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Mímesis entre espinhos: uma leitura de “O cacto”, de Manuel Bandeira Mimesis between spines: a reading of “O cacto”, by Manuel Bandeira Prof. Ms. Júlio Cesar Machado de Paula 1 Resumo: A obra poética de Manuel Bandeira destaca-se, dentro do Modernismo brasileiro, por se constituir a partir de uma conjugação paradoxal da tradição artística e de sua própria transgressão. No presente texto, buscamos analisar, pela leitura do poema “O cacto”, como o poeta pernambucano subverte o conceito de mímesis como uma imitação artística da natureza ao descrever um ente natural que evoca conjuntos escultóricos artificiais. Palavras-chave: mímesis; artes plásticas; arte poética; Manuel Bandeira. Abstract: The poetical work of Manuel Bandeira can be seen, inside Brazilian Modernism, as a paradoxical mixture of artistic tradition and their very transgression In this paper we analyze how the poet could subvert the concept of mímesis as an artistic imitation from nature by describing a natural being which evokes sculptural works. Key-words: mimesis; Art; Poetics; Manuel Bandeira. A tradição em transe O movimento modernista das primeiras décadas do século XX foi, sem sombra de dúvida, um dos períodos em que mais se escreveram poéticas, tratados estéticos, manifestos de toda sorte e prefácios, alguns interessantíssimos, outros, nem tanto. Paradoxalmente, muitos movimentos de vanguarda, ao defenderem a seu modo a liberação das formas artísticas, acabaram criando novos conjuntos de regras, preceitos e interdições, muitas vezes mais restritos do que a própria tradição que se buscava ou se imaginava poder contrariar. No caso da literatura brasileira, a figura de Manuel Bandeira merece destaque, dado seu papel conciliador entre a tradição poética em língua portuguesa e o trabalho de inovação das formas de escrita. Para o poeta pernambucano, leitor, admirador declarado e estudioso de românticos, 1 Júlio Cesar Machado de Paula é professor de língua portuguesa e respectivas literaturas na Universidade Federal do Amazonas e Correspondente internacional do Fonds Ricoeur, de Paris. É doutorando em Literatura Comparada pela UFMG, com estágio na Université de la Sorbonne Nouvelle. Publicou O Itinerário dos Óleos, livro de poemas premiado no Festival Livro Aberto de Literatura (1997). Por Mimnas (2002), recebeu o prêmio Nascente (USP/Editora Abril).

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Mímesis entre espinhos: uma leitura de “ O cacto” , de Manuel Bandeira

Mimesis between spines: a reading of “O cacto”, by Manuel Bandeira

Prof. Ms. Júlio Cesar Machado de Paula1

Resumo: A obra poética de Manuel Bandeira destaca-se, dentro do Modernismo brasileiro, por

se constituir a partir de uma conjugação paradoxal da tradição artística e de sua própria

transgressão. No presente texto, buscamos analisar, pela leitura do poema “O cacto”, como o

poeta pernambucano subverte o conceito de mímesis como uma imitação artística da natureza

ao descrever um ente natural que evoca conjuntos escultóricos artificiais.

Palavras-chave: mímesis; artes plásticas; arte poética; Manuel Bandeira.

Abstract: The poetical work of Manuel Bandeira can be seen, inside Brazilian Modernism, as a

paradoxical mixture of artistic tradition and their very transgression In this paper we analyze

how the poet could subvert the concept of mímesis as an artistic imitation from nature by

describing a natural being which evokes sculptural works.

Key-words: mimesis; Art; Poetics; Manuel Bandeira.

A tradição em transe

O movimento modernista das primeiras décadas do século XX foi, sem

sombra de dúvida, um dos períodos em que mais se escreveram poéticas,

tratados estéticos, manifestos de toda sorte e prefácios, alguns

interessantíssimos, outros, nem tanto. Paradoxalmente, muitos movimentos de

vanguarda, ao defenderem a seu modo a liberação das formas artísticas,

acabaram criando novos conjuntos de regras, preceitos e interdições, muitas

vezes mais restritos do que a própria tradição que se buscava ou se imaginava

poder contrariar.

No caso da literatura brasileira, a figura de Manuel Bandeira merece

destaque, dado seu papel conciliador entre a tradição poética em língua

portuguesa e o trabalho de inovação das formas de escrita. Para o poeta

pernambucano, leitor, admirador declarado e estudioso de românticos,

1 Júlio Cesar Machado de Paula é professor de língua portuguesa e respectivas literaturas na Universidade Federal do Amazonas e Correspondente internacional do Fonds Ricoeur, de Paris. É doutorando em Literatura Comparada pela UFMG, com estágio na Université de la Sorbonne Nouvelle. Publicou O Itinerário dos Óleos, livro de poemas premiado no Festival Livro Aberto de Literatura (1997). Por Mimnas (2002), recebeu o prêmio Nascente (USP/Editora Abril).

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simbolistas e parnasianos, a modernização das formas poéticas brasileiras não

poderia se dar pelo repúdio puro e simples da tradição, já que “a rigor, ainda

que para destruir as regras ou esquecer-se delas, é preciso _ evidentemente _

começar por conhecê-las.” (TORRE, 1971, p. 36). Sua concepção poética

jamais proporia uma simples substituição de um conjunto de dogmas por outro.

Diferentemente do que muitos movimentos de vanguarda propunham, a dicção

poética brasileira, múltipla por excelência, como a própria formação do país,

não deveria excluir qualquer possibilidade de escrita, nem mesmo as que nos

haviam chegado pelo implante, colonial ou não, de tradições alheias. Nosso

repertório de recursos poéticos deveria pautar-se pela ampliação de seu

espectro de possibilidades, viessem eles da tradição, do cotidiano ou de outras

artes, como a música e a pintura.

Tal abertura à diversidade faz de Manuel Bandeira um dos autores de

mais difícil classificação dentro do modernismo literário em língua portuguesa.

Se não foi surrealista, aprendeu com Paul Éluard, seu companheiro de

sanatório em Clavadel, na Suíça, o gosto pelas associações-livres e, em alguns

casos, pela escrita automática; se não foi cubista, soube valer-se da

multiplicação de pontos de vista, característica do movimento; se não foi

expressionista, soube incorporar em seus versos as sobras do que fora

repudiado pelo academicismo, como o grotesco e a linguagem cotidiana das

ruas.

Embora considerasse a música sua principal referência não literária,

um espaço de destaque deve ser reservado às artes visuais, já que ele próprio

fora desenhista e, não fosse a doença que o acometeu, teria seguido a carreira

de arquiteto. Bandeira também dedicaria às artes visuais uma parte

significativa de sua obra em prosa, seja como crítico de arte, propriamente dito,

seja escrevendo crônicas jornalísticas com temas ligados à pintura, à escultura

ou à estética plástica em geral.

Se a música lhe ensinou a bemolização das alterações vocálicas (como

nos pares Capibaribe/Capiberibe e Flórida/Florida) e afinou seu ouvido para o

uso das rimas toantes, as artes visuais serviram não apenas como sugestão

poética, em textos ecfrásticos, como “Mangue”, composto a partir de gravuras

de Lasar Segall, mas também como fonte de recursos que, transpostos da

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linguagem visual para a verbal, ajudariam a compor o múltiplo repertório

poético de Manuel Bandeira.

A poética heterogênea de Bandeira, mobilizando com mestria a

tradição e os recursos de vanguarda, questiona não apenas os limites entre a

poesia e as artes plásticas, que Lessing tentou tornar claros e definitivos, mas

os próprios limites entre a arte e a natureza, questões que buscarei abordar no

presente texto. Para tanto, elegi o poema “O cacto”, abaixo transcrito, por dois

motivos principais: por pertencer a Libertinagem, de 1930, obra em que a

poética modernista de Bandeira se dá a ver de modo inquestionável; e, por

fazer referência direta às artes plásticas, especialmente à escultura,

associando-as de modo inusitado a um ente natural, um cacto artificialmente

implantado na paisagem serrana de Petrópolis.

O Cacto

1. Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:

2. Laocoonte constrangido pelas serpentes,

3. Ugolino e os filhos esfaimados.

4. Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...

5. Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

6. Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.

7. O cacto tombou atravessado na rua,

8. Quebrou os beirais do casario fronteiro,

9. Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,

10. Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de

iluminação e energia:

11. - Era belo, áspero, intratável.

Petrópolis, 1925

Ut poesis natura

Composto por três estrofes irregulares de versos livres, o poema de

Bandeira mostra-se inusitado desde sua abertura ao valer-se de referentes

artísticos para sugerir a compleição de um ente natural, o cacto do título. A

primeira referência diz respeito a Laocoonte, sacerdote do templo de Apolo em

Tróia e o único a desconfiar do plano de invasão da cidade pelos gregos,

escondidos no famoso cavalo de madeira de enormes proporções. Por ter

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mantido relações sexuais diante de imagens sagradas, é punido pelos deuses,

favoráveis aos gregos, sofrendo, juntamente com seus filhos, um ataque de

serpentes. O episódio, descrito integralmente por Virgílio na Eneida (Livro II,

versos 201 e ss.), serviu de argumento e modelo para as representações

picturais e escultóricas do mito. Nas artes plásticas, tornou-se comum a

representação do instante exato em que Laocoonte, ao tentar desvencilhar os

filhos das serpentes, é por elas envolvido e morto. Representado em pinturas

parietais desde a Antiguidade, tornou-se amplamente conhecido em toda a

Europa, sobretudo a partir do século XVI, quando se descobriu o conjunto

esculpido em mármore por Atanadoro, Hagessandro e Polidoro por volta do

ano 50 d.C. Entre os anos de 1610 e 1614, El Greco transpôs o tema para a

tela, alterando o cenário de fundo ao substituir a cidade de Tróia pela de

Toledo.

Deve-se notar que o eu-lírico do poema não se refere a manifestações

específicas de determinados artistas, mas ao tema em si, abstraído, em sua

dramaticidade, das obras de todos os que se dedicaram a ele ao longo do

tempo. Evocar a figura de Laocoonte implica uma passagem não apenas pelo

mito que deu origem a tal personagem, mas por todos os que reviram o tema,

seja por meio de sua reconstrução artística, como fez o próprio Manuel

Bandeira, seja produzindo crítica de arte ou de literatura sobre aquilo que se

produziu acerca dele, como o fizeram Winckelman e Lessing.

A segunda referência, a “Ugolino e os filhos esfaimados”, diz respeito

ao conde pisano Ugolino della Gherardesca, acusado de traição pelo arcebispo

local, seu antigo aliado, e por ele encerrado, na companhia dos filhos, na “Torre

da Fome”, onde definham até a morte. Ao contrário de Laocoonte, cujas

representações mais conhecidas são plásticas, Ugolino é conhecido,

sobretudo, pelo relato que faz a Dante na Divina Comédia, logo no início do

Canto XXXIII do “Inferno”. A dramaticidade do tema despertou o interesse de

Jean-Baptiste Carpeaux, que o trabalhou no mármore, e de Rodin, que o

transpôs para o bronze.

A terceira referência, em oposição às duas primeiras, aponta para

dados concretos da realidade brasileira, evocando o cenário de origem do

cacto, e do próprio poeta: o “seco Nordeste”. Se nos casos de Laocoonte e

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Ugolino a relação é de similaridade e, portanto, da ordem da metáfora (‘cacto’ �

‘Laocoonte’; ‘cacto’ � ‘Ugolino’), tem-se no verso 4 uma relação metonímica de

contiguidade (‘cacto’ � ‘seco Nordeste’ = parte � todo).

Ao articular referências a temas tradicionais das artes plásticas e dados

concretos de uma realidade distinta a esses temas, Bandeira dá mostras de

seu processo heterogêneo de composição poética. Arrigucci Jr observa, na

primeira estrofe de “O cacto”, uma construção de natureza emblemática, em

que

a imaginação poética aparece como uma faculdade plástica e estruturada, capaz de dar unidade ao diverso, formando novos conjuntos articulados, operando espacialmente uma nova harmonia das imagens. No plano do ritmo, a tendência moderna parece caminhar no mesmo sentido, pela incorporação do heterogêneo à estrutura do verso. (1990, p. 16).

A idéia de que um texto e, mais especificamente, o texto poético pode

ser entendido como um emblema não é nova. Já Diderot o dissera em seu

“Discurso sobre os surdos-mudos” ao afirmar que o discurso é “um tecido de

hieróglifos amontoados uns sobre os outros, que o pintam. Eu poderia dizer,

nesse sentido, que toda poesia é emblemática.” (apud PRAZ, 1982, p.4).

Deve-se notar, contudo, que Bandeira não compõe um poema

ecfrástico, já que não retrata as obras plásticas de que lança mão; não há em

seus versos qualquer descrição do tema de Laocoonte, seja em suas versões

esculpidas, seja nas pictóricas. O mesmo se dá com Ugolino e o próprio cacto,

unicamente classificado, além das comparações, como “enorme”.

Como compor, nesse caso, a imagem do cacto, que permeia e

organiza toda a construção do poema? A resposta talvez esteja nos verbos

escolhidos por Bandeira para intermediar a relação entre a forma do cacto e as

obras artísticas de que se vale: ‘lembrar’ e ‘evocar’. Ambos ligam-se

diretamente à memória, que cumpre um papel central em uma poética

construída a partir da diversidade, já que ela

não assume, em arte, uma função subsidiária ou ancilar, como acontece na vida comum, mas é, em si mesma, Arte, na qual todas as diversas artes se unificam sem resíduos. A mitologia antiga viu isso claramente, de certo modo, quando imaginou ser Mnemósine a mãe das Musas. (RUSSI, 1960, p. 39).

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Pode-se, pois, entender a memória, sobretudo como manancial de

matéria-prima para a elaboração artística, como algo que se rege por princípios

heterogêneos de mescla de percepções: uma imagem que retorna à nossa

mente pode (e costuma) ser acompanhada por sons, aromas e mesmo outras

imagens, a ela associados por mecanismos nem sempre racional e

imediatamente apreensíveis.

Se o poema não se constrói por meio de um “discurso sincrético”

(HOEK, 2006, p. 179), já que nele não se observa a concorrência simultânea

de signos verbais e icônicos, acaba por desencadear um efeito semelhante ao

convocar imagens tradicionais das artes plásticas e da natureza para

comporem, em meio ao verbal, o significado global do texto.

A revolta da natura ou o cacto maneirista-expressionista

Etimologicamente, o termo português ‘estátua’ remonta ao seu

congênere latino statua,ae, derivado por sua vez do verbo statuere, ‘estar de

pé’, ‘permanecer firme’. Levando-se em conta este sentido original, vemos que

a segunda estrofe do poema de Bandeira marca uma mudança significativa na

relação do cacto com seus referentes artísticos escultóricos. Após mobilizar

nossa memória estética evocando as figuras de Laocoonte e Ugolino, o cacto é

lançado ao chão por um “tufão furibundo”, deixando de lembrar ou evocar o

que, enfim, não é: uma estátua.

Diferentemente do que é artificial, cuja existência pode perpetuar-se

indefinidamente no tempo, os elementos naturais, como o cacto de Bandeira,

regem-se por ciclos temporais e, têm, necessariamente, um início e um fim. Se

o artificial o transformara em objeto paisagístico ao implantá-lo em um

ambiente diverso do seu (a serrana Petrópolis, cuja indicação consta do final

do poema) e, posteriormente, em estátua, a natureza acabou por restituí-lo a

sua condição original ao encerrar um ciclo de sua existência.

Promovendo uma inversão do gênero ‘natureza-morta’, o cacto de

Bandeira, paradoxalmente, mostra-se vivo ao morrer, isto é, ao ser lançado

sobre a cidade pelo tufão furibundo. Mais do que uma natureza-morta,

aproxima-se dos termos inglês e alemão, still life e still Leben, respectivamente,

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que preservam a idéia de “vida latente”, “vida palpitante”, ainda que não

aparente.

Tal concepção instrumentaliza a passagem que se dá entre o caráter

emblemático da primeira estrofe de “O cacto” e o caráter narrativo da segunda.

Se a representação de Laocoonte evocada na primeira estrofe privilegiou um

momento específico do mito, congelado no tempo e no espaço e definido

paradoxalmente como ‘gesto de estatuária’, na segunda, observa-se o

predomínio do gesto, inscrito no tempo, sobre a estatuária, inscrita no espaço;

o cacto, livre da condição artificializada em que fora encerrado, manifesta-se

pela performance, e não mais pela imagem, como na primeira estrofe.

Tal mudança é perceptível também na construção linguística,

sobretudo no que diz respeito aos tempos verbais: na primeira estrofe,

predominam formas do pretérito imperfeito (‘lembrava’, ‘evocava’, ‘era’), com

sua sugestão de longinquidade e de suspensão temporal (fenômeno já

observado por Lessing), e de particípios passados (‘constrangido’,

‘esfaimados’), reforçando a idéia de estaticidade, de imagem congelada no ato;

na segunda, por sua vez, predominam verbos no pretérito perfeito (‘abateu’,

‘tombou’, ‘quebrou’, ‘impediu’, ‘arrebentou’, ‘privou’) caracterizando uma

progressão temporal narrativa.

Comparativamente, seria mais apropriado aproximar a nova condição

do cacto não mais ao conjunto escultórico de Atanadoro e seus discípulos, mas

à pintura a óleo sobre tela realizada por El Greco no início do século XVII,

pouco antes de sua morte. O pintor, principal representante do Maneirismo

espanhol (embora, como a alcunha o mostre, fosse grego de origem),

emprestou a suas figuras, fossem elas sacras ou profanas, um caráter esguio,

desmesurado, distanciando-se das proporções corporais tidas como perfeitas

pelos renascentistas e alçadas, por eles, quase à condição de dogma artístico.

El Greco inovou a representação do tema desde a escolha do momento a ser

reproduzido. Diferentemente de Atanadoro e da tradição surgida em seu rastro,

observa-se na tela um Laocoonte não em seu momento estático de dor, mas já

em sua queda, com sugestões de movimento e uma progressão temporal,

como alguém que estivesse inserido em um processo narrativo ou

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performático, exatamente como ocorre com o cacto de Bandeira na segunda

estrofe do poema.

Atanadoro, Hagessandro e Polidoro Laocoonte (aprox. 50 d.C.) Mármore; Museu Pio

Clemente, Vaticano

El Greco (1541 – 1614)

Laocoonte c. 1610/1614 Óleo sobre tela, 137.5 x 172.5 cm

O que se observa no Maneirismo de El Greco e de tantos outros, não

é, a rigor, uma repulsa pura e simples ao clássico, como muitas vezes se

propagou, mas um modo de produção artística que busca articular, ainda que

tensamente, a tradição clássica recuperada pelo Renascimento e a

transgressão a essa mesma tradição. Insatisfeitos com a arte que se pretendia

puramente imitativa, herdada do Alto Renascimento, observa-se nos pintores

maneiristas “uma tendência para a abstração, mais do que para a pura

imitação da natureza” (PRAZ, 1982, p. 99), fato que teria despertado o

interesse de grande parte dos artistas vanguardistas do início do século XX,

sobretudo dos que tendiam para as vertentes surrealistas e expressionistas.

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Arrigucci Jr reconhece no cacto de Bandeira uma “inclinação para a

deformação expressionista”, perceptível “pelo volume gigantesco do cacto, cuja

aparência enorme parece corresponder a uma força interior desmesurada,

compelida a deformar a realidade, ao se plasmar exteriormente.” (2000, p. 28).

Pouco antes de Bandeira, Euclides da Cunha, imerso ainda no ideário

positivista de fins do século XIX, descreve o sertanejo nordestino como alguém

que, por não apresentar harmonia corporal, não teria nada de belo. Em

Bandeira, ao contrário, a desmesura e a suposta desarmonia entre o ente

natural e o meio artificial em que fora inserido (a cidade, com bondes

automóveis e cabos elétricos) contribuem para que o cacto seja considerado

belo, posto que “áspero” e “intratável”.

Mímesis entre espinhos

Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam a mímesis como uma

imitação humana cujo ponto de partida não poderia ser senão um modelo

natural, apreendido pelo artista e por ele reproduzido segundo os meios

específicos de cada forma de expressão e segundo leis gerais ditadas pela

própria natureza. Contudo, divergiam quanto à valoração da mímesis como

processo de criação artística. Se Aristóteles vislumbrava na mímesis uma

potencialidade inerente ao ser humano, capaz de distingui-lo dos animais

irracionais (ou seja, a mímesis como prova da superioridade humana diante do

natural), Platão a entendia como algo depreciativo. Sendo o mundo fenomênico

uma pálida sombra degradada do mundo das Idéias, sua representação pelo

humano, vale dizer, sua representação artística, não passaria de uma

“aparência de segundo grau”, capaz de manter o homem “confinado pela

segunda vez na materialidade do sensível” (RIBON, 1991, pp. 59-60). Como

mero copista de fenômenos acidentais, não restaria ao poeta mimético dos

tempos de Platão o exílio da República ideal.

Plotino (IV d.C.), para cuja formação concorreram tanto doutrinas

helênicas antigas quanto elementos do cristianismo nascente, não acreditava

na existência de um ‘belo-em-si’ a priori, ideal, nos moldes platônicos, mas em

um princípio divino de beleza, capaz de transfigurar qualquer coisa em que se

manifeste. A idéia plotiniana de transfiguração, depurada de seu caráter divino,

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tomaria nova forma com Diderot, defensor da mímesis enquanto transfiguração

criativa e mesmo transgressora do real, já que “é preciso, para as artes da

imitação, algo de selvagem, bruto, chocante e enorme.” (DIDEROT, 1951, p.

1180)

Como agnóstico, Kant descarta a possibilidade de entendimento de

qualquer dado intuitivo, da ordem do númeno, do incognoscível, na arte,

preferindo concentrar seu trabalho estético na análise de fenômenos

manifestos, ou, mais propriamente, no modo pelo qual tais fenômenos são

percebidos. Já não se trata, pois, de imaginar algo que seja belo a priori, mas

de entender como um determinado indivíduo, em sua subjetividade, percebe

um determinado objeto, seja ele natural ou artístico, como belo.

Dufrenne, dialogando a média distância com Kant e os românticos

alemães e, ao pé do ouvido, com a fenomenologia de Heidegger, também opta

por concentrar a análise estética no fenômeno, visto à luz da natureza

fragmentária das práticas artísticas contemporâneas.

A esse respeito, o poema de Bandeira suscita de imediato duas

questões: se a mímesis é de fato uma representação artística do natural, como

entendê-la quando há uma inversão de papéis, isto é, quando um elemento

natural, o cacto, imita ou parece imitar representações artísticas tradicionais (os

conjuntos de Laocoonte e Ugolino)?

Para Ribon, a resposta estaria ligada a nossa “percepção estética da

natureza”, que nos faz descobrir “o que a arte primeiro nos mostrou”, pois “no

mais das vezes a beleza natural só é apreendida pelo viés da nossa cultura

artística. É então que a natureza parece imitar a arte.” (1991, p. 84).

Tal percepção estética da natureza, estabelecida a partir de um

referente artístico, dividir-se-ia em dois níveis: o consciente, em que a relação é

evidente e pode ser expressa (tal paisagem parece um Monet; aquele cacto

lembrava Laocoonte etc.); e o não-consciente ou latente, em que a relação não

é evidente, e o modelo artístico que nos permite reconhecer o elemento natural

como um objeto estético não é desvelado.

Outro ponto significativo para a questão diz respeito à própria

percepção de que não é a regularidade que preside a natureza; no máximo,

pode-se pensar em leis que, ainda que existentes, não estão ao nosso alcance.

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Resta reproduzi-la na arte segundo nossa percepção, e a percebemos como

irregular. Nesse caso, o grotesco, aberto à diversidade, seria muito mais

eficiente como instrumento de reprodução da natureza se comparado aos

paradigmas clássicos.

Mas a questão não está encerrada na passagem do século XVI para o

XVII, isto é, do Renascimento para o Maneirismo. A obsessão pela

representação mimética da natureza, reaquecida a cada período de inovação

técnica (descoberta da perspectiva, da mecânica, da fotografia, dos meios

digitais etc.), parece encontrar, logo em seguida, a resistência por parte dos

que entendem a arte como transfiguração do natural.

Ribon (1991, p. 64) chama nossa atenção para a crise desencadeada

na pintura, sobretudo no gênero ‘retrato’, com o surgimento da fotografia. Se se

dispunha, a partir daquele momento, de um meio técnico de reprodução da

imagem muito mais eficaz que a pintura, por que insistir em produzi-la? E como

fazê-lo sem o risco de tornar-se uma expressão caricatural e obsoleta ao lado

da fotografia? Mergulhando, justamente, na abstração, e assumindo linguagens

capazes de negar qualquer tentativa de tautologia entre a realidade e a

imagem produzida a partir dela, como o fez Magritte, radicalmente, ao pintar

um enorme cachimbo com os dizeres “ceci n’est pas une pipe”: a imagem do

cachimbo não é (e nem deve ser) o próprio cachimbo.

Mais significativo seria o fato de vários fotógrafos, após um período

inicial de deslumbramento, utilizarem a fotografia como um novo meio para a

produção de obras não figurativas, aproveitando recursos técnicos como a

montagem e a sobreposição de imagens em seus trabalhos.

Com o cinema, fotografia em movimento, não seria diferente. Os

primeiros filmes produzidos pelos irmãos Lumière e por seus auxiliares

conquistaram êxito imediato por se apresentarem como o meio mais eficaz, até

então, de reproduzir imagens reais com “grandeza natural”, segundo o anúncio

publicitário da primeira exibição pública do cinematógrafo. Capazes não

apenas de projetar filmes, mas de fazer tomadas locais de imagens, cada

comunidade visitada pelo cinematógrafo assombrava-se e deleitava-se ao ver

seus próprios moradores e suas próprias paisagens retratadas nas telas de

exibição. Anos mais tarde, passado o furor inicial, a mera reprodução do real

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deixaria de interessar a diretores e espectadores, o que se comprova pelo

sucesso obtido por Robert Wiene em 1919 com seu Das Kabinet des Dr.

Caligari, caracterizado, segundo Antunes Filho, por “perspectivas distorcidas,

formas ambíguas, ângulos irregulares, traços fortes e uma consciente fuga das

soluções verticais e horizontais simplistas”, promovendo um “alívio da

ultrapassada obsessão pela recriação da realidade”. Surgia, com o filme de

Wiene, o movimento que seria conhecido como Expressionismo Alemão,

decisivo para a afirmação do cinema como arte.

Interessados em produzir uma linguagem cinematográfica

transfiguradora do real, os diretores do Expressionismo Alemão recorreram

com frequência a elementos típicos do grotesco nas artes plásticas. Não por

acaso, a temática do monstro ocupa um lugar central no movimento, ora com

figuras de caráter monstruoso, propriamente dito, como o vampiro Nosferatu,

do filme homônimo de Murnau, ora com figuras que se distanciam da

experiência humana comum, como o sonâmbulo Cesare, de O Gabinete do

Dr. Caligari, ou ainda com figuras não humanas, como o autômato de

Metrópolis, de Fritz Lang.

O grotesco, que se espalhara pelas artes plásticas no final do século

XVI, com o esgotamento do academicismo renascentista, espraia-se também

pelo cinema, que deixa de ser um mero instrumento de reprodução técnica de

imagens e torna-se, também ele, um meio de expressão artística.

A reatualização constante da discussão sobre os modelos de que

deveria valer-se a arte e, em seguida, das formas e meios pelos quais fazê-lo,

se de forma mimética, buscando reproduzi-los sem distorções, ou se de forma

propositadamente distorcida, como o fizeram maneiristas e expressionistas,

aponta para um processo de circularidade desses mesmos modelos. A fortuna

do mito de Laocoonte, com suas transposições constantes, da poesia de

Virgílio para a escultura de Atanadoro, desta para a pintura de El Greco e

outros, e de tudo isso para a poesia de Bandeira, que o associa a um ente

natural, acaba por compor uma espécie de mise en abîme, já que “Na

articulação entre a arte e a natureza organiza-se uma pista de voo ou um

embarcadouro para novos mundos, em número infinito.” (RIBON, 1991, p. 94).

Discutir, nesse caso, a primazia de um modelo sobre o outro, natural ou

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artístico, é, no mínimo, infrutífero. A melhor solução parece ser a de Diderot em

seus Pensées Détachées sur la Peinture: “Que me importa que o Laocoonte

dos escultores seja anterior ou não ao Laocoonte do poeta? O certo é que um

serviu de modelo ao outro (1959, p. 761).

Resta incluir nesse processo circular a própria natureza.

Evidentemente, não seus elementos em si, encerrados em uma condição

incomunicável ao entendimento humano, mas a percepção que temos deles,

ora quando temos a impressão, apoiada por nossa memória estética, de que

imitam o artístico, ora quando evocamos tal idéia deliberadamente, como o faz

Bandeira no poema “O cacto”.

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