de terem uma preceptora melhorariam; mas, em vez disso, estão cada vez piores. Não sei o que se passa quanto à instrução, mas quanto a maneiras não fazem diferença alguma; estão cada vez menos educados e menos asseados e cada dia mais in convenientes. Eu sabia que de tudo isso me culpavam, e estas e outras insi nuações similares afectavam-me mais profundamente do que qual quer acusação frontal. Contra esta, eu ter-me-ia levantado para me defender, mas achava que era mais sensato reprimir qualquer impulso de ressentimento, retrair-me e prosseguir com perseverança, esforçando-me o mais possível, por muito penosa que fosse a minha situação, pois desejava sinceramente mantê-la. Pensava que se procurasse vencer as dificuldades com incansável firmeza e integridade, com o tempo as crianças se tornariam mais tratáveis. Em cada mês que passasse, iriam ser mais ajuizadas e, por consequência, seriam mais dóceis, porque se uma criança de nove ou dez anos fosse tão desvairada e indisciplinada quanto estas, aos seis e sete seria pouco normal. Encorajava-me a mim própria, pensando que estava a beneficiar os meus pais e a minha irmã se continuasse ali. Por muito pequeno que o ordenado fosse, sempre ia ganhando qualquer coisa, e com muita economia podia facilmente poupar um pouco para eles, se me fizessem o favor de o aceitar. De resto, fora por minha própria vontade que arranjara este lugar, fora eu quem acarretara toda essa tribulação sobre mim mesma e estava determinada a suportá-la. E, acima de tudo, não lamentava o passo que havia dado. Ansiava por demonstrar aos meus queridos que, mesmo agora, era competente para desempenhar este cargo e capaz de o cumprir honrosamente até ao fim. E se alguma vez achasse degradante submeter- me com tanta tranquilidade, ou intolerável trabalhar tão arduamente, voltaria para casa e diria de mim para mim: "Podem oprimir-me, mas não me subjugarão! É em vós que penso, e não neles. " Pelo Natal, fui autorizada a ir a casa. Mas as minhas férias só duraram quinze dias, "porque - disse Mrs Bloomfield

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- eu acho que, se viu a sua família há tão pouco tempo, não lhe interessa demorar-se lá muito". Deixei-a pensar assim, mas mal sabia ela quão longas, quão [32]fatigantes, tinham sido para mim aquelas catorze semanas de ausência, quão intensamente desejara tais férias, quão desapontada fiquei pelo seu encurtamento. No entanto, não a podia criticar por isso, pois nunca lhe falara nos meus sentimentos e não podia esperar que ela os adivinhasse; não tinha estado ali um período lectivo inteiro e não havia justificação para me permitirem umas férias integrais. [33]IVA AVÓ Poupo aos meus leitores a narração do prazer que senti ao voltar a casa, a minha felicidade enquanto ali estive, gozando um breve período de descanso e de liberdade naquele lugar tão querido e familiar, entre os que me amavam e que eu amava também, e a minha tristeza por ser obrigada a despedir-me deles mais uma vez. Regressei, contudo, com igual energia ao meu trabalho - uma tarefa mais árdua do que alguém possa imaginar, alguém que nunca sentiu qualquer coisa como o tormento de ser encarregado de cuidar e ensinar um bando de crianças rebeldes, travessas e turbulentas, a quem os maiores esforços não conseguem obrigar a cumprir os seus deveres. Ser responsável pela sua conduta diante de um poder superior, que lhe exige o que não pode ser executado sem a sua ajuda e que, ou por indolência ou por medo de se tornar impopular com os ditos rebeldes, se recusa a dá-la. Imagino que haja poucas situações mais mortificantes, em que, embora se deseje ter bom êxito, embora se trabalhe para cumprir um dever, os nossos esforços sejam escarnecidos e desprezados por aqueles que estão abaixo de nós, injustamente censurados e julgados pelos que estão acima. Não enumerei nem metade das tendências irritantes dos meus discípulos, nem metade das preocupações resultantes das minhas pesadas responsabilidades, receando abusar da paciência do leitor, o que talvez já tenha feito. Mas a minha intenção ao escrever estas páginas não foi divertir mas ajudar todos aqueles a quem isto possa vir a ser proveitoso. Quem não se interessar por tais assuntos, sem dúvida que apenas lhes deitou um breve relance de olhar e amaldiçoou talvez a prolixidade do escritor; porém, se houver alguns pais que daqui tenham tirado[34) alguma conclusão, ou se alguma infeliz preceptora tenha colhido daqui o mínimo benefício, sentir-me-ia recompensada das minhas penas. Para evitar confusões, apresentei os meus discípulos, um por um, e examinei as suas diferentes qualidades; mas assim não se pode ter a ideia exacta do que era ser molestada por

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todos três, ao mesmo tempo, quando, como muitas vezes acontecia, resolviam "ser mal comportados, arreliar Miss Grey e fazê-la zangar". Em tais ocasiões, ocorria-me subitamente este pensamento: "Se eles me pudessem ver agora!" E eles eram os meus queridos, lá de casa. Só a lembrança do que eles me lamentariam me fazia ter pena de mim própria, de tal modo que era com a maior dificuldade que eu sustinha as lágrimas, mas conseguia-o até que os meus verdugos fossem assistir à sobremesa dos pais ou para a cama (as minhas únicas perspectivas de libertação). E então, na mais ditosa das solidões, dava-me ao luxo de chorar desabaladamente. Mas esta era uma fraqueza a que poucas vezes podia ceder, pois as minhas ocupações eram inúmeras e os meus momentos de lazer preciosos demais para conceder algum tempo a lamentações pouco proveitosas. Lembro-me em especial de uma tarde agreste de neve, logo a seguir ao meu regresso, em Janeiro. As crianças tinham acabado de jantar, de clarando alto e bom som que queriam "ser mal comportados"; e tinham mantido a sua resolução, embora eu lhes tivesse dito que estava rouca e com a garganta fatigada, na vã tentativa de os chamar à razão. Prendera Tom a um canto, de onde, disse-lhe, não poderia sair até que tivesse acabado os seus deveres. Entretanto, Fanny apoderara-se do meu saco de trabalho e estava pilhando o seu conteúdo e, além disso, cuspindo lá " para dentro. Disse-lhe que o deixasse, mas, já se sabe, sem resultado. - Queima-o, Fanny! - gritou Tom; e ela apressou-se a obedecer a essa ordem. Dei um salto para o arrebatar do lume e Tom despediu como uma seta direito à porta. - Mary Ann, atira a escrevaninha da janela abaixo! - gritou ele. E, num instante a minha preciosa escrivaninha, contendo as minhas cartas, os meus papéis, as minhas economias e tudo o que era de mais valor, se " encontrou prestes a voar da janela do terceiro andar. Precipitei-me para a salvar. Entretanto, Tom saíra da sala e corria a bom correr pela escada, seguido por Fanny. Tendo livrado do perigo a minha escrivaninha, corri a agarrá-los, e Mary Ann apressou-se a fugir logo atrás. Todos três conseguiram escapar-me e sair para o jardim, onde começaram a rebolar- se na neve, gritando e guinchando, esfuziantes de alegria.(35) Que havia eu de fazer? Se fosse atrás deles, não seria capaz de os agarrar e ainda fugiriam para mais longe; se não o Fizesse, como os iria trazer para dentro? E o que pensariam de mim os pais, se vissem ou ouvissem as crianças amotinadas, sem chapéu, sem luvas nem botas, enterrando-se na neve? Enquanto me quedava perplexa, já fora da porta, tentando com olhares severos e palavras indignadas assustá-las para as fazer obedecer, ouvi uma voz por detrás de mim, exclamando, em tom áspero e cortante: - Miss Grey! Será possível? Em que diabo está a senhora

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a pensar? - Não consigo trazê-los para dentro - disse, voltando-me e observando Mr Bloomfield, com os cabelos em pé e os olhos azuis esbugalhados. - Mas eu insisti para que os faça entrar - gritou, aproximando-se mais e parecendo completamente fora de si. - Então, o melhor é o senhor chamá-los, por favor, porque eles a mim não me obedecem - repliquei, dando um passo atrás. - Entrem imediatamente, seus patifes, senão dou-lhes com um chicote! - rugiu ele; e as crianças obedeceram imediatamente. - Como vê, eles vieram assim que chamei! - Vieram quando o senhor os chamou. - E é muito estranho que, quando toma conta destas crianças, não tenha mais controle sobre elas!... Agora aí estão... Vão subir a escada com os pés imundos da neve! Vá atrás deles e veja se os põe apresentáveis, por amor de Deus! Nessa altura, a mãe de Mr Bloomfield encontrava-se a passar uns tempos lá em casa. E quando ia a subir a escada e passava diante da porta da sala, tive o desprazer de ouvir aquela senhora declarar, em voz alta, para a nora, a respeito do Que se passara (pois só percebi as palavras em que ela punha mais ênfase): - Santo Deus... Nunca na minha vida... Podiam morrer, de certeza... Acha, minha querida, que ela é uma pessoa competente ? Acredite no que lhe digo... Não ouvi mais nada; mas fora o suficiente. Mrs Bloomfield mãe tinha sido muito atenciosa e delicada comigo. Até essa altura, eu achara-a uma senhora idosa bastante gentil, bondosa e conversadora. Vinha muitas vezes ter comigo e falar em tom confidencial, abanando muito a cabeça e gesticulando, como algumas senhoras de idade têm por hábito fazer, embora eu não conhecesse nenhuma que levasse essa particularidade a tão grande extremo. Simpatizava [36)até comigo por causa das dificuldades que eu sentia com as crianças, e expressava, por vezes, por meias palavras sublinhadas com acenos de cabeça e piscadelas de olhos intencionais, o que achava do procedimento insensato da mãe em restringir os meus poderes e em não me apoiar com a sua autoridade. Este modo de testemunhar a sua desaprovação não era muito do meu gosto e eu geralmente recusava-me a concordar ou compreender qualquer coisa mais do que o dito abertamente. Pelo menos, nunca fui além de reconhecer implicitamente que, se as coisas se passassem de outra maneira, a minha tarefa seria menos difícil e eu poderia orientar e ensinar melhor os meus discípulos. Mas agora tinha de ser duplamente cautelosa. Até ali, embora visse que aquela senhora tinha os seus defeitos (um dos quais era a tendência para apregoar as suas perfeições), estava sempre pronta a desculpá-los e a acreditar em todas as virtudes que declarava ter, ou até mesmo imaginar

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outras que não revelara ainda. A bondade, que havia sido o alimento da minha vida durante tantos anos, fora-me ultimamente tão completamente negada que eu acolhia com grata alegria qualquer coisa que se assemelhasse a ela. Não admira, portanto, que o meu coração se prendesse àquela senhora, e que sempre me alegrasse com a sua vinda e lamentasse a sua partida. Mas agora, algumas palavras, feliz ou infelizmente ouvidas de passagem, haviam inteiramente alterado as minhas ideias a seu respeito. Considerava-a uma hipócrita e uma fingida, uma bajuladora que andava a espiar as minhas palavras e as minhas acções. Sem dúvida que teria gostado de voltar a encontrá-la com o mesmo sorriso animado e o mesmo tom de cordialidade respeitoso anterior; mas não podia, mesmo que quisesse. Os meus modos alteraram-se, tal como os meus sentimentos, e tornei-me tão fria e reservada que ela não podia ter deixado de o sentir. Depressa o notou, e os seus modos alteraram-se também: o familiar aceno de cabeça transformou-se num rígido cumprimento, o sorriso benévolo deu lugar a um olhar feroz de górgone, a sua loquaz vivacidade foi inteiramente transferida de mim para "os queridos meninos", a quem lisonjeava e desculpava tão absurdamente como a mãe nunca fizera. Confesso que fiquei bastante perturbada com esta mudança. Temia as consequências do seu desagrado, e até fiz algumas diligências para recuperar o tempo perdido, aparentemente com mais sucesso do que previra. De uma vez, e por mera delicadeza, perguntei-lhe se estava melhor da tosse; de imediato, o seu rosto fechado se abriu num sorriso[38) e brindou-me com uma história minuciosa sobre aquela e outras enfermidades, seguida de considerações sobre a sua piedosa resignação, proferidas no seu habitual estilo enfático e declamatório, que não se pode traduzir por escrito: - Mas há um remédio para tudo, minha querida: a resignação (e acentuou isto com um aceno da cabeça), resignação à vontade de Deus! (Aqui, ergueu as mãos e os olhos ao Céu. ) Sempre me amparou nas minhas provações e sempre o há-de fazer (nova série de acenos com a cabeça). Nem toda a gente o pode dizer (e abanou a cabeça); mas eu sou uma alma piedosa, Miss Grey (E acenou e abanou a cabeça de um modo significativo. ) E, graças a Deus, sempre o fui (outro aceno) e posso gabar-me disso! (E acentuando esta frase, juntou as mãos e abanou a cabeça. ) E com alguns textos da Sagrada Escritura, citados erradamente ou mal aplicados, e exclamações devotas de tal modo ridículas que eu me recuso a repetir, retirou- se, sacudindo a sua enorme cabeça em sinal de extrema boa disposição - pelo menos para com ela própria - e deixoú- me na esperança de que, apesar de tudo, ela era mais pobre de espírito do que perversa. Na visita seguinte que fez a Wellwood House eu fui mais longe, fui capaz de lhe dizer que estava contente por a ver tão bem.

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O efeito foi prodigioso; as palavras, que só pretendiam ser uma prova de cortesia foram recebidas como um cumprimento lisonjeiro. O rosto resplandeceu- lhe e a partir desse momento tornou-se tão afável e gentil como se pode desejar, pelo menos aparentemente. Pelo que percebera e pelo que ouvira às crianças, fiquei a saber que, para conquistar a sua anizade sincera, apenas havia que proferir uma palavra de lisonja nas oportunidades mais convenientes. Mas isso era contra os z us princípios, e por não o fazer a caprichosa senhora depressa me tirou de novo os seus favores, o que, acredito agora, me veio a causar bastante dano.- Não podia exercer grande influência sobre a nora para a pôr contra mim, porque entre as duas havia uma antipatia mútua, demonstrada por parte dela por depreciações e calúnias, e por parte da outra por um excesso de cerimónia glacial nos seus modos; e nenhuma lisonja danais velha podia quebrar a parede de gelo que a mais nova interpunha entre ambas. Mas com o filho tinha melhor êxito. Ele daria ouvidos a tudo o que ela dissesse, desde o momento que fosse capaz de acalmar o seu génio irritável e refrear as suas próprias impaciências. E tenho[39) razões para acreditar que reforçou os conceitos que ele formara de mim. Devia ter-lhe dito que era escandalosa a maneira como eu cuidava pouco das crianças, que até mesmo a sua própria mulher não lhes prestava a atenção devida e que devia ser ele a olhar por elas ou então estariam perdidas. Incitado assim pela mãe, com frequência se dava ao trabalho de as observar da janela enquanto brincavam; por vezes, ia atrás delas pelos relvados, e também aparecia de repente quando chafurdavam na nascente proibida, falavam com o cocheiro na cavalariça ou se divertiam na imundície do pátio; eu, entretanto, para ali estava, cansada, e tendo esgotado toda a minha energia em vãs tentativas para as levar para outro lado. Muitas vezes, também inesperadamente, metia o nariz na sala de estudo enquanto os pequenos comiam e encontrava-os a entornar o leite na mesa e sobre eles mesmos, metendo os dedos nas suas próprias canecas e nas dos outros, ou disputando a comida como um bando de pequenos tigres. Se me visse quieta, nessa altura, achava que era conivente com a conduta desordeira deles; se, como era mais frequente, me ouvia elevar a voz, dizia que estava a usar de violência excessiva e a dar um mau exemplo às meninas pela rispidez do tom e da linguagem. Lembro-me de uma tarde de Primavera em que, devido à chuva, eles não haviam podido sair, mas, por estranha sorte, tinham todos acabado as lições e não haviam corrido lá para baixo a importunar os pais - um mau hábito que me aborrecia muito, mas que, nos dias de chuva, raramente podia evitar. Lá em baixo, encontravam coisas novas que os divertiam, especialmente quando havia visitas, e a mãe, embora me ordenasse que os conservasse na sala de estudo, nunca lhes

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ralhava por de lá saírem ou se incomodava a mandá- los embora. Mas, naquele dia, eles pareciam satisfeitos onde estavam e, o que era ainda mais maravilhoso, pareciam dispostos a brincar juntos sem dependerem de mim para se divertirem e sem discutirem uns com os outros. A sua ocupação era um tanto intrigante: estavam todos de cócoras no chão junto à janela, sobre um montão de brinquedos partidos e uma quantidade de ovos de pássaros, ou melhor, cascas de ovos, porque o conteúdo felizmente fora retirado. Já tinham quebrado as cascas e estavam a reduzi-las a fragmentos muito pequenos. Com que fim, não imaginava eu; mas, desde o momento que estavam quietos e não faziam mal que se visse, eu não me importava. Aproveitando essas inesperadas tréguas, sentei-me perto da lareira, dando uns últimos pontos num vestido [40)para a boneca de Mary Ann, e fazendo tenção de, quando aquilo es tivesse pronto, começar a escrever uma carta para minha mãe. De repente, a porta abriu-se e a cara terrosa de Mr Bloomfield espreitou lá para dentro. - Tudo tão sossegado aqui! O que estão a fazer? - disse. "Pelo menos hoje não estão a fazer dano", pensei eu. Mas ele era de opinião diferente. Avançando até à janela e vendo em que se ocupavam as crianças, exclamou com o mau humor: - Que raio de coisa é essa? - Estamos a moer cascas de ovos, papá! - gritou Tom. - Como se atreveram a fazer um chiqueiro desses, seus diabos? Não vêem que estão a estragar irremediavelmente esse tapete? - O tapete era um simples pedaço de alcatifa castanha. - Miss Grey, sabia o que eles estão a fazer? - Sim, Mister Bloomfield. - Já sabia? Sim, Mister Bloomfield. - Sabia?! E está para aí sentada a deixar que continuem o que estão a fazer, sem uma única palavra de reprovação? - Achei que não estavam a fazer qualquer mal. - Qualquer mal! Olhe para aqui! Olhe só para o tapete, e repare... se viu alguma vez uma coisa assim numa casa de gente cristã? Não admira que a sua sala pareça uma pocilga... Não admira que os seus discípulos sejam piores que uma ninhada de bácoros... Não admira... Isto faz-me perder por completo a paciência! - E saiu, batendo a porta, o que fez rir as crianças.- Isto faz-me perder por completo a paciência também! - murmurei eu, levantando-me; e pegando no atiçador bati com ele várias vezes nas cinzas, com energia desusada, para acalmar a minha irritação, a pretexto de avivar o lume. Depois disto, Mr Bloomfield estava continuamente a espreitar para a sala de estudo para ver se se encontrava tudo em ordem. E, como as crianças andavam sempre a espalhar pelo chão peças dos brinquedos, pedras, folhas e outras porcarias, que eu não podia evitar que trouxessem lá de fora ou obrigar a apanhar,

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e as criadas se recusavam andar atrás deles a limpar", eu gastava uma considerável parte dos preciosos momentos de repouso, de joelhos no chão, a pôr tudo em ordem penosamente. Um dia, disse-lhes que não iriam cear enquanto não tivessem apanhado tudo o que estava no tapete. Fanny podia [41) começar a comer assim que tivesse apanhado umas tantas coisas; Mary Ann, quando tivesse levantado do chão duas vezes mais, e Tom tinha de remover o resto. Portando- se muito bem, as meninas fizeram o que lhes cabia; mas Tom ficou de tal modo furioso que se atirou à mesa, espalhou o pão e o leite pelo chão, bateu nas irmãs, deu um pontapé no carvão e atirou- o para fora do cesto, tentou virar a mesa e as cadeiras e parecia disposto a espatifar todo o recheio da sala; mas eu agarrei-o, mandei Mary Ann chamar a mãe e segurei-o, apesar dos pontapés, dos murros, dos gritos e dos impropérios, até Mrs Bloomfield chegar. - O que é que aconteceu ao meu filho? - perguntou. E quando lhe expliquei o que acontecera, tudo o que ela fez foi mandar chamar a criada da nursery para pôr ordem na sala e trazer a ceia de Master Bloomfield. - Aí tem! - exclamou Tom, triunfante, olhando por cima da comida, com a boca quase tão cheia que mal podia falar. - Aí tem, Miss Grey! Como vê, estou a comer a minha ceia, apesar de a senhora não querer. E não apanhei do chão nem uma coisa! A única pessoa naquela casa que sentia alguma simpatia por mim era a ama, porque tinha sofrido tormentos iguais, embora em menor grau, pois nunca tivera a tarefa de os ensinar nem era tão responsável pelo seu comportamento. - Oh, Miss Grey! - dizia ela. - A senhora tem tanto trabalho com as crianças! - Realmente, tenho, Betty, e acho que a Betty sabe dar o valor. - Ai, sei, sei! Mas eu não me aflijo tanto como a senhora. E sabe, por vezes dava-lhes umas palmadas; e aos mais pequenos, uns açoites de vez em quando. E digo que não há nada de melhor. Seja como for, já perdi o lugar por causa disso. - Perdeu, Betty? Ouvi dizer que nos ia deixar. - É verdade. A senhora avisou-me há três semanas. Preveniu-me, antes do Natal, do que iria acontecer se eu lhes batesse outra vez, mas eu não fui capaz de me conter nem por nada. Não sei como é que a senhora se aguenta, porque Miss Mary Ann é muito pior do que as irmãs!

O TIO Além da avó, havia outro parente da família cujas visitas me desanimavam: era o tio Robson, o irmão de Mrs Boomfield, um homem Nau e arrogante, de cabelo escuro e pele macilenta como a irmã, um nariz que parecia desdenhar o mundo, olhos pequenos e acinzentados, frequentemente semicerrados, num

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misto de estupidez e desprezo por tudo o que o rodeava. Era forte e rechonchudo, mas tinha uma maneira de apertar a cintura de um modo que imprimia à sua cara uma rigidez bem pouco natural, demonstrando que o altivo e varonil Mr Robson, que se sentia superior ao sexo feminino, não desdenhava a garodice de um espartilho. Poucas vezes se dignava reparar em mim e quando o fazia era com uma insolência arrogante, na voz e modos, que me convenciam de que não era uma pessoa bem educada, embora ele pretendesse produzir o efeito contrário. Mas não era isso que me desagradava na sua vinda, mas pelo mal que ele fazia às crianças, encorajando a sua propensão para a maldade e destruindo em poucos minutos o pouco bem que me levara meses de trabalho a conseguir.Poucas vezes condescendia em reparar em Fanny. Mary Ann era de certo modo a preferida. Estava continuamente a encorajar a sua vaidade (que eu tinha feito os maiores esforços por combater), falando do seu bonito rosto e enchendo-lhe a cabeça com toda a espécie de ideias ridículas a respeito da sua aparência (que eu ensinara a olhar como coisa sem importância comparada com a bondade do espírito e a educação); e nunca vi uma criatura tão sensível à lisonja como ela. O que eles tinham de mau, tanto nela como no irmão, era por ele estimulado por gargalhadas, se não por autênticos elogios. [43] As pessoas não se apercebem de quanto prejudicam as crianças quando se riem das suas faltas e quando gracejam com aquilo que os verdadeiros amigos procuraram ensinar-lhes a sentir aversão. Embora não positivamente um bêbado, Mr Robson consumia habitualmente grandes quantidades de vinho e tomava ocasionalmente com prazer um copo de aguardente. Ensinava o sobrinho a imitá-lo nosseus hábitos e a acreditar que quanto mais vinho e licores tomasse e quanto mais apreciasse, mais demonstrava ser um homem corajoso esuperior às irmãs. Mr Bloomfield não podia opor-se, pois a sua bebida preferida era gin com água, do qual ele ingeria uma considerável dosetodos os dias, beberricando a toda a hora. A isso atribuía eu principalEmente a cor da sua pele e o seu temperamento irritável. Mr Robson encorajava de igual modo, tanto pelas palavras comopelo exemplo, a propensão de Tom para perseguir os animais. Como vinha muitas vezes caçar nas terras do cunhado, trazia com ele os seuscães preferidos e tratava-os com tanta brutalidade que eu, embora pobre, daria de boa vontade uma libra para ver um deles

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mordê-lo, desde o momento que o animal o fizesse impunemente. Às vezes, quando de humor mais complacente, ia aos ninhos com as crianças, uma coisa que me irritava e aborrecia em extremo. Até certo ponto, conseguira, esforçando-me por isso constantemente, mostrar-lhes o que havia de mal num passatempo desses e esperava, com o tempo, incutir-lhes sentimentos de justiça e humanidade; mas dez minutos depois de irem aos ninhos cóm o tio Robson ou de uma gargalhada sua por causa de alguma barbaridade já por eles cometida era ò suficiente para destruir deimediato o efeito de todo um elaborado processo de argumentos e persuasão. Contudo, por felicidade, naquela Primavera só umaúnica vez haviam encontrado mais do que ninhos vazios ou com ovos, por não terem tido a paciência de esperar até que os passarinhos saíssem da casca. Dessa vez, Tom, que tinha andado com o tio ali pelas vizinhanças, entrou a correr, louco de alegria, no jardim, com uma ninhada de passarinhos implumes nas mãos. Mary Ann e Fanny, que eulevara a passear, correram a admirar o que ele trouxera e cada uma pediu um passarinho. - Não, nem um! - gritou Tom. - São todos meus! O tio Robson deu-mos! Um, dois, três, quatro; cinco... Não vão tocar em nenhum! Não, nem num sequer! - continuou ele, exultante, e pousou o ninho no chão, entre as pernas abertas, com as mãos encafuadas nas algibeiras, o corpo curvado para a frente e uma expressão perfeitamente extasiada. [44] - Agora vão ver o que lhes vou fazer! Palavra que vou desfazêlos! Vão ver agora do que sou capaz! Vou divertir-me à grande com o ninho!- Mas, Tom - disse eu -, não lhe vou permitir que torture esses passsarinhos. Devem ser mortos já ou levados novamente para o lugar de onde os tirou, e assim os pais poderão continuar a alimentá-los.- Mas a Miss Grey não sabe onde é... Só eu e o tio Robson é que sabemos...- Mas se não mo disser, mato-os eu... por muito que isso mecuste.- Não se atreva, Miss Grey! Não se atreva a pôr a mão neles, porque sabe muito bem que o papá, a mamã e o tio Robson se vão zangar.Ah! Agora apanhei-a, Miss Grey!- Eu faço o que acho que é certo, num caso destes, sem consultar minguém. Se o seu pai e a sua mãe não o aprovarem, terei pena

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de lhesdesagradar; mas da opinião do seu tio Robson não quero saber para nada.Enquanto falava, animada pelo sentido do dever e correndo o risco, tanto de ficar indispósta como de incorrer no desagrado dos meus pais, peguei numa pedra grande que tinha sido ali posta numa armadilha pelo jardineiro e, tendo uma vez mais, mas em vão, procurado dissuadir aquele pequeno tirano a deixar levar os passarinhos para o ninho de onde os tirara, perguntei-lhe o que tencionava fazer com eles. Com diabólica alegria, enumerou um rol de torturas, e enquanto ele assim se ocupava deixei cair a pedra em cima das pobres vítimas e esmaguei-as completamente.Grande foi o alarido, terríveis as injúrias em consequência de tão afrontosa ousadia. O tio Robson, que acabara de chegar do passeio, de espingarda na mão, parou para dar um pontapé ao cão. Tom correu para ele, reclamando que me desse um pontapé a mim em vez de o dar no cão. Mr Robson, apoiado à espingarda, ria a bom rir da violência do sobrinho e dos insultos mais ásperos e dos epítetos mais injuriosos con que ele me mimoseava. - És mesmo cómico! - exclamou ele, por fim, pegando na arma ee dirigindo-se para casa. - Mas o diabo do rapaz também tem uma força! Palavra que nunca vi um patife de um rapaz assim como ele. Já não se deixa dominar pelas mulheres! Desafia a mãe, a avó, a preceptora e todas as mais! Ah, ah, ah! Deixa lá, Tom, amanhã arranjo-te outra ninhada. [45] - Se o fizer, Mister Robson, eu mato-os também - disse eu. - Ora! - replicou ele, e dignando-se olhar-me mais demoradamente, olhar esse que, ao contrário do que ele esperava, sustentei sem vacilar, voltou-me as costas com um ar de extremo desprezo e entrou em casa. Logo a seguir, Tom foi contar tudo à mãe; esta, que como era seu costume nunca falava muito comigo, quando me viu mostrou- se duplamente reservada e fria. Depois de uma referência eventual acerca do tempo, observou: - Lamento, Miss Grey, que achasse necessário interferir nas brincadeiras de Master Bloomfield. Ele ficou muito consternado por lhe ter matado os pássaros. - Quando as brincadeiras de Master Bloomfield consistem em fazer mal a criaturas sensíveis - respondi - , acho que é meu dever interferir. - Parece ter esquecido - disse ela, calmamente - que essas cria turas foram todas criadas para nosso interesse. Eu achei que semelhante doutrina levantava algumas dúvidas, mas apenas repliquei: - Se o foram, não temos direito de as torturar para

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nosso divertimento. - Eu acho - disse ela - que o divertimento de uma criança está acima do bem-estar de um animal sem alma. - Mas para o bem da criança, esta não deve ser encorajada a divertir-se assim - respondi, tão brandamente quanto me foi possível, para contrabalançar com a minha pouco habitual pertinácia. - Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. - Oh! Pois, com certeza; mas isso refere-se ao nosso comporta mento, de uns para os outros. - Os homens misericordiosos usam de misericórdia para com os animais - ousei acrescentar. - Mas acho que a Miss Grey não usou de muita misericórdia retorquiu ela, com uma gargalhada mordaz - ao matar os pobres pássaros, todos de uma vez e de uma maneira tão horrível, e ao pôr o rapazinho, coitado, naquele estado, só por um simples capricho. Julguei prudente não dizer mais nada. E esta foi a coisa mais parecida com uma discussão que eu tive com Mrs Bloomfield, assim como o maior número de palavras que com ela troquei, desde o dia da minha chegada. Mas Mr Robson e a velha Mrs Bloomfield não eram os únicos hóspedes [46]que vinham a Wellwood House e que me desagradavam. Todas as visitas me perturbavam, umas mais, outras menos, não tanto por não ligarem importância (embora eu achasse a sua conduta estranha sob esse ponto de vista), mas também porque me parecia impossível manter os meus discípulos afastados delas como desejava. tinha sempre que lhes dizer e Mary Ann queria fazer-se notada. Em nenhum deles havia a mais pequena timidez ou até simples modéstia. Interrompiam inconvenientemente e aos gritos a conversa das pessoas crescidas, enfadavam-nas com as mais impertinentes perguntas, puxavam pelos colarinhos dos homens, subiam-lhes para os joelhos, sem que a isso tivessem sido convidados, penduravam-se-lhes nos ombros ou pilhavam-lhes os bolsos, agarravam-se às saias das senhoras, desmanchavam-lhes os penteados, amachucavam-lhes as golas e mexiam-lhes nas jóias.Mrs Bloomfield tinha o bom senso de se mostrar desgostosa e aborecidá com tudo isto, mas não o suficiente para o evitar; esperava que eu interviesse a impedi-los. Mas como podia evitá-lo, se as visitas, bem vestidas a quem pouco conheciam, continuamente os lisonjeavam e os desculpavam por delicadeza para com os pais? Como podia eu dissuadi-los, assim modestamente vestida, com quem não faziàm cerimónia, com as minhas palavras verdadeiras? Empregava todos os meus isfOrços, procurando entretê-los e chamá-los para o meu lado. Exercendo a minha autoridade e usando uma certa severidade, tentava distraí-los de atormentarem as visitas.

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Reprovando o seu comportamento pouco correcto, procurava fazê-los envergonharem-se e não o repetirem. Mas vergonha era coisa que mão conheciam; quanto a bondade e afecto, ou não tinham coração ou, se o tinham, estava muito bem guardado e igualmente bem escondido. por mais que me esforçasse, ainda não descobrira como lá chegar. Mas depressa as minhas provações nestas paragens chegaram ao seu termo, mais cedo até do que esperava ou desejava. Numa tarde amena dos fins de Maio, quando me regozijava com a aproximação das férias e me congratulava com os progressos dos meus alunos (pelo menos quanto ao estudo, porque conseguira finalmente levá-los a ser um bocadinho - muito pouco - mais razoáveis quanto às lições, a tempo de deixarem algum espaço para o recreio, em vez de se atormentarem a eles e a mim, inutilmente, durante todo o dia), Mrs omfield mandou-me chamar e, com toda a calma, disse-me que, [47]nos princípios do Verão, os meus serviços seriam dispensados. Assegurou-me que o meu carácter e o meu procedimento de um modo geral eram irrepreensíveis, mas que as crianças haviam feito tão poucos progressos desde a minha chegada que Mr Bloomfield e ela achavam seu dever procurar outros processos de educação. Embora a sua capacidade fosse superior à da maior parte das outras crianças da sua idade, a verdade é que quanto às suas maneiras estavam cada vez mais grosseiros e indisciplinados. Atribuía isso a falta de firmeza, diligência e perseverança da minha parte. Firmeza e diligência, perseverança e atenção constante eram exactamente as qualidades de que me orgulhava secretamente e com as quais esperava, com o tempo, superar todas as dificuldades e, por fim, vencer. Quereria ter dito qualquer coisa para me justificar, mas ao tentar falar a voz faltou-me, e em vez de demonstrar qualquer emoção ou permitir que as lágrimas, que já me inundavam os olhos, me banhassem as faces, preferi guardar silêncio e suportar tudo como um réu convicto. Foi assim que eu me despedi e foi assim que regressei a casa. Mas o que iria a minha famlia pensar de mim? Que fora incapaz, depois de tanta prosápia, de conservar o meu lugar, mesmo só por um ano, como preceptora de três crianças ainda pequenas, cuja mãe, segundo a minha própria tia, era uma "mulher muito simpática". Tendo assim prestado as minhas provas e falhado, não acalentava a esperança de me deixarem experimentar de novo. E isto custava-me, porque, por muito mortificada, fatigada e desiludida que tivesse ficado, por muito que amasse e desse valor à minha casa, ainda não me sentia cansada de me meter em aventuras, nem com vontade de desistir de fazer mais tentati vas. Sabia que nem todos os pais eram como Mr e Mrs Bloomfield e tinha a certeza de que nem todas as crianças eram como os filhos deles. A familia que viria a seguir seria diferente e a mudança seria para melhor. A adversidade

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amadurecera-me e a experiência ensinara-me, e agora eu desejava redimir a minha honra perdida aos olhos daqueles cuja opinião era tudo o que havia no mundo para mim. [48) VI NO VAMENTE NO PRESBITÉRIODurante uns meses permaneci calmamente em casa, gozando, em pleno, de liberdade, de um descanso, de amizade, de tudo aquilo, enfin, que me fora negado por tanto tempo. Prossegui fervorosamente os meus estudos, para recuperar o que perdera durante a minha estada em éllwood House e para fazer nova provisão para o futuro. A saúde de meu pai estava ainda muito débil, mas não pior do que quando o vira pela última vez. Fiquei satisfeita por me ser possível animá-lo com o meu regresso e entretê-lo cantando-lhe as suas canções preferidas. Ninguém se regozijou com o meu malogro ou me disse que teria sido melhor ter seguido o seu conselho e ter ficado em casa. Todos se sentiram contentes por me terem de volta e não me pouparam à sua amizade para compensarem os sofrimentos por que eu tinha passado, mas nenhum quis tocar num só xelim do que ganhara com tanto gosto e poupara com tanto cuidado na esperança de o partilhar com eles. Vivendo com muita economia, as nossas dívidas estavam já quase pagas. Mary obtivera êxito com os seus desenhos, mas o nosso pai insistira tanbém para que ela guardasse o produto do seu trabalho para si. ido o que podíamos poupar nos gastos do nosso modesto guardaroupa e nas nossas despesas ocasionais sugerira ele que o puséssemos na caixa económica, dizendo que não sabíamos se poderíamos vir a depender só daquilo para o nosso sustento, pois ele sentia que não estaria muito tempo ainda connosco, e o que aconteceria a nossa mãe e a nós quando ele desaparecesse só Deus o sabia!Meu querido pai! Se ele se tivesse preocupado menos com as atribulações que nos podiam ameaçar caso ele morresse, estou convencida que esse triste acontecimento não teria tido lugar tão cedo. Minha [49] mãe, sempre que podia, procurava que se não atardasse em conside rações sobre esse assunto. - Oh, Richard! - exclamou ela, numa dessas ocasiões. - Se ao menos varresses tão sombrias ideias do teu pensamento, viverias tanto como nós. Pelo menos, viverias o suficiente para veres as nossas filhas casadas, e tu, um feliz avô, com uma encantadora velhinha por compa nheira. Minha mãe ria e o meu pai também; mas o riso dele depressa feneceu num triste suspiro. - Elas casarem... Sem dinheiro! - disse ele. - Gostava de saber quem as quererá! - Se ninguém as quiser por essa razão, melhor será. Tinha eu al gum dinheiro quando casaste comigo? E tu, pelo menos, afirmavas que estavas imensamente satisfeito com a tua aquisição. Mas não importa se casarem ou não. Podemos imaginar

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mil maneiras honestas de viver úma vida. E eu acho, Richard, que não deves cansar a cabeça com a nossa pobreza, no caso de vires a morrer. Como se isso fosse comparável à desgraça de te perdermos, um desgosto que, bem o sabes, superaria todos os outros, e que devias tentar tudo para no- lo evitar. Nada melhor do que a boa disposição para conservar o corpo saudável. - Eu sei, Alice, e faço mal em me lamentar desta maneira, mas não o posso impedir. Tens de me suportar tal como sou. - Não tenho de te suportar se te conseguir modificar - replicou minha mãe; mas a aspereza das suas palavras era contrabalançada pelo sincero afecto da sua voz e pelo sorriso alegre que fazia com que meu pai voltasse a sorrir também, com menos tristeza e por mais tempo do que era costume. - Mamã - disse eu, assim que consegui arranjar uma oportunidade de falar com ela a sós -, o meu dinheiro não é muito e não pode durar muito tempo. Se eu o pudesse aumentar, diminuiria a preocupação do pai, pelo menos nesse ponto... Não sei desenhar como Mary, e por isso a melhor coisa que posso fazer é procurar outra situação. - Então queres tentar de novo, Agnes? - Estou decidida a isso. - É que, minha querida, pensei que não quisesses mais. - Tenho a certeza - continuei - de que nem todas as pessoas são como Mister e Mistress Bloomfield... - Algumas são piores - interrompeu minha mãe. [50) - Mas acho que não muitas - repliquei - e estou convencida de nem todas as crianças são como aquelas. Eu e a Mary não éramos assim; sempre fizemos o que a mãe nos mandava, não é verdade? - De um modo geral. Nesse tempo eu não as estragava com mimos, mas não eram nenhuns anjinhos. Mary tinha uma certa tendência para a teimosia e tu eras um pouco dada ao mau génio. Mas afinal, eram crianças boas. - Eu lembro-me que amuava de vez em quando, e bem gostava de ter visto aquelas crianças amuarem também, porque então tê-las-ia enttendido. Mas nunca o faziam, porque nunca se ofendiam, nem se envergonhavam; de qualquer modo, sentiam-se sempre satisfeitas, excepto quando se encolerizavam. - Bem, se não se sentiam, não era por culpa delas. Não se pode esperar que a pedra seja tão maleável como a argila. - Não, mas todavia é muito desagradável viver com criaturas tão incompreensíveis e com tão pouca sensibilidade. Não se pode amá-las; se se pudesse, o nosso amor seria totalmente desperdiçado, pois elas não o saberiam retribuir, nem dar-lhe valor, nem compreendê-lo. Mas, no entanto, se voltasse a encontrar uma família assim, o que é muitoimprovável, tinha toda esta experiência para poder recomeçar e proceder melhor desta vez. Bom, e para concluir, todo este preâmbulo é preciso que me deixem tentar novamente.- Bom, minha filha, vejo que não desanimas com facilidade e

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fico contente por isso. Mas deixa-me dizer-te que estás bastante mais pálida e magra do que quando saíste de casa, e nós não queremos que percas a tua saúde para juntar dinheiro, seja para ti seja para os outros. - Mary também me disse que mudei, e não me admiro nada, pois andava num estado de agitação e ansiedade constantes durante todo o tempo: Mas, para a próxima vez, estou determinada a levar as coisas com mais serenidade.Depois de mais uma troca de palavras, minha mãe prometeu apoiarme, desde o momento que esperasse um pouco e fosse paciente. Eu deixei-a tocar no assunto a meu pai, quando e como ela julgasse conveniente, nunca duvidando da sua habilidade para obter o seu consentimento. Entretanto, ia procurando, ansiosa, nas colunas dos anúncios dos jornais, e ia respondendo a todos os "Preceptora, precisa-se" que pareciam mais vantajosos. Mas todas as minhas cartas, tal como as respostas, quando recebia alguma, eram devidamente mostradas a [51] minha mãe, e ela, com grande desgosto meu, ia-me fazendo recusar umas atrás das outras: umas eram pessoas de baixa condição, outras exigentes demais e aqueloutras muito miseráveis na remuneração. - Os teus conhecimentos, Agnes, não são os de qualquer filha de um pobre pastor - dizia ela - e não os deves desperdiçar. Lembra-te de que prometeste ser paciente. Não há pressa. Tens muito tempo à tua frente e ainda muitas oportunidades. Por fim, aconselhou-me a pôr eu própria um anúncio no jornal, expondo as minhas qualificações, etc. - Música, canto, desenho, francês, latim, alemão - dizia ela -, não são, de maneira nenhuma, demais. Muita gente gostaria de os achar reunidos numa só pessoa. E desta vez irás tentar a tua sorte numa famlia de boa sociedade, pois é mais provável que esses te tratem com mais respeito e consideração do que aqueles comerciantes orgulhosos do seu dinheiro, uns novos-ricos presunçosos. Conheci muita gente da alta sociedade que tratava as preceptoras como pessoas de familia; embora admita que haja outras que sejam tão petulantes e exigentes como aqueles, porque há bom e mau em todas as classes. O anúncio depressa foi escrito e enviado. Dos dois interessados que responderam, só um concordava em dar-me cinquenta libras, a quantia que minha mãe me recomendou que pedisse como ordenado; mas eu hesitava em me comprometer, com medo de que as crianças fossem crescidas demais e os pais desejassem alguém com mais apresentação ou mais experiência, senão mais habilitações do que eu. Mas minha mãe dissuadiu-me de recusar por essa razão. Dizia que eu daria conta do recado se pusesse de parte a minha timidez e adquirisse um pouco mais de confiança em mim mesma. Só tinha de mandar uma relação verdadeira dos meus conhecimentos e habilitações, mencionar as con dições que desejava e esperar pelo resultado. A única

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exigência que eu ousava propor era ser-me permitido dois meses de férias no ano para visitar a minha família, no princípio do Verão e no Natal. A desconhecida que me respondeu não pôs objecções e declarou que, pelos meus conhecimentos, não tinha dúvidas de que eu satisfaria. Mas para uma preceptora considerava essas coisas de somenos importância, porque, vivendo nas proximidades de O... , podiam-se arranjar professores para suprir qualquer deficiência nesse ponto. Na sua opinião, depois de uma honestidade impecável, um temperamento alegre e boa edu cação eram os requisitos essenciais. Isto não agradou a minha mãe, que apresentou várias objecções em [52] aceitar tal situação, no que minha irmã a apoiou calorosamente. Mas, não querendo perder esta oportunidade, rejeitei-as todas. E tendo previamente o consentimento de meu pai (que fora, algum tempo antes, informado destas negociações), escrevi à minha correspondente desconhecida uma carta em termos muito corteses. E, por fim, chegámos a um acordo. Foi então decidido que, no último dia de Janeiro, eu iniciaria o meu novo cargo de preceptora em casa da família de Mr Murray, de Horton ge, nos arredores de O... a cerca de setenta milhas da nossa aldeia. Era uma distância enorme para mim, que nunca estivera a mais de vinte milhas de casa no decurso dos meus vinte anos de vida, além de que qualquer pessoa daquela família ou da vizinhança me eram totalmente desconhecidas e de todas as pessoas das minhas relações.Mas isto ainda tornava tudo mais atractivo. Animava-me, dizendo que ia ver mais qualquer coisa do mundo. A casa de Mr Murray ficava perto de uma grande cidade e não numa zona industrial, onde as pessoas não faziam mais do que ganhar dinheiro. A sua posição social, pelo que pudera concluir, parecia mais elevada do que a de Mr Bloomfield, e sem dúvida ele seria um daqueles genuínos senhores de boa sociedade de que minha mãe falara e que trataria uma preceptora com a consideração devida auma senhora digna de respeito e bem educada, a professora e mentora de seus filhos, e não como uma espécie de criada. E também, sendo os meus discípulos mais velhos, seriam mais razoáveis, mais fáceis de ensinar, não requerendo trabalho constante e incessante vigilância. E, por fim, de mistura com as minhas esperanças, havia outras fantasias com as quais os cuidados com as crianças e os simples deveres de uma preceptora tinham pouco ou nada a ver. Deste modo, o leitor pode entender que eu não pretendia ser olhada como uma mártir, pronta a sacrificar a paz e a liberdade com o único propósito de amealhar dinheiro para o conforto e sustento de meus parentes, embora decerto que o conforto de meu pai e o sustento futuro de minha mãe tivessem

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uma grande influência nos meus cálculos, e as cínquenta libras me parecessem uma quantia bastante apreciável. Precisava de vestuário decente adequado ao meu emprego; precisava, pensava eu, mandar lavar a minha roupa fora e também pagar as minhas [53] quatro viagens anuais entre Honon Lodge e a minha casa. Mas procurando poupar um pouco, de certeza que cerca de vinte libras seriam o suficiente para cobrir essas despesas, e então ficariam mais ou menos trinta para pôr no banco, o que era uma quantia apreciável para reforçar as nossas economias! Oh, eu tinha de me esforçar por conservar aquela situação, fosse ela qual fosse, tanto por uma questão de honra para com os meus como pela ajuda financeira que lhes poderia prestar permanecendo ali.[54) VII HORTON LODGE O dia 31 de Janeiro foi um dia agreste e tempestuoso. A nortada era muito forte e a neve, batida pelo vento, redemoinhava pelo ar. A minha mãe queria que eu adiasse a partida, mas, temendo predispor mal osmeus patrões contra mim por falta de pontualidade logo no primeiro dia, persisti em manter o meu compromisso. Não vou impor aos meus leitores uma descrição da minha partida naquela manhã sombria de Inverno: as despedidas afectuosas, a longa viagem até O... , as esperas solitárias nas estalagens pelas diligências ou pelos comboios - pois já havia caminho de ferro então- e finalmente o meu encontro em O... com o criado de Mr Murray, que fora encarregado de me levar no faetonte dali para Horton Lodge. Digo apenas que a tempestade de neve havia causado tanto estorvo aos cavalos como às máquinas a vapor, que anoitecera havia já muito quando quase atingi o termo da minha viagem, e que o temporal desfeitoque se abateu sobre nós tomou as poucas milhas que separavam O... de r Honon Lodge num caminho verdadeiramente intransitável. Enquanto por ali seguia, resignada, sentindo que a neve fina me atravessava o véu e se amontoava no colo e não vendo coisa alguma na minha frente, peruntava a mim mesma como o infeliz cavalo e o cocheiro conseguiam saber por onde iam passando. Para dizer a verdade, aquilo não era mais do que um arrastar lento e laborioso à procura de um rumo. Por fim; parámos; à voz do cocheiro, alguém levantou uma aldraba e abriu para trás, rangendo nos gonzos, aquilo que parecia ser um portão de um parque. Então prosseguimos ao longo de uma alameda mais macia, de onde por vezes se avistava uma enorme massa esbranquiçada, brilhando na escuridão, que eu tomava por arvoredo coberto de neve. Passado algum [55) tempo, parámos de novo ante um pórtico majestoso de uma enorme

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casa de grandes portas envidraçadas. Ergui-me com dificuldade por debaixo do monte de neve que me cobria e desci da carruagem, esperando que uma afectuosa e hospitaleira recepção me compensasse dos esforços e incómodos do dia. Um indivíduo cortês, vestido de preto, abriu a porta e mandou-me entrar para um espaçoso átrio, iluminado por um lustre cor de âmbar; levou-me depois por um corredor e, abrindo a porta de uma sala, disse-me que era a sala de estudo. Entrei e encontrei-me com duas meninas e dois rapazinhos: os meus futuros discípulos, segundo depreendi. Depois de uma saudação formal, a menina mais velha, que se entretinha com um pedaço de tela e um cesto de lãs, perguntou-me se eu Quereria subir ao meu quarto. Respondi afirmativamente, como era de calcular. - Matilda, leva uma vela e mostra- lhe o quarto - disse ela. Miss Matilda, uma rapariga de catorze anos, corpulenta e de modos arrapazados, com um vestido curto e calcinhas, encolheu os ombros e fez uma leve careta, mas pegou na vela e avançou à minha frente, pela escada acima (alta, íngreme e de dois lanços) e por um corredor estreito e comprido, até um quarto pequeno, mas razoavelmente confortável. Então perguntou-me se queria chá ou café. Ia responder que não, mas quando me lembrei de que não tomara nada desde as sete da manhã e sentindo- me por isso desfalecer, disse que aceitaria uma chávena de chá. Dizendo que ia mandar a Brown trazer-mo, a jovem saiu. E acabara eu de tirar o casaco, o xaile e o chapéu molhados quando uma rapariga de maneiras afectadas entrou para dizer que as meninas desejavam saber se eu tomava o chá ali ou na sala de estudo. Como estava morta de fadiga, escolhi tomá-lo ali. Ela retirou-se e passado pouco voltou com uma bandeja pequena, que colocou sobre a cómoda que servia também de toucador. Agradeci-lhe delicadamente e perguntei-lhe a que horas me devia levantar de manhã. - O almoço das meninas e dos meninos é às oito e meia, minha senhora - disse ela: - Eles levantam-se cedo, mas, como raras vezes dão alguma lição antes do almoço, penso que será suficiente levantar-se pouco depois das sete. Pedi-lhe se me faria o favor de me chamar às sete; prometendo fazê-lo, saiu. Então, tendo quebrado o longo jejum com uma chávena de chá e uma fatia de pão com manteiga, sentei-me junto a uma pequena lareira meio apagada e entreguei-me a um ataque de choro bem sentido, depois do qual disse as minhas orações, e então, consideravelmente aliviada, co mecei a preparar-me para me meter na cama. [56] Vendo que a minha bagagem ainda não tinha sido trazida para cima, iniciei a busca de uma campainha; como não conseguisse descobrir sinais de tal comodidade em canto algum do quarto, peguei na vela, meti-me pelo corredor e desci a escada, em viagem de descoberta. No caminho encontrei uma senhora bem vestida, disse-lhe o que queria, mas não sem hesitar, pois não

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estava muito certa se era uma das criadas ou a própria Mrs Murray, mas logo me apercebi de que se tratava apenas de uma criada de quartos. Com ar de quem concedia um favor pouco habitual, anuiu a encarregar-se de me mandar as minhas coisas; e depois de ter voltado ao meu quarto e esperado, surpreendida pela demora (temendo que ela se tivesse esquecido ou descuidado de cumprir o que prometera e hesitando se havia de continuar à espera, meter-me na cama ou voltar lá abaixo), as minhas esperanças, por fim, reviveram ao ouvir o som de vozes e risos, acompanhado de passos pelo corredor; e logo a bagagem me foi trazida por uma criada de ar rude e um homem, nenhum deles muito respeitoso no modo como me trataram. Tendo fechado a porta depois da sua retirada, tirei da mala algumas das minhas coisas e preparei-me para descansar, com grande satisfação, pois sentia- me fatigada de corpo e alma. Foi com uma estranha sensação de desconsolo, de mistura com um forte sentido da novidade da minha situação e uma curiosidade para com o ainda desconhecido, que acordei na manhã seguinte; com a sensação de uma pessoa que, depois de redemoinhar no espaço por magia, cai subitamente das nuvens em terra distante e desconhecida, longe e completamente isolada de tudo o que vira e conhecera antes; ou como uma semente de cardo levada pelo vento para o recanto de uma terra pouco propícia, onde deverá ficar, por muito tempo, até poder criar raízes e germinar, tendo de extrair o seu alimento em condições absolutamente alheias à sua natureza, e isso se na verdade alguma vez o puder fazer. Mas isto não dá nem de longe uma ideia dos meus sentimentos, e só alguém que tenha tido uma vida tão isolada e tão estável como a minha pode realmente imaginar o que eu sentia, mesmo que já tenha sabido o que é acordar uma manhã e encontrar-se em Port Nelson, na Nova Zelândia, com um mundo de água entre si e tudo o que conhecera. Não esquecerei tão cedo a sensação especial com que levantei o estore e olhei lá para fora, para um mundo desconhecido: um extenso deserto branco foi tudo o que o meu olhar encontrou; um imensoDeserto batido pela neve E bosques soterrados.[58] Desci para a sala de estudo sem interesse especial por encontrar osmeus alunos, embora não sem uma certa curiosidade respeitante ao que uma relação futura iria revelar. Uma coisa, decidi de imediato: começar por tratá- los por Misse Master. Parecia-me um tanto frio e excessivamente formalista entre crianças e a sua preceptora e companheira de todos os dias, principalmente quando eram tão pequenas como as de Wellwood House; masmesmo aí, o facto de eu os tratar simplesmente pelos nomes fora olhado como uma liberdade e uma ofensa, que os pais haviam tido o cuidado de apontar, designando-os intencionalmente por Master e Miss

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Bloomfield quando falavam comigo. Levara tempo a perceber o que eles insinuavam porque tudo aquilo me parecia extremamente absurdo, mas agora estava determinada a sermais prudente e começar desde já a tratá-los tão protocolarmente ecom tanta cerimónia como qualquer membro da família o teria exigido. E, na verdade, sendo estas crianças bastante mais velhas, seria menos difícil, embora umas palavras tão pequenas como Miss e Masterparecessem ter o surpreendente efeito de impedir toda e qualquer afabilidade sincera e familiar e extinguir qualquer vislumbre de afeiçãoque pudesse surgir entre nós.Como não quero enfadar o leitor, não o vou mais importunar comminuciosos pormenores sobre todas as descobertas que fiz e como procedi neste e nos dias seguintes. Não duvido é que ele irá ficar inteiramente satisfeito se eu fizer um leve esboço dos diferentes membros da família e se der uma panorâmica geral do primeiro ano ou dos dois daminha estada entre aqueles.Para começar, o chefe da família, Mr Murray, que era, segundo o que se dizia, um fidalgo de província, alegre e folgazão, devotadocaçador de raposas, destro cavaleiro e entendedor de cavalos, lavradordinâmico e perito e um jovial bon-vivant. Segundo o que se dizia, disse eu, porque, excepto, aos domingos, quando ia à igreja, só o via de mês a mês, a menos que, ao atravessar o átrio ou ao passear pelo campo, a figura de um homem alto e corpulento, de faces coradas e narizencamiçado se cruzasse comigo. Nessas ocasiões, se passava suficientemente perto, dignava-se fazer um aceno pouco cerimonioso com acabeça, acompanhado por um "bom dia, Miss Grey", ou qualquer saudação no género. E, com frequência, as suas gargalhadas chegavam delonge até mim, ou então ouvia-o praguejar e insultar algum criado, moço de estrebaria, cocheiro ou qualquer outro infeliz subordinado. [59] Mrs Murray era uma senhora de quarenta anos, interessante e cheia de vivacidade, que não precisava de modo algum de pinturas para fazer valer os seus encantos, e cujo principal entretenimento era ou parecia ser dar frequentes recepções e vestir-se à última moda. Não a vi antes das onze horas da manhã, no dia seguinte à minha chegada, quando me honrou com a sua visita, tal como minha mãe teria entrado na cozinha para ver uma nova criada; de resto, nem isso, porque minha mãe não

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esperaria pelo dia seguinte e tê-la-ia visto assim que chegasse, além de que lhe teria falado de um modo mais afectuoso e amável e dirigido algumas palavras de encorajamento, tal como de breve explicação sobre os seus deveres. Mas Mrs Murray não fez nem uma coisa nem outra. Apenas entrou na sala de estudo, depois de ter dado as ordens para o jantar à governanta, deu-me os bons-dias, ficou uns dois minutos junto à lareira, disse umas palavras acerca do tempo e da viagem "difícil" que eu devia ter tido na véspera, fez uma festa ao filho mais novo - um rapazito de dez anos - que tinha estado a esfregar a boca e as mãos na sua saia, depois de se ter deliciado com algum petisco na dispensa da governanta, disse que ele era um rapazinho bom e meigo, e a seguir saiu, majestosamente, com um sorriso complacente no rosto, pensando, naturalmente, que já fizera o suficiente e, ainda por cima, fora de uma encantadora condescendência. Era evidente que os filhos partilhavam da mesma opinião e só eu pensava de outra forma. Depois disto, fazia-me uma visitinha de vez em quando, durante a ausência dos meus discípulos, para me elucidar acerca dos deveres que tinha para com eles. Quanto às meninas, parecia desejosa de as tornar tão deliciosamente superficiais quanto aparentemente bem prendadas, sem grandes esforços ou incómodos para elas. E eu tinha de agir de acordo com isto, com a menor diligência da sua parte e sem o exercício de autoridade da minha, nos estudos e nas distracções, e ser agradável ao ensinar, corrigir e educar. Com respeito aos rapazes, era quase o mesmo, apenas, em lugar de os tornar bem prendados, tinha de lhes meter na cabeça a maior quantidade de gramática latina e do Delectus de Valpy, a fim de os preparar para a escola - pelo menos, o mais que pudesse sem os importunar muito, pois John era "pouco brioso e Charles "um tanto nervoso e lento. - Mas em todo o caso, Miss Grey - dizia ela -, espero que não se zangue e seja sempre indulgente e cheia de paciência, especialmente com o nosso querido Charles, porque ele é muito nervoso e susceptível [60] e muito habituado a ser tratado com extremo carinho. Desculpedizer-lhe estas coisas, mas o facto é que, até agora, achei todas as preceptoras, mesmo as melhores, falhas neste ponto. Faltava-lhes um espírito manso e humilde, que S. Mateus, ou um deles, diz que vale maisdo que qualquer adorno exterior. Conhece com certeza a passagem aque me refiro, pois é filha de um homem da Igreja. Mas não duvido deque irá satisfazer neste ponto, tal como no resto. E lembre-se em todasas ocasiões de que, quando alguma das crianças fizer qualquer coisainconveniente, se a persuasão ou uma leve reprimenda não der resultado, deixe que uma das outras mo venha contar, pois eu

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posso falar- lhe de um modo mais franco que não seria correcto a Miss Grey empregar.E proceda de modo a que se sintam felizes, Miss Grey. Eu acho que será muito capaz de o fazer. Notei que enquanto Mrs Murray se mostrava tão extremamente solícita com o bem-estar e a felicidade dos filhos, de que falava continuamente, nem uma só vez se preocupou com os meus, embora aqueles estivessem na sua própria casa, rodeados de gente amiga, e eu umaestranha entre gente desconhecida. Ainda não conhecia o mundo suficientemente para não ficar insensível a esta anomalia.Miss Murray, ou por outra, Rosalie, tinha cerca de dezasseis anos àdata da minha chegada e, na verdade, era uma rapariga muito bonita. Eno espaço de dois anos desenvolveu completamente as suas formas, melhorou a graciosidade das suas maneiras e do seu porte e tornou-sepositivamente uma beleza bastante fora do vulgar. Era alta e delgada, mas sem ser magra, as suas formas eram perfeitas, a pele branca, deuma frescura saudável, o cabelo profusamente anelado era de um castanho quase loiro, os olhos azul-claros, mas tão límpidos e brilhantes que eram mais belos do que se fossem mais escuros; as restantesfeições eram pequenas, não muito regulares e dignas de nota, mas no conjunto era extremamente formosa. Quem me dera poder dizer outrotanto da sua inteligência e do seu carácter.No entanto, não posso dizer muito mal dela: era cheia de vida, alegre e muito agradável com quem não a contrariasse. Comigo, quandocheguei, mostrou-se fria e altiva, a seguir passou a insolente e despótica, mas depois de um maior conhecimento foi pondo de lado, gradualmente, os seus ares, e com o tempo tornou-se profundamente dedicada, tanto quanto lhe era possível com uma pessoa do meu feitio e daminha posição, pois raramente esquecia, por mais de meia hora, que eu era uma assalariada e filha de um pobre vigário. E, no entanto, acho [61] que me respeitava mais do que ela própria se dava conta, porque, naquela casa, eu era a única pessoa que continuamente professava bons princípios, falava sempre verdade e me esforçava por cumprir o meu dever. E digo isto não para merecer elogios, mas para mostrar o infeliz ambiente daquela família à qual, na altura, consagrava os meus serviços. Não havia nenhum membro desta em quem eu lamentasse tantoa triste falta de princípios como na própria Miss Murray, não

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por ela sentir alguma afeição por mim, mas porque havia tanto de agradável e simpático nela que, apesar das suas imperfeições, eu realmente era sua amiga, quando não provocava a minha indignação ou quando não meirritava por fazer grande alarde dos seus defeitos. Contudo, estou persuadida de que estes eram mais devidos à sua educação do que ao seu carácter; nunca fora ensinada a distinguir claramente o que era bem e o que era mal. Tal como os irmãos, havia-se habituado desde a infância a tiranizar amas, preceptoras e criadas; não fora ensinada a moderar os seus desejos, a controlar o seu génio, a refrear a sua vontade ou a sacrificar o seu próprio prazer pelo bem dos outros. De boa índole natural, nunca era violenta ou áspera, mas, devido a uma indulgência constante e por desprezar habitualmente a razão, era muitas vezes impertinente e caprichosa. O seu espírito nunca tinha sido cultivado; ainteligência era pouco profunda; possuía muita vivacidade, alguma rapidez de percepção e algum talento para a música e aprendizagem delínguas, mas até aos quinze anos não se dera ao trabalho de aprender fosse o que fosse; então, o amor pela ostentação despertara-lhe as faculdades e levara-a a aplicar-se, mas só nas coisas que mais vista faziam. E quando eu cheguei, foi o mesmo: tudo ficava para trás exceptoo francês, o alemão, a música, o canto, a dança, os lavores e uma certa espécie de desenho - o desenho que pudesse fazer mais vista com o menor trabalho, sendo a parte principal destes geralmente feita por mim. Para a música e para o canto, além de ocasionais ensinamentos meus, tinha a assistência do melhor mestre daquela região. E nestas prendas, tal como na dança, atingiu grande perfeição. Na verdade, dedicava tempo demais à música, pensava eu, como sua preceptora, e lha dizia isso com frequência, mas a mãe achava que se ela gostava não seria demasiado o tempo gasto na aprendizagem de uma arte tão atractiva;De lavores, eu nada sabia senão o que me ensinava a minha discípula e a minha própria observação; mas assim que aprendi, ela utilizava-mE das mais diversas maneiras: todas as partes mais maçadoras do trabalho eram atiradas para cima de mim, tais como o esticar o bastidor, coser a tela, harmonizar as lãs e as sedas, encher

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os fundos, contar ospontos, emendar enganos e acabar os trabalhos de que ela se fartava. Aos dezasseis anos, Miss Murray era bastante brincalhona, no entanto não mais do que é natural e admissível numa rapariga daquela idade; mas aos dezassete, essa tendência, tal como outras coisas, deulugar a uma ambição de atrair e encantar o sexo oposto. Mas já basta de falar dela. Viremo-nos agora para a irmã. Miss Matilda Murray era uma verdadeira maria-rapaz, de quempouco há a dizer. Era cerca de dois anos e meio mais nova do que a irmã; o seu rosto era largo e a pele mais escura. Poderia vir a ser uma mulher interessante, mas era bastante ossuda e desastrada para se poder classificar de bonita, e nessa época ela dava pouca importância a essas coisas. Rosalie conhecia todos os seus encantos, imaginava-osmaiores do que eram realmente e atribuía-lhes um valor mais alto doque devia. Matilda sentia-se bem como era, mas sem ligar muito, e ainda menos se importtava em cultivar o espírito e em se tornar uma menina prendada. O modo como aprendia as lições e estudava músicalvava qualquer preceptora ao desespero. Curtas e fáceis, as suas tarefas eram feitas a correr, em qualquer altura e de qualquer maneira, masgeralmente nas ocasiões menos convenientes e da maneira menos benéfica para si própria e ainda menos satisfatória para mim. Na curtameia-hora em que estudava, fazia-o depressa e mal; e, entretanto, nãome poupava às suas críticas, ou porque a interrompia para a corrigir, ou porque não emendava os seus erros antes de ela os cometer, ou porqualquer coisa igualmente pouco razoável. Uma ou duas vezes, aventurei-me a admoestá-la seriamente por tão absurdo comportamento, mas em qualquer dessas ocasiões fui repreendida pela mãe, o que mefez chegar à conclusão de que, se desejava conservar o lugar, devia deixar Miss Matilda proceder como queria.Porém, quando as lições acabavam, o seu mau-humor chegava, deun modo geral, também ao Fim. E quando cavalgava o seu fogoso pónei ou brincava com os cães ou com os irmãos e a irmã, mas especialmente com o seu querido irmão John, era feliz como um passarinho.Como animal, Matilda era um ser perfeito, cheio de vida, energia e actividade; como ser inteligente, era barbaramente ignorante, indócil, descuidada e irracional. Por conseguinte, era muito penoso, para quemestava encarregado de cultivar a sua inteligência, modificar

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as suas maneiras e ajudá-la a adquirir aquelas prendas vistosas que, ao contrário da irmã, ela desprezava tanto como as outras coisas. A mãe, em [63) parte, conhecia as suas deficiências, e fazia-me prelecções como eu devia tentar formar os seus gostos e me esforçar por despertar a sua vaidade adormecida e, por meio de lisonjas habilmente insinuadas, chamar a sua atenção para os objectivos desejados - o que eu não queria fazer - e como eu devia preparar e aplainar o caminho dos estudos para que ela conseguisse deslizar por ele sem a menor diligência da sua parte - o que eu não podia fazer, porque nada pode ser ensinado, seja com que fim, sem algum pequeno esforço da parte de quem aprende. Quanto a qualidades morais, Matilda era estouvada, obstinada, violenta e difícil de chamar à razão. Uma prova da sua maneira deplorável de pensar era que; seguindo o exemplo do pai, aprendera a praguejar como um soldado. A mãe ficava muito chocada com "este mau hábito tão pouco próprio de uma menina" e admirava-se "como é que ela o apanhara". "Mas a Miss Grey há-de conseguir tirar-lho em pouco tempo", dizia ela. " É apenas um hábito, e se lhe fizer um reparo com brandura sempre que ela merecer, tenho a certeza de que depressa o deixará. " Eu não só lhe fazia "um reparo com brandura", como tentava convencê-la de que era incorrecto e feria o ouvido de gente educada. Mas era tudo em vão; a sua resposta era uma gargalhada e "Oh, a Miss Grey ficou chocada! Ainda bem!" ou "Ora! Não o posso evitar. O papá não mo devia ter ensinado. Aprendi tudo com ele, e talvez um bocadinho com o cocheiro. " O irmão John, aliás Master Murray, tinha cerca de onze anos quando cheguei. Era um belo rapazinho, forte e saudável, franco e de boa índole, de um modo geral, e que poderia vir a ser um rapaz aceitável se tivesse sido educado como deve ser; mas naquela altura era selvagem como um jovem urso, turbulento, indisciplinado, sem princípios, ignorante, incapaz de aprender e incapaz de ser ensinado - pelo menos por uma preceptora vigiada pela mãe. Numa escola, os professores poderiam obter melhor êxito. Foi, pois, com grande alívio meu que, passado um ano, o mandaram para um colégio, num estado, para falar verdade, de escandalosa ignorância de latim, tal como de outras coisas mais úteis, embora mais desprezadas. E isso, sem dúvida, seria atribuído ao facto de a sua educação ter sido confiada a uma professora ignorante, que pretendera encarregar-se de uma coisa para que era perfeitamente incompetente. Do irmão não me vi livre senão uns bons doze meses depois, quando ele foi também expedido, no mesmo estado de desgraçada ignorância do outro. [64] Master Charles era o preferido da mãe. Era mais novo do que John cerca de um ano, mais baixo, mais pálido e menos activo e robusto; uma criaturinha amimada, cobarde, caprichosa e

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egoísta, com actividade só para o mal, e esperta para inventar mentiras, não apenas para esconder as suas faltas, mas, por mera brincadeira, para fazer recair o ódio sobre os outros. De facto, Master Charles era para mim um flagelo. Era precisa muita paciência para se viver com ele pacificamente, Pior ainda vigiá-lo e inconcebível ensiná-lo ou fingir que o ensinava. Aos dez anos não era capaz de ler correctamente uma linha do mais simples dos livros; e de acordo com os princípios da mãe, tinha de se lhe ensinar cada palavra antes de ele ter tempo de hesitar ou ver como se escrevia, e nunca se lhe dizer, como estímulo para que se esforçasse, que os outros rapazes estavam mais adiantados do que ele. Por isso não é de admirar que fizesse poucos progressos durante os dois anos em que fui encarregada da sua educação. As suas poucas lições de gramática latina e de outras coisas deviam ser-lhe repetidas vezes sem conta até ele dizer que já as sabia, e depois tinha de ser ajudado a dizê-las. Se cometesse algum erro nas contas de somar, devia logo apontar-lho e fazer-lhe a operação, em vez de o deixar exercitar as suas faculdades para que o encontrasse por si próprio. Assim, é claro que não procurava evitar os erros e punha com frequência os algarismos à-toa, sem se dar ao trabalho de fazer cálculo algum. Eu nem sempre me restringia a estas regras. Era contra a minha consciência fazê-lo. Mas raramente ousava desviar-me delas sem incorrer na ira do meu discípulo e, subsequentemente, na de sua mãe, a quem ele contava as minhas transgressões, exagerando-as maldosamente ou compondo- as a seu belo-prazer. E, em consequência disto, estive a ponto de perder o meu lugar. Mas, por amor à minha família, abafei o meu orgulho, contive a minha indignação e procurei aguentar até que o meu pequeno algoz fosse mandado para a escola. Segundo o pai, "era manifesto que a educação em casa não era conveniente para ele, pois a mãe amimava-o escandalosamente e a preceptora não lhe ia à mão". Mais algumas considerações sobre Horton Lodge e acabo por agora com as descrições desinteressantes. A casa era consideravelmente superior à de Mr Bloomfield, tanto em idade como em tamanho e sumptuosidade. O jardim não estava arranjado com tão bom gosto, mas em vez do relvado aparado, das árvores novas apoiadas em estacas, do bosque de choupos e da plantação de abetos, havia um extenso parque, povoado de veados e embelezado por árvores velhas de muitos anos.Os terrenos que o circundavam eram agradáveis: até perder de vista, campos férteis, árvores em flor, veredas sossegadas e alegres sebes salpicadas de flores silvestres. Mas para quem nascera e se criara entre as colinas escarpadas de... era monotonamente depressivo. Estávamos a cerca de duas milhas da igreja da aldeia e, por conse guinte, a carruagem era mandada atrelar todos os domingos de manhã e, de quando em quando, mais do que uma vez. Mr e Mrs Murray achavam que era suficiente deslocarem-se lá

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só de manhã; mas as crianças preferiam ir de novo à tarde, em vez de andarem a passear de um lado para o outro sem fazerem mais nada. Se algum dos meus discípulos queria ir a pé e levar-me com ele, era melhor para mim, porque, de outro modo, ia quase esmagada, no canto da carruagem mais afastado da janela aberta e de costas para os cavalos, uma posição que, invariavelmente, me fazia sentir enjoada. E se não me via obrigada a sair da igreja a meio do serviço, as minhas devoções eram perturbadas por uma sensação de fraqueza e de mal-estar, de medo e de angústia de me sentir pior; e geralmente uma dor de cabeça acompanhava- me durante o resto do dia, que, caso contrário, poderia ser um dia de repouso agradável, gozado com prazer e calma. - É muito estranho, Miss Grey, que a carruagem a faça sentir-se enjoada. A mim, não me acontece isso - observava Miss Matilda. - Nem a mim - dizia a irmã -, mas provavelmente enjoaria se fosse sentada onde ela se senta... É um lugar horrível, Miss Grey, e admiro-me como o suporta!"Sou obrigada a suportá-lo, desde que não posso escolher", devia i eu ter respondido; mas, por delicadeza para com os seus sentimentos, apenas retorqui: - Oh! O caminho é curto e se não me sentir enjoada na igreja não me importo. Se me pedissem para descrever a distribuição habitual do tempo em cada dia, acharia difícil fazê-lo. Tomava todas as minhas refeições na sala de estudo com os meus discípulos, às horas que mais lhes apetecesse. Às vezes tocavam para pedir o jantar antes de ele estar pronto; outras, deixavam-no esperar na mesa mais de uma hora, e então zangavam-se porque as batatas estavam frias e o molho da carne coberto por uma camada de gordura solidificada; ainda outras, queriam o chá às quatro ou barafustavam com as criadas porque o não serviam pontualmente às cinco; e se as ordens eram obedecidas, como encorajamento à pontualidade, deixavam- no na mesa até às sete ou às oito. [66] As horas de estudo decorriam quase na mesma. A minha opinião nunca era pedida e as minhas conveniências não eram levadas em conta. Por vezes, Matilda e John determinavam acabar toda aquela maçada antes do almoço e mandavam a criada chamar-me às cinco e meia, sem o mais pequeno escrúpulo ou pedido de desculpa, ou avisavam-me de que estivesse pronta às seis em ponto. Se me vestia a correr, encontrava cá em baixo a sala vazia e, depois de esperar muito tempo, descobria que eles haviam mudado de ideia e ainda estavam na cama. Ou ainda, se era uma manhã agradável de Verão, Brown vinha dizer-me que as meninas e os meninos tinham decidido fazer feriado e ido passear. Então, eu ficava à espera do almoço até me sentir quase a desmaiar, pois eles tinham tomado qualquer coisa antes de sair.

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Muitas vezes davam as lições ao ar livre, ao que eu nada tinha a opor, salvo que acabava por me constipar, por estar sentada na relva húmida ou exposta à frescura da tarde ou a uma corrente de ar traiçoeira que parecia não afectar nenhum deles. Eram decerto muito saudáveis, mas deveriam ter sido ensinados a ter consideração pelos outros que o eram menos. Mas, na verdade, não os devo censurar por aquilo de que talvez eu fosse a única culpada, pois nunca fiz objecção especial a sentar-me onde eles queriam, preferindo aguentar as consequências para os não importunar com as minhas conveniências. A maneira pouco conveniente como davam as lições era igualmente singular, talcomo a sua caprichosa escolha do tempo e do lugar. Enquanto ouviam o que eu explicava ou recitavam o que tinham aprendido, recostavam -se no sofá, estiraçavam-se no tapete, espreguiçavam-se, bocejavam, falavam uns com os outros ou olhavam pela janela, ao passo que eu nem sequer podia avivar o lume ou apanhar um lenço que deixara cairsem ser censurada por um dos meus discípulos por não estar a dar a devida atenção, ou ouvi-los dizer que "a mamã não havia de gostar de saber que se importa tão pouco connosco". As criadas, vendo a pouca estima em que a preceptora era tida tanto pelos pais como pelos filhos, acertavam o seu procedimento pela mesma bitola. Frequentemente as defendi - com risco de acarretar algum prejuízo para mim própria - da tirania e injustiça dos meninos e das meninas, e sempre procurei dar-lhes o menos trabalho possível. Mas elas descuidavam inteiramente o meu conforto, não faziam caso dos meus pedidos e ignoravam as minhas ordens. Estou convencida de que nem todas as criadas procederiam assim, mas, de um modo geral, como são ignorantes e pouco habituadas a raciocinar e a reflectir, mais[67) facilmente se corrompem devido à indiferença e ao mau exemplo dos superiores; e estes, penso eu, não eram de molde a estimulá-los. Por vezes sentia-me rebaixada pela vida que levava, envergonhada por me submeter a tantas indignidades, e achava-me louca por lhes dar tanta importância. Temia com tristeza ser falha de humildade cristã, ou daquela caridade que possui quem "sofre muito e é generoso, renuncia a si próprio, não se exaspera e suporta tudo com resignação". Mas, com tempo e paciência, as coisas começaram a melhorar ligeiramente; devagar, é verdade, quase imperceptivelmente; vi-me livre dos rapazes (o que não foi uma vantagem insignificante). As meninas, conforme já referi antes, tornaram-se um bocadinho menos insolentes e começaram a demonstrar alguma estima por mim. "Miss Grey era uma estranha criatura que nunca as lisonjeava nem as elogiava, mas quando dizia qualquer coisa favorável sobre elas po dia-se ter a certeza de que a sua

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aprovação era sincera. Muito afável, sossegada e pacífica de um modo geral, mas havia algumas coisas que a faziam zangar. Elas não se importavam muito com isso, mas era melhor não a irritar. E quando estava de bom- humor, era conversadora, muito agradável e divertida, por vezes, à sua maneira, que era completamente diferente da da mamã, mas muito bom para variar. Tinha as suas próprias opiniões sobre todos os assuntos e mantinha-se firme nelas - muitas vezes, umas opiniões muito maçadoras, porque estava sempre a pensar no que era bom ou mau e tinha um respeito invulgar por todos os assuntos relacionados com a religião e uma inexplicável inclinação pelas boas pessoas. " [68) VIII A APRESENTAÇÃO NA SOCIEDADE Aos dezoito anos, Miss Murray devia emergir da obscuridade tranquila da sala de estudo para a luz esplendorosa do mundo elegantepelo menos, tanto quanto era possível fora de Londres -, visto que o pai não se persuadira a trocar os prazeres do campo e das caçadas por uma residência na cidade, mesmo por poucas semanas. A sua apresentação seria no dia 3 de Janeiro, num grandioso baile que a mãe se propunha oferecer a toda a nobreza e pessoas da alta sociedade de Q... e da vizinhança num raio de vinte milhas em redor. Como se pode calcular, essa ocasião era esperada com a mais ardente impaciência e a mais extravagante expectativa. - Miss Grey - disse-me ela, uma noite, um mês antes de tão sig nificativa data, quando eu me encontrava a ler com atenção uma carta longa e extremamente interessante de minha irmã, para a qual, por falta de tempo, mal olhava de manhã só para ver se não continha notícias más. - Miss Grey, ponha de lado essa carta estúpida e maçadora e ouça-me! Tenho a certeza de que a minha conversa vai ser bem mais divertida.Sentara-se a meus pés num banquinho pequeno, e eu, reprimindo um suspiro de aborrecimento, comecei a dobrar a carta. - Devia dizer a essas boas pessoas lá da sua casa para a não maçarem com cartas tão grandes - disse ela. - E, acima de tudo, pedir-lhes que escrevam num papel de carta normal e não nessas enormes folhas de papel tão ordinário. Havia de ver o papel de carta tão elegante em que a mamã escreve às amigas.- As boas pessoas lá de casa - repliquei - sabem muito bem que quanto maiores forem as cartas, mais eu gosto delas. Ficaria muito [69) triste se me escrevessem uma carta pequena em papel elegante. E penso que Miss Murray seria mais senhora se não dissesse que era "ordi nário" escrever numa grande folha de papel. - Bom, eu disse isso apenas para a arreliar. Mas agora só quero falar do baile e dizer-lhe categoricamente que tem de adiar as suas férias para depois.

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- Porquê? Eu não vou estar presente no baile. - Não, mas antes vê as salas todas enfeitadas, ouve a música e, acima de tudo, vê-me com o meu vestido novo, que é magnífico. Vai ser um tal assombro que até a Miss Grey ficará de boca aberta... Na verdade, tem mesmo de ficar. - Gostaria muito, mas não faltarão oportunidades de a ver, igualmente assombrosa, por ocasião dos inúmeros bailes e festas a que irá depois, e eu não posso desapontar a minha família adiando a minha ida por tantos dias. - Oh, deixe lá a familia! Diga- lhes que nós não a deixamos ir. - Mas, para falar a verdade, para mim também seria um desapon tamento. Eu anseio tanto por os ver quanto eles a mim... talvez mais. - Bom, mas é tão pouco tempo. - Quase quinze dias pelas minhas contas. E, além disso, não posso conceber a ideia de um Natal fora de casa, ainda para mais que a minha irmã se vai casar. - Vai? Quando? - Não antes do mês que vem, mas eu quero estar lá para a ajudar nos preparativos e para gozar a sua companhia enquanto estiver em casa. - Porque não me disse isso antes? - Eu só soube as novidades por esta carta, que a menina alcunha de estúpida e de maçadora e não me deixa ler. - Com quem vai ela casar? - Com Mister Richardson, vigário de uma paróquia vizinha dali. - Ele é rico? - Não, só remediado. - É bonito? - Não, só apresentável. - Novo? - Nem novo nem velho. - Santo Deus! Que desgraça! E como é a casa? - É um pequeno presbitério, sossegado, com um alpendre revestido de hera, um jardim à moda antiga e... [70) - Oh, cale-se! Até me sinto enjoada. Como é que ela pode suportar tudo isso?- Espero não só que suporte tudo isso, como venha a ser muito feliz. Miss Murray não me perguntou se Mister Richardson era um homem bom, sério e afectuoso, e eu podia responder "sim" a todas estas perguntas. Pelo menos, é o que Mary acha e espero que ela não esteja enganada.- Mas... que desditosa criatura! Como pode ela imaginar uma vida inteira presa ali, com esse homem horrível e velho, e sem esperança de vir a mudar?- Ele não é velho: tem só trinta e seis ou trinta e sete anos. E ela tem vinte e oito, e é tão sensata como se tivesse cinquenta.

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- Ah! Assim está melhor... Combinam bem. Mas a ele tratam-no por "reverendo"? - Não sei; mas se o fazem, acredito que mereça esse epíteto.- Santo Deus! Que coisa horrível! E ela vai usar um avental branco e fazer empadas e pudins? - Quanto ao avental branco, não sei, mas que vá fazer empadas e pudins acredito, e também que isso não lhe será muito penoso porque já está habituada a fazê- los.- E sairá à rua com um xaile grosso e um grande chapéu de palha, levando palavras de consolo e caldo de ossos aos paroquianos pobres do marido?- Isso não sei. Acredito apenas que fará o mais que estiver ao seu alcance para lhes consolar o corpo e a alma, seguindo o exemplo da mãe.[71] IX O BAILE - Agora, Miss Grey - exclamou Miss Murray, assim que eu entrei na sala de estudo, depois de ter tirado o casaco, quando regressei das minhas férias de quatro semanas -, agora feche a porta e sente-se, que eu vou contar-lhe como foi o baile. - Não, co's diabos! - gritou Miss Matilda. - Cala- te! E deixa-me contar da minha nova égua... É uma estampa, Miss Grey! Uma égua puro-sangue... - Está calada, Matilda, e deixa- me contar as minhas novidades pri meiro. - Não, não, Rosalie. Tu levavas um tempo infinito a falar disso... Ela tem de me ouvir a mim primeiro... Macacos me mordam se o não conseguir! - Oh, Miss Matilda, que pena não ter perdido ainda esse horrível hábito! - Foi sem querer. Mas nunca mais volto a dizer uma palavra feia se me ouvir e disser à Rosalie para se calar. Rosalie protestou e eu pensei que iria ser feita em pedaços pelas duas; mas Miss Matilda falava mais alto e a irmã acabou por ceder e permitir que ela contasse primeiro a sua história. Assim, vi-me condenada a ouvir uma enorme exposição sobre a sua esplêndida égua, o seu ensino e a sua genealogia, o modo como andava, o seu porte, a sua inteligência, etc. , e a espantosa perícia e coragem com que a montava, declarando, por fim, que era capaz de saltar um obstáculo com cinco varas, num abrir e fechar de olhos, que o pai dizia que já podia participar da próxima vez que houvesse uma caçada a cavalo e que a mãe lhe tinha mandado fazer uma casaca vermelha. [72] - Oh, Matilda! Mas que histórias estás tu para aí a inventar! - exclamou a irmã. - Bom - respondeu ela, sem se atrapalhar -, eu sei que seria capaz de saltar um obstáculo com cinco varas se experimentasse,

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e que o papá vai dizer que eu posso participar na caçada, e que a mamã mandará fazer uma casaca vermelha se eu lho pedir. - Pois, agora vai-te embora - replicou Miss Murray - e trata, minha querida Matilda, de te portares como uma senhora. Miss Grey, gostava que lhe dissesse para não usar palavras tão inconvenientes. Chama égua ao cavalo e usa tais expressões para o descrever... Com certeza que as aprendeu com os moços da estrebaria. Fico horrorizada só de ouvi-la. - Aprendi com o papá, sua burra! E com os seus amigos, que são uns grandes pândegos! - disse a jovem, fazendo estalar vigorosamente o chicote de caça com que habitualmente andava. - Sou tão boa conhecedora de cavalos como os melhores de entre eles. - Bem, então vai-te embora, malcriada! Se não, ainda me dá uma coisa! Agora, Miss Grey, dê-me atenção porque vou contar-lhe como foi o baile. Eu sei que está desejosa por ouvir tudo. Oh! Foi um baile!... Como nunca viu ou ouviu ou leu ou sonhou em toda a sua vida! A decoração, a recepção, a ceia, a música, foram indescritíveis! E então os convidados! Havia dois nobres, três baronetes e cinco senhoras titulares e um sem- número de outras senhoras e outros senhores importantes. É claro que as senhoras só me interessavam na medida em que me faziam sentir satisfeita comigo mesma e me provaram que a maior parte delas era feia e desengraçada. E disse-me a mamã que mesmo as mais bonitas, as belezas mais transcendentes, nada eram ao pé de mim. Tenho imensa pena de que não me tenha visto, Miss Grey! Estava um verdadeiro encanto... não estava, Matilda? - Não estavas mal. - Mas a verdade é que estava... pelo menos foi o que a mamã disse... E Brown e Williamson... Brown disse que tinha a certeza de que nenhum homem me podia olhar sem se apaixonar imediatamente. E por isso, é justo que esteja um bocadinho vaidosa. Eu sei que a Miss Grey se escandaliza e me acha presunçosa e frívola. Mas sabe, não atribuo tudo isso aos meus atractivos pessoais, também o devo ao cabeleireiro e ao meu primoroso vestido... Tem de vê-lo amanhã... Gaze branca sobre cetim cor-de- rosa... e extraordinariamente bem feito! E levava um colar e uma pulseira de belas e enormes pérolas! [73] - Não tenho a mais pequena dúvida de que devia estar encantadora. Mas isso deu-lhe assim tanto prazer? - Oh, não! Não foi só isso! Mas é que eu fui tão admirada! E fiz tantas conquistas nessa noite... Vai ficar espantada quando ouvir... - Mas qual o proveito que isso lhe trouxe? - Que proveito! Uma mulher a fazer uma pergunta dessas! - Bom, eu achava que uma conquista já chegava e fosse suficiente, desde que a atracção fosse mútua.

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- Oh, mas a Miss Grey sabe muito bem que eu nunca estou de acordo consigo nesse ponto. Agora, espere um pouco que eu vou falar-lhe dos meus principais admiradores... daqueles que mais se distinguiram nessa noite e talvez depois. Porque eu já fui a duas festas depois disso. Infelizmente, os dois nobres, Lord G... e Lord F... , eram casados, senão eu tinha condescendido em ser mais agradável para com eles. Assim, não fui, embora Lord F... , que detesta a mulher, estivesse muito impressionado comigo. Pediu-me para dançar com ele duas vezes... A propósito, ele é um óptimo dançarino e eu também... Nem pode calcular como eu dancei. Até estava admirada comigo mesma. Lord F... estava atenciosíssimo... de facto, um pouco demais até... e eu pensei que era mais honesto mostrar-me um tanto desdenhosa e pouco amável. Mas tive o prazer de ver a sua horrível mulhertoda zangada, quase a morrer de despeito e de irritação. - Oh, Miss Murray, com certeza que não é verdade que isso lhe deu realmente prazer! Embora zangada ou... - Bom, eu sei que é feio, mas não me importa! Pretendo ser boa às vezes. Agora faça-me um favor: não me faça nenhuma pregação e seja boa para mim.Ainda não lhe contei nem metade. Deixe-me ver. Ah! Ia falar- lhe de quantos admiradores incondicionais eu tive: Sir Thomas Ashby foium... Sir Hugh Meltham e Sir Broadley Wilson são velhos excêntricos, só bons companheiros para o papá e para a mamã. Sir Thomas é novo, rico e alegre; mas é um animal. Mas a mamã diz que ao fim de uns meses de conhecimento já não me importava. Outro foi HaMeltham, o filho mais novo de Sir Hugh; é bastante interessante e um rapaz agradável para namoriscar, mas por ser um filho mais novo não serve para mais nada. Depois, foi o jovem Mister Green, bastante rico, mas não é de boas familias e é muito estúpido, não passa de um campónio tolo. E, por fim, o nosso bom reitor, Mister Hatfield: um humilde admirador é o que ele se devia considerar; mas temo que se tenhaesquecido de incluir a humildade na lista das suas virtudes cristãs. [74] - Mister Hatfield estava no baile? - Pois com certeza. Acha-o bom demais para lá estar?

- Achei que ele podia pensar que era pouco próprio de um clérigo. - De modo algum. Não profanou as suas vestes sacerdotais dançando! Mas foi com dificuldade que se absteve, parecia morto por pedir a minha mão só por uma dança! E... Oh! A propósito... ele tem um novo coadjutor. Aquele velho surrado do Mister Bligh conseguiu o que

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mais desejava e foi-se embora. - E como é o novo? - Oh, é um bruto. Chama-se Weston. Posso descrever-lho em três palavras: insensível, feio, insípido e estúpido. São quatro, mas não faz mal. E agora já chega de falar nele. E voltou ao baile, relatando-me ainda mais coisas sobre o seu procedimento lá e nas várias festas a que fora desde então, e ainda vários pormenores respeitantes a Sir Thomas Ashby, a Sir Meltham, a Mr Green e a Mr Hatfield, e a impressão inesquecível que causara em cada um deles. - E então, de qual dos quatro gosta mais? - perguntei, disfarçando o meu terceiro ou quarto bocejo. - Detesto-os a todos! - replicou ela, sacudindo os seus caracóis com vivo desprezo. calculo que isso queira dizer que gosta de todos... Mas qual é o que prefere? - Não, na verdade, detesto-os a todos. Mas Hany Meltham é o mais interessante e o mais divertido e Mister AtHtfield o mais inteligente, Sir Thomas o mais depravado e Mister Green o mais estúpido. Mas parece-me que o único que posso ter, se for condenada a ter algum deles, é Sir Thomas Ashby. - Mas com certeza que não! Se ele é tão depravado... E se não gosta dele... - Oh, não me importo que seja depravado: é ainda melhor por isso. E quanto a não gostar dele... Eu não poria grandes obstáculos a ser Lady Ashby de Ashby Park, se tiver de casar. Mas se pudesse ser sempre nova, ficaria solteira. Gostaria de me divertir durante todo o tempo e de namorar toda a gente, até estar quase a chamarem-me solteirona. E então, para escapar a essa infâmia, depois de ter feito dez mil conquistas e ter destroçado todos os corações excepto um, casar-me-ia [75) com um marido de ascendência nobre, rico e indulgente e a quem talvez cinquenta senhoras morressem por apanhar. - Bom, enquanto for esse o seu modo de ver as coisas, vá-se mantendo solteira, e não se case nem mesmo para escapar à infâmia de ser uma velha solteirona. [76) A IGREJA - Então, Miss Grey, o que pensa do novo coadjutor? - perguntou Miss Murray, quando voltávamos da igreja, no domingo seguinte ao recomeço das nossas obrigações. - Quase não posso dizer nada - foi a minha resposta. - Ainda nem o ouvi pregar. - Bom, mas viu-o, não viu? - Vi, mas não me atrevo a julgar o carácter de um homem só por lhe ter lançado um olhar apressado. - Mas não o acha muito feio? - Não me deu na vista por isso em especial, não desgosto

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da expressão do seu rosto. Mas a principal coisa que notei foi a sua maneira de ler, que me pareceu boa, infinitamente melhor do que a de Mister Hatfeld. Leu como se procurasse tirar o maior efeito de cada passagem. Tive a impressão de que nem o mais indiferente pôde deixar de lhe prestar atenção, nem o mais ignorante ficou sem perceber. E as orações que leu foi como se não as estivesse a ler, orando fervorosa e sinceramente, de todo o seu coração. - Oh, sim, é tudo para que ele é bom, para desempenhar bem o serviço religioso; mas fora dele, já não tem mais ideias nenhumas. - Como é que sabe? - Oh! Sei muito bem, sou um excelente juiz nessa matéria. Reparou como ele saiu da igreja? Direito como um pau, como se não houvesse ali mais ninguém além dele, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, e não pensando, como é evidente, em mais nada senão em sair da igreja e talvez em ir para casa jantar. A sua cabeça, muito estúpida, não pode ter lá dentro outras ideias.[77)- Suponho que teria gostado que ele tivesse olhado de soslaio para o banco de seu pai - disse eu, rindo de tão veemente hostilidade. - Pois com certeza que não! Ficaria até extremamente indignada se ele ousasse fazer tal coisa - replicou, sacudindo altivamente a cabeça; e, depois de reflectir um momento, acrescentou: - Bem, bem! Acho que ele é suficientemente bom para o seu lugar. Mas estou satis feita por não precisar dele para me divertir... e é tudo. Viu como Mister Hatfield parecia desejoso que eu o cumprimentasse e como veio a correr a tempo de nos acompanhar à carruagem? - Vi - respondi, e interiormente acrescentei: "E pensei que era desprimoroso para a sua dignidade de clérigo vir a correr do púlpito, com tal ansiedade, só para apertar a mão ao fidalgo e ajudar a mulher e as filhas a entrarem na carruagem. E, além disso, era notória a sua má- vontade contra mim, pois quase me impedia a entrada nela. " O facto é que, embora eu estivesse em frente do seu nariz, mesmo ao lado do es tribo da carruagem, esperando a minha vez, ele persistia em o levantar e fechar a porta, até que um dos membros da famlia lhe gritou que a preceptora ainda não entrara. Então, sem uma palavra de desculpa, desviou-se, desejando- lhes um bom-dia, e deixou que o criado acabasse o trabalho.Nota: bene - Mr Hatfield nunca me dirigiu a palavra, tal como Sir Hugh, Lady Meltham, Mr Harry ou Miss Meltham, Mr Green ou as irmãs, ou quaisquer outros senhores que frequentavam aquela igreja. Í Nem tão-pouco quem quer que fosse que visitasse Horton Lodge. À tarde, Miss Murray deu ordem para que atrelassem a carruagem, para ela e para a irmã. Alegou que estava muito frio para andarem a passear no jardim; e, além disso, julgava que encontraria Harry Meltham na igreja.

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- É que - dizia ela, sorrindo dissimuladamente para a sua imagem no espelho - ele tem sido um frequentador assíduo nestes últimos domingos, o que nos leva a pensar que é um perfeito cristão. E a Miss Grey pode ir connosco. Quero que o veja. Nem calcula a dife rença que faz desde que veio do estrangeiro! E, além disso, terá a oportunidade de voltar a ver aquele belo Mister Weston e ouvi-lo pre gar. Ouvi-o pregar e decididamente agradou-me a verdade evangélica da sua doutrina, tal como a franca sinceridade dos seus modos e a clareza e força do seu estilo. Era verdadeiramente consolador ouvir um tal sermão, depois de, havia tanto tempo, nos termos acostumado às dissertações [78l insípidas e prosaicas do antigo coadjutor e às ainda menos ediFicantes arengas do reitor. Mr Hatfield caminhava majestosamente pela nave, ou melhor, varria as bancadas como um turbilhão, com as suas ricas vestes de seda que voavam atrás dele, farfalhando. Subia ao púlpito como um conquistador a um carro triunfal. Depois, afundando-se na almofada de veludo em atitude graciosamente estudada, ali permanecia, prostrado e silencioso, durante um certo tempo, findo o qual murmurava uma colecta, papagueava um padre-nosso, levantava-se, descalçava uma elegante luva cor de alfazema, para conceder à congregação a mercê dos seus anéis refulgentes, passava ao de leve os dedos pelo cabelo fino ondeado, floreava um lenço de cambraia, recitava uma curta passagem ou talvez uma simples frase da Escritura, como epígrafe para o seu sermão, e, finalmente, proferia uma peça de oratória que, como tal, podia ser considerada boa, embora demasiadamente estudada e artificial para o meu gosto.O assunto estava bem exposto, os argumentos apresentados com lógica e no entanto, por vezes, era penoso ouvi-lo serenamente até ao fim sem manifestar um certo desacordo ou impaciência.Os temas predilectos eram a disciplina da Igreja, os ritos e as ceri mónias, a sucessão apostólica, o dever de venerar o clero e obedecer- lhe, os delitos criminosos dos dissidentes, a absoluta necessidade de observar todas as formas de piedade, a condenável presunção dos indivíduos que ousavam pensar por si mesmos em matérias relacionadas com religião ou guiar-se pela sua própria interpretação das Escrituras, e por vezes (para agradar aos paroquianos ricos) a necessidade de obediência respeitadora dos pobres para com os ricos - corroborando todas as suas máximas e exortações com citações dos Doutores da Igreja, com quem ele parecia estar mais bem relacionado do que com os Apóstolos e os Evangelistas, e cuja importância parecia considerar, pelo menos, igual à destes. Mas, de vez em quando, dava-nos um sermão de uma espécie diferente, a que se poderia chamar um bom cermão, mas sombrio e severo, apresentando Deus como um senhor implacável em lugar

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de um pai benevolente. No entanto, enquanto o ouvia pregar sentia-me inclinada a pensar que era um homem sincero em tudo que dizia, que mudara os seus pontos de vista e se tornara indiscutivelmente devoto, pouco indulgente e austero, mas, no entanto, piedoso. Mas tais ilusões eram normalmente dissipadas quando saíamos da igreja e ouvíamos a sua voz, em jovial colóquio com alguns dos Melthams ou rreens, ou até mesmo com os Murrays, provavelmente rindo do seu [79próprio sermão e esperando ter dado ao povo qualquer coisa em que pensar. Porventura regozijando-se ao lembrar-se que a velha Betty Holmes iria pôr de lado a satisfação pecaminosa do seu cachimbo, o seu consolo diário havia para cima de trinta anos, que George Higgins ficaria atemorizado por causa dos seus passeios em dias de descanso e que Thomas Jackson sentiria dolorosamente perturbada a sua consciência e abalada a sua segura e certa esperança da feliz ressurreição no último dia. Deste modo, eu não podia senão concluir que Mr Hatfield era um daqueles que "juntam fardos pesados e difíceis de suportar e os colocam sobre os ombros dos homens, enquanto eles próprios não os removem nem com um dedo" e que "fazem com Que a palavra de Deus não produza efeito algum, ensinando como doutrina os mandamentos dos homens". Fiquei satisfeita quando notei que o novo coadjutor, tanto quanto eu podia ver, se não parecia com ele em nenhum destes pontos. - Então, Miss Grey, o que pensa agora dele? - disse Miss Murray, quando tomávamos os nossos lugares na carruagem, depois do serviço religioso. - Por enquanto não acho mal - repliquei. - Não acha mal? - repetiu, atónita. - O que é que quer dizer com isso? - Quero dizer que não o acho pior que antes. - Não acha pior! Eu não penso assim... muito pelo contrário. Não acha que melhorou muito? - Ah, sim, muito mesmo - retorqui, porque, nessa altura, descobrira que era de Harry Meltham que ela falava e não de Mr Weston. Harry Meltham adiantara-se pressuroso para cumprimentar as jovens, uma coisa que ele dificilmente se atreveria a fazer se a mãe estivesse presente, do mesmo modo que as ajudara delicadamente a entrar para a carruagem. Não procurara impedir- me a entrada, como Mr Hatfield, nem, é claro, me oferecera a sua ajuda (que, de resto, eu não teria aceitado), mas enquanto a porta ficara aberta demorara-se, sorrindo e conversando com elas, e depois erguera o chapéu e partira. Porém, eu mal reparara nele durante todo esse tempo. No entanto, as minhas companheiras haviam sido mais observadoras e, durante todo o caminho, não pararam de discutir não só sobre os seus olhares, palavras e gestos, como sobre as suas feições e cada um dos pormenores do seu vestuário. [80)

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- Não vais açambarcá-lo todo para ti, Rosalie - disse Miss Matilda, o fim desta discussão. - Eu gosto dele e sei que será um óptimo companheiro para mim. - E ele simpatizou também contigo, Matilda - replicou a irmã, afectando indiferença.- E tenho a certeza - continuou a outra - de que ele me admira a mim tanto quanto a ti, não é verdade, Miss Grey? - Não sei. Não estou ao corrente dos seus sentimentos. - Bom, mas, mesmo assim, admira-me. - Minha querida Matilda! Ninguém te irá admirar enquanto não deixares os teus modos grosseiros e desajeitados.- Ora, tretas! Harry Meltham gosta destes modos e os amigos do papá também.- Bom, podes cativar homens mais velhos e filhos mais novos, mas tenho a certeza de que mais ninguém simpatizará contigo. - Não me importo. Eu não ando sempre atrás do dinheiro como tu e a mamã. Se o meu marido puder ter poucos mas bons cavalos e cães, fico plenamente satisfeita. E tudo o mais pode ir para o diabo!- Se usares umas expressões assim tão indecorosas, tenho a certeza de que nenhuma pessoa verdadeiramente educada se atreverá a aproximar-se de ti. Realmente, Miss Grey, não devia consentir isto.- Não posso evitá-lo, Miss Murray:- E tu estás completamente enganada, Matilda, ao supor que Harry Meltham te admira. Afianço-te que não.Matilda ia retorquir asperamente, mas, por felicidade, a nossa viagem chegara ao fim e a contenda foi interrompida pelo criado, que abriu a porta da carruagem e baixou o estribo para descermos. [81] XI OS AlDEÕES Agora que praticamente só tinha uma discípula, embora esta conseguisse dar-me tanto trabalho como três ou quatro vulgares, e a irmã ainda tivesse lições de alemão e desenho, sobrava-me mais tempo, uma coisa que nunca me acontecera desde que tomara sobre mim o jugo de preceptora. Esse tempo era dedicado em parte à correspondência para a minha família, em parte à leitura, ao estudo, à música, ao canto, etc. , e em parte a passear pelo parque ou pelos campos adjacentes, com as minhas discípulas, se elas o quisessem, ou sozinha, se o não queriam. Muitas vezes, quando não tinham à mão mais agradável ocupação, as Misses Murray entretinham-se a visitar os pobres rendeiros do pai para receberem as suas lisonjeiras homenagens ou para ouvirem histórias ou mexericos das velhas mais tagarelas, ou talvez até para fruírem do prazer de tornarem os pobres mais felizes com a sua alegre presença e ocasionais presentes, dados sem esforço por elas e recebidos por eles com tantos agradecimentos. Frequentemente, eu era chamada para

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acompanhar uma ou ambas as irmãs nestas visitas, e outras vezes desejavam que fosse sozinha, para cumprir uma promessa que tinham tido mais pressa em fazer do que em cumprir, para levar algum pequeno donativo ou ler um pouco para alguém que estava doente. Dessa maneira, fiz alguns conhecimentos entre os aldeões, e ocasionalmente ia visitá-los por minha própria conta. Em geral, sentia maior satisfação em ir sozinha do que com qualquer das jovens, porque elas, em grande parte devido à sua deficiente educação, comportavam-se com os inferiores de um modo que me era extremamente desagradável presenciar. Nunca lhes havia [82] passado pela cabeça porem-se no lugar deles, e, por conseguinte, não tinham consideração pelos seus sentimentos, olhando-os como uma outra espécie de seres. Observavam essas pobres criaturas, à hora das refeições, fazendo observações pouco delicadas sobre a comida e a maneira de a comerem. Riam das suas ideias simples e expressões provincianas, de tal modo que alguns deles mal se aventuravam a falar. Chamavam aos homens e às mulheres mais velhos doidos e estúpidos nas suas caras. Mas tudo isto sem intenção de ofender. Eu via que as pessoas muitas vezes se magoavam e se aborreciam com tal procedimento, embora o respeito que sentiam pelas "senhoras" os impedisse de demonstrarem qualquer ressentimento; mas elas nunca o perceberam. Pensavam que, como os aldeões eram pobres e e ignorantes, deviam também ser estúpidos e selvagens, e desde o momento que elas, suas superiores, condescendiam em lhes falar e dar-lhes uns xelins e umas meias-coroas ou artigos de vestuário, tinham o direito de se divertir, mesmo à custa deles, que as deviam adorar como anjos de luz, por condescenderem em prover às suas necessidades e virem iluminar as suas humildes moradas. Fiz muitas e variadas tentativas para que as minhas discípulas abandonassem estas noções irreais, sem ferir o seu orgulho - que facilmente se ofendia e demorava a aplacar -, mas com fraco resultado aparente. E eu não sei qual das duas seria mais digna de censura. Matilda era mais rude e impetuosa, mas da idade de Rosalie e do seu porte senhoril melhores coisas seriam de esperar. No entanto, era tão inconscientemente provocante e irreflectida como uma criança estouvada de doze anos. Numa bela manhã da última semana de Fevereiro, andava eu a passear pelo parque, gozando o triplo luxo da solidão, de um livro e de um tempo agradável. Miss Matilda tinha saído para dar a sua volta diária a cavalo e Miss Murray fora de carruagem com a mãe fazer qualquer visita, quando me ocorreu a ideia de que devia deixar estes prazeres egoístas - oparque e o céu tão azul e límpido, o vento oeste gemendo através dos galhos das árvores ainda sem folhas e com neve aqui e além, que o sol ia derretendo rapidamente, e os veados que pastavam, graciosos, nos campos húmidos já revestidos pela frescura da vegetação

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da Primavera - e ir até ao casebre de Nancy Brown. Esta era uma viúva cujo filho estava todo o dia a trabalhar no campo, e que sofria de uma inflamação na vista, que a impedia por uns tempos de ler, o que lhe causava grande pena, pois era uma mulher muito inteligente e ponderada. [83] Portanto, fui até lá e encontrei- a só, como habitualmente, na sua pequena choupana, escura, pouco arejada e cheirando a fumo, mas tão arranjada e limpa quanto era possível. Estava sentada junto à lareira (que consistia apenas numas poucas cinzas incandescentes e alguns gravetos) tricotando afanosamente, tendo aos pés uma pequena almofada de serapilheira, onde se enroscava um gato, o seu grande amigo, com a cauda meio enrolada nas suas patinhas de veludo e os olhos semicerrados, fitando, sonhadores, o guarda- fogo, pobre e retorcido. - Então, Nancy, como se sente hoje? - Mais ou menos na mesma, Miss Grey... Os meus olhos não estão melhores, mas sinto-me mais bem- disposta - replicou ela, levantando-se para me saudar, com um sorriso de satisfação que me alegrou muito ver, pois Nancy fora atormentada por uma crise de escrúpulos. Felicitei-a pela mudança. Ela concordou que fora uma grande graça, e explicou que se sentia muito grata por isso, acrescentando: - Se for a vontade de Deus poupar-me a vista e permitir que eu volte a ler a Bíblia, acho que ficarei tão feliz como uma rainha. - Espero que seja essa a Sua vontade - repliquei. - E, entre tanto, eu venho cá ler-lha sempre que tiver um bocadinho livre. Com expressões de agradecido prazer, a pobre mulher foi buscar uma cadeira, mas, como eu me adiantasse, apressou-se a avivar o lume, juntando mais alguns gravetos às brasas quase apagadas; depois; tirando da prateleira uma Bíblia velha de tanto manuseada, limpou- a cuidadosamente do pó e entregou- ma. Tendo eu perguntado se havia alguma passagem em especial que gostasse que lhe lesse, respondeu: - Se para a Miss Grey tanto faz, eu gostava de ouvir o capítulo da Primeira Epistola de S. João, que diz: "Deus é caridade e quem permanece na caridade permanece em Deus, e Deus nele. " Procurando um pouco, encontrei essas palavras no quarto capítulo: Quando cheguei ao versículo 7, ela interrompeu-me e, com desculpas desnecessárias por tomar essa liberdade, solicitou-me que o lesse muito devagar, demorando-me em cada palavra, para que ela o pudesse compreender bem, esperando que eu a desculpasse, porque ela era uma "ignorante". - Mesmo as pessoas mais sábias - repliquei - devem meditar em cada um destes versículos durante uma hora, para tirar deles o maior proveito, e eu antes queria lê- los devagar do que os não ler.

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Portanto, acabei o capítulo sem pressas e, ao mesmo tempo, tão [84) impressivamente quanto fui capaz. A minha ouvinte escutou-me muito atenta e agradeceu-me sinceramente quando acabei. Deixara-se ficar sentada e quieta uns segundos para reflectir; e, para minha grande surpresa, quando quebrou o silêncio, foi para me perguntar se eu gostara de Mr Weston. - Não sei bem - repliquei, um tanto sobressaltada por tão repentina pergunta. - Acho que prega muito bem. - Ai, prega, prega. E também conversa muito bem. - Sim? - Sim. Será possível que ainda o não tenha encontrado... nem falado com ele? - Não, eu não tenho falado com ninguém, excepto com as meninas de Hall. - Ah! Elas são umas meninas muito boas e simpáticas, mas não falam com ele. - Ele vem cá visitá-la, Nancy? - Vem, Miss Grey, e eu estou-lhe muito agradecida. Vem visitar-nos a nós todos, a nós, os pobres, bastante mais vezes do que Mister Bligh ou o reitor alguma vez fizeram. E ainda bem que o faz, porque é sempre bem- vindo. Não podemos dizer o mesmo do reitor; alguns dizem até que têm medo dele. Quando entra numa casa, encontra sempre qualquer coisa que não lhe agrada e começa a ralhar com eles logo que passa a porta; mas talvez, ele ache que é seu dever dizer às pessoas o que acha mal. E muitas vezes vem de propósito para repreender as pessoas por não irem à igreja ou não ajoelharem e não se porem de pé quando as outras pessoas o fazem, ou por irem à Capela Metodista, ou outra coisa qualquer assim. Mas eu não posso dizer que ele tenha tido razão de queixa de mim. Veio visitar-me uma ou duas vezes, antes de Mister Weston chegar, quando eu estava com a cabeça transtornada. E como me sentia mal, pedi-lhe que viesse, e ele veio logo. Estava angustiada, Miss Grey (graças a Deus, já passou), mas quando pegava na minha Bíblia não sentia nenhum conforto. Esse mesmo capítulo que acabou de ler fazia-me grande confusão: "Quem não ama não conhece a Deus. " Metia-me medo, porque eu achava que não amava a Deus nem aos homens como devia, e não era capaz mesmo que o quisesse. E mais adiante, onde diz: "Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado. " E num outro lugar, onde diz: "O amor é o cumprimento da Lei. " E muitos, muitos outros, Miss Grey, ia aborrecê-la se lhos fosse dizer todos. Mas todos pareciam condenar [85] -me e mostrar-me que não estava no bom caminho. E como eu não sabia o que fazer, mandei o Bill pedir a Mister Hatfield para ter a bondade de vir aqui um dia. E, quando ele veio, contei-lhe todas as minhas preocupações. - E o que é que ele disse, Nancy?

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- Ora, Miss Grey, ele parecia que estava a fazer troça de mim. Pode ser que esteja enganada, mas pareceu-me que ele assobiou e sorriu; e disse: "Isso tudo são tolices! Naturalmente andou para aí metida com os metodistas, mulher!" Mas eu respondi-lhe que nunca tinha estado sequer perto dos metodistas. E ele disse: "Então, tem de ir à igreja, onde ouvirá as Escrituras explicadas como deve ser, em vez de ficar sentada a ler a Bíblia em casa. " Informei-o de que costumava ir à igreja quando não estava doente, mas neste Inverno, muito frio, eu não me aventurava a ir tão longe... eu, tão mal do reumatismo e tudo o mais. E ele tornou: "Faz bem ao reumatismo ir mesmo a manquejar até à igreja. Não há nada melhor para o reumatismo do que o exercício. Se pode andar em casa de um lado para o outro, porque não pode ir a pé até à igreja? A verdade é que está a ficar muito apegada às suas comodidades e é sempre fácil arranjar desculpas para nos esquivarmos ao dever. " Mas sabe, Miss Grey, não era nada disso. No entanto, disse-lhe que ia tentar. "Mas, por favor, Mister Hatfield - respondi-lhe -, se for à igreja, vou sentir-me melhor? Gostava que os meus pecados fossem perdoados e sentir que não eram mais lembrados contra mim e que o amor de Deus se derramasse sobre o meu coração. E se eu não posso ficar bem por ler a Bíblia e dizer as minhas orações em casa, como é que ficarei boa se for à igreja. " "A Igreja - continuou ele - é o lugar indicado por Deus para O adorar. É seu dever ir lá com a maior frequência que puder. Se quer consolo, deve procurá-lo na senda do dever. " E disse ainda mais coisas, mas eu não sou capaz de me lembrar de todas as suas belas palavras. No entanto, todas elas diziam o mesmo, que devia ir à igreja tantas vezes quantas pudesse, que levasse o livro de orações comigo e lesse todos os responsos a seguir ao pastor e me levantasse e ajoelhasse, e sentasse, e fizesse tudo o que pudesse, e participasse na Ceia do Senhor sempre que houvesse oportunidade, e ouvisse com atenção os sermões dele e de Mister Bligh, e estaria tudo bem; e se eu continuasse a cumprir o meu dever, receberia por fim uma graça. - Mas se mesmo assim não sentir consolo - dizia ele - está perdida. " [86] "- Então, Mister Hatfield - perguntei -, acha que estou >

>condenada às penas eternas?" ` "- Olha - respondeu-me -, se fizeres tudo o que puderes para entrar no Céu e não o conseguires, deves ser uma daquelas pessoas que procuram entrar pela porta estreita e não são capazes. " Depois, perguntou-me se eu tinha visto alguma das senhoras de Hall naquela manhã, e eu disse-lhe que tinha visto as meninas irem para Moss. E então ele deu um pontapé ao meu gato e atirou-o pelo ar, e foi-se embora tão alegre como uma cotovia. Mas eu fiquei triste. Aquelas últimas palavras caíram-me no coração e ali ficaram como chumbo, que eu já não podia suportar. Fosse como fosse, pedi o seu conselho. Pensei

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que ele dizia aquilo para meu bem, embora tivesse uma maneira estranha de o fazer. Mas sabe, Miss Grey, é rico e novo, e pessoas assim não podem entender os pensamentos duma pobre mulher como eu. Mas, mesmo assim, fiz como ele meordenou, o melhor que podia... Mas naturalmente estou a maçá-la, miss Grey, com toda esta conversa. - Oh, não, Nancy! Continue, conte-me tudo. - Bom, o meu reumatismo melhorou... não sei se foi ou não por ir à igreja, mas num domingo de geada apanhei esta constipação nos olhos. Esta inflamação não veio de repente, veio a pouco e pouco... Mas eu não lhe ia falar dos meus olhos, eu ia falar das minhas orações... E para dizer a verdade, Miss Grey, acho que nem sempre é fácil ir à igreja... mas não é disso que eu quero falar. Melhorei a saúde, mas não melhorei a minha alma. Ouvi e tornei a ouvir os leitores e li e tornei a ler o meu livro de orações. Mas não servia de nada. Não compreendia os sermões, e o livro de orações só servia para me mostrar como era fraca, que podia ler tão boas palavras e não me sentir melhor, e muitas vezes sentia que isso era uma obrigação desagradável e um fardo, em vez de um favor divino e de um privilégio, como para todos os bons cristãos. Tudo me parecia escuro e sen sentido. E então, aquelas palavras terríveis "muitos procurarão entrar e não poderão" parecia que me secavam a alma. Mas um domingo, quando Mister Hatfield distribuía os sacramentos, reparei que ele disse: - `Se algum de vós não está em paz com a sua consciência, necessita de conforto ou conselho, que venha ter comigo ou com un ministro da palavra do Senhor e desabafe as suas mágoas. " Por uma manhã do domingo seguinte, antes do serviço religioso, entrei na sacristia e voltei a falar com o reitor. Custava-me tomar tal [87 liberdade, mas pensava que, se a minha alma estava em perigo, devia preocupar-me com isso. Mas ele disse que não tinha tempo para me atender naquela altura. - E, na verdade - respondeu-me -, eu não tenho mais a dizer-lhe do que o que já disse antes. Tome os sacramentos e continue a cumprir o seu dever; e se isso não der resultado, nada mais o fará. Por isso, não me importune mais. " Então, vim-me embora. Mas ouvi Mister Weston - Mister Weston estava ali, Miss Grey - era o seu primeiro domingo em Horton, sabe, e ele estava ali na sacristia, de sobrepeliz, a ajudar o reitor a paramentar-se. - Sim, Nancy.- E ouvi-o perguntar a Mister Hatfield quem eu era. E ele disse-lhe que eu era uma velha hipócrita. Fiquei muito ofendida, Miss Grey, mas fui para o meu lugar e procurei cumprir

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o meu dever como antes, mas não alcançava a paz. E até tomei os sacramentos; mas parecia que estava a comer e a beber para minha própria condenação todo o tempo. Por isso, fui para casa, extremamente perturbada. "Mas, no dia seguinte, antes de começar a trabalhar (não sentia disposição para varrer, fazer limpezas ou lavar panelas), sentei-me no meio daquela porcaria, e quem havia de entrar senão Mister Weston! Comecei a arredar as coisas e a varrer e a limpar, pois estava à espera que ele começasse a ralhar por causa da minha preguiça, como Mister Hatfield, mas enganei-me. Ele apenas me deu os bons- dias de um modo muito agradável. Por isso, limpei o pó a uma cadeira e acendi alareira. Mas como não me esquecera das palavras do reitor, disse: "Admiro-me, Mister Weston, que se tivesse dado ao trabalho de vir de tão longe para ver uma velha hipócrita como eu!" Ele disfarçou e quis-me persuadir de que o reitor só estava a gracejar. E como viu que eu não acreditava, disse: "Bom, Nancy, não devia pensar tanto nisso. Mister Hatfield apenas estava um pouco mal-disposto. Como sabe, ninguém é perfeito, até o próprio Moisés falou inconsideradamente. Mas agora, sente-se um bocadinho e fale-me de todas as suas dúvidas e receios, e eu tentarei fazê-los desaparecer. " "Por isso, sentei-me ao pé dele. Não o conhecia, sabe, Miss Grey, epareceu-me mais novo do que Mister Hatfield; e eu, de entrada, não o tinha achado tão bem-parecido como ele e um pouco desagradável.Mas falou muito delicadamente, e quando o pobre do gato lhe saltou para os joelhos fez-lhe uma festa e sorriu. E pensei que isso era um bom sinal, porque uma vez quando ele fez o mesmo ao reitor, ele [88] zangou-se e enxotou o pobrezinho. Mas não se pode esperar que umgato tenha boas maneiras como um cristão, não acha, Miss Grey?- Pois com certeza que não, Nancy. Mas o que disse então Mister Weston?- Não disse nada, mas ouviu-me com muita paciência, sem mostrar o mais pequeno sinal de enfado. Por isso, continuei a falar e

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contei-lhe tudo, tal como lhe contei a si... e ainda mais;

"- Bom - disse ele -, Mister Hatfield tinha toda a razão em lhe dizer que deve perseverar e cumprir os seus deveres. Ao aconselhá-la air à igreja e a assistir ao serviço religioso, e o mais, não queria dizerque a isso se reduziam os deveres de um cristão. Ele pensava que neles podia aprender o que deve fazer e ser levada a sentir prazer nessesexercícios, em vez de os achar uma obrigação e um fardo. E se tivessepedido que lhe explicasse essas palavras, que tanto a perturbavam, penso que ele lhe teria dito que se muitos procuram entrar pela portaestreita e não são capazes é porque são os seus pecados que osimpedem. É tal qual como um homem, com um grande saco às costas, que quer passar por uma porta estreita e descobre que isso seráimpossível se não deixar o saco para trás. Mas iria jurar que a Nancynão tem pecados que não possa atirar fora de livre vontade, se souber como. "- É verdade, Mister Weston, está a dizer uma verdade", concordei eu. - Bom - disse-me -, conhece o primeiro e o maior mandamento, e o segundo que é semelhante ao primeiro e nos quais repousa toda a Lei e os profetas? A Nancy diz que não pode amar a Deus, mas estou convencido de que se pensar bem quem Ele é e o que é não pode deixar de o fazer. Ele é o nosso pai, o nosso melhor amigo. Todas as mercês, tudo quanto é bom, agradável e útil vem d'Ele; e tudo quanto é mau, tudo quanto há razão para detestar, para evitar ou para temer, vem de Satanás, o Seu inimigo e também nosso. E, por esta razão, encarnou em Seu Filho, para poder destruir as obras do demónio. Numa palavra, Deus é AMOR; e quanto mais amor tivermos dentro de nós, mais perto estamos d'Ele, e mais possuímos o Seu Espírito. "- É verdade, Mister Weston - respondi-lhe -, se eu puder pensar sempre nessas coisas, acho que posso amar a Deus; mas como posso eu amar o meu próximo, se me magoam, são pecadores e pensam de modo diferente?""- Parece uma coisa difícil - disse - amar o nosso próximo que [89] tem tanto de mau dentro de si e cujas faltas despertam, tantas vezes, o mal que está adormecido em nós. Mas lembremo-nos de que foi Ele que os fez, e que Ele os ama; e quando se ama quem criou, deve-se amar também o que é criado. E se Deus nos amou e deu o Seu único Filho para morrer por nós, também temos de nos amar uns aos outros. Mas se não podemos sentir realmente

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afeição por aqueles que não se importam connosco, podemos pelo menos procurar fazer-lhes o que gostaríamos que fizessem por nós: procurar ter piedade pelas suas faltas e desculpar as suas ofensas e fazer todo o bem que pudermos àqueles que nos rodeiam. E se nos habituarmos a isto, Nancy, o próprio esforço far-nos-á amá-los um pouco, para já não falar da boa vontade que a nossa bondade possa despertar neles, embora possam ter pouco de bom. Se amarmos a Deus e desejarmos servi-lo, procuremos ser como Ele, fazer o Seu trabalho, trabalhar para a Sua Glória, que é o bem da humanidade, para apressar a vinda do Seu Reino, que é a paz e a felicidade de todo o mundo. Contudo, por muito pouco poder que pareçamos ter ao fazer todo o bem que pudermos, durante toda a nossa vida, o mais humilde de nós pode fazer muito por isso; e vivamos no amor, para que Ele possa viver em nós e nós n'Ele. Quanto mais felicidade espalhamos, mais receberemos, mesmo aqui na terra, e maior será a nossa recompensa no céu, quando descansarmos das nossas fadigas. " Eu acredito, Miss Grey, nas palavras dele, porque pensei nelas muitas vezes. E então ele pegou nessa Bíblia e leu uns bocadinhos, aqui e ali, e explicou-os muito bem. E parecia que uma nova luz penetrava na minha alma, e eu sentia o coração desanuvear-se e só desejava que o pobre Bill e toda a gente estivessem aqui e ouvissem tudo e se alegrassem comigo. "Depois de ele se ter ido embora, Hannah Rogers, uma das minhas vizinhas, veio aqui pedir-me para a ajudar numas lavagens. Disse-lhe que não podia, naquela ocasião, porque ainda não tinha arranjado as batatas para o jantar nem lavado as coisas do almoço. Então, ela começou a gritar que eu era uma preguiçosa. A princípio fiquei um pouco irritada, mas não disse nada desagradável; apenas lhe disse, com muita calma, que o novo pároco me tinha vindo visitar. Mas despachei-me o mais depressa que pude e depois fui ajudá- la. Então, ela amansou e o meu coração como que aqueceu, e ficámos boas amigas. E é assim, Miss Grey, "uma resposta afável dissipa a cólera; mas as palavras cruéis provocam a ira", não só nas pessoas com quem se fala, mas em nós mesmo.[90] - É bem verdade, Nancy, e se nos conseguíssemos sempre lembrar disso... - Ai, se pudéssemos... - E Mister Weston voltou a visitá-la? - Sim, muitas vezes; e desde que os meus olhos estão doentes, ele senta-se e lê-me durante meia-hora. Mas sabe, Miss Grey, ele tem outras pessoas para visitar e outras coisas a fazer... Deus o proteja! E neste domingo, ele pregou um tal sermão!... A passagem da Bíblia era "Vinde a mim todos os que trabalhais e vos achais carregados e eu vos aliviarei" e os dois benditos versículos que se seguem. A Miss Grey ntão estava cá, estava com a sua família... mas fez-me sentir tão feliz! Eagora sou feliz, graças a Deus! E sinto prazer em fazer alguns

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trabalhinhos para os meus vizinhos, tanto quanto uma pobre meio cega pode fazer; e eles aceitam-nos com bondade, tal como ele disse. Vê, Miss Grey, estou a fazer agora um par de meias. São para o ThomasJackson, que é um velho muito esquisito, e temos tido algumas desavenças um com o outro, e por vezes não estamos de acordo. Por isso lembrei-me de lhe fazer um par de meias quentinhas; e sinto que começo a gostar daquele pobre homem um bocadinho mais, desde que as comecei. É exactamente como Mister Weston disse. - Estou muito satisfeita por a ver tão feliz, Nancy, e tão cheia de bom senso. Mas agora tenho de me ir embora, precisam de mim no Hall - disse. Despedi-me e saí, prometendo voltar quando tivesse tempo. Senti- me quase tão feliz como ela. De outra vez, fui fazer uma leitura a um pobre agricultor que estava tuberculoso em último grau. As meninas tinham ido visitá-lo e, não sei como, haviam prometido voltar para fazer uma leitura. Mas isso dava- lhes muita maçada e pediram-me para o fazer em seu lugar. Fui, de muito boa vontade, e aí também tive a satisfação de ouvir elogiar Weston, tanto pelo doente como pela mulher. O primeiro disse-me que sentia grande consolo e tirava muito proveito das visitas do novo pároco, que vinha vê-lo com frequência, e era "o homem certo" para Mr Hatfield, qua antes da sua chegada a Horton o ia visitar de vez em quando. Nessas ocasiões, insistia sempre para que a porta ficasse aberta, para o ar entrar, pensando só em si mesmo, sem se importar se isso incomodava o doente. E depois de abrir o livro de orações e lido a correr uma parte do serviço dos doentes, saía à pressa outra vez. Se se demorava, era para censurar a infeliz mulher ou para fazer qualquer observação irreflectida, para não dizer pouco caridosa ou até [91) despropositada, o que aumentava, em vez de diminuir, as preocupações daquele pobre casal.- Enquanto Mister Weston - disse o homem - reza comigo, deum modo completamente diferente, e fala com muita bondade e muitavez me vem ler também, e senta-se a meu lado como um irmão.- E é bom com toda a gente! - exclamou a mulher. - E há cercade três semanas, quando percebeu que o pobre Jem tremia de frio e viuque a lareira estava quase apagada, perguntou se a nossa provisão decarvão estava a acabar. Eu disse-lhe que sim e ele prometeu que iaarranjar mais. Mas sabe, Miss Grey, eu não pensava que ele nos ia ajudar; e no dia seguinte mandou-nos uma saca de carvão, e desde aítemos tido um bom lume, o que é uma bênção neste tempo de Inverno. Mas são os seus modos, Miss Grey: quando entra em casa de umpobre para visitar um doente, gosta de saber o que tem e o que

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precisa, e se acha que eles não têm possibilidade de arranjar qualquer coisa, não diz nada e vai buscá-la. E não é toda a gente que faz uma coisa assim, com o pouco que tem. Porque sabe, Miss Grey, ele só tem para viver o que o reitor lhe dá, e não é muito, dizem.Lembrei-me então, com intensa alegria, de que ele forafrequentemente alcunhado de bruto pela amável Miss Murray, porque usava um relógio de prata e porque os seus fatos não eram tão bem feitos nem tão novos como os de Mr Hatfield.Ao voltar para casa, sentia-me feliz e agradecida a Deus por terqualquer coisa em que meditar, qualquer coisa que me compensasse damonotonia fatigante e do trabalho ingrato e solitário da minha vida deentão, pois sentia-me muito só. Nunca, meses e meses, anos e anos, excepto nos breves intervalos de descanso em minha casa, eu via umacriatura a quem pudesse abrir o coração ou falar livremente dos meuspensamentos, na esperança de nela encontrar simpatia ou atécompreensão. Nem uma, excepto a pobre Nancy, com quem eupudesse desfrutar um único momento de verdadeira relação social, oucuja conversa me ajudasse a ser melhor, mais sensata ou mais feliz doque antes, ou a quem, tanto quanto possível, pudesse beneficiar com aminha. As minhas únicas companhias haviam sido crianças pouco amistosas e raparigas ignorantes e disparatadas. Sentir- me longe de tãofatigante insensatez era muitas vezes um alívio ansiosamente desejadoe apreciado. Mas estar limitada a tais companhias era um mal grave, tanto pelo seu efeito imediato como pelas consequências queprovavelmente dali resultariam. Nunca uma ideia nova ou um (92]pensamento estimulante me vinham de alguém, e os que cresciamdentro de mim eram, na sua maior parte, miserável e imediatamente esmagados ou condenados a desaparecer por não poderem ver a luz. Sabe-se que as companhias habituais exercem grande influênciasobre o nosso pensamento e as nossas atitudes. Aqueles cujas acçõesestão sempre ante os nossos olhos e cujas palavras estão sempre nosnossos ouvidos levam-nos naturalmente, mesmo contra nossa vontade,

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lenta e gradualmente, imperceptivelmente talvez, a agir e a falar comoeles. Não pretendo saber dizer até onde vai esse irresistível poder de assimilação, mas se um homem civilizado for condenado a passar uma "dúzia de anos entre uma tribo de selvagens intratáveis, a menos quetenha o poder de os tornar melhores, pergunto seriamente a mim mesma se, no fim deste período, ele se não terá tornado, pelo menos, num bárbaro. E eu, como não podia tornar melhores as minhas jovenscompanheiras, temia extremamente que elas me tornassem pior, quegradualmente fossem arrastando os meus sentimentos, hábitos ecapacidades até ao nível dos delas, sem no entanto me comunicarem asua vivacidade alegre e despreocupada. E já me parecia sentir a inteligência a embotar-se, o coração a petrificar-se, a alma a retrair-se, e temia que as minhas percepçõesmorais enfraquecessem, as minhas noções do bem e do mal seconfundissem e que as minhas melhores faculdades se extinguissem, por fim, sob a influência perniciosa de tal modo de vida. As brumasterrenas iam-se avolumando em minha volta e fechando-se sobre o meu céu interior. E foi nesta altura que me surgiu Mr Weston, umaestrela da manhã no meu horizonte, para me salvar do temor dacompleta escuridão. E eu rejubilei porque tinha agora qualquer coisaacima de mim digna da minha contemplação. Fiquei satisfeita por verque o mundo não era todo composto só por Bloomfields, Murrays, Hatfields, Ashbys, etc. , e a superioridade humana não era um merosonho da imaginação. Quando ouvimos dizer bem e não mal de umapessoa, é fácil e agradável supor mais ainda. Em resumo, é inútil analisar todos os meus pensamentos, mas o domingo tornou-se um diade especial prazer para mim (agora já me habituara ao canto dacarruagem), porque gostava de o ouvir... e gostava de o ver também, embora reconhecesse que não era bonito, nem mesmo o que se dizinteressante no seu aspecto exterior, mas de modo algum desagradável. De estatura era um tanto baixo, pouco acima do tamanho médio; o contorno do seu rosto seria considerado demasiado largo para ser belo, [93]

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mas para mim era prenúncio de firmeza de carácter; o cabelo, castanho- escuro, não era tão cuidadosamente anelado como o de Mr Hatfleld, mas simplesmente penteado para o lado, por sobre uma testa larga e pálida; as sobrancelhas, acho que eram salientes demais, mas por debaixo dessas sobrancelhas escuras cintilavam uns olhos singularmente dominadores, castanhos, pequenos e perspicazes, mas notavelmente brilhantes e expressivos; a boca também denotava carácter, revelando ser ele um homem de firmes propósitos e habituado a pensar; e quando sorria... Mas não falarei disso por enquanto, porque na altura a que me refiro não o vira ainda sorrir. E para falar verdade, o seu aspecto geral não me deu a impressão de ser o de um homem dado a tal descontracção, nem a pessoa que os aldeões me descreviam. Já formara uma opinião antecipada sobre ele, e, a despeito dos comentários depreciativos de Miss Murray, estava totalmente persuadida de que era um homem de grandes sentimentos, fé viva e ardente piedade, mas grave e austero. Quando percebi que às suas boas qualidades acrescentava a de uma sincera benevolência e uma bondade amável e atenciosa, esta descoberta ainda mais me encantou porque o não esperava. [94) XIIO AGUACEIROVisitei de novo Nancy Brown na segunda semana de Março, porque, embora eu tivesse minutos livres durante o dia, poucas vezes podia dispor de uma hora inteiramente minha. E desde que tudo dependia dos caprichos de Miss Matilda e da irmã, não se podia ter uma vida metódica e regrada. Fosse qual fosse a ocupação que escolhesse, quando não me encontrava ao serviço delas, eu tinha, por assim dizer, de ter "os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão" pois o facto de não vir a correr logo que me chamavam era olhado como uma ofensa grave e indesculpável, não só pelas minhas discípulas e pela mãe, mas até mesmo pela própria criada, que vinha à pressa, esbaforida, chamar-me, exclamando: "Tem de ir já para a sala de estudo, Miss Grrey, as meninas estão à ESPERA!" Horror supremo! Esperarem pela preceptora!!!Mas, desta vez, estava perfeitamente segura de ter uma ou duas horas só para mim, porque Matilda preparava-se para um longo passeio a cavalo e Rosalie estava a vestir-se para um jantar em casa de Lady Ashby. Por isso aproveitei essa oportunidade para ir a casa da viúva, onde a encontrei preocupada com o gato, que tinha estado ausente durante todo o dia. Consolei-a com todas as histórias de que me lembrei sobre a propensão que ele tinha para a vadiagem.- Tenho medo dos couteiros - disse ela. - É só no que eu penso. Se os meninos estivessem em casa, imaginava que eles lhe tivessem açulado os cães para lhe morderem, coitadinho, como costumavam fazer a outros gatos, mas agora disso não tenho medo.Os olhos de Nancy estavam melhores, mas ainda longe de se

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encontrarem bem. Começara a fazer uma camisa para o filho vestir ao[95] domingo, mas contou-me que só podia trabalhar um bocadinho, de vez em quando, por isso adiantava pouco, embora ela estivesse a fazer falta ao pobre rapaz. Propus-me ajudá-la, após lhe ter lido, pois a tarde estava por minha conta, e só precisava de voltar ao anoitecer. Ela, agradecida, aceitou o oferecimento. - E far-me-á companhia também, Miss Grey - retorquiu. - Sinto-me muito só sem o meu gato. Mas quando já acabara a leitura e fizera metade de uma costura; com o enorme dedal de latão de Nancy seguro no dedo por meio de um rolinho de papel, fui interrompida pela entrada de Mr Weston, com o gato nos braços. E, nessa altura, vi que ele era capaz de sorrir e muito agradavelmente até. - Prestei-lhe um bom serviço, Nancy - começou por dizer, mas; dando pela minha presença, inclinou ao de leve a cabeça. Para Mr Hatfield ou qualquer outro senhor daqueles sítios eu teria sido invisível:- Livrei-lhe o gato - continuou - das mãos, ou melhor, da espingarda do couteiro de Mister Murray. - Deus o abençoe! - exclamou a velhota, agradecida, prestes a chorar de alegria ao receber o seu bichano dos braços dele. - Tem de ter mais cuidado e não o deixar aproximar- se das coelheiras, porque o couteiro jura que lhe dará um tiro se o encontrar ali outra vez. E cumpriria o prometido hoje, se eu não tivesse chegad mesmo a tempo de o evitar... Parece que está a chover, Miss Grey - acrescentou ele, mais calmamente, notando que eu pusera de lado trabalho e me preparava para sair. - Não a quero estorvar... Não me demoro nada. - O melhor é ficarem ambos aqui enquanto o aguaceiro não pára - disse Nancy, atiçando o lume e colocando outra cadeira junto a ela - Há lugar para todos. - Eu vejo melhor aqui, obrigada, Nancy - repliquei, levando meu trabalho para perto da janela, onde ela me deixou tranquila, enquanto foi buscar uma escova para tirar os pêlos do gato do casaco de Mr Weston, lhe enxugou o chapéu e deu a ceia ao gato, falando durante todo o tempo, ou agradecendo ao seu amigo o que ele fizera, ou admirando-se como o gato tinha dado com a coelheira, ou lamentando prováveis consequências de tal descoberta. Ele ia-a ouvindo, com um sorriso calmo e bem-humorado, e por fim sentou-se, acedendo ao seu insistente convite, mas sempre repetindo que não fazia tenção de se demorar.[96] - Tenho outro sítio onde ir, e já vi - disse, olhando para o livro que se encontrava em cima da mesa - que alguém lhe esteve a ler. - Sim, Mister Weston. Miss Grey teve a bondade de me ler

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o capítulo; e agora está a ajudar-me numa camisa para o nosso Bill... mas tenho medo de que apanhe frio ali. Não quer vir aqui para o pé do fogo, Miss Grey? - Não, obrigada, Nancy, agora estou quente. Tenho de me ir embora assim que passe este aguaceiro. - Oh, Miss Grey! Mas disse que ficava até começar a anoitecer! - exclamou a velhota, pouco discreta; e Mr Weston pegou no chapéu. - Não, Mister Weston! - continuou ela. - Por favor, não não se vá embora, ainda está a chover muito. - Mas tenho a impressão de que estou a privar a sua visita da lareira. - Não, de modo algum, Mister Weston - retorqui, esperando não prejudicar ninguém com essa mentira. - Com certeza que não! - disse Nancy. - Então, há muito espaço aqui! -Miss Grey - disse ele, meio a gracejar, como se sentisse necessidade de mudar de assunto, quer tivesse alguma coisa especial a dizer-me ou não -, eu gostava que me reconciliasse com Mister Murray . Ele estava ali perto quando salvei o gato de Nancy e não aprovou imteiramente o meu gesto. Eu disse-lhe que pensava que ele podia passar melhor sem todos os coelhos do que ela sem o gato, e por esta ousadia obsequiou-me com uma linguagem pouco própria de um cavalheiro. Temo ter-lhe retorquido também um pouco acaloradamente demais. - Santo Deus! Espero que não se tenha indisposto com Mister Murray por causa do meu gato! Ele não gosta que lhe respondam... - Não tem importância, Nancy. Na realidade, não me ralo nada comisso, pois não fui indelicado e julgo que Mister Murray está acostumado a usar uma linguagem bastante forte quando aquece. - Ai, Mister Weston, e é uma pena! - E agora tenho de ir realmente. Preciso de fazer uma visita a umlugar que fica a uma milha daqui, e com certeza que a Nancy não gostaria que eu voltasse depois do escurecer. Além disso, a chuva está já mesmo a passar... Por isso, boa tarde, Nancy. Boa tarde, Miss Grey. - Boa tarde, Mister Weston. Mas não confie em mim para o reconciliar com Mister Murray, porque mal o vejo... e nunca falo com ele. [97 - Não? Então não há nada a fazer - replicou, com dolorosa resignação. Depois, com um sorriso muito especial, acrescentou: - Mas não faz mal; eu acho que Mister Murray tem mais desculpas a pedir do que eu. E saiu do casebre. Continuei a coser enquanto tive luz para ver e depois

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despedi-me de Nancy, atalhando os seus agradecimentos e assegurando-lhe que eu só fizera por ela o que teria feito por mim se estivesse no meu lugar e eu no dela. Apressei-me a regressar a Horton Lodge, onde, na sala de estudo, encontrei a mesa do chá em desordem, a bandeja suja e Miss Matilda com o mais feroz dos humores. - Miss Grey, por onde tem andado? Já tomei o chá há meia hora. Tive de ser eu a fazê-lo, e bebi-o sozinha! Muito gostava de saber porque não veio mais cedo! - Fui visitar Nancy Brown. Pensei que não tivesse ainda voltado do seu passeio a cavalo. - Gostava de saber como é que eu podia passear a cavalo com esta chuva. Um danado chuveirão de pedra que estragou tudo... Veio mesmo quando eu estava preparada para sair. E depois, voltar para casa enão encontrar ninguém para o chá!... E a Miss Grey sabe que não sou capaz de fazer o chá como gosto.- Não me lembrei do aguaceiro - repliquei e não me lembraraque este a faria regressar a casa. - Pois com certeza que não. Estava debaixo de telha, e nunca se lembra das outras pessoas.Suportei as suas ásperas censuras com espantosa serenidade, até mesmo com alegria, porque sentia que fora maior o benefício que prestara a Nancy Brown do que o prejuízo causado a Matilda. Talvez algum outro pensamento me ajudasse a manter a boa disposição e conferir bom sabor ao chá frio e forte demais e um maior encantoà mesa que de outro modo seria repugnante e - ia Quase a dizer Mas logo ela voltou a correr para a cavalariça e me deixou gozando, calmamente, a minha refeição solitária. [98) XIIIAS PRIMAVERAS Miss Murray agora ia sempre duas vezes à igreja, pois gostava tanto de ser admirada que mal podia suportar a ideia de perder uma única oportunidade de o conseguir. Sentia-se tão segura de si que mesmo que Hany Meltham ou Mr Green lá não estivessem, sempre haveria al guém que não seria insensível aos seus encantos, além do reitor, que por dever de ofício era geralmente obrigado a prestar-lhe atenção. Habitualmente também, se o tempo o permitia, tanto ela como a irmã voltavam a pé para casa; Matilda, porque detestava ver-se fechada dentro

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da carruagem, e ela porque não gostava de ir ali quase só, e preferia divertir-se com os companheiros que, na maior parte das vezes, animavam a primeira milha do trajecto que faziam a pé, desde a igreja até aos portões do parque de Mr Green. Perto dali começava o caminho privado de Honon Lodge, que se estendia na direcção oposta, enquanto a estrada nacional levava directamente à ainda mais distante mansão de Sir Hugh Meltham. Isto dava sempre azo a que fossem acompanhadas por Harry Meltham, com ou sem Miss Meltham, ou por Mr Green, porventura com uma ou ambas as irmãs, e qualquer visita que tivessem. A minha ida a pé com as jovens ou de carruagem com os pais dependia do capricho delas. Se resolviam "levar- me", eu ia; se, por razões só delas conhecidas, decidiam ir sozinhas, tomava o lugar na carruagem. Gostava mais de andar a pé, mas a relutância que sentia em impor a minha presença a quem a não desejava deixava-me passiva nestas ou noutras ocasiões semelhantes, e nunca indagava as causas das suas variadas extravagâncias. Na verdade, esta era a melhor política a seguir, porque sujeitar-se e servir competia à preceptora, deliberar segundo o seu próprio agrado competia às discípulas. Mas, quando ia a[99] pé, a primeira metade do trajecto tornava-se-me de um modo geral muito maçadora. Como nenhum dos senhores e senhoras anteriormente mencionados reparava que eu existia, era desagradável caminhar a seu lado, como se estivesse a ouvir o que diziam ou desejasse que pensassem que eu me queria fazer igual a eles, enquanto falavam por cina ou através de mim. Se, ao falarem, os seus olhos me encontravam no caminho, parecia que fitavam o vácuo, como se não me vissem ou desejassem dar essa impressão. Também era maçador andar atrás, pois isso parecia reconhecer a minha inferioridade; e, para falar verdad considerava-me igual, ou quase, aos melhores de entre eles, e gostava que soubessem que eu assim pensava e não me julgassem uma criada que conhecia por demais o seu lugar para se atrever a caminhar ao lado de pessoas tão finas, embora as meninas tivessem querido que eu estivesse e até condescendessem em conversar com ela quando não havia melhor companhia à mão. Assim - e sinto vergonha de o confessar -, na verdade, não foram poucos os esforços que fiz (sempre que tinha de as acompanhar) por aparentar uma perfeita inconsciência e indiferença pela presença deles, como se me encontrasse profundamente absorvida nos meus próprios pensamentos ou na contemplação das coisas que me rodeavam. Se ficava para trás, era algum pássaro insecto, alguma árvore ou flor que atraíam a minha atenção, e tendo- devidamente examinado, prosseguia o meu passeio sozinha, com todo o sossego, até que as minhas discípulas se tivessem despedido dos companheiros e virado para o caminho privado. Lembro-me, em especial, de uma dessas ocasiões. Era

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uma tarde muito agradável, quase dos fins de Março. Mr Green e as irmãs tinham mandado de volta a carruagem vazia, na intenção de gozarem a liberdade brilhante do Sol e a fragrância do ar, num passeio até casa, com suas visitas, o Capitão Qualquer-Coisa e o Tenente Qualquer-Coisa Mais (dois militares enfatuados) e as Misses Murray, que, está claro, decidiram acompanhá-los. Esta companhia era extremamente agradável para Rosalie; mas não se quadrando propriamente com o meu gosto, fui ficando para trás e comecei a examinar as plantas e os insectos ao longo das bermas reverdecidas e das sebes em flor, até que o grupo tomasse considerável avanço e eu conseguisse ouvir a doce canção duma alegre cotovia. Então o meu humor misantropo desvaneceusob o ar puro e suave e o brilho e o calor do Sol, mas deu lugar a tristes recordações da minha infância, saudades de alegrias passadas e aspirações a um futuro mais prometedor. Enquanto os meus olhos [100] vogavam pelas bermas mais escarpadas, cobertas de erva tenra e plantinhas novas, e no topo das quais as sebes floriam, eu aspirava descobrir qualquer flor que me fosse familiar e me fizesse lembrar os vales arborizados e as colinas verdejantes da minha terra, já que as charnecaspantanosas estavam fora de questão. Uma descoberta dessas faria, sem dúvida, com que a emoção me enchesse os olhos de lágrimas, mas constituiria também uma enorme alegria para mim. Finalmente, avistei mais acima, entre as raízes contorcidas de um carvalho, três belas primaveras, espreitando, tão frescas, do seu esconderijo, que as lágrimas me saltaram só de as ver. Mas estavam tão altas que foi em vão que tentei colher uma ou duas para dar largas aos meus sonhos e levá-las também comigo. Não podia lá chegar, a menos que trepasse ao talude. Desisti de o fazer por ter ouvido passos atrás de mim, naquele momento. E, por conseguinte, ia já a afastar-me, quando as seguintes palavras me fizeram estremecer: "Permita- me que as vá apanhar para si, - Miss Grey", ditas em tom grave e profundo, por uma voz bem conhecida. E logo as flores foram apanhadas e se encontraram na minha posse. .- Fora Mr Weston... Quem mais se daria a tanto trabalho por minha causa?Agradeci-lhe, se calorosa ou friamente não sei, mas de certeza que não lhe exprimi nem metade da gratidão que sentia. Era uma loucura, talvez, sentir tanta gratidão, mas, na altura, pareceu-me ser uma mostraapreciável da sua bondade, uma amabilidade que eu não podia retribuir, mas que nunca esqueceria, tão pouco acostumada estava a tais delicadezas e tão pouco preparada para as esperar de alguém que se encontrasse dentro de um raio de cinquenta

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milhas de Horton Lodge.No entanto, isto não me impediu de me sentir pouco à vontade na suapresença. E prossegui o caminho atrás das minhas discípulas num passo mais rápido do que anteriormente. E se Mr Weston tivesse percebido o meu propósito e me tivesse deixado passar sem mais palavras, arrepender-me-ia uma hora depois. Mas não o fez. E um passo rápidodos meus para ele não era mais do que uma passada vulgar.- As suas meninas deixaram-na sozinha - disse.- Sim, estão entretidas com umas companhias mais agradáveis.- Então, não se dê a grandes trabalhos para as alcançar. sAbrandei o passo, mas logo a seguir me arrependi de o fazer, pois omeu companheiro não falava e eu nada tinha para lhe dizer, e temiaque ele se sentisse na mesma situação. Contudo, por fim, quebrou o silêncio e perguntou-me, com uma certa calma brusquidão que lhe eramuito própria, se eu gostava de flores. [101)- Sim, muito - respondi -, especialmente de flores silvestres. - Também gosto de flores silvestres - disse ele. - Às outras não ligo muita importância, porque não lhes associo qualquer ideia... excepto a uma ou duas. Quais são as suas flores preferidas? - Primaveras, campainhas azuis e urze, quando está florida. - Violetas, não? - Não, porque, tal como o senhor disse, não lhes associo qualquer ideia, pois não há violetas nas colinas e nos vales em redor de minha casa. - Deve ser uma grande consolação para si ter um lar, Miss Grey - observou o meu companheiro, depois de uma curta pausa. Embora longe, embora visitado poucas vezes, é qualquer coisa para onde nos podemos voltar. - E de tal modo que acho que não poderia viver sem ele - repliquei, com um entusiasmo de que logo me arrependi, porque pensei que podia parecer inteiramente disparatado. - Oh, sim, poderia - disse, pensativo, mas com um sorriso. - Os laços que nos prendem à vida são mais fortes do que imagina ou do que supõe qualquer pessoa que nunca sentiu como eles podem ser bruscamente forçados sem quebrar. Podemos ser infelizes sem um lar, mas podemos viver, e não tão infelizes como suporíamos. O coração humano é como a borracha: um pouco fá-lo inchar, mas muito não o fará rebentar. Se um pouco mais do que nada o poderá perturbar, um pouco menos do que tudo será o suficiente para o quebrar. Como em qualquer ponto exterior da nossa estrutura, há um poder vital que lhe é inerente e que o reforça contra a violência externa. Todo o golpe que o abala servirá para o endurecer contra outro futuro golpe, tal como

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o trabalho constante engrossa a pele das mãos e enrija os músculos, em vez de os gastar; e assim, um dia de trabalho árduo, que pode ferir a palma da mão de uma senhora, não causará o mais pequeno estrago na de um camponês calejado. Falo por experiência... própria. Houve um tempo em que eu pensava como a Miss Grey... pelo menos, estava inteiramente persuadido de que um lar e a afeição da família eram as únicas coisas que tornavam a vida tolerável. Que se me visse privado destes, a existência se tornaria um fardo difícil de suportar. Mas agora que não tenho lar... a menos que se honre os meus dois quartos alugados em Honon com esse nome... E ainda não há doze meses perdi a última, a mais querida e a mais antiga amizade. E, no entanto, não só estou vivo, como a[ 102) esperança e o consolo, mesmo nesta vida, não me abandonaram por completo, embora deva reconhecer que, por vezes, ao entrar num desses pobres casebres, ao fim do dia, e ao ver os seus moradores reunidos tranquilamente em volta da lareira, eu quase sinta inveja da sua felicidade.- O senhor não sabe quanta felicidade ainda poderá ter na sua frente - disse eu. - Está agora apenas no começo da sua caminhada. - A maior felicidade - replicou - já eu possuo... é o poder e a vontade de ser útil. Aproximávamo-nos de uma cancela que dava entrada para um carreiro que levava a uma quinta, onde, suponho, Mr Weston procurava tornar-se "útil". Ali me deixou, passou a cancela e caminhou pela vereda, num passo firme e elástico, deixando-me a meditar nas suas palavras enquanto prosseguia o meu caminho sozinha. Já ouvira dizer que ele havia perdido a mãe não muitos meses antes da sua vinda. Era ela então a última, a mais querida e mais antiga das suas amizades. E ficara sem lar. Compadeci-me dele de todo o meu coração e quase chorei de compaixão. "Isto explicava - pensei - aquela sombra de preocupação que com tanta frequência lhe enevoava o semblante e lhe granjeara a reputação de casmurro e taciturno, por parte da caridosa Miss Murray e de todos os seus amigos. Mas ele não é tão infeliz como eu seria se tivesse tantas carências, porque leva uma vida activa e tem na sua frente um largo campo em que se pode tornar útil. Pode fazer amigos e vir a ter um lar, se quiser. E não duvido de que um dia o quererá: Queira Deus que a companheira do seu lar seja digna dessa escolha e o faça feliz... um lar como ele merece! E que aprazível será... " Mas não importa o que pensei. Comecei este livro na intenção de nada ocultar àqueles que desejassem poder tirar algum benefício do exame atento dos corações dos homens; mas todos nós temos certos pensamentos que de bom agrado confiaríamos a todos os anjos do céu, mas não aos nossos irmãos da terra - nem mesmo ao melhor e ao mais bondoso de eles todos. Nessa altura, já os Green tinham seguido para casa e as Murray haviam metido pelo caminho privado, para onde eu

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me apressei a seguir: Encontrei as duas jovens discutindo, acaloradamente, sobre os méritos dos dois oficiais. Mas quando Rosalie me viu, parou, no meio de uma frase, para exclamar, maliciosamente: - Oh, oh! Miss Grey! Até que enfim chegou! Não admira que [104) se tenha deixado ficar para trás durante tanto tempo. E não admira que defenda Mister Weston com tanta veemência quando eu o ataco. Ah, ah! Agora estou a ver!- Vamos, Miss Murray, não seja tonta - respondi-lhè esforçando-me por soltar uma gargalhada. - Bem sabe que essas tolices não me perturbam nada. Mas ela continuou com tais disparates, que a irmã ia corroborando com invenções forjadas nesse mesmo instante, que eu pensei ser necessário justificar- me. - Mas que série de loucuras! - exclamei. - Se aconteceu que ocaminho de Mister Weston era o mesmo que o meu, durante algunsmomentos, e se ele resolveu trocar comigo uma ou duas palavras, ao passar, o que há assim de tão extraordinário? Asseguro-lhes que só falei com ele uma única vez. - Onde? Onde? E quando? - perguntaram as duas, excitadas.- No casebre de Nancy.- Ah, ah! Então encontrou-se lá com ele, não foi? - exclamouRosalie, rindo, triunfante. - Ah, ah! Agora, Matilda, já descobri porque é que ela gosta tanto de ir a casa de Nancy Brown! Vai lá para namoriscar Mister Weston.- Realmente, nem vale a pena contradizer. Só o encontrei lá umavez, como já lhes disse. E como podia eu saber que ele lá ia?Irritavam-me as loucas acusações que me faziam, mas a minhaperturbação não durou muito. Depressa se cansaram e voltaram de novo ao capitão e ao tenente; enquanto discutiam e faziam comentários sobre eles, a minha indignação foi rapidamente esfriando, o motivo que a causara em breve esquecido. Os meus pensamentos tomaramùm rumo mais agradável. Assim, atravessámos o parque e entrámosem casa. Ao subir a escada para o meu quarto, sentia-me agitada:todo o meu coração transbordava de um único e ardente desejo. Tendo entrado no quarto e fechado a porta, caí de joelhos e dirigi a Deusuma fervorosa prece: "Seja feita a Tua vontade", esforcei-me por dizer com sinceridade; mas "Pai, todas as coisas Te são possíveis, e queseja essa a Tua vontade", estive quase a dizer. Este desejo... estaoração... quanto desdém mereceria de muitos homens e de muitasmulheres."Mas Pai, não me desampares", foi o que eu disse, e senti que era

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sincera. Parecia-me que a felicidade de outra pessoa era tão ardentemente implorada quanto a minha e isso era o principal desejo do meu coração. [105) Podia estar a iludir-me, mas esta ideia deu-me confiança para pedir forças para ter esperança de que não pedia em vão. Quanto às primaveras, conservei duas no meu quarto até estarem completamente murchas e a criada as deitar fora. E as pétalas da outra meti-as entre as folhas da minha Bíblia. Ainda as conservo, e penso guardá-las para sempre. [ 106] XIVO REITOR O dia seguinte estava tão agradável quanto o anterior. Logo a seguir ao almoço, Miss Matilda, depois de fazer a galope, e sempre desatenta, algumas das lições, e espancado o piano durante uma hora, de terrível humor comigo e com ele, porque a mãe lhe não dera folga, refugiara-se nos seus lugares predilectos: os currais, as cavalariças e os canis. Miss Murray saíra para dar um passeio tranquilo com um novo romance por companhia, deixando-me na sala de estudos a contas com uma aguarela, que eu lhe prometera fazer e que ela insistira em que ficasse pronta naquele dia. A meus pés estava estirado um pequeno terrier de pêlo cedoso, propriedade de Miss Matilda, mas que ela detestava e pretendia vender, alegando que não prestava para nada. Era, na realidade, um excelente cão de raça, que ela afirmava não ter préstimo e até nem ser capaz de conhecer a dona. O facto era que o comprara ainda um cachorrinho e insistira, logo desde o princípio, que ninguém deveria tocar-lhe senão ela. Mas depressa se cansara de um animal tão pequeno, que necessitava de muitos cuidados, e acedera de boa vontade ao meu pedido para ser eu a encarregar-me dele. E tendo-o tratado até já ser mais crescido, ganhara a sua afeição, recompensa que eu apreciara muito, considerando importante a sua gratidão, se esta não tivesse exposto o pobre Snap a muitas palavras desagradáveis e a muitos pontapés e beliscões da sua dona, e não estivesse agora em perigo de ser "mandado embora" ou entregue a um novo dono sem sentimentos. Mas como poderia eu impedi-lo? Não podia tratá-lo mal para que me odiasse, e ela não o sabia cativar com a sua bondade.[107] Encontrava-me eu ali sentada, trabalhando no meu desenho, quandoMrs Murray entrou, um tanto alvoroçada, na sala. - Miss Grey! - começou ela. - Oh, meu Deus! Como pode estaraí sentada a desenhar com um dia como este? (Achava que eu estava a fazer aquilo para meu próprio prazer. ) Pergunto a mim mesma porque não põe o seu chapéu e não vai lá para fora com as meninas! - Julgo que Miss Murray está a ler e Miss Matilda a brincar

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com os cães.- Se Miss Grey procurasse entreter Miss Matilda um pouco mais, acho que ela não era levada a procurar a companhia dos cães e dos cavalos e dos moços de estrebaria, como costuma fazer. Se fosse mais alegre e sociável com Miss Murray, ela não andaria a passear pelos campos com um livro na mão. Mas não quero agora afligi-la - acrescentou, ao ver, penso eu, que as minhas faces enrubesciam e a minha mão tremia. - Por favor, procure não ser tão susceptível... isto é só uma maneira de falar. E diga-me, se souber, para onde foi Rosalie é porque e que ela gosta tanto de estar só. - Miss Murray diz que gosta de estar só quando tem um livro novo para ler. - Mas porque é que não o lê no parque ou no jardim? Por que há-de ir passear pelo campo e azinhagas? E como é que Mister Hatfield a encontra tanta vez lá fora? Ela disse-me que, na semana passada, ele seguira a cavalo, a seu lado, até Moss Lane. E agora tenho a certeza de que foi ele quem eu vi, da janela do quarto de vestir, a passar rapidamente diante do portão do parque, direito ao sítio onde ela vai tanta vez. Gostava que Miss Grey fosse ver se ela está lá. E procure lembrar-lhe, mas com brandura, que não é próprio de uma menina da sua posição social andar assim por um e outro lado dessa maneira, exposta às atenções de qualquer um que se atreva a dirigir-lhe a palavra como a uma rapariga qualquer que não tenha parque para passear, nem família para tomar conta dela. E diga-lhe que o pai ficaria extremamente zangado se soubesse que ela trata Mister Hatfield com tanta familiaridade. E... oh! Se a Miss Grey... se qualquer preceptora tivesse metade do desvelo de uma mãe... metade da ansiedade de uma mãe, eu estaria livre destas preocupações, e a Miss Grey perceberia imediatamente que era necessário tê-la debaixo de vista e fazer com que a sua companhia fosse mais agradável. Bom, vá... vá... Não há tempo a perder - gritou, ao ver que eu pusera de lado o material de desenho e estava à porta à espera da conclusão do seu discurso. [108) De acordo com os seus prognósticos, encontrei Miss Murray no seu lugar preferido, fora do parque e, infelizmente, não sozinha, porque se via o vulto, alto e majestoso, de Mr Hatfield passeando a seu lado. Um problema difícil se me punha. Era meu dever interromper otête-à- tête. Como havia de o fazer? Mr Hatfield não podia ser mandado emborapor uma pessoa tão insignificante como eu. Colocar-me do outro ladode Miss Murray, impondo-lhe a minha indesejável presença sem fazer cáso do seu companheiro, era uma indelicadeza que eu não podia cometer. Também me faltava a coragem para a chamar de longe e dizer-lhe que era precisa noutro lugar. Por isso, tomei a

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resolução intermédia de ir caminhando devagar, mas firmemente, na sua direcção, resolvida, se a minha aproximação não assustasse o galanteador, a passarperto deles e a dizer a Miss Murray que a mãe a chamava.Ela estava na verdade encantadora, enquanto passeava vagarosamente sob os castanheiros em flor, que alongavam os braços por cimada vedação do parque, com o livro fechado numa das mãos e, na outra, um gracioso raminho de murta, com que brincava. A brisa agitava-lhe brandamente os anéis do cabelo, que espreitavam por debaixodo seu pequeno chapéu. A vaidade satisfeita ruborizava- lhe as faces eos olhos azuis e risonhos ora se volviam, esquivos, para o seu admirador, ora contemplavam o raminho de murta. Mas o Snap, correndo àminha frente, interrompeu qualquer réplica, meio impertinente, meiobrincalhona, ao agarrar e puxar o seu vestido com determinação, atéque Mr Hatfield assentou uma sonora bengalada na cabeça do animalzinho, que correu para mim a latir de dor. Isto pareceu divertir aquelereverendo senhor, que, vendo-me ali tão perto, teria pensado que, também ele, se deveria ir embora. E como eu me enclinasse para acariciaro cão, mostrando ostensivamente a minha desaprovação pela sua crueldade, ouvi-o dizer:- Quando voltarei a vê-la, Miss Murray?- Penso que na igreja, a menos que as suas obrigações o façampassar por aqui outra vez quando eu andar a passear. - Eu poderia arranjar maneira de ter obrigações aqui para estes lados, se soubesseexactamente quando e onde encontrá-la.- Mesmo que eu quisesse, não poderia informá-lo, porque sou tão pouco metódica que nunca posso dizer hoje o que irei fazer amanhã.- Então, dê-me isso para eu me consolar - disse ele, meio a brincar, meio a sério, estendendo a mão para o raminho de murta. [109) - Não, não lho vou dar. - Dê! Por favor! Eu serei o mais miserável dos homens se mo não der. Não pode ser tão cruel que me vá negar um favor tão fácil de conceder e que será tão grandemente apreciado! - implorou, com tanto ardor como se a sua vida dependesse daquele raminho. Nesta altura, já eu me encontrava a poucos metros de distância, esperando, impaciente, a sua partida. - Então, aí tem! Leve-o e vá-se embora - disse Rosalie. Ele recebeu aquela dádiva com júbilo, murmurou qualquer coisa que a fez corar e abanar a cabeça, mas com um pequeno riso que

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mostrava bem que o seu desagrado era inteiramente fingido. Depois, saudando-a delicadamente, retirou-se. - Já alguma vez viu um homem assim, Miss Grey? - perguntou- me, virando-se para mim. - Estou tão satisfeita por ter aqui aparecido! Julgava que nunca mais me via livre dele, e tinha tanto medo que o papá o visse... - Estava há muito tempo aqui consigo? - Não, não há muito, mas é tão impertinente... E anda sempre a rondar, fazendo-me crer que as suas obrigações e os seus deveres de clérigo requerem a sua presença nestas bandas, e a verdade é que está sempre à espreita para me falar. - A sua mãe acha que não deve sair do parque ou do jardim sem uma pessoa discreta e respeitável como eu a acompanhá-la para manter afastados todos os importunos. Foi ela que avistou Mister Hatfield a passar junto ao portão do parque e me mandou logo com instruções para a procurar e tomar conta de si, e também advertir... - Ai, a mamã é tão maçadora! Como se eu não pudesse tomar conta de mim mesma! Já antes me tinha aborrecido por causa de Mister Hatfield, e eu disse-lhe que devia confiar em mim. Nunca esqueço a minha condição social nem o meu lugar, por mais encantador que um homem seja. Quem me dera que ele amanhã se ajoelhasse a meus pés e implorasse que eu fosse sua mulher, para eu lhe poder mostrar como ela está enganada se supõe que eu alguma vez... Oh, isto irrita-me tanto! Pensar que podia ser assim tão palerma que me fosse apaixonar! Uma tal coisa está absolutamente abaixo da dignidade de uma mulher. Amor! Detesto essa palavra! E, aplicada a alguém do nosso sexo, acho que é um verdadeiro insulto. Que haja uma preferência, posso admitir. Mas nunca por alguém como o pobre Mister Hatfileld, que nem chega a ter setecentas libras por ano para viver decentemente. Gosto de falar[110] com ele porque é muito espertto e divertido... Gostava que Sir Thomas Ashby tivesse metade da sua simpatia. Além disso, gosto de ter alguém para namoriscar, e ninguém mais se lembra de passar por aqui. E quando vamos a qualquer sítio, a mamã não me deixa namorar ninguém, excepto Sir Thomas... se ele lá estiver. Se não está, fico atada de pés e mãos, com medo que alguém vá inventar alguma história e lhe meta na cabeça que eu sou já comprometida, ou quase, com qualquer outra pessoa, ou, o que é mais provável, com medo que aquela horrível velha, que é a mãe dele, possa ver ou ouvir qualquer coisa e conclua que eu não sou a mulher ideal para o seu primoroso filho, como se ele não fosse o maior patife da Cristandade e como se qualquer mulher vulgarmente honesta não fosse de longe boa demais para ele. - Isso é verdade, Miss Murray? E a sua mãe sabe disso e mesmo assim deseja que case com ele? - Pois com certeza que sabe! E creio que sabe mais dele do que eu, e esconde tudo de mim com medo de me desencorajar,

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não sabendo quanto pouco caso faço dessas coisas. Porque, na verdade, não têm grande importância, ele pode muito bem vir a ser uma pessoa decente quando casar, como a mamã diz. Toda a gente sabe que os devassos reformados dão os melhores maridos. Eu só gostava que ele não fosse tão feio... é tudo o que acho. Mas não há por onde escolher nesta terra e o papá não nos deixa ir para Londres... - Eu acho que Mister Hatfield seria de longe o melhor. - E seria, se fosse dono de Ashby Park... não há dúvida nenhuma; mas o facto é que eu tenho de ter Ashby Park, seja quem for que o compartilhe comigo. - Mas Mister Hatfield, entretanto, julga que Miss Murray gosta dele. Não leva em conta o seu desapontamento quando ele descobrir que foi enganado? - Com certeza que não! Será muito bem punido pela sua presunção... por ter ousado pensar que eu podia gostar dele. Nada me daria mais prazer do que tirar-lhe a venda dos olhos. - Então quanto mais depressa melhor. - Não, já lhe disse que gosto de me divertir. Além disso, ele não pensa realmente que o amo. Sou muito cautelosa. A Miss Grey nem sabe com quanta habilidade eu procedo. Ele talvez se atreva a pensar que me pode levar a amá-lo; e por isso hei-de castigá-lo como merece. - Bom, então tenha cuidado e não lhe dê razões demais para tal presunção... e pronto - repliquei. [111] Mas todos os meus conselhos foram em vão. Apenas a tornaram, de certo modo, mais cautelosa em me esconder os seus desígnios e as suas ideias. Nunca mais me falou no reitor, mas eu percebia que o seu pensamento, se não o seu coração, ainda se concentrava nele, e que estava decidida a conseguir outro encontro. Embora condescendendo com o pedido da mãe, pois agora eu acompanhava-a sempre nos seus passei-os, ela ainda persistia em deambular pelos campos e azinhagas que fi-cavam mais próximos da estrada. E quer conversasse comigo quer lesse o livro que levava na mão, interrompia-se constantemente para olhar em volta ou fixar a estrada para ver se vinha alguém. E se passava por ali algum cavaleiro, pela inqualificável maneira como o tratava, fosse ele quem fosse, poder-se-ia dizer que ela o abominava porque não era Mr Hatfield. "Com certeza que ele não lhe é tão indiferente como ela própria crê ou quer que os outros acreditem - pensava eu -, e a preocupação da mãe não é tão infundada como afirma. " Três dias passaram, e ele não aparecera. Na tarde do quarto dia; quando passeávamos junto à vedação do parque, cada uma de nós munida de um livro (porque eu tratava sempre de me precaver com qualquer coisa para fazer quando ela não desejava falar comigo), ela, de súbito, interrompeu a minha leitura, exclamando: - Oh! Miss Grey! Quer fazer-me o favor de ir visitar o Mark Wooá e levar à mulher dele meia-coroa da minha parte?...

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Eu já lá devia ter ido ou mandado, há uma semana, mas esqueci-me por completo. Tome! - disse ela, atirando-me a bolsa e falando muito depressa. - Não merece a pena estar a tirar agora, leve a bolsa e dê-lhes o que quiser. Eu ia consigo, mas queria acabar de ler este livro. Vou lá ter logo que possa. Não se demore, está bem? E... espere, não tem também de lhes fazer alguma leitura? Vá a casa e leve-lhes um livro bom. Escolha o que quiser: Fiz o que ela queria, mas, suspeitando de qualquer coisa por causa dos seus modos precipitados e do seu pedido tão repentino, antes de deixar o campo olhei para trás e lá estava Mr Hatfield junto ao portão do fundo. Mandando-me a casa buscar um livro, ela evitara que me encontrasse com ele na estrada. "Não importa! - pensei. - Não haverá grande dano. E o pobre Mark ficará satisfeito com a meia-coroa e talvez também com o livro. Se o reitor roubar o coração de Miss Rosalie, isso só fará abater um pouco o seu orgulho. Se chegacem a casar, isso a salvará de um destino pior, e ela será uma boa companheira para ele, e ele para ela. " [112] Wood era o pobre agricultor tuberculoso de que já antes faleiestava agora quase na hora final. O moribundo desejou as maiores graças para Miss Murray, pela sua generosidade, porque, embora a coroa lhe pudesse agora servir de pouco préstimo, ficara satisfeito por causa da mulher e dos filhos, viúva e órfãos dali a pouco. Depois de lá estar uns minutos e de lhes ler um pouco para consolo dele e da sua desgostosa mulher, deixei-os. Mas não andara ainda muito, quando encontrei Mr Weston, manifestamente a caminhoda mesma casa. Cumprimentou-me, com os seus habituais modos calmos e simples, e parou para saber do estado do doente e da família, ecom inconsciente e fraternal sem-cerimónia tirou-me da mão o livroque eu estivera a ler, folheou-o, fez alguns breves e sensatos reparos erestituiu-mo. Depois, falou-me dos doentes pobres que acabara de visitar e de Nancy Brown, fez algumas observações sobre o meu amigo, opequeno terrier, que estava pulando na sua frente, e sobre a beleza do tempo, e partiu.Omiti os pormenores das suas palavras, por estar convencida de quenão iriam interessar ao leitor como me interessaram a mim, e não porque as tenha esquecido. Não, lembro-me muito bem, porque pensei nelas, nem sei quantas vezes, no decurso daquele dia e nos que se lhe seguiram.Relembrei a modulação da sua voz profunda e clara, o brilho

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vivodos seus olhos castanhos e a luminosidade do seu sorriso tão agradávelquanto fugaz. Temo que esta confissão pareça absurda, mas não importa. Já a escrevi, e aqueles que lerem não conhecem a sua autora.Enquanto prosseguia o meu caminho, interiormente feliz e satisfeitacom tudo o que me rodeava, Miss Murray veio apressada ao meu encontro. O seu andar leve, as faces coradas e o sorriso radiante mostravam-me que também ela se sentia feliz, a seu modo. Correndo paramim, meteu o seu braço no meu e, sem tomar o fôlego, começou:- Agora, Miss Grey, vai sentir-se muito honrada, porque eu lhevou dar uma novidade antes de o fazer a qualquer outra pessoa.- Bem, então. o que é?- Oh, é uma tal notícia! Em primeiro lugar, tem de saber que Mister Hatfield veio ter comigo logo a seguir à Miss Grey se ter ido embora. Eu estava com tanto medo que o papá ou a mamã o vissem... Mas, sabe, não podia gritar para a Miss Grey voltar para trás, e assim eu...Oh, meu Deus! Não lhe posso agora dizer tudo porque está ali a Matilda no parque e eu tenho de ir contar-lhe o que se passou. Mas, de qualquer (113) modo, Hatfield estava extraordinariamente audacioso, inexplicavelmente cortês, espantosamente terno. Pelo menos, tentava sê-lo. Não se saiu lá muito bem, porque não está na sua índole. Noutra ocasião contar- lhe-ei tudo quanto ele disse. - Mas o que disse a Miss Murray? Estou mais interessada nisso. - Também lho hei-de dizer muito proximamente. Aconteceu que eu estava nessa altura de muito bom humor; mas, embora estivesse muito complacente e afável, tive o cuidado de não me comprometer de maneira alguma. No entanto, aquele presunçoso interpretou a minha boa disposição a seu modo, e por fim levou a minha indulgência tão longe... O que acha?... que... de facto me fez uma declaração? - E a Miss Rosalie... - Eu, com altivez e a maior frieza, expressei a minha admiração por tal ocorrência, esperando que ele não tivesse visto, na minha conduta, nada Que justificasse as suas esperanças. Havia de ver o desapontamento dele! Empalideceu horrivelmente. Assegurei-lhe que o tinha em grande apreço, mas não podia aceitar a sua proposta. E se o fizesse nada persuadiria o papá e a mamã a darem o seu consentimento. disse-me: "Mas se eles o dessem, também não aceitava?" "Com certeza, Mister Hatfield", repliquei, com tão fria decisão que pôs fim inediatamente a todas as suas esperanças. Oh, se visse como ele ficou 1 milhado... Completamente esmagado pelo

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desapontamento! Para dizer a verdade, quase tive pena dele. Contudo, ainda fez mais uma tentativa desesperada. Depois de longo silêncio, durante o qual se esforçou por se acalmar e eu por ficar séria - porque estava perdida de riso - ele disse, tentando sorrir: "Mas diga-me francamente, Miss Murray, se eu tivesse a fortuna de Sir Hugh Meltham ou as boas perspectivas do filho mais velho, continuaria a recusar-me? Dê-me a sua palavra em como me vai responder com verdade. " "Com certeza", disse-lhe. Isso não iria fazer diferença alguma. " É uma grande mentira, mas ele parecia ainda tão confiante nos seus próprios atractivos que eu resolvi não deixar nele pedra sobre pedra. Olhou-me cara a cara, mas eu conservei-me tão serena que ele nem podia imaginar que eu estava a dizer outra coisa que não fosse a verdade. "Então, suponho que está tudo acabado" - continuou num tom que parecia o de Quem ia morrer logo ali, de afronta e de intenso desespero. Estava tão zangado como desiludido. E para ali ficámos, ele sofrendo indescritivelmente, e eu, a causa cruel de tudo aquilo, [114 completamente impenetrável a toda a metralha do seu olhar e das suas palavras, Com tal frieza e altivez que ele não podia deixar de sentir algum ressentimento. E, com estranho azedume, começou: "Não esperava isto, Miss Murray. E gostava de lhe dizer umas verdades sobre o seu procedimento anterior e as esperanças que alimentou em mim, mas abstenho-me com a condição... "Sem condições, Mister Hatfield!" - disse eu, agora verdadeiramente indignada com a sua insolência. "Então, deixe-me pedir-lhe um favor", replicou ele, baixando a voz imeediatamente, e em tom mais humilde: "Rogo- lhe que não conte nada disto a quem quer que seja. Se guardar silêncio, evitar-se-ão sensaborias para ambos os lados... quero eu dizer, nada além do que for inevitável. vel. Quanto aos meus próprios sentimentos, esforçar-me-ei por osguardar para mim. Se não os puder aniquilar... tentarei perdoar se não puder esquecer a causa dos meus sofrimentos. Imagino, Miss Murray, que não avalia quão profundamente me magoou. Não lho darei a saber, mas se acrescentar ao mal que já me fez - perdoe-me, mas, se inconscientemente ou não, fê-lo - for divulgar este infeliz caso, ou se o mencionar, ficará a saber que eu também posso falar, e embora tenha desdenhado do meu amor também poderá desdenhar do meu... Calou-se, mas mordeu os lábios exangues, e parecia tão furioso que eu comecei a ficar assustada. Contudo, o meu orgulho ajudou- me a manter a calma, e respondi, desdenhosa: "Não sei qual o motivo que supõe que eu possa ter para falar nisto a alguém, Mister Hatfield, mas se eu estivesse disposta a fazê-lo, as suas ameaças não me deteriam. E acho que não é uma coisa digna de um cavalheiro. "

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"Desculpe, Miss Murray", disse ele, "eu amei-a com tal intensidade- e ainda a adoro tão profundamente - que não queria, na verdade, ofendê-la. Mas embora nunca tenha amado e nunca possa vir a amar alguma mulher como a amei a si, é igualmente certo que nunca fui tão maltratado por nenhuma. Pelo contrário, sempre achei as pessoas do seu sexo as mais bondosas, as mais carinhosas e as mais delicadas de tudo o que Deus criou, até agora. (Imagine aquele presunçoso a dizer uma coisa destas!) E a lição inesperada e severa que aprendi hoje, e a amargura de me ver logrado no único ponto do qual dependia a minha vida, devem desculpar a minha acrimónia. Se a minha presença lhe é desagradável, Miss Murray", continuou, porque eu estava a olhar em volta, para mostrar que não lhe ligava importância, e por isso ele imaginou[115]que eu estava farta de o ouvir, "se a minha presença lhe é desagradável Miss Murray, tem apenas de me prometer fazer o favor que lhe pedi, e eu deixo-a já. Há muitas senhoras na paróquia que ficariam encantadas por aceitar o que a senhora rejeitou com tanto desprezo. Naturalmente que se sentiriam inclinadas a odiar aquela cujo extraordinário encanto me tornou o coração indiferente aos seus atractivos; e uma simples insinuação da minha parte feita a uma delas seria o suficiente para a tornar assunto de conversa, o que a prejudicaria seriamente e diminuiria o seu êxito junto de qualquer ou tro cavalheiro que Miss Murray ou sua mãe pretendessem enredar".Que quer dizer com isso, Mister Hatfield?", retorqui, pronta a encolerizar-me.Quero dizer que tudo isto, do princípio ao fim, se me afigura ser, para dizer o mínimo... um caso que... um caso muito pouco sério, que miss Murray acharia bastante inconveniente se fosse alardeado por aí, ainda por cima acrescido pelos exageros das suas rivais femiminas, que ficariam muitíssimo satisfeitas de o divulgar se eu lhes desse o mais pequeno ensejo. Mas prometo-lhe, sob minha honra, que nenhuma palavra ou silaba sequer que a possa prejudicar se escapará dos meus lábios, desde o momento que nada refira sobre o assunto.- está bem, - disse eu. Pode contar com o meu silêncio, se isso lhe proporcionar alguma consolação. "Promete?" "Prometo", respondi, porque me queria ver livre dele o mais de pressa possívèl. "Então, adeus!", murmurou, num tom doloroso e magoado; e com um olhar onde o orgulho se debatia inutilmente contra o desespero. voltou-se e foi-se embora, desejando, sem dúvida, ir para casa e fechar-se no seu gabinete a chorar... se acaso se não desfez em lágrinas antes de lá chegar. - Mas a Miss Murray já quebrou a sua promessa - observei, ho rorizada com tamanha perfídia. - Oh! Foi só a si; e sei que o não vai repetir.

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- Pois com certeza que não. Mas disse que ia contar também a sua irmã, e ela, por sua vez, contará aos seus irmãos, quando eles vierem para casa, e depois à Brown, se não for a própria Miss Murray a dizê-lo. ho. E a Brown irá espalhá-la, ou ajudará a espalhá-la por todo o lao. - Não, com certeza que não. Nós não lho vamos dizer de modo algum, a menos que ela prometa guardar segredo. [116] Mas como pode esperar que ela cumpra as suas promessas se osseus patrões, que são mais civilizados, o não fazem?- Está bem, ela não irá saber nada - respondeu Miss Murray, umtanto asperamente. - Mas vai com certeza contar a sua mãe - prossegui -, e ela di-lo-á a seu pai. - Pois está claro que vou contar à mamã, e isso é uma coisa queme irá dar muito prazer. Agora já sou capaz de a convencer de que estava enganada comigo quando sentia tantos receios. - Ah, então é isso? Eu estava a perguntar a mim mesma porque seria que Miss Murray estava tão contente.- Sim, por uma razão: é que humilhei Mister Hatfield de um modo

tão encantador; e ainda por outra, há aqui uma parte de vaidade feminina. Eu não finjo que não possuo o mais essencial dos atributos donosso sexo... e se visse a ansiedade com que o pobre Hatfield me fez asua apaixonada declaração e o seu lisonjeiro pedido de casamento, edepois a sua angústia, que o seu orgulho mal podia dissimular, ao serrecusado, há-de admitir que eu tenho razão para estar satisfeita.- Quanto maior for a angústia, acho eu Que menor é a razão para estar satisfeita.- Que disparate! - gritou a jovem, estremecendo de irritação. Ou não me pode compreender ou não quer. Se eu não tivesse tanta confiança na sua magnanimidade, iria pensar que tinha inveja de mim.Mas talvez compreenda, que a razão deste prazer, que é tão boa comoqualquer outra, é principalmente porque estou satisfeita comigo mesma pela minha prudência, pelo meu autodomínio, pela minha crueldade, se assim o desejar. Não fiquei nem um pouco surpreendida, nemperplexa, ou atrapalhada, ou com ar de tola. Agi e falei tal como deviae fui perfeitamente senhora de mim, durante todo esse tempo.E, na verdade, é um homem bem parecido... Jane e Susan Green dizem que é encantador e interessante... Suponho que são estas

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as senhoras que ele acha que ficariam muito satisfeitas se o apanhassem.De qualquer modo, é de certeza muito inteligente, espirituoso e umcompanheiro agradável - não o que Miss Grey entende por inteligente, mas o suficiente para nos distrair - e um homem de quem ninguém se envergonharia em qualquer sítio e de quem não nos cansamosdepressa. E, para confessar a verdade, eu gostava bastante dele... mais talvez do que de Harry Meltham. . e ele, evidentemente, idolatrava-me. E, no entanto, quando ele se aproximou de mim, [117) estando eu sozinha e desprevenida, tive o bom senso, e o orgulho, e a presença de espírito de o recusar... e assim com tanto desprezo e tanta frieza... Tenho boas razões para me sentir orgulhosa! - E sente-se também orgulhosa de lhe ter dito que se ele tivesse a riqueza de Sir Hugh Meltham não lhe faria diferença, quando não é verdade? E de lhe ter prometido não contar a ninguém a sua desventura, manifestamente sem a mais pequena intenção de cumprir a sua promessa? - Pois com certeza, o que mais podia eu fazer? Não teria querido que eu... Mas estou a ver que Miss Grey está maldisposta. Vem aí a Matilda. Vou ver o que é que ela e a mamã vão dizer disto. E deixou-me, ofendida com a minha falta de simpatia e pensando, sem dúvida, que estava com inveja. Não estava... pelo menos, acreditava firmemente que não. Tinha pena dela, estava espantada, desgostosa com a sua vaidade desumana, e perguntava a mim mesma porque seria que tanta beleza havia de ser dada a quem fazia tão mau uso dela e negada a outros que fariam dela uma mercê, tanto para si como para os outros. Mas Deus sabe o que é melhor, concluí. Há homens tão egoístas e tão desumanos como ela, e talvez que a missão das mulheres seja castigá-los.[118]XVO PASSEiO - Oh, meu Deus! Quem me dera que Hatfield não tivesse sido tão precipitado! - disse Rosalie, no dia seguinte, às quatro horas da tarde, bocejando, enquanto largava o trabalho e olhava com indiferença pela janela. - Agora não há nenhum motivo para sair e nada para esperar. Os dias irão ser enormes e estúpidos quando não houver festas para os animar, e este semana não há nenhuma, e para a outra também não, pelo menos que eu saiba. - É pena que tivesses sido tão desagradável com ele - observou Matilda, a quem era dirigida tal lamentação. - Assim, já não volta mais e estou desconfiada de que tu, afinal, gostas dele. Tinha esperança de que o fosses namorar e deixasses para mim o querido Harry.

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- Safa! Para eu namorar um homem é preciso que ele seja um adónis, Matilda, admirado por toda a gente, para que me contente só com um. Confesso que tenho pena de perder Hatfield, mas o primeiro homem decente, ou os vários homens que vierem tomar o seu lugar, ainda serão mais bem-vindos. Amanhã é domingo. Sempre quero ver a cara dele e se será capaz de cumprir o serviço até ao fim. O mais provável é fazer de conta que está constipado e mandar Mister Weston substituí-lo. - Estás enganada! - exclamou Matilda, desdenhosa. - Embora seja tolo, não é tão fraco como isso. A irmã pareceu ficar ofendida, mas o que aconteceu provou que Matilda tinha razão: o apaixonado desiludido exerceu os seus deveres pastorais tal qual como habitualmente. Mas Rosalie afirmava que estava muito pálido e abatido. Podia ser que estivesse um pouco mais[119] pálido, mas a diferença, se alguma havia; era dificilmente perceptível Quanto ao abatimento, para falar verdade, não o ouvi rir na sacristia, como era habitual, nem conversar alegremente; apenas levantou a voz para repreender o acólito, de um modo que toda a congregação ficoi espantada; à ida e vinda do púlpito e da mesa da comunhão parecia mais pomposo e solene e não ostentar tanta presunção ou, antes arrogância, como era seu costume ao passar com ar majestosoaquele ar que parecia dizer: "Eu sei que todos me veneram e adoram E ai de quem o não fizer!" Mas a mudança mais visível foi não ter permitido, nem uma única vez, que o seu olhar se desviasse na direcção do banco de Mr Murray, nem ter saído da igreja antes da nossa partida. Não havia dúvida de que Mr Hatfield recebera um golpe muito dù ro, mas o orgulho coagia-o a mobilizar todos os seus esforços para ocultar. A sua esperança, tida como certa, de conseguir para si uma linda mulher, extremamente atraente, cuja classe e fortuna confeririam mais brilho a outros encantos de menor importância, havia sido desfei ta. Também se sentia fortemente humilhado por ter sofrido tal revés profundamente ofendido com o procedimento de Miss Murray durante todo aquele tempo. Ter- lhe-ia dado alguma consolação saber quão desapontada ela ficara ao vê-lo tão pouco alterado, pelo menos en aparência, e por verificar que ele fora capaz de se conter e nem a olhou uma única vez durante ambos os serviços, embora ela declarasse que ele deixara transparecer que estava a pensar nela durante todo o tempo, pois de outro modo os seus olhares cruzar-se-iam, nem que fosse só por acaso. Mas se isso tivesse acontecido, ela afirmaria que foi porque ele não resistira à atracção. Também ficaria satisfeito, até certo ponto, se tivesse visto como durante toda a semana ela pareceu melancólica e descontente por lhe faltar aquele estímulo a que se habituara, e como frequentemente se lastimara de ter "acabado com ele tão depressa", como uma criança que, tendo devorado o seu bolo com ameixas depressa demais, se senta a

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lamber os dedos e a lamentar imutilmente a sua voracidade. Por fim, numa linda manhã, fui chamada a acompanhá-la, num pa seio à aldeia. Aparentemente, ia comprar umas meadas de lã a uma loja de certa importância que era mantida principalmente pelas senhoras das vizinhanças, mas, na verdade, julgo que não é falta de caridade para si por que ela fora ali na ideia de encontrar por acaso ou o próprio reitor ou qualquer outro dos seus admiradores, porque durante todo o caminho não parou de fazer conjecturas sobre "o que fará Hatfield ou [120) que dirá, se o encontrarmos", etc. Ao passarmos junto ao portão do parque de Mr Green, "pensou se aquele estúpido estaria em casa. . " quando a carruagem de Lady Meltham se cruzou connosco, "pensou no que estaria a fazer Mr Harry naquele dia tão agradável"; e depois começou a dizer mal do irmão mais velho por ser "tão louco que se casou e vai viver para Londres".- Então - retorqui-lhe -, julgava que Miss Murray gostaria de viver em Londres.- Gostava, porque isto aqui é muito monótono; mas ainda vai ficar muito pior quando ele se for embora. Se não fosse casado, eu podia deitar-lhe a mão em vez daquele detestável Sir Thomas.Depois, observando sinais de patas de cavalo na estrada lamacenta, "pensou se seria o cavalo de um cavaleiro", para concluir, por fim, que o era, de facto, pois as pegadas eram pequenas demais para terem sido feitas por um "cavalo de carroça, grande e desajeitado"; e a seguir, "pensou que cavaleiro seria" e se o encontraríamos à volta, pois tinha a certeza de que passara por ali, naquela manhã; e, finalmente, quando entrámos na aldeia e vimos apenas alguns dos seus humildes habitantes que por ali andavam, "admirou-se por aqueles estúpidos se não deixarem ficar em casa, pois não lhe apetecia ver umas caras tão feias e uns fatos tão sujos e ordinários. Não fora para isso que viera a Horton "No meio de tudo isto, confesso que perguntava também a mim mesma, muito no fundo do coração, se encontraríamos ou veríamos de relance uma outra pessoa. E quando passámos pela sua porta, até fui mais longe e pensei se ele viria à janela. Ao entrar na loja, Miss Murray quis que eu ficasse à porta enquanto ela tratava das suas compras, para a chamar se passasse alguém. Mas, infelizmente, não havia ali mais ninguém senão aldeões, excepto Jane e Susan Green descendo a rua, com ar de quem voltava de um passeio.- Que maçadoras! - murmurou, ao sair, depois de ter concluído as compras. - Porque é que não trouxeram o pateta do irmão com elas? Mesmo assim, era melhor do que nada.No entanto, cumprimentou-as com um sorriso prazenteiro e manifestações de alegria por tão feliz encontro. Colocaram-se-lhe uma de cada lado, e todas três seguiram, tagarelando e rindo, como toda a gente nova quando se encontra,

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mesmo quando as suas relações não são muito íntimas. Mas eu, sentindo-me a mais, deixei-as entrègues às suas brincadeiras e fui ficando para trás, como sempre fazia em[121] ocasiões idênticas. Não sentia prazer algum em andar perto de Miss Green e de Miss Susan como se fosse surda- muda, como uma pessoa que não pudesse falar ou com quem não se pudesse falar. Mas desta vez não estive muito tempo só. A princípio, surpreendi-me, como se fosse uma coisa muito estranha estar a pensar em Mr Weston e ele surgir-me de repente e dirigir-se-me. Mas depois, reflectindo melhor, pensei que não havia nada de estranho nisso, a não ser o facto de ele me falar, porque, numa manhã daquelas e tão perto de sua casa, era bastante natural que ele por ali andasse, e quanto a pensar nele, não tinha feito outra coisa, com poucas interrupções, desde que havíamos começado o passeio. Por isso, nada havia de extraordinário. - Está sozinha outra vez, Miss Grey - disse ele. - Estou. - Que género de meninas são essas Misses Green? - Na verdade, não sei bem. - É estranho... Vive tão perto e vê-as tantas vezes! - Bom, acho que são umas meninas cheias de vida e bem-dispostas, mas penso que o senhor deve conhecê-las melhor do que eu, porque nunca troquei uma palavra com elas. - É verdade! Mas não me parece que sejam umas pessoas muito reservadas. - Provavelmente não o são para pessoas da sua posição social; mas julgam que a esfera onde se movem é completamente diferente da minha! Ele não retorquiu. Mas depois de um silêncio, disse: - Suponho que são estas coisas, Miss Grey, que a levam a pensar que não pode viver sem um lar. - Não exactamente. Mas acontece que sou sociável demais para ser capaz de viver resignadamente sem uma pessoa amiga; e como os únicos amigos que tenho, ou que provavelmente terei, se encontram em minha casa, se esta ou, melhor, se eles desaparecessem, eu não diria que não podia viver, mas preferia não viver num mundo tão desolado. - Mas porque diz os únicos amigos que provavelmente terá? É tão insociável que não é capaz de fazer amigos? - Não, mas é que nunca fiz nenhum; e na minha presente situação, não há possibilidade de os fazer, ou até mesmo de fazer conhecimentos. A culpa pode em parte ser minha, mas espero que não toda.- A culpa é em parte da sociedade e em parte, sou levado a acreditar, das pessoas que lhe estão mais próximas; e em parte, [122] também, sua, pois muitas senhoras, na sua situação, se fariam notar e com sucesso. Mas as suas discípulas deveriam, até certo

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ponto; ser umas companheiras para si; não podem ser muito mais novas.- Oh, sim, por vezes são boas companheiras; mas não lhes posso dar o nome de amigas, nem elas pensariam em me conferir tal título... Têm outras companhias mais ajustadas aos seus gostos.- Talvez a Miss Grey seja sensata demais para elas. Como é que se distrai quando está sozinha? Lê muito?- Ler é a minha ocupação preferida, quando tenho tempo para isso e livros para ler. Falando de livros em geral, ele passou a vários livros em particular, e prosseguiu rapidamente de assunto em assunto, de modo que um número considerável deles, versando preferências e opiniões, fossem discutidos dentro do espaço de meia hora, mas sem falar muito de si; parecia menos disposto a dar a conhecer os seus pensamentos do que a descobrir os meus. Não tinha o tacto ou a arte de realizar tal propósito induzindo-me habilmente a falar dos meus sentimentos e ideias, depois de me ter exposto os seus próprios, com verdade ou não, ou levando a conversa por imperceptíveis transições até aos assuntos que desejava visar, mas tão delicada indiscrição e tão sincera franqueza não me podiam ofender. "E porque há-de estar assim tão interessado pelas minhas capacidades morais e intelectuais? O que tem ele com o que eu penso e sinto?", perguntava a mim mesma. E o meu coração estremecia, em resposta a esta pergunta. Mas Jane e Susan Green depressa chegaram a casa. Enquanto estavam paradas ao portão, parlamentando e tentando persuadir Miss Murray a entrar, eu só desejava que Mr Weston se fosse embora e que ela me não visse com ele quando se voltasse. Mas, desgraçadamente, as suas obrigações, que eram visitar mais uma vez o pobre Mark Wood, levavam-no a seguir o mesmo caminho do que nós, até quase ao termo da nossa jornada. Contudo, quando viu que Rosalie se despedira das amigas e que eu me ia juntar a ela, procurou deixar-me e prosseguir o caminho, estugando o passo. Mas, quando delicadamente ergueu o chapéu ao passar, para minha grande surpresa, em vez de retribuir o cumprimento com uma inclinação de cabeça afectada e pouco amável, ela dirigiu-se-lhe com o mais encantador dos sorrisos, e, caminhando a seu lado, começou a falar-lhe com a maior animação e afabilidade; e continuámos o caminho todos três.[ 123] Depois de uma curta pausa na conversa, Mr Weston fez uma observação dirigida a mim, em especial, referente a qualquer coisa de que tínhamos estado a falar; mas, antes que eu pudesse responder, Miss Murray adiantou-se e teceu várias considerações; ele replicou e, desde então até ao fim do encontro, ela monopolizou-o inteiramente para si. Devia ter sido em parte devido à minha própria estupidez, à minha falta de tacto e confiança, mas eu senti-me lesada. Tremia de apreensão, e ouvia, com inveja, a facilidade com que se

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exprimia, e olhava com ansiedade para o sorriso com que ela se lhe dirigia, de vez em quando, pois adiantara-se um pouco, com o propósito (julgava eu) de se fazer ver, tal como de ser ouvida. Se a sua conversa era fútil e vulgar, era também divertida, e nunca se calava ou lhe faltavam as palavras apropriadas para se expressar. Não havia agora nas suas maneiras impertinência ou petulância, como quando passeava com Mr Hatfield; havia apenas uma vivacidade graciosa e brincalhona, que devia agradar a um homem com o carácter e o temperamento de Mr Weston. Quando ele partiu, ela começou a rir, dizendo em voz baixa: - Eu sabia que era capaz! - De quê? - perguntei. - De interessar aquele homem. - O que é que quer dizer com isso? - Quero dizer que agora vai para casa a pensar em mim. Acertei- lhe no coração! - Como sabe? - Por muitas provas que não enganam e muito especialmente pelo olhar que me deitou quando se foi embora. Não foi um olhar insolente!- não o acuso disso -, foi um olhar de adoração respeitosa e terna. Ah! Ah! Ele não é tão estúpido como eu pensava! Não lhe dei resposta, porque sentia um nó na garganta e não conseguia falar. "Oh, meu Deus! Impede que isso aconteça!", gritei interiormente. "Por ele e não por mim!" Miss Murray fez várias observações vulgares quando subíamos o parque, às quais (apesar de procurar não deixar transparecer os meus sentimentos) eu só pude responder por monossílabos. Se ela pretendia atormentar- me, ou simplesmente divertir-se, eu não o saberia dizer... e não me importava muito. Mas pensava no pobre homem que só tinha um cordeiro com os seus mil rebanhos, e receava não sei bem o quê por Mr Weston, independentemente das minhas esperanças desfeitas.[124) Fiquei contente quando entrei em casa e me achei sozinha, mais uma vez, no meu quarto. O meu primeiro impulso foi deixar-me cair na cadeira junto à cama e, encostando a cabeça à almofada, procurar alívio num choro convulso. Ansiava ardentemente por esse lenitivo. Mas, infelizmente, fui obrigada a reprimir e a dissimular ainda os meus sentimentos. Era a campainha, aquela odiosa campainha, que tocava para o jantar, na sala de estudo; e eu tive de descer com ar calmo, rrir, rir e falar de ninharias... sim, e comer, também, se possível, como se tudo corresse bem e eu acabasse de voltar de um agradável passeio.[125] XVIA SUBSTITUIçÃO O domingo seguinte foi um dos dias mais sombrios de Abril, um dia de nuvens, escuras e carregadas, e fortes aguaceiros. Nenhum dos Murray estava com disposição de se deslocar à igreja

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nessa tarde, excepto Rosalie, que resolvera ir tal como habitualmente. Assim, mandou atrelar a carruagem, e eu fui com ela, sem relutância, como é de calcular, pois na igreja podia olhar, sem temor de ser escarnecida ou reprovada, para o rosto que para mim era mais agradável do que a mais bela das criaturas de Deus. Podia ouvir com tranquilidade a voz mais encantadora para os meus ouvidos do que a música celestial; podia sentir-me em comunhão com aquela alma pela qual eu me sentia tão profundamente interessada e absorver os seus mais puros pensamentos e as mais santas aspirações sem que nada interferisse nessa felicidade, excepto as íntimas censuras da minha consciência, que muitas vezes segredava que eu me estava a iludir e a zombar de Deus, por me servir do coração para o aplicar mais na criatura do que no Criador. Umas vezes tais pensamentos preocupavam-me, mas outras, eu aquietava-os, pensando que não era o homem, mas a sua bondade, que eu amava. "Se as coisas são puras, se as coisas são agradáveis, se as coisas são honestas e favoráveis, pensa nelas. " Fazemos bem em adorar Deus nas Suas obras, e não conheço nenhuma na qual tantos dos Seus atributos e o Seu espírito resplandeçam tanto como neste Seu fiel servidor, a quem conhecer e não apreciar era uma falta de sensibilidade da minha parte, que tinha tão pouco para ocupar o coração.Quase imediatamente a seguir à conclusão do serviço, Miss Murray deixou a igreja. E porque chovia e a carruagem ainda não chegara, [126) vimo-nos obrigadas a esperar na entrada. Enquanto pensava na razão que a levara a sair com tanta pressa, visto que nem o jovem Meltham nem Mr Green lá estavam, veio-me à ideia de que era para ter umaoportunidade de se encontrar com Mr Weston, quando ele saísse, o que acabou por acontecer. Tendo-nos cumprimentado a ambas, teria passado adiante se ela o não tivesse detido, primeiro com observaçõesacerca do tempo que se apresentava desagradável, e depois pedindo-lhe o favor de ir, no dia seguinte, ver a neta da velhota que tomava conta da casa do guarda, porque a rapariga estava cheia de febre e gostaria de o ver. E ele prometeu fazê- lo. - E a que horas lhe dará mais jeito ir, Mister Weston? A velhotagostaria de saber para estar à sua espera... Sabe, esta gente gosta de ter a casa arrumada quando pessoas de mais categoria as vão visitar. Que encantador exemplo de consideração da parte de uma estouvada como Miss Murray! Mr Weston marcou uma determinada hora da manhã, a que se iria esforçar por lá chegar. Nessa ocasião, já a carruagem estava pronta a partir e o criado à espera, com o chapéu-de- chuva

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aberto, para escoltar Miss Murray através do adro da igreja. Preparava-me para a seguir quando Mr Weston, que também tinha um chapéu, me ofereceu o seu abrigo, porque chovia realmente com muita força. - Não, muito obrigada, não me incomoda a chuva - disse, porqueperdia sempre a presença de espírito quando apanhada de surpresa.- Mas suponho que também. não gosta dela... e, de qualquer forma, um chapéu-de-chuva não lhe fará mal - replicou ele, com umsorriso que mostrava não se ter ofendido com a minha recusa, comopoderia acontecer com qualquer outro homem dotado de mau feitio oude menos perspicácia. Não podendo negar a verdade de tal asserção, fui até à carruagem com ele, que até mesmo me ofereceu a mão parame ajudar a subir, uma desnecessária cortesia que também aceitei, commedo de o ofender. Um breve olhar, um leve sorriso ao partir, tudonão demorou mais que um instante, mas neles eu li, ou pensei que lera, um propósito que me ateou no coração uma chama mais viva de esperança, como nunca me acontecera antes.- Se tivesse esperado um pouco, Miss Grey, ter-lhe-ia mandado o criado... Não era preciso servir-se do chapéu de Mister Weston - observou Rosalie, com o seu belo rosto anuviado por uma expressão pouco amigável.- Eu teria vindo mesmo sem chapéu, mas Mister Weston ofereceu-me o seu, e eu não podia recusar mais sem o ofender - repliquei, [127] sorrindo calmamente, pois a minha felicidade interior tornava divertido aquilo que me teria magoado noutra altura. A carruagem pôs-se em movimento. Miss Murray inclinou-se para a frente e olhou pela janela quando passámos por Mr Weston, que se dirigia para casa, pelo passeio, e não voltou a cabeça. - Burro! - exclamou ela, atirando-se de novo para trás no banco.- Não sabe o que perdeu por não olhar para este lado! - O que é que ele perdeu? - Um cumprimento meu, que o ergueria ao sétimo céu! Não respondi. Vi que estava de mau humor e senti uma secreta satisfação por esse facto, não por ela estar irritada, mas porque pensava ter razão para o estar. Isto fez-me pensar que as minhasesperanças não eram fruto dos meus desejos e imaginação. - Eu tenho de caçar Mister Weston para substituir Mister Hatfield- disse a minha companheira, depois de uma curta pausa,

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recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. - O baile em Ashby Park é na terça-feira, como sabe. A mamã pensa que é muito provável que Sir Thomas me proponha casamento. Muitas vezes estas coisas dão-se na intimidade de um salão de baile, quando os homens são mais fáceis de enredar e as senhoras mais fascinantes. Mas se tiver de casar tão cedo, tenho de aproveitar bem o tempo presente. Estou determinada a que Hatfield não seja o único homem a pôr o coração a meus pés e a implorar-me que aceite essa bela prenda. - Se pensa em Mister Weston para fazer dele uma das suas próximas vítimas - disse eu, afectando indiferença - , tem de fazer tais concessões que vai ter dificuldade em voltar atrás quando ele lhe pedir que cumpra todas as esperanças que lhe suscitou. - Eu não espero que ele me peça para casar... nem é isso que desejo. Seria muita presunção! Só pretendo que ele sinta o meu poder. E, na verdade, até já o sentiu; mas terá também de o admitir. E que esperanças extravagantes as dele, que irá ter de guardar só para si, e com que muito me divertirei durante uns tempos. "Oh! Não haver uma alma caridosa que lhe segrede estas palavras ao ouvido!", exclamei, interiormente. Estava indignada demais para me arriscar a replicar a esta observação em voz alta. E nada mais foi dito sobre Mr Weston, naquele dia, por mim ou na minha presença: Mas na manhã do dia seguinte, logo depois do almoço, Miss Murray entrou na sala de estudo, onde a irmã estava ocupada a dar lição, e disse:[128) - Matilda, quero que venhas dar um passeio comigo às onze horas.- Oh, não posso, Rosalie! Tenho de dar umas ordens sobre umas cavalariças novas e de um xairel, e falar com o couteiro por causa disso. Miss Grey pode ir contigo.- Não, eu quero que sejas tu - disse Rosalie. E chamando a irmã para junto da janela, segredou-lhe ao ouvido uma explicação qualquer, após a qual esta última acedeu a ir.Lembrei-me que as onze eram a hora à qual Mr Weston ficara de ir a casa do porteiro, e lembrei-me também de que presenciara toda aquela manobra. Portanto, ao jantar, fui obsequiada com um longo resumo sobre o modo como Mr Weston as surpreendera quando andavam a passear pela estrada, e como haviam dado um grande passeio e conversado com ele, e como, na realidade, o tinham achado um companheiro verdadeiramente agradável, e como ele ficara, isso era evidente, encantado com elas e com a sua espantosa complacência, etc. [ 129) XVIICONFISSÕES Como estou em maré de confissões, tenho de admitir que, naquele tempo, passei a dar mais atenção ao que vestia, o que nunca antes fizera. Isto não tem grande significado porque,

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até essa altura, fora sempre um tanto desleixada nesta matéria; mas agora, também não era raro passar quase dois minutos a contemplar a minha própria imagem ao espelho, embora desse exame não pudesse tirar grande consolação. Não conseguia descobrir beleza alguma nestas feições muito acentuadas, nas faces pálidas e encovadas e nos cabelos castanho- escuros, tão vulgares. Podia a testa denotar alguma inteligência, podiam os olhos cinzento-escuros ter uma certa expressão, mas o que era isso? Seria preferível ter uma testa grega e uns olhos grandes e pretos, mesmo desprovidos de qualquer sentimento. É uma loucura desejar a beleza: As pessoas sensatas ou nunca a desejam para si ou pouco se importam que outros a possuam. Se a inteligência for bem cultivada e o coração bem- intencionado, ninguém se importa com o exterior. Era o que diziam os professores, na nossa infância, e o que dizemos agora às crianças. Tudo isto está muito certo, sem dúvida, mas tais asserções são confirmadas pela experiência do dia-a-dia? Somos predispostos naturalmente a amar aquilo que nos dá prazer E haverá coisa mais agradável do que um rosto bonito quando sabemos que não existe o mal no seu possuidor? Uma criança gosta de um passarinho, porquê? Porque ele vive e sente; porque é indefeso, inofensivo? De igual modo, um sapo vive e sente, e é também indefeso e inofensivo; mas embora o não maltratasse, ela não podia amá-lo como a um pássaro, que é gracioso, tem penas macias e olhos vivos expressivos. Se uma mulher é bonita e gentil, é admirada por ambas as [130] qualidades, mas em especial por causa da primeira, pela maioria das pessoas; se, por outro lado, o seu físico e o seu carácter forem desagradáveis, a sua falta de beleza é atacada, de um modo geral, como o "seu maior crime, porque, para o comum dos observadores, é o que mais ofende; enquanto, se for feia e boa, contanto que seja uma pessoa modesta e recatada, nunca ninguém saberá da sua bondade, excepto aqueles que lhe estão mais próximos. Outros, pelo contrário, terão propensão para formar uma opinião desfavorável sobre a sua inteligência temperamento, quanto mais não seja para se desculparem da antipa tia que sentem por alguém que foi tão desfavorecido pela natureza; e vice-versa com aquelas cuja figura angelical dissimula um coração perverso, ou que esconde sob falsos encantos imperfeições e fraquezas, que não seriam toleradas noutrem. Aquelas que possuem beleza devem ser agradecidas por isso e fazer bom uso dela, como de outro i qualquer talento; aquelas que a não têm, que se consolem, e que vivam o melhor que puderem sem ela, porque, embora possa ser sobrestimada, é um dom de Deus, e não deve ser desprezada. Muitas que sentiram que podiam amar e eujos corações lhes dizem que são merecedoras de serem amadas, já passaram por isto e ainda sentem a carência de dar e receber essa felicidade que julgam poder sentir e partilhar. Tal como o humilde pirilampo privado do seu poder de emitir luz, sem

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o qual a mosca, como louca, passa e volta a passar mil vezes, sem nunca parar a seu lado. Ouve a sua amada zumbindo em seu redor; ela procura-o em vão, ele deseja ser encontrado, mas sem poderes para tornar conhecida a sua presença, sem voz para chamar, sem asas para seguiro seu voo. A mosca tem de procurar outro companheiro; o pirilampo tem de viver e morrer só.Eram estas algumas das minhas reflexões, por essa época. Poderia prosseguir com as minhas considerações, poderia mergulhar ainda mais fundo e revelar outros pensamentos, fazer algumas perguntas que o leitor se veria embaraçado para responder e deduzir argumentos que iriam ofender os seus preconceitos, ou talvez provocar a sua zombaria, porque poderia não os compreender. Mas vou abster-me de o fazer. Voltemos, portanto, a Miss Murray, que acompanhou a mãe ao baile de terça-feira e que, como sempre, estava esplendorosamente ataviada e deleitada com os seus planos e os seus atractivos. Como Ashby Park ficava a uma distância de dez milhas de Honon Lodge, tinham de sair bastante cedo, e eu tencionava ir passar a tarde com Nancy Brown, que não via há muito tempo. Mas a minha amável discípula teve o [131] cuidado de não me deixar nem ali nem em qualquer outro sítio, para além dos limites da sala de estudo, dando-me um trecho de música para copiar, o que me ocupou rigorosamente até à hora de me ir deitar.No dia seguinte, cerca das onze da manhã, contou-me que realmente fora pedida em casamento durante o baile, e que o pedido fora aceite.o eleito vinha naquele dia assentar alguns pontos com Mr Murray. Agradava a Rosalie a ideia de vir a ser dona de Ashb Park. EntuTambém os prazeres que ela esperava gozar em Londres e com o próprio Sir Thomas. desejava que a cerimónia se realizasse brevemente. Parecia-me horrível apressar um enlace tão pouco auspicioso, e não dar áquela pobre criatura tempo para pensar no passo irrevogável que estava prestes a dar. Eu não tinha a pretensão de me sentir "uma mãe excessivamente solícita e apreensiva", mas estava pasmada e horrorizada com a insensibilidade de Mrs Murray, ou a falta de pensar no verdadeiro bem- estarda filha; e por meio de advertências e conselhos de que ninguém fazia caso, em vão me esforcei por remediar o mal já feito. O casamento foi marcado para o dia 1de Junho. Entre este e o baileem que tudo se decidira mediavam pouco mais de seis semanas; mas, com a perfeita habilidade e a firme diligência de Rosalie, muito podia ser feito, mesmo dentro deste período de tempo, grande parte do qual

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Sir Thomas iria passar em Londres, onde, dizia-se, tinha de resolver uns assuntos com o seu advogado e fazer outros preparativos para o seu próximo noivado. Esforçava-se por suprir a falta da sua presença com um belo e constante tiroteio de billets-doux; mas estes não chamavam a atenção dos vizinhos nem lhes davam nas vistas, como as suas visitas pessoais o fariam. E o orgulho da velha Lady, uma alma azeda e reservada, impedia-a de espalhar a notícia, enquanto a sua saúde precária lhe não consentisse ir visitar a futura nora. Por tudo isto, o noivado fora mantido muito mais secreto do que é costume em tais ocasiões. Rosalie, às vezes, mostrava-me as cartas do seu apaixonado, procurando convencer-me de que ele viria a ser um marido bondoso e dedicado. Mostrava-me também as cartas de uma outra pessoa, o desafortunado Mr Green, que não tivera a coragem, ou o "brio", como eladizia, para advogar a sua causa pessoalmente, mas a quem uma recusa não satisfazia e o fazia voltar a escrever uma e outra vez. E não o teria feito, se pudesse ver as caretas que fazia o seu belo ídolo ao ler os comoventes apelos dele aos seus sentimentos, e ouvisse o seu riso desdenhoso e os epítetos ignominiosos. com que ela o nimoseava pela sua perseverança.- Porque não lhe conta já que está noiva? - perguntei.- Oh, não quero que ele o saiba - replicou ela. - Se o soubesse, logo as irmãs e toda a gente o iria saber, e então acabava-se o meu...Bom! E, além disso, se eu lho dissesse, ele pensaria que o meu noivado era o único obstáculo, e que eu casaria com ele se fosse livre, o que eu não suportaria que algum homem pudesse pensar, muito menos ele.Além disso, eu não ligo nenhuma às suas cartas - acrescentou, desdenhosa. - Pode escrever cada vez que queira, se isso lhe dá gosto, e fazer papel de idiota sempre que me encontrar; só me diverte.Entretanto, as visitas do jovem Meltham, ou as suas passagens pertodali, eram cada vez mais frequentes; e, avaliando pelas críticas e censuras de Matilda, a irmã prestava-lhe mais atenção do que a civilidade o requeria. Por outras palavras, mantinha com ele um animado namorico, tanto quanto a presença dos pais o admitia. Fez várias tentativas para lançar de novo Mr Hatfield a seus pés, mas, achando que eram [133]malogradas, retribuía a sua altiva indiferença com um desdém

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ainda mais soberbo e falava dele com ainda maior desprezo e aversão do que fizera com o coadjutor. Mas, no meio de tudo isto, nunca, nem por um momento, perdia de vista Mr Weston: Aproveitava todas as oportunidades para o encontrar, experimentava todos os artifícios para o fascinar e perseguia-o com tanta perseverança como se realmente o amasse e a mais ninguém e a felicidade da sua vida dependesse de obter a retribuição do seu afecto. Tal comportamento estava para além da minha compreensão. Se o tivesse lido em alguma novela, tê-lo-ia achado anormal. Se o tivesse ouvido descrever por outras pessoas, teria considerado que houvera equívoco ou exagero; mas quando o vi com os meus próprios olhos e sofri por causa disso também, só pude concluir que a vaidade excessiva, tal como a embriaguez, endurece o coração; escraviza as faculdades e perverte os sentimentos; e que os cães não são as únicas criaturas que, mesmo quando empanturradas, ainda olham cobiçosos para o que não podem devorar e invejam o pedaço mais pequeno do seu irmão faminto. Nessa altura, tornou-se extremamente caritativa para com os pobres aldeões. As suas relações com eles alargaram-se mais, as visitas às suas humildes habitações eram mais frequentes do que antes. Por tudo isto ganhou, entre eles, a reputação de muito caridosa, e esses elogios eram seguramente repetidos a Mr Weston, a quem ela tinha a possibilidade de encontrar, diariamente, numa ou noutra daquelas casas ou nò seu caminho, por saber, através de conversas, a que lugares e a que horas ele provavelmente iria, para baptizar uma criança, ou visitar um velho, um doente, um infeliz ou um moribundo. E com a maior habilidade, ia traçando assim os seus planos. Nestas suas digressões, por vezes, ia com a irmã - a quem, de algum modo, persuadira, ou subornara, para entrar nos seus esquemas; outras vezes só, e nunca, agora, comigo. Assim, eu ficava privada do prazer de ver Mr Weston e de ou vir a sua voz, mesmo em conversa com outra pessoa, o que teria sido certamente um grande prazer, embora isso me ferisse ou me doess. Nem sequer o podia ver na igreja, porque Miss Murray, sob qualquer pretexto sem importância, decidira apossar-se do canto, no banco da família, que tinha sido o meu desde que para ali fora; e, a menos que tivesse a pretensão de me colocar entre Mr e Mrs Murray, só me podia sentar de costas para o púlpito, o que me via obrigada a fazer. Agora, também, nunca ia para casa a pé com as minhas discípulas. Diziam à mãe que achavam que não parecia bem ver três pessoas de[134] família irem a pé e só duas de carruagem, e como elas preferiam ir apé, quando o tempo estava bom, eu tinha de ir com os mais velhos.- E além disso - diziam -, a Miss Grey não pode andar tão depressa como nós; está sempre a ficar para trás.Eu sabia que eram falsas desculpas, mas não punha objecções,

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e nunca contrariava tais declarações, sabendo por demais os motivos queas ditavam. E à tarde, durante aquelas seis semanas, nem fui sequér à igreja. Se me constipava ou tinha a mais pequena indisposição, logo se aproveitavam para me obrigar a ficar em casa. E muitas vezes me diziam que também elas não voltavam à igreja naquele dia, e depois, pretendendo ter mudado de opinião, iam-se embora sem me dizer nada, conseguindo sair de tal modo que nunca descobria ter havido mudançade ideias senão tarde demais. Numa dessas ocasiões, depois do seu regresso a casa, obsequiaram-me com um animado relato de uma conversa que haviam tido com Mr Weston quando se vinham embora. - E ele perguntou se a Miss Grey estava doente - disse Matilda -, mas nós dissemos-lhe que estava de perfeita saúde, apenas quenão tinha querido ir à igreja... por isso ele naturalmente vai pensar quea Miss Grey se tornou descrente.Todas as ocasiões de encontro, nos dias de semana; eram tambémcuidadosamente evitadas, pois, para que não fosse visitar Nancy Brown ou qualQuer outra pessoa, Miss Murray procurava providenciar, ocupações suficientes para as minhas horas de lazer. Havia sempre umdesenho para acabar, uma música para copiar ou qualquer trabalho afazer, o bastante para me impedir de me entregar a qualquer coisaalém de um curto passeio pelos jardins, ainda que ela ou a mmãe estivessem entretidas com outros afazeres. Uma manhã, tendo procurado e apanhado de surpresa Mr Weston, regressaram jubilosas para me darem conta da conversa que haviam tido.- E ele perguntou outra vez por si - disse Matilda, apesar dos sinais imperativos da irmã para que se calasse. - Admirou- se de nuncaa ver connosco, e julga que deve ter uma saúde muito delicada, visto que sai tão poucas vezes.- Não, Matilda, ele não disse isso... Que asneiras estás para aí a inventar!- Oh, Rosalie, que mentira! Ele perguntou, sabe? E tu disseste...Não, Rosalie... Cala-te! Não me dês beliscões! E a Rosalie disse-lheque a Miss Grey estava de perfeita saúde, mas sempre tão absorvida

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pelos seus livros que nada mais lhe dava prazer. [135) "Mas que ideia deve ele fazer de mim!", pensei. - E - perguntei a Nancy já alguma vez perguntou por mim? - Perguntou, e nós dissemos-lhe que gostava tanto de ler e desenhar que não podia fazer mais nada. - Não é bem esse o caso. Se lhe tivessem dito que eu estava tão ocupada que não a podia ir vér, estariam mais próximas da verdade. - Eu acho que não - replicou Miss Murray, subitamente animada. - Tenho a certeza de que dispõe de imenso tempo livre para si, agora que tem tão pouco que ensinar. Não merecia a pena discutir com tão caprichosas e pouco razoáveis criaturas, por isso conservei-me calada. Estava agora acostumada a manter-me em silêncio quando eram proferidas coisas que me desagradavam aos ouvidos. E também me habituara a arvorar um semblante calmo e sorridente quando o coração me batia amargurado no peito. Só quem já sentiu o mesmo pode avaliar os meus sentimentos, enquanto assumia um sorriso de indiferença, escutando o relato daqueles encontros e daquelas conversas com Mr Weston, que elas pareciam ter tanto prazer em me descrever, e ouvindo coisas que lhe eram atribuídas e que, pelo seu carácter, sabia serem exageros e distorções da verdade, quando não inteiramente falsas - coisas depreciativas para ele e lisonjeiras para elas, especiálmente para Miss Murrayque eu desejava ardentemente contradizer ou, pelo menos, mostrar que punha em dúvida, mas não o ousando fazer, para que, ao exprimir a minha descrença, não manifestasse sem querer o meu interesse. Outras coisas ouvi, que eu sentia ou temia serem verdadeiras por demais, mas tinha, no entanto, de ocultar a minha ansiedade no que lhe dizia respeito e a minha indignação contra elas, sob um ar indiferente; e outras, ainda, meras insinuações de alguma coisa dita ou feita de que eu desejava saber mais mas não me atrevia a perguntar. Assim se ia passando aquele tempo de provações. E nem mesmo me podia consolar, pensando: "Dentro em pouco, ela estará casada; e então poderá haver esperança. " Logo depois do casamento, viriam as férias. Quando voltasse de casa, muito provavelmente Mr Weston ter- se- ia ido embora, pois haviam-me dito que ele e o reitor não se entendiam (por culpa do reitor, claro), e pretendia mudar-se para outro sítio. Não. Além da minha esperança em Deus, a minha única consolação era pensar que, embora ele o não soubesse, eu merecia mais o seu amor do que Rosalie Murray, embora esta fosse encantadora e[136] atraente. Apreciava a sua superioridade, e ela não; dedicaria a minha vida a trabalhar para a sua felicidade, e ela destruí-la-ia pela

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satisfação momentânea da sua própria vaidade. "Oh! Se ele pudesse compreender esta diferença!", exclamava, sinceramente. "Mas não! não o deixarei ler no meu coração. Contudo, se ele pudesse reconhecer a sua falta de sinceridade, o seu pouco valor, a sua cruel frivolidade, estaria salvo, e eu seria... quase feliz, embora nunca mais ovoltasse a ver!" Temo que, nesta altura, o leitor comece a ficar aborrecido com as minhas tolices e fraquezas que expus com tanta lealdade. Nunca o revelei antes, e não o teria feito se a minha própria irmã ou a minha mãe estivessem ali comigo. Pelo menos neste caso, eu tinha de me manter firme e dissimulada. As minhas orações, as minhas lágrimas, os meus desejos, medos e lamentações eram apenas testemunhadas por mim e pelo Céu. Quando somos atormentados por desgostos e preocupações - ouoprimidos por quaisquer sentimentos poderosos que devemos guardar para nós mesmos, para os quais não podemos obter e procurar simpatia de qualquer ser humano, e que, no entanto, não podemos ou não queremos esmagar completamente - procuramos muitas vezes alívio na poesia - e muitas vezes o encontramos também, quer nos desabafos alheios que parecem harmonizar-se com o nosso caso, quer nas nossas próprias tentativas para dar expressão a essas ideias e sentimentos em versos, menos musicais talvez, mas mais apropriados, e por isso mais pungentes e compassivos, e nessa altura mais reconfortantes e com mais poder para animar e aliviar um coração oprimido e destroçado. Em várias ocasiões, tanto em Wellwood House como aqui, quando atacada por saudades de casa, eu procurava conforto, por duas ou três vezes, nesta secreta fonte de consolação que é a poesia, e então socorri-me dela outra vez, com mais avidez do que nunca, porque sentia maior necessidade ainda. Preservo essas relíquias dos sofrimentos e da experiência do passado como marcos que testemunham passagens da vida e que assinalam ocorrências especiais. As pegadas apagaram- se, a face da terra pode ter mudado, mas o marco ainda aí está, para me recordar como todas as coisas eram quando ele foi erguido.Como o leitor deve estar curioso por ver alguns destes desabafos, oferecer-lhe-ei um breve exemplo. Os versos podem-lhe parecer frios e plangentes, mas foi à força do desespero que eles deveram o seu ser. [137] Roubaram-me a doce esperança Que a minha alma estremecia, Já não posso ouvir-te a voz Meu conforto e alegria. Não me deixam ver teu rosto Que meus olhos encantava, Roubaram-me o teu sorriso E o amor que ele me dava. Oh! Podem tudo levar Que um tesouro ainda é meu. Um coração que não esquece Quanto vale o amor teu. Sim, pelo menos, elas não me podiam privar disso. Eu podia pensar nele dia e noite e podia sentir que ele era merecedor de ser lembrado. Ninguém o conhecia como eu, ninguém o podia

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amar como eu amaria se pudesse. Mas aí é que estava o mal. Que direito tinha eu de pensar tanto em alguém que nunca pensara em mim? Não era isto uma loucura? No entanto, se eu achava tão profundo encanto em pensar nele, se guardava esses pensamentos só para mim e não importunava ninguém com eles, onde estava o mal?, perguntava a mim mesma. tal raciocínio impedia-me de fazer o esforço suficiente para sacudir os meus grilhões. Mas se estes pensamentos traziam prazer, era um prazer doloroso e agitado, demasiado aparentado com a angústia, e que me causava maior dano porque dele me apercebia. Era uma fraqueza que qualquer pessoa de maior sensatez ou maior experiência não teria permitido a si mesma. E, no entanto, que tristeza volver os meus olhos da contemplação de um tão brilhante objectivo e forçá-los a demorarem-se no espectáculo cinzento e desolado que me rodeava, uma sensação sem alegria, sem esperança e solitária que se estendia diante de min. Não estava certo sentir-me tão infeliz, tão desanimada, devia fazer de Deus um amigo e da Sua vontade o prazer e o objectivo da minha vida; mas a fé era fraca e a paixão forte demais. Nesses tempos de infortúnio tinha outras duas causas de preocupação. A primeira pode parecer uma ninharia, mas custou-ne muitas lágrimas: Snap, o meu companheiro de focinho peludo de [138) olhar vivo e coração terno, a única coisa que eu podia amar, foi-me tirado e entregue aos cuidados do guarda- florestal, um homem notoriamente conhecido pelo brutal tratamento que dava aos seus escravos caninos. A outra era muito mais séria: as cartas que me enviavam de casa davam a entender que a saúde de meu pai piorara. Os prognósticos não eram assustadores, mas eu sentia cada vez-mais receio e desânimo e não podia deixar de temer que uma terrível calamidade nos esperasse. Parecia ver as nuvens negras a acumularem-se em volta das colinas da minha terra natal e ouvir o sussurro colérico de uma tempestade prestes a eclodir com violência e a devastar o nosso lar.[ 139) XVIII ALEGRIAS E TRISTEZAS Chegou por fim o dia 1 de Junho, e Rosalie Murray transformou-se em Lady Ashby. Estava extremamente bela no seu vestido de noivado. Logo que voltou da igreja, depois da cerimónia, entrou a correr na sala de estudo, corada de excitação e rindo, um riso misto de alegria e de inconsciente desespero, segundo me queria parecer. - Agora, Miss Grey, sou Lady Ashby! - exclamou. - Está feito, o meu destino está traçado, agora não posso voltar atrás. Vim aqui para receber as suas felicitações e dizer-lhe adeus; e depois, aí vou eu para Paris, Roma, Nápoles, Suíça, Londres... Oh, meu Deus! Tantas coisas que eu vou ver e ouvir antes de voltar de novo para cá. Mas não se esqueça de mim, pois eu não a esquecerei, embora eu não tenha sido lá muito

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boa. Então, porque é que não me felicita? - Não posso felicitá-la - repliquei - até saber se essa mudança foi realmente para melhor. Mas espero sinceramente que sim e desejo-lhe uma verdadeira felicidade e as maiores graças divinas. - Então, adeus. A carruagem está à espera e estão a chamar-me. Beijou-me à pressa e tornou a sair. Mas, de repente, voltou atrás, abraçou-me com maior afecto do que a julgava capaz de demonstrar, e partiu com as lágrimas nos olhos. Pobre rapariga! Eu realmente gostáva dela e perdoei-lhe do fundo do coração todo o mal que me fizera... e também a outros. Tenho a certeza de que nem sabia bem que o fazia: E pedi a Deus que também lhe perdoasse. Durante o resto daquele dia de festiva tristeza fui abandonada aos meus próprios projectos. Sentindo-me confusa demais para estar quieta, vagueei com um livro na mão, durante umas horas, pensando mais do que lendo, pois tinha muito que pensar. À tarde, utilizei a minha liberdade [ 140] para voltar a visitar a minha velha amiga Nancy, desculpar-

-me de tão longa ausência (que parecera revelar desinteresse e pouca amizade), dizer-lhe quão ocupada eu estivera, e para conversar, ler ou trabalhar com ela, enfim, o que fosse preciso, e também, é claro, paralhe contar as novidades daquele dia tão importante, e talvez paraobter em troca qualquer pequena informação sobre a partida prevista de Mr Weston. Mas a respeito disto ela nada sabia, e esperava, tal como eu, que fosse uma notícia falsa. Ficou muito satisfeita por me ver, mas, felizmente, os olhos estavam então quase bons, de modo Que já não necessitava dos meus serviços. Mostrou-se profundamente interessada no casamento, mas enquanto a distraía com os vários pormenores desse dia festivo, da sumptuosidade da recepção e da própria noiva, por vezes suspirava e abanava a cabeça, desejando que dali pudesse virqualquer coisa de bom. Parecia, tal como eu, considerá-lo mais como um motivo de pesar do que de alegria. Fiquei bastante tempo a conversar com ela sobre esta e outras coisas... mas ninguém apareceu.Deverei confessar que olhei algumas vezes parà a porta com o desejo meio esperançoso de a ver abrir-se e dar entrada a Mr Weston, como já acontecera antes? E que, ao voltar pelos campos, parei por vezes para olhar em volta e caminhei mais

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devagar do que era necessário- embora a tarde estivesse agradável, pois não faria muito calor - eque, por fim, experimentei uma sensação de vazio e de desapontamento por ter chegado a casa sem encontrar, nem mesmo vislumbrar, alguém, excepto alguns trabalhadores que voltavam do seu trabalho?Contudo, aproximava-se o domingo. E então vê-lo-ia, porque agora, que Miss Murray se fora embora, eu podia voltar ao meu cantinho outra vez. Vê-lo-ia, e pelo olhar, pela sua maneira de falar e pelos seusmodos, poderia avaliar se o casamento de Rosalie o teria afectado muito. Felizmente, pude observar que não havia sombra de diferença: oseu aspecto era o mesmo que dois meses atrás: a voz, o olhar, os modos, nada sofrera alteração. Havia a mesma honestidade ardente e límpida no seu sermão, a mesma pureza convincente no seu estilo, a mesma sincera simplicidade em tudo o que dizia e fazia; que ficavagravado não só nos olhos e nos ouvidos, mas também nos corações detodos aqueles que assistiam ao serviço.Segui a pé para casa com Miss Matilda, mas ele não se juntou anós. Matilda sentia-se triste pela falta de distracções e pesarosa pornão ter companhia: os irmãos estavam na escola, a irmã casada e fora, e ela era nova demais para ser apresentada na sociedade, pelo que, [141) seguindo o exemplo de Rosalie, estava a começar a adquirir um gosto especial pela companhia de uma certa classe de homens. Naquela época monótona do ano não se podia caçar, fosse de que maneira fosse. E embora não tomasse parte nessas caçadas, já era qualquer coisa ver o pai ou o couteiro sair com os cães e falar com eles, quando voltavam, sobre as diversas aves que tinham caçado. Agora também lhe fora interdita a companhia do cocheiro, dos moços de estrebaria, dos cavalos, dos galgos e dos pointers, pois, tendo a mãe, apesar das desvantagens de uma vida de província, dado um destino satisfatório à filha mais velha, o orgulho do seu coração começara seriamente a voltar a sua atenção para a mais nova. Verdadeiramente alarmada com a rudeza das suas maneiras, e pensando que era já mais que tempo de operar uma reforma, decidira; por fim, exercer a sua autoridade no sentido de proibir Matilda de frequentar os pátios, as cavalariças, os canis e as cocheiras. É claro que não fora obedecida sem restrições, mas depois de ter sido indulgente" como fora até ali, uma vez que se decidira, o seu génio não era tão brando como desejava que fosse o das preceptoras e a sua vontade não devia ser contrariada impunemente. Depois de várias cenas e altercações entre mãe

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e filha, muitas vezes tão violentas que eu me envergonhava de presenciar, e para as quais a autoridade do pai era frequentemente chamada para confirmar com imprecações e ameaças as pouco significativas proibições da mãe - pois até ele podia ver que "Tilly, embora ti vesse dado um bom rapaz, não era precisamente o que uma menina devia ser" -, Matilda finalmente achou que era melhor manter-se afastada dos sítios proibidos, a não ser que pudesse, de vez em quando, fazer-lhes uma visita às escondidas sem o conhecimento da mãe. No meio de tudo isto, não imaginem que eu escapei sem levar muitas reprimendas e muitas censuras veladas, que não perdiam nada da sua mordacidade pelo facto de não serem feitas abertamente, mas que feriam mais fundo porque, por essa mesma razão, impossibilitavam a minha defesa. Com frequência me diziam para distrair Miss Matilda com outras coisas e lembrar-lhe as ordens e as proibições da mãe. Eu fazia o que estava ao meu alcance, mas não a podia distrair contra a sua vontade e fora das suas predilecções; além de lhas lembrar, também a admoestava amistosamente, mas não conseguia nada. - Minha cara Miss Grey! É muito estranho! Suponho que o não pode evitar, não está na sua natureza... mas admiro-me como não é capaz de ganhar a confiança dessa menina e tornar a sua companhia pelo menos tão agradável para ela como a do Robert ou a do Joseph. [142] - Eles sabem falar melhor daquelas coisas que mais lhe interessam - replicava.- Bom! Isso é uma confissão muito estranha, vinda de uma preceptora! Pergunto a mim mesma que é que há-de formar os gostos deuma jovem se a preceptora o não faz? Conheci preceptoras que seidentificavam de tal modo com a reputação das suas jovens discípulas, pela elegância e correcção de pensamento e maneiras, que corariam se lhes tivessem de dizer qualquer coisa; e ouvir a mais pequena acusação feita às suas pupilas era pior do que serem elas próprias censuradas... e, por minha parte, acho isso muito natural.- Acha, minha senhora?- Pois com certeza. O progresso e a elegância de uma jovem têm mais importância para a preceptora do que para a própria, assim como para as outras pessoas. Se ela desejar progredir na sua carreira, tem dededicar todas as suas energias ao trabalho. Todas as suas ideias e todaa sua ambição devem tender para realizar esse único objectivo. Quando desejamos avaliar os méritos de uma preceptora, naturalmente queolhamos para as meninas que ela declara ter educado e julgamos de acordo com isso. A preceptora criteriosa conhece este facto.

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Sabe que, enquanto ela própria vive na sombra, as virtudes e os defeitos das suasdiscípulas estão à vista de toda a gente, e que, a menos que se perca devista a si própria na educação delas, não precisa de esperar pelo bomêxito. Como vê, Miss Grey, é tal qual a mesma coisa do que com qualquer outro negócio ou profissão: quem deseja progredir deve dedicar-se de alma e coração àquilo para que foi chamado. Aqueles que secomeçam a entregar à indolência ou à comodidade rapidamente sevêem distanciados dos seus competidores mais sensatos. Há pouca diferença entre uma pessoa que desgraça as suas pupilas por causa dasua negligência e a que as corrompe pélo seu exemplo. Desculpe-me estar com estas insinuações, mas sabe que é para o seu próprio bem. Muitas senhoras lhe falariam com mais dureza. Muitas nem sequer sedariam ao incómodo de falar consigo e, calmamente, procurariam umasubstituta. Isto, é claro, seria o mais fácil, mas eu sei das vantagens de um lugar como este para uma pessoa da sua condição e não penso de modo algum em despedi-la. Tenho a certeza de que procederá bem sepensar nestas coisas e tentar aplicar-se um pouco mais. Estou convencida de que, dentro em pouco, adquirirá a subtileza que lhe falta parainfluenciar convenientemente o espírito da sua discípula.

queria dizer àquela senhora quão ilusórias eram as suas expectativas, [143) mas ela saiu com ar majestoso assim que concluiu o seu discurso: Tendo dito o Que desejava, não fazia parte dos seus planos esperar resposta: era meu dever ouvir, e não falar. Contudo, como já disse, Matilda, por fim, acatou, até certo ponto a autoridade da mãe (pena era que esta se não tivesse manifestado mais cedo). E como se via privada de quase todas as fontes dos seus pares, não havia mais a fazer senão dar longos passeios a cavalo, com o moço de estrebaria, e grandes passeios a pé, com a preceptora, e visitar os aldeões e as quintas que eram propriedade do pai, para matar o tempo a dar à língua com os velhotes e as velhotas que lá viviam. Num desses passeios, tivemos a oportunidade de encontrar Mr Weston. Eis aquilo por que eu tanto suspirara; mas, naquele momento, por instantes, desejei que ele ou eu estivéssemos longe dali. Senti o coração palpitar tão violentamente que temia que fosse visível qualquer sinal exterior dessa emoção.

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Mas penso que ele mal olhou para mim, e depressa me acalmei. Depois de nos ter cumprimentado a ambas, perguntou a Matilda se tinha tido notícias recentes da irmã. - Sim - replicou. - Estava em Paris quando escreveu, e continua bem, muito féliz. Pronunciou esta última palavra com ênfase, deitando-lhe um olhar impertinente e malicioso. Ele pareceu não o notar, mas retorquiu, com igual ênfase e um ar muito sério: - Espero que assim continue. - Acha isso provável? - aventurei-me a perguntar, porque Matilda partira atrás do cão, que estava a perseguir um lebracho. - Não lhe sei dizer - replicou ele. - Sir Thomas pode ser melhor homem do que supomos; mas, por tudo o que ouvi e vi, é uma pena que uma pessoa tão nova, tão alegre e tão interessante, para exprinir muitas coisas numa só palavra, cujo maior, se não o único defeito, parece ser a irreflexão, um defeito, na verdade, de grande importância, visto que torna o seu possuidor vulnerável a quase todos os outros, i expõe a muitas tentações, seja tão mal empregada em semelhante homem. Suponho que era esse o desejo da mãe. - Sim, e o dela própria também, acho eu, porque sempre se riu de todas as minhas tentativas para a dissuadir de dar tal passo. - Tentou-o? Então, ao menos, tem a satisfação de saber que não tem culpa se daí lhe vier algum mal. Quanto a Mistress Murray, sei como pode justificar o seu procedimento. Se tivesse suficiente intimidade com ela, havia de lho perguntar. [ 144) - Parece pouco natural, mas algumas pessoas pensam que aposição social e a riqueza são o principal; e se podem assegurar isso aos filhos, acham que cumpriram o seu dever. - É verdade! Mas não é estranho que pessoas com experiência, que também já se casaram, pensem tão erroneamente?Matilda regressava agora, ofegante, com o corpo dilacerado da pequena lebre na mão. - A sua intenção era matar essa lebre ou salvá-la, Miss Murray?

- perguntou Mr Weston, aparentemente perplexo com o seu ar de júbilo. - Eu pretendia salvá-la - respondeu ela, com toda a sinceridade -, porque é evidente que estamos fora da estação. Mas gostariamais de a ver caçada. No entanto, ambos foram testemunhas de que eu não o pude evitar. O cão estava decidido a apanhá-la, filou-a pelas costas e matou-a num minuto! Não foi uma boa caçada?

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- Muito, para uma menina atrás de um lebracho.Havia um calmo sarcasmo no tom da sua réplica, que foi acusadopor ela. Encolheu os ombros e, voltando-se com um significativo"Ora!", perguntou-me se eu não tinha achado graça àquilo. Repliqueique não via onde estava a graça, mas admiti que não observara a manobra com muita atenção.- Viu como ela se juntou... tal como uma lebre já adulta? E ouviu-a guinchar?- Ainda bem que não.- Chorava como uma criança.- Pobrezinha! E o que vai fazer com ela?- Venha. Vou deixá-la na primeira casa por onde passarmos. Nãoa quero levar para casa, com medo que o papá ralhe comigo por ter deixado que o cão a matasse.Mr Weston fora-se embora e nós prosseguimos o nosso caminho.Mas quando regressámos, depois de ter largado a lebre numa das quintas e recebido em troca um bom bocado de bolo de especiarias e umcopo de vinho, encontrámo-lo já de volta da sua missão. Trazia namão um ramalhete de belas campainhas, que me ofereceu, observando, com um sorriso, que, embora me tivesse visto tão pouco durante os últimos dois meses, não se esquecera que as campainhas se encontravamentre as minhas flores preferidas. Tudo isto fora feito como um simples gesto de simpatia, sem nenhum cumprimento ou cortesia especialou algum olhar que pudesse ser interpretado como "adoração respeitosa [145) e terna" (como diria Rosalie Murray). Mas, no entanto, era agradável de ver que uma coisa tão simples, que eu dissera, fora tão lembrada; e que também apontara tão cuidadosamente o tempo em que quase me não vira. - Disseram-me - observou ele - que a Miss Grey estava um autêntico rato de biblioteca e tão completamente absorvida pelos seus es tudos que tudo o mais lhe não causava prazer. - Sim, é inteiramente verdade! - exclamou Matilda. - Não, Mister Weston, não acredite nisso: é uma perfeita calúnia. Estas meninas são muito amigas de fazer afirmações ao acaso, à custa dos seus amigos, e o senhor deve acautelar-se e não lhes dar ou vidos. - De qualquer maneira, espero que esta afirmação não tenha fundamento. - Porquê? Desaprova, em especial, que as senhoras estudem? - Não; mas desaprovo que qualquer pessoa se entregue de tal modo ao estudo que não dê atenção a tudo o mais. Excepto sob cir cunstâncias especiais, considero um estudo aturado e contínuo com uma perda de tempo e um dano, tanto para a alma como para o corpo.

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- Bom, eu não tenho tempo nem inclinação para tais infracções. Separámo-nos outra vez. Bem! O que há de especial em tudo isto? E porque é que o regis tei? Porque, leitor, foi o bastante para me proporcionar uma tarde alegre, uma noite de agradáveis sonhos e uma manhã de ditosas espe ranças. Um contentamento tonto, sonhos loucos, esperanças infundadas, dirão, e eu não ouso negá-lo, pois dúvidas semelhantes me acudiram com bastante frequência ao pensamento. Mas os nossos de sejos são como mechas, sobre as quais a pederneira e o fuzil das circunstâncias vão a todo o instante despedindo faíscas, que se extinguem imediatamente. Se acontecer caírem sobre a mecha dos nossos desejo, então esta logo se inflama, e a chama de esperança de pronto se ateia: Mas, infelizmente, naquela mesma manhã, a minha bruxuleante chama de esperança foi tristemente extinta por uma carta de minha mãe, que falava de um modo tão grave da doença de meu pai que eu receei haver pouca ou nenhuma possibilidade do seu restabelecimento e, embora as férias estivessem perto, quase temia que elas pudessem chegar tarde demais para o encontrar ainda neste mundo. Dois dias depois, uma carta de Mary contava-me que ele estava desenganado e que o seu fim parecia aproximar-se rapidamente. Então, procurei de [146] imediato obter licença para antecipar as férias e partir sem demora. Mrs Murray olhou-me espantada e admirou-se com a firmeza e ousadia, pouco habituais em mim, com que reforcei o meu pedido, e achou que não havia motivo para tanta urgência; mas, por fim, deu-me licença, declarando, contudo, que "não havia necessidade de estar tão perturbada... pois podia, afinal, verificar-se que não passava de um falso alarme, e mesmo que não fosse... era apenas a ordem natural das coisas; todos nós temos de morrer um dia; e eu não devia convencer-me de que era a única pessoa angustiada neste mundo"; e concluiu, dizendo que eu podia ir no faetonte até O... "E em vez de se lamentar, Miss Grey, deve estar grata pelos privilégios de que goza. Há muitos pobres clérigos cuja família ficaria mergulhada na ruína em consequência da sua mone. Mas a Miss Grey, como vê, tem amigos influentes, prontos a continuar a ampará-la e a demonstrar consideração por si". Agradeci-lhe a sua "consideração" e corri para o meu quarto, fazer alguns preparativos, à pressa, para a partida. Postos o chapéu e o xaile e metidas rapidamente as coisas na minha mala maior, desci. Mas podia ter feito as coisas com mais vagar, porque ninguém mais se apressara, e ainda esperei bastante pelo faetonte. Até que por fim este parou à porta e eu parti. Mas, oh!, que terrível foi essa viagem! Que diferente das outras anteriores! Tendo chegado atrasada para apanhar a última diligência para... vi-me obrigada a alugar um cabriolé para percorrer dez milhas e depois outro carro que me levasse até lá acima, às colinas escarpadas. Passava das dez e meia

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quando cheguei a casa. Não estavam deitados. Tanto minha mãe como minha irmã foram ao meu encontro, no corredor... tristes... silenciosas... pálidas! Fiquei tão sobressaltada e tão paralisada pelo terror que nem podia falar e perguntar aquilo que mais desejava, embora temesse, saber. - Agnes! - disse minha mãe, esforçando-se por reprimir as suas emoções. - Oh, Agnes! - exclamou Mary, desfazendo-se em lágrimas. - Como está ele? - perguntei, ansiosa. - Morreu. Era a resposta que eu já esperava, mas nem por isso o choque foi menos tremendo.[147]A Carta Os restos mortais de meu pai haviam descido ao túmulo; e nós retardávamo-nos à mesa do frugal almoço, tristes, vestidas de escuro, traçando planos para a nossa vida futura. O espírito forte de minha mãe não tinha sucumbido mesmo sob esta dor. A sua alma, embora abalada, não enfraquecera. Era desejo de Mary que eu voltasse para Horton Lodge e que a nossa mãe fosse viver com ela e Mr Richardson, no presbitério. Afirmava que o desejo dele não era menor do que o dela e que essa resolução não podia deixar de beneficiar todos os interessados, porque o convívio e a experiência de minha mãe seriam de inestimável valor para eles, que tudo fariam para que se sentisse feliz. Mas nenhum argumento ou súplica a puderam persuadir. Minha mãe estava determinada a não ir. Não que pusesse em dúvida, nem por um só momento, os desejos e as boas intenções da filha, mas afirmava que enquanto Deus lhe poupasse a saúde e as forças faria uso delas para ganhar o seu sustento e não viver à custa de ninguém, quer a sua dependência fosse sentida como um fardo ou não: Se tivesse condições para residir como hóspede, no presbitério, escolheria aquela casa a cima de qualquer outra para sua morada; mas não estando nessa situação, nunca se albergaria sob aquele tecto, excepto como visita, a menos que a doença ou alguma desgraça tornassem a sua assistência realmente necessária, ou até que a velhice ou a enfermidade a tornassem incapaz de se manter por si só. - Não, Mary - disse ela -, se Richardson e tu puderem fazer qualquer economia, devem pô-la de lado para a vossa família; Agnes e eu ganharemos a nossa vida. Graças a ter tido filhas para educar, não me esqueci de tudo o que aprendi a fazer. Com a ajuda de Deus, hei- de [148) reprimir todas as lamentações inúteis - continuou, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces a despeito dos seus esforços; mas enxugou-as e, abanando resolutamente a cabeça, disse: - Vou pôr-me em acção e procurar uma casa pequena, bem situada, em qualquer paróquia populosa mas saudável, onde

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receberei algumas jovens a quem darei casa e educação - se aparecerem algumas - e a outras externas que surjam ou quantas conseguirmos ensinar. Com certeza que a familia e os antigos amigos do vosso pai poderão arranjar algumas alunas ou ajudar-nos com recomendações. Mas à minha famlia não recorrerei. Que dizes a isto, Agnes? Quererás deixar a tua presente situação e tentar outra? - De boa vontade, mamã, e o dinheiro que poupei dará para mobilar a casa. Vai-se levantar já ao banco.- Quando for preciso. Primeiro, temos de arranjar uma casa e assentar os preliminares. Mary ofereceu-se para emprestar o pouco que possuía, mas minha mãe recusou, alegando que deveríamos principiar por um plano económico, e tinha esperança de que todo ou parte do meu, juntamente com o que poderíamos arranjar com a venda da mobília e o pouco que o nosso querido pai conseguira pôr de parte para ela, depois das dívidas pagas, seria o suficiente para subsistir até ao Natal, quando, como esperava, alguma coisa resultasse do nosso trabalho conjunto. Finalmente, assentámos qual seria o nosso plano e que as investigações e os preparativos deviam começar imediatamente. E enquanto minha mãe se ocupava disto, eu devia voltar para Horton Lodge, no fim das minhas quatro semanas de férias e avisar da minha partida, logo que as coisas estivessem bem encaminhadas para abrir rapidamente a nossa escola. Estávamos a discutir estes assuntos, na manhã que eu atrás mencio nei, cerca de quase quinze dias depois da morte de meu pai, quando uma carta foi entregue a minha mãe, que, ao pegar-lhe, corou intensamente - ela que ultimamente andava bastante pálida devido às noites sem dormir e à sua enorme dor. - É de meu pai! - murmurou ela, enquanto rasgava apressadamente o envelope. Tinham passado muitos anos desde que tivera notícias de qualquer pessoa da sua família. Perguntando a mim mesma, como era natural, o que poderia conter essa carta, observava-lhe o semblante enquanto a lia, e fiquei um tanto surpreendida ao vê-la morder os lábios e franzir o sobrolho como se estivesse zangada. Quando [149] acabou, atirou com ela, irreverentemente, para cima da mesa, dizendo com um sorriso desdenhoso: - O vosso avô foi muito amável em me escrever. Diz que tem a certeza de que eu, há muito tempo, me arrependi do meu "infeliz casamento", e se reconhecer isto e confessar que estava errada ao desprezar os seus conselhos e que já sofri merecidamente por isso, voltará a fazer de mim uma senhora - se isso for possível, depois de tanto aviltamento - e lembrar-se-á das minhas filhas no seu testamento. Vai buscar a minha escrivaninha, Agnes, e tira estas coisas daqui. Vou responder já a esta carta. Mas, primeiro, como posso estar a privá-las a ambas de uma herança, é justo que lhes diga o que tenciono escrever. Direi que está enganado ao supor que eu

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posso lamentar o nascimento das minhas filhas (que têm sido o orgulho da minha vida e que serão igualmente o conforto da minha velhice) ou os trinta anos que passei em companhia do melhor e do mais querido dos amigos, e que, mesmo que os nossos reveses tivessem sido três vezes maiores do que foram, continuaria a alegrar-me por os haver partilhado com o vosso pai e por lhe ter dispensado toda a consolação de que fui capaz. E tivesse o seu sofrimento na doença sido dez vezes mais o que foi, não lamentaria ter cuidado dele e ter trabalhado para o aliviar. Que, se ele tivesse casado com uma mulher mais rica, teria tido os mesmos contratempos e as mesmas provações, e que sou suficientemente egoísta para imaginar Que nenhuma outra mulher lhe teria dado ânimo nessa altura como eu. Não que seja superior às outras, mas fomos feitos um para o outro, e não me posso arrepender das horas, dias e anos de felicidade que passámos juntos, e que nenhum de nós podia ter tido sem o outro, tal como do privilégio de ter sido sua enfermeira na doença e o seu conforto nas aflições. Estará bem assim, minhas filhas? Ou vou dizer-lhe que estamos todas muito arrependidas pelo que aconteceu nestes últimos trinta anos e que as minhas filhas desejariam nunca ter nascido; mas desde o momento que tiveram esse infortúnio ficarão muito gratas com qualquer esmolinha que o avô terá a bondade suficiente de lhes mandar? É claro que aplaudimos a resolução de nossa mãe. Mary levantou a mesa do almoço, eu trouxe a escrivaninha, e a carta foi rapidamente escrita e enviada. E a partir daquele dia, não tivemos mais notícias do nosso avô, até vermos o anúncio da sua morte no jornal, bastante tempo depois... e todos os seus bens deste mundo, é claro, foram deixados aos nossos primos, ricos e desconhecidos.[150] AS DESPEDIDASUma casa em A... , uma praia elegante, foi alugada para o nosso colégio. E a promessa de duas ou três alunas foi assegurada para um começo. Voltei a Honon Lodge, pelos meados de Julho, deixando minha mãe a concluir o arrendamento da casa, a arranjar alunas, a vender a mobília da nossa antiga casa e a compor a nova.Muitas vezes nos compadecemos dos pobres porque não têm tempo disponível para chorar a morte dos seus familiares e a necessidade os obrigar a trabalhar no meio de tão profunda dor. Mas não é o trabalho activo o melhor remédio para a tristeza que nos acabrunha, o antídoto mais eficaz para o desespero? Pode ser uma dura consolação, pode parecer difícil estar assoberbado pelos cuidados da vìda quando não temos satisfação para as suas alegrias; ser incitados a trabalhar quando o coração está prestes a estalar de dor e a alma profundamente agitada anseia por descanso sô para chorar em silêncio; mas não é o trabalho melhor do que tudo o mais que ambicionamos? E não são esses cuidados triviais e penosos menos prejudiciais

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do que um contínuo remoer de um grande desgosto que nos oprime? Além disso, não podemos ter cuidados, inquietações e trabalhos sem esperança - mesmo que seja apenas a esperança de cumprirmos as nossas tristes tarefas, realizar algum projecto necessário ou furtar-se a algum aborrecimento futuro. De qualquer modo, estava satisfeita por ver que minha mãe tinha tanto em que empregar as suas capacidades e a sua actividade. Os nossos bons vizinhos lamentavam que ela, outrora tão rica e de boa posição social, se visse reduzida a tal extremo durante o luto, mas eu estou persuadida de que teria sofrido três vezes mais se vivesse na abundância, com direito a permanecer naquela casa, cenário da sua anterior felicidade e [151) do seu ulterior desgosto e sem necessidades prementes que a impedissem de pensar continuamente e lamentar o seu querido ausente. Não me alongarei sobre o que senti ao deixar a nossa velha casa, o nosso jardim, a igrejinha da aldeia - então duplamente querida, porque meu pai, que durante trinta anos ensinara e orara dentro das suas paredes, jazia agora sob as suas lajes - e as velhas colinas sem vegetação, encantadoras na sua própria desolação, separadas por estreitos vales, ridentes, de bosques verdes e águas cintilantes, a casa onde nascera, cenário a que tudo se associava, o lugar em que, durante a vida; as minhas afeições terrenas se tinham centrado. E deixá-los para não mais voltar! Era verdade que ia regressar a Horton Lodge, onde, no meio de tantos males, ainda restava uma fonte de prazer, mas este prazer misturava-se com a dor, e a minha estada, infelizmente, não iria além de seis semanas. E mesmo assim, os dias iam passando e eu só o voltei a ver na igreja quinze dias depois. Parecia-me imenso esse tempo e, como saía muitas vezes com a estouvada da minha discípula, à esperança que renascia seguia-se o desapontamento. E então, dizia para o meu coração: "Aqui está uma prova convincente, se tiveres o bom senso de o querer ver e a honestidade de o admitir, de que ele se não importa contigo. Se pensasse em ti apenas metade do que tu pensas nele já tinha procurado encontrar-te há mais tempo, como deves saber se consultares os teus próprios sentimentos. Portanto, acabou-se essa tolice. A tua esperança não tem fundamento. Arranca já essas ideias daninhas e esses desejos loucos do teu pensamento e volta aos teus deveres e à tua vida triste e desinteressante, que se estende à tua frente. Já devias saber que tal felicidade não é para ti. " Mas, por fim, vi-o. Apareceu-me, de repente, quando eu ia a atravessar um campo, ao regressar de uma visita a Nancy Brown, que eu tivera oportunidade de fazer enquanto Matilda andava a passear a cavalo na sua bela égua. Ele devia ter ouvido falar da pesada perda que eu sofrera. Não expressou a sua simpatia, não apresentou as suas condolências, e as primeiras palavras que proferiu foram: " Como está sua mãe?" E isto não era de esperar, pois eu nunca lhe dissera que tinha mãe. Devia ter

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sabido desse facto por outras pessoas, se na verdade soubera, mas havia uma sincera e profunda bondade, uma tocante e discreta simpatia na sua voz e nos seus modos, ao fazer aquela pergun ta. Agradeci-lhe com a devida cortesia, e disse-lhe que estava tão bem quanto se poderia esperar. "O que é que ela vai fazer?", foi a pergunta seguinte. Muita gente teria achado que era uma impertinência e daria[152] uma resposta evasiva. Essa ideia nunca me passou pela cabeça, e fiz um breve mas franco relato dos planos e projectos de minha mãe.- Então vai-se embora daqui brevemente? - perguntou.- Sim, dentro de um mês.Calou-se por momentos, como se estivesse a pensar. Quando voltou a falar, esperava que fosse para mostrar o seu interesse pela minha partida; mas apenas disse:- Julgo que deve estar bastante desejosa de se ir embora?- Sim... até certo ponto - repliquei.- Só até certo ponto? Pergunto a mim mesmo o que a faz ter pena. Fiquei um tanto aborrecida com isto, porque ficara embaraçada: eu tinha só uma razão para o lamentar, mas isso era um segredo profundo, com que ele não tinha o direito de me perturbar.- Por que razão - disse eu -, por que razão supõe que eu não gosto deste lugar?- Foi a própria Miss Grey quem mo disse - foi a sua resposta peremptória. - Pelo menos, disse que não podia viver satisfeita sem uma pessoa amiga e que aqui não tinha amigos nem possibilidade de os fazer... e, além disso, eu sei que não deve gostar.- Mas se se lembrar bem, eu disse, ou queria dizer, que não podia viver satisfeita sem uma pessoa amiga neste mundo; não era tão-pouco razoável que a quisesse sempre ao pé de mim. Acho que podia ser feliz numa casa cheia de inimigos, se... - mas não, esta frase não podia ser acabada. Por isso, parei e acrescentei rapidamente: - E, além disso, não se pode deixar sem dificuldade um lugar onde vivemos dois ou três anos sem sentir uma certa pena.- Tem pena de se separar de Miss Murray, a única discípula que lhe resta e sua única companhia?- Acho que sim, até certo ponto. Não foi sem pena que me separei da irmã.- Posso imaginar.- Bom, Miss Matilda é tão boa... ou melhor, de certo modo.- Qual?- É honesta.- E a outra não é?- Eu não diria desonesta, mas devo confessar que é um pouquinho artificial.- Artificial? Eu percebi que ela era leviana e fútil... e agora - acrescentou, depois de uma curta pausa - posso bem acreditar que era também

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[153] artificial; mas tão excessivamente que assumia um aspecto de extrema simplicidade e sinceridade. Sim - continuou, pensativo -, isso explica-me a razão de pequenas coisas que me intrigavam um tanto. Depois disto, conduziu a conversa para assuntos mais gerais. Não me deixou até termos chegado ao portão do parque. Ter-se-ia até desviado um pouco do caminho para me acompanhar, porque, depois voltou para trás e desapareceu na direcção de Moss Lane, por onde já tínhamos passado antes. Seguramente que não lamentei essa circunstância. Se havia pena no meu coração, era por ele se ter ido embora. . , por não estar a passear ao meu lado e porque aquela conversa agradável chegara ao fim. Não murmurara uma palavra de amor, nem insinuara a sua ternura ou afeição. No entanto, eu sentia-me extremamente feliz. Estar perto dele, ouvi-lo falar como ele falava e sentir que ele achava que eu era digna de ele me falar - capaz de compreender e apreciar o seu discorrer - era o suficiente. "Sim, Edward Weston, eu podia na verdade ser feliz numa casa cheia de inimigos, se lá tivesse um só amigo, que me amasse verdadeira, profunda e fielmente, e se esse amigo fosses tu - embora separados - e poucas vezes tivéssemos notícias um do outro, e ainda menos vezes nos encontrássemos - até no meio do trabalho duro, das preocupações e dos desgostos - seria demais para mim sonhar com tamanha felicidade! E, no entanto, quem pode dizer", dizia comigo mesma enquanto atravessava o parque "quem pode dizer o que este mês tragico Vivi quase vinte e três anos, e sofri muito, e ainda poucos prazeres experimentei; será possível que a minha vida, toda ela, seja tão cheia de nuvens?Deus recusar-me-á por completo essas bênçãos que tão generosamente são concedidas a outros, que nem as pedem nem as agradecem quando as recebem? Poderei eu não as esperar nem confiar nelas?" Esperei e confiei durante uns tempos, mas, infelizmente, uma semana se seguia a outra, e, excluindo uma vez que o vi ao longe e dois encontros de passagem - durante os quais nada se disse -, quando eu passeava com Miss Matilda, não o vi mais, excepto, é claro, na igreja. E agora o último domingo aproximava-se, e com ele o último serviço.Estive a pontos de me debulhar em lágrimas durante o sermnão -

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o último que ouvia feito por ele, o melhor que eu já ouvira a qualquer [154) pessoa, tinha a certeza. Acabara, a assembleia começava a sair, e eu ti nha de a seguir. Vira-o e ouvira a sua voz, também provavelmente pela última vez. No adro, Matilda fora agarrada pelas duas Misses Green, que tinham muitas perguntas a fazer sobre a irmã e não sei que mais. E eu só desejava que acabassem, que voltássemos para Horton Lodge, suspirando pelo refúgio do meu quarto ou de algum recanto escondido do jardim, para me poder entregar aos meus sentimentos - carpir o meu último adeus e lamentar as minhas esperanças infundadas e desilusões vãs. Só uma vez, e depois adeus, sonhos inúteis - dali em diante apenas a realidade sem fantasias, dura e triste, deveria ocupar o meu pensamento. Mas enquanto tomava essa resolução, uma voz baixa, a meu lado, dizia: - Julgo que se vai embora esta semana, Miss Grey? - Sim - repliquei. Sobressaltara-me; e se tivesse propensão para a histeria, de certeza que me comprometeria. Mas, graças a Deus, não tinha. - Bom - disse Mr Weston -, queria dizer-lhe adeus... não é provável que a volte a ver antes de se ir embora. - Adeus, Mister Weston - disse eu. Oh, quanto me esforcei por o dizer com toda a calma! Estendi-lhe a mão. Reteve-a na dele por uns segundos. - É possível que nos tornemos a encontrar - disse. - Teria alguma importância para si se nos voltássemos a ver ou não? - Sim, ficaria muito satisfeita por o voltar a ver. Não fui capaz de dizer menos. Ele apertou-me a mão com afabilidade e foi-se embora. Agora, voltara a sentir- me feliz... embora quase a desfazer-me em lágrimas. Se me visse forçada a falar, nesse momento, teria rompido em soluços. Mesmo assim não pude evitar que me viessem as lágrimas aos olhos. Prossegui o caminho com Miss Murray, virando a cara, não fazendo caso das suas observações, até que ela me invectivou, dizendo que parecia surda ou estúpida; então (tendo recobrado a presença de espírito), como alguém que acordasse de repente, levantei a cabeça e perguntei o que ela estava a dizer. [155] XXIA ESCOLA Deixei Horton Lodge e fui juntar- me a minha mãe na nossa nova morada, em A... Achei-a bem de saúde, resignada e até mesmo animada, embora abatida e mais grave de que era seu habitual. Tínhamos apenas três pensionistas e meia-dúzia de alunas externas para começar, mas com as devidas diligências esperávamos dentro em pouco aumentar o número de ambas. Apliquei-me com a necessária energia, de modo a desempenhar bem as obrigações deste novo modo de vida. Chamo-lhe novo, porque, na verdade, havia uma considerável diferença entre trabalhar com a minha mãe, numa escola nossa,

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e trabalhar como assalariada entre gente estranha, desprezada e espezinhada por velhos e novos; durante as primeiras semanas não me senti, de modo algum, infeliz. "É possível que nos tornemos a encontrar" e "Teria alguma importância para si se nos voltássemos a ver ou não?" - estas palavras soavam ainda aos meus ouvidos e permaneciam no meu coração; eram um secreto conforto e um amparo para mim. "Hei-de vê-lo outra vez. Ele há-de vir, ou então escreverá. " Não havia promessa, bela ou extravagante demais, que a esperança me não segredasse ao ouvido. Não acreditava em metade do que ela me dizia, fingia que ria de tudo aquilo, mas estava bastante mais convencida do que eu própria supunha: De outro modo, porque é que o meu coração se sobressaltava quando ouvia bater à porta principal, e a criada vinha dizer a minha mãe que um senhor lhe queria falar? E por que ficava eu de mau-humor, para o resto do dia ao verificar que era um professor de Música que vinha oferecer os seus serviços à nossa escola? E o que é que me fazia suspender a respiração, por momentos, quando, tendo o carteiro trazido[156) algumas cartas, minha mãe dizia: "Olha, Agnes, esta é para ti", e ma entregava? E o que fazia subir-me o sangue ao rosto quando via a letra de um homem? E porquê? Oh! Porquê esse desapontamento que caía sobre mim, frio como gelo, e que tanto me fazia sofrer quando rasgava o envelope e descobria que era apenas uma carta de Mary que, por qualquer razão, o marido enderessara em vez dela? Estaria eu a chegar ao ponto de ficar desapontada ao receber uma carta escrita pela minha própria irmã e não por uma pessoa quase des conhecida? Querida Mary! Escrevera tão afectuosamente pensando que ficaria satisfeita por receber notícias suas, e eu não me achava merecedora nem de a ler! Tinha a sensação, no meio da revolta que surgia dentro de mim, que devia pô-la de lado até que a minha disposição de espírito melhorasse e me tornasse mais merecedora da honra e do privilégio de a ler. Mas minha mãe tinha os olhos postos em mim, desejosa de saber as novidades que continha. Por isso, lia-a e entregava-lha, e depois ia para a aula dar lição às alunas. Mas, no meio das cópias e das contas, nos intervalos da correcção dos erros e das reprimendas por desleixo nos trabalhos, estava interiormente a chamar-me à razão ainda com mais aspereza. "Que louco és!", dizia a minha cabeça para o meu coração, ou o meu eu mais severo para o meu eu mais brando: "Como pudeste imaginar que ele, alguma vez, te iria escrever? Que motivos tens tu para acalentares a esperança de que ele te venha visitar ou dar-se a algum trabalho por tua causa, ou até mesmo pensar em ti?" "Que motivos?", e então a esperança murmurava a nossa última conversa e repetia as palavras que eu tão fielmente entesourara na memória. "Bom, e o que tem isso? Quem é que alguma vez pôde firmar as suas esperanças numa coisa tão frágil? O que é que há nessas palavras que qualquer pessoa

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conhecida não diga a outra? É claro que é possível que se voltem a encontrar: ele também podia dizer o mesmo se tu fosses para a Nova Zelândia; mas isso não significa qualquer intenção de te ver - e depois, quanto à pergunta que se seguiu, qualquer pessoa a poderia fazer. E como respondeste? Apenas com uma réplica estúpida, um lugar-comum, como a que terias dado a Master Murray ou a outro qualquer com quem mantivesses relações corteses. " "Mas, então", insistia a esperança, "a voz e os modos com que falou". "Oh, isso é um disparate! É a sua maneira de falar. E, naquela altura, estavam ali as Green e Miss Matilda Murray, mesmo na sua frente, e outras pessoas a passar, e ele viu-se obrigado a aproximar-se mais de ti e [157) a falar mais baixo, a menos que quisesse que toda a gente ouvisse o que dizia, o que - embora não fosse nada de especial - ele preferia que não acontecesse. " Mas então, aquele aperto de mão tão amigável, que parecia dizer "Confie em mim", e ainda outras coisas, demasiado agradáveis e demasiado lisonjeiras para serem repetidas, mesmo só para mim. "Rematada loucura - absurda demais para ser contestada -, meras invenções da imaginação, de que devias envergonhar-te. Se ao menos tivesse levado em conta o teu exterior pouco atraente, a tua reserva pouco afável, a tua timidez ridícula - que te faz parecer fria, estúpida, desajeitada e talvez também mal- humorada -, se tivesse ao menos levado em conta tudo isto desde o princípio, nunca terias alimentado ideias tão presunçosas; e agora, já que foste tão ridícula, por favor arrepende-te e emenda-te, e não falemos mais nisso!" Não posso dizer que implicitamente obedeci às minhas próprias ordens, mas este raciocínio tornou-se cada vez mais eficaz à medida que o tempo ia passando e nada se sabia de Mr Weston. Até que, por fin, desisti de ter esperança, pois até o meu coração reconhecera que era, tudo inútil. Mas, no entanto, ainda pensava nele. Ainda abrigava a sua imagem no meu coração e guardava como um tesouro cada palavra, cada olhar e cada gesto que a minha memória gravara, e relembrava as suas excelentes qualidades e tudo o que vira, ouvira ou imaginava a seu respeito. - Agnes, parece-me que o ar do mar e a mudança de ambiente não te fizeram bem. Nunca te vi tão triste. Deve ser porque tens uma vida muito sedentária e te preocupas demais com a escola. Tens de aprender a levar as coisas com calma e a ser mais activa e mais alegre. Tens de fazer exercício sempre que puderes e deixares os deveres mais maçadores para mim. Até me servirão para exercitar a paciência e, talvez, para pôr um pouco à prova o meu génio. Foi o que disse minha mãe, uma manhã em que nos sentámos a tra balhar, nas férias da Páscoa. Afiancei-lhe que as minhas ocupações não eram de modo algum fatigantes, que me sentia bem, apenas ainda pouco adaptada, mas que isso desapareceria quando os penosos meses da Primavera tivessem

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passado. E quando o Verão chegasse, já me sentiria mais forte e vigorosa como ela me desejava ver, mas interiormente a sua observação sobressaltou-me. Sabia que as minhas forças estavam a diminuir, o apetite a faltar, e sentia-me cada vez mais apática e desanimada. Se, na verdade, ele não fizesse mais caso de mim, e [158)eu o não voltasse a ver... Se me visse impossibilitada de contribuir para a sua felicidade... impossibilitada para sempre de provar as delícias do amor, de ser feliz e fazê-lo feliz... então a vida seria um fardo. Se o Pai do Céu me chamasse, ficaria satisfeita por descansar em paz: Mas não serviria para nada morrer e deixar a minha mãe. Egoísta, filha indigna, que por momentos a esquecera! Não fora ela, de certo modo, confiada a meu cargo? E também o bem-estar das nossas alunas? Iria eu esquivar-me ao trabalho que Deus colocara diante de mim porque não era muito do meu gosto? Não sabia Ele, melhor do que eu, o que devia fazer e onde devia trabalhar? E desejaria eu deixar o Seu serviço antes de terminar a minha tarefa? E esperaria entrar na Sua morada sem ter trabalhado para a merecer? "Não, com a Sua ajuda, erguerme-ei e dedicar- me-ei com solicitude ao dever que me foi apontado. Se a felicidade neste mundo não é para mim, esforçar-me-ei por espalhá-la por todos os que me rodeiam, e a minha recompensa virá no futuro. " Isto foi o que eu disse, no meu coração; e, a partir dessa hora, só permitia que os meus pensamentos se perdessem em Edward Weston- ou pelo menos a demorarem-se nele, uma vez por outra - como um prazer para ocasiões raras. E, ou porque realmente o Verão se aproximava, ou por efeito de tão boas resoluções, ou pela passagem do tempo, ou por tudo junto, a tranquilidade do espírito depressa foi recuperada, a saúde e o vigor do corpo foram-se restabelecendo, devagar mas com segurança. Nos princípios de Junho recebi uma carta de Miss Murray, agora Lady Ashby. Já me escrevera duas ou três vezes antes, de vários pontos da sua lua-de-mel, sempre com boa disposição, e declarando-se muito feliz. Ficara sempre admirada de ela me não ter esquecido, no meio de tantos divertimentos e de tantos lugares por onde andava. Por fim, contudo, houve uma pausa. Parecia que me esquecera, porque passaram para cima de sete meses sem receber carta alguma. A verdade é que não senti grande desgosto, embora, por vezes, pensasse como é que ela estaria. Quando esta última carta chegou tão inesperadamente, fiquei contente. Era endereçada de Ashby Park, onde por fim se viera estabelecer, tendo antes dividido o seu tempo entre o continente e a metrópole. Pedia muitas desculpas por se ter desleixado e não me ter escrito mais. Assegurava-me de que não se esquecera de mim e que fizera tenção muitas vezes de me escrever, etc. , mas que fora sempre impedida de o fazer por qualquer razão. Admitia que levara uma vida muito desregrada e que eu devia achá- la muito má e estouvada, mas

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[159] que, apesar disso, se lembrava muito de mim, e que gostaria imensamente de me ver. "Já estamos aqui há vários dias", escrevia ela. "Não temos um único amigo connosco e estamos também muito aborrecidos. A Miss Grey sabe que nunca me agradou viver com o meu marido como dois pombos num ninho, mesmo sendo ele a mais encantadora das criaturas; por isso, tenha pena de mim e venha. Creio que as suas férias de Verão começam em Junho, tal como as das outras pessoas, e sendo assim não pode alegar falta de tempo, e tem de vir... De facto, morro se o não fizer. Quero que venha visitar-me como amiga e fique por muito tempo. Não está ninguém cá em casa, como já lhe disse, apenas Sir Thomas e a mãe, Lady Ashby, mas não se importe com isso... Eles não nos perturbarão muito com a sua companhia. E terá uma sala só para si, onde se poderá refugiar sempre que o deseje, e muitos livros para ler quando a minha companhia não for suficientemente divertida. Não me lembro se gosta de bebés; se gosta, pode ter o prazer de ver o meu - a criança mais encantadora do Mundo, sem dúvida; mas o principal é eu não ter de me maçar a tratar dela - aliás, eu já tinha resolvido que não me havia de incomodar com isso. Infelizmente, é uma menina, e Sir Thomas nunca mo perdoou. Se a Miss Grey vier, prometo-lhe que será preceptora dela assim que comece a falar, e a Miss Grey educá-la- á como deve ser e fará dela uma mulher melhor do que a mãe. E também ficará a conhecer o meu cão-d'água; que é lindo, pequenino, e foi trazido de Paris, e dois belos quadros italianos de grande valor - esqueci-me do nome do pintor. Com certeza que irá descobrir belezas prodigiosas neles, que me poderá apontar; pois só os admiro pelo que ouço dizer; e, além disso, muitas curiosidades que eu comprei em Roma e noutros sítios. E, para fimalizar, verá a minha nova casa... uma casa esplêndida e uns jardins que eu costumava cobiçar. Ai! Como o prazer de desejar excede de longe o prazer de possuir! É um bonito pensamento! Afianço-lhe que estou a tornar-me numa senhora muito responsável. Venha por favor, mesmo que seja para testemunhar tão assombrosa mudança. Escreva-me na volta do correio e diga-me quando é que começam as suas férias. Não me desiluda e venha no dia seguinte; ficará até ao fim delas... Tenha compaixão da sua afectuosa Rosalie Ashby" [160) Mostrei esta carta a minha mãe e consultei-a sobre o que havia de fazer. Aconselhou-me a que fosse, e eu fui... bastante desejosa de ver Lady Ashby e também o bebé, e fazer tudo o que pudesse para a ajudar com algum conselho. Imaginava que se devia sentir infeliz; caso contrário não teria recorrido a mim desta maneira. Mas, como se pode compreender, ao aceitar este convite, era maior o sacrifício que faria por ela, pois forçava a minha maneira de ser, que o regozijo que sentia pela honrosa distinção de me ver implorada pela mulher de um baronete para

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que a fosse visitar como amiga. Contudo, resolvi que a minha visita seria apenas de alguns dias, e não posso negar que senti algum consolo ao pensar que Ashby Park não distava muito de Horton, e podia talvez ver Mr Weston ou, pelo menos, ouvir falar dele. [161] XXII A VISITA Ashby era na verdade uma residência extremamente agradável. A mansão era imponente por fora e cómoda e elegante por dentro. O parque era vasto e belo, principalmente por causa das suas magníficas árvores, das suas enormes manadas de veados, da sua extensa lagoa e dos bosques que o rodeavam. Mas o terreno era muito plano, sem qualquer ondulação, que torna maior o encanto de um parque. Era assim o lugar que Rosalie tanto desejara chamar seu, que queria compartilhar, fossem quais fossem os termos em que lhe fosse oferecido, fosse qual fosse o preço a pagar para ser dona dele, e fosse qual fosse o parceiro de tal honra! Bom! Não estou disposta agora a censurá-la. Recebeu-me com muita amabilidade. E embora eu fosse filha de um pobre ministro da Igreja, preceptora e mestra de meninas, deu-me as boas-vindas a sua casa com sincero prazer, e - o que mais me surpreendeu - deu- se ao trabalho de me tornar a visita agradável. Pude ver, isso é verdade, que esperava que eu ficasse extremamente deslumbrada com a grandiosidade que a rodeava; e confesso que fiquei bastante aborrecida com os seus evidentes esforços para me tranquilizar e impedir de ficar esmagada com tanta grandeza, de me sentir demasiado aterrada à ideia de enfrentar o marido e a sogra, ou demasiado envergonhado da minha própria humilde aparência. Mas eu não me sentia nada envergonhada, porque, embora simples, eu tomara o cuidado de não vir pobre e miseravelmente vestida, e tinha-me sentido à vontade se a minha condescendente hospedeira se não tivesse dado a tão manifesto incómodo para me fazer sentir assim. E quanto à grandiosidade que me rodeava, nada daquilo em que eu pousava a vista me deslumbrava ou me afectava metade do que a sua própria transformação. [ 162] Ou por influência do desregramento de costumes da sociedade elegante, ou devido a qualquer outro mal, um espaço de pouco mais de doze meses exercera nela um efeito que seria de esperar só dali a muitos anos, diminuindo-lhe o roliço das formas, a frescura da pele, a vivacidade de movimentos e a exuberância do espírito. O que mais desejava saber era se ela se sentia infeliz, mas achava que não era da minha competência perguntar-lho. Precisava primeiro de ganhar a sua confiança. Mas se ela decidisse ocultar-me os seus desgostos matrimoniais, não a importunaria com perguntas indiscretas. Por isso, de entrada, limitei-me a algumas perguntas de carácter geral sobre a sua saúde, alguns elogios à beleza do parque e à menina que devia

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ter sido um rapaz - uma criança, pequenina e frágil, de sete ou oito semanas de idade, por quem a mãe não parecia demonstrar grande interesse ou afeição especial, embora não menos do que eu esperava. Pouco depois da minha chegada, deu ordem para que a criada me conduzisse ao quarto e visse se tinha quanto queria. Era um pequeno apartamento, despretensioso mas suficientemente confortável. Quando desci - tendo-me desembaraçado das roupas de viagem e arranjado de modo a não ferir os sentimentos da minha hospedeira -, conduziu-me ela própria à sala que eu ocuparia quando quisesse estar sozinha, ou quando ela estivesse com visitas, ou se visse forçada a estar com a sogra, ou qualquer outra coisa que a impedisse, como ela dizia, de gozar o prazer da minha companhia. Era uma saleta sossegada e elegante, e eu não fiquei nada pesarosa por me ser proporcionado tal porto de refúgio. - E um dia destes - disse-me ela - hei-de mostrar- lhe a biblioteca. Nunca examinei bem as prateleiras, mas estou convencida de que estão cheias de bons livros; e pode ir lá buscá-los sempre que quiser. E, agora, vai tomar o seu chá. Dentro em pouco, são horas do jantar, mas eu pensei que, como está habituada a jantar à uma, gostará mais de tomar o chá a esta hora e jantar qùando nós almoçarmos. E, então, pode tomar o chá nesta sala, e isso evitar-lhe-á ter de jantar com Lady Ashby e Sir Thomas, o que seria bastante constrangedor... não é bem constrangedor, mas bastante... sabe o que quero dizer. Pensei que também devia gostar... especialmente quando tivermos visitas a jantar connosco, como às vezes acontece. - Com certeza - disse eu-, prefiro que seja assim como diz. E se não vir inconveniente, preferiria também tomar todas as minhas refeições nesta sala.[163) - Porquê? - Porque imagino que seria mais agradável para Lady Ashby e Sir Thomas. - De modo algum. - De qualquer maneira, seria mais agradável para mim. Depois de mais algumas objecções pouco convincentes, cedeu, e eu pude ver que esta proposta fora para ela um considerável alívio. - Agora venha até ao salão - pediu. - A campainha está a tocar para nos irmos vestir, mas eu não vou ainda; não merece a pena vestirmo-nos melhor quando não há ninguém para nos ver. E eu quero ter uma pequena conversa. O salão era na verdade imponente e muito bem mobilado, mas reparei que a jovem dona de semelhante palácio me olhava de soslaio, ao entrarmos, para observar se eu ficara impressionada pelo espectáculo; e portanto resolvi arvorar um ar de indiferença impassível, como se não estivesse a ver nada de notável. Mas isto não durou mais de uns segundos, porque logo a consciência me segredou: "Para que hei-de eu

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desapontá-la para salvar o meu orgulho? Não... mais vale sacrificar o meu orgulho e dar-lhe uma pequena satisfação. " E sinceramente olhei em volta e disse-lhe que era sumptuoso e mobilado com muito bom gosto. Ela quase não respondeu, mas vi que ficara contente. Mostrou-me o cão-d'água francês, gorducho, que estava enroscado numa almofada de seda, e as duas belas pinturas italianas, que no entanto me não deu tempo para examinar, dizendo que eu as iria ver melhor num outro dia, e insistiu para que admirasse um pequeno relógio precioso que comprara em Genebra; depois, levou- me a dar uma volta pela sala, chamando-me a atenção para diversos objectos de arte que trouxera de Itália: um pequeno relógio de mesa, vários bustos, estatuetas graciosas, jarras, tudo isto belamente esculpido em mármore branco. Falou deles com entusiasmo e ouviu os meus comentários de admiração com um sorriso de prazer. Este, contudo, desvaneceu-se e foi seguido por um suspiro melancólico, como se considerasse insuficientes tais bagatelas para a felicidade do coração humano, e lamentavelmente incapazes de suprir a sua insaciável exigência: Depois, estendendo-se num sofá, indicou-me uma espaçosa poltrona que lhe ficava em frente - não diante da lareira mas de uma janela; toda aberta, pois é preciso que nos lembremos de que era Verão, uma tarde quente da última metade de Junho. Sentei-me, por momentos, em silêncio, gozando o ar puro e calmo e a vista do parque que se estendia[ 164] diante de mim, rico de verdura e folhagem, aquecido pela luz do Sol, já suavizada pelas grandes sombras do declinar do dia. Mas tinha de aproveitar esta pausa, tinha perguntas a fazer e, tal como num post scriptum de uma carta, o mais importante ficaria para o fim. Assim, comecei por perguntar por Mr e Mrs Murray, por Miss Matilda e pelos irmãos. Disse-me que o pai estava com gota, o que o tornava muito imperti nente, mas que não desistia dos vinhos de grande qualidade, dos jantares e ceias abundantes, e discutira com o médico porque este ousara dizer que nenhum remédio o poderia curar enquanto ele cometesse tais excessos; e que a mãe e os outros estavam bem. Matilda continuàva rebelde e irresponsável. Tinha agora uma preceptora muito competente e fizera bastantes progressos nos seus modos e, dentro em pouco, seria apresentada na sociedade. E John e Charles (em casa a passarem as fé rias) eram, segundo se dizia, "uns bons rapazes, descarados, turbulentos e indisciplinados". - E as outras pessoas como vão? - perguntei. - Os Green, por exemplo? - Ah! Mister Green ficou inconsolável - replicou, com um leve sorriso. - Ainda se não conformou da desilusão que teve e acho que nunca se conformará. Está condenado a ficar um solteirão e as irmãs fazem o que podem para se casar. - E os Meltham?

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- Oh! Acho que lá vão andando como de costume; mas pouco sei deles... excepto de Hany - respondeu-me, corando levemente e sorrindo de novo. - Vi-o bastantes vezes quando estivemos em Londres, porque assim que ele soube que lá estávamos, apareceu a pretexto de ir visitar o irmão, e ou me seguia como uma sombra, para todo o lado aonde eu ia, ou me aparecia como uma miragem a cada esquina. Não precisa de ficar tão escandalizada, Miss Grey, asseguro-lhe que fui muito prudente, mas, sabe, não podemos evitar que nos admirem. Coitado! Ele não era o meu único admirador, embora fosse com certeza o mais evidente e, acho eu, o mais dedicado de todos eles. E aquele detestável... hum... e Sir Thomas decidiu ofender- se com ele... ou comos meus gostos extravagantes ou qualquer coisa... não sei exactamente o quê... e quando deu por isso, correu comigo para o campo, onde estou agora a fazer vida de eremita, não sei se para o resto da vida. Mordeu os lábios e olhou com ar vingativo para a bela propriedade que tanto ambicionara chamar sua.[165) - E Mister Hatfield? O que é feito dele? De novo se animou, e respondeu mais alegre: - Oh! Ele fez a corte a uma solteirona de idade madura e casou com ela, não muito depois. Pôs num prato da balança a bolsa dela, bem recheada, e no outro a sua beleza murcha, e teve esperança de encontrar no ouro o que fora negado no amor. Ah! Ah! - Bom, penso que é tudo... falta Mr Weston. O que é feito dele? - Não sei mesmo nada. Foi-se embora de Horton. - Há quanto tempo? E para onde? - Não sei nada dele - replicou ela, bocejando -, excepto que foi há um mês... Nunca perguntei para onde (podia ter perguntado se arranjara um benefício ou se fora apenas para outro curato, mas achei que era melhor não). As pessoas protestaram por ele se ter ido embora- continuou -, com grande desagrado de Mister Hatfield, que não gostava dele por causa do seu muito prestígio entre a gente do povo e porque era um tanto intratável e não muito submisso... e por outras faltas imperdoáveis, não sei quais. Mas agora tenho mesmo de me ir vestir. A campainha deve estar a tocar pela segunda vez e, se eu for jantar assim vestida, Lady Ashby nunca mais se cala. É uma coisa muito estranha uma pessoa não poder ser senhora da sua própria casa! Toque a campainha, para mandar chamar a minha criada e dizer-lhe que lhe tragam o chá. Pense só que essa mulher intolerável... - Quem? A sua criada? - Não, a minha sogra... e o meu desgraçado erro! Em vez de a ter deixado sair e ir viver para outra casa, como ela propôs fazer quando eu casei, fui suficientemente louca para lhe pedir que continuasse a viver aqui e a dirigir a casa por mim. Em

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primeiro lugar, porque eu tinha esperança que nós passássemos a maior parte do ano na cidade e em segundo, sendo tão nova e inexperiente, assustava-me a ideia de ter uma casa cheia de criados para dirigir, e jantares para decidir, e festas para organizar, e tudo o mais, e eu julgava que ela me ajudaria com a sua experiência, nunca pensando que se mostraria uma usurpadora, uma tirana, um pesadelo, uma espia e tudo o mais que for detestável. Quem me dera que morresse! A seguir, voltou-se para dar as suas ordens ao criado, que estivera muito empertigado à porta, naquele último meio minuto, e ouvira parte das suas críticas. Era evidente que devia fazer as suas próprias considerações sobre o que escutara, não alterando a sua compostura inflexível e rígida, que achava seu dever manter enquanto estivesse na sala.[ 166) À minha observação, feita mais tarde, de que ele a devia ter ouvido, ela replicou: - Oh, não faz mal! Eu nunca ligo aos criados, que são meros autómatos que não têm nada com o que os seus superiores dizem ou fazem, nem se atrevem a repeti-lo. E quanto ao que eles pensam, se é que têm a pretensão que pensam, é claro que ninguém liga importância a isso. Havia de ser bom, na verdade, se tivéssemos de estar de boca fechada em frente dos nossos criados! Dizendo isto, saiu a correr para se ir arranjar à pressa, deixando- me a procurar o caminho de volta para a minha saleta, onde, na devida altura, me seria servida uma chávena de chá. Depois disto, sentei-me, cismando na situação passada e presente de Lady Ashby, nas poucas informações que tinha obtido sobre Mr Weston e nas poucas probabilidades que iria ter de ver ou ouvir qualquer coisa mais, durante a minha vida calma e pardacenta, que dali por diante parecia não oferecer alternativa entre dias francamente chuvosos e dias forrados de nuvens cinzentas sem aguaceiros. Por fim, contudo, comecei a cansar-me dos meus pensamentos, e desejei saber onde encontrar a tal biblioteca de que a minha hospedeira falara, perguntando a mim mesma se continuaria ali sem fazer nada até à hora de me ir deitar. E como eu não era suficientemente rica para possuir um relógio, não saberia dizer quanto tempo se passou, excepto pela observação das sombras que se iam alongando e que se viam pela janela, de onde se avistava um canto do parque, um maciço de árvores, cujos ramos su periores tinham sido colonizados por um numeroso bando de gralhas barulhentas, e um muro alto com um sólido portão de madeira, que sem dúvida comunicava com o pátio das cavalariças, pois uma enorme carruagem passou por ele, vinda do parque. A sombra deste muro apossou-se de todo o espaço, tanto quanto eu podia ver, forçando a luz dourada do Sol a retirar-se, polegada a polegada, e por fim a refugiar-se mesmo no topo das árvores. Mas não tardou muito até que estas fossem deixadas na sombra - a sombra das colinas

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distantes ou da própria terra; e, por simpatia com os atarefados habitantes da colónia das gralhas, lamentei ver a sua habitação, havia pouco banhada pela luz gloriosa, reduzida à sombra, à rotineira cor do mundo cá de baixo ou do mundo dentro de mim. Por momentos, aquelas aves, voando acima de tudo o mais, puderam ainda conservar na plumagem negra das suas asas um fulgor vermelho, profundo e dourado. Por fim, também isto desapareceu. O crepúsculo surgiu furtivamente, as gralhas aquietaram-se[167] e apoderou-se de mim um cansaço que me fez desejar voltar para casa no dia seguinte. Finalmente escureceu e, quando pensava tocar a campainha para pedir uma vela e me ir deitar, Rosalie apareceu, com muitas desculpas por me ter abandonado tanto tempo, atirando toda a culpa para aquela "velha detestável", como ela chamava à sogra. - Se eu não estiver com ela na sala enquanto Sir Thomas ainda se demora a beber um copo de vinho - disse -, ela nunca me perdoará. E então se eu saio da sala assim que ele entra, como já fiz uma ou duas vezes, é uma ofensa imperdoável para com o seu querido Thomas. Ela nunca fez tal desconsideração ao marido; e quanto a afeição, acha que as esposas nos dias que vão correndo nunca pensam nisso, mas as coisas eram diferentes no seu tempo - como se fosse uma coisa agradável estar para ali na sala, quando ele nada faz senão resmungar e ralhar quando está mal- humorado, dizer disparates horríveis quando está bem- disposto e adormecer no sofá quando está embrutecido demais para fazer outra coisa; o que acontece agora com mais frequência, pois não tem mais que fazer do que bebericar vinho. - Mas não pode tentar ocupar o espírito dele com qualquer coisa melhor? E empenhar-se em que ele deixe esse vício? Tenho a certeza de que tem poder para persuadir e habilidade para distrair um marido, poderes esses que muitas senhoras ficariam satisfeitas por possuir. - E acha que eu estou disposta a dar-me ao trabalho de o distrair? Não. Isso não é a ideia que eu faço de uma esposa. Está da parte do marido agradar à mulher, e não ela a ele, e se não está satisfeito com ela tal como ela é - e agradecido também por a ter desposado - não é digno dela, e mais nada. E quanto a persuadi-lo, asseguro-lhe que não me vou incomodar com isso. Já é suficiente aturá-lo a ele tal como é, sem procurar fazer reformas. Mas desculpe tê-la deixado tanto tempo sozinha, Miss Grey. O que é que esteve a fazer? - Principalmente, a observar as gralhas. - Santo Deus! Que aborrecido que devia ter sido! Realmente, tenho de lhe mostrar a biblioteca. E pode tocar a campainha e pedir tudo o que quiser, tal como se estivesse num hotel, e sentir-se à vontade. Eu tenho razões egoístas em querer fazê-la feliz, porque desejo que fique aqui comigo, e que não leve a cabo a sua horrível ameaça de se ir embora a

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correr daqui a um ou dois dias. - Bom, não me faça retê-la fora da sala mais tempo, esta noite, porque estou cansada e quero ir meter- me na cama. [168) XXIIIO PaRQUE Na manhã seguinte, vim para baixo um pouco antes das oito, como percebi ao ouvir bater um relógio ao longe. Não havia vestígios de almoço. Esperei mais de uma hora até que ele aparecesse, desejando ainda em vão ter acesso à biblioteca. E depois que aquela refeição solitária se concluiu, esperei outra vez cerca de hora e meia, indecisa e embaraçada, sem saber o que fazer. Por fim, Lady Ashby apareceu para me dar os bons-dias. Informou-me de que tinha acabado de almoçar e que queria dar um passeio matinal comigo pelo parque. Perguntou-me há quanto tempo me levantara. Ao ouvir a minha resposta, expressou o seu mais profundo pesar e de novo me prometeu mostrar a biblioteca. Sugeri-lhe que seria melhor fazê-lo de imediato e não mais se preocupar com isso. Ela aprovou, com a condição de, naquela altura, não pensar em ir ler ou maçá-la com os livros, porque queria mostrar-me os jardins e o parque antes que fizesse calor demais para os podermos gozar, o que na verdade estava quase a acontecer. É claro que eu concordei, e assim iniciámos o nosso passeio. Enquanto percorríamos o parque, conversando sobre o que a minha companheira vira e ouvira durante a sua viagem, cruzou connosco um cavaleiro. Quando, ao passar, se voltou e encarou comigo, tive oportu nidade de o observar bem. Era alto, magro e envelhecido, de costas um pouco curvadas, pálido e cheio de manchas avermelhadas em redor das pálpebras, feio e com ar doentio e embrutecido, acentuado pela expressão sinistra da boca e do olhar mortiço e desumano. - Detesto aquele homem! - segredou-me Lady Ashby, com amargura, enquanto ele se afastava vagarosamente.[169] - Quem é? - perguntei, custando-me a crer que ela estaria a falar do marido. - Sir Thomas Ashby - replicou, com calma tristeza. - E detesta-o, Miss Murray? - perguntei. Sentia-me por demais escandalizada para me lembrar, naquele momento, do seu nome. - Com certeza, Miss Grey, e também o desprezo. Se o conhecesse bem, não me iria censurar por isso. - Mas sabia o que ele era antes do casamento. - Não, eu apenas supunha, e nem sabia metade do que ele realmente é. Sei que a Miss Grey me avisou, e quem me dera ter-lhe dado ouvidos. Mas agora já é tarde demais para o lamentar. E, além disso, a mamã devia saber muito melhor do que nós, e nunca me disse qualquer coisa contra ele... muito pelo contrário. E eu, nessa altura, pensava que ele me adorava e que me deixaria fazer o que me apetecesse. A princípio, ainda

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fez de conta, mas agora não quer saber de mim para nada. Contudo, eu não me importaria que ele fizesse o que lhe apetecesse, se eu pudesse ser livre para me divertir e viver em Londres, ou ter alguns amigos aqui. Mas ele faz o que quer, e eu tenho de ser uma prisioneira ou uma escrava. Desde o momento que viu que me podia divertir sem ele, e que outros reconheciam o meu valor melhor do que ele, aquele miserável egoísta começou a acusar-me de coquetismo e extravagância e a insultar Hany Meltham, de quem não é digno de limpar os sapatos. E então exigiu que eu viesse para o campo, para levar vida de freira, com medo de que eu o desonrasse ou o levasse à ruína. Como se ele não fizesse dez vezes pior, todos os dias, com as apostas, o jogo e as bailarinas da ópera, e a Lady Isto e Mrs Aquilo. Sim, e as garrafas de vinho, e os copos de aguardente também! Oh, eu daria dez mil mundos para voltar a ser Miss Murray! É muito mau sentir a vida, a saúde e a beleza desperdiçadas, não reconhecidas nem apreciadas por um bruto daqueles! - exclamou, desfazendo- se positivamente em lágrimas, por tão dolorosa afronta. É claro que eu sentia muita pena dela, tanto pela sua ideia errada de felicidade e pelo pouco caso que fazia dos seus deveres, como por tão desprezível parceiro ao qual o seu destino se ligara. Disse aquilo que pude para a consolar e dei-lhe tantos conselhos quantos pensei que ela necessitasse. Tentei persuadi- la a que, primeiro, o chamasse à razão com boas maneiras, bondade e bons exemplos e procurasse torná-lo melhor; depois, quando tivesse feito tudo quanto estava ao seu alcance, se verificasse que era incorrigível, se esforçasse por se abstrair [ 170] dele, revestindo-se da sua própria integridade, e se preocupasse tão pouco com ele quanto possível. Exortei-a a procurar consolação no cumprimento do seu dever para com Deus e para com os homens, pôr toda a sua confiança no Céu e confortar-se cuidando e educando a sua filhinha. Assegurei-lhe que seria amplamente recompensada ao assistir aos seus progressos em força e sabedoria, e recebendo em troca a sua sincera afeição. - Mas eu não posso dedicar-me exclusivamente a uma criançadisse ela. - Pode morrer... o que não é nada improvável. - Mas, com muitos cuidados, muitas crianças franzinas transfor maram-se em homens e mulheres fortes. - Mas pode crescer e vir a ser tão intolerável quanto o pai, e eu acabaria por detestá-la. - Não é provável. É uma menina e assemelha-se muito à mãe. - Não importa, eu gostava mais que fosse um rapaz... mas o pai não lhe irá deixar qualquer herança, pois possivelmente esbanjará tudo. E que prazer tenho eu em ver uma menina a crescer e a eclipsar-me, gozando aqueles prazeres de que eu para sempre me vi privada? Mas supondo que eu seria tão generosa que

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sentisse prazer nisso, ela é apenas ainda uma criança e eu não posso centrar todas as minhas esperanças numa criança. É pouco melhor do que uma pessoa se dedicar a um cão. E quanto à sensatez e à bondade que a Miss Grey tem estado a tentar instilar em mim, eu diria que está tudo muito certo e correcto, e se eu fosse vinte anos mais velha podia dar alguns frutos. Mas as pessoas têm de se divertir enquanto são novas, e se os outros as não deixam... têm de os detestar em consequência disso. - A melhor maneira de sentir prazer é fazer o que está certo e não detestar ninguém. O objectivo da religião não é ensinar-nos como morrer, mas como viver. E quanto mais cedo se tornar sensata e boa, mais felicidade assegurará. E agora, Lady Ashby, só tenho mais um conselho a dar-lhe: não faça da sua sogra uma inimiga. Não entre pelo caminho de a manter à distância e olhar para ela com ciúme e desconfiança. Eu nunca a vi, mas tenho ouvido dizer dela igualmente bem e mal, e imagino que, embora os seus modos sejam frios e altivos e seja muito exigente, sente grande afeição por aqueles que lhe são mais chegados e, ainda que cegamente amiga do filho, não é destituída de bons princípios ou incapaz de dar ouvidos à razão. Se Lady Ashby puder conquistar um pouquinho da sua amizade e[171] adoptar um procedimento franco e amigável... e até mesmo confiar-lhe as suas razões de queixa... as razões de queixa reais, de que tem o direito de se lamentar... tenha a firme convicção de que ela, dentro em pouco, será uma amiga dedicada e um conforto e uma ajuda, em vez de um pesadelo, como a descreve. Mas duvido que o meu conselho tivesse produzido algum efeito em tão infeliz senhora. E vendo que nada podia fazer, a minha presença em Ashby Park ainda se tornou mais penosa. Mas mesmo assim, tive de continuar ali, naquele dia e no seguinte, como tinha prometido. Resistindo a todas as súplicas e pretextos para prolongar por mais tempo a minha visita, insisti em partir, na manhã do outro dia, asseverando que minha mãe estaria muito só sem mim e que esperava impaciente o meu regresso. Não obstante, foi com um peso no coração que disse adeus à pobre Lady Ashby e a deixei na sua principesca residência. Era uma prova evidente da sua infelicidade o facto de se agarrar tanto ao consolo da minha presença e de desejar tão sinceramente a companhia de alguém cujos gostos e ideias, de um modo geral, estavam tão pouco conformes com os seus, a quem esquecera completamente nas horas de ventura, e cuja presença seria mais um incómodo do que um prazer se ela pudesse ter metade daquilo que realmente desejava. [172) XXIVA PRAIA A nossa escola não estava situada no centro da cidade. À

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entrada de A... vindo de noroeste, há uma fila de casas de aspecto respeitável, de um e outro lado da estrada, com pequenos canteiros ajardinados, janelas com persianas e uma série de degraus conduzindo a cada uma das portas, todas elas ornadas com puxadores de bronze. Numa dessas casas maiores morávamos, minha mãe e eu, com as jovens que os nossos amigos e outras pessoas haviam entregue à nossa responsabilidade. Por conseguinte, encontrávamo-nos a uma considerável distância do mar e separadas dele por um labirinto de ruas e casas. Mas o mar era o meu encanto. Muitas vezes atravessava com prazer toda a cidade para ter a alegria de passear à sua beira, ou com as alunas ou sozinha com minha mãe, durante as férias. Encantava-me a todas as horas e em todas as estações, mas principalmente quando a brisa do mar soprava como louca ou na frescura agradável das manhãs de Verão. Três dias depois do meu regresso de Ashby Park acordei muito cedo. O Sol brilhava através da cortina e pensei quão agradável seria atravessar a pacatez da cidade e dar um passeio solitário pelo areal enquanto quase toda a gente dormnia. Não levei muito tempo a tomar essa resolução e ainda menos a pô-la em prática. Não querendo incomodar minha mãe, desci a escada pé ante pé e, sem fazer barulho, destranquei a porta. Quando o relógio da igreja bateu um quarto para as seis já eu me encontrava vestida e cá fora. Havia uma sensação de frescura e vigor até nas próprias ruas, e quando deixei a cidade, quando os meus pés pisaram o areal e os meus olhos se espraiaram pela baía, ampla e luminosa, não havia palavras que descrevessem o azul profundo e[173] límpido do céu e do mar, o brilho do Sol matutino sobre a barreira se micircular dos rochedos escarpados, dominados por verdes colinas, tendo a seus pés o areal imenso e as rochas baixas, revestidas de algas e saindo do mar como pequenas ilhas arrelvadas, e sobretudo o esplendor e a cintilação das ondas. E ainda a inefável pureza e frescura do ar! O calor era já o bastante para fazer ressaltar o agradável da brisa, e vento suficiente para que o mar em movimento fizesse com que as ondas se arrojassem à praia, envoltas em espuma cintilante, em alegre brincadeira. Nada mais bulia, nem mais nenhum ser vivente ali se via além de mim. Os meus passos eram os primeiros a marcar o areal, firme e inviolado. Nada o pisara desde que o fluxo da maré da noite lhe apagara as marcas mais profundas do dia anterior e a deixara lisa e uniforme, excepto nos sítios onde a água se atardara em minúsculas piscinas e pequeninos arroios. Fresca, deliciada e mais vigorosa, caminhei, esquecendo tudo o que me preocupava, sentindo-me com asas nos pés e capaz de andar pelo menos quarenta milhas sem fadiga, e com uma sensação de alegria que me era absolutamente estranha desde os dias da minha meninice. Cerca das seis e meia, contudo, os moços começaram a vir passear os cavalos dos patrões - primeiro um, depois outro, até que já eram perto de uma dúzia de cavalos

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e cinco ou seis cavaleiros. Isso, porém, não me incomodava, porque eles não passariam além das rochas mais baixas para onde eu me dirigia agora. Quando lá cheguei, caminhando por cima das algas húmidas e escorregadias (com risco de cair numa das inúmeras poças de água límpida e salgada que havia entre elas), até um pequeno promontório coberto de musgo que o mar salpicava, olhei de novo para trás para ver o movimento. Ainda ali estavam apenas os moços de estrebaria com os cavalos, um homem com um cãozinho escuro, de pêlo manchado, que corria à sua frente, e um carro que vinha da cidade para levar água para banhos. Dali a um minuto ou dois seria a vez de as barracas de rodas começarem a mover-se e de os senhores mais velhos, de hábitos rotineiros, e das puritanas senhoras Quaker virem dar o seu salutar passeio matinal. Mas por muito interessante que essa cena fosse, eu não podia ficar para a presenciar, porque o Sol e o mar me ofuscavam a vista naquela direcção, de tal modo que nem para lá podia olhar. Por isso, voltei-me para gozar a vista e o som do mar arremetendo contra o meu promontório, mas sem excessiva força, pois a ondulação quebrava-se no emaranhado das algas e nas rochas por elas encobertas; de outra forma, eu ficaria dentro em pouco[ 174] submersa pela espuma. Mas a maré estava a encher. A água subia, golfos e charcos iam-se enchendo, os espaços entre as rochas alargavam-se e era tempo de procurar um piso mais seguro. Assim, caminhando e saltando com dificuldade, voltei ao areal macio, resolvida a proceder a uma arrojada excursão até aos rochedos e depois voltar. Nessa altura, ouvi uma fungadela atrás de mim, e depois um cão veio, saltando, direito a meus pés. Era o meu Snap... o meu querido terrier pêlo-de-arame! Quando o chamei pelo nome, deu um salto para me lamber a cara e ladrou de alegria. Quase tão feliz como ele, agarrei-o e dei-lhe vários beijos. Mas como teria ele aparecido ali? Não podia ter caído do céu, nem ter feito todo aquele caminho a pé. Devia ter sido o dono, o guarda- florestal, ou qualquer outra pessoa que o trouxera. Então, procurando refrear as minhas manifestações de alegria e as dele também, olhei em volta e dei de caras com... Mr Weston. - O seu cão reconheceu-a muito bem, Miss Grey - disse, apertando-me calorosamente a mão que eu lhe estendera, não sabendo muito bem o que fazia. - Levanta- se cedo. - Nem sempre tão cedo como hoje - repliquei, com espantosa tranquilidade, dadas as circunstâncias. - Até onde é que faz tenção de dar o seu passeio? - Estava a pensar em recolher a casa... acho que já devem ser quase horas. Ele olhou para o relógio, que agora já era de ouro, e disse-me que só passavam cinco minutos das sete. - Mas, naturalmente, já deu um grande passeio - disse, virando-se para a cidade, para a qual eu me dirigia devagar,

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e acompanhando-me. - Em que parte da cidade vive? - perguntou. - Ainda não fui capaz de a descobrir. Não tinha sido capaz de me descobrir? Tinha procurado fazê-lo, então? Disse-lhe onde ficava a nossa casa. Perguntou se tudo corria bem. Disse-lhe que sim... que tínhamos tido um considerável aumento de alunas, depois das férias do Natal, e esperávamos ainda um maior número depois destas. - A Miss Grey deve ser uma excelente professora - observou. - Não, a minha mãe é que é - repliquei. - Ela organiza tudo muito bem e é muito activa, inteligente e bondosa.[175] - Gostava de a conhecer. Apresenta- ma, numa destas tardes, se eu a for visitar? - Com certeza, de muito boa vontade. - E concede-me o privilégio, devido a um amigo já de longa data, de a ir visitar de vez em Quando? - Sim, se... acho que sim. Era uma resposta evasiva, mas a verdade é que eu considerava não ter o direito de convidar uma pessoa para casa de minha mãe sem o seu conhecimento; e se tivesse dito: "Sim, se a minha mãe não se opuser", pareceria que, pela sua pergunta, eu tinha subentendido mais do que seria de esperar. Por isso, supondo que ela não se importaria, acrescentei: "Acho que sim. " Mas é claro que eu teria dito qualquer coisa mais sensata e mais delicada se tivesse mais presença de espírito. Por momentos, continuámos o nosso caminho em silêncio, que, contudo, foi quebrado (com grande alívio meu) por Mr Weston, que comentava o esplendor daquela manhã, a beleza da baía e, depois, as vantagens que A... possuía sobre muitos outros locais elegantes de veraneio. - Não me perguntou o que me trouxe a A... Não supõe com certeza que sou suficientemente rico para ter vindo só para me distrair. - Ouvi dizer que deixou Horton. - E não ouviu dizer, então, que arranjei um benefício em F... ? F... era uma aldeia que distava de A... duas milhas. - Não - respondi-lhe. - Nós vivemos tão fora do mundo, mesmo aqui, que as notícias poucas vezes chegam até nós, excepto através da... Gazette. Mas espero que esteja a gostar da sua nova paróquia e que eu o possa felicitar por o ter conseguido. - Espero gostar mais da minha paróquia daqui a um ou dois anos, quando tiver conseguido fazer umas certas reformas em que estou muito empenhado... ou, pelo menos, dar mais alguns passos em tal realização. Mas pode felicitar-me porque estou muito satisfeito por ter uma paróquia só para mim, sem interferências de outras pessoas... a impedir os meus planos. E, além disso, possuo uma boa casa nos arredores, num local muito agradável, e trezentas libras por ano. Só tenho a lamentar a solidão e a desejar uma companhia...

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Olhou para mim ao concluir a frase e o brilho dos seus olhos escuros fez-me subir a cor ao rosto, com grande confusão minha, porque demonstrar embaraço nessa ocasião era coisa que eu não desejava. Esforçando-me por remediar este mal, repliquei apressadamente [176) que se ele esperasse até ser bem conhecido pela vizinhança teria inúmeras oportunidades para suprir essa falta, procurando entre as moradoras de F... e dos arredores, ou entre as veraneantes de A... , senecessitasse de uma escolha mais ampla. Não tendo reparado no cumprimento implícito neste comentário, a sua resposta fez-me ficar de sobreaviso. - Eu não sou tão presunçoso que acredite em tal - disse ele -, embora seja a Miss Grey a dizer-mo. Mas mesmo que fosse assim, sou bastante especial nos meus conceitos de uma companheira para a vida e talvez não encontre nenhuma que me agrade entre as senhoras que mencionou. - Se anda à procura da perfeição, nunca a encontrará. - Eu não... tenho o direito de a exigir, estando eu próprio muito longe de ser perfeito. Nesta ocasião, a conversa foi interrompida por um carro de transporte de água, que passou por nós, fazendo enorme ruído, visto que tínhamos atingido a parte mais movimentada do areal. E durante os seguintes oito ou dez minutos, entre carros e cavalos, burros e homens, houve pouco espaço para qualquer troca de palavras, até termos voltado as costas ao mar e começarmos a subir a ladeira que levava à cidade. Aqui, o meu companheiro ofereceu-me o braço, que eu aceitei, embora não com a intenção de me apoiar nele. - Naturalmente não vem com frequência até à praia - começou por dizer -, pois eu tenho passeado por aqui muitas vezes, tanto de manhã como de tarde, desde que vim, e nunca a vi senão agora. E também, com frequência, ao passar pela cidade, procurei a sua escola... mas não me lembrei da rua... e uma vez ou duas perguntei, mas não consegui obter a informação que queria. Quando acabei de subir a encosta, ia a retirar o meu braço do dele, mas, por um ligeiro aperto do cotovelo, fui tacitamente informada de que não era essa a sua vontade, e, por consequência, desisti. Dissertando sobre diferentes assuntos, entrámos na cidade e atravessámos várias ruas. Vi que ele se desviara do seu caminho para me acompanhar, apesar do longo trajecto que ainda tinha na sua frente. E temendo que se tivesse incomodado apenas por delicadeza, observei: - Receio, Mister Weston, que se esteja a desviar do seu caminho... parece-me que a estrada para F... fica noutra direcção. - Eu deixo-a no fim da próxima rua - disse ele. - E quando vai visitar minha mãe?[178] - Amanhã, se Deus quiser.

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O fim da rua seguinte era quase o termo do meu caminho. Contudo, ele parou ali, desejou-me bom dia e chamou o Snap, que parecia hesitar entre mim e o novo dono, mas que partiu a correr ao ser intimado por este último. - Não me ofereço para lho devolver, Miss Grey - disse Mr Weston, sorrindo -, porque gosto muito dele. - Oh, eu não o quero - repliquei. - Agora que ele tem um bom dono, estou inteiramente satisfeita. - Está então convencida de que eu sou um bom dono? O homem e o cão partiram, e eu voltei para casa, muito grata a Deus por tamanha felicidade e implorando que as minhas esperanças não fossem de novo esmagadas. [179]XXVEPÍLOGO - Agnes, não deves dar uns passeios tão grandes antes do almoço - disse minha mãe, notando que eu bebia uma chávena extra de café e não comia nada... alegando o calor que fazia e a fadiga causada pelo meu grande passeio, para me desculpar. Sentia-me na verdade febril e também cansada. - Exageras sempre no que fazes. Se te tivesses habituado a dar um passeio pequeno todas as manhãs e o continuasses a fazer só te faria bem. - Sim, mamã, vou passar a fazer o que diz. - Mas isto assim é pior do que estares deitada ou curvada sobre os livros. Até ficaste com febre. - Não torno a fazê-lo. Estava a dar voltas à cabeça sem saber como lhe havia de falar em Mr Weston, pois ela tinha de saber que ele viria no dia seguinte. No entanto, esperei que a louça do almoço tivesse sido levantada e me sentisse mais calma e serena; e então, sentando-me a desenhar, comecei: - Hoje na praia encontrei um velho amigo, mamã. - Um velho amigo! Como foi isso? - Na verdade; dois velhos amigos. Um era um cão - e recordei-lhe o Snap, cuja história já lhe havia contado, relatando o incidente do seu súbito aparecimento e como surpreendentemente me reconhecera.- E o outro - continuei - foi Mister Weston, o coadjutor de Horton. - Mister Weston! Nunca ouvi falar dele. - Ouviu, sim; creio que já lhe falei nele muitas vezes, mas naturalmente não se lembra. - Ouvi-te falar em Mister Hatfield.[ 180] - Mister Hatfield era o reitor e Mister Weston era o coadjutor. Eu mencionava-o, às vezes, para mostrar a diferença que fazia de Mister Hatfield, por ser um ministro da Igreja mais eficiente. De qualquer modo, ele estava na praia, esta manhã, com o cão - acho que o comprou ao guarda-florestal, e ele reconheceu-me logo - provavelmente pelo faro. Conversei um pouco com ele e no decurso da conversa perguntou-me pela nossa

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escola e eu fui levada a falar de si e como dirige tudo tão bem. Ele disse que gostava de a conhecer e pediu-me se lho poderia apresentar se ele tomasse a liberdade de a vir visitar amanhã. Eu disse que sim. Fiz bem? - Pois com certeza. Que género de homem é? - Acho que é um homem muito respeitável. Mas amanhã julgará por si mesma. É o novo vigário de F... e está lá apenas há algumas semanas, acho que ainda não tem amigos e gostava de se dar com alguém. O dia seguinte chegou. Que ansiedade febril e que expectativa a minha desde o almoço até à tarde... à hora em que ele fez a sua entrada! Tendo-o apresentado a minha mãe, levei o meu trabalho para o pé da janela e sentei- me, esperando o resultado daquele encontro. Vi com grande satisfação que se entendiam muito bem, pois estava ansiosa por saber o que minha mãe pensava dele. Não se demorou muito, mas, quando se levantou para sair, ela disse-lhe que gostaria muito de o voltar a receber sempre que ele quisesse. E, depois, fiquei contente por a ouvir dizer: - Bem! Acho que ele é um homem de sentimentos. Mas porque é que te sentaste aí atrás, Agnes? - e acrescentou: - E falaste tão pouco?- Porque a mamã falou tão bem que eu achei que não precisava da minha ajuda, e, além do mais, ele vinha visitá-la a si e não a mim.Depois disto, ele veio visitar-nos frequentemente, várias vezes no decurso da semana. Geralmente, na sua conversa, dirigia-se a minha mãe, o que não era de admirar, pois ela era boa conversadora. Eu quase sentia inveja da fluência natural e expressiva com que falava e da forte inteligência que evidenciava em tudo o que dizia... mas, na verdade, não a sentia, porque, embora de vez em quando lamentasse essa minha deficiência por causa dele, dava-me um enorme prazer ouvir aqueles dois seres que eu amava e respeitava acima de tudo o mais no mundo discorrendo um com o outro, amigavelmente, com tanta inteligência e tanta facilidade. No entanto, eu nem sempre estava calada, [181) nem tão-pouco era posta de lado. Davam-me tanta atenção quanta desejava, e não faltavam as palavras amáveis e os olhares ainda mais agradáveis, um sem-fim de delicadas atenções, belas e subtis demais para caberem em palavras, e por isso mesmo indescritíveis - mas profundamente sentidas pelo coração. Dentro em pouco, já não fazíamos cerimónia uns com os outros. Mr Weston vinha sempre que queria e era sempre bem-vindo e nunca transtornava a ordem dos nossos trabalhos à casa. Timidamente a princípio, começou a tratar-me por "Agnes", mas, vendo que ninguém considerava isso uma ofensa, pareceu preferir esta denominação a "Miss Grey", e eu também. Que aborrecidos e tristes eram os dias em que ele não aparecia! Mas, contudo, não infelizes, porque eu guardava ainda a

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lembrança da sua última visita e a esperança da próxima para me consolar. Mas quando passavam dois ou três dias sem o ver, era certo sentir-me absurda e despropositadamente impaciente, visto que ele tinha as suas obrigações e assuntos da sua paróquia a tratar. E eu temia o fim das férias, quando o meu trabalho também começasse, e eu não tivesse tempo para o ver, ou outras vezes, quando minha mãe estivesse a dar aula, fosse obrigada a estar sozinha com ele. Era uma situação que eu não desejava de todo, em casa; embora encontrá-lo na rua e passear com ele não tivesse provado ser, de modo algum, desagradável. Contudo, uma tarde, na última semana de férias, ele chegou inesperadamente, quando uma chuva tempestuosa e prolongada, durante o dia, quase havia destruído as minhas esperanças de o ver. Mas agora a tempestade passara e o Sol voltara a brilhar. - Está uma linda tarde, Mistress Grey! - disse, ao entrar - Agnes, gostava que viesse passear comigo a... - (e proferiu o nome de um ponto da costa - uma colina íngreme do lado da terra e, do lado do mar, um precipício escarpado, do cimo do qual se poderia desfrutar uma vista magnífica). - A chuva assentou a poeira e tornou o ar mais fresco e límpido e o panorama será magnificente. Quer vir? - Posso ir, mamã? - Com certeza que sim. Fui arranjar-me e dentro em pouco estava pronta, cá em baixo, embora, como é de ver, me tivesse esmerado mais a compor-me do que se fosse apenas sair para fazer compras sozinha. A chuva havia de facto tido um efeito benéfico sobre o tempo e a tarde estava o mais deliciosa possível. Mr Weston quis que eu lhe desse o braço. Falou pouco enquanto[182]quanto atravessámos as ruas cheias de gente, mas andava muito Perguntava a mim mesma o que acontecera e sentia um receio indefinido por não saber o que lhe ia na cabeça. Fazia vagas conjecturas sobre o que poderia ser e, perturbada, tornava-me mais grave e silenciosa. Mas estas fantasias dissiparam-se assim que chegámos aos calmos arredores da cidade, pois logo que avistámos a velha igreja e a colina, com o profundo azul do mar ao fundo, notei que o meu companheiro se animara. - Parece-me que tenho vindo a andar depressa demais para si, Agnes - disse ele. - Na minha impaciência por me ver livre da cidade, esqueci-me de perguntar o que mais lhe convinha, mas agora vamos caminhar tão devagar quanto o desejar. Estou a ver que, pelas nuvens leves, ali de oeste, vai haver um belo pôr de Sol e iremos chegar a tempo de presenciar o seu efeito no mar, mesmo que prossigamos na mais moderada das velocidades. Quando havíamos atingido meio caminho da colina, voltámos a calar- nos. Como habitualmente, foi ele o primeiro a quebrar o silêncio. - A minha casa continua muito solitária, Miss Grey

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- observou, sorrindo -, e já me relacionei com todas as senhoras da minha paró quia e também com algumas desta cidade. Há muitas outras que eu co nheço de vista ou de ouvir falar, mas nenhuma delas me serve para companheira. De facto, só há uma pessoa no mundo que serve: é a Agnes. E agora quero saber qual vai ser a sua decisão. - Está a falar a sério, Mister Weston? - O mais sinceramente possível. Como pode pensar que eu sou ca paz de gracejar com um assunto destes? Pôs a mão dele em cima da minha, que estava pousada no seu braço. Devia ter sentido que tremia... mas agora não importava. - Espero não ter sido demasiado precipitado - disse, muito sério. - Já deve saber que não é feitio meu lisonjear e dizer tolices ou até falar da admiração que sinto por si, e que uma simples palavra ou um simples olhar querem dizer mais do que as frases melífluas e pro testos fervorosos da maior parte dos outros homens. Eu disse qualquer coisa acerca de não gostar de ter de deixar minha mãe e de não fazer nada sem o seu consentimento. - Já tratei de tudo com Mistress Grey, enquanto a Agnes estava a pôr o seu chapéu - replicou. - Disse que eu teria o consentimento dela se obtivesse o seu. E eu pedi-lhe, no caso de dizer que sim, para vir viver connosco, pois eu tinha a certeza de que a Agnes o preferiria. (183) Mas ela recusou, dizendo que agora já tinha meios para contratar uma ajudante e continuaria com a escola até conseguir o suficiente para vi ver com um certo desafogo. E, entretanto, irá passar as férias, alternadamente, connosco e com a sua irmã, e que ficaria plenamente satisfeita se a visse feliz. E, por isso, agora venci as suas objecções por causa dela. Tem mais alguma? - Não... nenhuma. - Então, ama-me? - perguntou ele, apertando-me a mão fervorosamente. Amo. Aqui, faço uma pausa. O meu diário, do qual compilei estas páginas, não vai muito mais além. Podia continuar por vários anos, mas contento-me em acrescentar que nunca esquecerei aquela gloriosa tarde de Verão, que sempre lembrarei com prazer aquela colina escarpada e a borda do precipício onde estivemos juntos a ver o magnífico pôr do Sol, reflectindo-se no revoltoso mundo das águas, a nossos péscom os corações cheios de gratidão a Deus, felicidade e amor - cheios demais para podermos falar. Poucas semanas depois, quando minha mãe conseguiu arranjar uma ajudante, tornei-me mulher de Edward Weston, nunca tive motivos para me arrepender e estou certa de que nunca terei. Tivemos, é certo, provações, e sabemos que iremos voltar a tê-las. Mas juntos suportámo-las bem, e esforçámo-nos por

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nos fortalecer a nós próprios, e um ao outro, contra a separação final... a maior de todas as dores para quem sobrevive. Mas se tivermos sempre presente na lembrança o céu glorioso que nos espera, onde ambos nos poderemos reencontrar e onde o pecado e o sofrimento são desconhecidos, de certeza que também isso pode ser suportado. E, entretanto, esforçamo-nos por viver para glória d'Ele, que espalhou tantas bênçãos no nosso caminho. Edward, à custa do seu esforço persistente, conseguiu fazer surpreendentes reformas na sua paróquia, e todos o estimam e apreciam, o que na verdade merece, pois sejam quais forem os defeitos que possa ter como ser humano (e toda a gente os tem), desafio alguém que o possa censurar como pastor, marido ou pai. Os nossos filhos, Edward, Agnes e a pequena Mary, dão-nos boas esperanças. Nestes primeiros tempos, a sua educação está principalmente a meu cargo, e não lhes faltarão todos os cuidados que uma mãe[184] pode dar. Os modestos rendimentos que auferimos são amplamente suficientes para as nossas necessidades. E, fazendo economias, como aprendemos em tempos mais difíceis, nunca procurando imitar os nossos vizinhos mais ricos, conseguimos não só gozar conforto e sentirmo-nos contentes, mas também, todos os anos, pôr qualquer coisa de lado para os nossos filhos e para dar àqueles que precisam. E, agora, julgo que já disse o suficiente.[186]

Fim