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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALICENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPSCURSO DE DIREITO
MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ESTABILIZAÇÃO DO HAITI: AVANÇOS E DESAFIOS
RODRIGO MAESTRELLI
Autorizo que a presente Monografia seja apresentada e defendida em
Banca Pública
Orientador(a)
Itajaí, 08/11/2010_____
Itajaí, novembro de 2010
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALICENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPSCURSO DE DIREITO
MISSÃO DAS NAÇÕES PARA A ESTABILIZAÇÃO DO HAITI: AVANÇOS E DESAFIOS
RODRIGO MAESTRELLI
Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Direito.
Orientador: Professor Msc. Guilherme Bez Marques
Itajaí, novembro de 2010
AGRADECIMENTO
Aos meus pais Sérgio e Lacy, por sempre
acreditarem e apoiarem os meus planos.
Aos meus irmãos Sérgio e Luís, pelas palavras de
incentivo na conclusão deste trabalho.
Ao professor e orientador Guilherme Bez Marques,
por ter tornado a conclusão deste trabalho possível.
Ao grande amigo Guilherme Augusto Doin, pela
constante e valiosa troca de idéias.
Aos amigos Fernando Luigi Fontanella, Jorge
Henrique Zanatta e Thiago Simas, pelo inestimável
companheirismo.
DEDICATÓRIA
A todos aqueles que lutam incessantemente por um
mundo mais justo e perfeito.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, novembro de 2010
Rodrigo MaestrelliGraduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Rodrigo Maestrelli, sob o título Missão
das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti: avanços e desafios, foi submetida
em 23 de novembro de 2010 à banca examinadora composta pelos seguintes
professores: Guilherme Bez Marques (Orientador e Presidente da Banca), Márcia
Sarubbi Lippmann (Examinadora) e aprovada com a nota ____________________.
Itajaí, 23 de novembro de 2010
Professor Msc. Guilherme Bez MarquesOrientador e Presidente da Banca
Professor Msc. Márcia Sarubbi LippmannCoordenação da Monografia
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AGNU Assembléia Geral das Nações Unidas CSNU Conselho de Segurança das Nações UnidasMINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
OCHAEscritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários
ONU Organização das Nações Unidas
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à
compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.
Diplomacia Preventiva - Conflict Prevention
“[...] a ação destinada a previnir o surgimento de disputas, impedir que as disputas
existentes se transformem em conflitos armados ou, em último caso, diminuir a
amplitude e o impacto dos conflitos em andamento”.1
Manutenção da paz
“[...] é uma dentre uma série de atividades realizadas pelas Nações Unidas e outros
atores internacionais para manter a paz e a segurança internacionais em todo o
mundo. [...] é uma técnica destinada a preservar a paz, porém frágil, onde a luta foi
interrompida, e auxiliar na implementação dos acordos alcançados pelos
pacificadores. Ao longo dos anos, a manutenção da paz tem evoluído a partir de um
modelo essencialmente militar de observar o cessar-fogo e de separação de forças
depois de guerras inter-estatais, a incorporar um modelo complexo de muitos
elementos - militares, policiais e civis - que trabalham juntos para ajudar a lançar as
bases uma paz sustentável.”. 2
Organização das Nações Unidas - ONU
“[...] uma organização internacional, de caráter geral, baseada no princípio da
soberana igualdade de todos os Estados amantes da paz e aberta à participação de
todos esses Estados, grandes e pequenos, para a manutenção da paz e da
segurança internacional.”. 3
1 TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da Segurança Coletiva e a Manutenção da Paz Internacional. Curitiba: Juruá. 2007. p. 258.2 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. General Guidelines for Peacekeeping Operations. 2008. Disponível em: <www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/.../Capstone_Doctrine_ ENG.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.3 ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações internacionais. Rio de Janeiro: Forense. 2002 p. 25.
8
SUMÁRIO
RESUMO.............................................................................................XI
INTRODUÇÃO....................................................................................12
A HISTÓRIA HAITIANA E A CONJUNTURA INTERNA E INTERNACIONAL..............................................................................14
1.1REPÚBLICA DO HAITI.....................................................................................14
1.2UMA HISTÓRIA DE DISPUTAS.......................................................................16
1.3A REAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS FRENTE À CRISE HAITIANA ............27
EM BUSCA DA PAZ ..........................................................................30
2.1A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU.........................................30
2.1.1A Carta de São Francisco e seu compromisso com a paz.......................362.1.2As operações de manutenção da paz da ONU .........................................402.1.2.1Breve Histórico....................................................................................................402.1.2.2Definição, princípios e criação ..........................................................................45
A MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ESTABILIZAÇÃO DO HAITI – MINUSTAH............................................................................51
3.1AS PRINCIPAIS CAUSAS PARA SUA INSTITUIÇÃO....................................51
3.1.1 A segurança pública no Haiti ....................................................................513.1.2O caos político..............................................................................................53
3.2CARACTERIZAÇÃO DA MISSÃO...................................................................55
3.2.1O mandato ....................................................................................................563.2.1.1Resolução 1542 (2004)........................................................................................573.2.1.2Demais resoluções..............................................................................................59
3.3ANÁLISE DOS RESULTADOS........................................................................59
3.3.1Segurança......................................................................................................593.3.1.1Restabelecimento da Paz .................................................................................603.3.1.2Reestruturação da Polícia Nacional Haitiana - PNH ........................................613.3.1.3Desarmamento, Desmobilização e Reintegração.............................................613.3.1.4O sistema judiciário e prisional ........................................................................623.3.2Processo Político..........................................................................................633.3.2.1Processo Eleitoral...............................................................................................63
3.3.2.2Reconciliação e diálogo político........................................................................633.3.2.3Desenvolvimento das instituições estatais haitianas......................................643.3.3Direitos Humanos.........................................................................................653.3.4Os maiores desafios ....................................................................................653.3.4.1O devastador terremoto de 2010........................................................................663.3.4.2A resposta das Nações Unidas..........................................................................673.3.5O Haiti hoje....................................................................................................683.3.5.1Saúde pública .....................................................................................................683.3.5.2Furacão Tomas....................................................................................................69
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................71
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS............................................74
x
RESUMO
O Haiti, pequeno país situado na área do Caribe, ocupa cerca
de 1/3 da parte oeste da antiga ilha de Hispaniola, a qual divide com a República
Dominicana. Sua descoberta se deu no ano de 1492, pelo navegador Cristóvão
Colombo. A história haitiana é marcada por crises ininterruptas, de ordem social,
econômica e política. Em 2004, após a renúncia do Presidente Jean-Bertrand
Aristide, o clima que se instalou no Haiti era caótico. Seu sucessor, Boniface
Alexandre, em caráter emergencial, solicitou o apoio das Nações Unidas a fim de
restabelecer o Estado de Direito e evitar uma sangrenta guerra civil. Desta forma,
tendo em vista o primordial propósito da Organização das Nações Unidas, qual seja
a manutenção da paz e da segurança internacionais, o Conselho de Segurança
instituiu, por meio da resolução 1542 (2004), a Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti – MINUSTAH, a qual estaria incumbida de restaurar um
ambiente seguro e estável, promover o processo político, bem como proteger os
direitos humanos. No decorrer da Missão, um devastador terremoto assola o país:
mais de 220.000 pessoas morreram, cerca de 300.000 ficaram feridos e
aproximadamente um quarto da população desabrigada. É neste contexto que
surgem mais desafios para a missão, os quais podem comprometer seriamente os
seus avanços já alcançados.
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto a análise da atuação
da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – MINUSTAH.
O seu objetivo é demonstrar quais foram os avanços
conquistados pela MINUSTAH nos seus seis anos de autuação bem como quais são
os seus desafios, considerando ainda os devastadores desastres naturais que
assolaram o país.
Para tanto, apresenta-se, no Capítulo 1, a conjuntura interna e
internacional do Haiti, através de uma viagem histórica que compreende o período
de sua descoberta, ocorrida no ano de 1492, culminando com a renúncia do
Presidente Jean-Bertrand Aristide em 2004.
Por seguinte, no Capítulo 2, buscou-se apresentar um
panorama histórico da Organização das Nações Unidas, seu comprometimento com
a paz mundial através da Carta de São Francisco, e da evolução e caracterização
das suas missões de paz.
No Capítulo 3, tratou-se da Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti – MINUSTAH, elencando-se seus avanços e desafios.
Abordou-se ainda o avassalador terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010, suas
conseqüências para o país, bem como a vulnerabilidade na qual se encontra o Haiti,
no diz respeito aos desastres naturais.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as
Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados,
seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a Missão
das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti - MINUSTAH.
Para a presente monografia foram levantados os seguintes
problemas:
Apesar dos empecilhos evidenciados em função dos problemas
internos e externos, é possível afirmar que a implantação da MINUSTAH trouxe
avanços para o Haiti? Quais são os avanços e os desafios da MINUSTAH?
Para o primeiro problema foi levantada a seguinte hipótese:
Sim, apesar dos empecilhos internos e externos, a MINUSTAH trouxe avanços para
o Haiti.
O segundo problema foi norteado na hipótese de que os
maiores avanços estão nas áreas de segurança e processo político. Já os desafios
encontram-se na área dos direitos humanos.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de
Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o
Método Cartesiano e o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é
composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas
do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica.
13
Capítulo 1
A HISTÓRIA HAITIANA E A CONJUNTURA INTERNA E INTERNACIONAL
1.1 REPÚBLICA DO HAITI
O Haiti4, país de 27.750 km², está situado na área do Caribe,
ocupando cerca de 1/3 dos 75.000 km² da parte oeste da antiga ilha de Hispaniola, a
qual divide com a República Dominicana5. É banhado pelo Mar do Caribe e pelo
Oceano Atlântico do Norte, possuindo o clima tropical.
Figura 1: Mapa do Haiti. Fonte: Perry Castañeda Library
4 O vocábulo Haiti é de origem caribe, Ahti, o qual, por sua vez, significa “montanha”. Seu nome oficial é República do Haiti, ou nos idiomas locais République d'Haïti e Repiblik Dayti. 5 VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. Brasília: FUNAG, 2007. p. 141.
Sua capital encontra-se em Porto Príncipe (Port-au-Prince),
estando seu território dividido de forma administrativa em 10 Departamentos.6 Os
idiomas oficiais são o francês, oriundo de sua colonização, e o créole7, uma espécie
de dialeto.
A forma de governo é a República, possuindo atualmente como
chefe de Estado o Presidente René Preval, eleito pelo povo em 2006 para um
mandato de cinco anos. Já o chefe de governo, o Primeiro Ministro Jean-Max
Bellerive, foi escolhido pelo Presidente e ratificado pela Assembléia Nacional. Esta,
por sua vez, é bicameral, sendo composta pelo Senado (com 30 assentos -
membros eleitos por voto popular para mandatos de seis anos e um terço eleito a
cada dois anos) e da Câmara dos Deputados (99 assentos - membros eleitos por
voto popular para servir mandatos de quatro anos).
A população, estimada em 9,035 milhões, é composta por 95%
de negros, e 5% de mulatos e brancos. A religião católica, praticada por cerca de
80% da população, é a predominante, seguida pela protestante que soma
aproximadamente 16%. Auferem-se, as outras religiões, o valor de 3%, e ainda 1%
aos haitianos que afirmam não pertencer a nenhuma religião, sendo que mais da
metade da população é adepta a prática do vodu8.
Quanto à economia haitiana, cumpre ressaltar que, apesar da
melhora que esta vem sofrendo, o país é ainda o mais pobre do hemisfério
ocidental, com 80% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza.
Aproximadamente 2/3 de sua população dependem do setor agrícola, principalmente
da agricultura de subsistência, permanecendo constantemente vulnerável pelos
desastres naturais. Destaca-se ainda o setor industrial, compreendido pelo
refinamento de açúcar, farinha, têxteis, dentre outros.
6 Os Departmentos são: Artibonite, Centre, Grand'Anse, Nippes, Nord, Nord-Est, Nord-Ouest, Ouest, Sud e Sud-Est. 7 O créole haitiano foi criado pelos próprios negros escravos que, apesar diferir-se do francês, possui como base esta língua. 8 O vodu é um sincretismo religioso semelhante ao candomblé brasileiro.
15
Conforme se observa, a bandeira haitiana é formada por duas
faixas horizontais em azul e vermelho, com um retângulo branco abrigando o brasão
de armas, o qual contém uma palmeira
ladeada por bandeiras e dois canhões.
Extrai-se ainda do retângulo os seguintes
dizeres: “L'UNION FAIT LA FORCE (união faz
a força). Suas cores foram retiradas do
Tricolor francês e representam a união dos
negros e mulatos.9
A história haitiana é marcada por crises ininterruptas, de ordem
social, econômica e política. As causas que ensejaram a instituição da Missão das
Nações Unidas para Estabilização do Haiti – MINUSTAH, só poderão ser
compreendidas por meio de uma viagem histórica, a qual abrange o período de sua
descoberta, ocorrida no ano de 1492, culminando com a renúncia do Presidente
Jean-Bertrand Aristide em 2004.
1.2 UMA HISTÓRIA DE DISPUTAS
A descoberta do Haiti se deu no ano de 1492, pelo navegador
Cristóvão Colombo, o qual batizou a ilha caribenha de Hispaniola. Tal episódio
estabeleceu o marco da chegada dos espanhóis ao Novo Mundo manifestando-se,
neste mesmo momento, o intuito de exploração bem como o de impor os hábitos
europeus aos nativos, conforme se colhe do relato do navegador italiano:
Creiam Vossas Majestades [...] que estas terras são tão boas e férteis, sobretudo as desta ilha Espanhola, que não há ninguém capaz de exprimir em palavras e que só pode acreditar quem já viu. E estes índios são tão dóceis e bons para receber ordens e fazê-los trabalhar, semear e tudo mais que for preciso, e para construir povoados, e aprender a andar vestidos e a seguir nossos costumes.10
9 Os dados até aqui mencionados, salvo se já referenciados, foram colhidos no site da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos da América (CIA) CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook 2010. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ha.html> Acesso em 08 outubro 2010.10 COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América – as quatro viagens e o testamento. Porto Alegre: L&P editores, 2005. p. 79-80.
16
Desta forma, munidos de modernos navios e armamentos para
a época, e ainda impulsionados pela ambição de extrair todas as riquezas que
aquelas terras poderiam lhes oferecer, os europeus procederam à colonização da
ilha, o que por conseqüência dizimou a população indígena rapidamente. Tal
assertiva se confirma nas palavras de Grondin ao relatar que:
[...] quando Cristóvão Colombo desembarcou, encontravam-se ali entre 300 e 500 mil habitantes autóctones. [...] Submetidos a um regime de escravidão disfarçada para procura do ouro, e vítimas de maus tratos e de epidemias ocasionadas por enfermidades européias, os chamados “índios” foram rapidamente dizimados até sua destruição total. Em 1510 restavam 50 mil índios; eram 15 mil em 1520 e 5 mil em 1530. Alguns levantes violentos como o de Enriquillo, em 1519, não obtiveram êxito contra o poder dos espanhóis. No censo de 1604, os índios já não são mais mencionados, restando deles apenas algumas recordações culturais: peças arqueológicas, cerâmicas, instrumentos musicais. 11
As riquezas provenientes da Hispaniola, inicialmente dominada
pelos espanhóis, despertaram também a cobiça dos franceses, os quais avançaram
para a parte ocidental da Ilha. Este fato gerou inúmeras batalhas entre os dois
países europeus que só acabaram após a assinatura do Tratado de Ryswick, em
1697. Este Tratado dividiu o território da então ilha de Hispaniola, cedendo-se a
parte ocidental à França, continuando a região oriental sob domínio espanhol.12.
Com a alta produtividade de cana-de-açúcar, o Haiti passou a
ser conhecido como a “Pérola das Antilhas”, sendo que as riquezas dela extraídas
eram suficientes para custear as guerras do império napoleônico. Seitenfus afirma
que “a mais rica colônia da monarquia francesa contava, na época, com sete mil e
oitocentas propriedades agrícolas, onde se produziam café, algodão e, sobretudo
açúcar.”13. O prof. Marcelo Grondin vai mais além, relatando que
O Haiti, muito conhecido como “a pérola das Antilhas”, era realmente uma jóia entre as colônias. No último quarto do século XVII, era a única colônia que produzia, ao mesmo tempo, açúcar, café, anil, e algodão em grande escala. [...] Era tal a riqueza da colônia do Haiti
11 GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 24-26.12 SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. Porto Alegre: SóLivos, 1994. p. 27. 13 Ibidem, p. 28.
17
que a França, derrotada pela Inglaterra, preferiu ceder, pelo tratado de Paris (1763), a colônia do Canadá a perder o Haiti.14
O rápido desenvolvimento econômico da colônia, bem como a
carência de mão-de-obra indígena, a qual se encontrava praticamente extinta,
geraram a necessidade de novas forças de trabalho. Assim, foram trazidos escravos
das mais diversas regiões da África15, conforme se constata nas palavras de
Grondin:
[...] O desaparecimento dessa mão-de-obra gratuita obrigou os colonialistas europeus a importar mão-de-obra africana desde o início do século XVI. Começou, então, no Caribe, o fenômeno da escravidão, que transformaria o Caribe atual numa das maiores, senão a maior, concentrações negras depois da África.16
Com o passar dos anos, já no fim do século XVII, a sociedade
haitiana era composta por dois grupos: os mulatos, descendentes dos colonizadores
franceses, e os negros, oriundos de diferentes tribos africanas, assim definidos nas
palavras de Irene Pessôa de Lima Câmara:
[...] os mulatos [...] alfabetizados, portadores de uma mentalidade “europeizante” e mais preparados para os postos de comando, ascenderam socialmente e constituíram uma classe privilegiada, que se distinguira da massa da população negra, esta analfabeta, praticamente do culto vodu e ciosa de suas origens africanas.17
Desta forma, houve uma divisão de classes, onde os mulatos,
por obterem mais oportunidades, tiveram a chance de transformarem-se em
proprietários de terra e enriquecer, diferente dos negros, que laboravam
incansavelmente nas plantações de cana-de-açúcar e café, sendo que em
determinadas ocasiões, tornavam-se escravos dos próprios mulatos.
Assim, no final do século XVIII, exaustos da escravidão e
impulsionados pela idéia da libertação do domínio colonial, os negros incentivados
14 GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. p. 53.15 “Esses contingentes sucessivos de escravos provinham de populações e culturas diversas da África Equatorial: Congos, Ibos, Fans, Quincos, Daomeus, Kaplaou, Mandingas, Moundongos, Aradas, Senegaleses, etc.” Ibidem, p. 36. 16 Ibidem, p.14. 17 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. Brasília: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandra Gusmão; Centro de Estudos Estratégicos, 1998. p. 50.
18
por Boukman18 e Toussaint L`Ouverture19 iniciaram uma incansável luta em busca da
tão sonhada liberdade, conforme se colhe da obra “Os jacobinos negros” de C. L. R.
James:
“Em agosto de 1791, passados dois anos da Revolução Francesa e dos seus reflexos em São Domingos, os escravos se revoltaram. Em uma luta que se estendeu por doze anos, eles derrotaram, por sua vez, os brancos locais e os soldados da monarquia francesa. Debelaram também uma invasão espanhola, uma expedição britânica com algo em torno de sessenta mil homens e uma expedição francesa de semelhantes dimensões comandada pelo cunhado de Bonaparte.”20
Ao longo dos anos, Louverture tomou militarmente a cidade de
São Domingos, transformando-se em líder absoluto da ilha de Hispaniola. No dia 9
de maio de 1801, elaborou uma Constituição, atribuindo-se o título de governador e
general vitalício. A primeira Carta Constitucional da América Latina dispôs
expressamente em seu artigo terceiro: “A escravatura está para sempre abolida, não
podem existir escravos sobre este território.”.21
Contudo, os franceses, observando a debilidade dos negros
por conta da luta por sua liberdade, enviaram uma expedição junto à ilha, colocando
fim à rebelião liderado por Toussaint, sendo este capturado e preso na frança. Jean-
Jacques Dessalines22, seu braço direito, passou a ser o novo líder dos negros que
em determinados momentos, se uniram aos mulatos no duelo contra os europeus,
em prol da independência de sua nação.
18 Dutty Boukman, jamaicano, foi um houngan (sacerdote do Vodu haitiano), conduzindo a cerimônia considerada catalizadora da revolta de escravos, a qual marcou o começo da Revolução Haitiana. 19 François-Dominique Toussaint Louverture Toussaint Bréda, (20 de maio de 1743 - 8 de abril de 1803) foi um dos lideres da revolução haitiana. Nasceu em Saint-Domingue, dedicando-se incansavelmente à luta pela independência, conduzindo os africanos escravizados a uma vitória sobre os europeus. Assim, aboliu a escravidão e assegurou o controle da colônia pelos nativos em 1797, enquanto era nominalmente seu governador. Foi preso pelos franceses e exilado em Fort de Joux, morrendo de pneumonia. 20 JAMES, C. L. R.. Os jacobinos negros - Toussant l´Ouverture e a Revolução de São Domingos. Tradução: Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2002. p.15.21 SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. p. 22 Jean-Jacques Dessalines ( Haiti, 20 de setembro de 1758 - Grande-Rivière-du-Nord, 17 de outubro de 1806) foi o braço direito de Toussaint Louverture, participando das revoltas de escravos da colônia francesa. Após a prisão de Louverture, lutou contra os europeus em prol da independência, conquistando-a em 1804. Proclamou-se imperador com o nome de Jacques I, sendo traído e assassinado por seus colaboradores Alexandre Pétion e Henri Christophe, os quais dividiram a ilha em dois países.
19
Após 13 anos de sangrentas batalhas, negros e mulatos
proclamaram no dia 1 de janeiro de 1804 a independência de seu país. É neste
momento, que:
A ilha recupera seu nome indígena, Haiti, que significa país das montanhas. Surge a bandeira nacional, simbolizando a união entre os negros, representados pela cor preta, e os mulatos, cujo símbolo é o vermelho. A divisa: a liberdade ou a morte.23
Ainda temendo uma nova colonização, os haitianos tomaram
também a parte oriental da ilha, na época colônia espanhola, massacrando todos os
europeus que se encontravam na região, inclusive mulheres e crianças:
Depois de obter sua independência, em 1804, e na qualidade de substituto da autoridade política francesa, a nova república do Haiti passou a lutar pelo controle da ilha cedida anteriormente pela Espanha à França. Uma primeira ocupação, que durou somente dois anos (1804-1805), foi seguida por uma ocupação prolongada de vinte e dois anos (1822 – 1844), através da qual Haiti procurava extrair fundos para pagar a alta indenização de guerra exigida pela França.24
Durante aproximadamente 40 anos, a Hispaniola permaneceu
sob domínio dos negros, já que em 1844 a independência da República Dominicana
voltou a dividir a ilha, ocupando-se 2/3 de seu território.25
Cumpre salientar que mesmo unidos em certos momentos na
causa comum contra os europeus, “negros e mulatos [...] passaram a hostilizar-se
numa forma sui generis de racismo, medido nem tanto por preconceitos raciais e
culturais, mas pelas ambições de cada grupo de exercer o controle político do
Estado emergente.”.26
Passados pouco mais de 100 anos, com negros e mulatos se
intercalando governos, golpes e contragolpes, com a economia visivelmente falida, o
Haiti não conseguia mais sustentar sua soberania, solicitando apoio aos Estados
Unidos no ano de 1915. Os norte-americanos enviaram uma tropa de fuzileiros
23 SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. p.32.24 GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. p. 28.25 Idem.26 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. p. 50.
20
navais em 28 de julho daquele mesmo ano, conforme se constata nos dizeres de
Seitenfus:
O caos generalizado interrompe-se, em 28 de julho de 1915, quando o país é ocupado pelas forças militares norte-americanas, utilizando para tanto quatrocentos marines. Seguindo a ufanista concepção do destino manifesto, ou seja, a crença de que, por indicação da Providência Divina, os Estados Unidos deveriam manter a ordem e a paz na Bacia do Caribe e na América Central, o Haiti transforma-se em colônia de Washington até 1934.27
Pelo período de quase 20 anos, os Estados Unidos
proporcionaram um razoável progresso das condições de vida do povo haitiano.
Houve certa estabilidade econômica, com a ordenação das finanças públicas e até a
introdução de empresas transnacionais. Inclusive, foram construídas escolas e
hospitais, bem como grandes obras públicas, como o Palácio Nacional.28
Criou-se, ainda, a Guarda Nacional, uma força repressiva que
tinha por objetivo preservar os interesses da elite, neste caso, a classe minoritária
dos mulatos. A ocupação norte-america se finda no ano de 1934, devido à nova
política adotada pelo presidente Roosevelt.29
A temporada que imediatamente sucedeu os 11 anos do fim da
ocupação norte-americana foi marcada por um processo político do qual os negros
foram mantidos às margens, permanecendo a nação haitiana sob comando de
governantes mulatos, em administrações corruptas e incompetentes.30
Somente em 1945 que Dumarsais Estimé, um representante da
maioria negra, é eleito pela Assembléia Nacional. No entanto, em 1950 é derrubado
por um golpe de Estado, encabeça pelas elites e Forças Armadas Haitianas,
assumindo o poder o Coronel Paul Magloire. Nesta mesma época, um novo grupo
intelectual negro já se organizava politicamente nos centros acadêmicos de Porto
Príncipe. Agindo de forma clandestina e liderados por Jean François Durvalier, este
grupo promoveu uma violenta campanha contra o governo de Magloire, culminado
27 SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. p. 35.28 Idem. 29 Idem. 30 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. p. 51.
21
com sua renúncia em 1956, e conseqüentemente a vitória do próprio Duvalier nas
eleições presidências ocorridas em 1957.31
A Era Duvalier perdurou por quase três décadas.
Compreendeu dois ditadores, Papa Doc e Baby Doc, assim definidos,
respectivamente, nas palavras de Grondin:
Jean François Duvalier era um profissional de alta cultura intelectual, como é de costume na alta cultura haitiana, formadas na melhores instituições estrangeiras. Depois de terminar seus estudos de medicina na Universidade D’Etat de Port-au-Prince – cujos títulos são automaticamente reconhecidos pela Sorbonne de Paris – Duvalier especializou-se em sociologia na própria Sorbonne, onde reforçou suas relações com os membros do movimento da “negritude”, particularmente com Leopold Seghor, que seria presidente de Senegal.
E continua, fazendo menção a Jean Claude Duvalier:
O filho não tinha a estatura intelectual, profissional e política do pai. Mais dedicado às diversões que aos estudos, avançava penosamente pelo segundo ano de direito quando foi surpreendido pela morte do pai e pela pesada herança da presidência vitalícia.32
Inicialmente, François Duvalier “em discurso a nação, prometeu
unidade e reconciliação nacionais, comprometimento com a Constituição, o
pluralismo ideológico, a liberdade de imprensa, e o reconhecimento dos direitos
sindicais”33.
Porém, o que se viu foi o flagrante desrespeito à Carta Magna
haitiana, com uma Era caracterizada principalmente pela brutalidade com que seus
ditadores tratavam a oposição bem como o terror e medo que era espalhado entre a
população do Haiti. Para tanto, o ditador criou
[...] uma milícia popular, denominada de Voluntários da Segurança Nacional, mas batizada pelo povo de tonton macoutes. Ela será encarregada do triplo papel de garantir a segurança pessoal de
31 Ibidem, p. 51-52. 32 Ibidem, p. 48. 33 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. p. 52
22
Duvalier, controlar as Forças Armadas tradicionais e reprimir qualquer veleidade da oposição.34
Desta forma, os 14 anos de governo de Papa Doc foram
marcados pelo abuso de sua tirania, com a dissolução da Assembléia Nacional em
1961 e ainda a aprovação de uma nova Carta Constitucional, que lhe garantia a
presidência vitalícia. Já em 1971, pouco antes de morrer, obrigou o Legislativo a
reduzir a idade mínima para o exercício do cargo presidencial de 40 para 18 anos,
com o intuito de “legalizar” a nomeação de seu filho Jean-Claude para sucedê-lo.35
Assim, após a morte de François ocorrida em 1979, Baby Doc
ascende ao poder. À época com 19 anos, era desprovido da experiência e
ambições políticas, necessitando da ajuda de sua mãe para governar o país, como
nos explica Grondin:
[...] a maior ajuda recebida pelo jovem presidente foi a onipresença de sua mãe, sem a qual o filho não teria conseguido permanecer no governo. Depois da morte de François Duvalier, “mama Simone”, como é conhecida, tomou o poder e governou por trás do pano. [...] Continuação autêntica da figura do marido, novo elemento hegemônico da elite negra e da pequena burguesia, passou a controlar o governo, os políticos, que conhece muito bem, os mulatos, que odeia e, particularmente, o importante corpo dos Tontons Macoutes.36
Pressionado pela opinião pública internacional e pela
ocorrência de levantes populares em diversas cidades haitianas em 7 de fevereiro
de 1986, Jean-Claude Duvalier deixa o Haiti para exilar-se na França, deixando
constituído um Conselho Nacional de Governo, sob o comando do General Henri
Namphy.
Entretanto, mesmo Baby Doc deixando o país, o autoritarismo
e a crescente onda de violência continuaram a aflorar no Haiti, como se verifica nas
palavras de Câmara:
O fim do governo de Jean-Claude Duvalier não exorcizou do Haiti os demônios de seu arraigado autoritarismo. O duvalierismo
34 SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. p.36.35 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. p. 53.36 GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. p. 50.
23
permaneceria sem o Duvaliers, reunindo à sua volta expoentes do antigo regime, os macoutes, a oligarquia rural, as elites urbanas e as Forças Armadas, desejosos de manter o status quo do “escravagismo” da ditadura. 37
Os quatro anos subseqüentes foram marcados por uma
situação sócio-econômica caótica com uma forte instabilidade política. O país
continuava dividido: de um lado a “força duvalierista”, resistente a qualquer medida
liberalizante; do outro a força democrática, também “chamada operação de
déchoukaj, ou seja, a cassação política dos macoutes e sua punição pelos crimes de
que fossem responsáveis”. Nesse período, o Haiti teve cinco governos, dos quais
três eram militares, tendo sido ainda, em 1987, promulgado pelo General Henry
Namphy, uma nova constituição, que por incrível que pareça, tinha cunho
democrático. 38
Sob a administração da juíza da Suprema Corte de Justiça,
Ertha Pascal-Trouillot e após as lideranças políticas assumirem o compromisso com
a democratização do país, o Haiti, em dezembro de 1990, tem finalmente sua
primeira eleição presidencial democrática:
Foi na administração de Trouillot que, pela primeira vez na história haitiana, as lideranças políticas se dispuseram a assumir um autêntico compromisso com a democratização das instituições políticas nacionais. Eleições presidências foram marcadas para dezembro de 1990; uma lei eleitoral aprovada em meados do ano; e um conselho Eleitoral Provisório instituído para administrar o processo eleitoral.39
Diante de tal situação, o criador do partido Fanmi Lavalas,
padre Jean-Bertrand Aristide, com o apoio da Frente Nacional para a Mudança e a
Democracia (Front National pour le Changement et La Democratie – FNCD), da
Coalizão de pequenos partidos antiduvalieristas, bem como da camada mais
carente da população, vence as eleições com 67,48% dos votos de 1,6 milhões dos
eleitores, após uma campanha que tinha como fundamentos a democratização e
respeito aos direitos humanos.40
37 CÂMARA, Irene P. de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitina – 1991 – 1994. p. 54.38 Ibidem, p. 55-56. 39 Ibidem p. 55. 40 Ibidem, p. 59-60.
24
Ao assumir o Governo, no dia 7 de fevereiro de 1991, o
Presidente deu início ao seu mandato constitucional de cinco anos. A palavra de
ordem usada por Aristide, Lavalas (torrente em créole) “continha a promessa de
moralização da máquina governamental, pelo afastamento dos macoutes antigos
expoentes duvalieristas dos cargos públicos federais ou Departamentais.”.41
Também conhecido como Père Titid, Aristide causava grande
inquietude entre as classes dominantes42, os militares e a oposição de direita, a qual
passou a exercer fortes pressões junto ao Parlamento. Tal desconforto era causado
pela prática de sua política “lavalassiana”, as quais compreendiam o grande poder
de mobilização das camadas mais pobres, a substituição de duvalieristas que
possuíam altos cargos no Estado por correligionários de seu partido43.
Ademais, o recém presidente, com o intuito de beneficiar
imediatamente as camadas mais necessitadas, pretendia lançar um programa
econômico de emergência, que tinha como bandeira a justiça social. Gerar
empregos, aumentar salários, melhorar o atendimento em escolas e hospitais eram
alguns de seus objetivos.
Porém, as causas político-administrativas e de ordem
econômica não eram os únicos fatores que geravam o descontentamento dos
setores conservadores e conseqüentemente sua destituição em 30 de setembro de
1991. Duas outras razões corroboraram fortemente para a ocorrência de tal fato,
conforme se vislumbra nas palavras de Câmara:
A primeira teria a ver com o posicionamento assumido por Aristide perante a comunidade internacional no discurso Os Dez Mandamentos Democráticos, que pronunciou, em seu estilo político religioso, por ocasião da 46ª Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas. Em seu pronunciamento, o Presidente haitiano comprometeu-se a dar combate ao comércio de entorpecentes, conclamando as diversas nações a se comprometerem... com uma luta mais eficaz contra o flagelo das drogas diversas que corroem homem e mulheres.
41 Idem. 42 Seis grandes famílias, à época, detinham o poder econômico no país, a saber: Brandt, Mews, Accra, Biggio, Behemanns Madsen, 43 Ibidem, p. 60.
25
E segue:
[...] A segunda razão [...] o inflamado discurso dirigido por Aristide à nação em 26 de setembro de 1991, [...]. Insinuando que o povo deveria recorrer à violência para combater as forças da opressão, o Presidente teria feito infeliz alusão ao “suplício do colar” ou Père Lebrun, prática de longo tempo conhecida da população haitiana e que consistia em imobilizar a vítima, amarrando-lhe os braços, para incendiá-la com um pneu banhado em gasolina que lhe era colocado em torno de seu corpo. 44
O narcotráfico representava para os jovens soldados do
Exército e das forças policiais do Haiti uma fonte compensadora para seus salários
reduzidos. Já o segundo discurso teria acabado com a tolerância dos militares
haitianos, e estes, liderados pelo General de Exército Raoul Cedras, por mais uma
vez, aplicaram o golpe militar no dia 30 de setembro de 1991, depondo Jean-
Bertrand Aristide sem ao menos completar oito meses no poder.45
Aristide foi exilado nos Estados Unidos e após três anos de
negociações46 entre o então golpista Raoul Cedras, a Organização das Nações
Unidas – ONU, a Organização dos Estados Americanos - OEA, e a França, retorna
ao governo em 12 de outubro de 1994 a fim de cumprir seu mandato inicialmente
interrompido, permanecendo até 7 de fevereiro de 1996.47
Assim, tendo findado a legislatura, os haitianos clamaram por
novas eleições, saindo vitorioso desta vez o candidato René Preval, forte aliado
político de Jean-Betrand Aristide, ficando na liderança da nação por cinco anos, ou
seja, até 7 de fevereiro de 2001.48
Novamente são realizadas eleições, e Aristide é eleito pelo
povo haitiano com aproximadamente 92% dos votos. Fortes eram as especulações
44 Ibidem, p. 64-65. 45 Ibidem, 64.46 As negociações se resumiram basicamente em uma brusca imposição de sanções econômicas por parte da comunidade internacional sobre o Haiti, as quais somente agravaram o estado de pobreza do povo haitiano. 47 DANTAS, George Felipe de Lima. ONU, Hispaniola e Haiti: algumas considerações sobre a participação brasileira na MINUSTAH -- Uma Missão de Segurança Pública? Disponível em <cascavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_busca/processaArquivo.php?> Acesso em 15/09/2010. 48 Ibidem.
26
de que tais eleições teriam cunho fraudulento. Por mais uma vez, Père Titid passa
por um governo muito conturbado, como assim nos explica Dantas:
Aristide, reeleito com 92% dos votos, reassume a presidência em 7 de fevereiro de 2001. O segundo mandato de Jean-Bertrand não deixa de ser acidentado como o primeiro. Aristide tem de deixar o Haiti em 29 de fevereiro de 2004, por força de um exílio auto-imposto, alegando com isso tentar evitar um "banho de sangue" entre seus correligionários e opositores. Aponta também que a situação de crise seria fruto de um complô envolvendo forças conservadoras dos EUA e da França.49
Frisa-se nesse contexto que o Presidente da Suprema Corte
Boniface Alexandre assumiu o cargo de presidente interino do país, solicitando
imediato apoio à Organização das Nações Unidas - ONU.
1.3 A REAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS FRENTE À CRISE HAITIANA
No início da década de 90 o Haiti se encontrava em uma
situação devastadora. A onda de violência somada à deterioração das estruturas
sócio-econômicas geravam, por sua vez, uma gritante afronta aos direitos humanos.
Além disso, o embargo econômico e as demais medidas impostas pela Comunidade
Internacional fizeram com que a realidade vivida pelos haitianos se tornasse um
caos.
Tais fatos fizeram com que a Organização das Nações Unidas
– ONU tomasse uma atitude, qual seja a instituição de missões no país. Desta
forma, durante o período de 1993 a 2000, foram desenvolvidas as seguintes
missões:
Missão Resolução Período Objetivos
United Nations
Mission in Haiti –
UNMIH50
867/1993 Setembro
de 1993 a
junho de
Cooperar com a
implementação das
determinações do acordo de
49 Idem. 50 UNITED NATIONS Department of Peacekeeping Operations (DPKO) Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmihmandate.html> Acesso em 20/08/2010.
27
940/1994
975/1995
1048/1996
1996 Governors Islands; Assistir o
governo democrático a manter
um ambiente estável;
Profissionalizar as Forças
Armadas e criar uma força de
polícia separada; Estabelecer
um ambiente viável à
realização de eleições livres e
justas
United Nations
Support Mission in
Haiti - UNSMIH51
1063/1996 Julho de
1996 a
julho de
1997
Assistir o governo na
profissionalização da polícia;
Manter um entorno seguro e
estável necessário ao sucesso
do estabelecimento e
treinamento de uma força
policial nacional efetiva;
Coordenar as atividades do
sistema da ONU na promoção
da construção de instituições,
reconciliação nacional e
reabilitação econômica;
United Nations
Transition Mission
in Haiti - UNTMIH52
1123/1997 Agosto a
novembro
de 1997
Assistir o governo através do
suporte e contribuição à
profissionalização da PNH;
Treinamento de unidades
especializadas em controle de
multidões, força de reação
Tradução nossa. 51 UNITED NATIONS Department of Peacekeeping Operations (DPKO)Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unsmih.htm> Acesso em 20/08/2010. Tradução nossa. 52 UNITED NATIONS Department of Peacekeeping Operations (DPKO) Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/untmih.htm> Acesso em 20/08/2010. Tradução nossa.
28
rápida e a segurança do
palácio nacional;
United Nations
Civilian Police
Mission in Haiti –
MIPONUH53
1141/1997 Dezembro
de 1997 a
Março de
2000
Assistir o Governo na
profissionalização da Polícia
Nacional, com ênfase especial
na assistência em nível de
supervisão e treinamento de
unidades de polícia
especializadas;
Aconselhamento sobre o
desempenho da polícia,
guiando agentes policiais em
deveres do cotidiano e
mantendo coordenação
próxima aos conselheiros
técnicos da Polícia fundada
pelo Programa de
Desenvolvimento da ONU e
doadores bilaterais.
Diante do fracasso das missões acima mencionadas, nos
quatro anos subseqüentes à UNITED NATIONS Civilian Police Mission in Haiti, a
situação do país somente piorou. Uma nova intervenção por parte da Comunidade
Internacional era imprescindível. Frente a esta situação, no ano de 2004, a
Organização das Nações Unidas determinou, por meio da Resolução 1529 (2004), o
estabelecimento de uma Força Multinacional de Paz, formada pelos Estados Unidos,
França, Chile e Canadá.
A citada força de paz tinha por principais objetivos garantir a
governabilidade do Presidente interino Boniface Alexandre e preparar o país para a
53 UNITED NATIONS Department of Peacekeeping Operations (DPKO) Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/miponuh.htm> Acesso em 20/08/2010. Tradução nossa.
29
chegada das tropas de uma nova Missão, qual seja a Missão das Nações Unidas
para a Estabilização do Haiti – MINUSTAH, instituída pela Resolução 1542 (2004).54
Capítulo 2
EM BUSCA DA PAZ
2.1 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU
Após a Segunda Guerra Mundial, se fez necessária a criação
de uma organização que garantisse a paz e a segurança pelo mundo, tendo em
54 CORBELLINI, Mariana Dalalana. Haiti: Da Crise à MINUTAH. Porto Alegre, 2009. 155f.Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
30
vista as atrocidades e as mazelas que este conflito mundial trouxe para a
humanidade.
Assim, após incansáveis trabalhos e incessantes discussões
entre representantes de cerca de 50 países, foi elaborada a Carta das Nações
Unidas na cidade de São Francisco – CA, sendo então ratificada no dia 24 de
outubro de 1945. Nesta data nasce oficialmente a Organização das Nações Unidas -
ONU.
A idéia da nova organização mundial foi ventilada pelo então
presidente americano Franklin Roosevelt e pelo primeiro ministro inglês Winston
Churchill na Carta do Atlântico de agosto de 1941, aproximadamente quatro meses
antes do ataque nipônico a Pearl Harbor.55 Os planos para a sua criação ganharam
espaço durante o conflito que ensangüentou o mundo, período este compreendido
entre 1939 e 1945, conforme nos explica Viotti:
A Organização das Nações começa a ser discutida antes do fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira menção a um “sistema amplo e permanente de segurança geral” está na Carta do Atlântico (1941), entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Em Durbanton Oaks (1944), delegados dos chamados “quatro grandes” – EUA, Inglaterra, URSS e China – acordaram um texto-base, que seria apresentado para discussão e votação em São Francisco. No dia 26 de junho de 1945, representantes de 50 países assinaram a Carta da ONU.56
Neste mesmo sentido, nos explanam Herz e Hoffmann:
Embora a formação de uma organização multilateral universal não fosse consenso desde o início das negociações, o tema da segurança coletiva dominou os debates entre as delegações dos Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética. O texto básico foi então examinado pelos participantes da Conferência de São Francisco em abril de 1945, quando a ONU foi criada por cinqüenta países. Em 24 de outubro de mesmo ano, com a ratificação da carta pelos futuros membros do Conselho e pela maioria dos países, a ONU passou a existir oficialmente.57
55 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 25.56 VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Ações humanitárias pelo Conselho de Segurança: entre a Cruz Vermelha e Clausewitz. p. 82.57 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações internacionais: história e práticas. p. 97.
31
A ONU pode ser compreendida de diversas formas. Araújo a
define como sendo:
“[...] uma organização internacional, de caráter geral, baseada no princípio da soberana igualdade de todos os Estados amantes da paz e aberta à participação de todos esses Estados, grandes e pequenos, para a manutenção da paz e da segurança internacional.”.58
Já Herz e Hoffmann alegam ser:
“[...] uma organização intergovernamental, sendo a arena mais universal para a negociação de normas internacionais, mas também é um ator assumindo posições e produzindo idéias dentro dos limites estabelecidos pelos os estados que a constituíram.”.59
As Nações Unidas conta hoje com 192 Estados soberanos, tem
por objetivos manter a paz e a segurança pelo mundo, promover o progresso social,
melhores padrões de vida e direitos humanos, além de fomentar relações cordiais
entre as nações. Saliba nos elenca os princípios norteadores da Organização, a
saber: “igualdade, boa-fé, solução pacífica de disputas, proibição da ameaça ou uso
da força e da não intervenção em assuntos internos.”.60
A ONU possui sua sede central na cidade de Nova York,
apresentando ainda sedes em Genebra (Suíça), Viena (Áustria), Nairóbi (Quênia) e
escritórios espalhados pelo mundo todo.
A Carta de São Francisco institui os seis órgãos componentes
da estrutura principal da Organização, a saber: a Assembléia Geral, o Conselho de
Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, a Corte
Internacional de Justiça e o Secretariado.
A Assembléia Geral, formada atualmente por 192 Estados
membros, é o principal órgão deliberativo da ONU. Sua função, dentre outras, é a de
discutir questões condizentes às finalidades da Organização. Pode a Assembléia
fazer recomendações ao Conselho de Segurança nos assuntos de sua competência 58 ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações internacionais p. 25. 59 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações internacionais: história e práticas. p. 98. 60 SALIBA, Aziz Tuffi Saliba. Conselho de Segurança da ONU. Sanções e limites jurídicos. Curitiba: Juruá. 2009. p. 115-6
32
e estabelecer programas a serem desenvolvidos pelo Secretariado. Cumpre ainda à
Assembléia Geral definir prioridades, convocar conferências internacionais, aprovar
o orçamento e adotar resoluções em diversos temas. Vale ressaltar que tais
resoluções não obrigam os países que fazem parte respeitá-las, servindo elas para
expressar a opinião da maioria dos Estados membros.61
Sobre este órgão das Nações Unidas extrai-se das palavras de
Herz e Hoffmann o seguinte:
A norma de igualdade entre Estados soberanos é expressa no funcionamento da Assembléia Geral, pois o princípio de um voto para cada Estado é a base do processo decisório e é seu órgão mais representativo. A Assembléia é a grande arena da ONU na qual as mais diversas questões são discutidas. Muitas vezes ela funciona como o corpo legislativo da ONU, com suas resoluções estabelecendo a base para novas normas do direito internacional e com a produção de tratados multilaterais.62
Além das atribuições acima, vale salientar que a Assembléia
Geral poderá versar acerca de assuntos condizentes à paz e à segurança
internacionais, caso haja a impossibilidade do Conselho de Segurança em fazê-lo,
por meio da convocação de uma Sessão Especial de Emergência.63
Ademais, outras duas competências da Assembléia-Geral,
condizentes as Missões de paz de ONU merecem ser destacadas. A primeira diz
respeito ao estabelecimento de princípios e regras. Por meio do Comitê Especial
sobre Operações de Manutenção da Paz, a Assembléia delibera questões
financeiras, administrativas e organizacionais, além da segurança dos boinas azuis64
em terreno.65
61 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 30.62 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações Internacionais: historia e práticas. p. 97.63 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 59. 64 Este termo se refere aos componentes das tropas multinacionais que servem nas Forças de Paz da ONU. Tal expressão é devida pelo fato de que essas tropas utilizam boinas e capacetes na cor azul, sendo esta representativa das Nações Unidas.65 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 109.
33
A segunda se refere à aprovação do orçamento das operações.
Fontoura nos descreve as cinco fases deste processo orçamentário, culminando
com o papel decisivo da Assembléia-Geral, senão vejamos:
[…] (a) preparação de um orçamento preliminar pelo Secretário-Geral para informação dos membros do Conselho de Segurança; (b) proposta do orçamento definitivo por parte do Secretariado; (c) consideração do orçamento pelo Comitê Consultivo em Questões Administrativas e Orçamentárias (ACABq); (d) exame conjunto da proposta de orçamento elaborado pelo Secretariado e do relatório do ACABq pela V CoMissão do AGNU; e (e) aprovação do Orçamento pela AGNU;66
Já o Conselho de Segurança, composto por cinco Estados
permanentes67 com direito de veto e dez membros eleitos pela Assembléia Geral,
possui como função principal a manutenção da paz e da segurança nas relações
internacionais. No que tange as suas atribuições, Araujo nos destaca as seguintes:
[...] solicitar aos Estados-membros a aplicação de sanções econômicas ou outras medidas capazes de evitar ou deter qualquer agressão; recomendar a Assembléia a admissão de novos membros e as condições sob as quais os Estados poderão tornar-se partes do Estatuto da Corte Internacional de Justiça; recomendar a Assembléia a suspensão e expulsão de Estados-membros da Organização; exercer as funções de tutela das Nações Unidas nas “zonas estratégicas”.68
É de extrema relevância frisar que cabe ao CSNU tratar de
“qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão”, além de deliberar
acerca de questões internas dos Estados-membros desde que em consonância com
o Capítulo VII da Carta de São Francisco. Já que não há uma definição clara que
diga respeito ao termo “ameaça” é conferido ao CSNU o amplo poder discricionário
de defini-lo. 69
O Conselho Econômico e Social – ECOSOC é composto por
54 Estados-membros eleitos pela Assembléia Geral por dois terços dos Estados
66 Ibidem p. 108. 67 Os Estados permanentes são: EUA, França, Rússia, China e Grã-Bretanha.68 ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações internacionais. p.37.69 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 53.
34
presentes e votantes para um período de três anos. A eleição ocorre anualmente
para a renovação de um terço desse Órgão, permitindo-se a reeleição.
Referido órgão vem regulamentado nos artigos 61 a 72 da
Carta de São Francisco de 1945. Sobre ele, Silva assevera que “[…] é o órgão
encarregado não só dos assuntos econômicos e sociais […] mas igualmente do
respeito e proteção aos direitos humanos e liberdades fundamentais.70
Assim, o principal objetivo desse Conselho é criar condições de
estabilidade e bem estar para os países. Para tanto, suas funções compreendem
“assuntos de caráter econômico, social, cultural, sanitário, bem como os que digam
respeito à observância dos direitos do homem, tendo em vista assegurar dos
indivíduos e o respeito às liberdades fundamentais para todos.”.71
O Conselho de Tutela, atualmente com suas atividades
suspensas, tinha o papel de monitorar a administração dos territórios que ainda não
haviam conquistado a plena capacidade de governo, fazendo visitas e
confeccionando relatórios sob as condições desses povos. Herz e Hoffmann revelam
que “[...] suas atividades foram interrompidas quando a ilha de Palau adquiriu
independência em 1994.”.72
A Corte Internacional de Justiça, principal órgão do Judiciário
da ONU, possui sua sede em Haia, na Holanda. Sua tarefa compreende a resolução
de litígios entre os Estados, fornecendo ainda consultas aos países bem com as
Organizações Não-Governamentais. As palavras de Herz e Hoffmann nos ilustram a
sua composição e o seu papel, senão vejamos:
A Corte Internacional de Justiça, formada por quinze juízes eleitos para um mandato de nove anos, emite decisões sobre disputas legais entre Estados e opiniões sobre questões legais referidas a ela. A Corte contribui para a resolução pacífica das disputas, particularmente quando a definição de fronteiras marítimas e terrestres é contestada. Os trabalhos foram iniciados em 1946, quando a Corte substituiu a Corte Internacional Permanente de Justiça, em Haia.73
70 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 2.ed. Belo Horizonte: Delrey, 2002, 312-371 ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações internacionais. p. 4172 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações Internacionais: história e práticas. p. 10173 Idem.
35
O Secretariado é o órgão administrativo da ONU. É constituído
pelo Secretário-Geral74, eleito pela Assembléia Geral para um mandato de cinco
anos e, por outros funcionários das Nações Unidas. Acerca do Secretário-Geral,
Rodrigues ressalta que
O papel e a função do Secretário-Geral está crescendo em importância nas questões de paz e segurança, principalmente nas crises que requerem o exercício dos “bons ofícios” e da diplomacia preventiva. No entanto, sua função se resume na persuasão, não podendo iniciar medidas de contenção de conflitos como as forças de manutenção da paz e outras sanções previstas no capítulo VII. Estas são funções exclusivas do Conselho de Segurança.75
Já o corpo de funcionários das Nações Unidas trabalha nas
sedes de Nova York, Genebra, Viena, Nairóbi, além dos demais escritórios e
Departamentos espalhados pelo mundo.
Cumpre ressaltar outra atribuição importantíssima do
Secretariado, qual seja a condução de uma Missão de paz. Para tanto este órgão
conta principalmente com ajuda do Departamento de Operações de Manutenção da
Paz (Department of Peacekeeping Operations – DPKO), o qual é incumbido de
preparar, planejar, dirigir e gerenciar, de forma política e executiva, as referidas
operações.76
2.1.1 A Carta de São Francisco e seu compromisso com a paz
A Carta de São Francisco, também conhecida como a Carta
das Nações Unidas, foi o documento fundador da ONU. Conforme já relatado, ela
entrou em vigor no dia 24 de outubro de 1945, após a ratificação da maioria dos
Estados-membros que participaram da Conferência das Nações Unidas sobre
Organização Internacional ocorrida na cidade de São Francisco/EUA, entre os
meses de abril e junho do mesmo ano.
74 O Secretário Geral é o chefe administrados da ONU. 75 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 31. 76 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping /info/mission>. Acesso em: 16 de outubro de 2010.
36
A estrutura da Carta compreende 19 capítulos, possuindo ao
todo 111 artigos. Seu conteúdo “expressa interesses comuns de seus Estados-
membros, como a necessidade de limites mútuos e a observância recíproca de
certas normas, como a promoção dos direitos humanos.”.77
Viotti tece ainda as seguintes considerações sobre ela, quando
menciona que:
[...] a Carta é, de certo modo, uma “Constituição” embrionária da comunidade internacional, seja pela extensão e complexidade de suas funções, seja pela posição hierárquica dos princípios e obrigações nela assumidos frente a outras normas de Direito Internacional. É na verdade um tratado sui generis, que estabelece organização com “vida própria” e personalidade jurídica distinta de seus membros. Ao aderir à organização, o Estado-membro consente não apenas a número de obrigações bem definidas, como também a estatuto jurídico próprio, de participação quase-universal e definido nas competências e nos poderes de seus órgãos, como a AGNU e o CSNU.78
Ao manusearmos a Carta das Nações Unidas, nos deparamos
prontamente com o principal objetivo da Organização, qual seja a manutenção da
paz e da segurança internacionais. O seu art. 1 (1) deixa bem claro tal assertiva,
senão vejamos:
Artigo 1
Os propósitos das Nações unidas são:
1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;79
77 VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Ações humanitárias pelo Conselho de Segurança: entre a Cruz Vermelha e Clausewitz. p. 83. 78 Idem. 79 NAÇÔES UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. São Francisco, 26 de junho de 1945. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php> Acesso em 18 de outubro de 2010.
37
Além disso, a primeira alínea do preâmbulo também elucida o
desejo de “preservar as futuras gerações do flagelo da guerra, que por duas vezes,
no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis para a humanidade.”.80
Diante deste primado propósito da ONU, cabe definir na Carta
a localização dos preceitos que compõem o sistema de segurança coletiva81. Este
sistema, conforme destaca Fontoura, “é reforçado por um conjunto de propósitos e
princípios, capitulados nos artigos 1 e 2 daquele instrumento82, que deve nortear o
relacionamento dos Estados no cenário internacional.”.83
O aparato de manutenção da paz e da segurança
internacionais, termos estes que a Carta das Nações consagrou e evitou assim usar
outros como “segurança coletiva” e “guerra”, têm suas principais medidas previstas
nos Capítulos VI e VII. Neste sentido, nos explica Rodrigues que:
A Carta, no Capítulo VI, prevê os meios pacíficos de resolução de conflitos. Fracassados estes, o Conselho pode optar por outras medidas para fazer cumprir suas decisões que vão desde sanções que não envolvem o emprego de forças armadas até ações militares intervencionistas.84
Desta forma, não havendo a resolução da lide entre os Estados
por meios pacíficos (negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem,
solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio
pacífico), o Conselho de Segurança poderá usar-se do Capítulo VII, o qual abrange
“Ação relativa à ameaça à paz, rupturas da paz e atos de agressão” a fim de que
sejam efetivadas as suas decisões.
80 Idem81 Para Herz e Hoffmann o sistema de segurança coletiva “é um mecanismo de administração do sistema internacional mais estreitamente vinculado às organizações internacionais. O sistema é baseado na idéia de criação de um mecanismo internacional que conjuga compromissos de Estados nacionais para evitar, ou até suprimir a agressão de um Estado contra o outro. HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações Internacionais: historia e práticas. p.99 Já a Comissão de Medidas Coletivas, em relatório de 1951, definiu a segurança coletiva como sendo um “plano para um sistema de sanções que possa evitar a ação de qualquer Estado tentado a cometer agressão ou, não o conseguindo, assegurar que o agressor tenha de se defrontar não unicamente com sua vítima, mas com a força unida da comunidade internacional”. FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 50. 82 Leia-se Carta das Nações Unidas. 83 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 50. 84 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: A prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 33.
38
É deste capítulo que se extraem as sanções e a intervenção
militar. O artigo 41 nos apresenta as eventuais sanções não militares que poderão
ser empregadas, com o intuito da resolução do litígio, sem o emprego da força:
O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas.85
Rodrigues salienta que “[...] no contexto da globalização,
prolongadas sanções podem ser bastante prejudiciais para o país alvo, tornando-se
uma medida de freqüente uso na tentativa de resolução de conflitos”. Neste sentido
a mesma autora nos cita os exemplos abaixo:
Sanções econômicas gerais foram aplicadas à Rodésia de 1966 a 1979, ao Iraque após a invasão do Kuwait em 1990 e a Servia e Montenegro em 1992. Embargos de suprimentos de armas foram impostos à África do Sul em 1977, à antiga Iugoslávia em 1991, à Somália e à Libéria em 1992 e restrições ao fornecimento de petróleo ao Haiti em junho de 1993. [...] Sanções ajudaram a restaurar o regime democrático no Haiti e as medidas econômicas impostas à Iugoslávia foram uma das razões pelas quais o presidente sérvio Slobodan Milosevic foi persuadido a negociar o Acordo Dayton.86
Com relação à intervenção militar autorizada pelo Conselho de
Segurança, necessário se faz a menção de alguns dispositivos presentes no capítulo
VII da Carta de São Francisco. Trata-se dos artigos 42, segundo o qual poderá o
CSNU levar a efeito ações por meio de forças aéreas, navais ou terrestres a fim de
manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais; 43, que expressa que
todos os membros devem disponibilizar forças armadas, assistência, facilidades,
incluindo direito de passagem necessários à manutenção da paz e da segurança
internacionais; e 45 o qual, por sua vez, sujeita os Estados-membros a manterem
em prontidão contingentes de forças aéreas nacionais para a execução combinada
de uma ação coercitiva internacional.
85 NAÇÔES UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. São Francisco, 26 de junho de 1945. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/documentos _carta.php> Acesso em 18 de outubro de 2010.86 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 37.
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Além disso, outra hipótese que possibilita a utilização da força
armada é o direito à legítima defesa, conforme traz o artigo 51 ao prescrever que
“Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual
ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações
Unidas”.87
Acerca da legítima defesa, Ávila e Rangel argumentam que ela
“[...] exige o descumprimento do Direito Internacional por uma parte, e apenas uma
parte. Tão-somente o recurso ilegal à força cria a possibilidade de tal mecanismo ser
utilizado. [...] é um direito do Estado ofendido, mas jamais uma obrigação.”.88
2.1.2 As operações de manutenção da paz da ONU
As operações de manutenção da paz da ONU passaram por
transformações com o passar dos anos, haja vista as constantes modificações
ocorridas no cenário internacional nos últimos 60 anos. Assim, num primeiro
momento, imprescindível é a apresentação de um breve histórico acerca dessas
operações a fim de uma melhor compreensão de seu conceito e seus objetivos.
2.1.2.1 Breve Histórico
As operações de manutenção da paz clássicas ou “classical
peacekeeping” foram as primeiras operações de manutenção da paz, sendo elas
desenvolvidas entre 1947 a 1985. Foram ao todo realizadas treze missões, as quais
por sua vez compreenderam o período da Guerra Fria.
Segundo Rodrigues, as operações de manutenção clássicas,
também conhecidas como tradicionais, são distinguidas das outras missões
empreendidas pela ONU pelas seguintes características:
[...] a existência de um cessar fogo, o consentimento e a cooperação de todas as partes envolvidas no conflito, a pretensão de não ser uma medida coercitiva, o uso de armamentos leves, como veículos
87 NAÇÔES UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. São Francisco, 26 de junho de 1945. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/documentos _carta.php> Acesso em 18 de outubro de 2010.88 ÁVILA, Rafael. RANGEL, Leandro de Alencar. A Guerra e o direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 2009. p. 128-9.
40
de transporte e helicópteros de carga, e a imparcialidade da operação realizada pelo Secretário Geral.89
Herz e Hoffmann nos explicam que “As primeiras missões de
observação da ONU, compostas por observadores militares foram aprovadas já em
1947 e 1948.”, ressaltando ainda que “As missões de observação são formadas por
um pequeno contingente desarmado distribuído em uma região após o
estabelecimento de um cessar fogo.”.90
Ainda, segundo as autoras, a primeira Missão tinha por objetivo
verificar o apoio externo recebido pela guerrilha grega – Comitê das Nações Unidas
para os Bálcãs, e a segunda visava o monitoramento do cessar fogo nas fronteiras
israelenses – UNITED NATIONS Truce Supervision Organization – UNTSO, a qual
se encontra ainda na ativa.
Contudo, um segundo tipo de operação de paz surge na
década de 50, conforme se extrai das palavras de Herz e Hoffmann:
A crise do canal de Suez em 1956 permitiu o desenvolvimento do novo conceito de operações de paz. Em 1956 foi criada a primeira força de manutenção da paz e o termo “operação de manutenção da paz” foi incorporado ao vocabulário da ONU (UNEF I – UNITED NATIONS Emergency Force). A operação tinha como mandato a separação de forças israelenses e egípcias e durou onze anos. [...] As forças foram lideradas por um general canadense. [...] O peso da neutralidade e as funções das operações de paz foram articulados nesse contexto. [...] Essa Missão foi peculiar já que foi criada pela Assembléia Geral, dada a obstrução do processo decisório pelos vetos britânicos e franceses.
Durante a Guerra Fria, as divergências políticas e ideológicas
entre os membros permanentes do Conselho de Segurança fizeram com eles
engessassem as instituições das missões de paz, através do uso exagerado do
poder de veto.
Porém, uma operação ainda merece destaque nesta
temporada. Não por ter sido uma grandiosa Missão, muito pelo contrário, senão
vejamos os dizeres de Rodrigues: 89 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 48.90 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações internacionais: historia e práticas. p. 108.
41
[...] a operação iniciada no Congo ilustra os limites das novas medidas militar. A criação da ONUC (UN Operation in the Congo) quase levou a ONU à falência e ocasionou a morte do Secretário Geral Hammarskjold. [...] As forças da ONU se tornaram um exército armado a serviço do governo, perdendo a cooperação das partes em luta e de muitos países que davam suporte a operação.91
Findo o período da Guerra Fria, a proliferação das operações
de manutenção de paz aumenta significativamente. Uma nova era se inicia no
campo das missões de paz, surgindo, por sua vez, as Missões Multidisciplinares ou
de Segunda Geração. Diante deste contexto, Fontoura assevera que
Três fatores concorreram, em linhas gerais, para o aumento das operações de manutenção da paz: a) a distensão política entre os EUA e a União Soviética e seu impacto sobre o papel das Nações Unidas no campo da paz e da segurança internacionais; b) o afloramento de antagonismos étnicos e religiosos; e c) a crescente universalização dos valores da democracia e do respeito aos direitos humanos.92
As distinções entre as missões clássicas e as missões
multidisciplinares também são apresentadas por Rodrigues, quando relata que
Essencialmente o que diferencia a nova geração de operações de manutenção da paz das tradicionais é o uso do pessoal civil e militar da ONU em questões historicamente consideradas de assunto puramente doméstico dos Estados. As operações inauguradas no pós-guerra Fria são muito diferentes em escopo e mandato, que inclui a monitoria de eleições, a remoção de minas, a verificação do respeito aos direitos humanos, a distribuição de ajuda humanitária sob fogo, a reconstrução de Estados falidos, o desarme e desmobilização de combatentes e até o ambicioso esforço de impor a paz entre as partes dispostas a continuar na guerra. Representam a conjunção simultânea de atividade política, militar e hierárquica.93
Ao diferenciar esses dois tipos de operações, Rodrigues nos
leva a inferir que as Operações Multidimensionais possuem um mandato muito mais
complexo que os das operações clássicas. Herz e Hoffmann afirmam ainda que as
91 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 46-7.92 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 7693 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 51-2.
42
atividades desenvolvidas pela Organização consistem desde a supressão da
violência até a criação de condições para uma paz duradoura.94
Outras características que distinguem as operações
multidisciplinares das operações clássicas são nitidamente encontradas nas
palavras de Tschumi, ao relatar que
As operações multidisciplinares atuam em conflitos intra-estatais; realizam tarefas de cunho humanitário e civil (administrar e reconstruir o país, além de operações militares; dispõem de funcionários civis (técnicos e administradores), policiais e militares; trabalham com metas de médio-longo prazo para assegurar a futura estabilidade do país e possuem múltiplos atores (ONU, agências especializadas, partes em conflitos, países contribuintes, organizações internacionais, mídia e facções criminosas). [...] as operações clássicas atuavam em conflitos interestatais; possuíam uma única função essencial: supervisionar o cessar-fogo; eram compostas essencialmente por militares; objetivo de curto prazo – garantir a trégua até a assinatura do acordo de paz e possuem atores facilmente identificáveis – ONU, Estados em conflito e Estados participantes da Missão.95
Desta forma, as novas missões se apresentam como sendo de
caráter civil e humanitário. O dinamismo dessas operações exigiu não só o
comprometimento das Nações Unidas, mas também o de outros atores
internacionais (ONG’s, organizações regionais e instituições financeiras
internacionais).
Ademais, o período pós-guerra Fria resta caracterizado pela
propagação de guerras civis e outros conflitos armados intra-estatais, os quais
ameaçam a paz e segurança internacional causando um forte sofrimento humano.96
Cabe salientar que foram mais de 40 missões desenvolvidas
pelas Nações Unidas no pós-guerra Fria. Dentre todas elas pode-se citar como
exemplos desse tipo de operações a “Missão Avançada das Nações Unidas no
Camboja” – UNAMIC, estabelecida por meio da resolução 717 de 16 de outubro de
94 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações internacionais: historia e práticas. p.11195 TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da Segurança Coletiva e a manutenção da paz internacional. p. 259-60.96 UNITED NATIONS Department of Public Information. An introduction to UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em <http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/intro/> Acesso em 22 de Outubro de 2010. (Tradução nossa).
43
1991; e a “Operação das Nações Unidas em Moçambique” - ONUMOZ, estabelecida
através da Resolução 797 de 16 de novembro de 1992. Seus trabalhos
compreenderam o âmbito político, militar e humanitário desses dois países.
Foi ainda na década de 90 que importantes documentos foram
elaborados a fim de caracterizar e até mesmo repensar a prática das operações de
paz da ONU. Dentre eles cita-se “Uma Agenda para a Paz” e “Suplemento de uma
Agenda para a Paz, criados respectivamente em 17 de junho de 1992 e 03 de
janeiro de 1995 pelo então Secretário Geral das Nações Unidas Boutros-Ghali.97
Esses documentos abriram um novo horizonte na esfera das
Missões das Nações Unidas com recomendações que visavam fortalecer e tornar
mais eficientes a capacidade da ONU para a diplomacia preventiva (peacemaking),
manutenção da paz (peacekeeping) e construção da paz (peacebuilding).
Da mesma forma, porém em 2000, o Painel sobre as
Operações de Paz das Nações Unidas, convocado por Kofi Annan, Secretário-Geral
à época, deu origem ao Relatório do Painel sobre as Operações de Paz das Nações,
também chamado de Relatório Bahimi98. O objetivo principal do estabelecimento do
Painel consistia na análise das operações de paz da ONU bem como de identificar
em quais pontos a prática das referidas operações poderia ser mais efetiva e como
melhorá-la.99
97 Os documentos podem se consultados em <http://www.un.org/docs/SG/> Acesso em 22 de Outubro de 201098 Atribuiu-se o nome de Lakhdar Brahimi, ex-Ministro das Relações Exteriores da Argélia, o qual foi líder na elaboração do Painel. 99 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. UNITED NATIONS Peacekeeping: Meeting New Challenges. 2006. Disponível em: <www.un.org/Depts/dpko/dpko/faq/q&a.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.
44
2.1.2.2 Definição, princípios e criação
Como relatado anteriormente, as operações de paz passaram
por uma constante evolução, a fim de atenderem as necessidades dos diferentes
conflitos e panoramas internacionais. Com isso, além do termo “manutenção da paz
- Peacekeeping”, outras expressões surgiram neste cenário, como “Diplomacia
Preventiva - Conflict Prevention”, “Estabelecimento da paz – Peacemaking”,
“Construção da Paz - Peacebuilding” e “Imposição da Paz – Peace Enforcement”.
Cumpre destacar que a Carta das Nações Unidas não cunhou
esses termos em nenhum dos seus artigos. Porém alguns documentos da
Organização buscaram, de certa forma, defini-los. É o caso do General Guidelines
for Peacekeeping Operations, o qual nos conceitua “Manutenção da paz” da
seguinte forma:
[...] é uma dentre uma série de atividades realizadas pelas Nações Unidas e outros atores internacionais para manter a paz e a segurança internacionais em todo o mundo. [...] é uma técnica destinada a preservar a paz, porém frágil, onde a luta foi interrompida, e auxiliar na implementação dos acordos alcançados pelos pacificadores. Ao longo dos anos, a manutenção da paz tem evoluído a partir de um modelo essencialmente militar de observar o cessar-fogo e de separação de forças depois de guerras interestatais, a incorporar um modelo complexo de muitos elementos - militares, policiais e civis - que trabalham juntos para ajudar a lançar as bases uma paz sustentável. 100
No que diz respeito à chamada “Diplomacia Preventiva -
Conflict Prevention” a Agenda para a Paz, em seu parágrafo 20, define como sendo
“a ação destinada a previnir o surgimento de disputas, impedir que as disputas
existentes se transformem em conflitos armados ou, em último caso, diminuir a
amplitude e o impacto dos conflitos em andamento”.101
As missões de Estabelecimento da paz – Peacemaking, tidas
como as mais controversas, incluem medidas destinadas a resolver conflitos em
100 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. General Guidelines for Peacekeeping Operations. 2008. Disponível em: <www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/.../Capstone_Doctrine_ ENG.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.101 TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da Segurança Coletiva e a manutenção da paz internacional. p. 258.
45
andamento e, geralmente, envolvem a ação diplomática para trazer as partes hostis
a um acordo negociado. O Secretário-Geral, a pedido do Conselho de Segurança ou
a Assembléia Geral ou por sua iniciativa própria, poderá exercer os seus "bons
ofícios" para facilitar a resolução do conflito. Pacificadores também podem ser
enviados, governos, grupos de Estados, organizações regionais ou das Nações
Unidas.102
A Agenda para a Paz implementa esta definição, se referindo
ao “peacemaking” como “a ação que visa levar as partes hostis a um acordo,
essencialmente através de meio pacíficos como aqueles previstos no Capítulo VI da
Carta das Nações Unidas.”103
Já as operações de Construção da Paz – Peacebuilding
possuem como principal objetivo ampliar a confiança entre os povos e melhorar o
bem estar da população para que a paz não seja mais quebrada no futuro. Suas
ações envolvem projetos de caráter econômico, social e cultural, deixando de fora,
portanto, ações de cunho militar. Pode-se citar como exemplo de ações o
desarmamento, treinamento técnico para a formação de policiais, dentre outros. 104
Por fim, as missões de imposição da paz – Peace enforcement
envolvem a aplicação de uma série de medidas coercivas, incluindo o uso da força
militar. Tais ações buscam restaurar a paz e a segurança internacionais, em
situações em que o Conselho de Segurança determinou a existência de uma
ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão. Quando apropriado, o CSNU
poderá utilizar de organizações e agências regionais para uma ação coercitiva sob a
sua autoridade.105
102 UNITED NATIONS Department of Peacekeeping Operations. General Guidelines for Peacekeeping Operations. 2008. Disponível em: <www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/.../ Capstone_Doctrine_ ENG.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.103 CARDOSO, Afonso José S. C. O Brasil nas operações de paz das Nações Unidas. p. 49104 TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da Segurança Coletiva e a manutenção da paz internacional. p. 260-1.105 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. General Guidelines for Peacekeeping Operations. 2008. Disponível em: <www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/.../Capstone_Doctrine_ ENG.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.
46
Feitas as supras distinções, cabe agora elencar os princípios
fundamentais que compõem as missões de paz da ONU. A maioria dos autores cita
os princípios do consentimento, da imparcialidade e do uso da força como sendo os
três principais.
O Princípio do Consentimento foi consagrado com o
desdobramento da UNEF I no Egito em 1956. Tal princípio assegura o respeito ao
princípio da Não-Intervenção, sendo que sua ausência levaria as Nações Unidas a
não realizar a operação ou levá-la a cabo, com o amparo do Capítulo VII da Carta de
São Francisco, o que conseqüentemente transformaria a operação de manutenção
da paz em imposição da paz.106
Fontoura ainda nos explica que “nos conflitos interestatais, o
consentimento é dado por partes claramente identificáveis, havendo, portanto,
interlocutores para negociar e buscar soluções para questões específicas.”. 107 Por
outro lado, o mesmo autor afirma que nos conflitos intra-estatais o consentimento é
bem menos estável, tendo em vista a dificuldade de se identificar os interlocutores.
No que concerne a quebra deste princípio, Herz e Hoffmann
são claras em ressaltar que “A existência de populações submetidas à violência,
mesmo que pelos Estados exercendo soberania sobre o território onde as mesmas
habitam, passa a justificar a intervenção internacional.”.108
O princípio da imparcialidade vem estampado no General
Guidelines for Peacekeeping Operations109, o qual prescreve que as missões de
Manutenção da Paz devem implementar seus mandatos sem favorecer ou prejudicar
qualquer das partes. O mencionado documento ressalta ainda que a imparcialidade
é crucial para manter o consentimento e a cooperação das partes principais, porém
não deve ser confundida com neutralidade.
106 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 88. 107 Ibidem p. 89.108 HERZ, Mônica. HOFFMANN, Andrea R. Organizações internacionais: história e práticas. p. 118.109 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. General Guidelines for Peacekeeping Operations. 2008. Disponível em: <www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/... /Capstone_Doctrine_ ENG.pdf> Acesso em 16 de outubro de 2010.
47
Fontoura alega que certos autores, como Henry Wiseman e
Stevan Ratner aprofundaram os conceitos de “imparcialidade” e “neutralidade”.
Conforme estes autores, as Forças de Paz seriam somente imparciais no
cumprimento do mandato, e não neutras, tendo em vista que o mandato do CSNU é
baseado em uma decisão política, por vezes contra a uma das partes do litígio.110
No que se refere à importância deste princípio, Cardoso
argumenta que
[…] a imparcialidade e a objetividade na execução do mandato serão rigorosamente essenciais para o êxito da Missão, tanto no conflito entre Estados quanto nos conflitos internos. A objetividade e a imparcialidade na implementação do mandato não garantirão, sozinhas, o bom termo da empreitada. Na sua falta, porém, e mesmo nas causas de seu comprometimento, as possibilidades de êxito serão remotas, quando inalcançáveis.111
Rodrigues ressalta que a partir do momento em que as forças
militares passam a agir como uma das partes no conflito, a imparcialidade fica
comprometida, o que ocasiona a perda da confiança dos combatentes. Desta forma,
as tropas são rotuladas como inimigas, fato este que as tornam parte do problema
em que foram resolver, sendo por conseqüência alvos de ataques.112
O princípio do uso da força deve servir apenas em último
recurso e nos casos de legítima defesa. Entretanto, as operações mais recentes, as
quais incluíram em seu mandato a proteção à prestação de assistência humanitária,
modularam a limitação “ao uso da força de forma a ampliá-lo da autodefesa à
tentativa de remoção e à eventual redução dos obstáculos e da imposição que se
interponham à consecução do mandato.” 113 Acerca do presente princípio, Cardoso
sustenta:
A restrição no uso da força continuará a ser elemento chave na definição e execução das operações de paz. […] Não caberá dúvidas […] que os acidentes de percurso experimentado com o uso mal
110 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 97.111 CARDOSO, Afonso José S. C. O Brasil nas operações de paz das Nações Unidas. p. 31.112 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 52.113 Ibidem p.28.
48
sucedido por operações de paz multidimensionais tiveram, e terão provavelmente sempre um preço muito elevado.114
Rodrigues nos explica que o uso da força em apoio às
operações das Nações Unidas veio refletido na Agenda para a Paz de 1992. A
autora afirma que “se os meios pacíficos falharem, as medidas previstas no Capítulo
VII deverão ser usadas, segundo a decisão do Conselho de Segurança para manter
a paz e a segurança internacionais.”.115
Vale salientar que outros princípios regem a conduta das
operações de paz das Nações Unidas como o Apoio Contínuo e Ativo do Conselho
de Segurança, o Comprometimento Sustentado dos Países que Contribuem com
Tropas, a Legitimidade, o Mandato Claro e Alcançável, e o da Unidade.
Quanto à criação das Operações de Manutenção da Paz,
Fontoura salienta que ocorre em duas etapas:
Em um primeiro momento, o CSNU cria a operação por meio da votação, requerendo nove votos afirmativos, incluindo os dos Membros permanentes, que, à luz da prática em vigor, podem também abster-se. [...] Em um segundo momento, ocorre a convocação formal do CSNU, mormente para referendar resolução previamente acordada, quando então seus membros poderão eventualmente modificar a linguagem de certos parágrafos secundários e manifestar as posições nacionais.116
Instituída a operação e considerando que a ONU não possui
um corpo militar próprio, cabe aos Estados membros decidirem sobre a sua
participação e quais equipamentos estarão dispostos a fornecer.117
Por fim, no que se refere à natureza constitucional das
operações de paz, Cardoso sustenta nitidamente:
As operações de paz das Nações Unidas têm sua raiz constitucional nas medidas provisórias de que trata o artigo 40 da Carta. Assim,
114 Ibidem p. 30115 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: A prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 53. 116 FONTOURA, Paulo Roberto C. T. da. O Brasil e as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. p. 103117 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 49.
49
independentemente de serem desenvolvidas nos limites do Capítulo VI da Carta, ou nas dimensões do Capítulo 6 ½ que seriam, por excelência, seu domínio, as operações de paz teriam por referência constitucional disposição que se encontra no Capítulo VII do documento de São Francisco. Consequentemente, o estabelecimento de uma operação de paz pelo Conselho de Segurança ou, como já ocorreu, pela Assembléia-Geral, estaria condicionada com o reconhecimento, pelo menos, a existência de ameaça real à paz e à segurança internacionais.118
Desta forma, observa-se que as missões de paz das Nações
Unidas estão amparadas nos limites do Capítulo VI e no Capítulo VII da Carta de
São Francisco. Vale esclarecer que a expressão “Capítulo seis e meio” foi cunhada
por Dag Hammarkjöld, à época Secretaria Geral das Nações Unidas.119
118 CARDOSO, Afonso José S. C. O Brasil nas operações de paz das Nações Unidas. p. 41-2119 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. p. 48.
50
Capítulo 3
A MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ESTABILIZAÇÃO DO HAITI – MINUSTAH
3.1 AS PRINCIPAIS CAUSAS PARA SUA INSTITUIÇÃO
Conforme já relatado no Capítulo 1, o Haiti vivia nas últimas
décadas um clima caótico, seja pela instabilidade política, seja pelos altos níveis de
violência. Cabe agora analisar os principais motivos que ensejaram a instituição da
Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti - MINUSTAH.
3.1.1 A segurança pública no Haiti
Uma das causas para a criação da MINUSTAH foi a situação
desordenada na qual se encontrava a segurança pública no Haiti. O país estava
repleto de seqüestros, torturas e assassinatos, geralmente ocasionados por razões
políticas. Os grupos armados espalhavam o terror por todo o território haitiano,
sendo eles amparados por um sistema judicial e policial altamente precário e
ineficiente. Tais circunstâncias vêm ilustradas nas palavras de Verenhitach e Deitos:
A ausência do Estado em boa parte do território facilitou a proliferação de grupos armados civis, com diversos propósitos. Para fazer frente à oposição, o presidente constituiu e armou sua própria milícia, os chimères120. Enquanto isso, as gangues agiam com fins criminosos, cometendo assaltos, seqüestros e operando no tráfico de drogas.121
120 Em créole significa “garotos maus”. Jean Bertrand Aristide, à época, com o intuito de conter as manifestações que lhe eram contrárias, constituiu esta milícia de repressão. 121 VERENHITACH, Gabriela Daou; DEITOS, Marc Antoni. Diáspora Haitiana: causas econseqüências dos movimentos migratórios rumo aos Estados Unidos e à RepúblicaDominicana. In. LASA2009 Repensar as Desigualdades (XXVIII Congresso Internacional daAssociação de Estudos Latino-Americanos). Disponível em: <www.lasa.international.pitt.edu/.../ lasa2009/files/VerenhitachGabriela.pdf> Acesso 10 de outubro de 2010.
A Polícia Nacional Haitiana – PNH e o Poder Judiciário
estavam claramente desestruturados. Conseqüentemente os Direitos Humanos
eram grosseiramente violados. No que tange a esta conjuntura Verenhitach
sustenta:
Inúmeras pessoas são mortas em ações da PNH – inclusive reféns e civis sem qualquer vínculo com grupos violentos -, e as cadeias são lotadas por presos que, em sua maioria, não foram julgados; muitos dos que foram, por sua vez, cumprem pena muito maior do que lhes foi designada, pelo simples fato de não haver um controle formal eficiente.122
A extinção das Forças Armadas decretada por Jean-Bertrand
Aristide em 1994, a fim de cumprir o restante de seu mandato, contribui muito para a
deterioração da PNH. As duas instituições eram intimamente ligadas, o que por sua
vez gerou a degradação da força policial no país.
Outro fato que merece ser destacado concernente ao aumento
da violência na ilha caribenha é a propagação do tráfico de armas e drogas em
virtude da inoperância da PNH. Valler Filho assevera que
Concomitantemente à desintegração e à politização da Polícia Nacional, recrudesceu a proliferação do tráfico de armas leves. Além disso, a precária ação da polícia, os baixos salários dos policiais, que os transformava em alvos fáceis para a corrupção, e as fronteiras permeáveis contribuíram para fazer do Haiti uma plataforma do tráfico internacional de drogas.123
Desta forma, os grupos armados e os narcotraficantes não
encontravam fortes óbices para agravar ainda mais a questão da segurança no Haiti.
Conseqüentemente, com o acesso fácil às armas e ao financiamento internacional
traficantes, o Haiti tornava-se ainda mais vulnerável na questão da segurança
pública.
122 VERENHETACHI, Gabriela Daou. A Minustah e a política externa brasileira. Santa Maria, 2008. 123f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Centro de Ciências Sociais e Humanas Universidade Federal de Santa Maria.123 VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. p. 150
52
3.1.2 O caos político
Como já relatada, a crise eleitoral haitiana ocorre há décadas
com golpes e contragolpes militares ferindo e muito a democracia do país. Porém,
outro episódio que veio a denegrir a sua imagem foi a fraude constada nas eleições
que mantiveram a Família Lavalas no poder. Acerca deste episódio Valler Filho
sustenta:
As eleições municipais e legislativas de 2000, embora contestadas pela oposição e pela comunidade internacional, favoreceram os candidatos do partido Fanmi Lavalas. A oposição, agrupada na sua maior parte no partido Convergence Démocratique, recusar-se-ia a participar das eleições presidenciais de novembro de 2000, sob a alegação de que o governo manipulava sistematicamente os resultados dos pleitos.124
Diante deste episódio, Aristide foi seriamente acusado de
manipular as eleições de 2000, tidas como nitidamente fraudulentas. Tanto é que foi
reeleito com 60,5% dos votos, onde somente dois milhões de eleitores teriam
votado. Naquela época, os líderes da oposição afirmaram que a referida votação
não perfazia 5% do total de eleitores inscritos.125
Ante a tais circunstâncias, ou seja, a deterioração das
instituições democráticas do país, a oposição, composta por ex-militares, pelo Grupo
dos 184,126 e demais desiludidos com a “desgovernança” de Jean-Bertrand Aristide,
rebelou-se em fevereiro de 2004, na cidade de Gonaives. Rapidamente o movimento
se espalhou pelo norte do país, com os rebeldes tomando controle de grande parte
da região.127 Com isso, houve a divisão do país, ficando o sul sob controle do
governo, que nada fazia para obstar o avanço rumo à capital haitiana dos
insurgentes que detinham o poder ao norte.128
124 VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. p. 148125 Idem.126 O Grupo dos 184 foi liderado pelo industrial André Apaid e era composto por aproximadamente 300 entidades da sociedade civil haitiana, entre sindicatos patronais e trabalhistas, estudantes, organizações civis e religiosas, etc. O principal objetivo deste grupo era elaborar um “contrato social” que contemplasse opções políticas para a crise do país. VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática.127 Das 9 províncias que compunham o norte, 5 já estavam sendo controladas pelos rebeldes. 128 VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. p. 152.
53
Assim, no início de 2004, grupos armados golpistas exigiram a
renúncia de Aristide. Frente à iminência de uma guerra civil, não restou alternativa
ao presidente senão renunciar ao seu cargo:
Jean-Bertrand Aristide galgou os degraus da escada do avião que o conduziu a um triste e incerto exílio, ele já o fez na condição de ex- Presidente do Haiti. Poucas horas antes Titid havia firmado uma carta de renúncia a fim de evitar “um banho de sangue”, segundo profetizava a imprensa internacional.129
Com a renúncia de Aristide, o Presidente da Suprema Corte de
Justiça Boniface Alexandre assumiu o poder. A desordem no país era tamanha.
Verenhitach e Deitos afirmam que vários lavalasianos foram presos, torturados e até
mesmo mortos. Inúmeros, objetivando fugir das terríveis circunstâncias que se
instalaram, procuravam cruzar a fronteira com a República Dominicana ou se
dirigem para a costa americana ou a Cuba em frágeis e perigosas embarcações, os
chamados boat-people.130
Os mesmos autores ainda alegam que muitas dessas pessoas
“[...] morriam nessas travessias; outros eram deportados – onde, grande parte das
vezes, eram reprimidos em seu retorno ao Haiti, pelas gangues opostas ou por seus
próprios partidários, por haverem “desertado”. ”131
Ademais, Seitenfus nos ilustra a realidade vivida pelos
haitianos na ilha caribenha, senão vejamos:
Trata-se da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à sua própria sorte, sem nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos, fruto da histórica omissão das elites internas e transnacionais, que nada mais têm a retirar dessa depauperada terra.132
129 SEITENFUS, Ricardo. Elementos para uma diplomacia solidária: a crise e os desafios da ordem internacional contemporânea. 2006. Disponível em: <www.seitenfus.com.br/arquivos/ elementos-diplomacia(1).pdf> Acesso 10 de outubro de 2010.130 VERENHITACH, Gabriela Daou; DEITOS, Marc Antoni. Diáspora Haitiana: causas econseqüências dos movimentos migratórios rumo aos Estados Unidos e à RepúblicaDominicana. In. LASA2009 Repensar as Desigualdades (XXVIII Congresso Internacional daAssociação de Estudos Latino-Americanos). Disponível em: <www.lasa.international.pitt.edu/.../ lasa2009/files/VerenhitachGabriela.pdf> Acesso 10 de outubro de 2010.131 Idem. 132 SEITENFUS, Ricardo. Elementos para uma diplomacia solidária: a crise e os desafios da ordem internacional contemporânea. 2006. Disponível em: <www.seitenfus.com.br/arquivos /elementos-
54
Foi neste contexto que Boniface Alexandre, imediatamente em
março de 2004, requereu o apoio das Nações Unidas, sendo ele prontamente
atendido. Assim, a ONU, em caráter emergencial, através da Resolução 1529,
institui a Força Interina Multinacional (Multinational Interim Force - MIF), enviando
tropas do Canadá, Estados Unidas, Chile e França. O principal objetivo da operação
era apoiar a continuação de um processo político constitucional e pacífico, manter
um ambiente seguro e estável bem como preparar o país para a chegada de uma
nova Missão, qual seja a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti -
MINUSTAH.133
3.2 CARACTERIZAÇÃO DA MISSÃO
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti-
MINUSTAH foi instituída por meio da Resolução 1542 (2004), sendo ela autorizada
pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 30 de abril de 2004. Seus
trabalhados foram rapidamente iniciados, ou seja, em 1 de junho do mesmo ano.
A operação veio ampara legalmente na Carta de São
Francisco, mais especificamente no seu Capítulo VII. Por isso é considerada uma
operação de Imposição da Paz, ou seja, suas práticas compreendem uma série de
medidas coercitivas, inclusive o uso da força. Inicialmente a Missão contaria com
aproximadamente 6.700 militares, 1.622 policiais, 550 civis internacionais, 150
voluntários das Nações Unidas e 1.000 funcionários civis locais.134
Valler Filho alega que a frente desta Missão está o Brasil,
conforme se destaca a seguir:
Coube ao Brasil o comando militar da MINUSTAH. Em março de 2004, Missão integrada por onze oficiais superiores de todas as Armas, além de representantes do Ministério da Defesa, visitaria o Haiti para contatos com os comandos dos diversos contingentes que
diplomacia(1).pdf> Acesso 10 de outubro de 2010.133 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em: < http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/background.shtml>. Acesso em: 16 de outubro de 2010.134 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/mandate.shtml>. Acesso em: 16 de outubro de 2010.
55
compunham a Força Multinacional Interina e efetuar levantamento da logística necessária para a participação brasileira na Força de Estabilização das Nações Unidas.135
O mesmo autor assevera ainda que em maio de 2004,
aproximadamente 1.200 militares brasileiros foram deslocados para o Haiti, o que
representaria a maior participação das forças armadas brasileiras no exterior desde
a 2ª Guerra Mundial.136
Outros países que contribuem com suas forças armadas para a
operação são a Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Equador, França, Guatemala,
Índia, Japão, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, República da Coréia, Sri
Lanka, Estados Unidos e Uruguai.137
No que tange a composição da força policial haitiana, a
cooperação internacional abrange muitos mais países: Argentina, Bangladesh,
Benin, Brasil, Burkina Faso, o Burundi, Camarões, Canadá, República Central
Africano, Chade, Chile, China, Colômbia, Costa do Marfim, Croácia, Egipto, El
Salvador, França, Granada, Guiné, Guiné-Bissau , Índia, Indonésia, Israel, Itália,
Jamaica, Jordânia, Quirguistão, Lituânia, Madagascar, Mali, Nepal, Níger, Nigéria,
Paquistão, Filipinas, Romênia, Rússia, Ruanda, Senegal, Sérvia, Espanha, Sri
Lanka, Tailândia, Suécia , Togo, Turquia, Estados Unidos, Uruguai e Iêmen.138
Atualmente a MINUSTAH conta com 11.848 pessoas
trabalhando sob sua bandeira, sendo eles 8.766 soldados, 3082 policiais, 481 civis
internacionais, 1.235 funcionários civis locais, 204 voluntários das Nações Unidas.139
3.2.1 O mandato
O mandato de uma operação de paz vem expresso por meio
de resoluções, em regra, aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações
135 VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana – A cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. p. 169-70136 Ibidem p. 170.137 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em: < http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml>. Acesso em: 16 de outubro de 2010.138 Idem. 139 Idem.
56
Unidas. Ele, por sua vez, compreende todas as tarefas que a operação se propõe a
realizar em um determinado território.
3.2.1.1 Resolução 1542 (2004)
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti –
MINUSTAH foi autorizada pela Resolução 1542 (2004). A mencionada Resolução
estabeleceu as proposições, a composição e a organização inicial da MINUSTAH.
Dela se extraem os seus principais objetivos:
I – Ambiente seguro e estável
a) Garantir um ambiente seguro e estável no Haiti em apoio ao
Governo Transitório140 a fim de que o processo constitucional e político possam
acontecer;
b) Auxiliar o Governo Transitório no monitoramento,
reestruturação e reforma da Polícia Nacional Haitiana;
c) Auxiliar o Governo de Transição, especialmente a Polícia
Nacional Haitiana, em programas de Desarmamento, Desmobilização e
Reintegração (DDR) dos grupos armados bem como no controle de armas e no
estabelecimento de medidas de segurança pública;
d) Ajudar no restabelecimento e manutenção do estado de
direito (rule of law), da ordem e segurança pública no Haiti, restabelecendo ainda um
sistema prisional;
e) Proteger o pessoal, facilidades, instalações e equipamentos
da ONU e garantir a segurança e liberdade de movimento no território dessas
pessoas;
f) Proteger civis sob a ameaça de violência física;
140 Trata-se do governo interino chefiado por Boniface Alexandre, tendo este assumido após a renúncia de Jean-Bertrand Aristide em 2004.
57
II – Processo Político
a) Apoiar o processo constitucional e político em curso no Haiti
através do incentivo aos princípios e à governança democrática e do
desenvolvimento institucional;
b) Auxiliar o Governo Transitório na realização de um processo
nacional de reconciliação e diálogo;
c) Auxiliar o Governo Transitório na organização,
monitoramento e na realização de eleições livres, justas e representativas da
demografia nacional, incluindo mulheres, a nível municipal, parlamentar e
presidencial, através de apoio técnico, logístico e administrativo;
d) Auxiliar o Governo Transitório no sentido de expandir a
autoridade estatal, apoiando a governança em nível local;
III – Direitos Humanos
a) Auxiliar o Governo Transitório bem como as Instituições e
grupos haitianos de direitos humanos nos seus esforços para a proteção dos direitos
humanos, principalmente de mulheres e crianças a fim de garantir a
responsabilização individual pelas violações dos direitos humanos e reparação para
as vítimas;
b) Monitorar e reportar a situação dos direitos humanos no Haiti
em cooperação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, incluindo a situação dos refugiados e das pessoas deslocadas dentro do
país;
Ante a exposição dos principais objetivos constantes do
Mandato inicial da Missão, denota-se sua atuação em três áreas: Segurança,
Processo Político e Direitos Humanos, as quais serão distintamente analisadas nos
tópicos abaixo.
58
3.2.1.2 Demais resoluções
Com o passar dos anos, tendo em vista as evoluções e
conseqüentemente as novas exigências que afloraram no Haiti, ajustes se fizeram
necessários para a atuação da MINUSTAH no referido país. Tais adaptações
surgiram através de outras resoluções, as quais, de certa forma, complementaram o
mandato inicial da operação.
Apesar das novas resoluções não terem mudado o enfoque
principal da Missão, cabe, por oportuno mencionar as principais aprovadas pelo
Conselho de Segurança: 1608 (2005), 1702 (2006), 1743 (2007), 1780 (2007), 1840
(2008), 1908 (2010) e 1927 (2010).141
3.3 ANÁLISE DOS RESULTADOS
Desde a instituição da MINUSTAH ocorrida em 2004,
vislumbra-se que alguns de seus objetivos foram bem sucedidos. Entretanto, a
Missão se deparou com certas dificuldades, as quais ainda não conseguiu superar.
Esta seção apresentará uma avaliação dos resultados da referida Missão, entre os
anos de 2004 e 2010, com enfoque nos seus três eixos, ou seja, segurança,
processo político e direitos humanos.
Ademais abordará a trágica fatalidade ocorrida em janeiro de
2010, qual seja o terremoto que devastou o país, bem como os desafios a serem
enfrentados desde então pela Missão.
3.3.1 Segurança
No que tange a segurança, o Conselho de Segurança das
Nações Unidas, através da Resolução 1542 (2004) ordenou à MINUSTAH o
restabelecimento e a manutenção de uma ambiente seguro e estável no Haiti, a fim
de que os processos político e constitucional fossem bem sucedidos.
141 Todas as resoluções encontram-se disponíveis para consulta no site: <http://www.un.org/ en/peacekeeping/missions/minustah/mandate.shtml>.Acesso em 15 de outubro de 2010.
59
Desta forma, observa-se duas etapas concernentes a este
objetivo: o primeiro de restabelecer a paz, ou seja, restaurá-la. Já a segunda
consiste na manutenção da paz, sendo imprescindível, para tanto, uma reforma no
setor da segurança do país, a qual deve englobar a Polícia Nacional Haitiana – PNH,
a restauração do sistema prisional e judiciário, bem como o estabelecimento de
programas de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração – DDR.
3.3.1.1 Restabelecimento da Paz
Com o intuito de conter a violência no Haiti, várias medidas
foram tomadas por parte da MINUSTAH em conjunto com a Polícia Nacional
Haitiana. Dentre elas pode-se citar a criação de checkpoints e o forte patrulhamento
nas favelas visando à apreensão de líderes das principais gangues.
Tais atos levaram o país a níveis mais seguros e estáveis que
em 2004, com significativas melhorias na área da segurança. Tanto é que no
período de 22 de dezembro de 2006 a 28 fevereiro de 2007, a MINUSTAH e a
Polícia Nacional do Haiti realizaram conjuntamente 19 operações em Cité Soleil e
Martissant, duas das maiores favelas do país. Estas operações somadas às outras
desenvolvidas no país resultaram na apreensão de cerca de 850 membros de
gangues, incluindo seus principais líderes.142
Outra ação a ser destacada foi a garantia da segurança no
processo eleitoral ocorrido em 2006. Não obstante tenham ocorridos alguns
incidentes, tal episódio pode ser considerado um sucesso. O povo haitiano pôde
exercer o seu direito de voto de forma livre e justa.143
Apesar desses fatores representarem um importante passo na
questão da restauração da paz, a questão da segurança encontra-se ainda frágil. As
demonstrações de 2009 revelam que houve um aumento na criminalidade se
comparadas com a do ano anterior, embora especificamente o número de
seqüestros tenha sido reduzido. Ademais, os riscos das gangues e outros grupos
armados retomarem às suas atividades, somados à corrupção e a violência
142 Relatório S/2007/503 parágrafo 22.143 Relatório S/2006/592 parágrafo 2.
60
proporcionada pelo o tráfico de drogas, contribuem muito para uma situação de
instabilidade.144
3.3.1.2 Reestruturação da Polícia Nacional Haitiana - PNH
O Plano de Reforma da Polícia Nacional Haitiana - PRPNH
foi aprovado em meados de 2006, o qual apresenta estratégias que visam
desenvolvimento da PNH por meio de experiências nacionais e internacionais.145
Após a criação do citado Plano, houve uma melhora
significativa nos treinamentos e nos equipamentos utilizados pelos policiais, o que
por conseqüência gerou um avanço no âmbito da qualidade dos serviços da
instituição bem como um aumento na sua credibilidade.146 O número de policias, em
relação a 2004, triplicou, perfazendo o montante aproximado de 9.000 agentes.
Entretanto, o número ainda é insuficiente para a forte demanda de crimes que
apresenta o Haiti, cabendo mencionar que o Plano de reforma da PNH identificou
que serão necessários aproximadamente 14 mil novos policias para suprir as
necessidades básicas do policiamento. 147
Desta forma, observa-se que a Polícia Nacional Haitiana é
incapaz de lidar isoladamente, pelo menos por enquanto, com a questão da
segurança pública.
3.3.1.3 Desarmamento, Desmobilização e Reintegração
Um dos objetivos específicos expressos no mandato inicial da
MINUSTAH era o de ajudar o Governo Transitório e a PNH no desarmamento,
desmobilização e reintegração de todos os grupos armados do país. O referido
programa consiste, em suma, na reintegração de ex-combatentes à sociedade a fim
de transformá-los em participantes dos processos de paz.
144 Relatório S/2009/129 parágrafo 27 e Relatório S/2009/439 parágrafo 21 145 Resolução n. 1702 (2006) Disponível em <http://minustah.org/pdfs/res/res1702_en.pdf> Acesso em 29 de outubro de 2010.146 Relatório S/2008/202 parágrafo 26147 Relatório S/2009/439 parágrafo 22
61
Entretanto, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução
1702 (2006) requisitou uma adaptação do DDR para o Programa de Redução de
Violência na Comunidade – RVC. Este, por sua vez, ao contrário do DDR, abrange a
redução de violência adaptada às condições de cada comunidade, incluindo
iniciativas para fortalecer a governança local e do Estado de Direito, além de
propiciar oportunidades de emprego para ex-membros de gangues, e jovens em
risco.148 Conforme relatório elaborado pelo International Crisis Group em setembro
de 2008, o referido programa tem se apresentado bem a essa demanda do país.149
3.3.1.4 O sistema judiciário e prisional
O sistema judiciário e prisional do Haiti passa por constantes
reformas. No que tange ao Poder Judiciário, a fim de promover o acesso dos pobres
à justiça, a MINUSTAH em conjunto com o Consórcio Internacional para a
Assistência Jurídica, Ministério da Justiça e Segurança Pública, criou 14 escritórios
de assistência jurídica no país. Ademais, a Missão vem atuando em parceria com
outros órgãos na seleção e formação de promotores e juízes.150
.Anteriormente ao fatídico terremoto ocorrido no início de 2010,
o sistema prisional haitiano vinha sendo implementado pelo Plano Estratégico de
Desenvolvimento 2007-2012151, elaborado pela Diretoria de Administração
Penitenciária. Após o terremoto, a segurança dos estabelecimentos penitenciários e
as condições de vida dos presos se tornaram prioridades para a MINUSTAH, haja
vista os graves danos sofridos nas instalações prisionais e na administração local.
Além disso, arquivos e registros desapareceram durante o terremoto, tornando a
administração complicada. As atividades desenvolvidas atualmente visam a
formação de 300 novos agentes para a administração carcerária, o aumento no
espaço das celas nos presídios, o melhoramento das condições de vida dos
prisioneiros, a redução da população prisional, dentre outras.152
148 Resolução 1702 de 2006 do CSNU. Disponível em <http://www.un.org/ en/peacekeeping/missions/minustah/mandate.shtml> Acesso em 03 de novembro de 2010. 149 INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Reforming Haiti’s Security Sector. Latin America/Caribbean Report n. 28 – 18 de Setember 2008. Disponível em: <www.crisigroup.org/home/index.cfm?id=5681> Acesso em 20 de outubro de 2010. 150 Relatório S/2010/446 parágrafo 33.151 O plano objetiva a modernização de equipamentos, a compra de materiais necessários, o treinamento de agentes prisionais e melhorar o tratamento dos detentos.152 Relatório S/2010/446 parágrafo 34.
62
3.3.2 Processo Político
No que diz respeito ao processo político, a Resolução 1542
(2004) dispôs especial atenção. Para tanto, os objetivos da Missão nesta área são:
apoiar o processo constitucional e político em curso no Haiti; auxiliar a realização de
um processo nacional de reconciliação e diálogo; ajudar na organização,
monitoramento e na realização de eleições livres e justas bem como fomentar o
desenvolvimento institucional estatal do país.
3.3.2.1 Processo Eleitoral
O evento mais significativo até o momento foi a realização das
eleições presidenciais e legislativas de forma livre e justa ocorridas em fevereiro de
2006. A legitimidade das eleições não foi contestada, concorrendo para a disputa 45
partidos políticos e 33 candidatos presidenciais. Tal fato levou à criação de um
Parlamento amplo e a formação de um Governo multipartidário. Apesar do pleito ter
ocorrido em um ambiente de segurança frágil, o comparecimento dos eleitores
rompeu a marca dos 60% dos inscritos, número este considerado relativamente
alto.153
O deslinde do processo eleitoral continua. Em abril de 2010
uma Missão de viabilidade eleitoral concluiu que as eleições presidenciais e
legislativas são tecnicamente possíveis. Assim, o Conselho Eleitoral Provisório
instituiu o dia 28 de novembro de 2010 como a data para as referidas eleições.
Segundo o atual Presidente René Préval, as eleições no âmbito municipal somente
não serão realizadas na mesma data pelo fato da complexidade técnica em
organizar, conjuntamente e em um curto espaço de tempo, essas três eleições.154
3.3.2.2 Reconciliação e diálogo político
No que concerne à reconciliação e ao diálogo político observa-
se que estes vêm passando por certas dificuldades. Uma votação no Senado em 12
de Abril de 2008 censurou o Governo do então Primeiro-ministro Jacques Edouard
Alexis. Foram necessários quatro meses de negociações para a aprovação de sua 153 Relatório S/2006/592 parágrafo 2.154 Relatório S/2010/446 parágrafo 2.
63
sucessora, Michèle Duvivier Pierre-Louis, período este em que o Haiti permaneceu
sem um governo efetivo.155 Acerca da questão ora ventilada, Seitenfus sustenta:
O diálogo político encontra dois óbices importantes. O primeiro é conjuntural e decorre da surda luta pelo poder que precede e acompanha o período pré-eleitoral vigente. Como fazer com que seja possível um diálogo entre grupos, facções e partidos que travam, ao mesmo tempo, uma batalha eleitoral? Esta situação faz com que o diálogo seja forçosamente limitado, não atingindo o cerne das questões. O segundo problema provém da estrutura e das características da sociedade haitiana. Trata-se de um país com recortes que dividem e opõem vários grupos: negros e não negros; camponeses e citadinos; adeptos do vodu e os das demais religiões; Norte e Sul; montanha e planície (mornes). Além destas dicotomias, há fissuras importantes nas organizações transversais, caso da Igreja Católica no interior, à qual se opõe o alto clero próximo do Papado e a denominada pequena Igreja, vinculada à Teologia da Libertação.156
Desta forma, vê-se que tais fatores dificultam a manutenção de
um panorama de estabilidade política no país, seja pela luta pelo poder, seja pela
diversidade cultural do povo haitiano.
3.3.2.3 Desenvolvimento das instituições estatais haitianas
Quando da chegada da MINUSTAH, as instituições estatais
haitianas estavam muito frágeis, careciam de infra-estrutura, pessoal qualificado
dentre outros recursos. Tais fatos comprometiam a credibilidade da autoridade
Estatal em diversas regiões do país.157
Nesta área, a Missão das Nações Unidas vem contribuindo na
coordenação dos esforços de assistência internacional, além de fornecer assistência
técnica e consultoria especializada para o desenvolvimento das instituições-chave,
incluindo o Gabinete do Presidente, os principais ministérios, o parlamento e as
autoridades locais competentes.158
155 Relatório S/2008/586, parágrafo 2.156 SEITENFUS, Ricardo. Elementos para uma diplomacia solidária: a crise e os desafios da ordem internacional contemporânea. 2006. Disponível em: <www.seitenfus.com.br/arquivos/ elementos-diplomacia(1).pdf> Acesso 10 de outubro de 2010.157 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations. Year in Review. 2005. Disponível em: <www.un.org/Depts/dpko/dpko/pub/year_review05> Acesso em 20 de outubro de 2010. 158 Relatório S/2007/503, parágrafo 12.
64
3.3.3 Direitos Humanos
Neste campo, o mandato inicial da Missão consistia em apoiar
as autoridades e instituições haitianas na proteção dos direitos humanos,
principalmente de mulheres e crianças a fim de garantir a responsabilização e
reparação dos seus danos.
As violações dos direitos humanos no Haiti derivam da
instabilidade política e institucional, da precária situação socioeconômica, da
ineficiência da segurança pública, pelo tráfico de pessoas, pelos abusos sexuais
contra mulheres, dentre outros atos de violência.159
Após cinco anos da chegada da MINUSTAH ao Haiti, apesar
dos últimos relatórios do Secretário-Geral enfatizarem uma melhora na área dos
direitos humanos não se vislumbram alterações profundas. Os maiores problemas
continuam sendo a falta de progressos na área socioeconômica. Aproximadamente
78% da população vive com menos de dois dólares por dia.160 O grande número de
pobres e desempregados, associado à falta de acesso à alimentação adequada,
moradia, educação e saúde contribuem cada vez mias para a violação dos direitos
inerentes ao homem.161
Outros fatos preocupantes dizem respeito à superlotação, às
condições desumanas nas quais vivem os presidiários e às prisões efetuadas pela
polícia. Em que pese as melhorias na conduta da PNH, há ainda relatos do uso
excessivo da força, de detenções ilegais, bem como da má qualidade das
investigações judiciais.162
3.3.4 Os maiores desafios
Além das dificuldades já mencionadas pelas quais a
MINUSTAH se deparou no seu mandato inicial, outros empecilhos de ordem natural
vieram a prejudicar o Haiti. Assim, necessário se faz discorrer sobre esses entraves.
159 Relatório S/2004/300 parágrafo 41. 160 Relatório S/2009/129 parágrafo 46161 Relatório S/2009/439 parágrafo 49.162 Relatório S/2009/129 parágrafo 49
65
3.3.4.1 O devastador terremoto de 2010
O Haiti, em 12 de janeiro de 2010, se deparou com uma de
suas maiores tragédias: o devastador terremoto de 2010. Edmond Mulet,
Representante Especial do Secretário Geral no Haiti, nos ilustra este terrível
episódio:
Em 12 de Janeiro o Haiti era um país no caminho da estabilização. Décadas de violência davam lugar à calma. As eleições começavam a ser preparadas. A reforma da economia estava em andamento. Apesar da extremamente pobreza, [com 80 por cento da população vivendo na pobreza], o Haiti foi se tornando um país com esperança. Naquela noite, em menos de 60 segundos, a esperança levou um golpe devastador. Palavras não podem descrever o sofrimento causado pelo terremoto. Os números perdem seu significado conforme se atualizam os dados - mais de 112,250 perderam suas vidas, 194,000 feridos e dos 500.000 necessitados apenas 235,000 possuíam acesso a água. Alguns de vocês viram essa destruição de primeira-mão. Alguns de nós temos experimentado isso pessoalmente. Ninguém permanece intocado. Nós, as Nações Unidas, estamos em luto pelo povo do Haiti. Nós lamentamos muito a perda grande.163
O desastre natural causou inúmeros estragos pelo país,
principalmente na cidade de Porto Príncipe. O Palácio Nacional, a Catedral, o
Ministério da Justiça e outros escritórios governamentais importantes foram
destruídos. Hotéis, hospitais, escolas, presídios e escritórios das Nações Unidas
foram seriamente danificados. Inúmeras pessoas perderam suas casas, ficando
totalmente desabrigadas. Muitas rotas de transporte foram afetadas, seja pela
abertura de fissuras, seja pelo bloqueio de pedras e árvores, além da escassez de
água e da interrupção da energia elétrica que assolou a população.164
163 UNITED NATIONS. Haiti Earthquake. UN assessment Special Representative of the Secretary-General Edmond Mulet Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/ documents/ srsg_mulet_remarks_montreal_25012010.pdf> Acesso em 07 de novembro de 2010. No original: On 12 January Haiti was a country on the path to stabilization. Decades of violence were giving way to calm. Elections were being prepared. Economic reforms were underway. Although desperately poor, [with 80 percent of the population living in poverty], Haiti was becoming a country with hope. That evening, in less than 60 seconds, hope was dealt a devastating blow. Words can not describe the suffering inflicted by the earthquake. Numbers lose their meaning as daily figures rise – more than 112,250 lives lost, 194,000 injured and 235,000 receiving water out of an estimated 500,000 in need. Some of you have seen this destruction first hand. Some of us have experienced it personally. No one remains untouched. We, the UNITED NATIONS, are one in grief with the people of Haiti. We too mourn great loss.164 UNITED NATIONS Note to Correspondents on the Situation on Haiti from Vicenzo Pugliese, Spokesperson and Chief of Media Relations. Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/ missions /minustah/documents/minustah_note_13012010.pdf> Acesso em 03 de novembro de 2010.
66
Ademais, foram constadas mais de 220 mil mortes, incluindo
96 soldados da ONU.165 Diante da situação que se instalara no Haiti, a CSNU
expediu duas resoluções, as quais serão analisadas no tópico a seguir.
3.3.4.2 A resposta das Nações Unidas
Após o trágico terremoto, o Conselho de Segurança das
Nações Unidas aceitou as recomendações do Secretário-Geral e, por meio das
resoluções 1908 (2010) e 1927 (2010), incumbiu à MINUSTAH, em suma, dos
seguintes objetivos166:
a) Apoiar, em caráter imediato, a recuperação, a reconstrução
e a estabilização do país;
b) Ajudar o Governo haitiano a garantir a proteção adequada
da população;
c) Colaborar com o Escritório das Nações Unidas para a
Coordenação de Assuntos Humanitários – OCHA e com a Equipe das Nações
Unidas no País no apoio aos esforços humanitários e de recuperação;
d) Continuar apoiando o Governo haitiano e o Conselho
Eleitoral Provisório na preparação e realização das eleições no Haiti, e coordenar a
assistência eleitoral internacional em colaboração com outros parceiros
internacionais inclusive com a Organização dos Estados Americanos;
e) Fornecer ajuda ao Governo do Haiti a fim de acelerar a
implementação de sua estratégia no reassentamento das pessoas desabrigadas.
Desta forma, vê-se que o Conselho de Segurança das Nações
Unidas incluiu, ainda que temporário, um novo pilar para a Missão, relacionado à
ajuda humanitária e a reconstrução física do país.
165 UNITED NATIONS. Department of Peacekeeping Operations UNITED NATIONS Peacekeeping. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/index.shtml >. Acesso em: 16 de outubro de 2010.166 As resoluções estão disponíveis em <http://www.un.org/ en/peacekeeping/missions/minustah/ mandate.shtml> Acesso em 29 de outubro de 2010.
67
3.3.5 O Haiti hoje
Passados aproximadamente 10 meses da maior catástrofe
natural já ocorrida no Haiti que resultou na morte de mais de 222.500 pessoas,
deixou cerca de 300.000 feridos e aproximadamente um quarto da população
desabrigada, o que se viu nos meses seguintes foi uma das maiores respostas
humanitárias por parte da comunidade internacional.167
O governo haitiano, as Nações Unidas e seus parceiros, nos
primeiros seis meses logo após o fatídico terremoto, distribuíram abrigos de
emergência para mais de 1,5 milhões de pessoas. Forneceram também alimentos
para 4,3 milhões de haitianos além de vacinarem mais de 900.000 pessoas.168
Porém, inúmeras questões ainda assolam o país, podendo-se encará-las como
desafios tanto para a MINUSTAH quanto para a comunidade internacional.
3.3.5.1 Saúde pública
Em que pese o forte apoio por parte de diversos países e de
Organizações Não-Governamentais de todo o mundo, grande parte das mazelas
que ainda afloram no Haiti dizem respeito a questões de saúde pública.
Após o terremoto, grupos estratégicos conhecidos pela
denominação inglesa cluster foram criados pelo Projeto The Haiti One Response do
Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários –
OCHA.
Um desses grupos – The Hatian Health Cluster - dedicou-se
exclusivamente à saúde, congregando diversas organizações internacionais e não-
governamentais no intuito de mitigar, em caráter emergencial, os danos causados à
população haitiana. Este grupo foi dirigido pela Organização Panamericana de
Saúde – PAHO em conjunto com a Organização Mundial da Saúde - OMS.
167 UNITED NATIONS. Haiti: Six months after... Disponível em <http://www.un.org/en/ peacekeeping /missions/minustah/documents/6_months_after_commemoration.pdf> Acesso em 06 de novembro de 2010. 168 Idem
68
A MINUSTAH, por meio de relatório expedido seis meses após
o devastador desastre natural, realizou um balanço do trabalho desenvolvido pelo
referido grupo estratégico no sentido de avaliar a situação da saúde pública no país.
Desta forma, apontaram-se os seguintes dados: 916 mil vacinas foram
administradas; 345 mil caixas de medicamentos essenciais e suprimentos foram
distribuídos nos primeiros 45 dias; mais de 4.000 amputações foram realizadas;169
Entretanto, ocorre que o próprio relatório já sinalizava os
perigos trazidos pela temporada de furacões e do considerável aumento do número
das chuvas naquela região caribenha. A alta umidade, aliada às condições
subumanas dos campos de desabrigados criaram o ambiente propício para o
surgimento de agentes patológicos à saúde humana, especialmente aqueles
transmitidos pela água.
Ressurge assim um velho inimigo dos países tropicais,
trazendo um imenso desafio para a MINUSTAH e para o The Haitian Health Cluster:
a cólera. Segundo relatório divulgado no dia 31 de outubro de 2010 pela MINUSTAH
em parceria com a OCHA, três foram as principais regiões afetadas pela epidemia:
Artibonite, Centre e Nord Ouest, totalizando até então 4612 casos registrados e 331
mortes.170
Nesse contexto, vale analisar outro desastre natural que
contribui para o alastramento das doenças transmitidas pela água, ameaçando, por
conseqüência, os avanços auferidos pela Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti. Isso porque, problemas desta natureza poderiam inclusive
comprometer as eleições marcadas para o final de novembro de 2010.
3.3.5.2 Furacão Tomas
Se não bastassem todos os problemas já enfrentados pelo
povo haitiano, no início de novembro de 2010, a ameaça latente de furacão colocou
em prova a capacidade de organização da MINUSTAH. Conforme se depreende do 169 Idem.170 UNITED NATIONS. United Nations Office for the coordination of Humanitarian Affairs. Haiti - Hurricane Tomas Preparations - Cholera Situation Report #10 Disponível em <http://reliefweb.int/rw/RWFiles2010.nsf/FilesByRWDocUnidFilename/MUMA-8AS9T7-full_ report.pdf/$File /full_report.pdf> Acesso em 06 de novembro de 2010.
69
relatório publicado pela Missão em parceria com o OCHA sobre os preparativos para
a chegada do Furacão Tomas171, verifica-se que uma abordagem em rede foi
utilizada para combater o problema.
O furação previsto para chegar à costa sudoeste haitiana no
dia 05 de novembro contou prontamente com uma mobilização operacional do
Departamento de Proteção Civil do Haiti – DPC e do Escritório das Nações Unidas
para a Coordenação dos Assuntos Humanitários – OCHA. Assim, foram ativadas as
agências da ONU que estavam trabalhando em campo, especialmente a UNICEF
em conjunto com diversas organizações não governamentais internacionais,
especificamente PLAN International, OXFAM – GB, OXFAM – Quebec, Terre Des
Hommes e Caritas.172
O objetivo foi o de mapear a área de atuação destas
organizações, além de alertar, da forma mais rápida possível, a população sobre os
prejuízos que seriam ocasionados nas áreas de saúde, água, logística e
alimentação. Concedeu-se ainda atenção prioritária em políticas para evitar o
alastramento da cólera, tendo vista a vulnerabilidade trazida pelo furação Tomas.173
Sobreleva-se que um dos avanços da MINUSTAH foi colaborar
com o povo haitiano no sentido de diminuir sua vulnerabilidade frente a desafios
climáticos como o furação Tomas, operacionalizando uma rede de ajuda
humanitária, da qual fazem parte não só agências internacionais, mas também
atores não governamentais.
171 Idem.172 Idem.173 Idem.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É intrigante o fato de um país que era considerado a pérola das
Antilhas ter adentrado em uma situação de completa desordem econômica, política
e social. A história haitiana foi marcada, desde o seu descobrimento, por golpes e
contragolpes. Seus governantes dificilmente pensavam no bem estar social da
população, mas tão somente em permanecer com o poder em suas mãos. Tal fato
fez com que a primeira república negra a tornar-se independente e ainda livre da
71
escravatura, viesse a solicitar, após 200 anos de tais glórias, a ajuda da comunidade
internacional, por encontrar-se, em todos os aspectos, desmantelada.
Nesse contexto, a democracia foi, por diversas vezes,
infringida, seja pela imposição dos militares, seja pela manipulação das eleições
“democráticas”. Os direitos humanos foram constantemente violados. O terror era
espalhado entre a população haitiana, através dos atos de violência por parte dos
grupos armados opositores ao governo, e em muitas vezes pelo próprio governo. A
beira de um iminente banho de sangue, o presidente do país não viu outra escolha
senão renunciar.
Desta forma, uma operação de paz das Nações Unidas era
imprescindível para o restabelecimento da ordem no Haiti. E assim se fez. O
Conselho de Segurança da referida Organização expediu a resolução 1542 (2004), a
qual instituiu a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti –
MINUSTAH, visando restaurar a paz, garantir o processo político bem como fazer
valer os direitos inerentes ao homem no país.
Assim, a presente pesquisa se ateve em analisar quais foram
os avanços e os desafios da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do
Haiti – MINUSTAH, considerando ainda as mazelas trazidas pelos desastres
naturais que arrasaram o país.
Diante das informações colhidas, conclui-se que a apesar dos
empecilhos evidenciados em função dos problemas internos e externos, é possível
afirmar que a implantação da MINUSTAH trouxe avanços para o Haiti, restando,
portanto, a primeira hipótese devidamente confirmada.
No que diz respeito à segunda hipótese, os avanços da
MINUSTAH vão além das áreas de segurança e processo político. A missão
mostrou-se preparada para um novo desastre natural, tendo em vista os trabalhos
desenvolvidos no sentido de diminuir as vulnerabilidades trazidas pelas
tempestades tropicais. Prova disso, foram as ações empreendidas visando a
chegada do Furacão Tomas.
72
Denota-se que a segurança pública no Haiti vem melhorando a
cada dia, tendo em vista o gradativo aumento do número de agentes somados ao
aperfeiçoamento de suas condutas. Constata-se, ainda, que as medidas tomadas
pela MINUSTAH em conjunto com a Polícia Nacional Haitiana vem diminuindo os
índices de violência em grande parte do país, principalmente em Cité Soleil e
Martissant, duas das maiores favelas haitianas.
No que tange ao processo político, em que pese o diálogo e a
reconciliação não terem, de certa forma, evoluído, é inquestionável o formidável
trabalho que a MINUSTAH vem desenvolvendo no campo do fortalecimento das
instituições estais do país. Ademais, vê-se como avanço mais significativo nesta
área de atuação da missão o processo eleitoral. O povo haitiano pode votar de
forma livre e justa nas eleições ocorridas em 2006, bem como poderá, da mesma
forma, escolher seus representantes no final de novembro de 2010. Assim, não
restam dúvidas do sucesso que foi a atuação da missão neste norte.
Por fim, os desafios da MINUSTAH concentram-se na área dos
direitos humanos. A situação dos presídios, a questão da saúde pública, o elevado
número de pessoas que ainda não possui acesso adequado à alimentação, moradia
e educação são fatores que nos levam a inferir que a Missão não conseguiu trazer
mudanças profundas quanto à guarda dos direitos inerentes ao homem.
73
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