MODALIDADES ALÉTICAS EM TOMÁS DE AQUINO · O sistema filosófico de Tomás de Aquino possui...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Departamento de Filosofia Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica Thiago Sebastião Reis Contarato MODALIDADES ALÉTICAS EM TOMÁS DE AQUINO RIO DE JANEIRO, BRASIL Novembro de 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Departamento de Filosofia

Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica

Thiago Sebastião Reis Contarato

MODALIDADES ALÉTICAS EM

TOMÁS DE AQUINO

RIO DE JANEIRO, BRASIL

Novembro de 2019

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MODALIDADES ALÉTICAS EM TOMÁS DE AQUINO

Thiago Sebastião Reis Contarato

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Lógica e Metafísica (PPGLM) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do

grau de Doutor em Filosofia (Lógica e Metafísica).

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Wyllie

Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIRO, BRASIL

Novembro de 2019

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MODALIDADES ALÉTICAS EM TOMÁS DE AQUINO

Por

Thiago Sebastião Reis Contarato

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Lógica e Metafísica (PPGLM) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do

grau de Doutor em Filosofia (Lógica e Metafísica).

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Wyllie

Rio de Janeiro, 25 de Novembro de 2019.

Aprovado por:

__________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Guilherme Wyllie (UFF)

__________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

__________________________________________________ Prof. Dr. Mário Augusto Queiroz Carvalho (UFRJ)

__________________________________________________ Prof. Dr. Markos Klemz Guerrero (UFRRJ)

__________________________________________________ Prof. Dr. Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ)

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C759m CONTARATO, Thiago S. R. Modalidades Aléticas em Tomás de Aquino / Thiago Sebastião Reis Contarato. Tese de Doutorado, PPGLM/UFRJ, Rio de Janeiro, 2019. 155f

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Wyllie

Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS/ PPGLM, 2019. Referências Bibliográficas: p. 149-155.

1 - Modalidade Alética, 2 - Tomás de Aquino, 3 - Modelo Potencialista, 4 - Lógica

Medieval, 5 - Lógica Modal.

I - Wyllie, Guilherme, orient. II - Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS, PPGLM. III - Modalidades Aléticas em Tomás de Aquino.

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Agradecimentos:

Primeiramente, agradeço a Deus, pela minha existência, e a meus pais, Braz André Paulino

Contarato e Jerusa Aguiar Reis Contarato, por terem me presenteado com a vida. Agradeço

a meu irmão, Matheus José Reis Contarato, que me deu toda a força que eu precisava para

seguir em frente diante dos desafios. Agradeço também à Carolina Paulo do Nascimento,

que me ensinou que vale a pena continuar vivendo.

Não posso esquecer-me de agradecer a todos os meus amigos que descobri na UFRJ, por

todos aqueles diálogos descontraídos e esclarecedores que me fizeram crescer de diversos

modos possíveis. Além disso, também agradeço a todos os meus professores na UFRJ, por

terem contribuído para a minha formação profissional.

Em especial, agradeço muito ao meu antigo orientador Rodrigo Guerizoli, por ter me

ensinado os primeiros passos na pesquisa filosófica. Por fim, agradeço muito ao meu

orientador Guilherme Wyllie, por ter me incentivado continuamente e me auxiliado

decisivamente para que essa tese se realize.

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Resumo:

CONTARATO, Thiago S. R.. Modalidades Aléticas em Tomás de Aquino. Tese (Doutorado em

Filosofia), UFRJ, IFCS, PPGLM, Rio de Janeiro, 2019.

O sistema filosófico de Tomás de Aquino possui peculiaridades próprias que nos

inspiraram a encontrar uma semântica diferenciada para as modalidades aléticas. Seguindo

Aristóteles, Tomás de Aquino descreve as modalidades aléticas se utilizando das noções de

potência e ato. Contudo, de acordo com a necessidade dos temas da filosofia medieval, Tomás

precisou aprofundar e refinar essas noções. As nossas análises desse aprofundamento e

refinamento desembocarão em um Modelo Potencialista.

Veremos, no capítulo 1, que o uso da Semântica de Mundos Possíveis (S.M.P.) levou

muitos comentadores atuais a defenderem que Aristóteles (e, por consequência, Tomás de

Aquino) comete falácias e erros grosseiros nas suas descrições das modalidades aléticas. Como

resposta, Hintikka e Knuuttila defenderam ser um erro usar a S.M.P. para descrever os

pensamentos modais aristotélicos. Na hipótese de Hintikka e Knuuttila, Aristóteles usava a

semântica do Modelo Estatístico, mas esse modelo deles ainda será insuficiente. Neste ponto,

os movimentos disposicionalistas ou potencialistas contemporâneos nos inspararam a buscar

reconstituir a semântica usada por Tomás de Aquino enquanto Modelo Potencialista.

No capítulo 2, nós faremos um estudo investigativo sobre esse Modelo Potencialista de

Tomás, onde as modalidades aléticas serão entendidas com base no que chamamos de

“abrangência da potência/possibilidade”. Através dos diagramas, esclareceremos formalmente

cada uma das modalidades aléticas no Modelo Potencialista. Também separaremos as

modalidades em si, baseadas diretamente no princípio de não contradição, das modalidades

simpliciter, baseadas nas espécies.

Enfatizo, no capítulo 3, que a S.M.P. será incompatível com Sistema Aristotélico e

Tomista por causa da definição de “mundo” que esses filósofos possuiram, mas será

compatível com o Modelo Potencialista em si, isto é, independente do sistema desses

filósofos. Para finalizar, o capítulo 4 fará análises desse Modelo Potencialista, apresentando-o

de um ponto de vista mais lógico, instrumental, formal, fundamental, geral, neutro e

independente do Sistema Aristotélico e Tomista.

PALAVRAS CHAVE: 1 - Modalidade Alética, 2 - Tomás de Aquino, 3 - Modelo Potencialista, 4 -

Lógica Medieval, 5 - Lógica Modal.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Abstract:

CONTARATO, Thiago S. R.. Modalidades Aléticas em Tomás de Aquino. Tese (Doutorado em

Filosofia), UFRJ, IFCS, PPGLM, Rio de Janeiro, 2019.

The Aquinas philosophical system has its own peculiarities that inspired us to find a

different semantics for the alethic modalities. Following Aristotle, Thomas Aquinas describes

the alethic modalities using the notions of potency and act. However, according to the need

for the themes of medieval philosophy, Thomas needed to deepen and refine these notions.

Our analysis of this deepening and refinement will lead to a Potentialist Model.

We will see in topic 1 that the use of Possible Worlds Semantics (P.W.S.) has led many

current commentators to argue that Aristotle (and hence Aquinas) makes fallacies and gross

errors in his descriptions of alethic modalities. In response, Hintikka and Knuuttila claimed it

was a mistake to use S.M.P. to describe Aristotelian modal thoughts. In the hypothesis of

Hintikka and Knuuttila, Aristotle used the semantics of the Statistical Model, but this model of

them will still be insufficient. At this point the contemporary dispositionalist or potentialist

movements have inspired us to seek to reconstitute the semantics used by Thomas Aquinas as

a Potentialist Model.

In topic 2, we will make an investigative study of this Potentialist Model of Aquinas,

where the alethic modalities will be understood based on what we call the “range of

potency/possibility”. Through the diagrams, we will formally clarify each of the alethic

modalities in the Potentialist Model. We will also separate the modalities themselves, based

directly on the principle of non-contradiction, from the modalities simpliciter.

I emphasize in topic 3 that P.W.S. will be incompatible with the Aristotelian and

Thomistic System because of the definition of "world" that these philosophers had, but it will

be compatible with the Potentialist Model itself, independent of the system of these

philosophers. Finally, topic 4 will analyze this Potentialist Model, presenting it from a more

logical, instrumental, formal, fundamental, general, neutral and independent point of view of

the Aristotelian and Thomistic System.

KEYWORDS: 1 - Alethic Modality, 2 - Thomas Aquinas, 3 - Potentialist Model, 4 - Medieval

Logic, 5 - Modal Logic.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.

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“O impossível a mim Ele pode realizar.”

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Abreviações dos nomes das obras de Tomás de Aquino:

S.Th.: Summa Theologiae

S.C.G.: Summa Contra Gentiles

De Pot.: Quaestiones Disputatae de Potentia

In Metaphys.: In Aristotelem Sententia Libri Metaphysicae

In De Caelo: In libros Aristotelis De Caelo et Mundo Expositio

De Ente.: De Ente et Essentia

Q. D. De Anima: Quaestio Disputata de Anima

De Subst. Sepa.: De Substantiis Separatis

Expos. Post. Analytic.: Expositivo Libri Posteriorum Analyticorum

Expos. Peryerme.: Expositio Libri Peryermeneias

Super Meteo.: Sentencia Super Meteora

Super Sent.: Scriptum Super Sententiis

De Propositionibus Modalibus: De Propositionibus Modalibus (não abreviamos)

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Sumário:

Introdução: ...................................................................................................................11

Capítulo 1: Noções Preliminares....................................................................................15

1.1 O que é “Modalidade Alética”?...............................................................................16

1.2 Discussões que Levaram ao Modelo Estatístico......................................................22

1.3 O Disposicionalismo e o Potencialismo Contemporâneos......................................32

Capítulo 2: Investigações Textuais acerca do Modelo Potencialista.............................42

2.1 Investigação acerca da Semântica da Possibilidade................................................43

2.2 Investigação acerca da Semântica da Impossibilidade............................................59

2.3 Investigação acerca da Semântica da Contingência................................................65

2.4 Investigação acerca da Semântica da Necessidade.................................................76

Capítulo 3: Definindo o que é “Mundo”........................................................................94

3.1 Incompatibilidade com a Semântica de Mundos Possíveis.....................................95

3.2 O Mundo tem Necessidade em Si ou Necessidade Simpliciter?.............................109

Capítulo 4: Resumo Geral e Análises do Modelo Potencialista....................................122

4.1 Uma Semântica Autoexplicativa com os Primeiros Princípios................................124

4.2 Uma Semântica Mais Fundamental e Primitiva......................................................129

4.3 O Modelo Potencialista como um Instrumento Neutro e Independente...............133

4.4 Aplicação Prática do Modelo Potencialista.............................................................137

Conclusão......................................................................................................................144

Referências Bibliográficas.............................................................................................149

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Introdução:

A pesquisa que desenvolveremos busca compreender como as modalidades

aléticas (“necessário”, “impossível”, “possível” e “contingente”) foram descritas na

Idade Média por Tomás de Aquino. A princípio, essas modalidades são determinadas e

definidas com o auxílio do princípio de não contradição ou princípio de identidade.

Contudo, para trazer melhor esclarecimento, as análises dessas modalidades costumam

exigir instrumentos lógicos que vão além dessas definições com base nos princípios.

Nesse contexto, essa pesquisa busca estudar semânticas alternativas para as

modalidades aléticas resultantes desses instrumentos lógicos.

Atualmente, por influência de Saul Kripke e de outros filósofos, a Semântica dos

Mundos Possíveis com situações contrafactuais se tornou o instrumento mais utilizado

com a finalidade de descrever e aplicar as modalidades aléticas. Grosso modo, essa

semântica envolve a quantificação (“todos”, “algum”, “nenhum”) sobre mundos

possíveis. Assim, o possível é definido como aquilo que está em algum dos mundos

possíveis; contingente é definido como aquilo que está no mundo atual e não em outros

mundos possíveis; o impossível não está em nenhum dos mundos possíveis; por fim, o

necessário é definido como aquilo que está em todos os mundos possíveis.

Historicamente, é atribuída a Duns Scotus1 ou a Leibniz2 a primeira utilização de

“mundos possíveis” como instrumento para se determinar as modalidades aléticas.

Contudo, antes de a teoria dos mundos possíveis começar a ser apresentada por Duns

Scotus e Leibniz, Aristóteles e Tomás de Aquino já possuíam raciocínios modais aléticos

e tais raciocínios chegam até mesmo a ser incompatíveis com tal semântica. Veremos

que, caso alguns argumentos e teses aristotélico-tomistas sejam descritos em termos de

mundos possíveis, é possível concluir erroneamente que esses filósofos cometem

1 Veja: PÉREZ-ESTÉVEZ, Antônio. Libertad Divina, Posibilidad y Contingencia en Duns Escoto. Veritas, v. 50, n. 3, p. 85-93, Porto Alegre, 2005. É verdade que Duns Scotus se utilizou de mundos possíveis, mas isso não impede que ele também tenha usado um modelo potencialista, tal como mencionaremos no tópico 4.2. De fato, nos textos de Scotus, há muitas análises sobre as potencialidades que são semelhantes ao que desenvolveremos nesta tese. 2 LEIBNIZ G. W.., Essais de Théodicée. Parte II, §225, 1969, p.253. Veja o texto da nota 184 desta tese.

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falácias modais. De fato, alguns críticos, como Dancy3, Judson4 e Williams5 afirmam que

Aristóteles teria cometido erros grosseiros em suas descrições modais ou ao usá-las. A

motivação inicial para a nossa pesquisa foi justamente corrigir essas discrepâncias.

Inicialmente, nós analisaremos brevemente o Modelo Estatístico proposto por

Jaakko Hintikka, em Time and Necessity, e Simo Knuuttila, em Modality in Medieval

Philosophy. Mesmo com todas as dificuldades, teremos que reconhecer que Aristóteles

se vale constantemente do tempo, nem que seja como uma “muleta”, para apoiar as

descrições de suas noções modais aléticas. Depois de fazer uma exposição sobre o

Modelo Estatístico também em Tomás de Aquino, veremos que, embora possa ser

usado como instrumento, esse modelo não é suficiente para descreve todas as suas

intuições modais aléticas.

O sistema tomista não se reduz a esse Modelo Estatístico, pois, antes de tudo,

ele seguiria um Modelo Potencialista. A pesquisa deste trabalho será focada nos textos

de Tomás de Aquino simplesmente porque os textos de Aristóteles sozinhos não

esclarecem bem todas as características do Modelo Potencialista, ao menos não tão

profundamente quanto os textos de Tomás. As análises modais aléticas são tão

presentes nos textos tomistas que é surpreendente haver poucos trabalhos acadêmicos

dedicados a descrever as modalidades aléticas em Tomás de Aquino exatamente na

perspectiva que seguiremos.

Os interesses dos teólogos latinos medievais, bem como as disputas contra os

árabes e judeus, contribuíram decisivamente para os aprofundamentos das noções

modais baseadas na distinção entre potência e ato. Uma vez que Tomás não escreveu

nenhuma obra exclusivamente dedicada a tratar das modalidades aléticas, nós faremos

uma reconstituição do instrumento com base no uso que Tomás fez dos termos. Em

outras palavras, efetuaremos análises e investigações textuais para reconstituir o

Modelo Potencialista, o instrumento usado por Tomás de Aquino para determinar as

modalidades aléticas.

3 DANCY, R.. Aristotle and the Priority of Atuality. In S. Knuuttila (ed.) Reforging the Great Chain of Being: Studies of the History of Modal Theories. Synthese Historical Lib.20. Dordrecht, Reidel, 73-115, 1981. 4 JUDSON, L. Eternity and Necessity in De Caelo I.12: A Discussion of Sarah Waterlow, Passage and Possibility:A Study of Aristotle’s Modal Concepts.Oxford Studies in Ancient Philosophy1:p.217-255,1983. 5 WILLIAMS, C. J. F.. Aristotle and corruptibility. Religious Studies 1: 95-107, 203-215, 1965.

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Resumindo, nós nos focaremos na investigação textual. Buscaremos trabalhar

com a hipótese de construir ou reconstituir o que chamamos de “Modelo Potencialista”,

que é um modelo de semântica inovador, já que, a princípio, este modelo ainda não foi

descrito em lugar algum. Para finalizar, um resumo geral sobre o Modelo Potencialista

se encontrará no capítulo 4, de modo que o leitor pode se focar mais nesse capítulo,

caso queira estudar os aspectos mais formais dessa semântica.

Em nossas análises críticas e investigações textuais, passaremos por diversos

assuntos sem entrar em detalhes6. Tal é o caso do princípio da plenitude, do

determinismo, da eternidade das espécies, da eternidade e unicidade do mundo, da

matéria como pura potência, do processo de geração e corrupção dos corpos sublunares,

da eternidade e unicidade dos corpos celestes e dos anjos, da necessidade e da

onipotência de Deus, dentre muitos outros. É bem verdade que poderíamos redigir teses

de doutorado para cada um desses assuntos, mas analisá-los em profundidade poderia

acarretar a perda do foco principal de nossa pesquisa, a saber, analisar o uso das

modalidades aléticas por Tomás de Aquino. No entanto, forneceremos descrições

sucintas para tais assuntos na medida em que estão subordinados ao objetivo central

deste trabalho. De qualquer maneira, nossas análises apresentarão o Sistema de Tomás

de Aquino como um todo, o que permite que se situe melhor os diversos assuntos

dentro desse sistema.

Ao longo da presente pesquisa, dois aspectos merecerão um destaque especial:

o disposicionalismo contemporâneo e a definição de “mundo”. Por isso, consideramos

oportuno apresentarmos autores que são contrários à semântica de mundos possíveis,

exatamente por causa da definição de “mundo” que possuem. Trata-se de um

movimento neoaristotélico contemporâneo que se entitula como “disposicionalista” ou

“potencialista”. Decidimos denominar aquilo que desenvolveremos como “Modelo

Potencialista” em razão da semelhança das análises tomistas com esse movimento

contemporâneo. Mostraremos que, em De Caelo I, 9, Tomás interpreta que Aristóteles

6 Em especial, há um assunto polêmico ligado às Modalidades Aléticas que não desenvolveremos e nem sequer citaremos nesta tese, mas vale ao menos uma menção em nota, a saber: os silogismos modais de Aristóteles. Para uma melhor compreensão desse assunto, recomendamos o seguinte: MALINK, Marko. Aristotle’s Modal Sillogistic. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts & London, England, 2013. De nossa parte, acreditamos que é possível aplicar a Semântica do Modelo Potencialista para uma formalização dos silogismos modais, mas deixaremos para pesquisas futuras.

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realiza uma demonstração de que há apenas este mundo e não há outros mundos

possíveis, donde vem a nossa conclusão de que ele não considera, em seus argumentos,

a semântica de mundos possíveis. É exatamente por esta razão que defenderemos que a

Semântica de Mundos Possíveis não pode ser usada para descrever as intuições modais

de Tomás de Aquino (e se aceitarmos a interpretação tomista, também de Aristóteles),

dado que ela é incompatível com os pressupostos do seu sistema filosófico.

Enfim, buscaremos contribuir, da melhor maneira possível, com a apresentação

de uma nova maneira de fazer semântica para as modalidades aléticas: o Modelo

Potencialista. Contudo, antes, precisaremos entender as motivações que surgirão a

partir das seguintes noções preliminares.

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Capítulo 1: Noções Preliminares

Para a correta compreensão do desenvolvimento desta tese, é exigido antes uma

definição clara de qual é o objeto de estudo que iremos desenvolver, de modo que nos

dedicaremos inicialmente a esclarecer esse ponto. Além disso, antes de adentrarmos

nas investigações dos textos de Tomás de Aquino, também é importante que

primeiramente contextualizemos como está o andamento da questão até o presente

momento, em termos contemporâneos.

Nesse sentido, dedicaremos um tópico desse capítulo para apresentar

rapidamente as discussões a respeito do uso de Aristóteles das modalidades aléticas. O

uso da Semântica de Mundos Possíveis por parte de muitos comentadores os induziram

a concluírem que Aristóteles comete muitos erros lógicos graves que poderiam

contaminar todo o sistema do pensamento dele. Por extensão, tais erros de Aristóteles

também seriam atribuíveis a Tomás de Aquino, na medida em que este último segue o

primeiro. Assim, o Modelo Estatístico de Hintikka foi a primeira resposta contra todas

essas atribuições de erro, mas será necessário construirmos a versão alternativa desse

Modelo Estatístico com base principalmente no pensamento de Tomás de Aquino.

Contudo, mesmo o Modelo Estatístico Alternativo ainda não será suficiente, de

modo que foi necessário pesquisar outra semântica, que não seja nem baseada em

mundos possíveis e nem na linha temporal. Encontramos esboços não terminados dessa

outra semântica junto com o movimento disposicionalista e potencialista de nossa era

contemporânea. De fato, ao longo do século XX, surgiram muitos pensadores

neoaristotélicos criticando a semântica de mundos possíveis e propondo uma maneira

de entender as modalidades baseada nas disposições e potências dos indivíduos. Ainda

que não tenhamos encontrado nenhuma semântica bem estabelecida, esse movimento

contemporâneo nos inspirará a fazer uma investigação para reconstruir uma semântica

baseada nas noções tomistas de “potência” e “ato”. Chamaremos tal semântica de

“Modelo Potencialista” em virtude desses movimentos.

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1.1 O que é “Modalidade Alética”?

Apesar de contarmos com uma noção intuitiva das “modalidades aléticas”, não é

tão fácil explicá-las. Por isso, nada melhor do que tentar compreendê-las com aquele

que primeiro fixou as definições das modalidades aléticas, a saber, Aristóteles7. Para

complementar, nós nos basearemos nos comentários de Tomás de Aquino.

Devido à nossa inteligência, uma das nossas principais características é a

capacidade de comunicação. Mesmo assim, não são poucas as vezes em que não

conseguimos nos expressar bem através da nossa linguagem, e isso é ainda mais

problemático para aqueles que buscam ter conhecimento exato e verdadeiro, como é o

caso dos filósofos e cientistas. É evidente que a linguagem falada e escrita foi

convencionada por nós, mas ela não se limita a uma mera convenção quando

pretendemos descrever ocorrências no mundo. Assim, na obra De Interpretatione,

Aristóteles pretendeu apresentar, dentre as sentenças, aquelas que usamos para

descrever o mundo. Eis como Tomás comenta tal fato:

A sentença (oratio) e suas partes não são coisas naturais, mas certos efeitos artificiais. Essa é a razão pela qual Aristóteles acrescenta aqui que a sentença significa por convenção, ou seja, de acordo com a instituição da vontade e razão humanas. Ora, todo instrumento é definido pelo seu fim, que é o uso do instrumento. O uso da sentença, como de todo som vocal significativo, é significar uma concepção do intelecto e, como acima foi dito, existem duas operações do intelecto. Em uma delas a verdade ou a falsidade é encontrada, mas na outra não é encontrada. E, assim, ele define a sentença enunciativa pela significação do verdadeiro e do falso.8

Propriamente, as enunciações (ou sentenças enunciativas) descrevem algo do

mundo, principalmente na forma de um juízo, como “S é P” (“Sujeito é Predicado”) ou

7 Para mais informações sobre a vida e as obras de Aristóteles, veja: MESQUITA, Antônio Pedro. Introdução Geral. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2005. 8AQUINO, Tomás de. Expos. Peryerme I, l. 6, n. 8: “Unde oratio et partes eius non sunt res naturales, sed quidam artificiales effectus. Et ideo subdit quod oratio significat ad placitum, idest secundum institutionem humanae rationis et voluntatis. Omne autem instrumentum oportet definiri ex suo fine, qui est usus instrumenti: usus autem orationis, sicut et omnis vocis significativae est significare conceptionem intellectus, ut supra dictum est: duae autem sunt operationes intellectus, in quarum una non invenitur veritas et falsitas, in alia autem invenitur verum vel falsum. Et ideo orationem enunciativam definit ex significatione veri et falsi.”

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“S não é P”, que é a segunda operação do intelecto. De fato, a primeira operação do

intelecto assimila cognitivamente o correspondente a um termo, como “Céu”, por

exemplo, e se perguntarmos se esse termo sozinho e isolado é verdadeiro ou falso,

ninguém conseguiria dar qualquer resposta, pois o intelecto não encontra nem verdade

e nem falsidade com o termo sozinho. Por outro lado, uma vez já assimilado o

correspondente aos termos, nós somos capazes de encontrar verdade ou falsidade

quando unimos o termo-sujeito ao termo-predicado com o verbo “é”, como em “Céu é

azul”, ou quando separamos com “não é”, como em “Cachorro não é um animal”.

Realmente, sobre “Céu é azul”, todos diriam que é verdadeiro (quando for o caso), e

sobre “Cachorro não é um animal”, que é falso. Dado isto, somente podemos ter

verdade ou falsidade na segunda operação que afirma ou nega declarando a respeito de

algo, usando “é” ou “não é”. Com efeito, Aristóteles descreve a verdade e a falsidade da

seguinte maneira:

O ser verdadeiro e falso das coisas consiste na sua união ou na sua separação, de modo que estará na verdade quem considera separadas as coisas que efetivamente são separadas e unidas; ao contrário, estará no erro quem considera as coisas contrárias a como efetivamente são.9

A verdade da sentença declarativa ocorre quando há uma correspondência entre

a união (ou separação) expressa na sentença e a união (ou separação) das coisas

efetivamente, na realidade fora da mente. A falsidade (ou erro) da proposição ocorre

quando não há correspondência. Uma vez que sabemos como ocorre a verdade ou

falsidade de sentenças declarativas, agora podemos falar propriamente sobre as

modalidades. No texto abaixo, as modalidades aléticas são descritas por Aristóteles com

a característica de determinar ou especificar mais a respeito do verbo “ser” (“é”) que,

como vimos, liga o Sujeito ao Predicado na forma do juízo “S é P”:

A negação de [1] “possível de ser” é “não possível de ser”. Lidamos de maneira idêntica com a proposição [2] “É contingente que seja”, seu verdadeiro contraditório sendo “Não é contingente que seja”. O mesmo com as proposições semelhantes: [3] “É necessário”, [4] “É impossível”. Pois, enquanto, nos exemplos anteriores, “é” e “não é” são acrescentados ao sujeito (que são coisas reais, como “branco” e

9 ARISTÓTELES. Metafísica IX, 1051b3-5.

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“homem”), aqui o ser atua como sujeito, ao passo que “é possível” e “é contingente” são acrescentados. Desse modo, o “possível” e o “não possível” determinam no que tange ao que é assim como, nos casos anteriores, “é” e “não é” determinam que uma coisa é verdadeira ou não.10

Assim, as modalidades aléticas são, como o próprio nome diz, modos diferentes

que determinam um pouco mais a respeito do que “é”. Em outras palavras, determinam

o grau de veracidade que temos a respeito do ser daquilo que é afirmado. A palavra

“alética” vem do grego “ἀλήθεια”, que significa “verdade”, (ou também

“descobrimento”, ao se analisar mais detidamente a palavra, onde “ἀ” é um prefixo de

negação e “λήθη” indica o estado de algo esquecido, escondido ou encoberto, um

“encobrimento”). Nesse sentido, temos distintos modos de descrever os níveis de

verdade ou níveis de descobrimento a respeito das coisas. Existem quatro modos de se

especificar em termos aléticos uma proposição ou sentença declarativa, como podemos

retirar da citação acima, sempre colocando algo na frente de um juízo, como se segue:

[1] “É possível que S é P”, [2] “É contingente que S é P”, [3] “É necessário que S é P” e [4]

“É impossível que S é P”. Os termos “necessidade”, “possibilidade”, “impossibilidade” e

“contingência” podem ser usados com diferentes significados, como o próprio

Aristóteles descreve na Metafísica11, de modo que Aristóteles realiza uma análise, por

assim dizer, confusa, mas Tomás de Aquino ajuda a esclarecer:

“É sobre o sujeito [de uma sentença] que as coisas são adicionadas, as quais se aplica "ser" ou "não ser", como a "Branco" em "Branco é", ou a "Homem" em "Homem é". Isso acontece nas modalidades do mesmo modo, como se segue: "ser" é como se fosse um sujeito, ou seja, é dito que aquilo que significa "ser" ou "não ser" toma o lugar do sujeito, enquanto “possível” e “contingente” (isto é, as modalidades) são os predicados. (...) Ora, é assim que Aristóteles os trata como determinantes, a saber: essas modalidades por si afetam a verdade do mesmo modo como "ser" e "não ser" determinam aqueles (sujeitos).”12

10 ARISTÓTELES. Da Interpretação XII, 21b24-32. Traduzimos diferentemente da edição de Edson Bini. 11 ARISTÓTELES. Metafísica V, 1015a20-b9. 1019a15-b35 12 AQUINO, Tomás de. Expos. Peryerme II, l. 9, n. 2: “subiective vero appositionibus res sunt, quibus esse vel non esse apponitur, ut album, cum dicitur, album est, vel homo, cum dicitur, homo est; eodem modo hoc in loco in modalibus accidit: esse quidem subiectum fit, idest dictum significans esse vel non esse subiecti locum tenet; contingere vero et posse oppositiones, idest modi, praedicationes sunt. (...) Hoc est enim quod subdit, determinantes, scilicet, fiunt ipsi modi veritatem, quemadmodum in illis esse et non esse, eam determinat.”

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De fato, Aristóteles entende que essas quatro modalidades determinam e

especificam diretamente o verbo “ser” (“é”) contido num juízo. Para enfatizar isso,

temos o artifício usado por Aristóteles de considerar o verbo “ser” como se fosse um

sujeito e essas modalidades como se fossem predicados. Na forma de juízo, o proposto

ficaria assim: [1] “O ser do juízo é possível”, [2] “O ser do juízo é contingente”, [3] “O ser

do juízo é necessário”, [4] “O ser do juízo é impossível”. Portanto, Aristóteles faz uma

analogia dizendo que, assim como o predicado determina o sujeito, as modalidades

aléticas determinam o modo como esse verbo “ser” liga o predicado ao sujeito. Na

passagem abaixo, da Metafísica, Aristóteles relaciona explicitamente a união e

separação dos juízos com os níveis modais, diferenciando-os melhor:

Ora, se algumas coisas [necessárias] são sempre unidas e é impossível separá-las, outras [impossíveis] são sempre separadas e é impossível uni-las. Outras ainda [possíveis ou contingentes] podem se encontrar nos dois modos opostos, e se o ser consiste em ser unido e em ser um, enquanto o não-ser consiste em não ser unido e em ser uma multiplicidade, então, a respeito das coisas [possíveis ou contingentes] que podem ser dos dois modos opostos, a mesma opinião e o mesmo raciocínio podem se tornar verdadeiros e falsos, e pode ocorrer que às vezes se afirme o verdadeiro e às vezes o falso. Ao contrário, a respeito das coisas [necessárias e impossíveis] que nunca podem ser diferentes do que são, a mesma opinião e o mesmo raciocínio não podem se tornar ora verdadeiros, ora falsos, mas são sempre verdadeiros ou sempre falsos.13

Para vermos a importância do uso dessas modalidades aléticas, precisamos

enfatizar como elas determinam o grau de verdade ou falsidade de uma sentença. Ao

usarmos tais expressões modais aléticas, dizemos que estamos modalizando tais

sentenças. Por exemplo, tome-se a frase não modalizada “O céu é azul” para vermos

como a ausência da modalização interfere na verdade da sentença. Para saber se essa

frase é verdadeira ou falsa tenho que saber quando ela foi proferida e que o clima não

está nublado. Desse modo, ao dizer a sentença “O céu é azul”, precisamos, para saber

seu valor de verdade, verificar cada situação em que foi proferida, o que daria muito

trabalho, e nem assim podemos concluir de modo definitivo aquilo acerca dessa frase,

13 ARISTÓTELES. Metafísica IX, 1051b10-16.

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assim colocada. Contudo, quando uso a frase modalizando-a, “É possível que o céu seja

azul”, basta uma análise lógica envolvendo o princípio de não contradição, ou

simplesmente eu ter visto uma única vez isso acontecer, pois só acontece o que é

possível, para que se determine a sua verdade. Neste sentido, é visível como, de fato, o

uso da modalidade alética nas sentenças especifica e determina mais com clareza o

grau de verdade dessas sentenças, facilitando as análises dos estudiosos.

Prosseguindo nas análises, para cada um desses quatro modos, podemos

considerá-los como advérbios. De fato, o que Aristóteles e Tomás parecem sugerir

nestes textos é que as modalidades aléticas sempre modificam a intensidade a respeito

do verbo da sentença. Não importa em que posição esse advérbio apareça na frase, se

no início, no meio ou no fim, ele sempre modifica o verbo. Por exemplo: [1] “O céu

possivelmente é azul”, [2] “A camisa é contingentemente branca”, [3] “Um cachorro é

animal necessariamente”, [4] “Impossivelmente a subida é para baixo”. E não podemos

esquecer que aquilo que vale para o verbo “ser” também vale para os outros verbos,

como em “É contingente que Sócrates corre”, bem como para a negativa dos verbos, em

“É necessário que dois corpos não ocupem o mesmo lugar ao mesmo tempo”.

Contudo, como veremos ao longo da tese, Tomás também usa essas

modalidades aléticas como adjetivos, de modo que elas serão usadas como Predicado

(ou Predicativo) para qualificar o grau ontológico ou metafísico da existência de um

Sujeito. Se algo não pode não existir, o qualificamos como “necessário”, como na

sentença “Deus é necessário”. Se existe, mas poderia não existir, então o qualificamos

como “contingente”, como quando dizemos “Eu sou contingente”. Se não existe, mas

pode existir, nós dizemos que é “possível”, como em “Uma montanha de ouro é

possível”. Se não pode existir, será “impossível”, como em “Um círculo quadrado é

impossível”. A obra “De Propositionibus Modalibus”, por vezes atribuída a Tomás de

Aquino, embora seja de autoria dúbia, ajuda a esclarecer essa questão:

Uma vez que se diz que uma proposição (propositio) é modal por causa de um modo, para entender o que pode ser uma proposição modal, é necessário saber primeiro o que um modo pode ser. Um modo é um atributo determinante de uma coisa, que de fato é feito pela adição de uma palavra adjetiva, que determina um substantivo, como quando se

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diz "o homem é branco", ou por um advérbio, que determina um verbo, como em 'um homem corre bem'.14

Uma vez esclarecido o uso das modalidades aléticas como advérbio ou como

adjetivo, é importante ainda separar o uso de re do uso de dicto dessas modalidades,

como supostamente15 teria afirmado Tomás: “A modalidade é de dicto quando todo o

dito é tratado como sujeito e o modo é tratado como predicado, como em ‘Sócrates

corre é possível’; a modalidade é de re quando o modo é inserido no dito, como em

’Sócrates possivelmente corre’"16.

Para finalizar, cabe enfatizar que, apesar de as modalidades aléticas poderem ser

usadas como adjetivos (no De Propositionibus Modalibus), os textos oficiais de

Aristóteles (em “Da Interpretação”) e de Tomás (em “Expos. Peryerme.”) as apresentam

como advérbios. As modalidades aléticas determinam e especificam diretamente o

verbo “ser” dentro do juízo “S é P”, o que faz com que essas modalidades aléticas

tenham o status de advérbios, considerando que complementam o verbo da sentença.

Nesse sentido, as modalidades aléticas determinam a intensidade em que o sujeito está

unido (ou não) ao predicado através do verbo. Além disso, uma vez que consideraremos

ao longo da tese as modalidades dentro da relação entre sujeito e predicado, elas serão

tratadas como inseridas na sentença, donde se segue que serão consideradas apenas

em termos de re, e não em termos de dicto.

14 PSEUDO-AQUINO, Tomás de. De Propositionibus Modalibus: “Quia propositio modalis a modo dicitur, ad sciendum quid sit propositio modalis oportet prius scire quid sit modus. Est autem modus determinatio adiacens rei, quae quidem fit per adiectionem nominis adiectivi, quod determinat substantivum, ut cum dicitur homo est albus, vel per adverbium, quod determinat verbum, ut homo currit bene.” 15 Usamos uma citação do “De Propositionibus Modalibus”, que já dissemos ser de autoria dúbia, mas Tomás usa em outros locais sem esclarecer bem, como no seguinte texto: AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 14, a. 13. Essa obra “De Propositionibus Modalibus” destoa do resto do corpus thomisticum, de modo que usamos aqui apenas porque ajuda a esclarecer esse assunto em particular, mas não será referência para o resto da tese. 16 PSEUDO-AQUINO, Tomás de. De Propositionibus Modalibus: “Modalis de dicto est, in qua totum dictum subiicitur et modus praedicatur, ut Socrates currere est possibile; modalis de re est, in qua modus interponitur dicto, ut Socratem possibile est currere.”

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1.2 Discussões que Levaram ao Modelo Estatístico

No século XX, muitas foram as críticas aos pensamentos modais de Aristóteles e,

uma vez que Tomás de Aquino é reconhecido como seguidor de Aristóteles, muito dos

erros de Aristóteles acabam sendo atribuídos também a ele. Neste tópico, mostraremos

um pouco dos antescedentes do desenvolvimento desses problemas, bem como do

Modelo Estatístico, que entra em cena como uma possível solução para as supostas

inconsistências. Este modelo, contudo, precisará ser revisado e, mesmo com a revisão,

veremos que ainda não será suficiente para representar todas as intuições modais

presentes nesses autores clássicos.

Aristóteles usou frequentemente as modalidades aléticas como base para seu

sistema filosófico, mas precisamos tomar cuidado com tais usos. Alguns comentadores

atuais17 defenderam que Aristóteles cometeu vários erros grosseiros ao usar as

modalidades aléticas. Por extensão, podemos dizer que as críticas também se aplicam a

Tomás de Aquino. Um dos principais erros supostamente acontece quando Aristóteles

define a “necessidade” como aquilo que acontece “sempre”, “eternamente” ou “por um

tempo infinito”. Uma vez que estamos falando de uma definição, não se trata de um

erro localizado somente num texto específico, mas sim de um erro que contamina todo

o sistema de Aristóteles. Afinal de contas, sempre que Aristóteles (e Tomás, por

extensão) se utilizar da noção da “necessidade”, esta noção estará sendo aplicada

incorretamente. Veja o exemplo:

Um homem tem ao mesmo tempo simultaneamente a capacidade de sentar e levantar, porque quando ele tem uma, ele tem a outra, mas não de tal modo que ele possa levantar ao mesmo tempo em que sentar, mas apenas em tempos diferentes. Entretanto, se uma coisa tem mais do que uma capacidade por um tempo infinito, não há nenhum outro tempo de realização e os tempos devem coincidir. Assim, se uma coisa que existe por um tempo infinito é destrutível, ela terá a capacidade de não ser. Ora, se ela existe por um tempo infinito e

17 Os exemplos citados por Knuuttila são Dancy (1981, p. 80), Judson (1983, p. 228-231) e Williams (1965, p. 98-99).

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deixa essa capacidade ser atualizada, ela será em atualidade existente e não existente de uma só vez.18

Neste texto, há uma redução ao absurdo. Dado que uma capacidade somente

pode se realizar em ato numa mesma linha temporal, se ela se realiza por um tempo

infinito, não haverá nenhum tempo em que não se realize. Desse modo, não pode

ocorrer contradição numa mesma linha temporal, onde um dos contraditórios (o [b] no

exemplo a seguir) se realiza por todo o tempo, desde sempre e para sempre. Assim, se

assumirmos [a] uma possibilidade de não ser e [b] algo que realiza a possibilidade de ser

por um tempo infinito, segue-se que a coisa eterna terá a possibilidade de ser e não ser

ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto. Portanto, o que é necessário e sempre é

não tem possibilidade de não ser no seu tempo infinito.

Ao analisar esse texto da obra “Do Céu”, Williams19 compreendeu que Aristóteles

cometeu um erro em sua definição de necessidade porque confundiu o sentido

composto (sensus compositus) e o sentido dividido (sensus divisus) da possibilidade.

Podemos formalizar tais sentidos da seguinte maneira:

Sensus Divisus: ◇¬P ∧ ∀tPt = É possível que não P e Para todo tempo (t) tal que em t

ocorre P.

Sensus Compositus: ◇(¬P ∧ ∀tPt) = É possível a conjunção de não P com Para todo

tempo (t) tal que em t ocorre P.

Assim, no argumento de Aristóteles, é essencial que haja uma contradição para

que a conclusão pretendida por ele se siga das premissas. No entanto, o texto do “Do

Céu” expõe o sensus divisus, pretendendo que haja contradição, mas não há

contradição no sensus divisus. Dado que atualmente trabalhamos com a teoria dos

mundos possíveis, a expressão “∀tPt” (“Para todo tempo (t) ...”) se refere a apenas um

dos mundos possíveis, a saber, ao mundo atual. Por outro lado, a expressão “◇¬P” (“É

possível que não P”) se refere a outro mundo possível. Desse modo, uma vez que se

18 ARISTÓTELES. Do Céu. XII, 281a15-23. 19 Jaakko Hintikka faz uma excelente análise dessa compreensão de Williams em: HINTIKKA, Jaakko. Time and Necessity, p. 210-212.

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trata de mundos possíveis diferentes, não há nenhuma contradição na formalização do

sensus divisus. Se considerarmos somente assim, Aristóteles teria cometido um erro.

Para tentar entender o que levou Aristóteles a esse erro na argumentação,

Williams sugeriu que ele confundiu o sensus divisus com o sensus compositus, pois este

último, de fato, gera uma contradição. Uma vez que, na formalização do sensus

compositus, tudo aquilo que está dentro dos parênteses está em função da

possibilidade “◇”, dizemos que o que está dentro dos parênteses ocorre em um

mesmo mundo possível. Assim, se for num mesmo mundo, “P em todo tempo” é

contraditório com “Não P”. Dessa maneira, Williams sugere que Aristóteles cometeu um

erro em seu raciocínio por ter confundido esses dois sentidos. O problema é que

Aristóteles define constantemente a necessidade dessa maneira (se referindo à

eternidade), o que poderia indicar uma contaminação para o sistema inteiro dele.

Na verdade, como veremos mais adiante, para Aristóteles, a expressão formal

acima “◇¬P ∧ ∀tPt” pode ser tratada como equivalente à expressão “◇¬P ∧ □P” (lê-se:

“Possível não P e Necessário P”), onde de fato há uma contradição, mesmo em termos

atuais20 e no sensus divisus mesmo. Assim, em Aristóteles, “∀tPt” implica “□P”. Simo

Knuuttila, seguindo os passos de Jaakko Hintikka, afirma que as conclusões daqueles

comentadores partem de premissas equivocadas, uma vez que os autores não

compreenderam que o modelo de modalidade alética de Aristóteles é diferente dos

padrões que usamos hoje em dia.

Nem ele [Aristóteles] e nem os seus seguidores, entretanto, desenvolveram a concepção de alternativas sincrônicas. Eles pensavam que o que é necessariamente é, quando é, e o resto de possibilidades alternativas desaparecem no momento em que uma delas é realizada. A teoria Peripatética de possibilidades prospectivas alternativas pode ser chamada de modelo de modalidades diacrônicas sem alternativas sincrônicas.21

20 Atualmente, diríamos que há contradição, mas por motivos diferentes daqueles de Aristóteles, como veremos. Hoje, o “Necessário P” indica que “P ocorre em todos os mundos possíveis”, o que é contraditório com “Possível não P”, que indica que “Não P ocorre em algum dos mundos possíveis”. Assim, “P ocorrer em todos” é contraditório com “Não P ocorre em algum”. Aristóteles, entretanto, não descreve as modalidades em termos de “mundos possíveis”. 21 KNUUTTILA, Simo. Modality in Medieval Philosophy, p. 38.

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Na cosmologia aristotélica, há um único mundo22 (ou universo) e não é possível23

haver outros, de modo que temos o seguinte esquema sobre as modalidades aléticas:

estas somente poderão ser aplicadas em coisas no nosso mundo atual e real, sem que se

admitam mundos alternativos possíveis, numa única e mesma linha do tempo e sem que

se possa admitir aquelas possibilidades contrafactuais ou aquelas que nunca se

realizam. Essas características definem o que seria um modelo diacrônico sem

alternativas sincrônicas de modalidades aléticas.

Esse modelo não consegue imaginar possibilidades alternativas que sejam

contracfatuais, isto é, contra os fatos do mundo atual, pois, como diz Aristóteles: “Aquilo

que é deve ser necessariamente quando é; aquilo que não é não pode ser quando não

é”.24 Trata-se da necessidade dos fatos, contra os quais não há argumentos, mas que

também impede possibilidades alternativas em termos modais. Desse modo, como o

próprio nome diz, o modelo diacrônico envolve uma análise das modalidades aléticas ao

longo do tempo, ou melhor, ao longo de uma única linha de tempo. Diferentemente

desse modelo, temos o chamado modelo sincrônico, que é exatamente aquele presente

nos moldes atuais, onde teríamos uma descrição da modalidade alética em termos de

mundos possíveis além do mundo atual. Neste ponto, vale destacar que, de imediato,

como concordaria Stolarski25, o pensamento criacionista medieval favorece o

surgimento da teoria dos mundos possíveis, não somente por defender que o mundo

teve origem, mas também pela concepção de um Deus que concebe no interior do seu

Intelecto Supremo as possibilidades alternativas de mundos. Com a possibilidade de se

supor outros mundos possíveis, podemos imaginar situações alternativas que sejam

contra os fatos do mundo atual. Entretanto, Aristóteles não tinha esse pensamento

criacionista, de modo que os comentadores que criticam Aristóteles estariam

cometendo um grave anacronismo ao analisar Aristóteles com base no sistema

contemporâneo de alternativas sincrônicas, quando ele usaria um modelo de

modalidades diacrônicas sem alternativas sincrônicas.

22 ARISTÓTELES. Do Céu I, 8, 276a18ss. 23 ARISTÓTELES. Do Céu I, 9, 277b28ss. 24 ARISTÓTELES. Da Interpretação IX, 19a23. 25 STOLARSKI, G. La Possibilité et L’être: un Essai sur la Detérmination du Fondement Ontologique de la Possibilite dans la Pensée de Thomas d’Aquin. p. 4 e 13.

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Dado que somente temos o mundo atual para trabalhar, Knuuttila afirma que,

“como a semântica modal de Aristóteles não contém a ideia de possibilidades

alternativas sincrônicas, as possibilidades são assumidas como realizadas na história do

mundo atual”.26 Se não tinha linhas temporais alternativas, restou para Aristóteles

trabalhar com a única linha temporal que havia. Dessa maneira, ao relacionar as

modalidades aléticas com as modalidades temporais (“sempre”, “nunca”, “às vezes”,

“eventual”, “eterno”), o que Aristóteles fez foi descrever a modalidade alética com base

numa quantificação a respeito do tempo. Assim, para Hintikka27, as modalidades aléticas

aristotélicas seguem a seguinte semântica: O “necessário” ocorrendo “sempre”, isto é,

significa “em todo tempo”; o “impossível” ocorrendo “nunca”, isto é, ”em nenhum

tempo”; o “possível” ocorrendo “às vezes” significa “em algum tempo”; e, por fim o

“contingente” sendo “passageiro”, que significa “não em algum tempo”. Dado que,

atualmente, a área da “Estatística” é exatamente a ciência que estuda ou analisa a

frequência de algo ao longo de um tempo, é plausível chamar essa semântica de

“modelo estatístico” ou “modelo de frequência temporal”.

Contudo, para fazer isso funcionar, Hintikka e Knuuttila tiveram que supor que

Aristóteles defende o chamado “Princípio da Plenitude”, que reza o seguinte: Toda

possibilidade genuína se realiza em algum momento. De fato, Hintikka determina “o

papel do Princípio da Plenitude como uma ponte entre tempo e modalidade”28. O grande

problema é que, ao supor isso, eles acabaram chegando à conclusão de que “parece que

terminamos no determinismo”29, isto é, Aristóteles possui um sistema determinista sem

saber. Por outro lado, Arthur Lovejoy, quem primeiro identificou esse princípio em seu

livro “The Great Chain of Being”30, considerou que Aristóteles não defendia esse

princípio, mas Tomás de Aquino sim. Isso implicaria que Tomás é que seria o

determinista, mas isso também é um absurdo. Consideramos errôneo e até desonesto

esse ponto acerca do determinismo (no sentido de fatalismo) porque parte do sistema

ético, político (e religioso, por parte de Tomás) iria simplesmente ruir com uma

26 KNUUTTILA, Simo. Modality in Medieval Philosophy, p. 10. 27 HINTIKKA, Jaakko. Time and Necessity. p. 96. 28 HINTIKKA, Jaakko. Time and Necessity. p. 102. 29 HINTIKKA, Jaakko. Aristotle on Modality and Determinism, p. 33. 30 LOVEJOY, Arthur. The Great Chain of Being: A Study of the History of an idea. Cambridge, MA: Harvard University, 1936.

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conclusão desse tipo. É bem conhecido que Aristóteles e Tomás são defensores da

liberdade a partir do intelecto, tendo um pensamento indeterminista sobre o mundo,

pelo menos, no que diz respeito à ação vinda do intelecto. Em suma, Tomás e

Aristóteles não podem ter defendido esse Princípio da Plenitude desse modo.

De fato, Giovanni Reale comenta que, para Aristóteles, a possibilidade tem duas

necessidades de realização: aquela que é de fato e aquela que é de direito: (1047b14-

30) “O possível implica necessariamente a sua realização de direito, ainda que não de

fato”.31 Seguindo essa interpretação, os possíveis não precisam necessariamente

ocorrer de fato, o que vai contra o Princípio da Plenitude. Marco Zingano também

demonstra concordar que Aristóteles não aceitou o Princípio da Plenitude, de modo que

teríamos, no máximo, um “Princípio de Provisoriedade”: “toda possibilidade se realiza

em um tempo determinado, aquém e além do qual a pergunta por sua efetivação está

em aberto”32. No que diz respeito a Tomás de Aquino, podemos citar Santiago

Argüello33, que desenvolveu uma pesquisa específica e muito detalhada sobre a

possibilidade no sistema tomista, onde declarou claramente que Tomás é contrário ao

Princípio de Plenitude. Além disso, ainda acerca do tomismo, Lawrence Dewan

claramente defende que há possíveis que nunca serão, como, por exemplo, podemos

ver: “Com respeito àqueles possíveis absolutos que nunca serão, Deus tem simples

inteligência, não conhecimento no modo de visão (o que implica na existência atual do

seu objeto)”34. Desse modo, de imediato, nós nos apoiaremos nesses autores no sentido

de defender que Aristóteles e Tomás de Aquino foram contrários ao Princípio da

Plenitude neste sentido que Hintikka e Knuuttila propõem.

Contudo, neste ponto das pesquisas, encontramos um dilema: de um lado, de

fato, Aristóteles usa do tempo (nem que seja como apoio) para descrever as

modalidades aléticas, e isso já estava comprovado textualmente; por outro lado, o

Princípio da Plenitude, que é a base do Modelo Estatístico, não é atribuível para esses

filósofos clássicos. Desse modo, buscamos encontrar qual seria o ponto-chave que fez

com que Hintikka e Knuuttila se desviassem do pensamento original de Aristóteles e a

31 REALE, Giovanni. Metafísica, Vol. III, p. 465-466. 32 ZINGANO, M. De Caello I 12 e o Princípio de Plenitude, p. 453. 33 ARGÜELLO, Santiago. Posibilidad y Principio de Plenitud em Tomás de Aquino, p. 278. 34 DEWAN, L. St. Thomas and the Possibles. New Scholaticism. p. 79.

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nossa conclusão foi que: o Princípio de Plenitude induz esses autores a descreverem a

relação entre as modalidades aléticas e as temporais em termos de equivalências

plenas, como eles mesmos formalizam35, a saber: “Lp↔(t)(pt)”36 para o necessário e

“Mp↔(Et)(pt)”37 para o possível:

- Possibilidade - ◇A ↔ ∃tAt: É possível que A é equivalente a Existe algum tempo (t) tal

que em t ocorre A.

- Impossibilidade - ¬◇A ↔ ¬∃tAt: É impossível que A é equivalente a não existe algum

tempo (t) tal que em t ocorre A.

- Necessidade - □A ↔ ∀tAt: É necessário que A é equivalente a em todo tempo (t) tal que em t ocorre A.

- Contingência38 – ∆A ↔ (¬∀tAt ∧ ¬¬∃tAt): É contingente que A é equivalente à

conjunção de não é o caso que em todo tempo (t) tal que em t ocorre A com não é o

caso que não existe um tempo (t) tal que em t ocorre A.

Para sermos honestos, Hintikka e Knuuttila não pretendem afirmar tão

categórica e apoditicamente que a interpretação da modalidade alética aristotélica é

unicamente descrita em termos temporais. De fato, Knuuttila afirma, “como Hintikka,

que o modelo estatístico pode ser usado como uma ferramenta interpretativa na

descrição de alguns dos hábitos de pensar que determinaram o uso de Aristóteles dos

termos modais”39. Assim, esses autores tiveram conhecimento de que haveria

pensamentos modais de Aristóteles que escapam à descrição em termos de Modelo

Estatístico. Ora, se essa teoria não expressa toda a intuição de Aristóteles, por que

Hintikka e Knuuttila defendem uma equivalência plena entre o alético e o temporal na

formalização deles? Quando se tem a equivalência plena, toma-se o alético e o temporal

como intercambiáveis (porque um pode ser aleatoriamente substituído pelo outro) e

interdefiníveis (porque um pode ser definido em termos do outro). Isso provoca a

35 KNUUTTILA, Simo. Modalities in Medieval Philosophy, p. 8. 36 Nessa notação, “Lp” indica “É necessário que p” e “(t)” é uma das maneiras de representar “∀(t)”, isto é, “Para todo t”. Assim, lemos: “É necessário p é equivalente a para todo t tal que em t ocorre p”. 37 Nessa notação, “Mp” indica “É possível que p” e “(Et)” é uma das maneiras de representar “∃(t)”, isto é, “Existe um t”. Assim, lemos: “É possível p é equivalente a existe um t tal que em t ocorre p”. 38 HINTIKKA, Jaakko. Time and Necessity. No texto da nota de rodapé de número 25, Hintikka define o “contingente” como “nem necessário e nem impossível”. 39 KNUUTTILA, Simo. Modality in Medieval Philosophy, p. 7.

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conclusão indesejada por eles mesmos de reduzir completamente as modalidades

aléticas às modalidades temporais.

Assim, o Modelo Estatístico de Hintikka, de modo nenhum, pode representar as

modalidades aléticas segundo o sistema aristotélico-tomista. Teríamos que, no mínimo,

rever seus princípios e, talvez, fazer uma versão mais fraca do Modelo Estatístico.

Definitivamente, modalidade alética não é equivalente à modalidade temporal. Apesar

de Aristóteles não ser muito explícito nos seus textos neste ponto, Tomás de Aquino é

bastante claro sobre não definir as modalidades aléticas usando somente o tempo.

O pensamento de Tomás pode ser resumido na seguinte frase: “De fato, em

primeiro lugar, a distinção [das modalidades aléticas] é a posteriori: ora, não é o caso

que algo é necessário porque sempre será, mas é posto que sempre será porque é

necessário: e o mesmo é patente para as outras [modalidades aléticas].”40 Esse

“porque” (quia) sucita noções de fundamentação, onde interpretaríamos da seguinte

maneira: “o temporal é fundado no alético, mas não vice-versa”. Contudo, para nossos

propósitos, daremos mais ênfase no ser, pois buscamos a definição e a semântica das

modalidades aléticas. Numa definição, como em “Homem é animal racional”, o que

importa é a extensão do sujeito e do predicado: aquilo que é homem também será

animal racional. Nesse sentido, interpretamos em termos extensionais, onde o “porque”

da frase acima está sendo entendido como “na medida em que também”. Assim,

entendemos a frase de acima de Tomás da seguinte maneira: “não é o caso que algo é

necessário na medida em que também sempre será, mas é posto que sempre será na

medida em que também é necessário”.

Quando determinamos uma relação deste tipo, nós podemos formalizar tal

relação com o uso da implicação. De fato, com o auxílio da implicação, podemos

representar a extensão dos campos semânticos. Aquilo que “sempre será” é

“necessário” (supondo que não há outros mundos possíveis), onde temos que Se sempre

será, então é necessário. Contudo, semanticamente, o “necessário” envolve mais do

que aquilo que “sempre será”, pois “sempre será” indica apenas “perpetuidade no

40 AQUINO, Tomás de. Expos. Peryerme.. I, L. 14, n. 8 “Nam prima distinctio est a posteriori: non enim ideo aliquid est necessarium, quia semper erit; sed potius ideo semper erit, quia est necessarium: et idem patet in aliis."

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tempo”, enquanto o “necessário” também pode envolver o “não temporal”. Temos que

a semântica das modalidades temporais está contida na semântica das modalidades

aléticas, mas elas não são coextensivas, como vemos pelo seguinte diagrama:

Vale ressaltar que, nas análises que estamos fazendo, assumo que Tomás

desconsidera outras linhas temporais além dessa linha temporal do mundo atual, ou

seja, desconsidera outros mundos possíveis. Com isso em mente, Tomás aceita que há

alguma relação entre o alético e o temporal, mas deixa claro que há apenas uma

implicação e não uma equivalência entre eles: sempre que afirmamos temporalmente

de algo, então também afirmamos aleticamente desse algo, mas nem sempre ocorre o

contrário. Em suma, as modalidades aléticas estão para além do que é temporal, de

modo que, olhando para o diagrama acima, é visível que se é temporal, então é alético,

mas nem sempre ocorre o contrário, se é alético, então é temporal, pois vemos que o

campo semântico do alético envolve mais elementos que não estão contidos no

temporal. O interessante nesse ponto é que temos as bases necessárias para supormos

um Modelo Estatístico Alternativo, usando implicações:

Possibilidade – ∃tAt → ◇A: Se existe algum tempo (t) tal que em t ocorre A, então é possível que A.

Impossibilidade – ¬∃tAt → ¬◇A: Se não existe algum tempo (t) tal que em t ocorre A,

então é impossível que A.

Necessidade – ∀tAt → □A: Se em todo tempo (t) tal que em t ocorre A, então é

necessário que A.

Contingência – (¬∀tAt ∧ ¬¬∃tAt) → ∆A: Se temos a conjunção de não é o caso que em

todo tempo (t) tal que em t ocorre A com não é o caso que não existe um tempo (t) tal

que em t ocorre A, então é contingente que A.

Neste ponto, é concebível uma objeção baseada na lei da contraposição contra

essa nossa formalização. De fato, pela lei da contraposição, teríamos que a expressão da

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impossibilidade “¬∃tAt → ¬◇A” seria equivalente à “◇A → ∃tAt“, de modo que a

impossibilidade poderia ser descrita pelas duas formalizações. Ora, se aceitarmos isso,

temos que “◇A → ∃tAt” para a impossibilidade será nada mais do que a implicação

inversa da possibilidade, que formalizamos exatamente como “∃tAt → ◇A”. Ora, se

temos uma implicação para os dois lados, então nós temos uma dupla implicação. Em

outras palavras, pelo menos a possibilidade e a impossibilidade devem ser descritas em

termos de equivalência, como se segue: teremos “◇A ↔ ∃tAt” (para a possibilidade) e

também teremos “¬◇A ↔ ¬∃tAt” (para a impossibilidade).

Como resposta, devemos lembrar que as modalidades aléticas indicam aspectos

intensionais diferentes e até contraditórios entre si, o que resulta que cada modalidade

alética possui seu próprio campo de aplicação, que não será o mesmo da outra

modalidade. Há o conjunto das sentenças possíveis, que não se mistura com o conjunto

das sentenças impossíveis. Não podemos afirmar de uma mesma coisa que ela seja

possível e impossível ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto, pois isso nos levaria a

infringir o princípio de não-contradição. É necessário que consideremos sentenças

possíveis e sentenças impossíveis num mesmo conjunto de premissas para que, assim,

seja inferida a conclusão de que há uma dupla implicação. Uma vez que não se pode

considerar sentenças possíveis e impossíveis num mesmo conjunto, não se segue mais a

conclusão da equivalência. Assim, na verdade, teríamos uma disjunção exclusiva:

“(◇A → ∃tAt) W (∃tAt → ◇A)” (Ou uma sentença ou outra sentença)

E de modo nenhum seria uma conjunção desse modo abaixo:

“(◇A → ∃tAt) ∧ (∃tAt → ◇A)” (como exige a equivalência)

Com o uso da implicação, consideramos uma versão alternativa mais fraca do

Princípio da Plenitude e, por consequência, enfraquecemos também o Modelo

Estatístico. A versão mais fraca do princípio seria: o possível é suposto como ocorrendo

em algum momento. Colocar o temporal no antecedente da implicação transmite

exatamente a ideia de suposição, presente nessa versão mais fraca do princípio. Apenas

supomos que ocorre em algum tempo quando dizemos “Se ocorre, então é possível”,

isto é, “Supondo-se que ocorre, segue-se que é possível”. O próprio “Se...” na implicação

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já indica suposição. Assim, diferentemente do Modelo Estatístico, o qual é descrito em

termos de equivalências entre o temporal e o alético, o Modelo Estatístico Alternativo e

mais fraco41 é descrito em termos de implicação, com o antecedente temporal e o

consequente alético.

Portanto, temos ao menos que reconhecer que Aristóteles e Tomás de Aquino

usam o tempo, nem que seja como uma “muleta”, para apoiar as descrições de suas

noções modais aléticas, mas isso não é o suficiente para descrever todo o pensamento

desses autores. Essa é a nossa conclusão a respeito do Modelo Estatístico42: trata-se

apenas de um apoio que ajuda a esclarecer as modalidades aléticas e, por isso, a relação

entre o alético e o temporal deve ser tratado apenas em termos de implicação e nunca

de equivalência. Além disso, vemos claramente que há algo a mais a respeito das

modalidades aléticas que não está sendo expresso até aqui. Desse modo, a

interpretação tomista envolvendo um Modelo Potencialista ajudará a entender porque

isso ocorre, mas percebamos antes que já existe um movimento contemporâneo que

segue essas mesmas linhas de pensamento.

1.3 O Disposicionalismo e o Potencialismo Contemporâneos

Antes de entrarmos em detalhes a respeito do pensamento tomista, é

importante que consigamos enquadrá-lo ou classificá-lo melhor para contextualizá-lo

dentro dos debates contemporâneos das modalidades aléticas. No pensamento

contemporâneo, já existem debates sobre a definição de “mundo”, bem como a

consideração das disposições ou potências como propriedades reais das coisas, o que

será de fundamental importância para compreendermos Tomás. Tais discussões serão

desenvolvidas exatamente pelos movimentos neoaristotélicos, disposicionalistas ou

potencialistas, que são conhecidos pelas críticas à semântica dos mundos possíveis, de

41 Uma exposição sobre o Modelo Estatístico em Tomás pode ser encontrado em: FROST, Gloria Ruth. Thomas Aquinas on Necessary Thuths about Contingent Beings, p.12-18 / MONTEIRO, Matheus Henrique Gomes. A Realidade dos Possíveis Segundo Tomás de Aquino. cap. 2, p.15-23. 42 Uma conclusão parecida com a nossa pode ser encontrada em: FROST, Gloria Ruth. Thomas Aquinas on Necessary Thuths about Contingent Beings, p.12-18 / MONTEIRO, Matheus Henrique Gomes. A Realidade dos Possíveis Segundo Tomás de Aquino. cap. 2, p.15-23.

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modo que pretendemos apresentar um panorama geral sobre esses movimentos dos

tempos atuais, relacionando-os com Tomás de Aquino.

Comecemos pela noção de “mundo” e teçamos algumas críticas possíveis. A

palavra “mundo” poderia indicar universos concretos, como queria David Lewis43.

Contudo, bastaria um olhar incrédulo para derrubar tal compreensão, pois não há

evidências empíricas disso. Mesmo que houvesse evidências empíricas, elas apenas

indicam uma contingência, isto é, calhou de ser assim, com alguns universos concretos,

mas ainda seria possível conceber que outros não existissem, caso a demonstração

empírica não se verificasse para esses outros mundos. Posteriormente, mostraremos

que a teoria tomista seria expressamente contrária a esse pensamento de Lewis.

Além disso, mesmo considerando os mundos possíveis como meramente

abstratos, eles ainda podem possuir inconsistências, incluindo cair em circularidade. No

tópico 3.1, defenderei que a argumentação de Aristóteles e Tomás de Aquino atinge

também uma versão mais fraca de “mundos possíveis” em termos abstratos e

puramente lógicos. Pelo princípio de parcimônia, tais noções de “mundo” podem ser

consideradas irrelevantes para descrever as modalidades aléticas, caso encontremos

uma maneira menos comprometedora ontologicamente.

O italiano Gabriele Contessa44 identifica, pelo menos, dois tipos de compreensão

a respeito da realidade do mundo, envolvendo o seu comprometimento ontológico: o

Atualismo Hardcore, que defende que há apenas o mundo atual e nem sequer é

possível haver outros mundos, e o Atualismo Softcore, que afirma apenas a existência

do mundo atual considerando outros mundos como possíveis. Acrescento ainda o

Possibilismo Hardcore, que defende não apenas a existência do mundo atual, mas

também a existência concreta dos outros mundos possíveis.

Um representante do possibilismo hardcore é exatamente um dos defensores

da Semântica de Mundos Possíveis, David Lewis, que já citamos acima, bem como

muitos físicos atuais que defendem a teoria do multiverso. O atualismo softcore pode

43 LEWIS, David. On the Plurality of Worlds. Oxford: Blackwell,1986. 44 CONTESSA, Gabriele. Modal Truthmakers and Two Varieties of Actualism. Synthese 174:341–53.

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ser representado principalmente por Saul Kripke45 e seus seguidores, mas antes dele

também havia Duns Scotus, Leibniz e outros autores. Por fim, se admitir outros mundos

possíveis é algo inconsistente, resta para o atualista hardcore utilizar-se de disposições

ou potências para descrever as modalidades aléticas, donde os disposicionalistas ou

potencialistas se enquadram nesta classe de pensadores, incluindo o próprio Gabriele

Contessa. Diante disso, defendo que Aristóteles e Tomás de Aquino seriam atualistas

hardcore, o que torna incoerente que utilizemos a Semântica de Possíveis para

descrever o pensamento deles.

Neste contexto, os lógicos contemporâneos tenderam a aceitar mais facilmente

a Semântica de Mundos Possíveis em virtude da noção de “superveniência humeana”,

que teria sido fruto de uma análise que David Lewis fez do pensamento de David Hume.

Assim David Lewis a descreve:

Superveniência humeana é nomeada em homenagem ao grande negador das conexões necessárias. É a doutrina de que tudo o que há no mundo é um vasto mosaico de matérias, de fatos locais, apenas umas pequenas coisas e depois outras (mas não é parte da tese que estas matérias de fatos locais são mentais). Nós temos na geometria: um sistema de relações externas de distância espaço-temporais entre pontos. Talvez pontos do próprio espaço-tempo, talvez pedaços de matéria pontuais ou campos de éter, talvez ambos. E, nestes pontos, nós temos qualidades locais: propriedades intrínsecas perfeitamente naturais que não necessitam de nada mais do que um ponto para serem instanciadas. Em resumo: nós temos um arranjo de qualidades. E isso é tudo. Não há nenhuma diferença sem diferença no arranjo de qualidades. Tudo supervém sobre isso.46

A superveniência humeana47 afirma que o mundo seria um arranjo de pontos

com qualidades locais que não precisam de nada além do que aquilo que está

instanciado naquele ponto. Assume-se, assim, a independência de cada ponto do

mundo com suas qualidades, sem haver conexões necessárias entre os pontos, de modo

que o arranjo de todos esses pontos seria o “mundo”. Tal teoria permite que haja

45 KRIPKE, Saul. Naming and Necessity. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 1980. 46 LEWIS, David. On the Plurality of Worlds. Tradução em português do artigo: AGUIAR, Túlio Roberto Xavier. A objetividade das leis da natureza na tradição empirista: de Hume a David Lewis. Analytica, Rio de Janeiro, vol 17 nº 1, 2013, p. 79-96. 47 Um texto base de Hume para fundamentar essa superveniência: HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding. Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 112.

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muitos mundos que seriam diferentes do mundo atual, pois bastaria haver um arranjo

diferente para termos um mundo diferente. Desse modo, um único “mundo humeano”

não proveria qualquer significado para as modalidades aléticas, mas muitos mundos

proveriam, de modo que a superveniência humeana seria a principal responsável por

nos induzir para a Semântica de Mundos Possíveis.

Segundo Maudlin48, há três características da superveniência humeana: [1]

separabilidade, pois o mundo seria um estado total que supervém aos pontos, mas é

separável em vários pontos menores no espaço e tempo; [2] estatismo físico, pois todos

os fatos sobre o mundo seriam determinados pelo estado físico total deste mundo; [3]

condição de não-circularidade, pois o estado intrínseco do mundo pode ser especificado

sem mencionar as leis, chances ou possibilidades, que se obtêm no mundo. O

posicionamento aristotélico-tomista poderia aceitar [1], a separabilidade, pois veremos

no tópico 3.2 que há uma noção de “mundo” que supervêm às espécies e cada espécie

pode ser considerada isoladamente. Contudo, tal posição não se compromete

obrigatoriamente com [2], o estatismo físico, dado que Tomás não considera somente o

estado físico total do mundo nas análises modais, mas também realiza análises usando a

potência de cada espécie. Contudo, exatamente por aceitar a potência de cada espécie,

Tomás de Aquino seria expressamente anti-humeano a respeito de [3], a condição de

não-circularidade.

Vale destacar neste ponto a oposição que David Hume teve em relação ao

pensamento escolástico e essa oposição se daria exatamente nesse aspecto comentado

no parágrafo anterior. A superveniência humeana teria a vantagem, segundo David

Lewis, de evitar argumentos que afirmam coisas além do âmbito da Física, o que é típico

dos escolásticos, que seriam teólogos em sua maioria e seguiriam uma metafísica

tradicional aristotélica. Em outras palavras, assumir que há potências no mundo poderia

conduzir a reflexões teológicas e Hume identificava isso como uma ameaça para a sua

visão de mundo, daí a sua oposição.

48 MAUDLIN, Tim. The Metaphysics within Physics. Oxford: Oxford University Press. 2007.

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Podemos reforçar tal pensamento afirmando que hume não aceita nada que

esteja além das descobertas da Física, mas Barbara Vetter49 nota que acontecerá

exatamente o contrário se aceitarmos a superveniência humeana, pois ela é baseada em

“propriedades quidísticas” ou “qualidades humeanas”, que estão exatamente além do

que tem sido descoberto na Física. Na verdade, a Física científica atual tende muito mais

a aceitar que há propriedades disposicionais/potenciais nos objetos do mundo, contra a

superveniência humeana. É verdade que alguns cientistas defendem o Possibilismo

Hardcore com a Teoria do Multiverso com várias dimensões, mas tais teorias ainda

estão no âmbito da especulação matemática, dado que não há experimentos que

comprovem a existência de outros mundos. Tais argumentos de Barbara Vetter podem

não refutar, mas podem ao menos trazer dúvidas para a aceitação plena da

superveniência humeana, pois não temos nenhuma obrigação de aceitar algo que

definitivamente não é comprovado pelos avanços científicos atuais.

Além disso, num esquema de mundos possíveis, as modalidades metafísicas

possuem um grave problema por não considerar o esquema das propriedades

instanciadas nos objetos. Com a superveniência humeana na semântica dos mundos

possíveis, é admissível que as propriedades flutuem livres de qualquer objeto particular

e possam se combinar com qualquer outro objeto, de modo que, por exemplo, seria

possível juntar a propriedade de “falar” com qualquer ser individual, até com os

macacos, ocasionando a possibilidade de “macacos falantes”. É mágico demais supor

que apenas a combinação aleatória de propriedades já torne algo possível. O

disposicionalismo não cai nessa desvantagem porque ancora as propriedades nos

indivíduos do mundo atual, analisando as disposições em conexão com as partes do

indivíduo que permitam que ele fale, como é o exemplo. Assim, as disposições do

macaco não permitiriam que ele fale. Tal posicionamento é bem mais realisticamente

respeitável sobre o mundo, principalmente porque estamos tendo contato epistêmico

através de uma verificação experimental das disposições.

Considerando este último parágrafo, o disposicionalismo ou potencialismo

apresenta-se como compatível com Aristóteles e Tomás de Aquino, na medida em que 49 VETTER, Barbara. “Potentiality. From Dispositions to Modality”, Great Clarendon Street, Oxford, United Kingdom, 2015.

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supõem um realismo moderado a respeito das propriedades disposicionais ou

potenciais. Essas propriedades seriam instanciadas nos indivíduos, de modo que

somente são reais enquanto são partes dos indivíduos. É bem conhecido que Tomás

defende o realismo moderado diante de uma das disputas típicas dos escolásticos

conhecida como “Querela dos Universais”. Tal posição atualmente é defendida por

Barbara Vetter, Kit Fine50, Stephen Mumford51, Brian Ellis52 e Alexander Bird53. Grosso

modo, para estes autores, o “mundo” teria uma base estruturalista, como o “somatório

de todas as potencialidades”, o que não estaria longe da posição tomista.

Enquanto Tomás concordaria com os teóricos potencialistas contemporâneos de

que existem potências, a maneira como Tomás as concebe não seria compartilhada por

todos esses teóricos. De fato, alguns tendem a descrever as disposições em termos das

Teoria dos Tropos (como é o caso de George Molnar54), o que os afasta de Tomás. Nesse

contexto, Stephen Mumford sugere o seguinte: "Talvez Tomás de Aquino tenha sido o

maior advogado da modalidade disposicional.” (”it is perhaps Aquinas who was the

greatest advocate of dispositional modality.”55). Por outro lado, Ben Page56, contra

Mumford, considera que Tomás não era um disposicionalista, mas sim um defensor da

necessidade condicional. Contudo, quando ambos afirmam esses pensamentos, eles não

estavam num contexto de análise da semântica de modalidades.

Na verdade, a discussão deles é a respeito da causalidade: se a causa é apenas

uma disposição, não sendo necessário se seguir o efeito (Mumford) ou, se assumirmos a

causa sem interrupções externas, necessariamente se segue o efeito (Page). Talvez os

dois estejam certos, pois cada um enfatizou aspectos diferentes da natureza das coisas

na cadeia de causalidade: Mumford parece enfatizar a potência passiva, enquanto Page,

a potência ativa. Na verdade, para ser mais preciso, Mumford admite em outro lugar

que a inspiração para esta interpretação de Tomás como disposicionalista foi retirada de

50 FINE, Kit. ‘Essence and Modality.’ Philosophical Perspectives 8:1–16. 1994. 51 MUMFORD, Stephen. ‘The Power of Power’, 2013. 52 ELLIS, Brian. Scientific Essentialism. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 53 BIRD, Alexander. Nature’s Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 2007. 54 MOLNAR, George. Powers. A Study in Metaphysics. Oxford: Oxford University Press. 2003. 55 MUMFORD, Stephen. ‘The Power of Power’, p. 19. 56 PAGE, Ben. Thomas Aquinas, ‘the Greatest Advocate of Dispositional Modality’, Fact or Fiction?. Studia Neoaristotelica, Vol. 14, No. 2, 167-188, 2017.

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comentários de Peter Geach57 e não diretamente dos textos de Tomás. Mesmo assim,

defendo que Tomás de Aquino sustenta uma teoria da potencialidade a respeito das

modalidades aléticas. É fácil supor que sem dúvida Tomás ficaria satisfeito com o fato de

essa perspectiva estar mais uma vez ganhando proeminência dentro da Metafísica.

Contudo, Tomás de Aquino parece ser mais bem descrito quando se considerar

não “disposições”, mas antes “potencialidades”, por causa da maior abstração que esta

palavra indica. A “potencialidade” seria uma abstração intuitiva das “disposições” e,

assim, serve como uma noção primitiva a partir da qual se pode definir a possibilidade.

Toda disposição é uma potencialidade, mas há potencialidades que não são disposições.

O termo “potencialidade” é mais teorético, com poucas intuições pré-filosóficas que

constrangeriam o seu uso. Dessa maneira, Tomás de Aquino e seu precursor Aristóteles

são mais bem definidos como “potencialistas”. Apesar de que em alguns momentos

possamos compará-los com alguns “disposicionalistas”, tal expressão apresentaria

maior imprecisão quando atribuída aos clássicos.

A palavra “disposição” tem problemas linguísticos de vagueza, como quando as

atribuições de disposições não são claras a que se refere, e de sensibilidade ao

contexto, quando o contexto influencia no significado do termo. Por isso, algumas

abordagens metafísicas propõem graus de disposições, dependendo do contexto e da

vagueza. Contudo, abstraindo esses graus ou considerando apenas um grau mínimo,

teríamos uma “disposição” insensível ao contexto e que seria mais geral, e tal seria o

que podemos chamar de “potencialidade”. A disposição específica da fraqueza, por

exemplo, seria uma questão de ter a potencialidade certa em um grau contextualmente

suficiente. Podemos enumerar várias coisas frágeis, mas elas serão frágeis em diferentes

graus de acordo com as disposições delas. No que concerne a potencialidade da

“fragilidade”, podemos atribuí-la a todos os que estão incluídos ao longo dos graus que

enumeramos e seria arbitrário meramente parar de atribuir em qualquer ponto.

Em suma, teríamos três aspectos: para cada [1] potencialidade haveria várias [2]

disposições, que seriam “graus dentro da potencialidade”. Por sua vez, cada [2]

disposição seria individuada por sua [3] manifestação. Considerando os termos opostos,

57 GEACH, P. T. ‘Aquinas’, in G. E. M. Anscombe & P. T. Geach, ed., Three Philosophers, Oxford: Blackwell, p.101. 1961.

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nós teríamos de um lado a [1] potencialidade e de outro a sua [3] manifestação, de

modo que as individualidades são individuadas pela sua manifestação. Tal compreensão

lembra a distinção aristotélica de [1] potência e [3] ato, onde o ato individua a potência,

onde podemos acrescentar entre eles exatamente as [2] disposições ou hábitos. Assim,

inclusive, a propriedade da “relação de manifestação” descrita abaixo por Barbara

Vetter pode ser comparável com a teoria aristotélico-tomista:

[...] a estrutura de propriedades é dada pela relação entre uma potencialidade e sua manifestação, a relação “... é uma potencialidade para ...”, que eu chamarei de relação de manifestação. A relação de manifestação é direta: vai da potencialidade para a manifestação. Ela é irreflexível (nenhuma potencialidade é sua própria manifestação), assimétrica (nenhuma potencialidade é a manifestação de sua própria manifestação) e intransitiva (uma potencialidade de ter uma potencialidade para F não é uma potencialidade para F).58

Considerando que as potencialidades estão ancoradas nos portadores

individuais e, por isso, são localizadas, podemos considerar as potencialidades

abstraindo de seus portadores, o que a tornará não-localizada. Repare que mantemos a

noção de “potencialidade" e, com a abstração, já estamos falando da “possibilidade”.

Grosso modo, é dessa maneira que Vetter descreve a modalidade alética da

“possibilidade” em termos de “potencialidade”, reduzindo aquela a esta, de modo que a

possibilidade nada mais seria do que “potencialidade abstraída do portador”. As

localizadas lembram as modalidades simpliciter de Tomás e as não-localizadas lembram

as modalidades em si. Além disso, a própria autora se utiliza da expressão “simpliciter”,

apesar de que usa com um significado diferente daquele usado por Tomás.

Neste ponto, temos que reconhecer que quem melhor fez essas análises foi

Barbara Vetter, em “Potentiality. From Dispositions to Modality”, de maneira que as

seguiremos neste ponto. No final do seu livro, Vetter oferece ainda um apêndice onde

descreve o que chamou de “Sistema P” de Lógica Modal. Nesta tese, não teremos

58 VETTER, Barbara. “Potentiality From Dispositions to Modality”, p. 25: (...) the structure of properties is given by the relation between a potentiality and its manifestation, the relation ‘... is a potentiality to ...’, which I shall call the manifestation relation. The manifestation relation is directed: it goes from potentiality to manifestation. It is irreflexive (no potentiality is its own manifestation), asymmetric (no potentiality is the manifestation of its own manifestation), and intransitive (a potentiality to have a potentiality to F is not thereby a potentiality to F). p.25

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condições suficientes para descrever esse sistema em detalhes, mas estamos citando-o

para servir de referência para futuras pesquisas nesta área, principalmente

comparando-o com aquilo que aqui produziremos a respeito de Tomás de Aquino. O

Sistema P seria governado por uma regra de fechamento e os axiomas da disjunção, da

atualidade e da não-contradição, que são defendidos no tópico 5.7 do livro de Vetter. É

interessante observar a presença do princípio de não-contradição, que será importante

também para Tomás quando este define a “potência em si” baseada na “possibilidade

em si”, como veremos adiante.

Mesmo com todas essas similaridades, em alguns momentos, receei considerar

Aristóteles e Tomás de Aquino como “potencialistas” porque seguiremos um caminho

contrário do que esses autores contemporâneos costumam seguir, de modo que isso

poderia causar discrepâncias. Kit Fine, por exemplo, “compara” a noção de “essência”

com a de “necessidade” enquanto esta tese comparará “essência” com “possibilidade”.

Mesmo assim, no final, cheguei a conclusão de que estes autores clássicos afirmam,

mutatis mutandis, muito do que os disposicionalistas/potencialistas afirmam, mas os

clássicos acrescentam informações a mais, as quais serão exploradas nesta tese.

De fato, a essência “humanidade” é necessária para o indivíduo “Sócrates”, dado

que o filósofo Sócrates nem sequer é concebível sem humanidade. Esta seria a chamada

“ordem do conhecimento”, que vai do individual para o geral. A princípio, a proposta

desses autores disposicionalistas parece se seguir assim: experimento um indivíduo e,

através da análise de suas partes, sou capaz de identificar disposições ou

potencialidades nele. Contudo, por outro lado, o indivíduo “Sócrates” é possível ou

contingente para a essência “humanidade”, pois é possível admitir-se a humanidade

sem que Sócrates tenha existido. O que faremos nesta tese segue esta última

consideração, chamada de “ordem da natureza”, que vai do geral para o individual e

que, assim, inverte a direção considerada pelos disposicionalistas contemporêneos. No

texto abaixo, Tomás distingue os dois tipos de ordem:

Ora, deve-se dizer que aqui, [nos Analíticos Posteriores,] ele (Aristóteles) está falando da ordem do singular para o universal simplesmente; e esta ordem deve ser considerada como a ordem do conhecimento sensível e intelectual em nós. Ora, em nós, o conhecimento sensível é anterior ao intelectual, porque o

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conhecimento intelectual em nós procede do sentido. Por essa razão, o singular é anterior e mais conhecido em relação a nós do que o universal. Mas, na Física, ele [Aristóteles] não coloca a ordem do universal para o singular simplesmente, mas a ordem do mais universal para o menos universal, por exemplo, de animal para homem, e é desse modo que é necessário que, em relação a nós, o universal seja anterior e mais conhecido.59

É por esta razão que surgem algumas discrepâncias da consideração desses

autores em relação ao que será exposto nesta tese, mas é possível encontrar alguns

textos em que os disposicionalistas insinuam essa ordem da natureza também. Por

exemplo, em Kit Fine, poderíamos encontrar uma dupla consideração da “essência”:

“essência” propriamente [ordem do conhecimento ligada à necessidade] e “e-

potencialidade” [ordem da natureza ligada à possibilidade]. No tópico 5.7 de seu livro,

Vetter sustenta a tese de que a “e-potencialidade” de um objeto pode incluir

contradições e, por isso, digo que não é compatível com o sistema tomista.

Portanto, com esse panorama geral, podemos buscar classificar Tomás de

Aquino como sendo um potencialista ou disposicionalista (o que detalharemos em todo

o capítulo 2 adiante), bem como sendo um atualista hardcore (capítulo 3). Em termos

tomistas, a proposta desses autores contemporâneos seguiria a “ordem do

conhecimento”, a qual Tomás poderia concordar, mas estes disposicionalistas parecem

não explorar muito bem a “ordem da natureza”. No tópico final 4.4, nós iremos ter

melhores condições de explicar porque seguimos apenas a ordem da natureza em

nossas análises ao longo da tese. Primeiro, façamos uma investigação textual.

59 AQUINO, Tomás de. Expos. Post. Analytic., Lib. 1 l. 4, n. 6: “Sed dicendum est quod hic loquitur de ordine singularis ad universale simpliciter, quorum ordinem oportet accipere secundum ordinem cognitionis sensitivae et intellectivae in nobis. Cognitio autem sensitiva est in nobis prior intellectiva, quia intellectualis cognitio ex sensu procedit in nobis. Unde et singulare est prius et notius quoad nos quam universale. In I autem Physic. non ponitur ordo universalis ad singulare simpliciter, sed magis universalis ad minus universale, ut puta, animalis ad hominem, et sic oportet quod quoad nos, universalius sit prius et magis notum.”

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Capítulo 2: Investigações Textuais acerca do Modelo Potencialista

Para dar prosseguimento à tese, exploraremos a possibilidade de um Modelo

Potencialista em Tomás de Aquino, que seria diretamente relacionado à potência e ao

ato. É conhecido que, a princípio, o tomismo se baseou no aristotelismo, e muito do que

será afirmado a partir daqui como sendo ideia de Tomás, mutatis mutandis, também

será ideia de Aristóteles, principalmente no capítulo 2 e no tópico 3.1.

Neste capítulo 2, mostraremos a base textual tomista que alicerça a nossa

hipótese de que Tomás de Aquino seguia um Modelo Potencialista para determinar a

semântica de cada uma das quatro modalidades aléticas: necessidade, contingência,

possibilidade e impossibilidade. Assim, trata-se de uma investigação de cunho histórico-

conceitual que busca fazer uma reconstituição de um instrumento lógico-semântico a

partir dos textos aristotélicos e tomistas. Por isso, nós nos voltaremos principalmente

para a fonte primária dos textos do próprio Tomás. Caso o leitor queira se focar apenas

na semântica puramente, enquanto instrumento lógico independente, basta que se

foque nos diagramas que apresentaremos ao longo do texto. De fato, esses diagramas

sozinhos resumem bem o instrumento que pretendemos apresentar. Para análises mais

formais, independentemente do sistema tomista ou aristotélico, recomendamos que o

leitor leia o capítulo 4.

Como já vimos no tópico 1.1, as modalidades aléticas são modos de a verdade se

manifestar. Uma vez que, para Tomás, a verdade é um transcendental que se converte

com ser60, segue-se que as modalidades aléticas são, em última instância, modos de o

ser se manifestar. Sendo assim, propomos que antes de uma equivalência entre

modalidade alética e modalidade temporal (como queria Hintikka), deve haver uma

equivalência entre a modalidade alética e a ocorrência do ser na realidade.

Neste caso, tratar-se-ia de uma equivalência mesmo. Ora, a ocorrência das coisas

na realidade foi descrita por Aristóteles e Tomás exatamente tomando por base noções

que possuem uma íntima relação com a modalidade, a saber: as noções de potência e

60 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 16, a. 3.

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ato. Nesse sentido, uma compreensão mais precisa da semântica das modalidades

aléticas em Tomás precisa ser descritas em termos de potência e ato.

Além disso, o sistema de Tomás, escrito em latim, pode ajudar a esclarecer

assuntos até então pouco resolvidos pelos textos gregos de Aristóteles. De fato,

veremos que o latim medieval esclarece melhor as noções modais do que o grego

antigo. Apesar de serem comparáveis, as noções tomistas de “essência” e “ser” são

diferentes das noções aristotélicas de “potência” e “ato” e representam exatamente o

aprofundamento tomista em relação à teoria de Aristóteles. A palavra “essentia” em

latim é uma tradução possível para a palavra “οὐσία” (ousia) em grego, mas nem todos

os estudiosos de Aristóteles concordam em traduzir dessa maneira. Assim, uma simples

tradução por parte de Guilherme de Moerbeke, tradutor das obras lidas por Tomás,

pode ter provocado um distanciamento da compreensão deste último em comparação

com o texto original de Aristóteles.

Em alguns momentos, devemos considerar também que a interpretação de

Tomás extrapola os textos de Aristóteles seguindo alguns passos independentes, como

veremos no tópico 3.2. É evidente que Tomás realiza análises que vão além do sistema

de Aristóteles para responder problemas típicos da medievalidade, principalmente

acerca de temas teológicos. Além disso, Tomás precisou lidar com teses que vieram dos

comentadores das obras aristotélicas árabes e judeus, onde havia espaço para disputa

nas interpretações. Por essa razão, defendo que o Modelo Potencialista se trata de um

modelo mais tomista do que aristotélico. Sem delongas, investiguemos as modalidades.

2.1 Investigação acerca da Semântica da Possibilidade

Esse tópico é fundamental porque determinará a base da semântica para as

modalidades aléticas. Se a base não é o tempo (como no Modelo Estatístico) e não são

os mundos possíveis (como na S.M.P.), então a base precisará ser outra coisa, a saber: a

abrangência da potência. De imediato, apresentaremos essa base da “abrangência da

potência” na medida em que, a partir dela, será possível visualizar a semântica de todas

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as outras quatro modalidades aléticas. Assim, esse tópico apresenta apenas o

“esqueleto” ou “alicerce” que será posteriormente devidamente preenchido.

De modo geral, a “potência” seria a possibilidade ontológica (real) para a

realização de algo, a qual é dada pela essência ou natureza. Por sua vez, essa natureza

depende do “ato” para existir, de modo que a atualização seria a própria realização

concreta da natureza, por onde Tomás afirma que “a existência é a atualidade de toda

forma ou natureza; assim, a bondade ou a humanidade não são atuais senão quando as

supomos existentes.”61 Desse modo, uma correta consideração das modalidades precisa

ter como base a natureza das coisas. No texto abaixo de Tomás, separei e numerei as

modalidades para uma melhor visualização:

Assim, outros distinguem melhor estes [termos modais] de acordo com a natureza das coisas, a saber:

[1] se diz que o necessário é aquele que, em sua natureza, é determinado apenas como sendo;

[2] o impossível é aquilo que é determinado apenas como não sendo;

[3] o possível é determinado totalmente como neutrum, seja quando é mais para um do que para outro, seja quando é igualmente para os dois [ser ou não ser],

[4] [ainda sobre o possível,] o qual é dito contingente [quando se determina] a qualquer um deles [isto é, quando se determina ao ser ou ao não ser].62

Sendo assim, primeiramente, precisaremos esclarecer a que se refere essa

“natureza das coisas” e como ela está relacionada ao possível, por ele ser “neutrum”,

nem para um lado e nem para o outro, onde temos uma indeterminação. Por isso que,

neste tópico, enfatizaremos mais o aspecto da potencialidade sem a determinação que

advém das atualizações. Nos próximos tópicos, entenderemos as outras modalidades.

Para ser mais preciso, chamaremos a natureza das coisas de “abrangência da natureza”

61 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 4, co: “esse est actualitas omnis formae vel naturae, non enim bonitas vel humanitas significatur in actu, nisi prout significamus eam esse” 62 AQUINO, Tomás de. Expos. Peryerme.. I, L. 14, n. 8: “Et ideo alii melius ista distinxerunt secundum naturam rerum, ut scilicet dicatur [1] illud necessarium, quod in sua natura determinatum est solum ad esse; [2] impossibile autem quod est determinatum solum ad non esse; [3] possibile autem quod ad neutrum est omnino determinatum, sive se habeat magis ad unum quam ad alterum, sive se habeat aequaliter ad utrumque, [4] quod dicitur contingens ad utrumlibet.”

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ou “abrangência da potência”, pois, numa relação entre potência e ato, há uma

extensão de todos os atos (ou realizações) possíveis de uma potência. Assim, passamos

a considerar se os atos estão dentro da abrangência ou não estão dentro. Nesta tese,

entenderemos que a abrangência de uma potência é exatamente o que Tomás chama

de “essência” (“essentia”), ou “natureza”, e a abrangência da atualização (ou somente

“ato” ou “atualização”) será chamada de “ser” (“esse”). Tomás afirma: “O ser do homem

é limitado à espécie do homem, porque é recebido na natureza63 da espécie humana, e o

mesmo se aplica ao ser de um cavalo ou de qualquer outra criatura.”64

Neste texto, vemos que a essência, ligada à espécie no caso das criaturas,

determina a limitação do ser, ou seja, determina a abrangência de até onde este ser se

estende ou não. Na nossa linguagem, quando usamos termos universais, tais como

“corpo”, “animal”, “homem”, pretendemos que tais termos possuam uma potência com

abrangência restrita e limitada a uma espécie. Neste contexto, mesmo que seja infinito

o número de indivíduos contidos numa espécie, não se trata de quaisquer indivíduos,

mas indivíduos determinados pela potência da espécie. Trata-se, como diz o texto

abaixo, de uma infinitude “confinada a uma espécie”:

É possível que uma criatura considerada em si mesma seja capaz de produzir uma infinidade de efeitos em algum aspecto particular, por exemplo, no que diz respeito ao número em uma espécie; e então a natureza de todos esses efeitos é finita, sendo confinada a uma espécie em particular - por exemplo, um número infinito de homens ou de asnos. Mas é impossível para uma criatura ser capaz de produzir uma infinidade de efeitos em todos os aspectos, em número, espécie e

gênero: isso pertence somente a Deus.65

Ao fazermos um paralelo com Deus, que não tem limitação, o que será melhor

explicado mais adiante, podemos identificar como ocorre a limitação a partir da

63 Ao longo desta tese, as palavras “natureza”, “quididade” e até “substância” são usados por Tomás no sentido de “essência”, como pretendemos usar aqui, como se pode identificar logo nos primeiros parágrafos da obra “De Ente et Essentia”. 64 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. I, a. 2, co.: “Esse enim hominis terminatum est ad hominis speciem, quia est receptum in natura speciei humanae; et simile est de esse equi, vel cuiuslibet creaturae.” 65 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. I, a. 2, ad 9.: “Possibile est enim aliquam creaturam posse producere effectus infinitos quantum est de se, secundum aliquid, utpote secundum numerum in eadem specie; et sic omnium illorum effectuum natura est finita, utpote ad unam speciem determinata, ut si accipiamus homines vel asinos infinitos. Non est autem possibile ut sit aliqua creatura quae possit in effectus infinitos omnibus modis et secundum numerum et secundum species et secundum genera; sed hoc solius Dei est...”

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essência específica. De fato, não é esperado que Sócrates faça o que não é da essência

da espécie homem, como voar, por exemplo, e não é esperado que a partir da essência

específica de homem advenha um cavalo individual, mas é esperado que Sócrates ria,

porque é um “acidente próprio” ou uma propriedade típica da espécie:

Tudo o que existe num ente, sem lhe constituir a essência, deve ser causado pelos princípios desta, como acidentes próprios resultantes da espécie. Assim, a faculdade de rir resulta do ser humano e é causada pelos princípios essenciais da espécie.66

Observe-se neste ponto como a essência específica é de fato o que faz com que a

coisa seja o que ela é, pois está dentro de sua abrangência tudo o que o indivíduo pode

ser. A essência não somente determina que indivíduos existem sobre a sua égide, mas

também as características acidentais próprias dos indivíduos. Em outras palavras, nada

que se afirme de um indivíduo está para além da sua espécie, de modo que tudo o que

estiver além de sua espécie, será impossível para o indivíduo.

Ser circunscrito por limites locais é próprio dos corpos; mas por limites essenciais é comum a qualquer criatura, tanto corporal como espiritual. Por onde diz Ambrósio que, embora certos seres não estejam contidos em lugares corpóreos, todavia não escapam à circunscrição da substância.67

Em suma, a essência envolve abrangência da possibilidade de ser do próprio ente

em questão, de modo que tratamos a abrangência em termos extensionais. Sendo

assim, para facilitar a visualização em termos atuais, podemos imaginar que a essência

se refere a um conjunto e os seres seriam os elementos contidos nesse conjunto. A

noção de “conjunto” é comparável, mutatis mutandis, às intenções lógicas, a saber:

gênero, espécie e diferença específica.

66 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 4, co.: “quidquid est in aliquo quod est praeter essentiam eius, oportet esse causatum vel a principiis essentiae, sicut accidentia propria consequentia speciem, ut risibile consequitur hominem et causatur ex principiis essentialibus speciei.” 67 AQUINO, Tomás de. S.Th, I, q. 50, a. 1, ad 3: “dicendum quod circumscribi terminis localibus est proprium corporum, sed circumscribi terminis essentialibus est commune cuilibet creaturae, tam corporali quam spirituali. Unde dicit Ambrosius, in libro de Spir. Sanct., quod licet quaedam locis corporalibus non contineantur, circumscriptione tamen substantiae non carent.”

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O ponto principal da minha hipótese de uma semântica para as modalidades

aléticas envolve as demonstrações da unidade ou multiplicidade de indivíduos numa

espécie, ou de espécies num gênero. Eis que entram em questão dois tipos de unidade,

a saber: a unidade numérica, que é a unidade dos indivíduos, e a unidade não numérica,

que é a unidade de uma propriedade comum, específica ou genérica, compartilhada por

muitos indivíduos. A essência teria uma unidade específica, não-numérica, e todos os

indivíduos numericamente distintos possuem algum ser se e somente se isso se der

dentro da abrangência da unidade específica, ou até mesmo genérica. Podemos

visualizar isso melhor com o seguinte diagrama, onde um lado das chaves representa as

potências e o outro representa as atualizações:

Contudo, a abrangência dessa unidade de potência específica deve estar dentro

de outra abrangência de unidade ainda maior. É nesse ponto que apresentamos a

interpretação tomista para a distinção entre os sentidos de “possibilidade”, que está

presente no livro V da Metafísica de Aristóteles:

De acordo com o Filósofo (Metaf. V, 12), uma coisa é considerada possível ou impossível de três maneiras. Primeiro, em relação a uma potência ativa ou passiva: assim, é possível para um homem caminhar em relação a sua capacidade de andar, ao passo que é impossível para ele voar. Em segundo lugar, não em relação a uma potência, mas em si mesmo: assim, dizemos que uma coisa é possível, se não for impossível, e que uma coisa é impossível, se, por necessidade, não é. Em terceiro lugar, diz-se que uma coisa é possível em relação à potência matemática, como dizemos na geometria; assim, uma determinada linha é potencialmente mensurável, porque seu quadrado é mensurável.68

68 AQUINO, Tomás de. De Pot., q. 1, a 3, co: ”secundum philosophum, possibile et impossibile dicuntur tripliciter. Uno modo secundum aliquam potentiam activam vel passivam; sicut dicitur homini possibile

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Nesse texto, Tomás está apenas interpretando Aristóteles, sem se aprofundar

em detalhes. Assim como muitos intérpretes, Tomás compreende que Aristóteles

separou a noção de “possibilidade” (meramente lógica, intelectual, baseada na não-

contradição) da potência metafísica (potência). Contudo, diante do problema teológico

da onipotência divina, Tomás aprofunda o pensamento de Aristóteles. Assim, apresenta

duas abrangências de potências: uma envolveria tudo o que é potencial em relação à

espécie; a outra envolve o que é potencial absolutamente em relação à não-

contradição. Esta última, para Aristóteles, seria meramente lógica, mas Tomás a

compreende de modo também metafísico constituindo um tipo de potência, a saber: a

potência em si. Em outras palavras, ambas são considerações em termos metafísicos de

potencialidade. Logo abaixo, temos [1] o “possível relativo” e [2] o “possível absoluto”:

Ora, “possível” é susceptível de duplo sentido, segundo o Filósofo, V Metafis., c.12. Num sentido, é relativo a alguma potência; assim, dizemos ser [1] possível ao homem o que lhe depende da potência. Ora, não podemos dizer que Deus é onipotente por poder tudo o que é possível à natureza criada, porque a divina potência tem maior amplitude. Por outro lado, se dissermos que Deus é onipotente porque pode tudo o que ao seu poder é possível, haverá círculo nesta explicação da onipotência. Pois, seria o mesmo dizer que Deus é onipotente por poder tudo o que pode. Donde se conclui que Deus é dito onipotente por poder tudo o que é absolutamente possível; que é outro sentido da expressão “possível”. Assim, [2] uma coisa é possível ou impossível, absolutamente, pela relação dos termos. Há possível absoluto quando o predicado não repugna ao sujeito, p. ex., Sócrates estar sentado; e impossível absoluto, quando repugna, p. ex., ser um homem asno.69

ambulare secundum potentiam gressivam, volare vero impossibile. Alio modo non secundum aliquam potentiam, sed secundum se ipsum, sicut dicimus possibile quod non est impossibile esse, et impossibile dicimus quod necesse est non esse. Tertio modo dicitur possibile secundum potentiam mathematicam quae est in geometricis, prout dicitur linea potentia commensurabilis, quia quadratum eius est commensurabile.” 69 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 25, a. 3, co.: “Possibile autem dicitur dupliciter, secundum philosophum, in V Metaphys. Uno modo, per respectum ad aliquam potentiam, sicut quod subditur humanae potentiae, dicitur esse possibile homini. Non autem potest dici quod Deus dicatur omnipotens, quia potest omnia quae sunt possibilia naturae creatae, quia divina potentia in plura extenditur. Si autem dicatur quod Deus sit omnipotens, quia potest omnia quae sunt possibilia suae potentiae, erit circulatio in manifestatione omnipotentiae, hoc enim non erit aliud quam dicere quod Deus est omnipotens, quia potest omnia quae potest. Relinquitur igitur quod Deus dicatur omnipotens, quia potest omnia possibilia absolute, quod est alter modus dicendi possibile. Dicitur autem aliquid possibile vel impossibile absolute, ex habitudine terminorum, possibile quidem, quia praedicatum non repugnat subiecto, ut Socratem sedere; impossibile vero absolute, quia praedicatum repugnat subiecto, ut hominem esse asinum.”

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Observe-se que Tomás não pode dizer que Deus é onipotente por “poder fazer

tudo o que pode”, pois cairia em círculo vicioso e, na verdade, qualquer ente também

seria onipotente nesse sentido. Uma comparação pode esclarecer melhor: assim como

Deus é onisciente porque conhece tudo o que é em si conhecível, assim também Deus é

onipotente por ter o poder de fazer tudo o que é em si possível.

Ora, o ser divino, fundamento da divina potência, é infinito, não limitado a nenhum gênero de ser, mas encerra exemplarmente a perfeição de todo o ser. Por onde, tudo o que tem ou pode ter razão de ente está contido na possibilidade absoluta, em relação à qual dizemos que Deus é onipotente. Pois, só a noção de não ser se opõe à de ser. Portanto, só repugna à noção do possível absoluto, objeto da onipotência divina, o que implica em si simultaneamente o ser e o não-ser. Porque isto não está sujeito a ela; não por deficiência da potência divina, mas, por não ter razão de factível, nem de possível. Por onde, tudo o que não implique contradição está contido nesses possíveis, relativamente aos quais dizemos que Deus é onipotente.70

Observe como Tomás agora está falando de uma “razão de ente”, uma “razão de

factível” ou “de possível”, que envolve uma amplitude absoluta para além da qual não

se concebe mais nada. Tomás está sendo cuidadoso ao dizer “razão de”, pois veremos

que trata-se de um sentido meramente lógico. Diante disso, já temos condição de

comparar essa possibilidade com as “naturezas específicas”, dado que estas sempre

estarão contidas dentro da “razão do possível”, de modo que uma representação

completa da noção de “possível” em Tomás de Aquino se daria pelo seguinte diagrama:

70 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 25, a. 3, co.: “Esse autem divinum, super quod ratio divinae potentiae fundatur, est esse infinitum, non limitatum ad aliquod genus entis, sed praehabens in se totius esse perfectionem. Unde quidquid potest habere rationem entis, continetur sub possibilibus absolutis, respectu quorum Deus dicitur omnipotens. Nihil autem opponitur rationi entis, nisi non ens. Hoc igitur repugnat rationi possibilis absoluti, quod subditur divinae omnipotentiae, quod implicat in se esse et non esse simul. Hoc enim omnipotentiae non subditur, non propter defectum divinae potentiae; sed quia non potest habere rationem factibilis neque possibilis. Quaecumque igitur contradictionem non implicant, sub illis possibilibus continentur, respectu quorum dicitur Deus omnipotens.”

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Assim, Tomás determina o que seria uma possibilidade em si como se referindo a

abrangência de toda possibilidade permitida pelo princípio de não contradição. Nesse

contexto, Tomás também costuma usar a seguinte expressão em negrito: “Deus não

pode fazer esse tipo de impossibilidade porque falta a razão de possibilidade (ratione

possibilis): mesmo assim, a potência de Deus não é dita limitada, embora Ele não possa

fazê-lo”. 71 Neste ponto, John Wippel considera que essa razão de possibilidade é apenas

lógica e mental, não tendo qualquer grau de realidade. Assim, para ele, a possibilidade

absoluta em si está antes no Intelecto Divino, mas observe no texto abaixo:

Se alguém se concentra nos possíveis tomados no sentido absoluto,

então, de acordo com Tomás, eles não gozam de nenhuma realidade

atual em si próprios, separados da realidade das suas respectivas ideias

divinas e, portanto, separados da realidade da essência divina. Se

alguém restringe o uso do termo 'possível' a isso, ninguém deve

apontar qualquer ser real para um possível, separado daquele da

essência divina. Assim entendido, portanto, quando ele é visto em si

simplesmente, cairá sob o ser puramente intencional. (...) Porém, se

alguém entende por possível algo que é tal em razão de alguma

potência ativa ou passiva, então, penso eu, deve pô-lo sob o ser real

potencial, embora não sob o ser real atual.72

Contudo, antes de entrarmos em detalhes sobre a questão da potência ativa ou

passiva, para compreendermos melhor, considero fundamental entendermos bem a

noção de “substância”, que pode ter três significados possíveis: [1º] “substância

primeira”, que se refere a um indivíduo e, nesse sentido, substância é onde inerem os

acidentes; [2º] “substância segunda”, que tem o mesmo sentido de “essência” ou

abrangência da potência, tratando-se de uma propriedade essencial comum a muitos

indivíduos; [3º] “substância genérica”, que seria o “gênero supremo” ou o “gênero

generalíssimo”. Descartaremos os dois primeiros sentidos e falaremos apenas a respeito

do terceiro, de modo que, para não confundir, usaremos a expressão “substância

genérica”. Acerca desta última, Tomás a analisa quando afirma que Deus não está no

gênero da substância, como vemos abaixo:

71 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a 3, ad sed 2: “potentia Dei non potest praedictum impossibile, quia deficit a ratione possibilis: et ideo potentia Dei non dicitur limitari, quamvis hoc non possit.” 72 WIPPEL, J. The Reality of Nonexisting Possibles According to Thomas Aquinas, Henry of Ghent and Godfrey of Fontaines. p.739.

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Logo, Deus não está no gênero da substância. (...) Ora, o nome de substância é imposta [a algo] por [este algo] substar, mas Deus não substá em nada. (...) Tudo o que está num gênero tem a quididade diferente de seu ser, assim como no homem. De fato, a humanidade, na medida em que é humanidade, não lhe é devida ser em ato, uma vez que se pode pensar a humanidade e também desconsiderar que seja em algum homem.73

Nesse sentido, está contido no gênero da “substância” tudo aquilo que possui

uma parte de si “que substá”, ou seja, uma parte que “está abaixo”, como suporte ou

sujeito para as modificações. Considerando a comparação com a humanidade feita no

texto, podemos dizer que, na medida em que é considerada como uma “quididade”, a

substância genérica não envolve qualquer ser. Em outras palavras, este gênero

supremo, em si mesmo, não envolve qualquer atualização, de modo que podemos

associá-lo também à “possibilidade em si”, que estamos apresentando. Para melhores

esclarecimentos, Tomás distingue dois modos de consideração das intenções lógicas do

“gênero” e da “diferença”:

Deve-se dizer que o gênero e a diferença podem ser tomados de dois modos: de um modo, quanto a sua [1ª] consideração real, tal como são considerados pelo metafísico e pelo físico, e assim é necessário que o gênero e a diferença se fundem sobre diversas naturezas. (...) De outro modo, quanto a uma [2ª] consideração lógica, e assim não é necessário que o gênero e a diferença se fundem sobre diversas naturezas, mas sobre uma só natureza em que se considera [apenas mentalmente] algo que é próprio e algo que é comum.74

A consideração real aponta para diversas naturezas, mas a consideração lógica

não tem necessidade disso, pois se trata de considerar apenas uma diversidade lógica na

73 AQUINO, Tomás de. Super Sent., lib. 1 d. 8 q. 4 a. 2 s.c. 2. (...) Ergo Deus non est in genere substantiae. (...) Nomen enim substantiae imponitur a substando, Deus autem nulli substat. (...) Omne quod est in genere, habet quidditatem differentem ab esse, sicut homo; humanitati enim ex hoc quod est humanitas, non debetur esse in actu; potest enim cogitari humanitas et tamen ignorari an aliquis homo sit. 74 AQUINO, Tomás de. Q. D. De Anima, q. a. 7, ad 17.: “dicendum quod genus et differentia possunt accipi dupliciter. Uno modo secundum considerationem realem, prout considerantur a metaphysico et naturali et sic oportet quod genus et differentia super diversis naturis fundentur; et hoc modo nihil prohibet dicere quod in substantiis spiritualibus non sit genus et differentia, sed sint formae tantum et species simplices. Alio modo secundum considerationem logicam; et sic genus et differentia non oportet quod fundentur super diversas naturas, sed supra unam naturam in qua consideratur aliquid proprium, et aliquid commune.”

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mente. Dessa maneira, já estamos em condições de entender a distinção entre

espiritualidade e corporeidade, tal como está no texto a seguir:

Quando dizemos que certa substância é corpórea ou espiritual, não comparamos a espiritualidade ou corporeidade à substância como formas à matéria ou como acidentes a um sujeito, mas sim como diferenças a um gênero; e isto não porque a substância espiritual não é espiritual por causa de algo adicionado à substância, mas sim segundo sua própria substância – assim como a substância corpórea não é corpórea por causa de algo adicionado à substância, mas sim segundo a sua própria substância. Pois a forma pela qual a espécie adquire a predicação da diferença é a mesma pela qual tal espécie adquire predicação do gênero. 75

Nesse contexto, podemos começar a entender a razão pela qual algo só pode ser

espiritual por substância ou material por substância, dado que “espiritual” ou “material”

é a primeira forma ou nossa primeira consideração com alguma atualização logo a baixo

da substância genérica. Podemos visualizar melhor, olhando para a Árvore de Porfírio76

logo abaixo adaptada aos nossos objetivos:

75 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 40: “Cum enim dicimus aliquam substantiam corporalem esse vel spiritualem, non comparamus spiritualitatem vel corporeitatem ad substantiam sicut formas ad materiam, vel accidentia ad subiectum, sed sicut differentias ad genus: ita quod substantia spiritualis non propter aliquid additum substantiae est spiritualis sed secundum suam substantiam, sicut et substantia corporalis non per aliquid additum substantiae est corporalis, sed per suam substantiam. Non enim est alia forma per quam species differentiae praedicationem suscipit, ab ea per quam suscipit praedicationem generis, ut supra dictum est.” 76 PORFÍRIO. Isagoge. Introd., trad. e comentário de Bento S. Santos. São Paulo, Attar, 2002.

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Nesse nível ontológico tão geral de “espirito” ou “corpo”, não há distinção entre

o gênero e a diferença. Havendo apenas uma coisa real nesse nível de consideração

ontológica, qualquer distinção entre gênero e diferença só pode ser puramente lógica.

De fato, não faz sentido afirmar que a diferença “material” é acrescentada ao gênero

“substância”, como se “material” fosse uma forma que atualiza a matéria prima

“substância”. Perceba como é estranho tratar material como forma. Esse ponto da

Árvore de Porfírio cria um nó em nossa mente, de modo que a solução tomista foi

apelar para uma exposição com a distinção puramente lógica entre gênero e diferença,

mas provenientes de uma mesma fonte real:

Logo, o gênero e a diferença, nelas [substâncias imateriais], não provêm de origens diferentes [na realidade], mas sim de uma mesma origem. O que, todavia, é diferentemente compreendido pelo nosso intelecto, pois, enquanto este considera uma dessas coisas indeterminadamente, descobre nelas a noção de gênero; e enquanto determinadamente, a de diferença.77

Diante de tudo o que acabamos de falar sobre a substância, temos um fato

curioso sobre a substância enquanto genérica no sistema tomista: apesar de se tratar de

apenas um gênero supremo em termos puramente lógicos, este gênero se desmembrará

em duas considerações reais metafísicas. A “substância genérica” unitária na realidade

não tem nem mesmo um ser per accidens78 na realidade extramental, mas ela é

considerada apenas logicamente. Sempre quando consideramos realmente a substância

per accidens como algo real metafisicamente, nós já estamos falando ou de uma

“substância material” (corpo) ou de uma “substância imaterial” (espírito). Em outras

palavras, o termo “substância” genericamente, tal como expressamos continuamente

nessa tese, não se refere a uma “abrangência de potência”. Só há abrangência de

potência a partir do gênero “corpo” ou a partir do gênero “espírito”.

Contudo, observe-se que a substância genérica, apesar de apenas lógica, é um

elo ou ligação entre o âmbito material e o âmbito espiritual. Assim, se admitirmos a

77 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 50, a. 2, ad 1. “Et ideo genus et differentia in eis non accipitur secundum aliud et aliud, sed secundum unum et idem. Quod tamen differt secundum considerationem nostram, inquantum enim intellectus noster considerat illam rem ut indeterminate, accipitur in eis ratio generis; inquantum vero considerat ut determinate, accipitur ratio differentiae.” 78 Essa expressão per accidens (um ser que não é independente, mas é parte de um indivíduo) se opõe a per se (o ser do indivíduo). Ambas serão esclarecidas no tópico 2.3 sobre os contingentes.

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existência de um dos âmbitos, esse “elo lógico” ao menos apontará a possibilidade

lógica do outro âmbito. De fato costumamos atribuir realidade ao material com mais

facilidade. Assim, supondo o gênero supremo da substância, se afirmamos a

materialidade de uma substância, também é logicamente possível negar essa

materialidade, pelo Princípio do Terceiro Excluído. Aplicando esse Princípio, sempre

podemos afirmar ou negar a respeito de algo, não havendo uma terceira opção.

Neste ponto, podemos voltar à reflexão sobre a potência ativa e passiva na

medida em que comparamos a matéria prima com Deus. A essência da matéria informe

e, se é permitido dizer, a “essência de Deus”79 teriam grau de abrangência equivalente à

possibilidade em si, como a definimos. Dessa maneira, se podemos atribuir algum grau

de realidade, mínimo que seja, para essa possibilidade em si, esta seria a potência

absoluta de Deus (completamente atualizada, sem potência em si em aberto, de modo

que ficaria sendo puramente lógica qualquer possibilidade que se atribui a Deus) e da

matéria informe (sem nenhuma atualidade). Em outras palavras, a potência em si da

matéria ocorre em termos de potência passiva, mas a potência em si de Deus ocorre em

termos de potência ativa (e nunca passiva):

Como a matéria prima é potência pura, assim também Deus é o ato puro. Ora, a matéria prima considerada em sua essência é inteiramente vazia de ato. Portanto, Deus considerado em sua essência é vazio de toda potência.80 Este argumento prova que não há nenhuma potência passiva em Deus, e isso nós concordamos.81

Diante disso, uma vez que a noção de “substância genérica” será apenas lógica e

intramental, o intelecto que concebê-la poderá aplicá-la a diversos casos na natureza.

Dependendo da aplicação, podemos ter dois casos: [1º] a possibilidade em si lógica da

substância genérica irá se identificar com a matéria prima genérica; [2º] a possibilidade

em si puramente lógica da substância genérica não terá com o quê se identificar na

79 Estamos sendo cautelosos porque a “essência de Deus” se identifica com o “ser d’Ele” de tal maneira que Deus será “puro ser”, não havendo essência ou potência em Deus, como veremos em 2.4. 80 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a 2, arg 7: “sicut materia prima est pura potentia, ita Deus est purus actus. Sed prima materia secundum essentiam suam considerata, est denudata ab omni actu. Ergo Deus in essentia sua consideratus, est absque omnipotentia.” 81 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a 2, ad 7: “Ad septimum dicendum, quod ratio illa probat quod in Deo non sit potentia passiva, et hoc concedimus”

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realidade, a saber, nos casos de imaterialidade. Sendo assim, uma representação mais

precisa em termos de diagramas sobre o que envolve a possibilidade seria assim:

Chamamos de “possibilidade em si da substância genérica” exatamente por não

representar uma abrangência de potência real metafisicamente, mas apenas

logicamente. Fizemos toda essa exposição sobre a substância genérica no sistema

tomista porque poderia soar estranha e arbitrária a consideração de dois tipos de

abrangência, uma material e outra imaterial. Afinal, se a abrangência da potência pura é

determinada pelo princípio de não contradição, e esse princípio é apenas um, segue-se

que deveria ser apenas uma abrangência nesse grau generalíssimo, e não duas como é

suposto no sistema tomista. Contra isso, supomos que esteja claro: quando se refere a

um ser material, a possibilidade em si tem um correspondente, mas, quando se refere a

algo não-material, a possibilidade em si não se refere a nada real, o que formaria uma

abrangência da possibilidade apenas lógica na mente.

Neste ponto, é importante esclarecer melhor. Quando nos referimos à

“abrangência da potência”, nós estamos falando da “potência passiva”. De fato,

“potência passiva” é a possibilidade real de receber uma atualização. Contudo, Tomás

também considera a “potência ativa”, que seria a possibilidade para realizar um ato.

Assim, uma pedra tem a potência passiva de receber o molde de uma estátua, mas o

escultor tem a potência ativa para esculpir uma estátua na pedra. Quando se trata de

seres não materiais, não é necessário supor uma potência passiva real para receberem

a criação, pois, para o ato de criação, basta a potência ativa divina. Uma vez que Deus é

um ser intelectual e todo intelecto segue o princípio de não contradição, basta não ser

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contraditório para que já esteja na abrangência de ação da potência ativa divina. Assim,

quando falarmos da “abrangência da possibilidade por si”, que envolve a não

contradição, quando nos referirmos aos anjos e corpos celestes, estamos falando

realmente da “abrangência de ação da potência ativa divina”. Ao longo da tese

veremos outros textos, mas um texto que relaciona a potência ativa divina com a não

contradição é o seguinte:

Assim, diz-se que antes do mundo era possível que o mundo fosse feito, porque a declaração não envolvia nenhuma contradição entre sujeito e predicado. Podemos também responder que isso foi possível em razão do poder ativo do agente, mas não por causa de qualquer poder passivo da matéria.82

No tópico a seguir, reforçaremos tal aspecto, mas podemos adiantar que, em

última instância, nas substâncias criadas, sempre há uma “abrangência de ação da

potência ativa divina”, de modo que, mesmo quando não há uma real “potência por si

passiva” (da matéria) nas criaturas, ainda assim, há uma “abrangência da possibilidade

em si” em termos lógicos de um intelecto. Neste ponto, recomendamos o excelente

trabalho feito por Matheus Henrique Gomes Monteiro, onde ele mostra que o possível

em si (chamado de “absoluto”) está relacionado com o “potente divino e com o modo

humano de conhecer”. Eis parte da sua conclusão:

Os possibilia significam universalmente os objetos da potência divina e, enquanto tais, sendo criados ou não, eles são ditos ser possíveis absolutos. Eles enquanto tais não significam o ente ou ser de algum modo, mas eles significam o possível de ser ente, relacionado ao potente divino e segundo o modo humano de conhecer. Sua ratio possibilis, ou possibilidade, é dupla: por parte do próprio possível enquanto poder ser feito e por parte do potente divino enquanto poder fazer.83

Assim, a respeito dos anjos e de Deus, uma vez que envolvem uma possibilidade

meramente dentro de um intelecto (no caso, o intelecto divino usa-a para a criação, mas

o nosso intelecto para conhecer sobre as coisas), essa possibilidade puramente lógica 82 AQUINO, Tomás de. De Pot., q. 3 a. 1 ad 2: “Sic ergo dicitur, antequam mundus esset, possibile mundum fieri, quia non erat repugnantia inter praedicatum enuntiabilis et subiectum. Vel potest dici, quod erat possibile propter potentiam activam agentis, non propter aliquam potentiam passivam materiae.” 83 MONTEIRO, Matheus Henrique Gomes. A Realidade dos Possíveis Segundo Tomás de Aquino. p. 95.

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pode ser aplicada reiteradamente para qualquer ser material, para cada corpo sublunar

e para cada corpo celeste, tendo utilidade especial para as criaturas espirituais, a saber:

anjo Miguel, Rafael, Lúcifer... Em particular, no caso de Deus, como veremos, Ele seria

“Puro Ato” ou “Puro Ser”, onde toda a possibilidade em si é preenchida, não fazendo

sentido atribuir status real para a possibilidade, donde qualquer possibilidade atribuída

a Deus será meramente lógica mesmo.

Seguindo essa linha de pensamento, uma crítica plausível ao tomismo envolveria

a defesa de que Tomás forçou uma exposição ad hoc para sustentar a existência do

âmbito espiritual por causa de suas crenças religiosas. Contudo, é importante entender

que não estamos entrando nos pormenores da demonstração do âmbito espiritual nesta

tese. O próprio Aristóteles, que não tinha motivações de crenças religiosas, defendeu

que o intelecto humano é imaterial e que não depende de nenhum órgão corpóreo na

sua obra “De Anima”84. Não haverá espaço suficiente para detalharmos os argumentos

aristotélicos, de modo que apenas suporemos que Tomás assume que o intelecto é

imaterial. Se há ao menos uma coisa que é imaterial, então existe o “âmbito da

imaterialidade”, considerado como o “âmbito espiritual” pelo cristianismo. Sendo assim,

deve haver uma ontologia para estes seres espirituais e descreveremos mais adiante

como Tomás realiza tal feito. É dessa maneira que “ser sujeito”, característica que

define a substancialidade genérica, não é uma característica apenas da matéria, mas é

próprio de qualquer tipo de potência, incluindo as potências dos intelectos separados da

matéria, como vemos no seguinte texto:

“Ser sujeito” não recai apenas sobre a matéria que é parte da substância, mas recai universalmente sobre toda e qualquer potência. Pois ser sujeito é natural a tudo o que se relaciona com outra coisa, como a potência se relaciona com o ato; e, também desta maneira, a

84 ARISTÓTELES. Sobre a Alma III, cap. 4, 429a13-429b09.

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substância espiritual, ainda que não possua matéria como parte de si, é ela própria um ente – ao modo como algo em potência pode ser sujeito de espécies inteligíveis.85

No que diz respeito à nomenclatura, Tomás usa várias terminologias e o sentido

pode variar de acordo com o contexto. No que diz respeito à nomenclatura “potência

específica”, também são usadas as expressões “potência simplesmente (simpliciter)”,

“possibilidade simpliciter”, “potência por natureza”, “possibilidade por natureza”,

“potência relativa” e “possibilidade relativa”. Assim também teremos como sinônimo de

“potência em si”, a “possibilidade em si”, a “potência absoluta”, “possibilidade

absoluta”, “potência pura”, “possibilidade pura”, “natureza de possível”, “razão de

possibilidade”, etc.

Daqui em diante, de nossa parte, para facilitar as exposições, mesmo quando

Tomás usar uma expressão diferente, nós padronizaremos a “potência em si” para se

referir à potencialidade da matéria genérica, dado que tem algum status real em termos

puramente potenciais. Contudo, quando não tiver correspondente real, como nos casos

que incluem os seres espirituais, passaremos a usar a expressão “possibilidade em si”.

No entanto, ambos se referem a uma “abrangência de potência/possibilidade” que

inclui todos os atos de ser que não são contraditórios. Por outro lado, para se referir à

“abrangência de potência da espécie”, usaremos “potência simpliciter” para os seres

contingentes e “possibilidade simpliciter” para os seres com necessidade simpliciter.

Veremos melhor essas modalidades adiante, mas manteremos o padrão de usar

“simpliciter” quando envolver apenas a espécie e “em si” quando envolver a

abrangência da não contradição.

Em suma, apresentamos o fundamento (ou “esqueleto”) da semântica, que são

as duas extensões da “abrangência da potência”: [1ª] extensão da espécie e [2ª]

extensão do princípio de não contradição. O possível simpliciter é qualquer coisa que

esteja contida na 1ª extensão e o possível em si é qualquer coisa que esteja contida na

85 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c.VIII, n. 39: “esse subiectum non consequitur solum materiam quae est pars substantiae, sed universaliter consequitur omnem potentiam. Omne enim quod se habet ad alterum ut potentia ad actum, ei natum est subiici. Et per hunc etiam modum spiritualis substantia, quamvis non habeat materiam partem sui, ipsa tamen prout est ens secundum aliquid in potentia, potest subiici intelligibilibus speciebus.”

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2ª extensão. A 1ª extensão é relacionada à essência ou natureza da espécie com suas

potencialidades, de modo que se refere a possibilidades tratadas como ontológicas e

reais fora da mente. Já a 2ª se refere a tudo o que não é contraditório, que é uma

abrangência geral e universal, de modo que tudo o que é possível em si deve estar

dentro dessa abrangência. Essa abrangência pode ser tratada como uma potência real e

externa à mente apenas quando se refere à matéria prima generalíssima (enquanto

potência passiva) e quando se refere a Deus (enquanto potência ativa, ou apenas puro

ato). Em meio a essa estrutura básica, apresentamos também a semântica da

possibilidade, que ficará mais clara ao compararmos com a semântica da

impossibilidade do tópico seguinte.

2.2 Investigação acerca da Semântica da Impossibilidade

Diante do que já foi exposto relacionado à possibilidade, agora estamos em

condições de falar a respeito da impossibilidade e, assim, aprofundar o assunto.

Verificaremos um duplo sentido de “impossível” que permite a verdade da sentença

“Para Deus nada é impossível”, pois há impossíveis que Deus pode realizar e impossíveis

que nem sequer pode passar pela mente de Deus. De fato, veremos a defesa radical

tomista de que o impossível em si (que envolve o absurdo lógico ou o contraditório)

nem sequer é concebível por qualquer intelecto, a não ser como um engano.

Ao tratar da onipotência divina, Tomás apresenta a noção de “impossibilidade

em si”, que seria dada por tudo o que está fora da abrangência do que é permitido pelo

Princípio de Não Contradição, de modo que assim se determina a abrangência absoluta

de todas as possibilidades. Desse modo, algo contraditório não pode ser considerado

como uma potência ativa, ou seja, nem sequer chama-se “potência”:

Deve-se notar que uma coisa é considerada impossível, não em relação a qualquer potência, mas em si mesmo, em razão da exclusão mútua (discohaerentiae) de termos. Ora, toda essa exclusão mútua corresponde a alguma oposição: e toda oposição denota afirmação e negação, como é provado em Metafís. x, 4, de modo que todas as impossibilidades deste tipo implicam a exclusão mútua de uma

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afirmação e uma negação. Que isso não pode ser atribuído a qualquer potência ativa é provado da seguinte maneira. Toda potência ativa é consequência da atualidade e entidade da coisa à qual pertence. Ora, todo agente tem uma tendência natural de produzir o mesmo de si: portanto todo ato de uma potência ativa termina em ser. (...) Ora, afirmação e negação serem verdade ao mesmo tempo não pode ter a natureza do ser, nem mesmo do não-ser, já que o ser remove o não-ser, e o não-ser remove o ser, consequentemente, não pode ser nem o principal nem o secundário termo de ação de uma potência ativa. 86

Tudo o que está dentro dessa abrangência permitida pelo princípio de não-

contradição constitui o conjunto da “possibilidade em si”, e tudo o que está fora seria

impossível em si. Isso é interessante porque, mesmo com a onipotência divina, nem

Deus seria capaz de realizar algo que é impossível em si, pois Ele não pode fazer “sim” e

“não” serem verdadeiros ao mesmo tempo, nem qualquer daquelas coisas que

envolvem tal impossibilidade. A onipotência divina é a potência ativa de realizar tudo o

que é possível em si. “Não é dito que ele é incapaz de fazer essas coisas por falta de

potência, mas por falta de possibilidade, tais coisas sendo intrinsecamente impossíveis: e

isto é o que quer dizer quando alguns dizem que 'Deus pode fazê-lo, mas não pode ser

feito'”.87 Neste ponto, é importante esclarecer um detalhe com Edmund Morton:

Quando St. Tomás fala sobre o possível na relação com o poder de

Deus, ele se vale do segundo tipo de possibilidade que ele chama de

possibilidade absoluta. A possibilidade absoluta consiste na

compatibilidade entre os termos envolvidos (habitudo terminorum).

Até mesmo Deus não pode executar uma ação que resulte em

contradição. Isto soa, a princípio, como se alguma restrição fosse posta

ao poder de Deus. Antes de Deus poder agir, parece haver uma

sequência de leis a priori que governam Sua ação. Soa também como

se os proponentes da fórmula ‘ens est id quod est uel esse potest’

estivessem corretos, pois soa como se você devesse primeiro ter

possibilidade antes de poder ter ser [before you can have being], 86 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a. 3, co.: “Sciendum est ergo quod impossibile quod dicitur secundum nullam potentiam, sed secundum se ipsum, dicitur ratione discohaerentiae terminorum. Omnis autem discoherentia terminorum est in ratione alicuius oppositionis; in omni autem oppositione includitur affirmatio et negatio, ut probatur X Metaph.; unde in omni tali impossibili implicatur affirmationem et negationem esse simul. Hoc autem nulli activae potentiae attribui potest; quod sic patet. (...) Hoc autem quod est affirmationem et negationem esse simul, rationem entis habere non potest, nec etiam non entis, quia esse tollit non esse, et non esse tollit esse: unde nec principaliter nec ex consequenti potest esse terminus alicuius actionis potentiae activae.” 87 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a. 3, co.: “Nec hoc dicitur non posse facere propter defectum suae potentiae: sed propter defectum possibilis, quod a ratione possibilis deficit; propter quod dicitur a quibusdam quod Deus potest facere, sed non potest fieri.”

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porém não é assim que Tomás argumenta, absolutamente. Ele

argumenta que esta ou aquela coisa é possível por causa do poder de

Deus, não porque a coisa seja possível e, então, Deus possa fazê-lo.88

Lendo esse texto, é importante destacar que a “abrangência da possibilidade em

si” não tem um ser independente ou anterior a Deus. Como já mencionamos, a potência

ativa de Deus segue o princípio de não contradição, porque isso pertence à natureza

mesma de qualquer ser intelectual. Ora, supondo um intelecto tão absoluto que não

houvesse nada acima dele, a consideração máxima da “possibilidade em si” será a

própria natureza deste intelecto. Assim, quando segue o princípio de não contradição,

não é o caso que Deus esteja seguindo algo de fora dele, mas Ele está seguindo a sua

própria essência divina. Nessa linha, temos o comentário de Smith:

Alguém pode se inclinar a pensar que sua posição, de Tomás de

Aquino, permite a possibilidade de Deus conhecer e querer

diferentemente daquele modo segundo o qual dois mais dois resulte

em quatro. Absolutamente que não. Deus não pode fazer isso. A razão

porque Deus não pode é Ele próprio. Sua própria essência, conhecida e

querida por Ele como imitável do modo como dois mais dois resulta

em quatro, ela é o porquê de dois mais dois não poder não resultar em

quatro.89

Uma vez esclarecido isso, num primeiro momento, a impossibilidade parece ser o

nível modal alético que é mais difícil de representar em termos do diagrama. No

entanto, basta compreendermos que esssa modalidade envolveria os atos que ficaram

de fora da potencialidade.

88 MORTON, E. W. The Nature of the Possible According to St. Thomas Aquinas, p. 187. 89 SMITH, G. Avicenna and the Possibles. p.352

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Com o diagrama da esquerda, identificamos que outros atos são impossíveis para

aquele gênero (ou espécie), porque o Ato Necessário cobre toda a potencialidade, de

modo que qualquer ato além desse Ato 1 é um ato impossível para aquela potência.

Assim seria o impossível para Deus, pois Ele realiza tudo o que é possível em si, de modo

que qualquer coisa além da abrangência de seu poder é impossível em si mesmo. Do

lado direito, temos a representação dos casos em que a impossibilidade envolve algo

que está além da potência da espécie, como voar está além da espécie humana, de

modo que é impossível ser realizado por qualquer indivíduo humano. Tomás considera

que há três maneiras pelas quais se diz que algo é impossível:

Por conseguinte, existem três maneiras pelas quais se diz ser impossível que algo seja feito. Primeiro, em razão de um defeito na potência ativa, seja na transformação da matéria ou de qualquer outra forma. Em segundo lugar, por causa de um resistente ou um obstáculo. Em terceiro lugar, porque o que é dito ser impossível não pode ser o termo de uma ação. Aquelas coisas, então, impossíveis à natureza no primeiro ou no segundo modo são possíveis a Deus: porque, uma vez que sua potência é infinita, não está sujeita a nenhum defeito, nem há qualquer matéria que Ele não possa transformar à vontade, já que seu poder é irresistível. Por outro lado, aquelas coisas que envolvem o terceiro tipo de impossibilidade, Deus não pode fazer, visto que Ele é um ato supremo e um ser soberano e, portanto, Sua ação não pode terminar senão principalmente no ser e consequentemente no não-ser.90

Desconsiderando o segundo modo, que envolve um impedimento provocado

pelo meio, Tomás apresenta duas considerações de impossibilidade. Da terceira

maneira, a coisa é impossível porque está fora da “possibilidade em si”, sendo

contraditório ou absurdo, por exemplo, como “círculo quadrado” ou o “subir para

baixo”, e esse seria o impossível em si, representado nesse diagrama:

90 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a. 3, co: “Sic ergo aliquid dicitur impossibile fieri tribus modis. Uno modo propter defectum activae potentiae, sive in transmutando materiam, sive in quocumque alio; alio modo propter aliquod resistens vel impediens; tertio modo propter hoc quod id quod dicitur impossibile fieri, non potest esse terminus actionis. Ea ergo quae sunt impossibilia in natura primo vel secundo modo, Deus facere potest. Quia eius potentia, cum sit infinita, in nullo defectum patitur, nec est aliqua materia quam transmutare non possit ad libitum; eius enim potentiae resisti non potest. Sed id quod tertio modo dicitur impossibile, Deus facere non potest, cum Deus sit actus maxime, et principale ens. Unde eius actio non nisi ad ens terminari potest principaliter, et ad non ens consequenter.”

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Da primeira maneira, uma coisa é impossível porque está fora da razão da

espécie a qual pertence, como “Um ser humano voar com o próprio corpo”, que seria a

impossibilidade simpliciter. Trata-se de algo impossível para uma espécie, como a

espécie humana, mas possível para outra espécie, no caso, alguma espécie de ave. Essa

impossibilidade simpliciter seria representada por esse diagrama:

Assim, o curioso é que, graças a noção de “possibilidade em si”, podemos

identificar coisas que são mais impossíveis do que outras:

Resposta à Quarta Objeção. A privação, como tal, não é suscetível de graus, mas pode ser em relação à sua causa: assim, um homem que perdeu um olho é mais cego do que aquele que é impedido de ver por alguma doença ocular. Da mesma forma, aquilo que é impossível em si mesmo pode ser considerado mais impossível do que uma coisa que é impossível simpliciter.91

Vê-se nessa citação a base para a nomenclatura que preferimos usar como

padrão nesta tese para todas as modalidades: em si e simpliciter. Este ponto a respeito

da impossibilidade é importante para esclarecermos em que sentido está a frase “para

Deus nada é impossível” segundo Tomás de Aquino. É evidente que Tomás considerará o

91 AQUINO, Tomás de. De Pot., q. 1, a 3, ad sed 4: “privatio non recipit magis et minus secundum se; potest tamen recipere secundum causam; sicut aliquis dicitur magis caecus qui habet oculum erutum, quam cuius visus impeditur propter aliquem humorem impedientem: et similiter dicitur magis impossibile quod est secundum se ipsum impossibile, quam quod est simpliciter impossibile.”

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impossível dessa frase no sentido simpliciter, mas como ele poderia responder caso

alguém insistisse que o texto se refere ao impossível em si? Será que somos capazes de

conceber intelectualmente absurdos lógicos que afirmam e negam do mesmo sobre o

mesmo? É evidente que tal posição é problemática e é passível de discussão, mas Tomás

se posiciona a respeito dessa pergunta:

Uma palavra não é apenas pronunciada pelos lábios, mas também é concebida na mente. Ora, a mente não pode conceber sim e não como sendo verdade ao mesmo tempo (Metafís, iv, 3) e, portanto, não pode conceber nada em que isso esteja envolvido. Por outro lado, uma vez que, de acordo com o filósofo, as opiniões contrárias envolvem declarações contrárias, segue-se que a mesma pessoa teria opiniões contrárias ao mesmo tempo. 92

Sendo assim, para Tomás, o impossível em si é algo que nem sequer é passível

de ser concebido por qualquer intelecto, nem mesmo o de Deus: “Nem isto vai contra as

palavras do Anjo: ‘Porque para Deus nada é impossível’. Pois, o contraditório, não

podendo ser conceito, nenhum intelecto pode concebê-lo.”93 Uma vez que o impossível

em si não seria concebível por qualquer intelecto e Deus cria as coisas segundo o seu

Intelecto Supremo, quando o anjo usa a palavra “impossível”, este anjo não poderia

estar falando algo a respeito do qual nem sequer Deus concebe. Assim, o anjo somente

poderia estar dizendo que para Deus nada é impossível simpliciter. Enfim, Tomás possui

uma tese forte de que nem sequer concebemos94 o impossível em si.

Neste tópico, vimos que a impossibilidade simpliciter é aquela que está além da

natureza específica e a impossibilidade em si é a que está além de qualquer

possibilidade. Deus pode fazer o impossível simpliciter de alguma natureza específica,

mas não o impossível em si, que nem sequer é concebível por qualquer intelecto.

92 AQUINO, Tomás de. De Pot., q. 1, a 3, ad sed 1: “(...) verbum dicitur non solum quod ore profertur, sed quod mente concipitur. Hoc autem quod est affirmationem et negationem esse simul veram, non potest mente concipi, ut probatur IV Metaph., et per consequens nec aliquid eorum in quibus hoc includitur. Cum enim contrariae opiniones sint quae sunt contrariorum, secundum philosophum, sequeretur eumdem simul habere contrarias opiniones (...)” 93 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 25, a. 3, co: “Neque hoc est contra verbum Angeli dicentis, non erit impossibile apud Deum omne verbum. Id enim quod contradictionem implicat, verbum esse non potest, quia nullus intellectus potest illud concipere.” 94 Alguns poderiam discordar disso, principalmente os estudiosos da paraconsistência. De fato, essa defesa tomista é pesada e exige maiores esclarecimentos, mas não teremos condições de detalhar nesta tese. Teremos que deixar para futuras pesquisas. Por enquanto, basta identificarmos que esse é o possicionamento de Tomás de Aquino a respeito do assunto.

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2.3 Investigação acerca da Semântica da Contingência

Prosseguindo nas modalidades aléticas, é importante apresentar como se dá a

contingência, pois logo após seremos capazes de apresentar elementos fundamentais

para compreender a necessidade. Assim, primeiro apresentaremos a contingência em

relação à natureza específica, pois é a mais canonicamente determinada, que

convencionaremos chamar de “contingência simpliciter”. No entanto, por paridade com

aquilo que viemos falando até aqui, será necessário falar também da contingência em

relação à matéria prima generalíssima, que possui a mesma extenção da abrangência do

princípio de não contradição, que chamaremos de “contingência em si”.

Como já dissemos, os termos latinos “essentia” e “substantia” permitiram que

Tomás se expressasse melhor do que Aristóteles, que somente tinha o termo “οὐσία”

no grego. Agora, o termo “contingente” é mais uma vantagem do latim sobre o grego.

Esse termo vem do verbo latino “contingere”, cujo significado é “acontecer” ou

“ocorrer”. Dessa maneira, o particípio presente “contingens”, origem do termo

“contingente” no português, poderia ser literalmente traduzido como o “acontecente”

ou “ocorrente”, enfim, “aquilo que ocorre ou acontece”. Nesse sentido, desde a sua

origem, o termo expressa a noção de um “possível que ocorre”.

Dessa maneira, Aristóteles separava com dificuldades expressivas os dois

sentidos de “possível”, a saber: “possível que não ocorre no momento” ou “possível que

ocorre no momento”. Por outro lado, Tomás tem maior facilidade ao usar o termo

“contingente” nesse sentido de “possível que ocorre”, principalmente quando ele trata

dos “futuros contingentes”95. Contudo, também há momentos em que Tomás parece

usar “possível” e “contingente” como sendo sinônimos, como é o caso da Terceira Via

na demonstração da existência de Deus. De nossa parte, usaremos o termo

“contingente” como o “possível que ocorre” para facilitar as exposições.

Neste sentido, para distinguirmos a possibilidade da contingência, basta darmos

mais ênfase na abrangência da potência para nos referirmos à possibilidade e mais

95 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 14, a. 13.

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ênfase na atualização para nos referirmos à contingência. Dessa maneira, “possível” é

todo aquele que está dentro de uma abrangência de potência, enquanto “contingente”

é uma realização parcial de alguma abrangência de potência. Trata-se de uma realização

parcial porque a atualização do indivíduo não completa toda a abrangência da potência

da espécie que está em questão. Assim, a contingência envolve a relação entre espécie e

indivíduo, mas para compreender essa relação, precisamos saber qual é o status

ontológico da espécie.

Considerando a relação de potência e ato, a unidade da espécie não possui uma

existência em ato na realidade por si mesma independentemente dos indivíduos, se não

cairíamos nas ideias platônicas, o que Tomás evita. Só atribuimos ao aspecto comum

uma atualização imperfeita, o actus essendi, o ato de ser, por ainda faltar a individuação.

Não se trata de um ser por si ainda, mas de um ser enquanto comum em muitos

indivíduos, ou ainda, um ser em potência para existir individualmente. O ser do comum

é apenas um ser em indivíduos. Eis a distinção entre ser per se e ser per accidens:

É necessário que aquilo que é per accidens seja reduzido àquilo que é per se. E, em tudo que se faz por mutação ou movimento, o que se faz é aquele ente per se. O ente, no entanto, tomado em sua comunidade, faz-se per accidens, não se cria a partir de um não-ente, e sim de algo que não é isto, pois utilizando-se do exemplo de Aristóteles, seria como se um cão se fizesse a partir de um cavalo: aquilo que é cão se cria per se, mas aquilo que é animal não se cria per se, e sim per accidens, visto que animal ele já era anteriormente [na ordem da natureza].96

Decidimos manter a expressão latina para não se confundir “per accidens” com a

categoria dos acidentes. De fato, “per se” se refere a um modo de ser ou existir integral

e independente, mas o ser per accidens daquilo que é comum envolve, na verdade, um

misto entre ato e potência exatamente na medida em que o comum tem ato em função

de outro que especifica ou individua. Em suma, o indivíduo tem ser por si, mas o comum

(da espécie ou gênero) tem ser em função ou tem ser por outro. Ora, esse “comum”, do

96 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. IX, n. 49: “Necesse est quod per accidens est, in id reduci quod per se est. In omni autem quod fit per mutationem vel motum, fit quidem hoc vel illud ens per se, ens autem communiter sumptum per accidens fit; non enim fit ex non ente sed ex non ente hoc; ut si canis ex equo fiat, ut Aristotelis exemplo utamur, fit quidem canis per se, non autem fit animal per se, sed per accidens, quia animal erat prius.”

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qual somente faz sentido falar em função da individuação, é exatamente a essência

deste ser.

De fato, só faz sentido falar aristotelicamente de “essência na realidade” se for

para concebê-la como parte constitutiva do indivíduo. Quando a atualização do

indivíduo não completa toda a sua essência, este indivíduo é tratado como contingente.

Nos textos tomasianos, é importante observar que encontramos também os termos

“quididade” e “natureza”, mas que são sinônimos de “essência”. O uso dos termos pode

variar de acordo com o contexto ou a finalidade, que não afeta a exposição desta tese.

Sendo assim, para facilitar, usaremos apenas o termo “essência”.

Neste ponto, é útil para nossos propósitos a Árvore de Porfírio Adaptada que

fizemos anteriormente. Primeiramente, precisamos levar em consideração as intenções

lógicas de gênero, espécie e diferença específica e como essas intenções se relacionam

com as noções de potência e ato, essência e ser. Assim, todo gênero está em potência

para se especificar e a diferença específica é o ato da especificação, alcançando a

ocorrência do ser da espécie. Por exemplo: o gênero “animal” está em potência para se

especificar e o ato ou a realização da especificação é dado pela diferença “racional”,

onde alcançamos a definição “animal racional”, que é o mesmo que a espécie “homem”

ou “ser humano”. Da mesma maneira, toda espécie está em potência para se

individualizar e a matéria assinalada é o princípio de individuação, alcançando a

ocorrência do ser do indivíduo. Por exemplo: a espécie “homem” está em potência para

se individualizar e o ato ou a realização da individuação é dado pela matéria individual,

onde alcançamos “Sócrates”, “Platão” ou “Aristóteles”.

É impossível que haja multiplicação senão pela adição de alguma diferença – como se multiplica a natureza genérica nas espécies – ou pela forma ser recebida em diversas matérias – como se multiplica a natureza específica em diversos indivíduos.97

Tanto no processo de especificação quanto no de individuação, temos um

afunilamento em que se passa de uma essência mais comum para um ser menos

97 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 53: “impossibile est, ut fiat plurificatio alicuius nisi per additionem alicuius differentiae, sicut multiplicatur natura generis in species, vel per hoc quod forma recipitur in diversis materiis, sicut multiplicatur natura speciei in diversis individuis.”

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comum até alcançar o termo que é o ser do indivíduo. Em razão do afunilamento, algo é

atribuído a uma espécie em razão do ser e algo é atribuído ao gênero em razão da

essência, onde a essência seria o “conjunto” maior e o ser o “conjunto” menor:

Nada é atribuído a um gênero em razão do seu ser, mas em razão da sua quididade [essência]; e isso fica claro a partir do fato de que o ser de uma coisa é próprio dessa coisa e distinto do ser de qualquer outra coisa: enquanto a essência pode ser comum. Por isso, o Filósofo (Metaf. II, 3) diz que o ser não é um gênero. 98

Olhando para a Árvore de Porfírio no tópico 2.1, é fácil verificar que o gênero é

mais abrangente que a espécie, pois há muitas coisas que podem estar contidas no

gênero, mas não estariam na espécie. Considerando a potência para se especificar e o

ato da especificação, segue-se que a potência é mais abrangente que o ato, ou a

essência é mais abrangente que o ser. Sendo assim, a melhor descrição ontológica de

um ente contingente ocorre nos seguintes termos:

Abaixo dessas substâncias, há um terceiro grau de substâncias: a dos corpos corruptíveis, que possuem em si a matéria de tal modo, que ela é um ente somente em potência. Mas toda a potencialidade da matéria não é completada por uma forma única de que esta é sujeito, de tal modo que ela permanece em potência para outras formas. 99

No ser contingente suscetível de corrupção, a atualização de uma forma

específica não completa a potencialidade correspondente à matéria genérica. O Modelo

Potencialista aqui proposto apoia-se nessa e em outras passagens, por onde teremos

um novo modelo da semântica para as modalidades aléticas. Assim, as modalidades

aléticas da contingência e necessidade são baseadas no fato de uma atualidade

completar ou não completar a potencialidade. O mesmo ocorre da espécie para o

indivíduo. Daí que deve haver mais atos para que a potência seja completada. Veja esse

esquema de chaves para representar essa compreensão da contingência:

98 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 7, a. 3, co.: “... nihil ponitur in genere secundum esse suum, sed ratione quidditatis suae; quod ex hoc patet, quia esse uniuscuiusque est ei proprium, et distinctum ab esse cuiuslibet alterius rei; sed ratio substantiae potest esse communis: propter hoc etiam philosophus dicit, quod ens non est genus.” 99 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 41.: “Sub his vero substantiis est tertius substantiarum gradus, scilicet corruptibilium corporum, quae in se ipsis huiusmodi materiam habent, quae est ens in potentia tantum; nec tamen tota potentialitas huiusmodi materiae completur per formam unam cui subiicitur, quin remanet adhuc in potentia ad alias formas.”

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É importante enfatizar que estamos considerando apenas o nível da relação

entre espécie e indivíduo na região sublunar. A espécie, que tem potência para se

individualizar, recebe o ato da individuação através da matéria assinalada, que é o

princípio de individuação das espécies. Quando uma potencialidade de uma espécie não

é completada pela atualidade ou realização dos indivíduos dessa espécie, temos uma

contingência. Se não é completada, então a essência da espécie se mantém aberta para

outros seres individuais. O interessante é que isso afeta o nosso conhecimento sobre as

coisas, como atesta Enrique Alarcón:

O principal problema para obter tal conhecimento é que, uma vez que somos animais, a maior parte dos objetos que se apresentam para nosso conhecimento são contingentes, quer dizer, podem ser de um modo ou de outro. Por isso podemos nos equivocar, porque as coisas poderiam ser distintas de como as pensamos. E, se advertimos que podemos nos equivocar, então carecemos de certeza. Assim, pois, o conhecimento perfeito requer acertar com o verdadeiro e, ademais, eliminar toda possibilidade de erro. Isto explica porque no simples e sem alternativas tampouco há erro.100

De fato, deixar possibilidades em aberto é exatamente o que provoca em nós um

saber incerto sobre esses indivíduos contingentes. Por exemplo, um homem pode se

confundir pensando que um determinado cão é realmente o pet dele, quando, na

verdade, era outro da mesma raça ou espécie. Essa possibilidade de erro e confusão é

exatamente porque há muitos indivíduos cães daquela raça ou espécie. Se o cão da

espécie fosse único, não haveria margem para erros. Se todos os cães da raça fossem

dele, também não haveria margem para erros (pelo menos, a respeito de ele ser ou não

ser dono do cão em questão). O problema é que não é possível esgotar todos os

indivíduos contingentes de uma espécie.

100 ALARCÓN, Enrique. La Dimensión Modal del Conocimiento, p. 256.

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Para sermos mais específicos, a potência específica continuará aberta, mesmo se

considerarmos todos os contingentes atuais, por isso usei as reticências no diagrama

anterior. Mesmo considerando todos os indivíduos existentes agora de uma espécie,

por exemplo, todos os indivíduos da espécie humana, nós sabemos que estes indivíduos

não completam toda a potência da essência, no caso da humanidade. A evidência disso

é o fato de que há indivíduos da espécie humana além dos atualmente existentes, como

é o caso dos que morreram (se corromperam) e dos que nascerão (serão gerados). Eis

que surge então o papel da geração e da corrupção nos seres contingentes sublunares.

Observe-se que usei o verbo “há” no presente, mesmo quando me referi a

indivíduos passados e futuros, uma vez que tenho a intenção de que esse verbo seja

tratado como um verbo gnômico, isto é, que trata de algo atemporal ou considerando

todos os tempos de uma só vez. Assim, o tempo se torna irrelevante em nossas análises

e nos afastamos do Modelo Estatístico de Frequência Temporal.

Em suma, tratamos como “contingentes” os indivíduos listados como existentes

atualmente que não são os únicos, de modo que há sempre a possibilidade em aberto

da existência de outros, no passado ou futuro. Para completar toda a lista dos seres

contingentes, não será suficiente citar aqueles que são atualmente existentes, pois

ainda haveriam os passados e os futuros. Portanto, os entes contingentes sublunares

são potencialmente infinitos exatamente por causa do processo de geração e corrupção

(destruição) que ocorre com eles. Deve-se considerar também que, ao serem gerados,

eles são individualizados pela matéria assinalada sob dimensões determinadas, que é

incognoscível e potencialmente infinita. Na medida em que é incognoscível, não

conseguimos distinguir intelectualmente a matéria individual de Sócrates da matéria

individual de Platão, tornando totalmente indeterminada a quantidade concebível de

indivíduos na espécie humana. A matéria também é potencialmente infinita, pois as

suas dimensões podem ser acrescidas ou decrescidas indefinidamente. Dessa maneira,

nunca teremos uma lista completa de indivíduos contingentes de uma espécie, deixando

a potência da espécie sempre em aberto para novos indivíduos.

Partindo de um dado experimental que qualquer ser humano pode ter pela

simples observação do mundo ao nosso redor, sabemos que há entes que são gerados e

entes que são destruídos continuamente. Sendo assim, geração e corrupção são dados,

antes de tudo, experimentais pelos nossos cinco sentidos. Suposto que há geração e

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corrupção de alguns entes, cabe a nós, agora, descrever a estrutura ontológica que faz

com que eles sejam geráveis e corrompíveis. Assim, uma vez que os seres contingentes

são geráveis e corruptíveis consideramos relevante que, antes de encerrarmos este

tópico, façamos uma descrição detalhada do processo de geração e corrupção. Assim,

enfatizaremos esse aspecto dos contingentes e teremos uma oportunidade de

apresentar os aspectos da Física hilemorfista que vem de Aristóteles. Em última análise,

os aspectos cosmológicos gerais nos levarão à noção de “contingência em si”.

No entanto, antes disso, esses aspectos cosmológicos gerais podem suscitar a

ideia de que está tudo determinado necessariamente pela sequência da natureza.

Assim, precisamos enfatizar junto com Maritain que a sequência geral da natureza

produz apenas uma necessidade de fato nos eventos, no sentido de que aquilo que

ocorre necessariamente ocorre quando ocorre, tal como já vimos antes no tópico 1.2.

Essas são as palavras de Maritain:

(...) Nós devemos reconhecer que a contingência simples de um evento (eu não digo sua liberdade, que é uma forma especial de contingência) é inconsistente com o primeiro tipo de necessidade [,que é uma necessidade por essência ou por direito], mas é compatível com a segunda [,que é a necessidade de um fato atual]. Um evento pode ser determinado ou necessitado num fato atual por seus antecedentes e ainda será contingente a partir do momento em que seus antecedentes em si mesmos poderiam ter sido outros [diferentes] do que eles foram.101

Uma vez compreendido isso, comecemos a analisar melhor essa estrutura

ontológica dos contingentes. Tomás afirma que o “ato do qual a matéria prima está em

potência é a forma substancial. Portanto, a potência da matéria é nada mais do que a

sua essência”102, isto é, ser “potencial” é a essência da matéria, é o que define a matéria

prima enquanto tal. Sendo assim, a matéria comum genérica será relacionada ao que é

potência para ser, isto é, a essência, enquanto a forma daria o ato da diferença

específica e seria a causa do ser específico103 de uma matéria comum. Dessa maneira,

como pura potência, a matéria comum não tem atualidade por si mesma, mais só o tem

ato em função da forma.

101 MARITAIN, J. (1942). Reflections on Necessity and Contingency, p. 27. 102 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q.77, a.1, ad. 2: “actus ad quem est in potentia materia prima, est substantialis forma. Et ideo potentia materiae non est aliud quam eius essentia.” 103 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 44, a.2, co. / S. Th. I, q. 50, a. 2, ad 2. / S. Th. I, q. 76, a. 5, arg. 3. et ad 3

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A matéria, porém, segundo o que é, está em potência para a forma. Logo, é forçoso que, segundo considerada em si, esteja em potência para a forma de todos aqueles dos quais é matéria comum. Contudo, não se faz em ato, a não ser que seja por aquela forma. Permanece, então, em potencia quanto à todas as outras formas.104

Por essa razão, Beltrán afirma que “a causa material, enquanto é intrínseca e

necessária à natureza das substâncias físicas, é pleiteada como um fator potencial e

indeterminado, que não pode ser assimilado de nenhuma maneira à ordem das causas

em ato”105 e D’Arenzano afirma que a matéria goza “de certa indeterminação”106. Sendo

indeterminada por si mesma, a matéria sustenta a indeterminação do mundo. Para

entender isso, precisamos analisar três teses acerca da matéria no hilemorfismo107, a

saber: [1] a matéria é potencial para muitas formas108; [2] a matéria é a parte que serve

de sujeito109 para transmutar-se através do ser das formas, as quais também mudam

nos compostos substanciais; [3] a matéria não possui nenhum ato em si mesma (ela é

pura potência)110. A tese 1 afirma que a matéria, enquanto potencial, deve ser

considerada como tendo uma unidade que é comum a muitos atos, ou muitas formas. A

unidade da “potência da matéria” está em função de muitos “atos de formas”, de modo

que a matéria é diferenciada no ser pela diversidade destes muitos atos de ser das

formas. Isso estaria de acordo com a tese 2, pois a matéria é sujeito na medida em que

poderia se transmutar de acordo com a multiplicidade das formas específicas. Somente

será possível entender bem como a matéria é sujeito de transmutação quando

tratarmos de seu papel no processo de geração e corrupção. Por fim, uma vez que a

104 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 66, a. 2, co.: “Materia enim, secundum id quod est, est in potentia ad formam. Oportet ergo quod materia, secundum se considerata, sit in potentia ad formam omnium illorum quorum est materia communis. Per unam autem formam non fit in actu nisi quantum ad illam formam. Remanet ergo in potentia quantum ad omnes alias formas.” 105 BELTRÁN O.. La Doctrina de la Contingencia en la Naturaleza Según los Comentarios del Card. Cayetano y S. Ferrara, p. 66. 106 D’ARENZANO I.. Necessità e Contingenza Nell’aggire Della Natura Secondo San Tommaso, p. 58. 107 A teoria aristotélica de que a substâncias corpóreas são compostas de matéria (do grego ὕλη , hylé) e forma (do grego μορφή, morfé). 108 AQUINO, Tomás de. S.C.G. III, c. 86, n. 1: “materiam, quae est in potentia ad plures formas” / S. Th. I, q.7, a.1, co. 109 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 75, a. 5, ad 2.: “subiici et transmutari convenit materiae secundum quod est in potentia.” / S. Th. I, q. 27, a. 2, arg. 1. 110 AQUINO, Tomás de. S.C.G. I, c. 17, n. 7 - “Sic etiam Deus et materia prima distinguuntur, quorum unus est actus purus, aliud potentia pura, in nullo convenientiam habentes.” / S.Th. I, q. 115, a. 1, ad 2.

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matéria comum tem ser apenas pela forma, que a diversifica, e nunca em si mesma,

estaremos de acordo com a tese 3.

Assim, o que torna possível um ente individual ser destruído é o fato de que a

matéria comum presente nele sempre permanece em potência para outra forma. Por

exemplo, uma estátua de ouro somente pode ser corrompida para gerar uma cadeira de

ouro, na medida em que a matéria genérica “de ouro” tem a sua abrangência da

potência parcialmente atualizada pela forma específica da “estátua”, mas a potência da

matéria permanece parcialmente em aberto para receber o ser específico da forma da

cadeira. Se não houvesse matéria comum como base de sustentação, que Tomás chama

de “sujeito” e que permanece aberta em potência para outra atualização, não poderia

haver o movimento de geração e corrupção. Ora, observamos por experiência que

existe a geração e corrupção das substâncias. Logo, a potencialidade da matéria deve

ser mais abrangente do que a atualização da forma. Vejamos o esquema abaixo:

No esquema acima, representamos com um retângulo a matéria que é como

pura potência. Dessa maneira, podemos verificar como ela permanece sendo a mesma

e, por isso mesmo, ela serve de sujeito, isto é, uma base de fundamentação para a

geração e corrupção. Os quatro primeiros círculos da esquerda representam o processo

de geração de um primeiro ente e, apesar de fazermos essa distinção em quatro passos

para facilitar a compreensão, esses quatro passos ocorreriam simultaneamente na

realidade concreta. O quinto e o sexto círculos representam o processo de corrupção,

onde se vê que, quando se perde o ser da forma, também se perde o ser do indivíduo.

Contudo, a matéria como pura potência não foi destruída nesse processo e serve de

sujeito para um novo processo de geração de outro ser, representado pelos últimos

quatro círculos. E assim se segue indefinidamente, com a matéria sendo eterna, apesar

de sempre receber o ser a partir de alguma forma. Nesse sentido, continua Tomás:

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Ora, a natureza do gênero se compara com a da espécie, sobretudo como princípio material; porque a natureza do gênero se deduz do que é material na coisa, ao passo que a da espécie, do que é formal; assim, a noção de animal se tira do sensitivo; a do homem, do intelectivo. E daí vem que a última tendência da natureza é para a espécie, não, porém, para o indivíduo nem para o gênero; porque a forma é o fim da geração; ao passo que a matéria existe pela forma.111

Como a potência da matéria comum é genérica e o ato da forma causa a

diversidade específica (além disso, a forma é a causa do ser, do ato de ser genérico), o

ato da forma não completa a potência da matéria, de modo que a matéria permanecerá

em potência para outra forma, a qual dará outro ser112 para a matéria. Reforço que a

potência não é completada pelo ato, pois a abrangência da potência, isto é, a essência,

é genérica, enquanto a abrangência do ato de ser é específico, de modo que a

abrangência da essência material é maior do que o ser formal.

Sempre a origem da diferença constitutiva da espécie está para a origem do gênero como o ato, para a potência. (...) Todas as coisas pertencentes a um mesmo gênero devem ter também a mesma quididade ou essência genérica, que lhes é atribuída por atribuição essencial, mas diferem pelo ser; assim, não é o mesmo o ser do homem e a do cavalo, nem a de tal homem e a de tal outro. Por onde é necessário que, em todas as coisas de um mesmo gênero, difira o ser da essência.113

Entra em questão o segundo momento do afunilamento, que é o da

individuação. O aspecto comum existe “em cada um”, de modo que aquilo que é

comum somente tem ser em função da “individuação”. O princípio de individuação

111 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 85, a. 3, ad 4: “Sed natura generis comparatur ad naturam speciei magis per modum materialis principii, quia natura generis sumitur ab eo quod est materiale in re, ratio vero speciei ab eo quod est formale; sicut ratio animalis a sensitivo, ratio vero hominis ab intellectivo. Et inde est quod ultima naturae intentio est ad speciem, non autem ad individuum, neque ad genus, quia forma est finis generationis, materia vero est propter formam.” 112 AQUINO, Tomás de. S.C.G. II, c. 30, n. 7: “In quibus vero forma non complet totam potentiam materiae, remanet adhuc in materia potentia ad aliam formam.” S.C.G. Lib.III, c.20, n.3b “[...] vero forma non replet totam materiae potentiam: unde adhuc in materia remanet potentia ad aliam formam; et in alia materiae parte remanet potentia ad hanc formam” 113 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 5, co.: “Semper autem id a quo sumitur differentia constituens speciem, se habet ad illud unde sumitur genus, sicut actus ad potentiam. (...) omnia quae sunt in genere uno, communicant in quidditate vel essentia generis, quod praedicatur de eis in eo quod quid est. Differunt autem secundum esse, non enim idem est esse hominis et equi, nec huius hominis et illius hominis. Et sic oportet quod quaecumque sunt in genere, differant in eis esse et quod quid est, idest essentia.”

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Tomás defenderá que é a matéria assinalada ou individual114, de modo que haveria uma

relação recíproca entre matéria e forma, onde a forma especifica a matéria e esta, por

sua vez, depois de assinalada, individualiza a espécie.

A essência ou natureza, em si mesma, compreende somente o que entra na definição da espécie. Assim, a humanidade, em si mesma, compreende o que constitui a definição do homem e faz com que este seja o que é. A humanidade é, pois, o que faz o homem ser homem. Mas, a matéria individual, com todos os acidentes individuantes, não entra na definição da espécie; assim, a definição do homem não implica que ele tenha estas carnes e estes ossos, esta brancura e esta negrura, ou atributos semelhantes. Por isso, estas carnes e estes ossos, bem como os acidentes designativos de uma determinada matéria, não se incluem na humanidade. 115

Em suma, em cada geração e corrupção das substâncias haveria uma ordem

ontológica de atualizações. [1º] A matéria, que é puramente potencial estando num

âmbito genérico, não tem ser em si mesma, mas apenas pela forma (específica). [2º] A

atualização do ser é dada pela forma (específica), mas dá apenas um ser numa espécie,

da mesma maneira que, logicamente, o gênero se especifica através da diferença

específica. [3º] Ocorre então o composto da espécie em gênero próximo e diferença

específica intelectualmente, e em matéria comum genérica e forma comum específica

realmente. A matéria, numa espécie, terá um determinado grau de atualização

recebido em função da forma da espécie, mas seu grau de potencialização não será

totalmente abrangido por esta atualização. [4º] Com esse grau de atualização, a matéria

realiza a individuação da espécie em questão, de modo que a substância se torna esta

substância individual. O pronome demonstrativo “este” e “esta” indica individualidade.

Para mais informações, há o excelente trabalho de Errin D. Clark116, que fez análises

sobre o hilemorfismo e as potências na realidade.

114 Não pretendemos entrar em detalhes acerca do princípio de individuação. Neste artigo apenas consideremos que Tomás pressupõe que a matéria individual é o princípio de individuação. 115 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 3, co.: “essentia vel natura comprehendit in se illa tantum quae cadunt in definitione speciei, sicut humanitas comprehendit in se ea quae cadunt in definitione hominis, his enim homo est homo, et hoc significat humanitas, hoc scilicet quo homo est homo. Sed materia individualis, cum accidentibus omnibus individuantibus ipsam, non cadit in definitione speciei, non enim cadunt in definitione hominis hae carnes et haec ossa, aut albedo vel nigredo, vel aliquid huiusmodi. Unde hae carnes et haec ossa, et accidentia designantia hanc materiam, non concluduntur in humanitate.” 116 CLARK, E. D. The Cause of Causality in All Causes: Powers in Contemporary Metaphysics and Potentia in Thomas Aquinas. No tópico 3.3.3 deste texto de Clark, há uma exposição sobre o hilemorfismo.

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Dessa maneira, para fazermos um diagrama mais preciso a respeito da

contingência dos corpos sublunares, precisamos acrescentar ainda a “potência

absoluta” da matéria prima no diagrama. Assim, considerando que os indivíduos

contingentes são gerados e se corrompem, podemos representar melhor a estrutura

ontológica deles da seguinte maneira:

Ao analisarmos esse novo diagrama e, diante de tudo o que já foi exposto neste

tópico, podemos resumir todo o conteúdo nas linhas seguintes. Apesar de Tomás de

Aquino não usar as expressões “contingência simpliciter” e “contingência em si”, por

paridade lógica com as outras modalidades aléticas, há boas razões para aceitar tais

expressões. Assim, os corpos sublunares do sistema tomista seriam “contingentes

simpliciter”, dado que são contingentes em relação à espécie, mas também são

“contingentes em si”, isto é, em relação à potência em si da matéria prima

generalíssima. Essa consideração dos corpos sublunares como contingentes simpliciter e

em si nos auxiliará na distinção entre os corpos sublunares e os supralunares, dado que

estes últimos não serão simpliciter, mas apenas contingentes em si. Veremos como isso

se dá na modalidade da necessidade.

2.4 Investigação acerca da Semântica da Necessidade:

Nesse tópico, apresentaremos os assuntos mais polêmicos e discutíveis do

aristotelismo e do tomismo. As coisas que Aristóteles e Tomás entendem como sendo

necessárias já não são consideradas da mesma maneira nos tempos atuais. De fato, as

os corpos celestes são hoje entendidos como contingentes, enquanto anjos e Deus

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costumam ser relegados à fé religiosa. Contudo, não podemos perder o foco, que é

investigar como estes filósofos compreendiam a “necessidade” em termos de potência e

ato. Depois de ler, fica a critério do leitor, por conta própria, considerar os assuntos

como tendo contingência ou possibilidade, mas os filósofos clássicos em questão os

defendem como necessários e isso é uma oportunidade para investigar a necessidade.

Até agora, nós definimos a necessidade com o uso do quantificador universal, o

que não é impossível de ser feito aqui também, mas seguiremos por um caminho

diferente. De fato, com o quantificador universal, dizemos que todas as alternativas de

mundos possíveis são iguais e, assim, não há chances se errar a respeito desse assunto.

Assim também ocorre com “todo o tempo”, ou “sempre”, pois não há um tempo em

que eu possa errar. Saber que algo ocorre em “todos os casos” é ter um saber

necessário, porque não pode ser diferente do que é:

De fato, notemos que, em todos os casos acima aduzidos, o conhecimento certo e verdadeiro se dá quando o objeto só pode ser como é. E isto se dá porque, além do ser, não é possível o não-ser, nem como realidade nem como objeto de conhecimento. Este é o núcleo do principio de não contradição: a realidade atual é única e sem alternativa. O não-ser não pode ser uma alternativa atual a respeito do ser do que é.117

Veja que, nessa citação, Alarcón aponta que o necessário não pode ser diferente

do que é, mas ele vai além e já adianta a base da necessidade que nós defenderemos

nessa tese: a unicidade. Realmente, quando algo é único, não há alternativas em aberto.

Para sermos francos, talvez a unicidade até represente melhor a noção de

“necessidade” do que a quantificação universal. Digo isso porque a natureza das coisas é

determinada em função do uno, como defendeu M.I. George118, pois também o ente é

convertido ao uno, enquanto transcendental, como reforça D. Lusser119. Diante disso,

Alarcón acrescenta o seguinte:

Notemos agora que verdade e certeza se fundam precisamente no ser do ente, porém com aspectos diferenciados. A verdade é o que é. O certo é o necessário, e isto, explica santo Tomás, não é senão o determinado ao uno. De fato, é necessário aquilo que carece de alternativa e composição: o único e simples. (...) A certeza repousa

117 ALARCÓN, Enrique. La Dimensión Modal del Conocimiento, p. 265. 118 GEORGE, M. I.. Nature as ‘determinatio ad unum’: The Case of Natural Virtue, 2004. 119 LUSSER, D. (2009). ‘Ens et unum convertuntur’. A propos de la théorie de la substance chez Aristote (II). Revue Thomiste 109, 2, 195-218.

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sobre a unicidade do ser. Pois, realmente, temos certeza quando o conhecido “somente” é como é, ao menos em ato.120

Grosso modo, um transcendental é um termo que pode ser atribuído a qualquer

ser, mas terá graus diferentes. Entre os transcendentais, há o verdadeiro, o belo, o bom

e o uno. Assim, por exemplo, “bom” é um transcendental porque posso dizer que a casa

é bela, o céu é belo, a chuva é bela, Deus é belo, a mulher é bela, o cão é belo, mas

essas atribuições serão em graus diferentes, pois ninguém vai dizer que a mulher é tão

bela quanto o cão, ou quanto a Deus. Contudo, talvez, o transcendental “uno” será o

mais confuso deles, mas os graus de unidade se dão pela indivisão, de modo que quanto

maior a indivisão, maior o grau de unidade121. Assim, apesar de a quantificação universal

ter certa unidade, esta unidade será inferior ao que é único, de modo que a certeza

absoluta e necessária irá melhor repousar na unicidade do ser.

Nesse sentido, a necessidade de um indivíduo ocorre quando o indivíduo que

estiver em questão é o único indivíduo possível da espécie. Em outras palavras, a

atualização de um indivíduo sozinho é suficiente para completar toda a potência da

espécie122, e isso ocorre de tal maneira que podemos dizer que o indivíduo se identifica

com a própria espécie em que está inserido. No sistema tomista, os corpos celestes

supralunares (da Lua para cima, como o Sol, as estrelas e os planetas) teriam justamente

essa descrição ontológica e, por essa razão, eles são necessários. Aos se identificarem

com as espécies, os próprios indivíduos supralunares possuem uma necessidade

simpliciter, dado que, como veremos, ainda deixará a possibilidade em si em aberto:

Nada impede que as substâncias que existem somente em potência sejam distintas entre si, segundo são ordenadas a diversos gêneros de atos – modo pela qual a matéria dos corpos celestes se distingue da matéria dos elementos [sublunar]. De fato, a matéria dos corpos celestes está em potência para o ato perfeito, isto é, para a forma que completa toda a potencialidade da matéria, de modo que já não restaria potência para outras formas. Já a matéria dos elementos está

120 ALARCÓN, Enrique. La Dimensión Modal del Conocimiento, p. 266-267. 121 AQUINO, Tomás de. Super Sent. l, d.8, q. 1, a.3 co.: “unum addit [super ens] rationem indivisionis; et propter hoc est propinquissimum ad ens, quia addit tantum negationem”. 122 AQUINO, Tomás de. S.C.G. III, c.20, n.4: “Nam quorundam ex materia et forma compositorum totam materiae potentiam forma adimplet, ita quod non remanet in materia potentia ad aliam formam: et per consequens nec in aliqua alia materia potentia ad hanc formam. Et huiusmodi sunt corpora caelestia, quae ex tota materia sua constant.”

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em potência para formas incompletas, que não podem encerrar toda a potência da matéria.123

Vemos neste texto a referência a duas matérias: a dos corpos celestes e a dos

elementos. A razão para isto é que os corpos sublunares são compostos dos quatro

elementos, terra, água, fogo e ar, enquanto os corpos celestes seriam compostos de um

único elemento, o éter. A razão para o tratamento diferenciado da matéria das duas

regiões, sublunar e supralunar, repousa exatamente na distinção entre múltiplo e uno.

O múltiplo deixa mais potências em aberto enquanto o uno não deixa potência em

aberto, o que faz com que os corpos celestes tenham um movimento constante e em

estado perpétuo, como o próprio Tomás comenta:

[Anaxágoras] estava certo em supor que o nome "éter" fosse adequado a uma potência corpórea além e acima desses corpos. Pois todos os antigos parecem ter acreditado e decidido que o nome "aether" deve ser dado ao corpo que sempre "corre", isto é, está sempre em movimento, e que tenha certa "divindade", isto é, sendo perpétuo de acordo com sua natureza, na medida em que aqueles corpos não sejam o mesmo que nenhum corpo ao nosso redor.124

A geração e a corrupção dos corpos sublunares ao nosso redor exigem que a

matéria permaneça como sujeito das modificações sem esgotar toda a potência dela, de

modo que, pelo gênero material, a coisa permanece em potência para vir a ser e deixar

de ser por aquela forma. A potencialidade da matéria genérica é maior que a atualidade

da forma específica. O mesmo não acontece com os corpos celestes, pois “os corpos

celestes possuem uma forma mais elevada e mais perfeita, visto que ela preenche toda

a potencialidade da matéria.”125. No entanto, é óbvio que não é apenas um único corpo

123 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. VIII, n. 37: “nihil prohibet aliquas substantias quae sunt in potentia tantum, esse diversas, secundum quod ad diversa genera actuum ordinantur: per quem modum caelestium corporum materia a materia elementorum distinguitur. Nam materia caelestium corporum est in potentia ad actum perfectum, idest ad formam quae complet totam potentialitatem materiae, ut iam non remaneat potentia ad alias formas. Materia autem elementorum est in potentia ad formam incompletam, quae totam potentiam materiae terminare non potest.” 124 AQUINO, Tomás de. Super Meteo., I., c. 3, n. 19: “(...) tamen hoc recte putavit, quod nomen aetheris conveniret alicui potentiae corporali quae est praeter ista corpora. Omnes enim antiqui visi sunt opinari, et determinaverunt illud corpus nominari aethera, quod semper currit, idest movetur, et quod est quoddam divinum, idest perpetuum, secundum suam naturam; tanquam illud corpus nulli corporum quae sunt apud nos, sit idem.” 125 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 41: “caelestia corpora habeant nobiliorem formam et magis perfectam, utpote totam potentialitatem materiae adimplentem.”

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celeste sozinho, como o Sol ou a Lua, que completa toda a potencialidade da matéria.

Como entender esse ponto? Tomás está supondo que o leitor entende que se trata de

toda a potencialidade da matéria da espécie: “nos corpos celestes, por causa da

perfeição deles, não se tem senão um indivíduo por espécie, pois cada um deles consta

de toda a matéria da espécie”.126 Sendo assim, cada um é único em sua espécie, já

possuindo um ato perfeito porque, uma vez que espécie e indivíduo se identificam nos

corpos celestes, o primeiro ato, que é o ato de ser, típico da espécie, já será o suficiente

para se alcançar a individuação. Um único ato é capaz de realizar a especificação e a

individuação ao mesmo tempo:

Já abaixo destas estão as substâncias que, embora possuam em si próprias uma matéria que, segundo a sua própria essência, é um ente somente em potência, têm toda a sua potencialidade completada pela forma, de modo que nelas não permanece potência para outra forma. Por isto, são elas incorruptíveis, como o são os corpos celestes.127

Além disso, o fato de a matéria do corpo celeste estar completamente realizada

pela forma faz com que não haja nada de comum entre eles (desconsiderando a

materialidade). É assim que Aristóteles e Tomás concluirão que os corpos celestes são

seres necessários, pois não é possível que os corpos celestes sejam diferentes do que

são, dado que não há nenhuma potência em aberto para outra forma. Tal situação faz

com que eles não sejam geráveis e nem sejam corruptíveis, existindo desde sempre e

para sempre. Podemos representar melhor a necessidade individual dos corpos através

desse diagrama:

126 AQUINO, Tomás de. S.C.G. II, c. 93, n. 5: “... in corporibus caelestibus, propter eorum perfectionem, non invenitur nisi unum individuum unius speciei: tum quia unumquodque eorum constat ex tota materia suae speciei.” 127 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 41: “Sub his vero sunt substantiae quae etsi in se ipsis huiusmodi materiam habeant, quae secundum sui essentiam est ens in potentia tantum; tota tamen earum potentialitas completur per formam, ut in eis non remaneat potentia ad aliam formam, unde et incorruptibiles sunt, sicut caelestia corpora.”

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Neste ponto, precisamos colocar na mesa novamente a noção de “substância”

enquanto gênero. Como vimos no tópico 2.1, a noção de substância genérica deixa em

aberto a possibilidade lógica da existência do âmbito espiritual. Vimos que, assim como

podemos afirmar a materialidade da substância, também é logicamente possível negar

a materialidade. O que nos garante essa possibilidade lógica é a aplicação do Princípio

do Terceiro Excluído, segundo o qual, sempre podemos afirmar ou negar a respeito de

algo, mas não há uma terceira opção.

Se a teoria aristotélico-tomista dos corpos celestes é inviável atualmente, a sua

teoria angelológica é mais plausível. Ora, como a matéria é o princípio de individuação,

podemos dizer, com muito mais propriedade, que os seres que não possuem matéria se

individualizam diretamente pela forma, como afirma Tomás: “a individuação dos seres

não compostos de matéria e forma não se opera pela matéria individual, i. é, por uma

determinada matéria, mas antes, as próprias formas em si se individuam”. 128 Alguém

poderia questionar que uma forma tenha ser em si mesma, de modo que Tomás

responderia com estas palavras:

Como a matéria recebe determinado ser atual através da forma e não o contrário, nada impede que exista certa forma que recebe o ser nela mesma e não em algum sujeito. Isto porque uma causa não depende do efeito, mas ao contrário. Assim, a própria forma subsistente per se participa do ser dentro de si mesma, como a forma material em um sujeito.129

Neste texto, Tomás relembra que é a forma que é a causa do ser para a matéria,

que é pura potência. Sendo assim, não é o caso que a forma dependa da matéria para

ser, mas sim é a matéria que depende da forma para ser. Uma vez que a forma é

independente da matéria, “nada impede” que a forma subsista em si mesma sem a

matéria. Além disso, sendo individualizados diretamente pelas formas específicas, é

necessário que, “nas substâncias simples, não se encontrem muitos indivíduos da

128 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 3, co.: “In his igitur quae non sunt composita ex materia et forma, in quibus individuatio non est per materiam individualem, idest per hanc materiam, sed ipsae formae per se individuantur”. 129 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 44: “Quia igitur materia recipit esse determinatum actuale per formam, et non e converso, nihil prohibet esse aliquam formam quae recipiat esse in se ipsa, non in aliquo subiecto: non enim causa dependet ab effectu, sed potius e converso. Ipsa igitur forma sic per se subsistens, esse participat in se ipsa, sicut forma materialis in subiecto.”

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mesma espécie, mas que nelas haja tantos indivíduos quanto espécies”130. Nós, seres

humanos, não somos capazes de conhecer qual seria a diferença específica que

multiplica os anjos em vários indivíduos. Por limitação do nosso conhecimento, as

diferenças nos são ocultas.

E porque, nessas substâncias [imateriais], a quididade não é a mesma coisa que o seu ser, elas podem ser ordenadas nos predicamentos, razão também porque há nelas gênero, espécie e diferença, embora as suas diferenças próprias nos sejam ocultas. (...) Os acidentes próximos das substâncias imateriais nos são desconhecidos, donde as suas diferenças não nos poderem ser significadas em si mesmas, nem pelas diferenças acidentais.131

Em certo sentido, a respeito dessas substâncias angélicas e também dos corpos

celestes, nós podemos dizer que há um gênero lógico da substância, relacionado à

essência, e uma diferença, relacionada ao ser.

Todavia, deve-se saber que o gênero e a diferença não são assumidos do mesmo modo nessas substâncias [imateriais] e nas substâncias sensíveis [materiais]. Ora, nas sensíveis, o gênero é assumido do que é material na coisa, mas a diferença daquilo que nela é formal. (...) Assim também nelas o gênero é assumido de toda a essência, se bem que de maneira diferente, pois uma substância separada se assemelha à outra pela imaterialidade, e diferenciam-se entre si pelos graus de perfeição, conforme o recesso de potencialidade e o acesso ao ato puro. Por isso, nelas o gênero é assumido daquilo que as acompanha enquanto imateriais, como a intelectualidade, ou coisas semelhantes.132

130 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 51: “in illis substantiis plura individua eiusdem speciei, sed quot sunt ibi individua, tot sunt ibi species”. 131 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 67: “Et quia in istis substantiis quiditas non est idem quod esse, ideo sunt ordinabiles in praedicamento, et propter hoc invenitur in eis genus et species et differentia, quamvis earum differentiae propriae nobis occultae sint. (...) Accidentia autem propria substantiarum immaterialium nobis ignota sunt; unde differentiae earum nec per se nec per accidentales differentias a nobis significari possunt.” 132 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. VI, n. 68-69: “Hoc tamen sciendum est quod non eodem modo sumitur genus et differentia in illis substantiis et in substantiis sensibilibus, quia in sensibilibus genus sumitur ab eo quod est materiale in re, differentia vero ab eo quod est formale in ipsa. (...) Similiter etiam in eis ex tota essentia sumitur genus, modo tamen differenti. Una enim substantia separata convenit cum alia in immaterialitate et differunt ab invicem in gradu perfectionis secundum recessum a potentialitate et accessum ad actum purum. Et ideo ab eo quod consequitur illas in quantum sunt immateriales sumitur in eis genus, sicut est intellectualitas vel aliquid huiusmodi.”

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Dessa maneira, temos algum conhecimento do gênero ao qual pertencem os

corpos celestes e substâncias imateriais, mesmo que esse gênero seja considerado de

modo meramente lógico, e não ontológico. No entanto, apesar de não termos

conhecimento das diferenças, Tomás elabora uma tese de que os anjos de diversificam

de acordo com o grau de perfeição, como sendo mais próximos ou distantes do Ato

Puro, que é Deus. Os graus de perfeição se darão pela substância e de acordo com os

limites de sua espécie. Entre os tomistas, em virtude da teoria da Hierarquia Celeste, é

bem conhecida essa diversificação em graus a respeito dos anjos, mas, no texto abaixo,

destacamos em negrito um trecho curioso que afirma o mesmo também a respeito das

formas materiais (isto é, dos corpos celestes e sublunares), o que em Tomás acontece

em textos raros como este:

Pois certa perfeição que uma coisa possui existe segundo sua espécie e sua substância, que não se compara a coisa como um acidente a um sujeito, ou como uma forma à matéria, mas sim designa a espécie própria da coisa. Assim como um número é maior que outro de acordo com a sua própria espécie (razão porque números diversos diferem em espécie), também entre as formas – tanto as materiais como as separadas da matéria – uma é superior a outra conforme a razão de sua própria natureza, enquanto o caráter próprio de uma espécie consiste em tal grau de perfeição.133

Diante do que foi exposto, assim como os corpos celestes, os anjos também

possuem um ser necessário. De fato, não há nenhuma potência em aberto para que os

anjos sejam diferentes do que são. Os corpos celestes e os anjos não seriam sujeitos à

geração e à corrupção. Ora, se isso é verdade, como compreender que eles sejam, ao

mesmo tempo, “criaturas” e “necessárias”? Se elas completam toda a potencialidade da

espécie, então como compreender que Tomás tenha dito que as substâncias separadas

“nem são atos puros, mas [nelas] há mistura de potência”134?

O começo de uma resposta pode ser encontrado no fato de que não devemos

considerar apenas a potência da espécie, mas também a possibilidade em si da

substância genérica, esta última sendo determinada pelo princípio de não contradição.

Podemos citar um exemplo comparando um corpo celeste com um anjo: sabemos que o

133 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 39. 134 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 51: “nec sunt actus purus, sed habent permixtionem potentiae”

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Sol é necessário e sempre existiu e existirá, mas não é contraditório considerar a sua

inexistência. Do mesmo modo, podemos supor a existência do Anjo Miguel, mas não é

contraditório imaginar a sua inexistência. Apesar de a potência da espécie ser

completada por estes seres necessários, o ser deles é finito em razão da possibilidade

em si, que não é completada por eles.

Ao dizer que as substancias espirituais não participam do ser do mesmo modo

que o Primeiro Princípio, Tomás determina que todas as espécies criadas participam do

ser segundo a limitação de sua essência ou a abrangência de sua potência, que é menor

que a abrangência da possibilidade em si, que é determinada pelo princípio de não

contradição. Assim, casos extremos de espécies com ato perfeito (que são os anjos e os

corpos celestes) forçam Tomás a considerar que, enquanto o ser seria específico, a

essência, em última instância e em termos maximamente genéricos, envolve também a

possibilidade em si. De fato, é fácil conceder que qualquer que seja a espécie, esta

precisa necessariamente estar dentro da possibilidade em si. A espécie, enquanto

potência simpliciter seria apenas parte da possibilidade em si, considerando que sempre

há algo da possibilidade em si que não pertence à espécie. Dessa maneira, um diagrama

para representar os anjos ficaria assim:

Ao analisarmos esse diagrama, logo vemos claramente que os anjos e corpos

celestes têm necessidade simpliciter, mas também possuem o que chamamos de

“contingência em si”, isto é, o que convencionamos como sendo a contingência em

relação à possibilidade em si. Em virtude de sua necessidade simpliciter, eles não são

nem geráveis e nem destrutíveis. Contudo, como é logicamente possível concebê-los

como não existentes, abre-se uma brecha para Tomás de Aquino falar de um tipo de vir

a ser diferente da geração e de um tipo de deixar de ser diferente da corrupção, a saber:

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respectivamente, a criação e a aniquilação. A criação envolve o vir do nada (como Deus

criando as coisas do nada) ou uma sustentação externa para conservar a existência (um

conceito de criação contínua por parte de Deus). Esse último caso é compatível com a

necessidade das espécies, corpos celestes e anjos, pois apesar de eles serem

necessários, eles recebem constantemente a necessidade de fora, a saber, a partir de

Deus. Deus seria causa conservante da existência deles.

Para encerrar esse trecho sobre os necessários simpliciter, podemos reforçar que

eles são também “contingentes em si”135 (como convencionamos chamar) com o

seguinte raciocínio. Ao menos, temos alguns dados empíricos sobre os corpos celestes,

o que nos dá alguma garantia de existência deles. Contudo, como não temos dados

empíricos dos anjos, estes são considerados como dados de fé. É fácil imaginá-los como

não existindo, dado que não é contraditório. Por essa razão, Tomás no máximo dá

razões de conveniência para considerar a existência dos anjos. Em termos puramente

racionais, os anjos são apenas logicamente possíveis ou contingentes em si de modo

que é a fé que cria convicção sobre a existência deles.

Além disso, podemos nos questionar: se essa necessidade simpliciter é também

contingência em si, então qual será a utilidade dessa necessidade simpliciter para a área

da Lógica? Para nos ajudar a responder a essa pergunta, podemos nos valer da

compreensão de Gloria Ruth Frost:

Para os medievais, porém, a necessidade natural (simpliciter) se refere às necessidades que surgem da natureza de um ser. Os pensadores medievais sustentavam que a definição quididativa de uma coisa significava a sua natureza, de modo que as necessidades naturais (simpliciter) têm a necessidade lógica que decorre de uma definição. Um triângulo com três lados, por exemplo, é uma necessidade natural do entendimento medieval, já que essa propriedade é parte da natureza de um triângulo.136

135 David Reiter e Nathanael Johnston também notaram essa contingência quando comentaram: (...) “os anjos seriam considerados como seres contingentes no sentido modal contemporâneo (uma vez que Deus não os cria em todos os mundos possíveis), mas eles são não-contingentes (ou necessários) no sentido que Aquino está usando aqui. Assim, dizer que x é necessário no sentido relevante [aqui] é dizer que x não tem em si o potencial de geração e corrupção.” REITER, David; JOHNSTON, Nathanael. Aquinas on the Eternality and Necessity of the World, p. 9. 136 FROST, Gloria Ruth. Thomas Aquinas on Necessary Thuths about Contingent Beings, p. 22.

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Como já vimos em 2.3, no tomismo, a definição da “espécie” é “o gênero junto

com a diferença específica”, de modo que o gênero é algo lógico que é tomado da

matéria na realidade, enquanto a diferença é tomada da forma na realidade. Assim, a

necessidade simpliciter é uma necessidade que decorre da definição. Uma vez suposta

uma definição, tais propriedades são necessárias em relação à definição suposta. Por

isso, uma vez suposta a definição de “homem” como “animal racional”, “animal” e

“racional” serão necessários para todos da espécie homem. O que estiver na definição

de Sol será necessário para ele, o que está na definição de Anjo Miguel é necessário

para ele, o que está na definição de triângulo é necessário para ele.

Uma vez tratada a necessidade simpliciter, enfim podemos falar de Deus, o

famoso “Motor Imóvel” de Aristóteles. Ele possui uma estrutura ontológica única, pois

seria a “quididade primária”, “imaterial” e com “realidade completa”. Assim Aristóteles

afirma em sua Metafísica:

Mas todas as coisas que são muitas em número têm matéria, embora muitos indivíduos tenham uma e mesma estrutura inteligível, por exemplo, o “homem” [especificamente], enquanto “Sócrates” é um [numericamente]; mas a quididade primária não tem matéria, pois é uma realidade completa. Portanto, o primeiro motor, que é imóvel, é uno tanto em sua estrutura inteligível quanto em número; e, portanto, o que é movido eternamente e continuamente é apenas um. Portanto, há apenas um céu.137

Deus é a realidade completa no sentido mesmo de que o ato completa toda a

essência com máxima potência possível, onde se afirma que a essência d’Ele se

identifica com o ser d’Ele. Trata-se de uma realidade completa porque, em Deus, temos

um ser que não é suscetível de adição ou acréscimo. Em alguns textos, Tomás chega a

afirmar que Ele é "tão-somente ser”, como vemos no texto a seguir:

É impossível que haja multiplicação senão pela adição de alguma diferença. (...) Se, porém, se considerar uma coisa que seja tão-somente ser, sendo tal ser subsistente, este não receberia acréscimo de alguma diferença. (...) Donde não restar senão afirmar que essa coisa, que é o seu ser, não pode ser senão uma só.138

137 ARISTÓTELES. Metafísica. 1087a02-08. 138 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 53.

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Desse modo, Tomás afirma que “a individuação da Primeira Causa, que é tão-

somente ser, dá-se unicamente pela Sua bondade”139. Há de se considerar que devemos

ter cuidado para não confundir o “ser” que estamos aqui atribuindo a Deus com o “ser

em geral” que é atribuído às diversas espécies, como alguns panteístas poderiam

afirmar. No ser de Deus, que é único, nada pode ser acrescentado porque trata-se de

um indivíduo que possui uma “realidade completa”, de modo que tem um ser que

completa tudo o que é logicamente possível. Por outro lado, o ser em comum é

distribuído em muitos e permite acréscimo de informação. Afinal de contas, se não

houvesse acréscimo, ninguém seria capaz de distinguir, por exemplo, o ser “cavalo” do

ser “planta”. Assim Tomás se expressa:

Por termos afirmado que Deus é somente ser, não devemos cair no erro daqueles que disseram que Deus é aquele ser universal pelo qual qualquer coisa formalmente é. Ora, o ser que é Deus é de tal condição que nenhum acréscimo lhe pode ser feito. Daí se segue que, pela sua pureza mesma, é um ser distinto de todo outro ser. (...) Como o ser comum, no seu conceito não inclui adição alguma, também no mesmo conceito não inclui nenhuma exclusão de adição, até porque, se incluísse, nenhuma coisa à qual se acrescentasse algo sobre o ser poderia ser concebida como sendo.140

Uma vez que Deus é puramente ser, Tomás considera que Ele tem todas as

perfeições de modo absoluto, por assim dizer, “aglutinadas”, “comprimidas” ou

“concentradas” num único ato absoluto. Quanto a todas as perfeições, Tomás afirma

que Deus “as possui de modo mais excelente que todas as coisas que as possuem,

porque nele, as perfeições são unificadas, ao passo que, nas outras coisas, são

diversificadas.”141 Nós diversificamos as perfeições de Deus por causa da limitação do

nosso intelecto, que possui dificuldade de compreender como um único ato consegue

realizar todas as perfeições de modo absoluto:

139 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 63. 140 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 63: “si dicimus quod Deus est esse tantum, ut in illorum errorem incidamus, qui Deum dixerunt esse illud esse universale, quo quaelibet res formaliter est. Hoc enim esse, quod Deus est, huius condicionis est, ut nulla sibi additio fieri possit; unde per ipsam suam puritatem est esse distinctum ab omni esse. (...) Esse autem commune sicut in intellectu suo non includit aliquam additionem, ita non includit in intellectu suo praecisionem additionis; quia si hoc esset, nihil posset intelligi esse, in quo super esse aliquid adderetur.” 141 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. V, n. 64: “Sed habet eas modo excellentiori omnibus rebus, quia in eo unum sunt, sed in aliis diversitatem habent.”

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Devemos também observar que nossa mente se esforça para descrever Deus como o ser mais perfeito. E vendo que é incapaz de chegar até ele, exceto por compará-lo aos seus efeitos, enquanto não consegue encontrar qualquer criatura tão supremamente perfeita a ponto de ser totalmente desprovida de imperfeição, conseqüentemente procura descrevê-lo como possuidor das várias perfeições que descobre em criaturas. Embora cada uma dessas perfeições esteja de algum modo acompanhadas de imperfeições, essas são totalmente removidas para Deus.142

Em sua descrição ontológica, Tomás entende que Deus é Puro Ser ou Ato Puro,

de modo que ontologicamente nem faz tanto sentido falar da essência143 ou da

potencialidade d’Ele. Assim, “o ser de Deus, uma vez que não é recebido em nada, é puro

ser, não se limita a qualquer modo particular de perfeição do ser, mas contém todo ser

dentro de si.”144 Deus seria um ser absolutamente simples, isto é, não faria sentido falar

de qualquer composição na ontologia do ser divino, onde Deus, “que subsiste per se, e

que é o próprio ser, não pode ser encontrado senão como um só – assim como nenhuma

forma, se considerada em separado, pode ser mais que uma só”.145 É interessante

observar que, por trás dessa exposição, há uma demonstração ontológica da unicidade

de Deus, tratando-se de uma defesa do monoteísmo contra o politeísmo. Vejamos o

comentário à Metafísica de Tomás:

Pelo fato de todos os indivíduos terem uma razão comum, por exemplo, “homem”, segue-se, então, que os indivíduos se distinguem por sua matéria. Assim, Sócrates é um [ou tem unidade] não apenas em sua razão comum, como homem, mas também em número [individualmente]. Contudo, o primeiro princípio, “uma vez que é a quididade”, isto é, uma vez que é sua própria essência e estrutura inteligível, Ele não contém matéria [...] Resta, então, que o primeiro

142 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 1, a. 1, co.: “Sed et sciendum, quod intellectus noster Deum exprimere nititur sicut aliquid perfectissimum. Et quia in ipsum devenire non potest nisi ex effectuum similitudine; neque in creaturis invenit aliquid summe perfectum quod omnino imperfectione careat: ideo ex diversis perfectionibus in creaturis repertis, ipsum nititur designare, quamvis cuilibet illarum perfectionum aliquid desit; ita tamen quod quidquid alicui istarum perfectionum imperfectionis adiungitur, totum a Deo amoveatur.” 143 Para mais esclarecimentos, veja: KAKOL, Tomasz. Is God His Essence? The Logical Structure of Aquinas’ Proofs for this Claim. Philosophia, 2013. 144 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. I, a. 2, co.: “Esse autem Dei, cum non sit in aliquo receptum, sed sit esse purum, non limitatur ad aliquem modum perfectionis essendi, sed totum esse in se habet”. 145 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 8, n. 42: “Nihil autem per se subsistens, quod sit ipsum esse, potest inveniri nisi unum solum; sicut nec aliqua forma, si separata consideretur, potest esse nisi una”.

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motor imóvel seja um não apenas em razão da espécie, mas também em número.146

O que faz com que haja uma multiplicidade de indivíduos numa espécie é o fato

de essa espécie, por natureza, possuir matéria. Contudo, uma vez que Deus não possui

matéria ou qualquer potencialidade, segue-se que não há uma multiplicidade de

indivíduos na espécie “Deus”, mas haveria apenas um em número e em espécie.

Portanto, “a essência divina existe singularmente em si mesma e em si mesma é

individualizada”147. O ser de Deus completa a possibilidade em si imaterialmente e, uma

vez que se trata de uma única abrangência de possibilidade em si, segue-se que a

realização completa dessa única abrangência provoca a unicidade de quem a realiza.

Removidas as diferenças que constituem as espécies, permanecerá a natureza genérica indivisa, porque as mesmas diferenças que constituem as espécies dividem o gênero. Assim, pois, se aquilo que é ser é comum ao gênero, o ser separado e subsistente em si mesmo não pode ser senão um só. Se, porém, não se dividir, como o gênero o é, pelas diferenças, por aquilo que é próprio deste ou daquele ser (como na verdade acontece), torna-se mais evidente que não pode haver senão apenas um ser existente em si mesmo. Resulta, pois, que Deus é o ser subsistente e que nenhuma coisa, fora Deus, identifica-se com o seu próprio ser.148

Dizer que Deus não tem nada de potencial significa que não há potência em

aberto para não ser o que Ele é, de modo que toda a Sua essência já é realizada pelo Seu

ser, ou seja, a abrangência da essência é a mesma que a abrangência do ser. O curioso

desse pensamento é a compatibilidade com o texto bíblico onde aparece o tetragrama,

JHVH, lido como Javé ou Jeová, que significa “Aquele que é”. Tomás faz o seguinte 146 AQUINO, Tomás de. In Metaphys., 2595-2596: “Non enim distinguitur secundum rationem et formam, quia omnium individuorum est communis ratio utpote quae est hominis. Unde relinquitur quod distinguantur per materiam. Et sic Socrates est unus non solum secundum rationem, ut homo, sed etiam secundum numerum. Sed primum principium cum sit quod quid erat esse, idest sua essentia et ratio, non habet materiam. (...) Relinquitur igitur quod primum movens immobile sit unum, non solum ratione speciei, sed etiam numero.” 147 AQUINO, Tomás de. S.C.G. I, c. XXI, n. 3: “Sed divina essentia est per se singulariter existens et in seipsa individuata”. 148 AQUINO, Tomás de. S.C.G. II, c. 52, n. 3: “Remotis autem differentiis constitutivis specierum, remanet natura generis indivisa: quia eaedem differentiae quae sunt constitutivae specierum sunt divisivae generis. Sic igitur, si hoc ipsum quod est esse sit commune sicut genus, esse separatum per se subsistens non potest esse nisi unum. Si vero non dividatur differentiis, sicut genus, sed per hoc quod est huius vel illius esse, ut veritas habet; magis est manifestum quod non potest esse per se existens nisi unum. Relinquitur igitur quod, cum Deus sit esse subsistens, nihil aliud praeter ipsum est suum esse.”

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comentário a respeito: “É por isso que, em Êxodo 3, 14, é colocado que o nome próprio

de Deus é Aquele que é, pois só a Deus compete que a sua substância [ou essência] não

seja outra coisa que o seu ser.”149

Eis que temos a realidade completa. A respeito de Deus, a possibilidade em si

para ser (essência de Deus) é totalmente atualizada, toda a possibilidade é realizada de

uma só vez, por um único ato de ser. Tomás afirma o seguinte: “Necessariamente, pois,

o ser está para a essência, da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada

tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere do seu

ser e, portanto, são idênticas.”150 Além da citação anterior, uma das demonstrações de

que Deus não tem nada de potencial é a seguinte:

Absolutamente falando, o ato precede a potencialidade não apenas na natureza, mas também no tempo, pois tudo que está em potencial é tornado real por algum ser que está em ato. Consequentemente, o ser que tornou todas as coisas reais, e que não procede de nenhum outro ser, deve ser o primeiro ser real sem qualquer mistura de potencialidade. Pois, de algum modo, com potencialidade, haveria necessidade de outro ser anterior para se fazer em ato. (...) Ora, é necessário que o primeiro ente, que é Deus, seja ato puro, como já se mostrou. Logo, é impossível que Deus seja composto, donde seja necessário que seja totalmente simples."151

Deus não está num gênero, pois não faz sentido falar de “gênero” se não há uma

diferença específica que afunile de gênero para espécie. Grosso modo, a função de

especificar, ou “afunilar”, como chamamos, é o que determina o uso das intenções

lógicas do gênero, diferença específica e espécie. Uma vez que não ocorre nenhum

afunilamento do ser divino em relação a essência divina, mas o ser d’Ele realiza toda a

149 AQUINO, Tomás de. S.C.G. II, c. 52, n. 8: “Hinc est quod Exodi 3-14 proprium nomen Dei ponitur esse qui est: quia eius solius proprium est quod sua substantia non sit aliud quam suum esse.” 150 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 3, a. 4, co.: “Oportet igitur quod ipsum esse comparetur ad essentiam quae est aliud ab ipso, sicut actus ad potentiam. Cum igitur in Deo nihil sit potentiale, ut ostensum est supra, sequitur quod non sit aliud in eo essentia quam suum esse. Sua igitur essentia est suum esse.” 151 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 7, a. 1, co.: ”simpliciter tamen oportet actum esse priorem potentia, non solum natura sed tempore, eo quod omne ens in potentia reducitur in actum ab aliquo ente actu. Illud ergo ens quod omnia entia fecit esse actu, et ipsum a nullo alio est, oportet esse primum in actu, absque aliqua potentiae permixtione. Nam si esset aliquo modo in potentia, oporteret aliud ens prius esse per quod fieret actu. (...) Ens autem primum, quod Deus est, oportet esse actum purum, ut ostensum est. Impossibile est ergo Deum compositum esse; unde oportet quod sit omnino simplex.”

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essência d’Ele, não faz sentido atribuir as intenções lógicas a Deus, donde Ele não estar

em nenhum gênero ou espécie, nem mesmo no gênero generalíssimo da Substância:

Ora, Deus é seu próprio ser. Portanto, Ele não pode estar em um gênero. (...) Por isso, é também evidente que Deus não é uma espécie nem um indivíduo, nem há diferença nele. Nem Ele pode ser definido, uma vez que toda definição é tirada do gênero e da espécie.152

Pela definição de substância, esta não pode ser atribuída a Deus, cuja quididade não é distinta de seu ser. Portanto, Deus não está contido no gênero da substância, mas está acima de toda substância.153

Apesar de as intenções lógicas do gênero e da espécie não serem atribuíveis a

Deus, Tomás utiliza a mesma estrutura de raciocínio de “ser único na espécie”, pois Deus

é o ser único que atualiza a essência absoluta. A possibilidade em si da essência faz o

papel de “espécie” (entre aspas, porque é apenas para as análises) e a realização é

unitária, parecida com a dos anjos. Teríamos o seguinte modo de representar:

Como já vimos em 2.1, a abrangência da possibilidade em si engloba todas as

coisas que não são contraditórias. Realizar toda a possibilidade em si com um único ato

absoluto de ser seria próprio do único ser que possui a necessidade em si, pois não há

potencialidade em aberto de qualquer tipo. Assumindo essa descrição ontológica, torna-

se inconcebível Deus não existir, pois Ele não pode ser diferente do que é. Dessa

152 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 7, a. 3, co.: “Deus autem est ipsum suum esse: unde non potest esse in genere. (...) Ex hoc ulterius patet quod Deus non est species, nec individuum, nec habet differentiam, nec definitionem: nam omnis definitio est ex genere et specie.” 153 AQUINO, Tomás de. De Pot. q. 7, a 3, ad 4: “Et sic non conveniet definitio substantiae Deo, qui non habet quidditatem suam praeter suum esse. Unde Deus non est in genere substantiae, sed est supra omnem substantiam.”

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maneira, Tomás afirmou que “Deus é em si mesmo o ser necessário”154. Os necessários

simpliciter seriam necessários por outro, como já falamos. Curiosamente, apenas na

Suma Contra os Gentios e em nenhuma outra obra, Tomás usa várias vezes a expressão

latina com hífen “necesse-esse”155, traduzido aqui como “ser-necessário”, para se

atribuir a Deus. Tal curiosidade indica que a influência e as disputas contra os árabes,

principalmente Avicena156, foram significativas para essa compreensão da modalidade

alética de Tomás de Aquino. Contudo, qual seria a aplicação de uma necessidade tão

absoluta quanto essa necessidade em si para a Lógica? Novamente, Gloria Ruth Frost

pode ao menos nos trazer alguma luz:

O que é naturalmente impossível também é absolutamente impossível. Isso envolve uma contradição e não pode ser realizada nem mesmo por Deus. (...) É o primeiro tipo de impossibilidade natural que estamos interessados aqui, já que seu oposto é coextensivo com o absolutamente necessário (necessário em si).157

As modalidades aléticas em Deus158 recebem um caráter especial. Ora, se o

impossível em si é coextensivo ao necessário em si, ambos têm a mesma extensão de

aplicabilidade. Em outras palavras, se referem à mesma coisa, isto é, o próprio princípio

de não contradição. Assim, se a necessidade simpliciter decorre de uma definição, então

a necessidade em si decorre diretamente do princípio de não contradição. Ora, se a

definição é suposta, o mesmo não acontece com o princípio de não contradição, pois

ele é evidente. Com o princípio de não contradição, tais propriedades são necessárias

em relação ao próprio princípio. Por sua vez, qualquer que seja o atributo propriamente

divino, este será necessário pelo princípio. Ademais, de outro ponto de vista, o que

estiver na abrangência do princípio de não contradição será necessário em si para Deus,

154 AQUINO, Tomás de. S.C.G. I, c. 16, n. 3: “Deus autem est per se necesse esse”. Veja que está sem hífen, como de costume. 155 Para comprovarmos efetivamente que Tomás usou essa expressão com hífen, seria necessário um estudo direto dos manuscritos. Nesta tese, estamos apenas assumindo os textos latinos que chegaram até nós. Um exemplo da expressão com hífen na mesma frase da nota anterior estaria em AQUINO, Tomás de. S.C.G.I, c. 16, n. 3: “Deus autem est per se necesse-esse”. 156 Para compreender melhor a influência e os debates em torno de Avicena na Escolástica, recomendo: STORCK, A. Eternidade, possibilidade e Indiferença: Henrique de Gand Leitor de Avicena. Analytica. v.9, n.1. 2005. e SMITH, G. Avicenna and the Possibles. The New Scholasticism. n.17, p.340-357. 1943. 157 FROST, Gloria Ruth. Thomas Aquinas on Necessary Thuths about Contingent Beings, p. 24. 158 Mais informações: LEFTOW, B. 2005. Aquinas on God and Modal Truth. The Modern Schoolman 82, 3, 171-200, 2005.

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o que o torna realmente onipotente no grau máximo. Ora, aquilo que é não-

contraditório reflete a natureza d’Ele completamente realizada.

Neste ponto, é importante destacar que atribuímos primariamente essa

necessidade em si apenas para Deus. Estender para outras coisas além de Deus pode vir

a ser questionável dentro do sistema tomista. No entanto, parece plausível estender a

outras coisas cuja inexistência seria contraditória, isto é, coisas que, pelo princípio de

não contradição, só poderiam existir. A questão é que, na realidade ao nosso redor,

apenas Deus cumpre essa característica pelo sistema tomista.

Para resumir esse tópico, podemos dizer que um indivíduo com necessidade em

si tem um estado tal de somente poder ocorrer, não havendo margem para a sua

negação. Assim, Deus seria necessário por somente poder existir, dado que toda a

possibilidade em si já está realizada com o único ato e não há margem na abrangência

da possibilidade em si para a negação disso. O mesmo não acontece com um ser com

necessidade simpliciter. Este ser necessário simpliciter tem o estado de somente poder

ocorrer, mas é necessário supor de antemão o ser específico. Assim, supondo o ser da

espécie, somente pode ocorrer o indivíduo em questão, e o fato de ser preciso supor a

espécie é o que faz com que seja uma necessidade simpliciter, isto é, uma necessidade

que é mais fraca do que a necessidade em si. Essas noções serão fundamentais para

compreendermos a necessidade do mundo, como veremos nos textos seguintes.

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Capítulo 3: Definindo o que é “Mundo”

Nesse capítulo, apresentaremos a razão pela qual não devemos usar uma

Semântica de Mundos Possíveis para analisar os textos de Aristóteles e Tomás de

Aquino. Toda a nossa tese gira em torno deste fato, pois, como falamos no início do

tópico 1.2, usar a SMP para descrever os pensamentos de Aristóteles pode nos induzir a

crer que ele cometeu vários erros. Considerando o que foi exposto no capítulo 2 inteiro,

nós temos bagagem suficiente para tentar responder o porquê de Tomás e Aristóteles

não aceitarem que há outros mundos possíveis além do mundo atual. Por causa disso,

daqui em diante, faremos uma exegese dos textos da literatura primária de Tomás de

Aquino e Aristóteles, citando poucas literaturas secundárias.

Como já falamos no tópico 1.3, Gabriele Contessa159 classificou em dois os

modos de consideração dos mundos possíveis: [1] o Atualismo Softcore, que defende

que só existe realmente o mundo atual, mas admite-se mundos possíveis de modo

apenas lógico como instrumento; [2] o Atualismo Hardcore, que defende que somente

existe o mundo atual e não existe outros mundos possíveis, de modo que nem sequer

deveríamos usar mundos possíveis como instrumento lógico porque causaria confusão.

Acrescentemos também um terceiro modo de consideração, [3] o Possibilismo

Hardcore de David Lewis, que defende a existência concreta dos mundos possíveis.

Como veremos abaixo, Tomás de Aquino, com certeza, é contrário ao modo de

consideração [3], mas poderia ser alvo de disputas se ele é a favor de [1] ou de [2].

Como dissemos, defenderemos que Tomás de Aquino é um atualista hardcore, pois tal

pensamento afasta qualquer possibilidade de uso da Semântica de Mundos Possíveis

para interpretar os seus textos e, assim, salvaguardamos melhor os seus pensamentos.

Como vimos em 1.2, Hintikka e Knuutila também supõem o mesmo a respeito de

Aristóteles, o que os levou a desenvolver o Modelo Estatístico, com o objetivo de tornar

mais consiste o sistema aristotélico.

159 CONTESSA, Gabriele. Modal Truthmakers and Two Varieties of Actualism. Synthese 174:341–53.

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No entanto, admitindo-se tudo o que já falamos a respeito das modalidades

aléticas no sistema tomista, pode-se dizer que as análises de Hintikka e Knuutila, apesar

de apontarem corretamente o problema, não aprofundam nos detalhes mais relevantes.

A concepção deles é aquela de um modelo somente diacrônico sem alternativas

sincrônicas, mas é fácil conceber alternativas sincrônicas no Modelo Potencialista que

apresentamos. Como muitos estudiosos somente conseguem conceber alternativas

sincrônicas se for usando a Semântica de Mundos Possíveis, eles usam tal instrumento

para descrever o pensamento aristotélico e tomista. Contudo, isso é um grande erro,

pois o Modelo Potencialista possui alternativas sincrônicas sem se utilizar de Mundos

Possíveis. Supondo que há muitos atos individuais dentro de uma potência específica,

esses atos individuais são simultâneos e, portanto, são alternativas sincrônicas de

realização da potência específica. Em suma, fica claro que há alternativas sincrônicas no

Modelo Potencialista de Tomás.

3.1 Incompatibilidade com a Semântica de Mundos Possíveis:

Neste Tópico, veremos porque não seria correto usar a semântica de mundos

possíveis para descrever o pensamento de Tomás de Aquino. Para isso, nós nos

basearemos principalmente na interpretação que Tomás oferece da obra De Caelo de

Aristóteles, principalmente no que tange ao capítulo 9 da primeira parte. No entanto,

verificaremos que Tomás faz comentários que vão além do texto de Aristóteles quando

acrescenta a questão do melhor dos mundos possíveis para defender a unicidade do

mundo com um atualismo hardcore. Entendemos que esse passo além é justamente

aquilo que reforça a defesa de que Tomás teria esse posicionamento.

Para entendermos os argumentos de Tomás contra os Mundos Possíveis é

importante fazermos primeiramente uma distinção: [1] considerar a existência concreta

de vários mundos (universos) é diferente de [2] considerar apenas a possibilidade lógica

de mundos possíveis. De fato, enquanto o primeiro envolve uma teoria da Física, o

último pode ser usado como instrumento na área da Lógica. Mesmo assim, apesar de

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serem coisas diferentes, é inegável que possuem uma íntima relação entre si, pois cada

uma se utiliza de um discurso que evoca descrições pertencentes a sua contraparte para

ajudar nos esclarecimentos e análises. Nesse sentido, apesar de o uso comum da

Semântica de Mundos Possíveis ser usado apenas como um instrumento das análises

lógicas, sabemos que David Lewis, defensor da Semântica de Mundos Possíveis, não o

tratava apenas como instrumento lógico, mas defendia a existência concreta destes

mundos e talvez tenha sido um dos primeiros a defender a teoria do multiverso.

Dada essa distinção, uma vez que a obra do De Caelo é sobre a Física do mundo,

precisamos admitir que é coerente supor que se trata de uma exposição de uma teoria

física sobre ser possível ou não ser possível existirem realmente outros mundos, onde se

responderá serem impossíveis outros mundos além deste. Mesmo assim, é fácil

imaginar que essa teoria física de Aristóteles e Tomás provoca inconsistência nos

discursos, pois seria algo totalmente estranho ao modelo cosmológico deles.

Além disso, observe-se que, no texto do De Caelo em que trata desse assunto,

quando Tomás descreve a teoria contrária à dele, isto é, aquela a favor de mundos

possíveis, ele faz uma apresentação inicial do argumento para descrever qual era a

finalidade dele. Ora, se entendermos bem qual é a finalidade, seremos capazes de dizer

com o que Tomás estava argumentando. Vejamos a citação: “o argumento a seguir não

prova que é necessário que existam vários mundos, o que equivale a ser impossível que

haja apenas um; antes, prova que é possível que haja mais de um mundo, o que

equivale a não ser necessário que haja apenas um mundo.”160 Para analisarmos a

finalidade do argumento, comecemos por aquilo que ele não prova. Ao usar a

expressões “necessário que exista vários” e “impossível que exista apenas um”, Tomás

aponta para a segurança de que existam mesmo vários mundos. Sendo assim,

interpreto que Tomás entende que o argumento contrário a ele não se trata de uma

teoria física, pois o argumento não busca demonstrar a existência mesma dos outros

mundos. Assim, não estaria em questão a terceira consideração [3] de mundo do

Possibilismo Hardcore.

160 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 186: “Non enim sequens ratio probat quod necesse sit esse plures mundos, quod aequipollet ei quod est impossibile unum solum esse mundum: sed probat quod possibile est esse plures mundos, quod aequipollet ei quod est non necesse esse unum solum mundum.”

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Para sermos mais claros, trata-se da interpretação de Tomás de Aquino a

respeito do capítulo 8 e 9 do De Caelo I. Normalmente, é compreendido que, no cap. 8,

Aristóteles apresenta argumentos físicos. Contudo, Tomás não entende somente isto.

Ele entende que o capítulo 8 do De Caelo derrubou argumentos que seriam a favor do

chamamos aqui de “Possibilismo Hardcore”, afirmando que existe apenas o mundo

atual concretamente. Assim, no capítulo 8, há uma teoria da Física sobre os vários

mundos concretos e Aristóteles teria sido contrário a isso. De fato, a Física busca

estudar o mundo do ponto de vista dos movimentos e os raciocínios a favor da unidade

do mundo deste capítulo 8 são essencialmente baseados na teoria dos movimentos

aristotélica. Vejamos um exemplo textual de Aristóteles do cap. 8 para ilustrar isso:

Acrescentando que todos os mundos são necessariamente compostos dos mesmos corpos, sua natureza será semelhante à do nosso. Ao mesmo tempo, cada um desses corpos – e me refiro ao fogo, à terra e seus intermediários – possui necessariamente as mesmas potências. (...) Resulta que uma delas se moverá naturalmente de maneira centrífuga, enquanto a outra o fará de maneira centrípeta, visto que todo o fogo é idêntico ao fogo, tal como o são as diferentes porções de fogo. [A conclusão de que] assim é [o que ocorre] resulta necessária e claramente [a partir] de nossas hipóteses acerca dos movimentos. (...) Somos obrigados a escolher entre duas alternativas: ou negamos a identidade de natureza dos corpos simples dos vários mundos ou a admitimos, sendo obrigados a conceber a unidade do centro e do extremo. Sendo assim, é impossível existir mais mundos do que um.161

Contudo, o capítulo 9 da mesma obra muda totalmente a base dos raciocínios,

que passam a envolver justamente a abrangência da potencialidade e a sua atualidade,

tal como temos desenvolvido em nossa tese. Ora, o questionamento parece ser agora

sobre se a atualidade [1] deixa uma potencialidade em aberto ou se [2] a completa

totalmente. Assim, Aristóteles estaria defendendo [2], pois [1] implica possibilidade de

outros mundos. Enfatizo: a potência em aberto não afirma a existência concreta de

outros mundos, mas sim a possibilidade de outros mundos. Sendo assim, segundo

Tomás, Aristóteles estaria derrubando o que entendemos hoje por “Atualismo

Softcore”, dado que nem sequer é possível haver outros mundos. Nós nos

concentraremos mais no cap. 9 porque se trata de uma tese mais forte, de modo que se

ela for eficiente na demonstração, nem faz sentido falar do capítulo 8.

161 ARISTÓTELES. Do Céu, c. 8, 276a30-b02.276b04-08.b18-22.

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Assumindo isso, o argumento contrário a Tomás (o qual este precisará corrigir)

busca provar a possibilidade de outros mundos no sentido do Atualismo Softcore. Em

outras palavras, na argumentação oposta a Tomás, não se tentou provar a existência de

outros mundos físicos, mas apenas a possibilidade lógica desses outros mundos. Ora,

falar da “possibilidade de outros mundos” é similar a falar de “mundos possíveis”, de

modo que sustento que Tomás faz oposição ao Atualismo Softcore no texto do De

Caelo. Nesse sentido, toda a exposição que faremos a partir de agora também irá contra

o uso meramente lógico e instrumental da Semântica de Mundos Possíveis.

Tomás de Aquino apresenta Empédocles162 (defendendo que houve vários

mundos gerados e corrompidos) e Demócrito163 (por causa da combinação dos átomos)

como supostos defensores da teoria de que há muitos mundos possíveis. Além disso, ao

comentar os textos de Aristóteles, Tomás afirma: “Depois de mostrar que existe apenas

um mundo [no cap. 8], o Filósofo mostra aqui [no cap. 9] que é impossível haver muitos.

E foi necessário provar isso, porque nada impederia algo ser falso que ainda possa ser

verdadeiro.”164 Essa frase difícil de se entender passa a fazer sentido se considerarmos

que outro mundo possível cria situações contra os fatos desse mundo, de modo que o

que é falso nesse mundo seria verdadeiro num outro mundo possível. Nessa

interpretação, Tomás estaria negando que haja mundos possíveis exatamente por criar

situações contrafactuais, aparente fonte de confusão em relação aos fatos concretos.

Depois deste preâmbulo, comecemos oficialmente a adentrar em seus

argumentos contrários à possibilidade de outros mundos. Sem entrar em detalhes sobre

o porquê, assumamos, seguindo o texto abaixo, que os termos “céu” e “mundo” são

sinônimos, donde podem ser intercambiáveis. O termo grego “οὐρανὸν” tem o sentido

de “céu”, mas pode ter, pelo menos, três sentidos, incluindo “mundo”:

Em certo sentido, então, chamamos de "céu" a substância da circunferência extrema do todo, ou aquele corpo natural cujo lugar

162 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 185: “Si enim esset mundus generabilis et corruptibilis per compositionem et dissolutionem, secundum amicitiam et litem, ut Empedocles posuit, possibile esset esse multos mundos, ita scilicet quod, uno corrupto, alius postea generaretur, sicut ipse Empedocles posuit.” 163 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 47, a. 4, co.: “ut Democritus, qui dixit ex concursu atomorum factum esse hunc mundum, et alios infinitos.” 164 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 184. “Postquam philosophus ostendit quod est unus solus mundus, hic ostendit quod impossibile est esse plures. Et hoc necessarium fuit ostendere: quia nihil prohibet aliquid esse falsum, quod tamen contingit esse verum.”

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está na circunferência extrema. Reconhecemos habitualmente um direito especial do nome "céu" à extremidade ou região superior, que consideramos ser a sede de tudo o que é divino. (b) Em outro sentido, usamos este nome para o corpo contínuo com a circunferência extrema que contém a lua, o sol e algumas das estrelas; estes que dizemos que estão "no céu". (c) Em outro sentido, damos o nome a todos os corpos incluídos na circunferência extrema, já que habitualmente chamamos a todo ou totalidade de 'o céu'.165

Uma vez que “céu” envolveria a esfera mais externa para além do planeta Terra,

todos os corpos materiais podem ser tratados como incluídos dentro do céu, onde “céu”

se identifica com “mundo”. Além disso, observe que “mundo” pode ser considerado

tanto como espécie quanto como singular:

[Aristóteles] diz que se “céu”, isto é, o “mundo”, se refere a um singular, sua noção como singular diferirá de sua noção absolutamente, isto é, de modo geral, onde as duas noções serão diferentes. Consequentemente, segue-se que "este céu" tomado singularmente será diferente em consideração do "céu" tomado especificamente, ou seja, este último céu tomado universalmente será como uma espécie e forma, enquanto o outro, ou seja, aquele tomado singularmente, será como forma unido à matéria.166

Assumindo tal descrição, Tomás prossegue apresentando um silogismo que

serviria para demostrar a tese contrária à dele sobre haver outros mundos possíveis.

Uma vez que é uma tese contrária, ele somente apresenta com a intenção de refutá-la

depois. O silogismo em questão pode ser formulado da seguinte maneira:

[PREMISSA MAIOR:] Para todas as formas na matéria, multiplica-se vários indivíduos dentro uma espécie. [PREMISSA MENOR:] Mas "este céu" quer dizer uma forma na matéria. [CONCLUSÃO:] Portanto, há muitos céus ou muitos podem ser feitos.

165 ARISTÓTELES. Do Céu, c. 9, 278b10-b21. 166 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 189: “(...) dicit quod si caelum, idest mundus, est de numero singularium, ut ostensum est, alterum erit esse huic caelo singulariter dicto, et caelo simpliciter, idest universaliter sumpto; idest alia erit ratio utriusque. Et sic sequitur quod alterum sit secundum considerationem hoc caelum singulariter dictum, et caelum universaliter sumptum: ita scilicet quod hoc caelum universaliter sumptum sit sicut species et forma; hoc autem, scilicet caelum singulariter sumptum, sit sicut forma coniuncta materiae.”

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Diante dessa argumentação contrária à sua tese, Tomás identifica que Aristóteles

se verá forçado a rejeitar alguma das premissas, pois, caso contrário, a conclusão se

segue necessariamente. Nesse sentido, o foco da refutação a esse silogismo será a

premissa maior: “a premissa maior do segundo silogismo, a saber, que ‘As coisas que

têm uma forma na matéria podem ser numericamente muitas em uma espécie’ não é

verdadeira, exceto em coisas que não consistem de toda a matéria.”167 Assim, esse

silogismo só será correto caso se considere apenas o modo dos corpos sublunares, que

“não consistem de toda a matéria”, onde há muitos indivíduos na mesma espécie.

Contudo, há uma relação entre matéria e forma que não é assim. Ora, “consistir de toda

a matéria” aponta para o caso em que a forma completa toda a abrangência da

potência da matéria. Ao considerarmos os dois casos de forma na matéria, a premissa

maior se tornará apenas possível (pois há duas possibilidades, completar ou não

completar), o que fará com que a conclusão também seja apenas possível, e isso

derruba o silogismo. Para esclarecer esse último caso de forma na matéria, Tomás

apresenta o exemplo do nariz e do homem:

Ele diz, portanto, primeiro que o que foi dito ficará mais claro a partir do seguinte. A aquilinidade é a curvatura em um nariz ou numa carne; assim, a carne é a matéria da aquilinidade. Ora, se de toda a carne fosse feita, ou seja, se de toda carne de um nariz fosse feita a aquilinidade, nenhum outro nariz seria um nariz aquilino, nem poderia ser. E o mesmo vale para o homem, pois carne e ossos são matéria do homem: se um homem fosse formado de toda carne e todos os ossos, ele não poderia ser destruído agora e não poderia haver mais do que um homem - mas se ele pudesse ser destruído, seria possível, depois de sua corrupção, que outro homem existisse, assim como quando uma caixa é destruída, outra pode ser feita da mesma madeira. E o mesmo é verdade para outras coisas. 168

167 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 194. “maior enim propositio secundi syllogismi, scilicet quod illa quae habent formam in materia possunt esse multa numero unius speciei, non habet veritatem nisi in illis quae non constant ex tota sua materia.” 168 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 195: ”Dicit ergo primo quod per ea quae dicentur, magis fiet manifestum quod dictum est. Simitas enim est curvitas in naso aut in carne; et ita caro est materia simitatis. Si ergo ex omnibus carnibus fieret una caro, scilicet unius nasi, et in hac esset simitas, nihil aliud esset simum, neque posset esse. Et eadem ratio est de homine, cum carnes et ossa sint materia hominis, si ex omnibus carnibus et ossibus fieret unus homo, ita scilicet quod nullo modo possent dissolvi, non posset esse aliquis alius homo quam unus (si vero possent dissolvi, possibile esset, illo homine corrupto, alium hominem esse; sicut dissoluta arca, ex eisdem lignis fit alia arca). Et ita etiam est in aliis.”

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Observe-se que estamos usando aqui o mesmo mecanismo da prova da

unicidade de Deus, no entanto, agora está sendo aplicado à unicidade do Mundo.

Tomás cita o exemplo hipotético muito estranho de um único nariz aquilino, cuja a

aquilinidade completaria toda a potência da matéria da carne. Assim, a aquilinidade

seria impossível de ocorrer em outro que não seja a carne deste nariz. Ora, “impossível

que não seja” é exatamente a “necessidade”, de onde se pode dizer que a aquilinidade

seria necessária para o nariz em questão. O exemplo do homem parece soar melhor.

Supondo que o ser de um único homem consiga atualizar toda a potência da matéria de

carne e ossos, seria impossível haver outro homem a não ser este. Haveria, então, um

único homem nessa espécie, ou a necessidade deste homem. Tomás prossegue:

E a razão para isso ele afirma, a saber, é que nenhuma de outras coisas cuja forma está na matéria pode vir a existir se não tiver uma matéria disponível, assim como uma casa não poderia ser feita se não houvesse pedras e madeira. Conseqüentemente, se não houvesse ossos e carne além daqueles de que o único homem (hipotético) seria composto, nenhum outro homem poderia vir a existir a não ser ele.169

Esse exemplo muito prático esclarece bem essa demonstração da unicidade.

Suponha que um construtor comprou o material para fazer duas casas. Se ele gastar

todo o material na construção de apenas uma delas, esta será a única casa construída.

De fato, não sobraria nenhum material para fazer a segunda casa. Assim também, se o

ser de Deus preenche toda a essência divina, somente pode haver um único Deus, pois

não existe potência da essência divina em aberto para servir de base para outro Deus. O

mesmo será afirmado do Mundo, pois se o lado formal do Mundo completa toda a

potência da matéria prima, somente poderia haver um único mundo necessário, pois

não haveria nenhuma potência da matéria em aberto para ser base de outro mundo.

Nesse sentido, o ponto mais interessante deste Modelo Potencialista de Tomás é

o fato de que não só serviu para descrever a semântica das modalidades aléticas, como

também impedirá uma Semântica de Mundos Possíveis quando associada à definição

de “mundo”. Nesse sentido, o que impedirá a SMP envolve dois passos: [1] aceitação do

169 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 195: “Et huius rationem assignat, quia nihil eorum quorum forma est in materia, potest fieri, si non adsit propria materia; sicut domus non posset fieri si non sint lapides et ligna. Et ita, si non sint aliae carnes et ossa praeter ea ex quibus componitur unus homo, non poterit fieri alius homo praeter illum.”

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Modelo Potencialista e [2] aceitação da definição de “Mundo” segundo Tomás e

Aristóteles. Se forem aceitos os dois passos, se segue necessariamente que há apenas o

mundo atual e não deveríamos usar uma semântica de mundos possíveis para descrever

os pensamentos de Aristóteles e de Tomás de Aquino.

Desse modo, para compreender tal impedimento, partamos da definição de

“mundo”. Aristóteles definiria “mundo” como sendo “universalidade total dos corpos”,

como o próprio Tomás170 aponta. Pelo que afirmamos acima, essa definição faz sentido

porque Aristóteles defende que toda a matéria é completada pelo aspecto formal de

“mundo”. Ora, se o mundo envolve todas as coisas materiais, então o mundo é a

atualização de toda a potencialidade da matéria. Desse modo, se o “mundo” equivale “a

toda a matéria”, então não sobraria nenhuma potencialidade para além deste mundo.

Eis o texto do próprio Aristóteles:

Este mundo encerra a totalidade da matéria existente. O significado do que digo talvez fique mais claro se eu disser do modo que se segue. (...) Considerando, ademais, que a matéria do ser humano é carne e ossos, se um ser humano se originasse da totalidade de carne e ossos existente, este seria incorruptível e ficaria impossibilitada a existência de outro ser humano. O mesmo ocorre em todos os casos e admite a seguinte formulação geral: as coisas cuja substância conta com substrato na matéria não podem vir a ser se não houver matéria alguma. Ora, o mundo está entre os particulares e é constituído de matéria. Porém, se é constituído não por uma porção dela, mas indiscriminadamente por toda a matéria, então ser o mundo [como espécie] e este mundo [como indivíduo] são coisas distintas; apesar disso, não existe um outro mundo e sequer a possibilidade de seu vir a ser, porque este contém toda a matéria.171

O texto de Aristóteles já é bem claro em si mesmo: o nosso mundo é único e

necessário graças ao fato da atualidade formal preencher toda a potência da matéria.

No texto acima, acrescentamos em colchetes, para facilitar a compreensão, “como

espécie” e “como indivíduo”, já que o “ser” do texto original vem da espécie e o uso da

palavra “este” é uma maneira de se referenciar ao indivíduo. O modelo aristotélico de

mundo pode ser representado com o seguinte diagrama:

170 AQUINO, Tomás de. In De Caelo III, l. 8, n. 598: “... tota universitas corporis...” 171 ARISTÓTELES. Do Céu. 278a27-29.33-b7.

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Em alguns momentos, Tomás simplesmente segue essa definição, onde defende

haver apenas um único mundo (ou céu172), pois as substâncias intelectuais estão para

além desse mundo material e não deveriam ser incluídas na noção de mundo material.

Ao comentar tal texto aristotélico acima, Tomás usa o termo “céu”, mas o raciocínio é o

mesmo do anteriormente apresentado:

Aristóteles diz que é verdade que o céu é uma coisa singular e é constituído de matéria. Mas não é constituído somente de parte de sua matéria, mas sim de toda ela. E, portanto, embora haja uma diferença entre as noções de "céu" e de "este céu", não há nem pode haver outro céu, devido ao fato de que toda a matéria do céu é compreendida sob este céu.173

Uma vez que afirma-se que “nem pode haver outro céu”, não há alternativas

possíveis. Quando se fala de “céu” ou “mundo”, só pode haver este, ou seja, é

“impossível não ser” este mundo. Desse modo, enfatizo, essa é uma maneira de se

referir à necessidade do mundo.

Contudo, em outros textos, aparentemente sem perceber, Tomás amplia o

escopo e abrangência, definindo “mundo” como a “universalidade das criaturas”

172 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 68, a. 4, ad 2: “Ad secundum dicendum quod ratio illa procedit de caelo, secundum quod importat universitatem creaturarum corporalium. Sic enim est unum caelum tantum”. 173 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 196: “dicit verum esse caelum esse de numero singularium, et eorum quae ex materia constituuntur: non tamen est ex parte suae materiae, sed ex tota sua materia. Et ideo, quamvis sit alia ratio caeli et huius caeli, non tamen est aut potest esse aliud caelum, propter hoc quod tota materia caeli comprehensa est sub hoc caelo.”

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(“universitas creaturarum”174). Apesar de aparentemente despropositada, dado que não

haveria uma exposição dele que justifique essa mudança, essa definição muda muita

coisa, pois agora “mundo” incluiria também as substâncias intelectuais separadas da

matéria. O termo “criatura” é típico do criacionismo, posicionamento que Aristóteles

não tinha e, portanto, não poderia ter usado tal expressão que incluiria as substâncias

intelectuais separadas, muito embora elas sejam previstas no sistema aristotélico.

Assim, estou levando em consideração uma possível interpretação que me parece

interessante, pois apresenta uma exposição da autoria de Tomás, ampliando a noção

aristotélica de “mundo”. Assim, Deus se opõe a mundo e isso constitui uma oposição de

tal modo que aquilo que é de Deus não é do mundo e o que é do mundo não é de Deus.

De um lado, temos o Deus Criador e, para diferenciar de Aristóteles, chamaremos o

outro lado de “Mundo Criado”, como podemos ver no diagrama:

Supondo essa interpretação (que não é necessária, pois poderíamos ficar apenas

com a primeira definição de “mundo”), observe pelo diagrama que a demonstração da

unicidade do mundo de Tomás deverá ser ligeiramente diferente daquela usada por

Aristóteles. De fato, não se trata mais de o aspecto formal do mundo completar toda

potência em si da matéria prima. Afinal, mundo, agora, não envolve apenas o material.

Para solucionar o problema, usamos a “possibilidade puramente lógica de ser criado” no

lugar da “potência da materialidade”, bem como “atualidade do [ser] criado” no lugar

de “atualidade formal”. Tal mudança é baseada na seguinte citação de Tomás:

Antes de o mundo existir, era possível que o mundo existisse, mas isso não significa que havia necessidade da matéria como base dessa

174 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 46, a. 1: “universitas creaturarum, quae mundi nomine nuncupatur”. Além disso, temos também S.Th. I-II, q. 2, a. 8, arg. 2: “Sed tota universitas creaturarum, quae dicitur maior mundus, comparatur ad hominem, qui in VIII Physic. dicitur minor mundus...”.

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possibilidade. Pois é afirmado em Metaph. V, 12, que às vezes se diz que uma coisa é possível, não em relação a alguma potencialidade, mas porque não envolve contradição de termos, onde o possível é oposto ao impossível. Assim, diz-se que antes do mundo era possível que o mundo fosse feito, porque a declaração não envolvia nenhuma contradição entre sujeito e predicado. Podemos também responder que isso foi possível em razão do poder ativo do agente, mas não por causa de qualquer poder passivo da matéria.175

Repare, ainda, que o ato criador de Deus se dá sobre o ser da espécie, e não

sobre o ser do indivíduo. As espécies não são geradas e nem se corrompem, pois apenas

os indivíduos sublunares o são. Uma vez que as espécies não se bastam em si mesmas,

como vimos em 2.4 e veremos em 3.2, segue-se que as espécies somente têm os seu

respectivo ser recebido de outro. O fato de receber o ser de outro por participação será

um vir a ser “sem movimento”, o que Tomás chama de “criação”. Vejamos as citações:

(...) no modo de produção que ocorre sem movimento, o qual denominamos “criação”, um efeito se remete unicamente a Deus como autor. (...) Resta, portanto, que todas as substâncias imateriais e corpos celestes, que não podem ser trazidos ao ser pelo movimento, têm unicamente em Deus o autor de seu ser.176

Quando, pois, um cavalo é gerado, o cavalo que o gera é a causa pela qual a natureza de cavalo comece a existir neste, mas não é causa per se da natureza equina. Pois aquilo que é causa per se de determinada natureza segundo a sua espécie é necessariamente sua causa em todos os que possuem tal espécie. (...) Resta, portanto, que acima de todos os participantes da natureza equina existe necessariamente uma causa universal de toda a espécie.177

175 AQUINO, Tomás de. De Pot., q. 3 a. 1 ad 2: “antequam mundus esset, possibile erat mundum esse; non tamen oportet quod aliqua materia praeexisteret, in qua potentia fundaretur. Dicitur enim V Metaph., aliquid aliquando dici possibile, non secundum aliquam potentiam, sed quia in terminis ipsius enuntiabilis non est aliqua repugnantia, secundum quod possibile opponitur impossibili. Sic ergo dicitur, antequam mundus esset, possibile mundum fieri, quia non erat repugnantia inter praedicatum enuntiabilis et subiectum. Vel potest dici, quod erat possibile propter potentiam activam agentis, non propter aliquam potentiam passivam materiae.” 176 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 9, n. 56: “... sed eo productionis modo qui fit absque motu, qui creatio nominatur, in solum Deum refertur auctorem. (...) Relinquitur igitur quod omnes immateriales substantiae et caelestia corpora, quae per motum produci non possunt in esse, solum Deum sui esse habent auctorem. Non ergo id quod est prius in eis est posterioribus causa essendi.” 177 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 9, n. 58: “Cum enim equus generatur, equus generans est quidem causa quod natura equi in hoc esse incipiat, non tamen est per se causa naturae equinae. Quod enim per se est causa alicuius naturae secundum speciem, oportet quod sit eius causa in omnibus habentibus speciem illam. (...) Relinquitur igitur quod oportet super omnes participantes naturam equinam esse aliquam universalem causam totius speciei.”

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Independentemente do fato de ser um “mundo criado” ou “mundo material”,

em ambas as definições não é possível haver mais de um mundo. Mundo, por definição,

envolverá um ato que preenche toda a totalidade da potência, não deixando nenhuma

potência em aberto. Com este raciocínio, prova-se mais do que o erro de um

Possibilismo Hardcore. Torna-se inconcebível considerar outros “mundos possíveis”,

mesmo em termos de possibilidade lógica, além do mundo atual, o que contraria

também o Atualismo Softcore. Resta, pois, apenas o Atualismo Hardcore.

Vemos claramente que tal conclusão é fundamentada na definição de “mundo”

aristotélico tomista, junto com o Modelo Potencialista para a semântica das

modalidades aléticas. Se assumirmos por definição, que o mundo é o somatório de

todos os corpos (ou criaturas), um mundo sozinho irá preencher todas as possibilidades.

Se é todos, então é todos, e não deve haver nenhum corpo ou criatura que esteja fora

daquilo que chamamos propriamente de “mundo”. Repare que estamos evocando o

quantificador universal, de modo que estamos fazendo uma análise puramente lógica.

Definir “mundo” como “totalidade” implica que ele seja único e, portanto, necessário.

Para o mundo, é impossível ser outro que não seja este mundo, e impossível não ser é

exatamente o que entendemos como sendo o necessário.

Para reforçar tal pensamento dentro do sistema tomista, podemos ver também

alguns passos independentes que Tomás realizou. Até esse ponto, podemos dizer que

Tomás de Aquino está apenas seguindo Aristóteles, mas a partir de agora vemos

contribuições propriamente tomistas. Depois de expor o raciocínio de Aristóteles,

Tomás prossegue no texto de seu comentário à Aristóteles acrescentando três objeções

e respondendo-as. Podemos ver que são teses propriamente tomistas na medida em

que são de ordem teológica, tratando da relação entre Deus e o mundo.

A primeira objeção contra a posição de Tomás é baseada na infinitude da

potência divina: “Ora, a potência de Deus, uma vez que é infinita, não se limita apenas a

este mundo. Portanto, não é razoável dizer que Ele não pode fazer outros mundos.”178

Em sua resposta, ele apresenta algo curioso sobre o mundo perfeito:

178 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, l. 19, n. 197: “sed potentia Dei, cum sit infinita, non determinatur ad istum solum mundum; ergo non est rationabile quod non possit facere etiam alios mundos.”

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A isto deve ser dito que se Deus fizesse outros mundos, Ele os faria semelhantes ou diferentes deste mundo. Se fossem totalmente iguais, seriam em vão - e isso entra em conflito com a Sua sabedoria. Se, ao contrário, nenhum deles compreendesse em si mesmo toda natureza do corpo sensível, consequentemente nenhum deles seria perfeito, mas um mundo perfeito resultaria de todos eles.179

A consideração de muitos mundos possíveis implicaria que, propriamente,

nenhum deles seria um mundo perfeito. O termo “perfeito” indica exatamente o que é

“feito completamente”. Então, falar de “mundos possíveis” seria como se estivéssemos

considerando mundos menores e imperfeitos, dado que todos eles estariam contidos no

mundo perfeito tal como Tomás define “mundo”. Donde, apenas o somatório de todos

os seres completaria a essência da “materialidade” e, como tal, teríamos uma noção

perfeita de mundo, que há apenas um “mundo”, a universalidade completa dos corpos.

A segunda e terceira objeção partem da suposição errada de que quanto mais

indivíduos há numa espécie, mais perfeita ou melhor será esta espécie. Ora, as espécies

“cavalo” e “vaca” são mais imperfeitas que a espécie “mundo” e vemos claramente que

aquelas primeiras espécies atualizam muitos seres. Ora, se assim acontece sobre o

“cavalo” e a “vaca”, então com muito mais razão devemos dizer que a espécie “mundo”

também atualiza muitos seres. Conclui-se que, para que a espécie “mundo” seja a mais

perfeita, ela precisa atualizar uma infinidade de mundos singulares. Contra isso, Tomás

corrige tal noção de “perfeição” e reforça claramente que o “melhor dos mundos

possíveis” é aquele que torna impossível haver outros.

Mas a isso se deve responder que é preciso mais poder para fazer um perfeito do que fazer vários imperfeitos. Ora, os indivíduos singulares das coisas naturais que existem aqui são imperfeitos, porque nenhum deles compreende em si o total do que pertence à sua espécie. Mas é assim [por compreender em si o total] que o mundo é perfeito; daí, desse mesmo fato, sua espécie é mostrada como a mais virtuosa.180

179 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, c. 9, l. 19, n. 197: “Et ad hoc dicendum est quod, si Deus faceret alios mundos, aut faceret eos similes huic mundo, aut dissimiles. Si omnino similes, essent frustra: quod non competit sapientiae ipsius. Si autem dissimiles, nullus eorum comprehenderet in se omnem naturam corporis sensibilis: et ita nullus eorum esset perfectus, sed ex omnibus constitueretur unus mundus perfectus.” 180 AQUINO, Tomás de. In de Caelo I, c. 9, l. 19, n. 197: “Sed ad hoc dicendum est quod maioris virtutis est facere unum perfectum, quam facere multa imperfecta. Singula autem individua rerum naturalium quae

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Deve ser dito aqui que pertence à bondade do mundo ser um, porque a unidade possui o aspecto de bondade. Pois vemos que, ao serem divididas, as coisas perdem sua bondade apropriada.181

Nesse parágrafo, podemos traçar um breve paralelo com a teoria de Leibniz de

que o mundo atual em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis. Em seu sistema,

grosso modo, Leibniz defende, de antemão, que haja muitos mundos possíveis no

Intelecto Divino e Deus decide por decreto criar este mundo atual exatamente por este

ser o melhor dos mundos possíveis. Veja o que Leibniz afirma:

A sabedoria de Deus, não contente em abarcar todos os possíveis, os penetra, os compara e os pesa uns contra os outros para estimar seus graus de perfeição ou imperfeição, o forte e o fraco, o bem e o mal; ela, inclusive, vai mais além das combinações finitas e faz uma infinidade de infinitos, ou seja, uma infinidade de séries possíveis de universos, donde cada uma contém uma infinidade de criaturas. Por esse meio, a sabedoria divina distribui todos os possíveis, que já havia examinado separadamente, em outros tantos sistemas universais que, todavia, compara entre eles: o resultado de todas essas comparações e reflexões é a escolha do melhor entre todos os sistemas possíveis que a sabedoria faz para satisfazer plenamente a bondade, que é precisamente o plano do universo atual.182

Supondo que estamos descrevendo corretamente a posição de Leibniz, tal teoria

entra em conflito com a posição de Tomás de Aquino, o qual pode ser visto como dando

uma resposta à Leibniz nesse ponto do texto acima. No modelo tomista, o melhor

indivíduo da espécie impede a possibilidade de outros da mesma espécie, pois o ser do

melhor é o que completa toda a essência da espécie. Portanto, o melhor mundo é o que

torna absurdo conceber outros mundos possíveis, ou seja, o melhor mundo é o mundo

único e, portanto, necessário.

Em suma, com o exposto, a demonstração da unicidade e necessidade do

“mundo” com base nas noções de potência e ato tem o efeito colateral de afetar

também o uso da Semântica de Mundos Possíveis em termos puramente lógicos. Na sunt hic, sunt imperfecta; quia nullum eorum comprehendit in se totum quod pertinet ad suam speciem. Sed mundus hoc modo perfectus est: unde ex hoc ipso eius species ostenditur magis virtuosa.” 181 AQUINO, Tomás de. In de Caelo I, c. 9, l. 19, n. 197: “Et ad hoc dicendum quod hoc ipsum pertinet ad bonitatem mundi, quod sit unus; quia unum habet rationem boni: videmus enim quod per divisionem aliqua decidunt a propria bonitate.” 182 LEIBNIZ G. W.., Essais de Théodicée. Parte II, §225, 1969, p.253.

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medida em que Tomás nega a possibilidade de outros mundos, ele também nega a

consideração lógica de mundos possíveis além do mundo atual diante de nós. Portanto,

consideramos provado que é errado usar a Semântica de Mundos Possíveis para

descrever o sistema tomista e, se Tomás interpretou corretamente, podemos estender

isso também para o sistema aristotélico. O uso da SMP é incompatível.

3.2 O Mundo Tem Necessidade Em Si ou Necessidade Simpliciter?

Uma vez estabelecido que há apenas um único mundo porque o aspecto formal

deste mundo preenche completamente a essência material dele, devemos ainda ter

cuidado para não nos deixarmos levar pela posição de Avicebron, segundo a qual o

mundo tem uma unidade em função de uma forma geral única. Analisar esse assunto

auxiliará para que respondamos o seguinte questionamento: ao completar toda a

potência em si material, o mundo deve ser tratado como tendo necessidade em si (igual

a Deus) ou como tendo uma necessidade simpliciter (igual aos corpos celestes e anjos)?

Tomás coloca na boca do filósofo Avicebron183 e dos antigos físicos184 a seguinte

defesa: uma forma geral única atualizaria a matéria comum, que constituiria uma única

substância geral chamada de “mundo”. Tal unidade substancial do mundo é estranha a

Tomás de Aquino, pois dá ao mundo o mesmo status de Deus, mas também é estranho

dizer que o mundo tenha necessidade simpliciter. Segundo Avicebron, o mundo se

realiza com uma única atualização de uma só vez. Por uma só forma de “mundo”, a

atualização de toda a matéria do âmbito físico seria realizada.

Assim, a atualização da forma geral seria com abrangência igual à

potencialização da matéria comum. Avicebron sustenta que a “forma geral” não realiza

183 AVICEBRON. The Fountainof Life (Fons Vitae). Originally translated by Alfred B. Jacob Revised by Leonard Levin. The Jewish Theological Seminary. New York, 2005. Avicebron (1021-1070 d.C.), também chamado de Solomon Ben Judah Ibn Gabirol, foi um filósofo judeu com fortes tendências neoplatônicas. Sua principal obra foi conhecida pelos medievais como Fons Vitae (fonte da vida), de onde provavelmente advém a referência de Tomás. Em S.Th.Iª, q.66, a.2, res., Avicebron é citado como alguém que defende a unidade da forma de modo correspondente ao da unidade da matéria. 184 Sobre os “antígos físicos”, Tomás se refere aos os pré-socráticos, “que ensinavam ser a matéria prima algum corpo em ato, como o fogo, o ar, a água... (AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 66, a. 1, co.)”.

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nenhuma determinação ou especificação na matéria, mas somente realiza a matéria

comum com o mesmo grau de abrangência. É desse modo que o mundo teria um ser

necessário com uma necessidade idêntica à necessidade de Deus, pois tal seria a

conclusão de se admitir uma forma única do mundo atualizando a potencialidade da

matéria com a mesma abrangência desta. Assim, teríamos os seguintes diagramas

idênticos tanto para Deus quanto para o Mundo:

Tomás não concorda com tal posicionamento. Para provar que tal pensamento é

falso, Tomás realiza uma redução ao absurdo. Se essa “forma comum” realiza o ato com

grau de abrangência igual ao da potência da matéria comum, então o comum da forma

iria se identificar com o comum da matéria, de modo que formariam uma única

substância do universo físico. Assim, Tomás afirma:

Nem se pode dizer que se tivesse uma forma comum, e de modo posterior, sobreviessem-lhe formas diversas, pelas quais seja distinta. (...) Porque quando essa forma precedente dá o ser em ato ao gênero da substância e o faz ser este algo [esse hoc aliquid], se segue que a forma superveniente não faz simplesmente o ser em ato, mas o ser em ato neste, o que é próprio das formas acidentais; e então as formas seguintes seriam acidentes, em relação aos quais não ocorreria a geração, mas a alteração. Por onde deve-se dizer que a matéria prima nem foi criada completamente sem forma, nem com uma única forma comum, senão com formas distintas.185

Assim, com uma unidade substancial, o mundo físico seria uma substância

individual (daí o texto usar o pronome demonstrativo “este” ou “neste”, que indicam

individualidade) e, uma vez que consideremos que o “universo físico” seja deste modo,

185 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 66, a.1, co.: “Nec etiam potest dici quod habuit aliquam formam communem et postmodum supervenerunt ei formae diversae, quibus sit distincta. (...) Quia cum illa forma praecedens daret esse in actu in genere substantiae, et faceret esse hoc aliquid; sequebatur quod superveniens forma non faceret simpliciter ens actu, sed ens actu hoc, quod est proprium formae accidentalis; et sic sequentes formae essent accidentia, secundum quae non attenditur generatio, sed alteratio. Unde oportet dicere quod materia prima neque fuit creata omnino sine forma, neque sub forma una communi, sed sub formis distinctis.”

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qualquer forma que lhe sobrevier seria acidental e provocaria meras alterações,

descrição que se assemelha vagamente com o panteísmo defendido por Baruch

Espinosa186 na modernidade. Ao analisar tal descrição, reforço que, se aceitarmos tal

posição, não haveria geração e corrupção das coisas ao nosso redor, mas apenas

alterações. Ou seja, todas as coisas que existem agora ao nosso redor existiriam desde

sempre, embora os acidentes delas poderiam ter se alterado. Aqui repousa o absurdo.

De fato, qualquer um sabe por experiência sensível que não ocorrem apenas os

acidentes e suas alterações, mas eu mesmo não existi desde sempre, a árvore do quintal

não existiu desde sempre, este computador não existiu desde sempre, assim como

qualquer outra substância material ao nosso redor na região sublunar, mas cada um

destes vieram a existir em algum momento. Assim, é evidente que cada coisa individual

sublunar possui uma unidade substancial própria que foi gerada em algum momento.

Da mesma maneira, mutatis mutandis, podemos falar da corrupção, dado que “(...) tal

forma seria imutavelmente inerente à matéria e, por ela, todos os corpos seriam

incorruptíveis.”187 Enfim, não haveria geração e corrupção das coisas desse mundo.

Para evitar esse absurdo é que fazemos as análises do mundo baseadas nas

intenções lógicas (gênero, espécie e diferença específica). A nossa experimentação do

mundo de que há geração e corrupção nas substâncias fez com que nossas descrições

fossem baseadas na matéria e na forma, onde o gênero é tomado da matéria e a

diferença específica é tomada da forma. No entanto, somente faz sentido o uso das

intenções lógicas quando ocorre o “afunilamento” da especificação, onde a matéria

genérica permanece em potência para a atualização de outras formas específicas.

Assim, Tomás se contrapõe claramente a Avicebron, que não supõe que haja esse

“afunilamento” da matéria para a forma, mas defende a mesma abrangência de ambas.

Em virtude dessa “afunilamento”, a defesa tomista envolverá formas distintas: “(...)

186 ESPINOZA, Baruch. Ética - Demonstrada à Maneira dos Geômetras. Autêntica, 3ª edição, Belo Horizonte, 2010. 187 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 66, a. 2, co.: “Quia illa forma immutabiliter materiae inhaereret, et quantum ad illam esset omne corpus incorruptibile”

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deve-se dizer que a matéria prima nem foi criada completamente sem forma, nem com

uma única forma comum, senão com formas distintas.”188

Para compreender a posição de Tomás contra Avicebron, devemos apresentar os

graus de abrangência da atualização: [1º] A forma, enquanto comum, pode se tratar de

uma atualização com abrangência igual ao da potencialização da matéria. Tal é a

posição de Avicebron. Por outro lado, [2º] a forma, enquanto comum, também pode se

tratar de uma atualização com abrangência menor do que a potencialização da matéria.

Assim, enquanto a potencialização da matéria ficaria num âmbito genérico, a

atualização da forma ficaria num âmbito específico. Nesse sentido, Tomás se contrapõe

à noção do [1º] modo, mas defende o [2º] modo de “forma comum”, que ocorreria

exatamente com formas distintas.

Neste ponto, parece haver um conflito com aquilo que tratamos no tópico

anterior sobre a unicidade do mundo, onde toda a potência da matéria é atualizada.

Para resolver esse aparente conflito, basta que consideremos que a matéria seria

completamente atualizada por todas as formas distintas (posição de Tomás). Assim, não

haveria uma forma única de mundo que atualiza toda a matéria, mas há várias formas

específicas juntas, que atualizam completamente a potencialidade da matéria prima do

mundo, não deixando nenhuma potencialidade em aberto. Um efeito colateral de tal

compreensão de “mundo” nos leva à necessidade das espécies, e sua consequente

eternidade, pois diz respeito à ordem ontológica do mundo como um todo. Desse

modo, a concepção tomista de “mundo corpóreo” seria a seguinte:

188 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 66, a.1, co.: “oportet dicere quod materia prima neque fuit creata omnino sine forma, neque sub forma una communi, sed sub formis distinctis.”

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Como já vimos no tópico 2.3, enquanto propriedades comuns, as espécies em si

mesmas não têm ser per se, mas apenas um ser per accidens. De imediato, causa

estranhamento a defesa aristotélica de que as espécies são necessárias, sem contar que

ainda é contrário ao darwinismo contemporâneo, que considera as espécies como

contingentes. No entanto, é importante destacar que o aristotelismo e o darwinismo

compreendem o termo “espécie” de modos diferentes e aqui temos condições de

analisar um pouco essa diferença.

Como dissemos também no tópico 2.3, o hilemorfismo defende que a matéria

prima não tem ser em si mesma, sendo pura potência, mas recebe o ser da forma. Neste

ponto, temos que ter o cuidado para não realizarmos uma equivalência total como se

matéria fosse igual a gênero e forma fosse igual à diferença. Assim, Tomás afirma que o

gênero próximo não é a matéria comum, mas é tomada da matéria comum e a diferença

específica não é a forma, mas é tomada da forma189.

Assim, é clara a realização de atos de ser de espécies diferentes, pois, por

exemplo, dentro do gênero “animal”, há simultaneamente as espécies de “homem”,

“cachorro”, “macaco”, etc. Assim, num nível genérico, a potencialidade da matéria

tende à realização, o que não quer dizer que toda a potencialidade da matéria genérica

será realizada por uma única espécie com sua forma. Contudo, se considerarmos todas

as espécies ou todas as formas de uma só vez, elas completariam toda a potência da

matéria? Como seria a relação de todas as atualidades juntas das formas específicas

com a potência em si da matéria prima?

Assim compreendemos a situação: vimos no tópico 2.1 que a abrangência da

potência em si da matéria é a abrangência de todo material que respeita princípio de

não contradição. Ora, todas as combinações de gênero e diferença, ou matéria e forma,

que produzem espécies precisam ser combinações que respeitem o princípio de não

contradição. Ora, considerar o somatório de todas as espécies é considerar todas as

combinações possíveis de gênero e diferença. Se considerarmos todas as combinações,

então a abrangência atualidade de todas as espécies juntas terá a mesma extensão e,

assim, completará toda a abrangência da potência em si da matéria. Ora, se todas as

múltiplas espécies completam toda a potência em si da matéria, temos uma

necessidade, e não contingência, das espécies em conjunto, que é o “mundo” tomista. 189 AQUINO, Tomás de. De Ente., c. 2, n. 24. / S.Th. I, q. 85, a. 5, ad. 3

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Sendo assim, mesmo que múltiplas, as espécies são necessárias, não sendo geráveis e

nem corruptíveis. Para representar a necessidade das espécies, podemos usar esse

diagrama, que mostra um X para destacar que não deixa nenhuma potência em aberto:

O curioso dessa compreensão é que não somente o mundo será necessário e

eterno, mas também cada instância de espécie, enquanto propriedade comum com ser

per accidens (isto é, em função dos indivíduos, se opondo a per se, que é o ser individual

independente dos próprios indivíduos), será necessária e eterna. Diante disso, defendo

que as instâncias de espécies como tendo uma necessidade simpliciter, pois não é o

caso que uma única espécie completa toda a potência em si da matéria.

No entanto, a necessidade do mundo, com os múltiplos atos em conjunto que

preenchem toda a potencialidade e não deixam nenhuma potência em aberto é uma

necessidade que não pode ser expressa pela Semântica de Mundos Possíveis. Segundo a

SMP, se há alternativas diferentes, então cada alternativa é “possível”. Neste ponto,

admitimos múltiplos atos de espécies diferentes e, assim, múltiplas alternativas

diferentes. Contudo, como essas alternativas diferentes preenchem toda a

potencialidade a qual estão submetidas, não sobrando possibilidade de não ser o que

são, cada uma das alternativas individualmente é necessária em virtude do conjunto. Ao

admitir a necessidade, mesmo nos casos em que haja alternativas diferentes, o Modelo

Potencialista é mais completo do que o Modelo de Mundos Possíveis.

Antes de prosseguirmos, podemos nos questionar. E os indivíduos? Eles não

estão também dentro da potência em si da matéria? Já tratamos disso no tópico 2.3, por

isso apenas resumiremos. A individuação acontece pela matéria assinalada sob certas

dimensões, cujas disposições são incognoscíveis e as dimensões são virtualmente

infinitas em acréscimo ou decréscimo. É por esta razão que acrescentamos o X no

último diagrama, dado que todas as espécies juntas completam toda a potência em si da

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matéria, mas colocamos as reticências para os indivíduos dentro da espécie sublunar,

pois todos os indivíduos juntos não completam toda a potência de individuação da

espécie. Dessa maneira, apesar de as espécies (tanto sublunares, quanto supralunares)

serem necessárias, os indivíduos sublunares são contingentes na medida em que eles

não se identificam com a espécie, nem mesmo quando considerados em conjunto.

Tal situação explica de uma maneira ontológica as nossas intuições quando

relacionamos a espécie e os seus indivíduos seguindo uma ordem do conhecimento ou

uma ordem da natureza, tal como apresentamos no final tópico 1.3. De fato, nossas

intuições afirmam que as espécies são necessárias para os indivíduos, mas os indivíduos

não são necessários para a espécie. Por exemplo: a humanidade é necessária para

Sócrates (porque Sócrates não pode ter seu ser individual sem a sua humanidade), mas

Sócrates é possível para a humanidade (porque humanidade pode ter seu ser específico

sem que Sócrates tenha existido). Neste caso, podemos ir até mesmo além e dizer que,

mesmo sem que qualquer indivíduo tenha seu ser per se, as espécies continuam tendo o

seu ser per accidens enquanto parte do todo que é o “mundo”. Assim, o que

entendemos por extinção de uma espécie na ciência atual se refere apenas o ser dos

indivíduos que deixaram de existir, enquanto as espécies ainda possuem algum grau de

ser, enquanto partes atuais per accidens que atualizam toda a matéria do mundo.

Diante dessa descrição de Tomás, nós já temos condições de responder ao

questionamento: como um todo, o mundo tem necessidade em si ou necessidade

simpliciter? A necessidade simpliciter é definida por dois aspectos: [1] não completar a

abrangência da possibilidade em si e [2] receber a sua necessidade por outro, no caso,

recebe de Deus. Ora, se supormos apenas o aspecto [1], então diremos que o mundo

tem necessidade em si, já que ele de fato completa toda a abrangência. Contudo, essa

conclusão não será satisfatória.

A necessidade do mundo é diferente da necessidade de Deus, pois enquanto a

primeira necessidade envolve a realização de toda a potência por vários atos de ser, a

segunda envolve a realização de toda a potência por um único ato de ser. Indo além, se

considerarmos a afirmação de Tomás de que “ao serem divididas, as coisas perdem sua

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bondade apropriada”190, podemos supor graus diferentes de necessidade, de modo que

o ser do mundo é inferior ao ser de Deus. Ora, os seres inferiores recebem o seu ser a

partir do máximo Ser, como Tomás afirma neste trecho:

Se alguém considerar a ordem existente nas coisas, sempre encontrará que aquilo que é maximamente é sempre causa das coisas que lhe são posteriores. Por exemplo: o fogo, que é o elemento mais quente, é causa do calor nos demais corpos elementares. O Princípio Primeiro, a que chamamos “Deus”, é maximamente ente. Não é possível, pois, proceder in infinitum na ordem das coisas; é preciso chegar a algo supremo, já que é melhor ser um só que ser vários. Decerto, aquilo que é melhor no universo necessariamente é o [Seu] ser, pois o universo depende da essência de Sua bondade. É necessário, portanto, que o Ente Primeiro seja a causa de ser para todos.191

Como, então, podemos falar que há apenas um mundo, se há muitos atos de

ser? Ora, já sabemos que estes atos de ser são várias formas distintas ou espécies

distintas, mas ainda falta afirmar que essas diversas espécies são como partes que se

ordenam entre si para a perfeição do todo, que é o mundo. Somente assim o mundo

pode ser tratado de modo unitário: a partir da ordem. Se verificamos que há apenas

uma ordem geral, deve haver também apenas uma Inteligência Ordenadora.

A razão de ser o mundo um só é que todas as coisas devem ser ordenadas por uma só ordem e em relação a um ser. E por isso Aristóteles concluiu a unidade de Deus governador, da unidade da ordem existente nas coisas; e Platão pela unidade do exemplar prova a unidade do mundo, que é como exemplado.192

Diante disso, propriamente falando, a necessidade do mundo nada mais é do

que o somatório da necessidade de vários seres específicos que, ordenadamente juntos,

190 AQUINO, Tomás de. In De Caelo I, c. 9, l. 19, n. 197: “per divisionem aliqua decidunt a propria bonitate”. 191 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 9, n. 49: “Si quis ordinem rerum consideret, semper inveniet id quod est maximum causam esse eorum quae sunt post ipsum; sicut ignis, qui est calidissimus, causa est caliditatis in ceteris elementatis corporibus. Primum autem principium, quod Deum dicimus, est maxime ens. Non enim est in infinitum procedere in rerum ordine, sed ad aliquid summum devenire, quod melius est esse unum quam plura. Quod autem in universo melius est, necesse est esse, quia universum dependet ex essentia bonitatis; necesse est igitur primum ens esse causam essendi omnibus.” 192 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 47, a. 4, ad 1: “dicendum quod haec ratio est quare mundus est unus, quia debent omnia esse ordinata uno ordine, et ad unum. Propter quod Aristoteles, in XII Metaphys., ex unitate ordinis in rebus existentis concludit unitatem Dei gubernantis. Et Plato ex unitate exemplaris probat unitatem mundi, quasi exemplati.”

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constituem o que chamamos de “mundo”. Assim, antes de tudo, temos a necessidade

das espécies que constituem o mundo, como já falamos, além daqueles seres individuais

que têm ser idêntico ao da espécie, como à necessidade dos corpos celestes e das

substâncias espirituais separadas. Esses seres específicos inferiores a Deus têm

necessidade por outro e apenas o ser absoluto, Deus, tem necessidade em si. Do mesmo

modo, não podemos dizer que o mundo, enquanto ordenado, tem necessidade em si,

mas apenas por outro. Isso implicaria que o mundo teria uma necessidade simpliciter,

mas isso também não é suficiente.

A conclusão desses raciocínios é que o mundo, como um todo unitário, satisfaz

uma necessidade em si ao mesmo tempo em que satisfaz uma necessidade simpliciter,

mas não sobre o mesmo aspecto. Sobre a necessidade em si, o mundo satisfaz a

completude da potência, mas não o ser em si. Sobre a necessidade simpliciter, o mundo

satisfaz o ser por outro, mas não a incompletude da potência. Para responder a

pergunta, que é título desse tópico, o resultado final é o de que o mundo teria um grau

modal de necessidade que é intermediário entre a necessidade em si e a necessidade

simpliciter, sendo difícil achar um termo próprio para ele.

Mesmo sendo uma necessidade intermediária, nada muda, pois somente pode

haver um único mundo, dado que as várias formas específicas juntas completam toda a

potência em si da matéria, não deixando nenhuma potência em aberto. O que nos

garante isso é o argumento para defender a necessidade das espécies. Relembrando:

uma vez que a espécie é gênero próximo junto com uma diferença específica, todas as

combinações possíveis de gênero com diferença precisam respeitar o Princípio de Não

Contradição. Assim, todas as espécies, que representam todas as combinações

possíveis, preenchem toda a abrangência da possibilidade em si da não contradição.

Alguém ainda poderia argumentar que Deus poderia ordenar o mundo de modos

diferentes. Assim, temos vários mundos possíveis. Contudo, a ordenação que Deus fez

das partes do mundo é necessária, porque aquilo que Deus concebe no seu intelecto

absoluto, fonte da ordenação, é necessário em si. Assim, Deus não poderia ordenar de

uma maneira diferente daquela que Ele de fato ordenou. Considerando a possibilidade

em si lógica, parece que são possíveis outros mundos criados por Deus, mas, uma vez

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suposta a criação, não faz sentido supor outros mundos, pois tudo foi ordenado

necessariamente por Deus. Especular sobre outros mundos possíveis seria como fugir da

realidade, que é fruto dos desígnios de Deus, como sugere Hester Gelber a seguir:

Para Aquino, a possibilidade lógica, a esfera da verdadeira indeterminação, é apropriada a Deus e considerada apenas antes da instanciação de Sua criação desejada. Dentro da criação, a possibilidade tornou-se relativa ao sistema ordenado de Deus, confinado dentro dos limites das causas necessárias e contingentes que Deus escolheu para aperfeiçoar a ordem criada. (...) Embora existam muitas, até mesmo infinitas, possibilidades que Deus não escolheu criar, questões sobre tais possibilidades contrafactuais não são muito apontadas. Tampouco o é a especulação contrafactual de muitas situações em relação aos eventos contingentes do sistema ordenado. Como todos esses eventos fazem parte do desígnio providencial de Deus, o foco importante para um teólogo é aquilo que é o caso atualmente. O que é o caso oferece informações sobre os propósitos de Deus, enquanto a especulação sobre o que poderia ter acontecido de outra forma não oferece.193

Se pensarmos bem, sabemos que o mundo completa toda a potência e,

portanto, trata-se de um único mundo. Contudo, apesar de ser um único mundo, esse

mundo não é eterno ou necessário194 com o mesmo grau de necessidade de Deus, uma

vez que o mundo não tem seu ser em si mesmo, mas seu ser ocorre por outro, a saber,

pela vontade de Deus. Assim, o que ocorre necessariamente ocorre, de modo que se a

vontade de Deus é a de que o mundo existiu desde sempre, foi por necessidade. Ao

mesmo tempo, se a vontade de Deus é a de que mundo teve um começo, também foi

por necessidade195. Aqui, fechamos o pensamento sobre as modalidades aléticas.

Contudo, como entender a citação abaixo?

Eles [Aristóteles e Platão] não se desviaram do ângulo da fé católica por terem dito que tais substâncias não foram criadas, mas porque eles afirmaram que elas sempre existiram – o que é contrário à fé católica. Pois, embora a origem de certas coisas se dê a partir de um princípio isento de movimento, não é necessário que seu ser seja eterno.196

193 GELBER, Hester G.. It Could Have Been Otherwise, p. 123. 194 Para mais informações sobre a eternidade do mundo, veja: WILKS, Ian. Aquinas on the Past Possibility of the World's Having Existed Forever. The Review of Metaphysics, V. 48, N. 2 (Dec., 1994), pp. 299-329. 195 AQUINO, Tomás de. S.C.G. I, c. 83. 196 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 9, n. 52: “Non enim in hoc a sententia Catholicae fidei deviarunt, quod huiusmodi posuerunt increata, sed quia posuerunt ea semper fuisse, cuius contrarium fides Catholica

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Se formos falar de alternativas possíveis, deveríamos dizer que Deus criou o

único mundo possível [1] com início ou [2] sem início, mas isso decorre apenas do

desconhecimento de nossa parte enquanto humanos. Em outras palavras, essas duas

possibilidades são, na verdade, duas crenças possíveis, ou seja, são duas alternativas de

crenças. Diante disso, considero relevante apontar aqui que a origem ou não do mundo

deveriam ser tratadas em termos de modalidades epistêmicas, como nota David Reiter

e Nathanael Johnston: “O que não foi reconhecido é que as visões de Tomás de Aquino

acerca da eternidade do mundo o comprometem com a possibilidade epistêmica de que

o próprio mundo é um ser necessário”197.

Assim, qual é o grau de conhecimento do mundo que nós temos? Aquilo que

falamos a respeito do mundo, nós temos certeza, nós apenas cremos, nós temos dúvida

ou temos um total desconhecimento. Com esse pensamento, Tomás deu um passo

além que favorecerá o criacionismo. Assim, como dissemos, o que Deus fez, Ele o fez

necessariamente, mas, afinal de contas, sabemos com certeza racional o que Deus de

fato fez? Ora, tirando textos religiosos, ninguém esteve lá na origem ou acompanhou a

eternidade para confirmar experimentalmente o que ocorreu, se um ou outro. Dessa

maneira, por uma limitação do nosso intelecto humano, talvez ainda deixemos alguma

incerteza a respeito do mundo, principalmente a respeito de sua origem. Em termos

puramente racionais, talvez estejamos errados sobre como Deus fez (ou faz

continuamente) o mundo por causa de nossa limitação intelectual.

Com pensamento absoluto, o pensamento de Deus está muito além do nosso, de

modo que não dá para saber o que ele quis com o devido rigor. Há aqui o que Tomás

chamou de “necessidade hipotética”198, sendo hipotética porque, para nosso intelecto,

é incerto o que Deus preferiu realizar. É opinável que Ele ordenou o mundo desde

sempre, mas também é opinável que Ele ordenou o mundo com um início. Salva-se

assim uma possibilidade epistêmica para o criacionismo, ao mesmo termo que não se

tenet. Non enim est necessarium, quamvis origo sit ab immobili principio absque motu, quod eorum esse sit sempiternum.” 197 REITER, David; JOHNSTON, Nathanael. Aquinas on the Eternality and Necessity of the World, p.7. 198 Expressão usada por DUBRA, J. A. C.. Necessidade e Contingência do Efeito da Causa Primeira: uma Comparação entre Tomás de Aquino e Avicena. Doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 7, n. 1, p.69-94, abril, 2010.

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descarta totalmente a eternidade do mundo aristotélica. Diante das duas alternativas

epistêmicas, Tomás não teria critérios puramente racionais para decidir por nenhuma

das duas. Assim, ele defende que devemos decidir seguir a alternativa que favorece a fé

católica. Contudo, reforço que essa é uma decisão apenas por fé199 em direção a uma

das crenças possíveis, porque em termos puramente de demonstração racional não há

nada que impede o contrário. O mesmo é falado sobre a origem dos anjos e corpos

celestes, que também é deixado como uma decisão por fé que tenha tido alguma

origem ou tenham existido desde sempre.

No que diz respeito à causa da necessidade vinda de Deus, temos duas

alternativas de consideração dos efeitos da causa da necessidade: os efeitos não

precisam necessariamente ser eternos, mas eles também podem ser eviternos (termo

típico do pensamento tomista). Por “eterno” aplicado a mundo, entende-se o

“perpétuo”, o que sempre foi e sempre será, que ocorre por necessidade. Por “eviterno”,

entende-se uma duração determinada que ocorre por necessidade de tal ponto até tal

ponto, onde a origem seria por criação e o término por aniquilação. Tal necessidade

destes seres criados decorreria do intelecto e do querer de Deus:

Pois, embora a origem de certas coisas se dê a partir de um princípio isento de movimento, não é necessário que seu ser seja eterno. Sim, porque um efeito procede de qualquer agente segundo o modo de ser deste agente. O ser do Princípio Primeiro é o Seu inteligir e o Seu querer. Logo, o universo das coisas, ao proceder do Princípio Primeiro, procede de algo que intelige e quer. E é próprio daquele que intelige e quer que ele produza algo não por necessidade – tal como Ele próprio é, mas como Ele deseja e intelige. (...) Se segue, a partir da ação do agente primeiro determinada medida de duração que resulta do intelecto divino que a prescreveu (...) porque toda a duração das coisas se encerra sob seu intelecto, de modo que Ele determine para as coisas, desde toda a eternidade, a medida de duração que queira.200

199 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 46, a. 2. 200 AQUINO, Tomás de. De Subst. Sepa., c. 9, n. 52: “Non enim est necessarium, quamvis origo sit ab immobili principio absque motu, quod eorum esse sit sempiternum. A quolibet enim agente procedit effectus secundum modum sui esse. Esse autem primi principii est eius intelligere et velle. Procedit igitur universitas rerum a primo principio sicut ab intelligente et volente. Intelligentis autem et volentis est producere aliquid non quidem ex necessitate, sicut ipsum est, sed sicut vult et intelligit. (...) ita etiam ex actione primi agentis consequitur determinata durationis mensura ex intellectu divino eam praescribente (...) quia tota rerum duratio sub eius intellectu et virtute concluditur, ut determinet rebus ab aeterno mensuram durationis quam velit.”

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Para encerrar, precisamos dizer que, independentemente do que Deus quis a

respeito do mundo, se o mundo teve início ou existiu desde sempre, isso não importa

para a unicidade do mundo. Em qualquer das opções, o mundo será único exatamente

em virtude da definição de “mundo” assumida por Tomás de Aquino. Seja tendo início

ou sempre existindo, uma vez ordenado por Deus, este mundo necessariamente será

um todo unitário, cujos vários atos de forma completam toda a potência em si da

matéria. Enfim, resumindo o seu status modal alético no sistema tomista, o mundo tem

necessidade intermediária entre a necessidade simpliciter e a necessidade em si, pois

completa toda a potência de modo múltiplo e, ao mesmo tempo, tem ser por outro.

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Capítulo 4: Resumo Geral e Análises do Modelo Potencialista

Esse capítulo final é a “coroação” de nossa pesquisa. Para encerrar essa tese

faremos um resumo geral com um apanhado de tudo o que foi visto. Considerando que

já foi bem estabelecido textualmente, citaremos textos de Tomás apenas quando

necessário. Na verdade, nós nos dedicaremos principalmente à análise formal do

Modelo Potencialista por trás do pensamento de Tomás de Aquino.

A intenção por trás dessas análises formais é mostrar que o instrumento usado

por Tomás, a saber, o Modelo Potencialista, é neutro por si mesmo. Trata-se de um

instrumento lógico que poderia ser usado por qualquer um. Ao mostrarmos a

independência que o Modelo Potencialista tem do Sistema Tomista, nós eliminamos

uma possível conclusão errônea de que o instrumento foi criado apenas para justificar o

sistema tomista. Em outras palavras, se o Modelo Potencialista depender do Sistema

Tomista para funcionar, então nós poderíamos cair em circularidade (onde um justifica

o outro) ou esse modelo não passaria de uma solução ad hoc para os problemas modais

aléticos presentes no Sistema Tomista que vimos no início do tópico 1.2.

A defesa da independência e neutralidade do Modelo Potencialista se faz

necessária, pois defendemos que, assim, conseguimos trazer maior legitimidade para as

conclusões do filósofo medieval. O ponto-chave dessa defesa repousará no fato de que

o Modelo Potencialista não está preso à definição de “mundo” tomista, tal como

apresentada anteriormente no capítulo 3. Assim, o sistema tomista envolve o Modelo

Potencialista acrescido da definição de “mundo” como a totalidade das criaturas. No

final das contas, apenas a definição de “mundo” de Tomás (e Aristóteles) será

incompatível com o uso da S.M.P. para descrever seus pensamentos, mas o Modelo

Potencialista por si mesmo não é incompatível com a S.M.P., como se poderia pensar

erroneamente. Dessa maneira, entendemos que não estamos fazendo apenas uma

apologia do sistema tomista, mas antes estamos mostrando a verdadeira natureza

instrumental do Modelo Potencialista, o que pode ser útil para qualquer um.

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Uma vez esclarecido o nosso objetivo com esse tópico, podemos agora

prosseguir apresentando mais formalmente esse modelo de semântica. Quando

analisamos esse Modelo Potencialista, podemos observar que as modalidades aléticas

são determinadas de acordo com a abrangência da potência, como uma espécie de

“espaço” de possibilidade, isto é, até onde vai a extensão da possibilidade. Dentro desse

espaço de possibilidade, os possíveis, os contingentes e necessários estão inclusos, mas

os impossíveis estão de fora.

Esse modelo descreve melhor o Sistema Aristotélico e Tomista porque não exige

tantas restrições. Em seus textos, Knuuttila apresenta o Modelo Estatístico proposto por

Hintikka como exigindo três restrições de aplicabilidade para que funcione, de modo

que há muitos pensamentos modais que não são abarcados no Modelo Estatístico.

Sendo assim, sem depender de qualquer restrição, podemos dizer que o Modelo

Potencialista descreve melhor os pensamentos de Aristóteles e de Tomás de Aquino.

No entanto, devemos dar o devido crédito a Hintikka e Knuutila, porque eles

apontaram corretamente que o pensamento de Aristóteles e seus seguidores não

devem ser descritos em termos de Semântica de Mundos Possíveis. De fato, a principal

motivação de nossa tese girou em torno dessa questão: se não devemos usar a S.M.P, o

que devemos usar em seu lugar para descrever as modalidades aléticas e deixar o

pensamento aristotélico-tomista coerente?

Neste ponto, há de se considerar que o Modelo Potencialista também resolve o

problema descrito no início do tópico 1.2, que levou Hintikka a desenvolver o Modelo

Estatístico. Em resumo, o problema é o seguinte: foi afirmado no De Caelo que o

necessário ocorre por um tempo infinito, ou seja, para sempre. No modelo de mundos

possíveis, o fato de algo ocorrer por um tempo infinito no mundo atual não garante que

este algo será necessário, pois é fácil imaginar mundos possíveis onde o mesmo não

ocorre sempre. Nesse sentido, é com essa argumentação de mundos possíveis que

muitos comentadores defendem que Aristóteles cometeu uma falácia modal.

Contudo, excluindo a possibilidade de outro mundo, o pensamento de

Aristóteles e de Tomás de Aquino fica salvaguardado. É fácil conceber que, no único

mundo possível, o ato necessário que completa toda a potência não deixa nenhuma

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potência em aberto para deixar de ser o que é em algum outro momento qualquer. Em

outras palavras, não há um momento em que o ato necessário deixe de ser, isto é, o

necessário ocorre sempre mesmo. Assim, fica claro que Aristóteles não teria cometido

nenhuma falácia naquele momento.

Além dissio, diferentemente do que Knuutila e Hintikka defenderam, mostramos

que Aristóteles e Tomás de Aquino possuem um modelo de semântica que não é um

modelo meramente diacrônico, isto é, que descreve as modalidades aléticas apenas ao

longo de uma única linha temporal, sem usar alternativas nas descrições. Na verdade,

mais fundamentalmente, esse Modelo Potencialista é um modelo sincrônico, isto é, que

descreve as modalidades usando alternativas ao mesmo tempo, mesmo que não use

mundos possíveis.

Portanto, Aristóteles e Tomás de Aquino não descrevem as alternativas das

possibilidades usando mundos possíveis inteiros, como ocorre na Semântica dos

Mundos Possíveis, mas alternativas de indivíduos dentro de uma espécie (ou de

espécies dentro de um gênero). Portanto, seria realmente incorreto usar essa

semântica de mundos possíveis para descrever os pensamentos aristotélicos e

tomistas. Para eles, se algo é possível, contingente, necessário ou impossível, este algo o

será desse modo apenas em função das alternativas dentro da abrangência da

possibilidade do gênero ou da espécie. Entraremos em mais detalhes a seguir.

4.1 Uma Semântica Autoexplicativa com os Primeiros Princípios

Neste tópico, pretendo definir de um modo mais formal a semântica com

Modelo Potencialista ao mesmo tempo em que identificamos que este modelo tem um

caráter mais intuitivo e autoexplicativo do que os outros. Usaremos dos primeiros

princípios lógicos como base para uma análise mais neutra e formal, seja da extensão

das modalidades em si, seja das modalidades simpliciter, onde teremos a oportunidade

para sustentar a oposição que Tomás faz ao Princípio da Plenitude.

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O Modelo Potencialista traz um esclarecimento mais satisfatório do que os

outros modelos a respeito do que é necessário, contingente, impossível e possível. Na

verdade, em certo sentido, este modelo Potencialista tende a ser basicamente

autoexplicativo, o que não acontece do mesmo modo com os outros modelos.

Propriamente, as modalidades aléticas são definidas claramente por essas quatro

funções: [1] “estar dentro da abrangência”, [2] “estar fora da abrangência”, [3]

“pertencer e não completar a abrangência” e [4] “pertencer e completar a

abrangência”. Não é necessário nada além para determinar uma semântica.

Esse modelo já esclarece o porquê de algo ser possível, impossível, contingente e

necessário, sendo autoexplicativo, dado que somente depende dos primeiros princípios

para se explicar: Princípio de Identidade, Princípio de Não-Contradição e Princípio do

Terceiro Excluído. Determinamos que possível é o ato que está dentro de uma

abrangência da potência e impossível é o ato que está fora da abrangência da potência,

mas por quê? Porque são as duas combinações possíveis da relação entre ato e potência

seguindo o Princípio do Terceiro Excluído. Trata-se apenas da afirmação e da negação

dessa relação. Ou um ato (sendo possível) está relacionado a uma potência ou o ato

(sendo impossível) não está relacionado com a potência.

Por sua vez, considerando apenas o lado do possível, onde há alguma relação

entre potência e ato, falta determinar como essa relação ocorre. Para isso, afirmamos

que o contingente é o ato que não completa toda a abrangência da potência e o

necessário é o ato que completa toda a abrangência da potência. Por quê? Usamos

novamente o Princípio do Terceiro Excluído para determinar como a relação potência-

ato ocorre, a saber, com a afirmação e a negação da completude. Ou um ato (sendo

contingente) não completa a potência a qual está relacionado ou o ato (sendo

necessário) completa a potência a qual está relacionado. Observe-se que aquilo que é

contingente também é possível e aquilo que é necessário também é possível, apesar de

que o possível nem sempre é contingente ou nem sempre é necessário.

Neste parágrafo, farei uma pequena digressão sobre o Princípio da Plenitude. O

Princípio da Plenitude reza o seguinte: “tudo o que é possível ocorre em algum

momento”. Vemos aqui como Tomás de Aquino (e Aristóteles, por extensão) seriam

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contrários ao Princípio da Plenitude, pois ainda podemos fazer uma análise detalhada

sobre caso da contingência usando novamente o Princípio do Terceiro Excluído. De fato,

assim como encontramos ali o ato realizado (contingente) que não completa da

abrangência da potência, pelo fato mesmo de não completar, também encontramos o

ato não realizado dentro da abrangência da potência (ainda meramente possível). Ao

analisar isso, observamos que não é o fato de “ocorrer em algum momento” que define

o que é possível. Não há nenhum absurdo ou nenhuma contradição em supor que esse

ato não seja realizado e continue sem ser realizado para sempre. Mesmo nesse caso

extremo que estamos supondo de nunca se realizar, algo ainda continuaria sendo

considerado como “possível”, pois se trata de um ato que está dentro da abrangência da

potência. Considerando que Tomás e Aristóteles seguem o Modelo Potencialista, eles

são definitivamente contrários ao Princípio da Plenitude.

Voltando para as análises, podemos dizer que estabelecemos como ficam

separadas as quatro modalidades aléticas com base na potência e ato. Contudo, resta

saber o critério que determina o que está dentro ou fora, e, estando dentro, o que

completa ou não completa. Ora, podemos dizer que, em última instância, esse Modelo

Potencialista está fundado diretamente no Princípio de Não Contradição, pois, como

vimos, ele é a base para se descrever a necessidade em si, a impossibilidade em si, a

possibilidade em si e a contingência em si. Em última instância, temos o seguinte:

Possibilidade em Si: o ato possível está dentro da abrangência da potência em si se e somente

se a ocorrência do ato não é contraditória.

Impossibilidade em Si: o ato impossível não está dentro da abrangência da potência em si se e

somente se a ocorrência do ato é contraditória.

Contingência em Si: o ato contingente não completa a abrangência da potência em si se e

somente se a não ocorrência do ato não é contraditória.

Necessidade em Si: o ato necessário completa a abrangência da potência em si se e somente se

a não ocorrência do ato é contraditória.

Em certo sentido, por extensão, ainda poderíamos aplicar tal pensamento

também para as modalidades simpliciter. Para isso, precisamos supor o “contraditório

para a espécie”, o que exige maior análise além dos Primeiros Princípios, como, por

exemplo, análises das propriedades comuns dos indivíduos que o definem como

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pertencendo à espécie em questão. Assim, seria “contraditório para espécie”

justamente aquilo que for contraditório em relação a essas propriedades comuns:

Possibilidade Simpliciter: o ato possível está dentro da abrangência da potência da espécie se e

somente se a ocorrência do ato não é contraditória para a espécie.

Impossibilidade Simpliciter: o ato impossível não está dentro da abrangência da potência da

espécie se e somente se a ocorrência do ato é contraditória para a espécie.

Contingência Simpliciter: o ato contingente não completa a abrangência da potência da espécie

se e somente se a não ocorrência do ato não é contraditória para a espécie.

Necessidade Simpliciter: o ato necessário completa a abrangência da potência da espécie se e

somente se a não ocorrência do ato é contraditória para a espécie.

Assim, fica esclarecido como o Princípio de Não Contradição seria o critério

básico para se determinar a modalidade alética de qualquer coisa. Contudo, também

poderíamos usar o Princípio de Identidade para a mesma finalidade. Nesse caso, a

critério seria o quanto a abrangência do ato se identifica com a abrangência da

potência, isto é, se é totalmente, parcialmente, nula ou não nula. Dessa maneira, nós

teríamos as seguintes definições:

Necessidade em Si: o ato necessário completa a abrangência da potência em si se e somente se

a abrangência de um ato individual é totalmente idêntica à abrangência da potência em si.

Contingência em Si: o ato contingente não completa a abrangência da potência em si se e

somente se a abrangência de um ato individual é parcialmente idêntica à abrangência da

potência em si.

Impossibilidade em Si: o ato impossível não está dentro da abrangência da potência em si se e

somente se a abrangência de um ato individual é totalmente diferente da abrangência da

potência em si.

Possibilidade em Si: o ato possível está dentro da abrangência da potência em si se e somente

se a abrangência de um ato individual não é totalmente diferente da abrangência da potência

em si.

Observe que seguimos uma ordem inversa nas definições. De fato, quando se

define em termos de identidade, a modalidade alética mais imediata e clara é a

necessidade, seguida da contingência. Para complementar, usamos a expressão

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“totalmente diferente” para indicar a ausência de qualquer identidade. É intuitivo o

significado, pois se trata da diferença total entre ato e potência, que indica algo

impossível e totalmente fora da potência. Por fim, o mais abstrato fica com a negação

da diferença total, onde teríamos uma a dupla negação, a qual indica uma afirmação. O

possível seria diferente do contingente porque, ao negar a diferença total, isto é, um ato

totalmente diverso, ele afirma que está dentro, sem determinação. Uma vez

esclarecidas as modalidades em si, ainda falta aquelas que são simpliciter, mas a

transcrição seguirá a mesma estrutura:

Necessidade Simpliciter: o ato necessário completa a abrangência da potência da espécie se e

somente se a abrangência de um ato individual é totalmente idêntica à abrangência da

potência da espécie.

Contingência Simpliciter: o ato contingente não completa a abrangência da potência da espécie

se e somente se a abrangência de um ato individual é parcialmente idêntica à abrangência da

potência da espécie

Impossibilidade Simpliciter: o ato impossível não está dentro da abrangência da potência da

espécie se e somente se a abrangência de um ato individual é totalmente diferente da

abrangência da potência da espécie.

Possibilidade Simpliciter: o ato possível está dentro da abrangência da potência da espécie se e

somente se a abrangência de um ato individual não é totalmente diferente da abrangência da

potência da espécie.

Os outros modelos também se utilizam dos primeiros princípios, mas não do

mesmo modo que o Modelo Potencialista. Ao usar o princípio de não contradição, o

Modelo Estatístico não o aplica diretamente à “possibilidade”, mas o aplica a uma

relação com o “tempo”. Do mesmo modo, ao usar do mesmo princípio, o Modelo de

Mundos Possíveis analisa seus objetos específicos assumindo de antemão que haja

outros “mundos”. Ora, “tempo” e “mundo” não são noções que estão diretamente

relacionadas com os primeiros princípios, mas exige-se que se assuma de antemão

certas concepções de tempo e de mundo, sobre os quais são feitas as análises. Por outro

lado, a noção de “potência” já possui uma íntima conexão com a noção de

“possibilidade”, e isso ocorre de tal modo que elas são até mesmo intercambiáveis,

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dependendo do contexto de uso. Assim, a principio, entendemos que, na relação entre

possibilidade e potência, não há um círculo vicioso, pois um não é baseado no outro,

mas eles são sinônimos na maioria dos casos. Ao longo da tese, usamos muito a

expressão “abrangência da possibilidade” no lugar de “abrangência da potência”, por

causa das razões apresentadas no tópico 2.1, quando tratamos da substância genérica.

Enfim, uma vez que a possibilidade (ou a potência) se alicerça diretamente nos

primeiros princípios, podemos concluir que o Modelo Potencialista condiz melhor com

as nossas intuições mais primitivas acerca de possibilidade, impossibilidade,

contingência e necessidade. Com o que foi exposto, fica claro que o Modelo

Potencialista é autoexplicativo. Qualquer semântica que queira representar as nossas

intuições modais aléticas precisa ser, antes de tudo, relacionada a esses princípios.

Esclarecido esse ponto, podemos agora nos questionar sobre a primitividade do Modelo

Potencialista no tópico seguinte.

4.2 Uma Semântica Mais Fundamental e Primitiva

Neste tópico, nós nos dedicaremos a fazer um trabalho comparativo entre o

Modelo Potencialista, Modelo Estatístico e o Modelo de Mundos Possíveis. Nessa

comparação, buscaremos mostrar como esse Modelo Potencialista apresenta uma

semântica mais fundamental e primitiva do que a Semântica de Mundos Possíveis e do

que a semântica do Modelo Estatístico de Frequência Temporal.

Logo de imediato, vemos que os outros modelos não são autoexplicativos. O

Modelo Estatístico apenas assume, mas não esclarece o porquê de o necessário ocorrer

sempre, o possível (ser suposto) ocorrer em algum momento, o impossível nunca ocorrer

e o contingente ocorrer sem ser para sempre. Além disso, a Semântica de Mundos

Possíveis também não esclarece sozinha a razão pela qual usa “mundo” como

instrumento para a semântica, uma noção que não é imediatamente relacionada com as

modalidades, como ocorre com a potência.

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Como vimos, a própria palavra “mundo” pode ser ambígua e, caso indique a

“totalidade das coisas”, não cabe falar de outros mundos, mas só seria possível pensar

em apenas um único mundo, como queria Aristóteles e Tomás de Aquino. A SMP não

considera a significação da palavra “mundo” no sentido aristotélico e tomista, ou seja,

há pensamentos modais que escapam a essa semântica. Um esforço para considerar um

único mundo possível em termos da SMP iria resultar que, como há apenas um único

mundo, aquilo que ocorre nesse mundo ocorre em todos, de modo que tudo seria

necessário, e nem sequer haveria distinção entre as quatro modalidades aléticas.

No entanto, podemos usar o Modelo Potencialista para esclarecer o Modelo

Estatístico. De fato, algo possível é aquilo que (se supõe que) ocorre em algum

momento (a possibilidade no Modelo Estatístico) porque há potência em aberto dentro

da abrangência da potência, tendo possibilidade para ocorrer a qualquer momento.

Contudo, essa concepção Potencialista vai além do que se espera do Modelo Estatístico,

chegando a negar o Princípio da Plenitude, como vimos no tópico 4.1. Por sua vez, o

impossível nunca ocorre (a impossibilidade no Modelo Estatístico) porque a atualidade

está fora da abrangência da potência e, assim, não terá relação com a potência em

qualquer momento concebível. Por outro lado, o contingente ocorre agora, mas

supomos que ele deixará de ocorrer (a contingência no Modelo Estatístico) porque a

atualização que ocorre não completa toda a potência dele, deixando em aberto alguma

potência para não ser o que ele é em outro momento. Por fim, algo necessário ocorre

sempre (a necessidade no Modelo Estatístico) porque a abrangência da potência deste

algo é completada pela atualidade deste algo, de modo que não há potência em aberto

para não ser o que é em algum outro momento.

Como vimos, a definição de “mundo” é um dos pontos que levaram Aristételes e

Tomás de Aquino a rejeitar a possibilidade de outros mundos. Supondo isso, podemos

fazer a seguinte questão: “E se a definição de “mundo” fosse outra?”. De fato, “mundo”

também pode se referir a “conjuntos maximais de proposições”, seguindo Plantinga201 e

Adams202. “Mundo” ainda pode indicar uma “propriedade não instanciada de mundo”

201 PLANTINGA, Alvin. The Nature of Necessity. Oxford: Oxford University Press. 1974. 202 ADAMS, Robert Merihew. ‘Theories of Actuality. Nous 8:211–31, 1974.

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(Stalnaker203), “recombinações de propriedades atuais” (Armstrong204) ou “meros

elementos de ficção” (Rosen205). Diante disso, se Aristóteles e Tomás definissem

“mundo” de outra maneira mais fraca, eles mesmos ficariam mais dispostos a aceitar a

possibilidade de outros mundos possíveis. Afinal, como ficaria o Modelo Potencialista,

se assumirmos uma definição mais fraca de “mundo”?

É possível identificar essa possibilidade ao analisar uma objeção contra Tomás.

Com essa objeção abaixo, contrária a posição de Tomás, vemos que o Modelo

Potencialista é capaz de descrever mundos possíveis. Contudo, vemos logo abaixo que

Tomás é contrário a essa argumentação e a resposta dele está toda alicerçada sobre a

definição de “mundo” como totalidade:

Tudo o que teve uma forma numa matéria pode ser numericamente multiplicado, permanecendo a espécie a mesma, porque a multiplicação numérica vem da matéria. Ora, o mundo tem uma forma material. Pois, assim como dizendo “homem” exprimo a forma, e dizendo “este homem” exprimo a forma na matéria; assim também, ao dizer “mundo” exprimo a forma, e dizendo “este mundo” exprimo a forma na matéria. Logo, nada impede que haja diversos mundos.

– O mundo consta da sua matéria total. (...)206

Assim, desconsiderando a definição de “mundo” e saindo do sistema tomista

(talvez indo para análises mais próximas do sistema de Duns Scotus), podemos fazer um

experimento mental independente e considerar apenas o Modelo Potencialista. Com

uma definição mais sutilmente fraca de “mundo”, podemos representar a sua relação

entre potência e ato que foi descrita na objeção contrária com esse diagrama:

203 STALNAKER, Robert. ‘PossibleWorlds.’ Noûs 10:65–75. 1976. 204 ARMSTRONG, David. A Combinatorial Theory of Possibility. Cambridge: Cambridge University Press. 1989. 205 ROSEN, Gideon. Modal Fictionalism. Mind 99: 327–54. 1990. 206 AQUINO, Tomás de. S.Th. I, q. 47, a. 4, arg 3 et ad 3.

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De imediato, observe que estamos tratando “mundo” com a estrutura de

contingência. Assim, supondo uma definição não aristotélica de “mundo” juntamente

com o Modelo Potencialista, nós poderíamos explicar o uso da palavra “mundo” da

S.M.P. a partir do Modelo Potencialista. Vemos, assim, claramente como é concebível a

consideração de vários mundos, de modo que a estrutura de contingência é a base da

S.M.P., sobre a qual são feitas todas as análises com alternativas de mundos.

Nesse sentido, na relação espécie-indivíduo, o objeto modalizado é o indivíduo,

o qual terá uma relação direta com a espécie “mundo”. Assim, o objeto possível ocorre

em algum mundo possível porque a atualidade deste objeto está dentro da abrangência

da potência da espécie “mundo”. O objeto contingente ocorre no mundo atual, mas não

em todos os mundos possíveis, porque a atualidade deste objeto não completa a

potência da espécie “mundo”. Por sua vez, o objeto necessário ocorre em todos os

mundos possíveis porque a atualidade deste objeto completa totalmente a potência da

espécie “mundo”. Ora, enfatizando a totalidade, se a atualidade completa toda a

potência da espécie “mundo”, segue-se que o objeto se realiza em todas as instâncias

alternativas de “mundo”. Por fim, um objeto impossível não ocorre em nenhum mundo

possível porque a atualidade desse algo está fora a potência da espécie “mundo”.

Diante disso, observa-se claramente que o Modelo Potencialista é independente de

qualquer definição de “mundo”, dado que se adapta a qualquer situação. Por outro

lado, a S.M.P. depende de qual definição de “mundo” é assumida.

Portanto, fica claro que o Modelo Potencialista pode explicar claramente o

Modelo de Mundos Possíveis. Contudo, há casos em que o Modelo Potencialista

consegue descrever, mas o Modelo de Mundos Possíveis não consegue descrever de

modo preciso, como é o caso da noção de “mundo” tomista. Da mesma maneira, é

visível que as modalidades aléticas no Modelo Estatístico são explicadas pelo Modelo

Potencialista, mas o contrário não é verdadeiro, já que a quantificação do tempo não

explica a completude ou não das potências, ou estar dentro ou fora das potências.

Por esta razão, podemos concluir que este Modelo Potencialista é mais

fundamental e primitivo logicamente do que o Modelo de Mundos Possíveis e o Modelo

Estatístico. Por “primitivo”, entendo que serve de base para a explicação dos outros,

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enquanto os outros não servem de base de explicação para este. De fato, o Estatístico e

o de Mundos possíveis podem ser descritos pelo Potencialista, enquanto que este não

pode ser totalmente descrito por aqueles. Tal pensamento também nos levará à

conclusão de que o Modelo Potencialista é mais abstrato e geral, tendo uma aplicação

mais ampla que os outros modelos.

4.3 O Modelo Potencialista como um Instrumento Neutro e Independente

Como vimos anteriormente, é importante destacar que a Semântica de Mundos

Possíveis é incompatível com sistema aristotélico e tomista, mas isso não quer dizer que

a S.M.P. será incompatível com o Modelo Potencialista em si, isto é, considerado

independentemente do sistema desses filósofos. Assim, neste tópico, veremos cinco

evidências de que o Modelo Potencialista é neutro e independente do sistema tomista,

a saber: [1] tem a extensão de aplicabilidade é mais genérica, [2] tem explicatividade

com base nos princípios, [3] é mais fundamental e primitivo, [4] é independe da

definição de “mundo” e [5] é baseado em “espaços lógicos” (extensão) e diagramas.

Ora, sabemos que muitas das teorias dos filósofos clássicos são inviáveis diante

da ciência atual, pois já foi comprovado que os corpos celestes e o universo (“mundo”

tomista) não são eternos ou necessários. Mesmo assim, isso não significa que o Modelo

Potencialista foi refutado e se tornou inviável atualmente, mas apenas parte das teorias

desses filósofos foi refutada. É fácil ver a aplicação do Modelo Potencialista atualmente,

pois basta fazer uma adaptação, passando a tratar os corpos celestes e o mundo como

contingentes. Com essa descrição, adaptamos para a atualidade.

Esse é o ponto máximo de nossa tese, onde pretendemos defender o Modelo

Potencialista como um instrumento neutro que pode ser usado por qualquer um. Para

fazer essa defesa, será necessário defender que o Modelo Potencialista pode se

descolar do Sistema Aristotélico e do Tomista, constituindo um instrumento lógico

independente. Em outras palavras, o Modelo Potencialista não é somente aristotélico

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ou tomista, mas é um instrumento independente, que foi apenas usado por esses

filósofos para defender as suas respectivas visões de mundo.

Neste ponto, podemos destacar que a extensão da aplicabilidade do Modelo

Potencialista é maior do que a do Modelo de Mundos Possíveis e do Modelo Estatístico.

De fato, com o Modelo Potencialista é possível expressar tanto um sistema que admite

um único mundo quanto um sistema de vários mundos possíveis. Isso faz com que a

semântica potencialista possa se servir dos princípios de cada um dos outros dois

modelos de semântica, como se estivesse contidos nele. Desse modo, todo o trabalho

que já foi desenvolvido sobre as modalidades aléticas com base na S.M.P. ao longo do

século XX e XXI pode ser tratado simplesmente como estando contido dentro de um

Modelo Potencialista, considerando-o sozinho e independente do Sistema Tomista.

Diante disso, vemos que esse Modelo Potencialista é mais geral do que o próprio

sistema aristotélico e o sistema tomista. Na verdade, ambos são meras aplicações

práticas desse Modelo Potencialista, dado que são descritos e representados por ele. Eis

a primeira evidência de que o Modelo Potencialista é um instrumento independente.

No entanto, para sermos mais precisos, há características que estariam além das

outras duas semânticas, o que torna o Modelo Potencialista mais geral do que os outros

dois juntos. De fato, a capacidade mesma de uso supondo um único mundo já o faz ir

além do que a S.M.P. seria capaz. Além disso, o Modelo Potencialista também

determina noções além da S.M.P. ao supor a ideia de que várias instâncias diferentes

em conjunto produzem uma necessidade intermediária, como é o caso da necessidade

das espécies que conjuntamente completam toda a potência por si da matéria, como

vimos no início do tópico 3.2. De fato, quando há instâncias e alternativas diferentes, a

S.M.P. somente consegue determinar que estas alternativas diferentes são possíveis.

Contudo, o Modelo Potencialista consegue conceber alternativas diferentes que são

possíveis (quando o ato delas em conjunto não completa a potência), bem como

consegue conceber alternativas diferentes, onde cada uma é necessária (quando o ato

delas em conjunto completa a potência). Assim, fica claro que o Modelo Potencialista

consegue determinar mais coisas do que o Modelo de Mundos Possíveis.

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Além disso, no caso de haver realmente um único mundo, o Modelo

Potencialista vai muito além das descrições temporais do Modelo Estatístico. De fato, o

Modelo Potencialista consegue realizar descrições como um modelo sincrônico, isto é,

que envolve múltiplas alternativas ao mesmo tempo, mesmo que haja apenas uma

única linha temporal, sem admitir uma teoria dos mundos possíveis. Neste caso, há

várias alternativas sincrônicas dentro de uma abrangência, seja várias alternativas de

indivíduos dentro de uma espécie, ou várias espécies alternativas dentro de um gênero.

Somente a necessidade, que é baseada na unicidade, não teria alternativas e nem

precisaria delas. Nesse sentido, haveria apenas um mundo, mas não precisamos seguir

uma semântica das modalidades diacrônica, isto é, com alternativas ao longo do tempo

na única linha temporal, como vimos que foi proposto por Hintikka e Knuutilla. Em

suma, a generalidade do Modelo Potencialista é, de fato, a primeira evidência de que o

Modelo Potencialista é neutro e independente. Para sermos claros, a princípio, teríamos

a extensão de aplicabilidade dos modelos representada por esse diagrama:

Para reforçar a independência do Modelo Potencialista em relação ao sistema

tomista, basta lembrar que, como já vimos, em última instância, o Modelo Potencialista

se baseia nos primeiros princípios e é autoexplicativo, o que caracteriza uma segunda

evidência. Assim, esse modelo não está preso a definições teológicas, como foi o uso

Tomás em várias situações. Enfim, o Modelo Potencialista poderia ser usado até mesmo

por ateus, já que os primeiros princípios são neutros e são base de qualquer raciocínio.

Além disso, mesmo que os outros modelos usem os primeiros princípios, o Modelo

Potencialista é mais fundamental e primitivo, pois também pode auxiliar na explicação

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dos outros modelos, apesar de os outros modelos não conseguirem fazer o mesmo por

ele, o que é uma terceira evidência.

Apesar de as modalidades serem usadas por Tomás de Aquino para auxiliar na

descrição de assuntos próprios de seu sistema, o modelo possui maior independência,

de modo que pode servir de instrumento lógico para formalizar qualquer pensamento.

Por exemplo: o Modelo Potencialista em si mesmo não está preso a qualquer que seja a

definição de “mundo” que se tenha, eis uma quarta evidência.

É verdade que este Modelo Potencialista de Tomás de Aquino, a princípio, supõe

o realismo moderado, teoria segundo a qual os universais (Ex. “homem”, “animal”

“planta”, e outros termos que podem ser atribuídos a vários indivíduos) têm um ser na

realidade como propriedade real dos indivíduos. Sabemos que tal teoria é rejeitada

pelos filósofos que tem posição nominalista a respeito dos universais. De fato, é

esperado que, geralmente, os nominalistas costumem fazer grande oposição ao uso das

modalidades aléticas, mesmo considerando a semântica de mundos possíveis.

Mesmo assim, tenho uma hipótese de que não haveria grandes prejuízos se os

nominalistas usassem este Modelo Potencialista fazendo as devidas adaptações. É óbvio

que não atribuirão qualquer realidade às potências e suas abrangências, mas podem

considerar as abrangências em termos puramente extensionais, que serviriam de base

para as análises modais enquato espaços meramente lógicos intramentais. Se não

quiserem aceitar nada lógico intramental, em última instância, eles ainda podem levar

em consideração apenas os diagramas que montamos ao longo do capítulo 2 dessa

tese. Esses diagramas são esquemas simbólicos que trazem ao menos algum

esclarecimento sobre as modalidades aléticas. De fato, os diagramas possuem maior

independência, sem nenhum comprometimento com qualquer sistema filosófico em

particular, o que seria uma quinta e última evidência de que esse Modelo Potencialista

é neutro e independente.

Enfim, esse ponto a respeito dos nominalistas deve ser considerado apenas a

título de sugestão. Afinal de contas, trata-se de um instrumento passível de uso. A única

intenção dessa sugestão do modelo potencialista é contribuir para se analisar as

modalidades aléticas. Defendo que não haveria prejuízo para eles, mas deixo em aberto

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para os nominalistas julgarem essa minha hipótese de eles aceitarem usar ou não usar

os diagramas, considerando as devidas adaptações.

Enfim, conclui-se que o Modelo Potencialista não é somente tomista ou

aristotélico, mas trata-se de um instrumento lógico independente que apenas foi

utilizado por Aristóteles e Tomás de Aquino nos seus respectivos sistemas. Portanto,

apesar de podermos identificar a sua origem histórica no uso que esses autores fizeram,

fica patente que essa semântica das modalidades aléticas ultrapassa em muito os seus

primeiros usuários, podendo ser útil para qualquer um, até mesmo nos dias de hoje.

Assim, consideramos que conseguimos dar a devida legitimidade para o Modelo

Potencialista, bem como para as conclusões dos seus usuários.

4.4 Aplicação Prática do Modelo Potencialista

No tópico 1.1, foi dada a definição geral de modalidades aléticas como sendo os

modos que determinam como o verbo “ser” une o predicado ao sujeito dentro de um

juízo na forma “S é P”. Observa-se, assim, que as análises das modalidades aléticas são

tratadas como essencialmente predicativas e não como proposicionais. Ora, o Modelo

Potencialista trabalha exatamente numa relação entre sujeito e predicado,

representando, assim, melhor as modalidades aléticas. Neste tópico final, apesar de me

basear em Tomás de Aquino, buscarei teorizar de uma maneira mais independente em

relação ao sistema tomista. Consideraremos quatro tipos de aplicações: [1] uma

hipótese de aplicação em termos proposicionais pela comparação entre sujeito-

predicado e antecedente-consequente, [2] aplicação ao pensamento dos

disposicionalistas contemporâneos, [3] aplicação na matemática e [4] a aplicação mais

propriamente do sistema tomista.

Para destacar essa independência, gostaria de apresentar uma hipótese que, a

princípio, não é prevista por Tomás. Nessa hipótese, estamos supondo que o leitor saiba

que a Lógica Proposicional pode expressar adequadamente todas as funções de verdade

usando apenas os conectivos da implicação e da negação, pois não mencionaremos os

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outros conectivos. Afirmo isso porque entendemos que a relação entre sujeito-

predicado de uma sentença é semelhante à relação antecedente-consequente de uma

implicação. A semelhança entre essas relações repousa no fato de que ambos podem

ser descritos formalmente pelos diagramas de modo semelhante, como vemos nos

seguintes exemplos:

De fato, é visível que a potência de “Homem” é realizada não somente por

“Sócrates”, mas por outros indivíduos também. Ao mesmo tempo, sabemos que a

potência da proposição “A rua está molhada” é verdadeira não somente na condição de

ser verdade a proposição “Chove”, mas também é verdadeira na condição de outras

proposições serem verdadeiras. Vemos claramente a semelhança entre os dois, onde

demonstram ter a mesma estrutura formal. Diante desta mesma estrutura formal,

quanto às negações, temos três considerações possíveis: [1] negar o sujeito é

semelhante a negar o antecedente, [2] negar o predicado é semelhante a negar o

consequente e [3] negar a sentença é equivalente a negar a implicação.

É evidente que essa hipótese exige um aprofundamento, mas, como tal hipótese

ultrapassa demais o pensamento tomista, vai ultrapassar demais também o escopo

desta tese. Por isso, decidimos apenas apresentar em termos gerais essa hipótese para

não excluirmos por completo o âmbito proposicional da lógica de nossas análises

modais. Dessa maneira, mesmo que fuja demais ao pensamento tomista, o leitor pode

considerar que tudo o que falarmos, a partir de agora, sobre a relação sujeito-predicado

é aplicável, mutatis mutandis, à relação antecedente-consequente.

Esclarecido esse ponto, passemos a tratar apenas em termos da relação sujeito-

predicado. No Modelo Potencialista, tudo o que precisamos está dentro da própria

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sentença declarativa, não sendo necessário nada de externo à sentença para as análises

modais. O mesmo claramente não pode ser afirmado sobre o Modelo de Mundos

Possíveis e o Modelo Estatístico, que envolvem elementos externos à sentença, como é

o caso da quantificação de mundos ou do tempo. Ao contrário desses modelos, o

Modelo Potencialista precisa apenas da relação sujeito e predicado, mas as análises

mudam dependendo de qual é o lado potencial ou o lado atual. Desse modo, essa

semântica será simplesmente baseada em o sujeito preencher ou não preencher a

possibilidade do predicado, ou o predicado que preencher ou não preencher a

possibilidade do sujeito.

Assim, consideremos o ponto de vista dos disposicionalistas contemporâneos,

que parte do individual para o específico. O que parece contribuir para esse ponto de

vista é a estrutura da linguagem humana: em geral, colocamos o sujeito como sendo

potencial para receber caracterizações, e o predicado envolve exatamente aquelas

caracterizações que atualizam o que era potencial no sujeito. Vejamos um exemplo. Na

sentença “Sócrates é homem”, geralmente consideramos “Sócrates” como sendo o lado

potencial e “ser homem” como sendo o lado atual, uma vez que esperamos que

Sócrates receba a caracterização de ser homem. Dessa maneira, geralmente definimos

essa sentença como sendo necessária, pois a atualização de “ser homem” preenche e

completa toda a “potência de Sócrates”. Para visualizar melhor, basta nos questionar:

existe algum espaço em aberto na “abrangência da potência de Sócrates” para não “ser

homem”? Em outras palavras, é possível imaginar Sócrates sem ser homem? “Não ser

possível não ser homem...” é um modo de descrever exatamente a necessidade. Vale

lembrar que é evidente que “Sócrates” é um nome próprio que poderia ser dado a um

cachorro ou gato, mas eu estou supondo o ser individual humano em questão.

Ademais, agora, considerando a sentença “Sócrates é branco”, dá para imaginar

uma possibilidade de Sócrates não ser branco, de modo que a atualização de “branco”

deixa em aberto parte da “potencialidade de Sócrates” para não ser branco. Desse

modo, se é possível não ser, então a sentença declarativa “Sócrates é branco” seria

contingente. Essa mesma sentença “Sócrates é branco”, bem como a sentença

“Sócrates é homem”, também seria possíveis, pois os predicados “branco” e “homem”

estão dentro da abrangência da potência do sujeito “Sócrates”. Poderíamos ainda

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considerar a sentença “Sócrates é voador”, onde veríamos que o predicado “voador”

está fora da abrangência de potência do sujeito “Sócrates”, o que faz com que essa

sentença seja impossível.

Nesse sentido, a estrutura da linguagem parece ser uma das razões pelas quais

os disposicionalistas ou potencialistas contemporâneos citados no tópico 1.3 seguem a

ordem do conhecimento (que vai do menos geral para o mais geral, enfatizando mais os

indivíduos em detrimento da espécie). De fato, a estrutura da nossa linguagem supõe o

sujeito como sendo o lado potencial e o predicado como sendo o lado atual. Como

dissemos, Tomás de Aquino também faz análises desse tipo, mas a nossa tese mostrou

que ele reforça uma análise seguindo a ordem da natureza (que vai do mais geral para o

menos geral, enfatizando mais a espécie em detrimento do indivíduo). Realmente, é

contraintuitivo considerar o predicado como sendo a parte potencial, enquanto o

sujeito seria a parte atual. Contudo, veja como a nossa abordagem envolvendo o critério

de “preencher ou não preencher a potência” (o qual descobrimos seguindo a “ordem

da natureza”) está facilitando até mesmo a análise de um ponto de vista

disposicionalista ou potencialista contemporâneo, que costuma seguir a ordem do

conhecimento. Devido a essa proximidade com esse movimento contemporâneo,

podemos concluir que a expressão “Modelo Potencialista” seria apropriada para

nomear essa semântica.

Contudo, podemos continuar nossas reflexões e veremos que não basta apenas

seguir a estrutura da linguagem comum. Se quisermos analisar completamente as

modalidades aléticas, precisamos seguir também uma ordem da natureza (do mais

geral para o menos geral). Diante disso, uma vez que facilita a exposição da abordagem

que pretendíamos, nós decidimos iniciar nossas reflexões com a possibilidade (em 2.1) e

a impossibilidade (em 2.2) para depois falarmos da contingência (em 2.3) e, por fim, da

necessidade (em 2.4). Contudo, como dissemos, considerar o predicado da sentença

como sendo potencial é contraintuitivo, pois a estrutura da nossa linguagem supõe que

o potencial se refira ao sujeito. Nesse sentido, precisamos decidir como lidar com essa

intuição que vem da estrutura da linguagem. Para seguir a abordagem da ordem da

natureza, como desenvolvemos em nossa tese, temos duas opções: [1] inverter a ordem

de sujeito e predicado, dizendo “Homem é Sócrates”, de modo a respeitar a intuição de

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que “homem” é a parte potencial e “Sócrates” é a parte atual; [2] manter a sentença

“Sócrates é homem” apenas supondo, contra as intuições, que o predicado “homem” é

o lado potencial, enquanto “Sócrates” seria a parte atual. De nossa parte, preferiremos

seguir [2], pois parece ser mais objetivo, com modificações apenas mentais.

A partir de agora, seguindo o que desenvolvemos nessa tese de um ponto de

vista mais tomista, vejamos como seriam as análises seguindo a ordem da natureza e

considerando o predicado da sentença como o lado potencial. Considera-se a sentença

“Sócrates é voador” como sendo impossível, pois o ser atual de Sócrates está fora da

abrangência de potência do predicado “voador”. Da mesma maneira, citando

novamente “Sócrates é branco” e “Sócrates é homem”, essas duas sentenças serão

contingentes. Apesar da sentença “Sócrates é homem” ser necessária na ordem do

conhecimento, esta mesma sentença será contingente na ordem natural com

potencialidade no predicado. De fato, a abrangência da potência do predicado

“homem” não é totalmente preenchida pela atualização de “Sócrates”. A primeiro

momento, pode parecer estranha esta análise, mas passa a fazer sentido se pensarmos

que, de fato, é contingente para a espécie humana que “Sócrates” exista, dado ela teria

algum ser, mesmo que Sócrates nunca tenha existido. Essas mesmas sentenças que

consideramos contingentes também serão obviamente possíveis, porque a atualidade

do sujeito “Sócrates” está dentro da abrangência da potência de “homem” e de

“branco”. Por outro lado, é óbvio que, na ordem da natureza, as sentenças que são

necessárias também são possíveis, dado que aqueles sujeitos que completam toda a

potência também estarão dentro da abrangência da potência do predicado.

Merece destaque a necessidade seguindo a ordem da natureza, onde teremos

uma necessidade muito mais forte do que a anterior (na ordem do conhecimento) já

que envolve uma identidade entre sujeito e predicado. Na filosofia tomista, podemos

começar usando o exemplo de “Sócrates é homem com matéria individual”. Ora, o

predicado “homem com matéria individual” não esclarece muito em termos linguísticos,

mas na ontologia tomista (sem entrar em detalhes sobre isso aqui), o predicado em

questão tem uma “abrangência de potência” que é idêntica àquela abrangência da

atualização do sujeito “Sócrates”. Se é idêntica a abrangência, a atualização do sujeito

“Sócrates” completa toda a potência do predicado em “homem com matéria individual”.

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Sendo assim, podemos dizer que a sentença “Sócrates é homem com matéria

individual” é necessária, e observe que, mesmo se eu inverter a ordem sujeito e

predicado, a sentença ainda será necessária, como em “Homem com matéria individual

é Sócrates”. Desse modo, podemos concluir que a necessidade propriamente tomista

pressupõe a propriedade comutativa entre sujeito e predicado de uma sentença.

É óbvio que essa propriedade comutativa também poderia ser observada

seguindo uma ordem do conhecimento (tendo o sujeito como o lado potencial e

predicado como o atual), mas essa propriedade comutativa fica mais visível na ordem da

natureza (tendo o sujeito como o lado atual e predicado como o potencial). De fato,

dado que o predicado costuma ser mais extenso do que o sujeito de uma sentença,

considerar o predicado como envolvendo a abrangência da potência expõe a

potencialidade em aberto que o sujeito atual completa ou não completa.

A necessidade tomista fica mais clara quando trabalhamos com predicados de

segunda ordem, de espécie para gênero próximo. De fato, as definições como “Homem

é animal racional” também é necessário nesse sentido, dado que a comutação “Animal

racional é homem” também é necessária. Neste caso, sabemos com mais clareza em

termos linguísticos que a diferencia específica é “racional”, o que não aconteceu no

parágrafo anterior. É visível que “homem” atualiza toda a potência de “animal racional”,

e “animal racional” atualiza toda a potência de “homem”.

Neste ponto, podemos fazer uma pequena especulação sobre as verdades

matemáticas, apesar de que elas não envolvem exatamente a relação entre sujeito e

predicado, onde temos afirmação e negação, mas se trata de uma equação. Assim,

“2+2=4” é necessário, pois “2+2” atualiza toda a potência de “4”, assim como “4”

atualiza toda a potência de “2+2”. É evidente que existem outras combinações que

também serão 4 como “1+3”, “3+1”, “0+4” ou “4+0”, mas cada uma dessas combinações

individualmente completará toda a potência de 4, e vice-versa. Parece que “2+2” não

completa toda a potência de “4”, dado que “4” também pode ser igual a essas outras

combinações de somas. Contudo, podemos considerar que “4” é potencial para ser e

potencial para não ser “2+2”. Colocamos a potência de 4 simplesmente em termos

bivalentes de ser ou não ser. Considerando a abrangência de potência de “4”, nela não

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há potência de em aberto para receber o ato de não ser “2+2”. Sendo assim, toda a

abrangência da potência de “4” só pode ser atualizada por “2+2”, e o mesmo seria com

as outras combinações. Realmente, podemos definir de diversas maneiras uma mesma

coisa e nem por isso elas deixam de ser necessárias. O exemplo de “homem” mesmo

que pode também ser definido como “animal político” ou “animal que ri” e, nem por

isso, qualquer dessas definições isoladamente deixam de ser necessárias. As outras

combinações de somas são apenas outras definições de “4”, e são igualmente

necessárias porque o lado atual tem a mesma abrangência que o lado potencial.

Antes de finalizar, podemos ainda falar da necessidade em si de Deus, pois ela é

muito peculiar. Como vimos em 2.4, a necessidade simpliciter é uma necessidade que

decorre da definição, exatamente o que nós temos feito até agora neste tópico, de

modo que ela é “simpliciter” porque é possível imaginar que as combinação entre

gênero “animal” e a diferença “racional” não se unam na realidade. Entretanto, a

necessidade em si decorre do próprio princípio de não contradição, que é inconcebível

como não sendo. Assim, temos uma abrangência de potência em si de tudo que abarca

o princípio de não contradição, que possui a mesma extensão que a abrangência do ato

absoluto de Deus que realiza tudo o que não infringe o princípio de não contradição.

Ora, se tem a mesma extensão, então o ato absoluto completa toda essa potência em

si. Poderíamos colocar isso na estrutura de uma sentença da linguagem, como se segue:

“O ato absoluto é potência em si”. O mais incrível é considerar a propriedade

comutativa neste ponto da sentença: “A potência em si é o ato absoluto”. Desse modo,

não há nenhuma potência em si, baseada no princípio de não contradição, em aberto

para Deus não ser. Portanto, Deus só pode unicamente ser.

Para finalizar, vale ressaltar que Tomás rejeita provas meramente lógicas, sem

experimentação do mundo, para a existência de Deus, como é o caso do argumento

ontológico de Anselmo. Mesmo assim, depois de já ter considerada a existência de Deus

como provada por seus argumentos cosmológicos, Tomás usa constantemente essas

análises modais aléticas como descrições dos atributos de Deus. Nessas descrições

modais aléticas, o interessante será que, assim como temos a necessidade a respeito do

princípio de não contradição, nós também teremos a necessidade em si a respeito de

Deus e seus atributos.

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Conclusão:

Considerando todo o desenvolvimento da tese, podemos resumi-la em dois

aspectos: primeiramente, a semântica de mundos possíveis é um instrumento que não

deve ser usado para interpretar os pensamentos de Aristóteles e Tomás de Aquino, pois

seu uso irá levar a conclusões equivocadas. Secundariamente, a semântica de mundos

possíveis não é a única semântica possível para as modalidades aléticas.

Precisamos dar o crédito a Jaako Hintikka e Simo Knuuttila por identificarem o

primeiro aspecto, bem como buscarem contribuir para o segundo aspecto. Toda a nossa

tese girou em torno dos seus questionamentos, mesmo que não concordemos com

todas as soluções propostas por eles. Inicialmente, pretendíamos seguir o

posicionamento deles, mas ao longo do desenvolvimento fomos percebendo que

podíamos ir muito além das propostas desses dois autores.

Começamos, em 1.2, descrevendo os embates e as disputas existentes entre

alguns comentadores, onde uns afirmam que há inconsistência nas descrições modais

de Aristóteles e Tomás de Aquino, enquanto outros buscam soluções para as

inconsistências apresentadas. Num primeiro momento, Hintikka e Knuutila representam

a parte mais favorável a Aristóteles, de modo que nós nos posicionamos parcialmente

junto deles. Digo “parcialmente”, pois Hintikka supõe que o sistema de Aristóteles era

“determinista”, embora “O Filósofo” não o tivesse percebido. Nesse aspecto,

demonstramos discordância em relação a Hintikka e Knuutila, onde Tomás de Aquino

nos influenciou decisivamente para fazermos a nossa própria proposta de interpretação.

Concluímos que o Modelo Estatístico foi usado por Tomás de Aquino (e

Aristóteles) apenas como um apoio para descrever as modalidades aléticas. No entanto,

desenvolvemos um Modelo Estatístico Alternativo e mais fraco baseado apenas em

implicações, com o antecedente temporal e o consequente alético. Contudo, mesmo

com a melhor formalização possível, víamos que faltava o que é mais fundamental e

essencial nas descrições das modalidades aléticas: a relação entre potência e ato. Essa

relação é muito básica no sistema aristotélico e foi surpreendente que não

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encontrávamos nunca uma descrição que fizesse justiça ao pensamento de Tomás de

Aquino e, em certo sentido, também de Aristóteles.

Nesse sentido, a investigação e o estudo crítico dos textos de Tomás de Aquino

exigiram muito dos nossos esforços. Terminamos com algumas análises formais apenas

para não deixar passar totalmente em branco, mas a intenção principal dessa tese foi

mostrar que há muitas intuições desconhecidas sobre as modalidades aléticas

presentes nos textos de Aristóteles e Tomás de Aquino. São essas intuições

desconhecidas que estariam além do Modelo da Semântica de Mundos Possíveis,

fazendo com que essa semântica não seja suficiente para descrever as modalidades

aléticas presentes nos textos desses filósofos clássicos. Fica, assim, explicado que é um

erro usar a S.M.P. para descrever o pensamento desses autores.

Mesmo que sejam desconhecido por muitos, encontramos um movimento

contemporâneo que se assemelha muito ao que propomos como sendo pensamento de

Tomás de Aquino, a saber: o movimento do disposicionalismo ou potencialismo, que é

justamente relacionado a um neoaristotelismo. De fato, o que é marcante desse

movimento é a rejeição da compreensão das modalidades aléticas em termos de

mundos possíveis, o que nos foi bem útil. Contudo, os pensamentos desses autores não

são idênticos aos de Tomás de Aquino. Eles apenas serviram de inspiração para

desenvolvermos o Modelo Potencialista. Por essa razão, o tópico 1.3 teve a intenção de

fazer uma introdução geral sobre o disposicionalismo contemporâneo, de modo que

tivemos a oportunidade de mostrar algumas diferenças e semelhanças que esse

movimento filosófico contemporâneo tem com relação ao pensamento tomista. Diante

das diferenças, apontamos que o Modelo Potencialista de Tomás de Aquino segue um

caminho que lhe é próprio e singular.

No Modelo Potencialista de Tomás, vimos que as modalidades aléticas são

entendidas com base no que chamamos de “abrangência da potência/possibilidade”.

Nesse sentido, estivemos em condições de identificar uma semântica com alternativas

sincrônicas de atos de espécies dentro de um gênero, ou de indivíduos dentro de uma

espécie. Nesse sentido, há apenas um mundo, mas não precisamos seguir uma

semântica das modalidades diacrônica, isto é, com alternativas ao longo do tempo,

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como vimos na proposta de Hintikka e Knuuttila. Se Tomás relaciona as modalidades

aléticas com este arcabouço teórico, então temos um modelo de alternativas

sincrônicas que não é baseado em mundos possíveis, mas em espécies possíveis dentro

de um gênero ou, por extensão, de indivíduos possíveis dentro de uma espécie. Para

visualizarmos melhor as definições das modalidades aléticas nesse sistema, nós

apresentamos um tipo de diagrama com o uso chaves.

Através dos diagramas, nós vimos ao longo de todo o capítulo 2 como

determinar semanticamente cada uma das modalidades aléticas no Modelo

Potencialista. A possibilidade será determinada por toda a abrangência da potência, de

modo que se estiver dentro da abrangência, então é algo possível. E se um ato de ser

está fora ou para além da abrangência da potência, por definição, então será algo

impossível. Já a contingência será o próprio ato de ser como parte realizada da

abrangência da potência. Ora, se houver alguma potência da espécie em aberto, o

indivíduo é contingente e é possível haver outros indivíduos. Em outras palavras, há

várias alternativas de indivíduos possíveis sincronicamente dentro da abrangência da

espécie. Ao supor que a necessidade de algo é a atualidade que completa toda

potencialidade deste algo, já temos a justificação de porque algo é necessário. Basta

analisarmos que não há nenhuma potência em aberto para este algo ser diferente do

que ele é. De fato, “não poder ser diferente”, “não poder não ser” ou “impossível não

ser” são outras maneiras de se referir à necessidade.

É importante frisar que, no capítulo 2, nós apresentamos essa semântica das

modalidades aléticas em meio aos temas típicos do sistema tomista. Uma vez que são

temas caros e importantes para Tomás todas as discussões teológicas, e estas

favoreceram o avanço das análises dessa semântica modal, podemos concluir que o

Modelo Potencialista deve ser mais atribuído a Tomás de Aquino do que a Aristóteles.

De fato, para Tomás de Aquino, Deus seria onipotente no sentido de que Ele pode fazer

tudo o que é possível em si, isto é, o que estiver dentro da abrangência da possibilidade

em si. Independentemente de isso ser uma heresia ou não, segundo Tomás de Aquino,

aquilo que é impossível em si nem Deus poderia realizar.

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Além disso, a possibilidade em si ajuda a estabelecer melhor como ocorre a

necessidade do ser de um anjo. Como dissemos no tópico 2.4, o anjo é único ser possível

na sua espécie, o que faz dele um ser necessário em relação a sua espécie, dado que o

ato da individuação completa toda a potência da espécie. Isso dá ao anjo um caráter de

necessidade, mas trata-se de uma necessidade simpliciter, pois deixa em aberto a

abrangência da possibilidade em si. Por deixar aberta essa possibilidade em si, o anjo

tem certa “contingência em si”, apesar de Tomás de Aquino não usar essa expressão.

Desse modo, é concebível que um anjo não exista ou, se existe, seja por criação e pode

ser aniquilado. Deus, por outro lado, tem uma necessidade em si, só podendo existir,

sendo incriado e inaniquilável. É importante observar que muitas conclusões a respeito

de Deus podem ser retiradas desta análise, por exemplo: Ele é absolutamente imutável;

Ele é onipotente; Ele é “Aquele que é”, ou seja, Seu ser é a Essência Absoluta; Ele não

surgiu, mas sempre existiu e existirá; por fim, não há nada anterior a Ele.

Assuntos como “onipotência divina”, “anjos” e “criacionismo” são claramente do

interesse de Tomás de Aquino e, talvez, Aristóteles até se oporia a algumas conclusões.

Por essa razão, concluímos que esse Modelo Potencialista deve ser considerado como

sendo tomista. Não é muito próprio considerá-lo como sendo aristotélico, a não ser que

seja assumido de antemão que Aristóteles aceita tudo o que Tomás afirma, o que pode

ser uma tese um pouco forçada. É coerente atribuir o que chamamos de “contingência

simpliciter”, “possibilidade simpliciter”, bem como a “impossibilidade simpliciter”,

“potência em si da matéria” para ambos os filósofos. Contudo, todas as modalidades em

si são tratadas por Aristóteles como sendo apenas lógicas, mas Tomás as aplica

ontologicamente. Ora, somente as aplicações ontológicas envolvem o que chamamos de

“abrangência de possibilidade” e “abrangência de potência”. Segue-se que o Modelo

Potencialista tal como concebemos é fruto das análises propriamente tomistas.

Além disso, no tópico 3.2, vimos que também é possível que vários atos juntos

completem toda a potência. Uma vez que a potência estaria toda completada, não há

nenhuma potência em aberto para que haja outro ser além daqueles listados. É dessa

maneira que Tomás de Aquino entende a “necessidade do mundo”, pois o ser formal de

várias espécies em conjunto completaria toda a potência da matéria do mundo. Não

havendo nenhuma potência em aberto, esse mundo (ou universo) seria único e não

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haveria outros mundos possíveis. Eis o ponto que serve de base para a minha defesa de

que Aristóteles e Tomás de Aquino discordariam expressamente do uso da semântica de

mundos possíveis. Por causa de definição de “mundo” que eles tinham, o mundo é

tratado como algo único e necessário, e não como algo múltiplo e possível, como exige

a semântica de mundos possíveis.

Ao longo de todo o capítulo 4, vimos que o Modelo Potencialista determina as

modalidades aléticas como estando diretamente relacionadas aos primeiros princípios,

a saber: princípio de não contradição, princípio de identidade e princípio do terceiro

excluído. Assim, trata-se de um modelo mais autoexplicativo, fundamental, primitivo,

geral, independente e neutro do que os outros Modelos, Estatístico e de Mundos

Possíveis. A própria Semântica de Mundos Possíveis pode ser descrita em termos do

Modelo Potencialista, mais não o contrário, o que indica que tudo o que é válido para a

S.M.P. será válido para o M.P., mas não o contrário. Neste caso, há vários mundos

possíveis se somente se considerarmos que a atualidade de uma instância de “mundo”

não completa toda a abrangência da potência de “mundo”. Obviamente, a definição de

“mundo” não será a mesma que Aristóteles e Tomás de Aquino, mas alguma outra

definição ligada à superveniência humeana, como vimos no tópico 1.3. Enfim, a

Semântica de Mundos Possíveis é incompatível com o sistema aristotélico e tomista,

mas não será incompatível com o Modelo Potencialista em si.

Em suma, esta tese representou todo o nosso esforço no sentido de revelar o

máximo possível o aspecto formal e universal dos instrumentos usados por Tomás de

Aquino, os quais podem ser úteis para outras filosofias. Portanto, esse Modelo

Potencialista ultrapassa em muito o sistema tomista, além de ser útil para o uso

cotidiano de qualquer um que assim o desejar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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