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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING ESPM/SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO PPGCOM Pedro Ernesto Gandine Tancini TEMPORALIDADES CONTEMPORÂNEAS RESSIGNIFICADAS lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário ficcional Tormenta RPG São Paulo 2018

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM/SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE

CONSUMO – PPGCOM

Pedro Ernesto Gandine Tancini

TEMPORALIDADES CONTEMPORÂNEAS RESSIGNIFICADAS

lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário ficcional

Tormenta RPG

São Paulo

2018

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Pedro Ernesto Gandine Tancini

TEMPORALIDADES CONTEMPORÂNEAS RESSIGNIFICADAS

lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário ficcional

Tormenta RPG

Dissertação apresentada ao PPGCOM ESPM

como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre em Comunicação e Práticas de

Consumo.

Orientadora: Mônica Rebecca Ferrari Nunes

São Paulo

2018

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Autorizo a reprodução total ou parcial da minha dissertação Temporalidades contemporâneas

ressignificadas: lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário

ficcional Tormenta RPG, para fins de estudo e pesquisa, desde que seja sempre citada a fonte.

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Pedro Ernesto Gandine Tancini

TEMPORALIDADES CONTEMPORÂNEAS RESSIGNIFICADAS

lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário ficcional

Tormenta RPG

Dissertação apresentada ao PPGCOM ESPM

como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre em Comunicação e Práticas de

Consumo.

São Paulo, ________a

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Orientadora e Presidente da Banca:

Profa. Dra. Mônica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM-SP)

____________________________________________________________

Avaliadora Externa

Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira (UDESC)

____________________________________________________________

Avaliador Interno

Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza (ESPM-SP)

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A Nimb, pelos bons dados.

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AGRADECIMENTOS

Obrigado,

de frente para trás,

Mônica, pela proteção, principalmente nos dias finais,

João e Márcia, pela banca,

GP Games, pela recepção,

MNEMON, pelas graças,

Fe, Fe, Mike, pelas pedras,

Tânia, pelo telefonema,

FAPESP, pelo incentivo,

Walfredo, pelo tempo,

Argeon, Guilherme, pela libertação,

Caio, pelas primeiras aventuras,

mãe, por tudo o que resta.

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When you look through the years and see what you could have been

Oh, what you might have been,

If you'd had more time

- Richard Davies e Roger Hodgson

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TANCINI, Pedro Ernesto Gandine Tancini. Temporalidades contemporâneas ressignificadas.

Lógicas de consumo e representações de passados e futuros no cenário ficcional Tormenta

RPG. 2018. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de

Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e

Marketing (ESPM), São Paulo.

RESUMO

Esta dissertação de mestrado versa sobre as representações de tempo e os movimentos

de memória no contexto contemporâneo de consumo. Elegemos como objeto de pesquisa o

cenário de Tormenta RPG. Role-playing game, o RPG, é uma modalidade de jogo de

interpretação de papéis em que os participantes vivenciam narrativas de forma improvisada e

colaborativa. Tormenta RPG, por sua vez, é uma marca editorial que, por meio de livros

descritivos, constrói um ambiente ficcional para essas partidas, promovendo um universo

inspirado na Idade Média mas com referência a diversos contextos não medievais.

Investigamos como o texto de Tormenta RPG, ao operar representações de tempo aliadas à

apropriação de imaginários de fantasia medieval e outros períodos históricos, ressignifica as

temporalidades próprias ao contexto contemporâneo de cultura do consumo e cultura da

memória. A metodologia envolve, primeiramente, pesquisa bibliográfica em torno do tempo,

memória e consumo, com referência a autores como N. Elias, G. Szamosi, R. Koselleck, no

que toca o tempo em seu caráter estrutural e no advento da modernidade, e Z. Bauman, A.

Huyssen, D. Harvey, F. Hartog, no que toca as temporalidades contemporâneas, cultura da

memória e cultura do consumo. A partir desse núcleo teórico, desenvolvemos análise do texto

da “linha do tempo” apresentado pelo livro “Tormenta RPG”, tendo como base categorias

criadas a partir dos estudos de semiótica da cultura de I. Lotman. Esperamos explorar as

qualidades que as representações de tempo e os movimentos de memória na cultura,

articulados às lógicas de consumo, imprimem na composição das nossas temporalidades

atuais, em como atualizamos nossos passados e imaginamos nossos futuros.

Palavras-chave: consumo, tempo, memória, comunicação, Tormenta RPG.

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TANCINI, Pedro Ernesto Gandine. Contemporary temporalities resignified. Consumption

logics and representations of past and future in the ficcional setting Tormenta RPG. 2018.

Dissertation (Masters in Communications and Consumption Practices) – Postgraduate

Research Program in Communications and Consumption Practices, School of Advanced

Studies in Advertising and Marketing/Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM),

São Paulo.

ABSTRACT

This master thesis turns on time representations and memory movements in the

contemporary context of consumption. We pick the setting Tormenta RPG as the object of

research. Role-playing game, RPG, is a game format in which players experience narratives in

an improvised and collaborative way. Tormenta RPG, in turn, is an editorial brand that,

through descriptive books, builds a fictional environment for this game, promoting a universe

inspired in medieval fantasy but with reference to different non-medieval contexts. We

investigate how the text of Tormenta RPG, by operating time representations allied to the

appropriation of medieval fantasy and others historical imaginaries, resignifies the

temporalities relating to the culture of consumption and culture of memory contexts. The

methodology involves, first, bibliographical research around the concept of time, memory and

consumption, with reference to authors such as N. Elias, G. Szamosi, R. Koselleck,

concerning the time in its structural quality and in the modernity arrival, Z. Bauman, A.

Huyssen, D. Harvey, F. Hartog, concerning the contemporary temporalities, culture of

memory and culture of consumption. As of this theoretical core, we develop analysis of the

“timeline” text introduced by the book “Tormenta RPG”, based on categories created from the

cultural semiotics studies of I. Lotman. We expect to explore the qualities that the time

representations and the memory movements, articulated to the consumption logics, imprint in

the composition of our actual temporalities, in how we bring our pasts do the present and how

we imagine our futures.

Keywords: consumption, time, memory, communications, Tormenta RPG.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Logotipo de Tormenta RPG ................................................................................... 61

Figura 2 – Capa da edição 50 da Dragão Brasil ...................................................................... 63

Figura 3 – Capas das edições 22, 23 e 24 da Holy Avenger ................................................... 64

Figura 4 – Logotipo da editora Jambô ..................................................................................... 65

Figura 5 – Capas da trilogia de romances: O Inimigo do Mundo, O Crânio e o Corvo, O

Terceiro Deus ........................................................................................................................... 66

Figura 6 – Cena do game O Desafio dos Deuses ................................................................... 67

Figura 7 – Capa do livro Crônicas da Tormenta ..................................................................... 68

Figura 8 – Capa do livro Contra Arsenal................................................................................. 69

Figura 9 – Capa do livro Manual do Devoto ........................................................................... 70

Figura 10 – Capa do livro Área de Tormenta .......................................................................... 71

Figura 11 – Mapa de Arton ..................................................................................................... 72

Figura 12 – Algumas raças de Tormenta RPG ........................................................................ 73

Figura 13 – O Panteão ............................................................................................................. 74

Figura 14 – A Tormenta .......................................................................................................... 75

Figura 15 – Uma História Parcial ............................................................................................ 76

Figura 16 – O Nada ................................................................................................................. 82

Figura 17 – O Vazio ................................................................................................................ 82

Figura 18 – Azgher, Deus do Sol ............................................................................................ 85

Figura 19 – Tenebra, Deusa das Trevas .................................................................................. 85

Figura 20 – Megalokk, Deus dos Monstros............................................................................. 89

Figura 21 – Tanna-Toh, Deusa do Conhecimento................................................................... 92

Figura 22 – Minotauro ............................................................................................................. 95

Figura 23 – Grupo de aventureiros .......................................................................................... 97

Figura 24 – Khalmyr, Deus da Justiça .................................................................................. 101

Figura 25 – Sszzaas, Deus da Traição ................................................................................... 104

Figura 26 – A prisão de Valkaria, Deusa da Ambição .......................................................... 106

Figura 27 – Thwor Ironfist, líder da Aliança Negra .............................................................. 108

Figura 28 – Nimb, Deus do Caos .......................................................................................... 110

Figura 29 – Leprechaun em sua representação contemporânea ............................................ 111

Figura 30 – Passado: primeira seção ..................................................................................... 113

Figura 31 – Passado: segunda seção ...................................................................................... 116

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Figura 32 – Presente .............................................................................................................. 120

Figura 33 – Futuro ................................................................................................................. 123

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SUMÁRIO

1 Introdução ............................................................................................................................ 11

1.1 Contextualização ................................................................................................................ 11

1.2 Objeto de pesquisa .............................................................................................................. 15

1.3 Metodologia ........................................................................................................................ 21

1.4 Justificativa ......................................................................................................................... 23

2 Definições e origens ............................................................................................................. 26

2.1 Dos genes aos símbolos ...................................................................................................... 27

2.2 Em progresso ...................................................................................................................... 35

2.3 Tempos de trabalho, tempos de consumo ........................................................................... 37

3 Presentes, passados e futuros de consumo ........................................................................ 46

3.1 Aceleração, fluidez e instantaneidade ................................................................................ 46

3.2 Presentismo, memória e o retorno ...................................................................................... 53

4 Análise .................................................................................................................................. 61

4.1 Tormenta RPG .................................................................................................................... 61

4.2 Método ................................................................................................................................ 75

4.3 Primeira análise .................................................................................................................. 82

4.4 Segunda análise ................................................................................................................ 112

4.4.1 Passado ............................................................................................................ 112

4.4.2 Presente ........................................................................................................... 120

4.4.3 Futuro .............................................................................................................. 123

Conclusão .............................................................................................................................. 125

Referências ............................................................................................................................ 129

Apêndice ................................................................................................................................ 132

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1. Introdução

1.1 Contextualização

Iniciamos esta pesquisa em busca de uma definição do conceito do tempo, atentando

para sua função ordenadora, social; e sua natureza de código, cultural e comunicacional. Para

isso, propomos, primeiramente, o questionamento de alguns sensos comuns em torno do tema,

como, por exemplo, os que insistem em cindi-lo ora como objeto concernente às ciências

naturais, ora como objeto concernente à filosofia e ciências humanas em geral. Valemo-nos da

obra de Norbert Elias (1998) como bibliografia capaz de desmistificar tais concepções, a

favor de uma visão crítica e interdisciplinar do tempo, que considere a sua inerente e

simultânea dependência com o domínio físico e o domínio das abstrações. Elias introduz:

as pesquisas sobre o problema do tempo continuarão bloqueadas enquanto

forem conduzidas pela óptica dessa oposição conceitual. O investigador fica

tendo que abordar “o tempo social” e o “tempo físico” – tempo interno à

sociedade e tempo interno à natureza – como se eles existissem e pudessem

ser estudados independentemente um do outro. Ora, isso é impossível. Os

homens, desde as primeiras providências tomadas para situar os

acontecimentos no tempo, situaram-se no interior do universo físico e se

portaram como elemento desse universo. Na realidade, os problemas do

tempo não se deixam enquadrar nos escaninhos correspondentes à divisão

das disciplinas científicas que hoje prevalece, nem na compartimentação de

nosso aparelho conceitual que é uma decorrência disso (ELIAS, 1998, p. 72).

O desenvolvimento divergente das ciências sociais e das ciências naturais, em prol de

um olhar cada vez mais especializado nos respectivos campos de estudo, reforçou a impressão

de um mundo dicotômico, dividido no que é da natureza, real, físico; e no que é do homem,

cultural, social. Da mesma forma, o tempo costuma ser visto nessa cisão: um algo de

competência das ciências naturais, o tempo “físico”; e outro algo de competência das ciências

humanas, o tempo “social”; criando a ilusão da existência de dois “tempos”, cada um

exclusivo a seus estudos e seus estudiosos. Ademais, o aperfeiçoamento dos instrumentos de

medição do tempo criou um aparente distanciamento entre os acontecimentos físicos

(nascimento e pôr do sol, fases da lua) e os sociais (por exemplo, os dias e meses de trabalho).

Afinal, para saber que horas são, não olhamos mais para o céu, mas confiamos nos números

em nossos celulares, computadores e ponteiros.

Desse modo, a fim de atenuar a cisão exposta por Elias, partimos de uma definição

pela física, que, ainda que recorrente aos objetivos específicos dessa ciência, se mostra

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relevante para um entendimento estrutural do tempo, no caminho da interdisciplinaridade que

o tema exige. O tempo, de acordo com Albert Einstein (2013), consiste na:

grandeza física diretamente associada ao correto sequenciamento, mediante

ordem de ocorrência, dos eventos naturais; estabelecido

segundo coincidências simultaneamente espaciais e temporais entre tais

eventos e as indicações de um ou mais relógios adequadamente

posicionados, sincronizados e atrelados de forma adequada à origem e aos

eixos coordenados do referencial para o qual se define o tempo (EINSTEIN,

2013, p. 34).

Com o intuito de explorar os sentidos dessa definição, propomos uma situação

hipotética a fins de exemplo. Em tal situação, pretendemos medir o tempo necessário para que

um corpo se desloque do ponto A ao ponto B, utilizando para isso, um cronômetro analógico.

Determinamos o instante 0 como o exato momento em que o cronômetro é ativado, quando o

ponteiro aponta para a marcação de 0 segundo. No instante 0, o corpo encontra-se no ponto A,

quando ainda não percorreu nenhuma distância. Em seguida, determinamos o instante 1 como

o exato momento em que o ponteiro se coloca apontado para a marcação de 1 segundo. No

instante 1, o corpo está na metade da distância entre A e B. Por fim, determinamos o instante

2 como o exato momento em que o ponteiro se coloca apontado para a marcação de 2

segundos. No instante 2, o corpo acaba de atingir o ponto B. Paramos o cronômetro, e

facilmente resolvemos nossa questão inicial: o corpo demora exatos 2 segundos para deslocar

de A a B. A resposta é 2 segundos.

Porém, vale aprofundar-nos nessa resposta. Segundo é uma divisão do minuto, que por

sua vez é a divisão da hora, dia, mês, ano; sendo este último a quantidade de tempo necessária

para que a Terra realize uma rotação completa em torno do sol. Portanto, em 1 segundo, a

Terra se desloca aproximadamente 0,000003% do seu eixo em torno do sol, ou, para termos

de melhor didática, 1 “pedaço” do eixo. Com esses dados, podemos construir a seguinte

tabela, referente à situação descrita inicialmente:

Sequência de eventos 1

(Terra)

Sequência de eventos 2

(Cronômetro)

Sequência de eventos 3

(Corpo)

Instante 0 A Terra percorreu

0 “pedaços” do eixo

O ponteiro aponta para a

marcação de 0 segundo

O corpo está no ponto A

Instante 1 A Terra percorreu

1 “pedaços” do eixo

O ponteiro aponta para a

marcação de 1 segundo

O corpo está na metade

da distância entre A e B

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Instante 2 A Terra percorreu

2 “pedaços” do eixo

O ponteiro aponta para a

marcação de 2 segundos

O corpo está no ponto B

Por meio da disposição de tabela, percebemos com maior clareza a ação de

comparação implícita em toda percepção de tempo. O tempo é a grandeza que deriva da

comparação entre duas ou mais sequências (sequência 1, 2 e 3) de eventos não simultâneos

(instantes 0, 1 e 2), mas simultâneas entre si (os eventos da Terra, do cronômetro e do

deslocamento do corpo são simultâneos entre si), sendo uma dessas sequências um referencial

fixo, ou seja, um relógio (o relógio comum deriva da sequência de eventos referente à rotação

da Terra em torno do sol: são os segundos, minutos, horas, etc.). Ao considerar tal definição,

nota-se que o tempo não é uma grandeza objetiva, alheia à presença do observador. De outra

forma, existe referencialmente e a partir de um trabalho simbólico, por um ser pensante.

Esse ser pensante, a fim de perceber o tempo, deve, necessariamente, operar algumas

habilidades cognitivas, como a capacidade de presentificação, ordenação, comparação e

síntese. A presentificação possibilita que concebamos momentos que não são presentes, por

meio da memória (momentos que “estão no passado”), ou da expectativa (momentos que

“estão no futuro”). A ordenação garante que os momentos projetados (passados ou futuros)

sejam sequenciados temporalmente: uns “antes”, e outros “depois”. A comparação permite

relacionar tais ordenações de eventos projetados entre suas simultaneidades (tomando uma

sequência relógio como referencial fixo e regular). Por fim, a síntese volta-se para a medição

do encadeamento de mudanças dispostas entre os eventos sequenciados (como, por exemplo,

medir o tempo em que um corpo se desloca). Elias resume:

de fato, uma das chaves essenciais para resolver os problemas suscitados

pelo tempo e por sua determinação é a capacidade, característica da espécie

humana, de aprender num relance e, por isso mesmo, ligar numa mesma

sequência contínua de acontecimentos aquilo que sucede “mais cedo” e o

que sucede “mais tarde”, o “antes” e o “depois”. A memória desempenha um

papel decisivo nesse tipo de representação, que enxerga em conjunto aquilo

que não se produz num mesmo momento. Ao falar dessa maneira numa

capacidade de síntese, pretendo referir-me, em particular, àquela capacidade,

característica do homem, de presentificar para si o que de fato não está

presente hic et nunc. Essa, evidentemente, é apenas uma das manifestações

do poder humano de efetuar sínteses, mas desempenha um papel essencial

em todas as modalidades de determinação do tempo. Mais exatamente, seria

inútil dizer que agora são quatro horas, se não estivéssemos simultaneamente

cônscios de que antes era duas horas e, depois, serão seis. “Antes e “depois”

traduzem, aqui, a capacidade humana de abarcar numa só representação

acontecimentos que não ocorrem ao mesmo tempo, e que tampouco são

experimentados como simultâneos (ELIAS, 1998, p. 61 e 62).

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Derivada das referidas habilidades articuladas pelo ser pensante, está a

intencionalidade. Mesmo não havendo uma relação simplesmente dada entre os

acontecimentos celestiais e os acontecimentos sociais, utilizamos dos primeiros, pelo seu

sequenciamento relativamente regular, para organizar não apenas os últimos, mas qualquer

outro acontecimento por nós experienciado, projetado ou imaginado. Desse modo, de acordo

com Norbert Elias (1998), o tempo não se limita a uma grandeza física, alheia à existência

humana e às complexidades sociais. O tempo é, estruturalmente, uma síntese humana, com

função de orientar e organizar as ações dos homens em relação a si mesmas e frente à

natureza circundante.

Quando tocamos o tempo a partir do homem como ser social e cultural, demarcamos a

relevância do tema à pesquisa. Primeiramente, notamos que o tempo, ao exercer poder

coercitivo sobre os indivíduos, no sentido de organizar os processos sociais, efetiva sua ação

modeladora na forma de um código temporal, uma temporalidade. Esse código é um conjunto

específico de lógicas de síntese entre acontecimentos que serve à manutenção de uma

determinada configuração social. Como defende David Harvey (1989), o tempo e espaço são

conceitos dependentes das dinâmicas materiais em questão, que por sua vez são afetadas pelas

forças sociais. No que concerne ao capitalismo moderno, há um modo de produção e consumo

cujas práticas estão em constante mudança, significando que o tempo e o espaço também

acompanham esses movimentos. Por outro lado, as mudanças nesses conceitos afetam, de

volta, o plano material, as vidas cotidianas.

Assim, ainda que a temporalidade se atenha à função de organização das sociedades,

ela está sujeita aos jogos simbólicos operados pelos textos na cultura. De forma mais acirrada,

as representações do tempo, ou seja, a criação de códigos temporais internos aos textos, está

em inter-relação e afetação mútua com as dinâmicas temporais do contexto em questão.

Neste trabalho, o contexto em questão condiz às dinâmicas de comunicação e consumo

e sua relação mutuamente estruturante com o mapa de temporalidades contemporâneas.

Afirmamos que tal relação é mútua, posto que tanto um determinado código temporal oferece

nexos simbólicos para a manifestação de uma determinada configuração sociocultural, como

uma determinada configuração sociocultural conduz à instauração de um código temporal

correspondente. Assim, investigando como se dão as apropriações simbólicas, pelo texto na

cultura, dos códigos temporais contemporâneos edificantes e edificados pelas lógicas de

comunicação e consumo, desenvolvemos visão crítica sobre como a cultura engendra o

tempo, logo os nexos do consumo, logo ela própria. Em outros termos, entendemos como as

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representações de tempo operadas pelo produto cultural a ser consumido dizem sobre o mapa

de temporalidades que organiza tanto o produto quanto a cultura do consumo que o engendra.

Acerca do objeto teórico dessa pesquisa, tratamos o tempo como operador das

lógicas de comunicação e consumo. Sobre o consumo, compreendemos que as lógicas de

aceleração, fluidez, e ideal de instantaneidade edificam os vetores de produção e consumo da

pós-modernidade (BAUMAN, 2001; HARVEY, 1989). Sobre a comunicação, entendemos o

papel da memória e das representações de tempo nos textos da cultura (LOTMAN, 1996),

frente a um quadro de descontinuidade histórica e obsessão por lembrar (HUYSSEN, 2000;

NORA, 1993). Em suma, como aponta François Hartog (2014), o tempo é eleito como objeto

de consumo, seja por meio da aceleração e ideal de instantaneidade, seja pela compressão da

memória na hipertrofia do presente.

Elegemos as publicações editoriais de Tormenta RPG como texto da cultura que

suscita a problematização da delimitação temática referida, posto que, primeiramente, o

material nutre representações de tempo bem detalhadas, construindo sua própria estrutura

temporal histórica e, em segundo, pois mobiliza diversos imaginários de passado, como Idade

Média e outros, arquitetando um complexo e ambivalente mapa de memória. Com objetivo de

apresentar Tormenta RPG e assim compor o objeto empírico dessa pesquisa, seguimos com a

explanação em torno do documento, em atenção à sua natureza lúdica e às práticas de

consumo que envolve.

1.2 Objeto de pesquisa

RPG, ou Role-playing game, é uma modalidade de jogo de interpretação de papéis em

que um grupo reúne-se com o objetivo de criar personagens e vivenciar uma narrativa,

improvisada. As partidas de RPG são ambientadas em cenários ficcionais específicos, que,

por sua vez, podem ser construídos por descrições textuais comercializadas em publicações

editoriais. Esse é o caso de Tormenta RPG, uma marca editorial publicada pela Jambô que se

apropria dos imaginários fundados pelas narrativas medievais fantásticas para criar um vasto

mundo mágico, de personagens, mitologia e cronologia próprias.

A fim de contextualizar o RPG, posto que o objeto se dá como suporte textual para a

prática, apresentamos as mecânicas associadas a esse tipo de jogo, assim como as

materialidades que o atravessam. Como referência, valemo-nos da obra de David Ewalt

(2013), pronta a discorrer sobre o tema de forma clara e abrangente.

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De acordo com o autor, para jogar uma partida de RPG, os participantes reúnem-se

em um espaço que permita a comunicação entre todos. Apesar de tal espaço consistir

originalmente em um ambiente físico, as ferramentas de comunicação à longa distância, como

chamadas de vídeo e softwares especializados, estendem-se como possibilidades de encontro.

Geralmente, trata-se de uma comunicação oral: a maior parte do jogo desenrola-se oralmente,

com algumas anotações escritas complementares.

Quando reunidos, os participantes criam personagens que serão interpretados no

decorrer do jogo. Essa interpretação pode ter ênfase na comunicação verbal, mas também

pode abranger movimentos físicos, vestuário e objetos, como no RPG Live Action. Nos dois

casos, as ações dos personagens são definidas de acordo com conflitos e ambientes

imaginados, resultando em uma narrativa criada de forma presente, colaborativa, e lúdica,

com maior ou menor grau de improviso. Cada encontro equivale a uma partida, que pode

encerrar uma narrativa ou pode ser continuada em outros encontros. Uma unidade narrativa,

seja ela composta por única ou múltiplas partidas, é denominada como aventura, ou

campanha. Como aponta Ewalt:

isso significa que nunca há um vencedor de verdade em um jogo de D&D

[espécie de RPG]; nenhum jogador termina em primeiro. Na verdade, ganhar

é um conceito meio alienígena – a maioria das campanhas nunca dura o

bastante para alcançar uma conclusão dramática. O jogo tem mais a ver com

a jornada do que com o destino, para citar um velho clichê; é mais sobre

desenvolver o seu papel na história (EWALT, 2013, p. 19)

Geralmente, os jogos de RPGs contam com um participante que tem o papel de

mestre. O mestre não necessariamente cria personagens para si, mas é responsável por

gerenciar as mecânicas do jogo e o andamento da narrativa que os outros jogadores

vivenciam. Ele determina as consequências das ações que os personagens jogadores efetuam,

assim como todos os elementos da história alheios ao controle desses personagens jogadores

(como as ações dos outros personagens da trama, os conflitos, os movimentos do cenário).

Ainda que a narrativa se concretize apenas no ato de jogar, ou seja, na imprevisibilidade das

escolhas de cada jogador e das suas consequências, o mestre pode preparar a campanha com

antecedência. Nesse caso, é possível que ele disponha de registros, a fim de orientar com

maior preparo e precisão os possíveis caminhos da história. Todas essas diretrizes estimulam

a imersão lúdica e ativa, tanto do mestre, como dos outros jogadores:

os jogadores são tanto espectadores quanto autores em D&D; eles

consomem a ficção do Mestre, mas reescrevem a história com suas ações.

Como autores, são livres para tomar as próprias resoluções. Se um troll

[espécie de monstro da floresta] está tentando engolir você, é possível

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golpeá-lo com a espada, atirar uma flecha ou implorar por misericórdia – a

decisão é sua (EWALT, 2013, p.16).

De forma complementar, os participantes podem dispor de objetos que facilitem o

desenvolvimento do jogo. As fichas são registros planificados que resumem as características

mais relevantes de cada personagem jogador, com o objetivo de mantê-las acessíveis,

comparáveis e recordáveis. Os dados são objetos que imprimem aleatoriedade ao curso de

ações, com objetivo de tornar o jogo mais verossímil, imprevisível e justo. Os sistemas são

conjuntos de livros que descrevem séries de mecânicas que auxiliam o mestre na

determinação das consequências das ações dos personagens jogadores e na coerência e

dinâmica gerais do universo ficcional.

Esses últimos, os sistemas, podem ser criados pelos jogadores, ou por marcas

editoriais, que vendem livros descrevendo seus próprios conjuntos de regras, de enfoques

variados. O primeiro sistema de RPG é o Dungeons & Dragons, criado por um jogador, mas

que, posteriormente, passou a existir como marca de grande popularidade e influência dentro

da prática. A origem do Dungeons & Dragons confunde-se com o próprio surgimento do

RPG. Jon Peterson (2012), em obra que trata sobre a história do jogo, explica que o sistema

foi criado em 1974, quando Gary Gygax e Dave Arneson, ao competir em um jogo de

miniaturas de exércitos (como War), imaginaram como seria se pudessem resolver o conflito

com a diplomacia, ao invés do combate. Essa aparente disrupção das regras estabelecidas

permitiu a criação de um outro tipo de jogo, de sistema de regras mais abrangente, e limitado

apenas pela imaginação dos participantes, tomando como enfoque a interpretação de

personagens individuais. Assim, criou-se o substrato necessário para o surgimento de diversas

outras modalidades de RPG, que, embasados nessas singulares diretrizes, puderam se

manifestar por diferentes meios e assumir variados temas.

Além dos sistemas de regras, no decorrer do tempo, o mercado editorial assistiu ao

surgimento de publicações que, também por meio de manuais, aventuras e suplementos,

constroem vastos cenários ficcionais para as partidas de RPG. Tais cenários são ofertados

como ambientações predefinidas, que contam com história, geografia e mitologia próprias.

Como apresentado, Tormenta RPG é um cenário de fantasia medieval, ou seja, inspirado no

imaginário fantástico da Idade Média. Porém, nota-se que, especialmente nele, coexistem

elementos referentes a universos simbólicos de outros períodos históricos (como armas do

Império Romano, pistoleiros do velho oeste norte-americano e vikings da história

escandinava), e até mesmo a universos simbólicos futuristas (como robôs gigantes).

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O cenário nasceu oficialmente em 1998 e 1999, quando Marcelo Cassaro publicou

uma aventura na revista especializada em RPG, Dragão Brasil. Essa aventura, que tinha a

forma de uma narrativa semiestruturada, propunha-se como uma possibilidade de jogo em um

universo fictício criado por Cassaro. A receptividade foi tamanha que os leitores passaram a

demandar mais informações sobre esse universo, e, no ano seguinte, Tormenta tornou-se uma

publicação independente. Hoje, Tormenta RPG conta com grande número de materiais

criativos. Entre aventuras, manuais e suplementos, reúne mais de trinta publicações, além de

séries de mangá, uma trilogia de livros, e um game.

Atentamos para dois aspectos suscitados pela eleição do texto de Tormenta RPG

como material de análise desta pesquisa. O primeiro repousa na característica estrutural dos

jogos de vincular sua construção narrativa às escolhas do jogador, que atua em um sistema

não apenas textual, mas cybertextual. Espen Aarseth (1997) inaugura o termo cybertexto não

como qualidade estrita do que é virtual, mas como organização semiótica de natureza não

linear, característica dos sistemas de simulação e dos jogos. Segundo suas reflexões, as

estruturas cybertextuais diferem-se das estruturas textuais convencionais, pois não apresentam

uma única linearidade narrativa (como a mesma ordem das páginas de um livro, ou a mesma

ordem dos quadros de um filme), mas uma malha de múltiplas e excludentemente possíveis

linearidades narrativas (como as possibilidades de ganhar ou perder um jogo da velha). Os

jogos, por definição, compreendem o leitor como agente integrado às mecânicas, que constrói

a direção da leitura por meio de sua performance (ações e decisões) no universo de simulação.

Aarseth resume:

Em um cybertexto, porém, a distinção é crucial e bem diferente; quando

você lê de um cybertexto, você é constantemente lembrado de estratégias

inacessíveis e caminhos não tomados, vozes não ouvidas. Cada decisão fará

algumas partes do texto mais, e outras menos, acessíveis, e você nunca pode

nunca saber o resultado exato de suas escolhas; ou seja, exatamente o que

perdeu. Isso é muito diferente das ambiguidades de um texto linear

(AARSETH, 1997, p. 3, tradução nossa1).

Assim, ainda que toda espécie de leitura resulte finalmente em uma linearidade

narrativa, é no caso dos jogos que essa leitura parte de um substrato maior, de múltiplas

1 In a cybertext, however, the distinction is crucial-and rather different; when you read from a cybertext, you are

constantly reminded of inaccessible strategies and paths not taken, voices not heard. Each decision will make

some parts of the text more, and others less, accessible, and you may never know the exact results of your

choices; that is, exactly what you missed. This is very different from the ambiguities of a linear text.

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possibilidades de desfecho. Em outros termos, a vivência lúdica corresponde ao caminho

único experimentado durante cada ato de jogar, mas também carrega o peso da escolha, a

potencialidade dos outros caminhos que puderam ser escolhidos, mas não foram. O jogo

vincula-se a um caráter ativo, e explora nível profundo de imersão.

Tais apontamentos são importantes para compreendermos o papel das publicações

editoriais de Tormenta RPG na totalidade da prática lúdica do RPG. A partir da perspectiva

do jogo como cybertexto, consideramos que o cenário ficcional não consiste no jogo em si. O

jogo se dá nas diversas partidas que os grupos eventualmente constroem, pelas quais a

performance dos jogadores desenvolve a vivência narrativa. Nesse domínio, as diretrizes são a

criatividade de cada mestre, que articula conhecimentos diversos, por meio da memória e

imaginação; e a disposição ativa de cada personagem, que brinca entre as possibilidades de

ação e as consequências destas ações mediadas pelos dados e regras. No RPG, o papel ativo

dos jogadores transborda ao ponto de equivaler a uma atividade de criação.

Tormenta RPG é material criativo para os jogadores potencialmente apropriarem-se,

em maior ou menor grau de fidelidade, na construção das suas partidas. Sendo assim, o

cenário em si não é uma narrativa. De forma diferente, é o substrato para a construção lúdica

de narrativas. Por meio de “manuais”, Tormenta RPG descreve os aspectos de um mundo

mágico que convida a vivências imaginativas, e quando o cenário insere narrativas entre as

descrições, ou elas estão a favor da contextualização desse mundo, ou são incompletas, em

potencial completude pelas mãos dos jogadores. Portanto, trata-se de um material

essencialmente aberto, com ganchos narrativos que pretendem gerar identificação com os

consumidores e a consequente mobilização nas partidas. O mundo de Tormenta, ao mesmo

tempo que é coeso e verossímil, pois pretende simular uma realidade, é multidimensional,

pois reúne diversos núcleos de sentido em um mesmo plano. Aí reside o papel da memória

cultural em Tormenta RPG, já que é por meio da apropriação de múltiplos imaginários de

passado e futuro que o cenário potencializa as possibilidades de identificação com os leitores

criadores.

O segundo aspecto que tange Tormenta RPG como objeto empírico deste estudo

refere-se à verossimilhança nos jogos de RPG. Nesse ponto, referenciamos o conceito de

círculo mágico, proposto por Johan Huizinga (1980). De acordo com o autor, toda a prática de

jogo instaura um domínio extraordinário ao contexto cotidiano em que esse jogo está inserido.

Esse domínio, o círculo mágico, é sustentando por um sistema de sentidos em inter-relação,

de temporalidade e espacialidade internos. Assim, os jogadores inseridos no círculo mágico

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podem experimentar ações cujas consequências inicialmente bastam-se à tessitura simbólica

do jogo, de forma imune à irreversibilidade própria ao curso de acontecimentos do cotidiano.

Entretanto, ainda que o jogo se destaque do substrato do cotidiano por meio de sua natureza

simuladora, não é totalmente imbuído de um caráter despretensioso das ações, posto que

constrói suas próprias lógicas internas de irreversibilidade, que, por sua vez, afetam e são

afetados pelas consequências no contexto (HUIZINGA, 1980).

No caso do RPG, os cenários ficcionais pretendem criar um círculo mágico

profundamente verossímil. Ainda que assumidamente fictícios, eles buscam coesão interna

capaz de envergá-los como realidades próprias, que, dentro das circunstâncias colocadas

(como a existência de magia e deuses), são críveis. Em Tormenta, a verossimilhança constrói-

se por um sistema complexo de descrições, estendendo os limites criativos e potencializando

o caráter imersivo do cenário. Essa natureza verossímil de correspondência simbólica entre o

círculo mágico e a realidade cotidiana permite observarmos de forma precisa para a

ressignificação operada pelo objeto, cuja análise aqui proposta mapeia os nexos entre uma

temporalidade contemporânea, diretamente colada à sua função de organização social, e as

representações do tempo no texto, que mobilizam apropriações de passados e futuros, em

movimento de memória. Nesse sentido, este trabalho tem como objeto empírico os textos de

Tormenta RPG.

Como problema de pesquisa, questionamos de que forma o texto de Tormenta RPG

produz sentidos referentes ao tempo e à memória, que, por sua vez, apontam para o contexto

de comunicação e consumo próprio ao cenário ficcional.

O objetivo geral dessa pesquisa consiste em: investigar como o texto de Tormenta

RPG, ao operar representações de tempo aliadas à fantasia medieval e outros períodos

históricos, constrói comunicação que ressignifica as temporalidades referentes ao contexto

contemporâneo da cultura do consumo e cultura da memória. Os objetivos específicos são:

1. Delimitar as lógicas referentes às temporalidades contemporâneas, destacando o papel

do consumo e da memória cultural nesse quadro;

2. Mapear representações de tempo e suas associações com imaginários fantásticos da

Idade Média e de outros períodos históricos em Tormenta RPG;

3. Comparar a temporalidade interna de Tormenta RPG com as lógicas temporais

próprias às dinâmicas da cultura do consumo e cultura da memória.

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1.3 Metodologia

Os procedimentos metodológicos incluem pesquisa bibliográfica e pesquisa

documental. Trata-se de uma abordagem qualitativa, que permite atentar para as

complexidades semióticas do objeto empírico e os modos como elas articulam os temas

apresentados. Tal aproximação científica favorece análise que não se encerra em um olhar

meramente interpretativo, e tampouco em uma explicação causal do fenômeno. Em outros

termos, pretende-se construir pontes reflexivas que considerem o texto não apenas como

indicador, mas como agente simbólico na cultura, entendida como memória, e no quadro de

temporalidades contemporâneas, entendido como ordenador social das lógicas de

comunicação e consumo.

A pesquisa bibliográfica tem como objetivo calcar as bases conceituais em torno do

tempo, memória e consumo, a fim de sustentar o olhar analítico para o objeto de pesquisa.

Nesse sentido, articulamos a obra de Norbert Elias (1998), no que se refere à natureza

instrumental e humana do tempo; Géza Szamosi (1994), no que se refere aos modelos de

percepção do tempo no desenvolvimento biológico e social; Reinhart Koselleck (2006), no

que se refere às concepções de passado, presente e futuro em um conceito moderno de

história; Fredric Jameson (2007), no que se refere à delimitação teórica da modernidade;

Edgar Morin (2005), no que se refere à concepção moderna de tempo do trabalho e tempo do

lazer; Nicolau Sevcenko (2001), no que se refere à ação das tecnologias para a compressão de

múltiplos estímulos no presente do lazer e do consumo; Max Horkheimer e Theodor Adorno

(1998), no que se refere à indústria cultural como operação ideológica do capitalismo

produtivo na cultura, nas lógicas de consumo e comunicação; Zygmunt Bauman (2001, 2009),

no que se refere às características de fluidez, aceleração e culto à instantaneidade das

temporalidades contemporâneas; David Harvey (1989), no que se refere à compressão tempo-

espaço como fator estruturante do capitalismo pós-moderno, Pierre Nora (1993), no que se

refere à acomodação das manifestações da memória em “lugares”; Andreas Huyssen (2000),

no que refere ao movimento da memória como resposta à instabilidade do presente

contemporâneo; Fraçois Hartog (2014), no que se refere à dilatação do presente

contemporâneo em direção ao passado e futuro; Michel Maffesoli (2012), no que se refere à

memória como retorno a valores arcaicos de comunhão e afetividade na contemporaneidade;

Iuri Lotman (1996), no que refere à memória como qualidade inerente ao espaço semiosférico

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da cultura; Michel De Certeau (1982), no que se refere às estruturas temporais na escrita

historiográfica; entre outras.

A pesquisa documental comporta análise do texto inserido no subcapítulo “Uma

História Parcial” (página 6 a 10), do livro “Tormenta RPG” (BRAUNER et al., 2010). O livro

descreve as informações básicas sobre o cenário como, por exemplo, a natureza dos deuses, os

atributos das raças fantásticas e as características dos reinos. O fragmento textual selecionado

para análise é uma “linha do tempo”, ou seja, a síntese temporal dos acontecimentos

históricos do universo, o seu próprio traçado histórico.

Recortamos a “linha do tempo” como corpus dessa pesquisa, pois nela observamos

riqueza de representações em torno do tempo. No esforço de compor uma extensa cronologia

e assim garantir verossimilhança ao cenário, o texto apropria-se de estruturas temporais para

sustentar uma malha histórica ficcional. Ademais, a “linha do tempo”, ao condensar variados

acontecimentos de Tormenta RPG em um mesmo plano textual, atravessa a totalidade

heterogênea do cenário, capturando o espírito geral do complexo universo.

Por esses motivos, a “linha do tempo” serve de guia empírico para a análise, no que se

refere às representações em torno do tempo. Não obstante, no que se refere aos movimentos

de memória que se atrelam às estruturas temporais, a análise pode eventualmente estender-se

para além desse fragmento textual. A “linha do tempo” trata-se de uma síntese, e entendemos

que o material ali resumido aponta para outros textos e publicações editoriais de Tormenta

RPG (que tratam dos acontecimentos históricos de forma mais extensa), capazes de

complementar a investigação em torno dos sentidos articulados pelo objeto. Em suma, a linha

do tempo figura como eixo para o olhar analítico em torno das representações do tempo e,

como eixo, se ramifica em contextualizações e aprofundamentos acerca das informações que

mobiliza, dados os objetivos específicos da pesquisa e as eventuais demandas para o seu

cumprimento.

Especificamente para compor o aparato metodológico, temos como referência a obra

de Iuri Lotman (1996). Ainda, temos como base a obra de Michel De Certeau (1982), no que

compete o caráter historiográfico do documento. Os detalhes concernentes ao modo como

operamos o desenvolvimento da análise são explicados com extensão no capítulo “Análise”.

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1.4 Justificativa

Por via de três aspectos, destacamos a relevância desta pesquisa para o campo de

estudos em torno dos processos de comunicação e das práticas de consumo. Primeiramente,

este trabalho compreende o tempo como código social, ou seja, como conjunto de abstrações,

de nexos simbólicos, estruturado a favor da manutenção coercitiva de uma determinada

organização coletiva. Posto que o consumo é um fenômeno central à conjuntura sociocultural

contemporânea, ao pesquisar as temporalidades articuladas ao consumo, investigamos as

bases simbólicas que permitem engendrá-lo nas lógicas como observadas hoje.

Por outro lado, não apenas abordamos o tempo como estruturante do consumo, mas

incluímos a abordagem contrária: o consumo como agente sobre a configuração das

temporalidades. A dissertação entende o consumo contemporâneo como fenômeno apoiado na

oferta de escape simbólico à fragmentação instaurada pelo tempo do trabalho, este instaurado

a partir da modernidade e seus processos de industrialização e urbanização. Em suma,

propomos que o apelo simbólico que sustenta o consumo é amparado na tensão entre duas

qualidades de tempo distintas (tempo de lazer e tempo de trabalho), constituintes do mapa de

temporalidades contemporâneas. Além disso, a otimização dos ciclos de produção e consumo

pelo capitalismo influem na configuração do tempo nas sociedades modernas e pós-modernas,

de acordo com um ideal de aceleração e fluidez, tanto no que compete às materialidades

desses ciclos, quanto ao caráter coercitivo que o tempo exerce simbolicamente sobre o

cotidiano dos indivíduos.

Ainda, esta pesquisa demarca sua relevância para o campo pois volta-se para a

memória como mecanismo da cultura, ou seja, atravessando o texto e mobilizando as

diretrizes da comunicação, em um jogo entre lembrança e esquecimento. No caso do objeto

dessa pesquisa, Tormenta RPG, atentamos para o movimento de presentificação de passados e

futuros, que articula a comunicação pelo atravessamento de imaginários referentes a diversos

períodos históricos. No cenário ficcional, especialmente, a comunicação abre-se em

possibilidades múltiplas de vivências lúdicas e fantásticas.

Destacamos, juntamente, que o estudo está de acordo com os objetivos lançados pela

linha de pesquisa a que se comporta. A referida linha, pelo Programa de Pós-graduação em

Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, intitula-

se: “lógicas da produção e estratégias midiáticas articuladas ao consumo”, e estabelece a

investigação da interface comunicação/consumo no plano de produção e estratégias

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midiáticas. Este trabalho, ao analisar como Tormenta RPG, um texto da cultura, constrói suas

lógicas de representação do tempo, dado o contexto de temporalidades contemporâneas

articuladas às lógicas de consumo, trata sobre as “as dimensões tempo-espaço implicadas na

produção de memórias narrativas articuladas ao consumo”, um dos temas inscritos no

programa.

A análise da produção de sentidos pelo objeto de pesquisa abre olhar para as

fundações simbólicas das culturas de consumo, as temporalidades contemporâneas. Tais

fundações temporais, justamente por sua natureza simbólica, ressignificam-se entre os textos

da cultura e suas diversas representações de mundo. Logo, investigar as narrativas de um

texto que revolve em torno de uma temporalidade lúdica e fantástica, que mobiliza memória

voltada para a apropriação de múltiplos passados e futuros, decorre em investigar como a

sociedade negocia sentidos acerca de si mesma, ou seja, acerca de como as lógicas de

consumo estruturam-se culturalmente.

Por fim, referimo-nos ao alinhamento com a pesquisa desenvolvida pela Profa. Dra.

Mônica Rebecca Ferrari Nunes e pelo Grupo de Pesquisa Memória, Comunicação e Consumo

(MNEMON), coordenado por Nunes. Em integração aos fundamentos teóricos e

metodológicos da pesquisa referida, a dissertação detém-se sobre a memória articulada às

dinâmicas de comunicação e consumo. Especificamente, tratamos do tema sob dois aspectos:

memória como mecanismo da cultura, jogo entre lembrança e esquecimento (LOTMAN,

1996), que se dá na comunicação engendrada por Tormenta RPG; e cultura da memória,

conjuntura contemporânea marcada pela quase obsessão em lembrar perante a

descontinuidade passado-presente (HUYSSEN, 2000), e que nesta pesquisa desenha-se como

o contexto das múltiplas apropriações de passados e futuros pelo objeto.

Ainda em relação aos trabalhos recentes realizados por Nunes (NUNES e TANCINI,

2017) e pelo MNEMON (NUNES, 2015, 2017), ressaltamos que a professora e o grupo

tratam sobre a cena na qual se manifestam diversas teatralidades juvenis, como a prática

cosplay e aquelas referentes aos coletivos medievalistas e steampunks. Esses últimos, os

coletivos medievalistas e steampunk, promovem encontros inspirados no imaginário de

épocas passadas, como, respectivamente, a Idade Média europeia e a era vitoriana da

Inglaterra. As práticas mencionadas encontram expressividade entre a juventude brasileira,

baseando-se, geralmente, em manifestações culturais como filmes, séries, animes, mangás,

videogames e, inclusive, o RPG.

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O RPG é responsável por sustentar o universo de sentidos, as dinâmicas de consumo, e

os movimentos de memória inscritos nas práticas desses coletivos, servindo de referência

direta, por exemplo, para os combates desenvolvidos pelos grupos medievalistas. Logo, o

estudo sobre as temporalidades em Tormenta RPG, desenvolvido neste trabalho,

complementa o olhar sobre as lógicas de consumo e memória que tocam o objeto empírico e a

fundamentação teórica das pesquisas de Nunes e do MNEMON.

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2 Definições e origens

A fim de construir aparato conceitual que sustente a análise de como Tormenta RPG

articula sua própria temporalidade interna, dedicamos este capítulo à noção de código

temporal, considerando código como um padrão de nexos simbólicos que é

concomitantemente estruturado pelo modelo biológico de percepção humana e pelas

especificidades de um determinado retrato sociocultural. No contemporâneo, esse retrato está

assentado no advento da modernidade e das culturas de consumo.

Sendo assim, iniciamos com a ponderação de Elias (1998), que desarticula a ideia de

tempo-objeto e apresenta o verbo “temporar”, posto que não há exatamente um tempo a ser

medido: a medição é o próprio tempo. Em grande parte, por ser referenciado em uma forma

substantiva, o tempo costuma encarnar um caráter objetivo, como entidade externa ao ser

humano. Essa tendência a conceber abstrações como substantivos dificulta uma percepção

clara de certos conceitos. Assim como dizer que o rio corre (o rio significa justamente a água

“correndo”), ou que o vento sopra (o vento significa justamente o ar em movimento), dizer

que o tempo passa (o tempo é, essencialmente, a “passagem” entre eventos sequenciais) pode

incitar certa confusão. “Medir o tempo” intui no ato de interagir com um algo transcendente

que pretendemos ter contato. “Temporar”, de forma diferente, indica o ato de interagir com

eventos que, ainda que possam não ter sido causados por nós, são por nós necessariamente

sequenciados: por nós “temporados”.

Esse hábito de medição ativa que é “temporar” acentua-se em uma síntese tão

imbricada na consciência interna dos indivíduos contemporâneos que, muitas vezes, parece

naturalizar-se, criando a ilusão de uma temporalidade absoluta, objetiva, e alheia à existência

humana. Nós costumamos regular nosso comportamento de forma tão densa em relação aos

relógios (com seus movimentos aparentemente independentes e desvinculados de uma

intenção social), que passamos a conceber o tempo com um quê de divino, como um

componente misterioso da natureza, único e universal. Porém, Elias reforça que o tempo é

uma aprendizagem social, amparado na constante transformação de uma “coerção externa”,

que regula nossas ações e posições no mundo de acordo com as nossas relações com o

coletivo, em uma consciência interna, capaz de naturalizar a atuação do tempo sobre todos os

acontecimentos por nós experienciados ou imaginados. Aprendemos desde crianças os

sentidos compartilhados de uma temporalidade que, mesmo que não transpareça, é específica

a nosso contexto sociocultural, respeita uma ideologia e pede a universalização dos

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acontecimentos do mundo em seu curso particular. Em resumo, todo tempo humano é, por

estrutura, código.

O conceito de tempo não é objeto de uma aprendizagem em sua simples

qualidade de instrumento de uma reflexão destinada a encontrar seu

resultado em tratados de filosofia; ao crescer, com efeito, toda criança vai-se

familiarizando com o “tempo” como símbolo de uma instituição social cujo

caráter coercitivo ela experimenta desde cedo. Se, no decorrer de seus

primeiros dez anos de vida, ela não aprender a desenvolver um sistema de

autodisciplina conforme a essa instituição, se não aprender a se portar e a

modelar sua sensibilidade em função do tempo, ser-lhe-á muito difícil, se

não impossível, desempenhar o papel de um adulto no seio dessa sociedade

(ELIAS, 1998, p. 14).

Nesse ponto, tendo em vista o caminho investigativo direcionado ao tratamento das

temporalidades contemporâneas, seguimos com a abordagem do conceito de tempo desde a

sua origem como instrumento biológico, até o seu desenvolvimento como abstração cultural

que permitiu engendrar diversas funções sociais de orientação e ordenação ao longo da

história das comunidades humanas.

2.1 Dos genes aos símbolos

Géza Szamosi (1994) é um autor que, em indireta consonância com os objetivos

interdisciplinares de Elias (1998), promove estudo em torno do tempo e espaço com o cuidado

de delimitá-los em sua totalidade biológica e social, ou seja, considerando tanto a qualidade

adaptativa da percepção temporal e espacial na genética, quanto a qualidade especialmente

humana de cultura, ou, como entende, de concepção de uma existência simbólica alheia à

experiência imediata dos indivíduos.

Szamosi introduz sua teoria com a apresentação do que considera o primeiro relógio

do mundo: o relógio biológico. Ele explica que a mecânica do sistema solar corresponde a

movimentos cíclicos, que repetem as suas trajetórias de acordo com períodos regulares. Na

Terra, essa periodicidade é impressa em padrões que determinam, em escala geral, o curso de

acontecimentos da natureza, como o dia e a noite, as estações do ano e as marés. Os relógios

biológicos, por sua vez, consistem em atributos adaptativos que permitiram sincronizar o

movimento interno dos organismos vivos com os movimentos externos do ambiente. Por

meio de tal correspondência, os seres puderam adaptar-se ao curso de mudanças impostas pela

natureza, tendo aumentada a sua capacidade de sobrevivência. Ao prever o futuro, ancorado

por uma regularidade fixa, os relógios biológicos organizaram a vida no mundo.

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Porém, nota-se que os relógios biológicos se desenvolveram em uma dimensão de

memória genética, não sendo imediatamente influenciáveis pelas variações de consciência

individual e do ambiente. Desse modo, nada garantiram contra a imprevisibilidade que movia

o curso de eventos de pequena escala, específicos a ponto de descolar-se da regularidade

cósmica.

Esses eventos irregulares, como, por exemplo, o ataque de um predador ou a

aproximação de uma presa, pediam respostas particulares a cada situação. Assim, os seres

vivos, orientados pelos objetivos de sobrevivência, como alimentação e autoproteção,

desenvolveram mecanismos de obtenção de informações temporais e espaciais (como o

tamanho, distância e velocidade do predador) capazes de desencadear prontamente a reação

adequada. O modelo de percepção ainda era genético, mas seus desdobramentos eram

flexíveis, variáveis em relação aos estímulos imediatos e imprevisíveis do ambiente.

Szamosi aponta que a evolução dos mecanismos de obtenção de informações consistiu

não apenas no desenvolvimento dos órgãos de sentido, afetáveis por gamas abrangentes de

estímulos ambientais (como luz, som, cheiros), mas também no surgimento de um órgão

capaz de selecionar esses estímulos e organizar sua complexidade crescente em sinais para

ação: o cérebro. O cérebro guardou vasto poder de obtenção de informações, posto que não

opera de acordo com um modelo de correspondência direta com a realidade. De outra forma,

compara os estímulos ambientais com modelos simbólicos, desenhados pelo mapa de

conexões neurais que compõe. Assim, permite maior potencialidade associativa e

adaptabilidade às realidades que interpreta.

Os modelos simbólicos do cérebro permitiram essa maior capacidade adaptativa pois

delimitavam-se à história evolutiva do ser vivo, aos elementos que determinada espécie

aprendeu geneticamente como relevantes para a sua sobrevivência. A rã é capaz de observar

apenas corpos em movimento, porque evoluiu para caçar moscas e outros insetos, e fugir de

predadores móveis. Ela não percebe os padrões de elementos parados, porque não são

determinantes para a sua sobrevivência, assim como nós não podemos perceber

concretamente a espacialidade de um buraco negro, pelo mesmo motivo. Tanto a qualidade e

o espectro dos estímulos recebidos, como a natureza dos padrões simbólicos codificados pelo

cérebro, derivam das informações genéticas referentes às necessidades de sobrevivência. A

percepção de tempo e espaço são moldadas de acordo com esses objetivos naturais, servem-

nos. Para Szamosi:

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isso não é fácil. Um mecanismo capaz de fazer isso deve ser tão

sofisticado quanto uma câmara de TV que executa aproximadamente a

mesma tarefa. Mecanismos biológicos de tal complexidade não se

desenvolvem facilmente. Mas a vantagem evolutiva foi para essas

criaturas, cujos cérebros se tornaram grandes e complexos, o bastante para

poderem usar os sinais auditivos e olfativos a fim de perceberem

corretamente, por exemplo, um predador em movimento. Essa espécie de

processamento da informação envolve o uso de intervalos de tempo para

representar dimensões espaciais. É razoável presumir que essa foi uma

das mais significativas maneiras pelas quais o "tempo", como uma

dimensão de existência, entrou inicialmente nos processos interpretativos

do cérebro (SZAMOSI, 1994, p. 38 e 39).

A fim de lidar com a vastidão de dados captados pelos órgãos de sentido, o cérebro

identificou padrões entre os estímulos, percebendo unidade na fonte de experiências

sensoriais diversas. Em outras palavras, as informações do ambiente não seriam

independentes, sem relação entre si, mas comporiam objetos coesos e permanentes: o cérebro

não reagiria aos estímulos por si mesmos, mas aos estímulos dado o seu contexto organizador

de espaço e tempo. Assim, por exemplo, compreende-se que o tamanho da imagem na retina

está diretamente relacionado com a distância do objeto, e que imagens iguais de tamanhos

diferentes em sucessão representam um mesmo objeto se deslocando, em uma determinada

velocidade. O cérebro pôde integrar eventos não simultâneos em uma sucessão inter-

relacional e ordenada, percebendo as imagens visuais como um único corpo em momentos

diferentes, em uma unidade temporal.

Em suma, o desenvolvimento do cérebro permitiu a criação de um sistema perceptivo

que considerou a variação de estímulos recebidos como substrato de interpretação, e não

como transformações diretas na realidade. Os dados são organizados para que gerem sentidos

em relação ao mundo, e a percepção de uma estrutura de tempo e espaço consiste na coerência

interna dessa organização do mundo, facilitando a sobrevivência nele.

Já o advento da espécie humana alavancou um novo mecanismo de percepções.

Enquanto os outros cérebros eram capazes de conceber objetos em uma lógica coerente de

espaço e tempo, o cérebro humano criou símbolos para a própria abstração de objeto, espaço e

tempo. Os símbolos figuraram como mediador entre os estímulos do ambiente e as respostas

dos seres, complexificando ainda mais as possibilidades de reação. Desse modo, amparados

na noção simbólica, os homens puderam manter a representação dos objetos de uma forma

dissociada do estímulo direto. Os tempos e espaços puderam ser independentes e

recombinados por meio da imaginação, criando, no caso temporal, um expansivo espectro

simbólico de passados, presentes e futuros.

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Esse exercício neural de simbolização do tempo foi alicerçado pela condição criativa

da memória. Nunes (2001), amparada na teoria de Edelman (1992) sobre a memória

biológica, ressalta, em seu enfoque cultural, que a concepção de passados e futuros, vividos

ou não, é suscetível às variações neurais que decorrem da experiência corrente do homem. O

cérebro, por meio de mecanismo seletivo, absorve os estímulos presentes em mapas de

conexões neurais específicos que, no tempo, ao longo de outros estímulos presentes, são

reorganizados em novas relações simbólicas, novos mapas. Logo, a memória, que cria o

passado já perdido, e que por meio da atualização desse passado pode imaginar futuros ainda

inacessíveis, é dinâmica, sempre em respeito a um presente variável, acumulativo mas

seletivo. Quando expandimos essa natureza dinâmica da memória para o campo do fantástico,

distante do compromisso com a veracidade ou falsidade dos acontecimentos criados, e onde

se aportam as narrativas de que trata essa pesquisa, as possibilidades de associação simbólica

variam ainda mais. Nunes aponta:

a capacidade de recordar está mais próxima àquela de organizar o mundo em

categorias do que rememorar imagens permanentes. Recordar não é

reproduzir mecanicamente um fato, mas reconstruí-lo ou mesmo construí-lo.

A cada recordação, as lembranças assumem novas significações e se

contaminam pela atualização do presente, e poderíamos arriscar: organizam

novos memes, novas representações mentais de ideias ou de qualquer

experiência (NUNES, 2001, p. 111 e 112).

A memória, como movimento dinâmico de reorganização do mundo, permitiu a

expansão do tempo, capaz de se distanciar cada vez mais da realidade imediata. Mais do que

isso, a independência em relação às experiências diretas abriu vias para que os símbolos

fossem amplamente comunicados entre as coletividades. As espécies não humanas já

utilizavam da comunicação para aperfeiçoar a vida social. Porém, essa comunicação seguia

padrões fixos, como diretrizes a ser compartilhadas para o bem da comunidade, muitas vezes

já inscritas no código genético. Com os humanos, o novo valor da comunicação residiu na

existência da linguagem, na capacidade de conceber o mundo em longa cadeia de abstração.

Essa abstração em alto nível pôde manter-se no campo simbólico compartilhado que é a

cultura, transmitindo informações entre coletividades e gerações em um tempo muito menor

que o necessário às adaptações biológicas (SZAMOSI, 1994).

A fim de ilustrar a evolução que delimita, Szamosi apresenta o exemplo de um bebê

humano. Primeiramente, os estímulos visuais, auditivos e olfativos que partem da mãe são

captados por meio do aparelho sensório do bebê, desenvolvido desde o nosso processo

adaptativo e inscrito em nosso código genético. Depois, esses sentidos integram-se na

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percepção de um mesmo elemento, a mãe, de acordo com um modelo cerebral capaz de

conceber estímulos como objetos unificados. Ademais, por meio do simbolismo, a criança

cria a imagem da mãe a partir da pronúncia (e, posteriormente, leitura) da palavra “mamãe”,

evocando as sensações artificialmente, em um campo descolado das informações genéticas e

da vivência presente. Nota-se que essa última prática não recria a presença da mãe,

substituindo a sua existência no passado, presente ou no futuro. De forma diversa, o símbolo

pode servir como veículo para a consciência da existência da mãe, fazendo com que o

conceito se distancie da existência imediata e resida nos nexos da consciência, podendo ser

generalizado (maternidade) e relacionado a outros conceitos (mãe distante, mãe amada, mãe

falecida). Como pontua Norval Baitello Júnior (2012), é esse processo, partindo da ausência

sentida pelo corpo (fome, sono, frio) e do preenchimento sensorial também no corpo

(saciedade, conforto, calor), que desdobra a linguagem simbólica, a representação que ao

mesmo tempo desloca a ausência para o símbolo, e ao mesmo tempo a ressalta, na

incapacidade de substituição plena.

Os símbolos podem referir-se a algo disponível na natureza. Porém, os símbolos

também podem referir-se a outros símbolos, o que incorre em uma potencialidade de infinitas

combinações imaginativas. Aí reside o caráter de uma percepção humana de tempo: os

homens podem conceber os instantes que experienciam ou experienciaram, mas também

aqueles dos tempos imaginados. Tal movimento pode ser observado na consciência simbólica

da morte. A consciência da morte calcou-se na representação de um contínuo de tempo além,

não presente e impossível de ser provado pelos vivos. Por meio do exercício imaginativo,

pôde-se flexibilizar percepções sensoriais que eventualmente conflitassem com nossas

concepções esperadas de mundo, projetando futuros possíveis, recorrendo a imagens distantes

do passado, e criando universos fantásticos. O simbolismo humano figurou como um sexto

sentido, ou seja, passou a influenciar drasticamente a forma como a realidade é mediada.

No que se refere à concepção do tempo como esforço de superação simbólica da

descontinuidade imposta pela morte, fazemos referência ao livro “O homem e a morte”, de

Edgar Morin (1976). O autor volta o seu olhar para o contexto de surgimento da humanidade,

considerando o desenvolvimento dos utensílios como ponto fundamental para a classificação

de um estado humano do animal. Porém, ele apresenta outro fator que marcou a humanização:

a inédita preocupação com os mortos, manifesta pelo aparecimento de diversos rituais frente à

morte, como por exemplo, a prática do enterro e da construção de sepulturas.

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Em todos os povos arcaicos, os mortos não eram abandonados. Eles eram sujeitos a

práticas ritualísticas que invocavam simbolicamente sua sobrevivência ou renascimento,

elevando o homem ao estado imortal. Em um primeiro momento, o além da vida era tido

como uma extensão da própria vida, projetado metaforicamente a partir dela. Desse modo, a

consciência da morte, apesar de não reconhecer a sua essência, já que, por si só, a morte é

manifesta apenas como a interrupção da vida mundana; reconheceu a realidade do fim como

lei absoluta, que ao mesmo tempo que marcava a descontinuidade do homem, afirmava a sua

imortalidade simbólica.

Assim, como alerta Morin (1976), não devemos nos restringir a uma simples oposição

entre os utensílios mundanos, supostamente exclusivos a um domínio material, e os objetos

dos rituais, como as sepulturas, supostamente exclusivos a um valor imaterial, sem peso na

capacidade de sobrevivência do homem. A sepultura, por exemplo, afirma e prolonga o

indivíduo no tempo, assim como o utensílio mundano afirma o indivíduo no espaço. A

consciência da morte reserva seu valor adaptativo, posto que abre as possibilidades de

conquista do homem no mundo, temporalmente.

Contudo, em retorno às ponderações de Szamosi sobre o tempo, entendemos que, nas

primeiras sociedades humanas, os símbolos, em um nível baixo de abstração, ainda eram

pouco distantes das realidades observadas. Os homens não distanciavam os símbolos

referentes à realidade imediata, percebidos pelos sentidos congênitos, dos símbolos referentes

menos à realidade percebida e mais aos nexos de sentido da cultura e da capacidade

associativa do cérebro humano. O objeto representado misturava-se com a representação.

Nas primeiras — e mais tradicionais — sociedades, o ponto de vista dos

mamíferos sobre o mundo, a cosmologia congênita dos sentidos humanos,

tornou-se tão entrelaçada com o mundo simbólico, culturalmente evoluído,

que a distinção entre os dois se tornou obscura. Para os antigos seres

humanos, portanto, era difícil separar um símbolo da coisa que ele

representava. (...) Palavras, sonhos e mesmo artefatos podiam assumir a

função da coisa - ou ser - que representavam. Assim, a estátua de um deus

tomou-se o deus e era adorada. O nome de um deus tornou-se sagrado

porque o deus era sagrado, e o nome em si era então tratado com o mais alto

respeito (SZAMOSI, 1994, p. 63).

Desse modo, a representação do tempo e do espaço estiveram suscetíveis a uma

concepção espiritual do mundo. As sociedades pioneiras entendiam as espacialidades e

temporalidades de acordo com valorações emocionais, ou seja, submetendo-as às flutuações

simbólicas do cérebro humano. Se a representação se colava ao objeto, não permitia que as

grandezas fossem abstraídas em uma uniformidade racional.

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Nesse ponto, retornamos à obra de Elias (1998). O autor atribui o início da história

social do tempo ao desenvolvimento da agricultura como prática de sustento de uma

humanidade menos nômade. Tal cenário implicou na eleição do tempo em agente de controle

da vida em sociedade, dada a inédita necessidade de situar precisamente as ações humanas

frente aos eventos naturais que determinavam o sucesso ou não das práticas de plantio. O

homem, a partir das exigências da agricultura, submeteu-se a uma organização coletiva menos

flexível, de acordo com um tempo mais rígido, sistemático e decisivo.

Em concordância com Szamosi (1994), Elias defende que essas sociedades

tradicionais, detentoras de um nível de abstração baixo em relação ao tempo, para determiná-

lo em seus fins de agricultura, dependiam da presença direta dos indicadores temporais, ou

seja, precisavam confirmar com os próprios olhos a posição dos astros no céu. Assim, quando,

por exemplo, um eclipse lunar ocorria, ocultando momentaneamente a imagem da lua, os

homens não tinham tanta segurança de que o astro retornaria à sua posição comum. De acordo

com Szamosi, tratava-se de uma temporalidade composta por múltiplos ciclos repetidos, que

instauravam a ordem e a previsibilidade que a agricultura exigia. Por isso, não havia a

abstração de continuidade independente, mas a hibridização do passado e futuro em um

mesmo caráter pontual e presente do tempo.

Um dos primeiros modelos que desviou desse código temporal esteve construído na

mitologia Judaica. Os judeus percebiam o sol e a lua não como espíritos de vontade própria,

mas como manifestações de um Deus, outro e único, que oferecia os astros a serviço dos

homens. Portanto, o tempo era tido como ferramenta, de existência passiva e descolada da

existência em si da entidade espiritual. Deus e tempo eram diferentes: o tempo não era Deus,

era por Deus manipulado. Diferente das sociedades que acreditavam nos próprios indicadores

temporais como entidades que, ainda que fossem observadas como seres independentes, eram

invariavelmente presas às realidades cíclicas da natureza, Deus, em sua independência

simbólica, poderia conjurar os acontecimentos como desejasse, sem estar obrigado a repeti-

los, assim como exemplifica a criação do universo. A mitologia judaica já apontava para o

nascimento de um novo tempo: linear, acumulativo, sem retorno. O passado diferenciava-se

mais do futuro.

Porém, Elias (1998) aponta que o tempo apenas passou a ser amplamente aceito como

caminho unidirecional e de curso irreversível devido à gradual assimilação de fluxos

temporais reguladores introduzidos por instituições como Academia, Estado e Igreja. O

caráter contínuo do tempo deriva do esforço de preservar e acumular o poder, a religião e o

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conhecimento em uma perenidade além do encadeamento de gerações perecíveis. Além disso,

a partir, principalmente, da atuação científica de Galileu Galilei, a continuidade do tempo

pôde ser percebida em seu caráter de grandeza, passível de medição precisa e amparada nas

leis universais da matemática. Por meio das observações do movimento dos corpos, Galilei

concluiu que o tempo é uma variável independente, que não está sujeita a nenhuma condição

ou força do ambiente. O tempo passou a ser encarado como fluxo soberano e uniforme, dadas

quaisquer circunstâncias.

Nesse ponto, o modelo genético de percepção temporal já era insuficiente para a noção

culturalmente aprendida de tempo. A carga genética permite avaliar tamanhos, distâncias e

velocidades a fim de aperfeiçoar as reações frente aos movimentos do mundo. Porém, a

capacidade de medição precisa das durações, dada a sua irrelevância em termos adaptativos,

não foi plenamente desenvolvida pelo aparato sensório e cognitivo. A fisiologia dos nossos

corpos oferece padrões tão variáveis e imprecisos para a percepção de pequenas e grandes

durações, que tiveram de ser sobrepostas pelas abstrações matemáticas do tempo inauguradas

por Galilei.

Nas sociedades tradicionais, o esforço bastava-se na interpretação dos eventos naturais

regulares, e não na medição e comparação entre durações. Nas sociedades modernas, de

forma diferente, o tempo passou a ser concebido como um fluxo repartido em pequenas e

uniformes unidades, e passamos a ajustar o curso de nossas vidas a um modelo quantificável,

matemático. Mais do que isso, por meio da aprendizagem dos códigos da cultura,

internalizamos a noção de universalidade, uniformidade e independência do tempo. Assim,

quando o sentido contradiz a métrica, comumente taxamos a percepção como ilusiva e a

medida como legítima.

Em outros termos, ainda que o modelo genético de percepção temporal não conduzisse

à precisão matemática do tempo métrico, a ciência clássica amparou-se no vínculo com a

realidade observada, próprio a esse modelo biológico, para desvencilhar dos nexos

imaginativos do simbolismo humano e conquistar a objetividade do olhar. Assim, a ciência

clássica, em seu movimento de separar as “abstrações vinculadas ao real observável” e as

“abstrações vinculadas a outras abstrações”, pôde elevar o real para um outro sentido de

abstração, independente da experiência imediata mas livre da flutuabilidade imaginativa,

ancorada naqueles princípios da universalidade e uniformidade do tempo. Tal ideia

homogeneizadora supunha a destituição da sacralidade espacial e dos tempos ritualísticos.

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As noções científicas de tempo e espaço eram aterrorizantes para muitas

pessoas. Ao tirar deles os símbolos de valores subjetivos e inquietações, a

ciência criou a primeira cosmologia humana que era indiferente não apenas

aos temores e esperanças humanas do dia-a-dia mas até à própria existência

da raça humana (SZAMOSI, 1994, p. 134).

Porém, diferente do espaço, o tempo ainda se fundava em uma oposição constitutiva:

passado e futuro, o que aconteceu e o que acontecerá. Essa oposição se acirraria de tal forma

que serviria de base para o conceito de progresso, alavancando os projetos políticos da

modernidade. A seguir, com objetivo de investigar como a noção de passado, presente e

futuro transformou-se de acordo com a história dos conceitos, apresentamos a teoria composta

por Reinhart Koselleck (2006), em especial atenção para a transição de paradigmas temporais

que marcou os processos de modernidade.

Delimitamos enfoque que atente para os códigos temporais estruturantes do conceito

de história visto que, baseados nas ponderações de Elias, entendemos a narrativa histórica

como construção simbólica apoiada no advento de um tempo linear e progressivo. Ademais,

consideramos que o conceito de história está intimamente vinculado à natureza dos

movimentos de memória, tanto na presentificação dos acontecimentos já passados, como nas

expectativas pelo porvir. Por fim, ressaltamos a natureza do objeto dessa pesquisa. Tormenta

RPG consiste em um cenário ficcional que serve de ambiente para partidas de interpretação de

papéis, os RPGs. Esse cenário é construído por numerosas publicações editoriais que

preenchem os diversos aspectos de uma realidade fantástica inteira, contando com um

complexo mapa de planos astrais, panteões de deuses, raças mágicas, monstros, naturezas de

magia, variedade de monstros, geografia, reinos, heróis, vilões, e, inclusive, uma história.

Sobre esse último aspecto, detemos nosso olhar analítico, posto que é na forma de uma

narrativa histórica própria que Tormenta RPG articula suas representações de tempo. Logo, a

fim de sustentar a comparação a que este trabalho se propõe, julgamos necessária a

investigação em torno das estruturas temporais que amparam um paradigma histórico

moderno.

2.2 Em progresso

Reinhart Koselleck (2006) propõe que a história, antes da modernidade, era tida não

como um conceito único, mas como a acumulação de relatos passados sem necessária relação

entre si. Tais relatos guardavam a sabedoria do passado, e serviam como fórmulas de conduta

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para o presente, evitando fracassos e repetindo sucessos. A história era plural em sua

multiplicidade, contínua em relação ao presente e futuro. Não havia grande espaço para

mudanças velozes, redirecionamentos ou invenção de novas soluções, já que as bases

simbólicas de ação e as circunstâncias contextuais não variavam perceptivelmente.

O autor compreende que esse conceito de história se originou pelo cristianismo,

especificamente na pregação de um futuro limitado por um fim apocalíptico. Por meio de tal

narrativa, a Igreja pôde contribuir para a sua própria longevidade, já que se colocava como a

instituição capaz de prover a segurança pré-apocalíptica. E, como o momento de imposição do

juízo final não era determinado exatamente, poderia ser adiado quantas vezes fosse

necessário. Assim, a Igreja manteve e estendeu o seu poder integrador, continuamente

salvando os fiéis da iminência do fim, sempre futuro mas nunca presente, suspenso no tempo.

O passado e presente suspendiam o futuro.

Já a modernidade, por sua vez, experimentou qualidade de tempo referente a um

inédito conceito de história. A partir das rupturas políticas iniciadas pela Revolução Francesa,

mas já antecipadas pelo Renascimento e acelerado desenvolvimento tecnológico, a história

gradualmente transitou de um conjunto de acontecimentos não relacionados entre si e

indissociáveis dos modelos de ação presente, para uma narrativa universal, coesa e distante do

presente e futuro. Esse conceito moderno contemplava os acontecimentos do passado como

partes integrantes de um grande percurso, em uma lógica interna de causalidade. História

passou a ser referenciada no singular coletivo, ordenada por uma estrutura temporal que

lançasse o caminho da humanidade para algum porvir idealizado, temido ou desejado.

Ainda, Koselleck ressalta que a percepção do passado como narrativa singular,

sustentada por sua causalidade interna, impediu que os eventos da história pudessem ser

deduzidos apenas pelas forças dos contextos que os originaram. Sendo assim, as fórmulas de

sucesso do passado foram amarradas às suas especificidades contextuais, e não puderam ser

repetidas nas circunstâncias do presente, perdendo seu antigo caráter de ensinamento. O

presente passou a apresentar novos desafios, e a história tornou-se um conceito reflexivo, um

objeto distante a ser analisado mas não repetido.

O que distingue a história é sempre o inédito, o nunca antes experimentado,

as individualidades criadoras e as forças internas, que certamente dependem

umas das outras na sucessão externa, mas que, "em sua singularidade e

direcionamento, jamais poderiam ser deduzidas das circunstâncias que as

acompanham". A coesão interna e a singularidade da história escapam a uma

dedução causal (reside aí o caráter progressivo da perspectiva histórica) e,

por isso, não se deixou nem à Fortuna (como símbolo de retorno) e nem ao

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acaso um espaço de manobra, uma vez que a singularidade do acaso já se

integrava à singularidade da 'história em si". (...) Dizendo de outro modo: se

a história, em sua singularidade, ultrapassa todas as causas, então também o

acaso, causa acidental que é, perde seu peso histórico (KOSELLECK, 2006,

p. 158).

O passado, ao deixar de prover modelos de ação, passou a ser concebido como curso

universal, apoiado na ideia de que a humanidade trilhava um caminho em direção ao futuro.

Esse caminho, em razão da natureza de singularidade e descolamento com as circunstâncias

que marcou a nova história, não poderia ser previsto. Porém, por esses mesmos motivos,

poderia ser orientado, ou reorientado, para futuros desejáveis. Lendo a trajetória do passado,

em distância, a humanidade ganhou o poder de negá-lo, e exercer as forças que poderiam

alçar um futuro ideal, vinculado ao conceito de progresso.

O futuro abriu-se para o desconhecido e, ainda que não garantissem o sucesso, as

ações do presente puderam operar como esforços de manobra a fim de guiar o caminho da

humanidade ativa, consciente e ideologicamente. Em suma, passado, presente e futuro haviam

distanciado-se: o passado encerrado em si mesmo e incapaz de oferecer modelos de ação para

o presente, mas tido como uma narrativa universal, singular e projetada para o futuro; o

presente idealmente capaz de reorientar o curso herdado do passado e fundar as bases de um

futuro desejado; e o futuro em aberto, passível de ser engendrado por novidade e aceleração,

mas, em razão das rupturas constantes causadas pelo presente, instável.

2.3 Tempos de trabalho, tempos de consumo

Seguimos com a investigação em torno dos processos de modernidade que dão luz ao

conceito de história apresentado por Koselleck (2006), considerando como os movimentos de

industrialização e urbanização dinamizaram as forças orientadoras e ordenadoras do tempo. A

partir desse olhar, fundamos o terreno conceitual para a discussão do próximo capítulo, que,

por sua vez, estende o paradigma temporal moderno para o mapeamento das temporalidades

contemporâneas que contextualizam Tormenta RPG, herdeiras das lógicas de aceleração,

descontinuidade entre passado, presente e futuro, e cultura do consumo.

David Harvey (1989) afirma que o projeto da modernidade nasce com o Iluminismo,

movimento que pretende fundar uma ciência objetiva, alimentada pelo conhecimento de

indivíduos trabalhando livre e criativamente. Assim, haveria a emancipação do homem,

liberto das pressões da natureza e, por meio de um organismo social racional, à parte das

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arbitrariedades dos mitos, religiões, superstições, autoritarismos. Em coalização com a ideia

do progresso, o Iluminismo rompeu com o passado e as tradições, desmistificando-as. A

instabilidade gerada por tal ruptura era considerada o meio para atingir um ideal de igualdade

e liberdade, com o homem acima da natureza.

Nesse sentido, Elias aponta que a modernidade afrouxou a conexão entre os

acontecimentos sociais e naturais. A urbanização e a industrialização atribuíram ao homem

certa autonomia em relação à natureza, visto que promoveram, por exemplo: a fabricação em

massa e o estoque de bens, que venceu, até certa medida, a antiga dependência por matéria-

prima imediatamente disponível; a especialização do trabalho, que não exigia do trabalhador o

domínio intelectual e técnico sobre a totalidade do processo de transformação de recursos; e o

acelerado desenvolvimento tecnológico, que abriu soluções para os impasses obrigados pela

natureza. Ainda, o uso de instrumentos de medição do tempo mais precisos fez com que a

relação entre os eventos cósmicos e sociais fosse mais indireta. Esse quadro atendeu à

necessidade dos Estados de organizar e regular os altos graus de integração dos povos e as

imbricadas redes comerciais e industriais, “monetariezando” o tempo e, por meio dele,

quantificando e burocratizando o trabalho.

Porém, Harvey aponta que as duas grandes guerras e ameaça nuclear abalaram o

otimismo Iluminista, dando margem à ideia de que, na verdade, tratava-se de um projeto de

opressão universal. Acreditava-se que o anseio por dominar a natureza acabaria no anseio por

dominar o próprio homem, com a racionalidade instrumental exercendo coerção sobre a

alteridade, individualidade e cultura. O argumento para o projeto de progresso era o da

destruição criativa, partindo da ideia de que, para fundar um mundo novo, livre das correntes

do misticismo, era preciso destruir o mundo antigo. Por isso, esse desenvolvimento, movido

por uma utopia, gerava a ruína a que ele próprio se opunha. Além disso, estava em aberto a

questão de quem teria o poder para definir a razão do progresso, e em que circunstâncias essa

razão poderia ser legitimamente exercida ou imposta.

O ideal de progresso pretendia instaurar perenidade em meio ao caos gerado pela

instabilidade moderna. A busca pelo eterno, em uma realidade de transitoriedades, era

manifesta pelo anseio de congelar o tempo, “espacializar o tempo”, seja por meio, por

exemplo, da arquitetura, da imagem, do choque instantâneo. Na modernidade, havia a idade

de que o mundo poderia ser controlado se representado de acordo com um sistema de

representação que fosse único ou, no máximo, unificado em uma rede complexa de

perspectivas múltiplas.

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A busca por um sistema de representação adequado estendia-se para a conquista

espacial: o projeto de progresso incluía a conquista do espaço pelo tempo, destruindo as

barreiras locais. Nesse ponto, articulamos a obra de Zygmunt Bauman (2009), em uma

aproximação teórica voltada especificamente para o desenvolvimento das máquinas como

meios de produção e deslocamento. O autor teoriza que, na pré-modernidade, o conceito do

tempo vinculava-se de maneira fixa à ideia de espaço e matéria. Em outros termos, o tempo

indicava quanto esforço seria preciso para cobrir uma determinada distância ou produzir

algum determinado bem, sendo essa proporção restrita à velocidade e força quase invariável

dos humanos e animais. Assim, Bauman denomina a pré-modernidade como a era do

wetware, de um tempo não manipulável pois atado à rígida correlação com as constantes da

natureza, os atributos físicos inatos ao homem e animal.

Contudo, a modernidade, ou modernidade sólida, como define Bauman, teve na

máquina a força tecnológica necessária à massificação da produção e aceleração do

deslocamento humano. A máquina, ou hardware, instituiu flexibilidade à razão tempo-

espaço-matéria, posto que: como veículo, possibilitou que o mesmo espaço fosse percorrido

em menos tempo e, como instrumento de produção, permitiu que a matéria fosse transformada

mais rapidamente. Ademais, diferente da capacidade dos humanos e animais, a capacidade da

máquina pôde ser constantemente aperfeiçoada, destacando o tempo como uma variável

manipulável. A busca por um bom controle do tempo daria largada a uma grande corrida por

velocidade e eficiência, a fim de estender a dominação de territórios e a quantidade de riqueza

em mercadorias produzidas.

No templo das Olimpíadas gregas ninguém pensava em registrar os recordes

olímpicos, e menos ainda em quebrá-los. A invenção e disponibilidade de

algo além da força dos músculos humanos ou animais foi necessária para

que essas ideias fossem concebidas e para a decisão de atribuir importância

às diferenças entre as capacidades de movimento dos indivíduos humanos –

e, assim, para que a pré-história do tempo, essa longa era da prática limitada

pelo wetware, terminasse e a história do tempo começasse. A história do

tempo começou com a modernidade. De fato, a modernidade é, talvez mais

que qualquer coisa, a história do tempo: a modernidade é o tempo em que o

tempo tem uma história (BAUMAN, 2009, p. 128 e 129).

O tempo tornou-se um recurso, que, assim como a matéria-prima ou a energia, era

atribuído de valor e, por isso, não deveria ser desperdiçado. Se nas sociedades pré-modernas o

controle do tempo equivalia a poder, posto que expandia a capacidade de ordenação social,

nas sociedades modernas esse poder tomou a forma de capital, manipulado produtiva e

tecnologicamente por aqueles que detinham a força das máquinas. E, como aponta Harvey,

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em vista que o capitalismo objetivava a renovação veloz dos ciclos de produção e consumo, o

efeito de aceleração estendeu-se a todo o domínio econômico e social.

Porém, essa aceleração generalizada foi descontínua, marcada por crises, já que os

ativos fixos do capitalismo impunham certos entraves para a renovação dos ciclos de

produção e consumo. Os ativos fixos exigem um tempo mais lento ou são alvo da lógica da

destruição criativa, o que também gera prejuízos. Sendo assim, a modernidade seguiu pela

lógica contraditória entre os esforços de aceleração do tempo e os investimentos de longo

prazo necessários a essa aceleração. Como sintetiza Harvey:

A modernidade, consequentemente, não apenas implica em uma ruptura

brutal com todas e quaisquer condições históricas antecedentes, mas é

caracterizada, por si só, como um processo interminável de rupturas e

fragmentações internas (HARVEY, 1989, p. 12, tradução nossa2).

Aliado a isso, é importante notar que o processo de modernização correu de formas

desiguais dentro da totalidade socioeconômica. Fredric Jameson (2007), em estudo analítico

sobre a passagem da modernidade a pós-modernidade, aponta que o movimento assimétrico

de modernização criou um cenário em que coexistiam de forma acirrada elementos valorados

como arcaicos, como a produção artesanal, e elementos valorados como modernos, como as

tecnologias “ultrafuturistas”. O novo e o velho travavam um duelo simbólico, no qual a

recente ordem da produção, do trabalho, do consumo, da tecnologia, das formas estéticas,

atualizava e pretendia substituir o que ainda resistia do mundo anterior. Ainda que a

coexistência pancrônica de variados passados no mesmo presente seja uma característica

inerente ao espaço cultural, como defende Iuri Lotman (1996), na modernidade, essa

pancronia era concebida em uma ideia de oposição, de ruptura entre dois modos de vida

contrastantes.

Jameson propõe a derivação do adjetivo “moderno” em três substantivos, de sentidos

diferentes: modernização, modernismo e modernidade. A modernização refere-se à

transformação dos modos de produção, no que compete, por exemplo, à industrialização, à

especialização do trabalho e ao desenvolvimento tecnológico. O modernismo refere-se às

formas como as manifestações da cultura reagem simbolicamente a essa modernização

desigual. Tal reação é ambivalente assim como a própria modernização, ora representando

disrupções contra o progresso industrial, a racionalização, a massificação e, em quase todas as

2 Modernity, therefore, not only entails a ruthless break with any or all preceding historical conditions, but is

characterized by a neverending process of internal ruptures and fragmentations within itself.

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vanguardas, nutrindo certa hostilidade contra a força crescente do mercado; ora servindo-se

do valor da novidade, o exercício de transformação de formas antigas, a tecnologia

deslumbrante.

A modernidade, por sua vez, é a mediação entre a modernização e o modernismo, ou

seja, “a descrição de como as pessoas “modernas” vêem a si mesmas” (JAMESON, 2007, p.

314). Nesse “sentimento moderno”, é central o desejo pelo novo. O indivíduo moderno sente-

se novo, em uma nova era, de novas possibilidades. No diálogo entre as estruturas de

produção e consumo e a conjuntura cultural ambivalente, resiste o desejo ativo de que nada

aconteça como antes, de construir o inédito, de se livrar de tudo o que é velho. Para as coisas

e valores ultrapassados, resta o esquecimento ou a sua transfiguração em uma novidade

contemporânea.

De acordo com as ponderações de Jameson, consideramos que a modernidade se

define em uma complexa inter-relação entre as transformações na realidade social e as suas

correspondências simbólicas. Essa inter-relação é calcada na construção de uma

temporalidade moderna, concebida como código, um modelo específico de ordenação e

orientação do homem em relação aos acontecimentos do mundo e a si mesmo. Sendo assim,

notamos que o domínio material relativo à execução dos movimentos sociopolíticos da

modernidade e o domínio simbólico relativo à construção de um paradigma temporal

moderno estiveram imbricados em estado de causalidade mútua. Por um lado, a visão de um

tempo progressivo e manipulável pôde sustentar o novo projeto político, e por outro, as

lógicas produtivas e de consumo desse mesmo projeto afetaram drasticamente os modos como

os indivíduos passaram a conceber seus passados, presentes e futuros, refletidos em

imaginários e cotidianos. A marca expressiva dessa transição social e conceitual está presente

no que propomos como a cisão entre dois tempos: o da qualidade do trabalho, e o da

qualidade do lazer.

Como exposto anteriormente, a industrialização, urbanização e especialização

transformaram o tempo em recurso, que poderia ser melhor ou pior aproveitado, negociável

como horas de trabalho. Logo, o tempo do trabalho, definido como o período de esforço

laboral do indivíduo, tornou-se quantificável e vendável, imbuindo-se das lógicas capitalistas

de aceleração e otimização dos processos, e orientando-se ideologicamente para a manutenção

de um futuro dominado pelo homem como ser produtivo.

O poder capitalista parte da apropriação do tempo dos trabalhadores aos objetivos de

lucro, sendo que esse tempo é alvo de disputa entre os próprios trabalhadores e os detentores

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dos meios de produção. Os capitalistas promovem esforços a fim de acelerar o processo

produtivo, muitas vezes encontrando resistências nos empregados, já que, ao favorecer a

obtenção do lucro acima do ritmo natural dos indivíduos, costumam expô-los a condições

extremamente coercitivas do tempo (HARVEY, 1989).

Complementar ao tempo do trabalho, foi construída a concepção de tempo de lazer,

como todo aquele período em que o trabalhador não exerce o seu esforço laboral. Apesar de

oferecer espaço de restauração do indivíduo em relação à grande exigência produtiva da

modernidade (e, portanto, sustentá-la), o tempo do lazer não escapou às forças sistematizadas

pelo tempo do trabalho, já que, ao invés de se abrir como período de reflexão sobre a

realidade instaurada, serviu aos objetivos e ideologias do capitalismo moderno. O tempo de

lazer foi atravessado pela atuação dos meios de comunicação de massa, da indústria do

entretenimento e, em uma dimensão geral, das dinâmicas de consumo. A seguir, mobilizamos

a obra de Edgar Morin (2005): em específico a análise que o autor compõe em torno da

cultura de massa no século XX.

Morin introduz o trabalho moderno, industrial e burocrático, como a origem de um

tempo mais distante das variações sequenciais do mundo “natural” e destruidor do prévio

lastro orgânico entre o ofício e o homem, que tende a não mais se inscrever em uma postura

criativa, imaginativa e de consciência de totalidade perante a ação de transformação dos

recursos da natureza. O tempo do trabalho torna-se estéril, encerrado em seus próprios

objetivos produtivos, e especializado demais para nutrir uma disposição afetiva do trabalhador

quanto à sua qualidade de agente transformador.

Como já apontado, e reforçado por Morin (2005), o tempo do lazer deu-se como

antídoto necessário para amenizar a quase infertilidade psíquica e identitária durante o tempo

do trabalho moderno, figurando como espaço para o repouso e a recuperação. Porém, não

apenas por isso, o lazer prometeu suprir essas demandas afetivas dos indivíduos pois

engendrou em si as articulações simbólicas do consumo. Na modernidade, o tempo do lazer

elegeu-se como o tempo da vida a ser vivida, como o tempo em que o homem, de fato, vive,

plenamente. No consumo, aparentemente livre e democrático, o homem foi permitido

desenvolver e praticar suas individualidades, gozar de prazeres, esquecer as mazelas causadas

pelo trabalho.

São tais lógicas que mobilizam toda uma ética da modernidade. A partir do consumo,

tem-se o luxo de matar o tempo, de transbordar a pressão do trabalho, de vivenciar as

narrativas ficcionais, possivelmente fantásticas, oníricas. Essa orientação move o indivíduo

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moderno para o acesso a um tempo quase ritualístico, mas cotidiano, dissociado de qualquer

religiosidade ou ideia de transcendência espiritual. Enquanto o lazer durar, pode-se ir a outros

lugares, descolar-se das temporalidades coercitivas, imaginar, divertir-se. Morin resume:

muitos moralistas, que se crêem Pascal e não são mais que Duhamel, não

puderam compreender a natureza desse divertimento moderno. Para dizer a

verdade, bem que existe algo do divertimento pascaliano: a leitura dos fatos

diversos, a hipnose do vídeo, o fim-de-semana motorizado, as férias

turísticas: matamos o tempo, fugimos da angústia ou da solidão, estamos em

outro lugar. Não há dúvida de que mesmo com o jornal, o rádio, a televisão,

o lar nunca foi tanto um outro lugar (MORIN, 2005, p. 69 e 70).

Sobretudo, devemos destacar o papel que as tecnologias, principalmente aquelas

relacionadas à operação dos meios de comunicação, mantiveram sobre o cenário de

temporalidade moderna. A seguir, reportamo-nos à obra de Nicolau Sevcenko (2001), dada a

sua qualidade de promover extensas reflexões em torno das consequências socioculturais do

desenvolvimento tecnológico do século XX.

Sevcenko aponta que os meios de comunicação modernos puderam condensar

fantasia, desejo e divertimento para vastas audiências. Esses meios operaram de forma

análoga aos meios de transporte referenciados por Bauman, no sentido de que, ao aumentarem

a velocidade de transmissão de mensagens de um lugar a outro, otimizaram o acesso ao

espaço e, portanto, aceleraram o tempo. Aos poucos, o exótico se transformava em

espetacular, e o espetacular imbricava-se no cotidiano do lazer.

O tempo do lazer abriu-se como campo onde a velocidade dos meios de comunicação

de massa pôde oferecer múltiplas sensações de forma quase instantânea, aparentemente

dissociada da estrutura rígida do tempo do trabalho. Nesse sentido, o presente teve o seu valor

exaltado, já que as vivências antes espalhadas pela continuidade entre passado e futuro foram

comprimidas na duração do cotidiano. Em suma, a tecnologia desenvolvida por meio do

modelo de produção industrial (e da ciência de paradigma positivista) atingiu tamanha

capacidade de aceleração, que o presente passou a sustentar uma malha atemporal de

simultaneidades diversas, que exaltavam entretenimento, emoção, espetáculo, e acesso a

outros lugares. Sobre o caráter de multiplicidade sensitiva semeado pelas tecnologias de

comunicação, Sevcenko descreve:

o recente advento das técnicas de eletro-eletrônicas reformulou esse contexto

ao atribuir um novo papel ao olhar, não mais estático como aquele

condicionado pela imprensa e pela perspectiva linear do Renascimento, mas

um olhar agora onipotente e onipresente, dinâmico, versátil, intrusivo, capaz

de se desprender dos limites do tempo e do espaço, como aquele da câmera

de cinema. A esse olhar alucinado, os recursos eletro-eletrônicos

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acrescentaram os potenciais do som amplificado e distorcido, repondo ao

conjunto os efeitos de simultaneidade, de descontinuidade, da interatividade

de fragmentos autônomos, ademais da conectividade táctil de um mundo

invadido pelas multidões, pelos fluxos e pelas mercadorias (SEVCENKO,

2001, p. 80).

O autor não denota que há meramente um entorpecimento do homem pela compressão

e rapidez dos estímulos, mas aponta a abertura para novas perspectivas e a consequente

germinação de novas formas de se pensar a arte, a ciência e a política. A posição do homem

perante as tecnologias modernas fundou a base de olhares inéditos sobre o mundo, sobre si

próprio, sobre o tempo. Porém, além de compreender que o advento dos meios de

comunicação de massa dinamizou o campo simbólico do homem e a interpretação da sua

realidade, é preciso considerar que a relação moderna entre cultura e comunicação esteve

fundada nas forças de acúmulo do capital. Tomamos como referência a obra de Theodor

Adorno e Max Horkheimer (1998), a fim de discorrer sobre como a noção de tempo de lazer

pela modernidade apoiou o entrelaçamento entre a cultura e uma ideologia produtiva

capitalista.

Os autores propõem que a consolidação dos meios de comunicação de massa

inaugurou um cenário no qual as manifestações da cultura foram apropriadas por um sistema

de massificação e padronização equivalente ao dos processos de produção industrial. Desse

modo, ao estar conformada a tais lógicas, a arte foi destituída de seu valor emancipador e a

cultura contribui com modelos ideológicos favoráveis à manutenção da modernidade

capitalista. A indústria cultural, na abordagem da audiência durante o tempo excedente ao

trabalho, naturaliza a condição exploratória e as estruturas de poder que aprisionam essa

audiência na ditadura dos relógios e do capital.

Entende-se que o tempo cercado pela indústria cultural permitiu a prosperidade dos

imaginários articulados pelo consumo como parte estruturante do modelo industrial moderno.

O consumo passou a operar de acordo com lógicas temporais que ofereciam um escape à

rigidez do tempo do trabalho, em ritualidades voltadas para o estímulo às sensações e

imaginação. Assim, ao instituir certa atemporalidade, os novos modos de consumir não

apenas pontuaram algum alívio psíquico frente à fragmentação causada pelo novo sistema de

trabalho, mas também engendraram os imaginários que alavancariam a demanda das massas.

Em suma, como defendido por Adorno e Horkheimer, os meios de comunicação

conformavam as manifestações culturais (populares ou de elite) à condição de mercadorias e,

assim, foram capazes de subjugar seu potencial simbólico e usá-las a favor de uma tensão

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entre produção e consumo, exploração do trabalho e domesticação ideológica. Enquanto a

indústria cultural aparentemente se propunha ao escape à coerção pelo tempo do lazer, já que

oferecia meios culturais de imersão narrativa e atemporalidade ritualística, tais meios

manifestavam-se como produtos, submissos às lógicas de padronização e velocidade, de

potencial simbólico emancipador adormecido e sobreposto por padrões de efeito, diversão,

entorpecimento.

O amusement é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ele é

procurado pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho

mecanizado, para que estejam de novo em condições de afrontá-lo. Mas, ao

mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu

tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinado integralmente pela

fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as

cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho. O pretenso

conteúdo é só uma pálida fachada; aquilo que se imprime é a sucessão

automática de operações reguladas (ADORNO; HORKHEIMER, 1998, p.

113).

Entendemos, neste trabalho, que o RPG é produto cultural cujo entretenimento figura

como escape simbólico à coerção do tempo moderno. Esse escape se dá especialmente pela

natureza de jogo, que, pela instauração do círculo mágico, permite uma vivência alternativa,

de temporalidade alheia à dureza do cotidiano de trabalho. Ainda, a aparente flexibilização do

tempo pelo consumo é potencializada pelos traços simultaneamente fantásticos e verossímeis

do cenário ficcional de Tormenta RPG, sugerindo uma vasta imersão narrativa.

Porém, é importante notar que observarmos Tormenta RPG não simplesmente pela

teoria que o elege como entretenimento, manifestação ideológica de estratégias de produção

frente às lógicas de consumo, mas como uma tensão dessas lógicas com a criação de um

espaço lúdico, da produção e consumo de vivências afetivas, principalmente no que tange aos

movimentos de memória engendrados pelo objeto. No capítulo seguinte, com base na

investigação desenvolvida até aqui, direcionamos o percurso da pesquisa para o mapeamento

teórico das temporalidades contemporâneas. Para isso, estudamos como o tempo edificado em

um modelo humano de percepção simbólica e afetado pelas dinâmicas próprias à

modernidade transita, no contexto contemporâneo, entre o imperativo de aceleração e fluidez,

e o movimento de apropriação de passados e imaginação de futuros manifestados pela

memória cultural.

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3 Presentes, passados e futuros de consumo

As rupturas iniciadas e concatenadas pela modernidade estendem seus efeitos para o

contemporâneo, que nutre uma imbricação particular entre o tempo e os fenômenos da cultura

da memória e cultura do consumo. Esse contexto pós-moderno compõe as forças que atuam

sobre o nosso objeto de pesquisa e o substrato sobre o qual ele produz sentidos. Exploramos,

primeiramente, a transição da modernidade para a pós-modernidade, com destaque aos

movimentos de aceleração, fluidez e culto ao instantâneo atrelados ao consumo. Em seguida,

atentamos para a relação do presente com o passado e futuro, considerando o papel da

memória em um estado de compressão espaço-tempo e presentismo.

3.1 Aceleração, fluidez e instantaneidade

De acordo com David Harvey (1989), a pós-modernidade está em oposição à

concepção positivista, racionalista e universalizante que imperava no mundo moderno.

Enquanto havia a crença no progresso linear dos homens, no planejamento e implementação

de determinadas ordens sociais, na existência de verdades absolutas por detrás da realidade

caótica; hoje, há a heterogeneidade e alteridade como cerne do pensamento pós-moderno.

Ainda que se trate de um período também marcado pela fragmentação, instabilidade e

indeterminação, o contemporâneo rejeita a busca pelas metanarrativas, ou seja, teorias

aplicáveis universalmente.

As condições da compressão espaço-tempo pós-modernas exageram em

muitos aspectos os dilemas que de tempos em tempos acompanharam os

processos de modernização capitalista no passado (...) Enquanto as respostas

econômicas, culturais e políticas não foram exatamente novas, o alcance

dessas respostas difere em certos aspectos importantes daqueles que

ocorreram antes. A intensidade da compressão espaço-tempo no capitalismo

ocidental desde 1960, com todos os seus traços congruentes de efemeridade

e fragmentação nos reinos políticos e privados, assim como no reino social,

não parecem indicar um contexto de vivência que torne a condição pós-

moderna de alguma forma especial. Mas ao colocar a condição pós-moderna

em seu contexto histórico, como parte de uma história de sucessivas ondas

de compressão espaço-tempo geradas pela pressão do acúmulo de capital em

sua busca perpétua pela aniquilação do espaço por meio do tempo e da

aceleração dos ciclos de produção e consumo, nós podemos ao menos

destacar a condição pós-moderna como condição acessível a análise e

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interpretação histórico-materialistas (HARVEY, 1989, p. 306-307, tradução

nossa3).

Por volta dos anos 60, movimentos antimodernistas opuseram-se à sedimentação das

instituições, à racionalidade burocrática, à ciência positivista. A partir daí, a realização

individual passou a ser exaltada, por exemplo, nos gestos antiautoritários, no enfoque ao

cotidiano. Esses movimentos colocaram-se contra o modernismo restrito às elites, aceitando a

efemeridade, a fragmentação e a descontinuidade sem a tentativa de transcendê-las por meio

da busca de uma eternidade e imutabilidade que resolvessem o estado caótico moderno. A

pós-modernidade valoriza a transição dos indivíduos por entre a instabilidade, tendo o próprio

nomadismo como grande ideal.

Em um primeiro olhar, percebemos que as dinâmicas de Tormenta RPG são coerentes

com o tratamento pós-moderno em relação à heterogeneidade e alteridade. O cenário conflui

universos simbólicos discrepantes, sem definir uma narrativa central que explique, alinhe ou

resuma toda a diversidade da ficção. Ainda que haja grandes narrativas, nota-se a

multiplicidade de deuses, reinos, aventuras, que articulam memórias, desafios, imaginários

específicos. No caso de Tormenta RPG, essa diversidade simbólica serve às lógicas do

consumo, que, no quadro pós-moderno, definem uma nova relação do homem com o tempo.

Com o advento da pós-modernidade, novas ramificações de produtos e novos desejos

são criados por meio da construção de imaginários e articulação de fantasias pelas marcas.

Esse fluxo incessante de demandas gera um contexto produtivo instável: os capitalistas

buscam renovar sua mão de obra, mercados, locais, fornecedores, com objetivo de otimizar o

tempo de suas operações e acompanhar à rapidez com que se concatenam os ciclos de

consumo. Como aspecto positivo, tal estado permite maior racionalidade produtiva, reduzindo

o peso que os movimentos da natureza exercem sobre o homem. Ainda, há a criação de novas

possibilidades culturais nascidas dos novos desejos e imaginários mobilizados; a

intensificação do intercâmbio de produtos entre culturas distantes, estimulando o contato

3 The conditions of postmodern time-space compression exaggerate in many respects the dilemmas that have

from time to time beset capitalist procedures of modernization in the past (...). While the economic, cultural,

and political responses may not be exactly new, the range of those reponses differs in certain important

respects from those which have occurred before. The intensity of time-space compression in Western

capitalism Since the 1960s, with all of its congruent features of excessive ephemerality and fragmentation in

the political and private as well as in the social realm, does seem to indicate an experiential context that makes

the condition of postmodernity somewhat special. But by putting this condition into its historical context, as

part of a history of successive waves of time-space compression generated out of the pressures of capital

accumulation with its perpetual search to annihilate space through time and reduce turnover time, we can at

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direto entre os povos do globo; e a invenção de tecnologias que abram perspectivas para o

bem-estar humano.

Porém, a busca pela inovação contínua desvaloriza o passado, gerando uma lógica de

destruição dos ativos já consolidados, de descarte da mão de obra já especializada, etc. Assim,

surgem esforços do capitalismo para tornar as transições entre ciclos de produção e consumo

mais fluidas, com rupturas menos graves, como por exemplo, a concepção de formas

organizacionais e tecnologias de produção que instaurem mais flexibilidade no processo

produtivo.

Como exemplo desses esforços no âmbito do consumo, há o uso da moda como meio

de renovação constante do estilo de vida e das atividades recreacionais (muitas vezes

relacionadas a produtos culturais) exercidas pelos indivíduos. O aumento do consumo de

serviços e a incorporação da cultura como produto de entretenimento auxilia nesse processo

aceleração. A vida útil dos serviços e dos produtos culturais é menor, quase consumidos

instantaneamente devido à sua natureza simbólica, de forma que não têm limites de

acumulação como os produtos físicos.

Tormenta RPG segue tal movimento no sentido de que, além de multiplicar suas

possibilidades de consumo horizontalmente, por meio dos diversos universos simbólicos que

mobiliza, se renova de tempos em tempos, atualizando as suas narrativas ao longo dos anos. A

temporalidade de Tormenta RPG é orientada para a constante renovação de seus apelos de

consumo, das possibilidades de jogo. O próprio objetivo do consumo do cenário são as

partidas de RPG, efêmeras a ponto de transcenderem a necessidade de serem registradas pela

escrita. Os livros são a calcificação da imensa textura simbólica do cenário, virtualmente

infinita, a matéria-prima para a criação pelos jogadores. É a partir dessa textura, fluida, etérea,

múltipla, inventiva, que os livros são escritos como produtos físicos, e não o contrário.

Nesse ponto, destacamos o papel da descartabilidade, que se estendeu do consumo de

produtos para o domínio dos relacionamentos, dos estilos de vida, dos valores, dos desejos.

Esse tópico é importante, pois, como defende Harvey (1989), as mudanças aceleradas geram

consequências nas disposições psicológicas dos indivíduos pós-modernos, em reação ao

ambiente de diversificação extrema e rupturas recorrentes.

(...) devo fazer referência frequente ao conceito de ‘compressão espaço-

tempo’. Eu pretendo assinalar com esse termo processos que revolucionam

least pull the condition of postmodernity into the range of a condition accessible to historical materialist

analysis and interpretation.

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as qualidades objetivas de espaço e tempo de tal forma que nós somos

obrigados a alterar, às vezes de formas bem radicais, como nós

representamos o mundo para nós mesmos. Eu uso a palavra ‘compressão’

porque podemos notar amplamente que a história do capitalismo tem sido

caracterizada pela aceleração do ritmo de vida, superando barreiras espaciais

que o mundo às vezes parece derrubar para cima de nós. O tempo usado para

atravessar o espaço e como nós comumente representamos esse fato são

indicadores úteis do tipo de fenômeno que tenho em mente. Enquanto o

espaço parece encolher em uma ‘ aldeia global’ de telecomunicações e em

uma “espaçonave terrestre” de interdependências econômicas e ecológicas –

apenas para usar duas familiares imagens cotidianas – e enquanto os

horizontes temporais encurtam ao ponto onde o presente é tudo o que há (o

mundo do esquizofrênico), nós precisamos aprender a lidar com um

avassalador senso de compressão dos nossos mundos espaciais e temporais

(HARVEY, 1989, p. 240, tradução nossa4).

Nesse ponto, Zygmunt Bauman alia seus pensamentos com Harvey, defendendo que,

em adição à valorização do instantâneo e descrença no futuro de “longo prazo”, as

temporalidades contemporâneas vincularam-se à fluidez e descartabilidade próprias às novas

dinâmicas de consumo e suas reflexões sociais. Bauman (2001) nomeia os tempos pós-

modernos de tempos líquidos pois pretende aludir a uma metáfora precisa: os fluidos, em

oposição aos sólidos, não têm dimensões espaciais fixas e dependem do momento de

referência para a determinação de um formato específico. Enquanto os sólidos tendem a

manter sua configuração frente à continuidade do tempo, os líquidos não se atêm a

configuração alguma, presos às circunstâncias dos presentes mutantes, à sucessão de instantes

variáveis.

Assim, uma sociedade líquida é uma sociedade mobilizada pelo imperativo da

constante transformação, em um fluxo acelerado de engajamentos e desengajamentos. Tal

imperativo vislumbra um ritmo mais veloz que a capacidade dos indivíduos de acompanhá-lo.

Por isso, esses últimos, para lidar com a fluidez pós-moderna, são ensinados a cultivar a

habilidade de engajar-se e desengajar-se da forma mais indolor possível, em uma sucessão

frenética de términos e reinícios.

4 (...) I shall make frequent reference to the concept of 'time-space compression’. I mean to signal by that term

processes that so revolutionize the objective qualities of space and time that we are forced to alter, sometimes

in quite radical ways, how we represent the world to ourselves. i use the word 'compression' because a strong

case can be made that the history of capitalism has been characterized by speed-up in the pace of life, while so

overcommg spatial barriers that the world sometimes seems to collapse inwards upon us. the time taken to

traverse space (plate 3.1) and the way we commonly represent that fact to ourselves (plate 3:2) are useful

indicators of the kind of phenomena i have in mind. as space appears to shrink to a 'global village' of .

telecommunicatios and a 'spaceship earth' of economic and ecological interdependencies - to use just two

familiar and everyday images - and as time horizons shorten to the point where the present is all there is (the

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Tomando o cuidado de respeitar o contexto específico ao objeto de pesquisa, é

possível entender que Tormenta RPG opera dinâmicas análogas às apresentadas por Bauman.

O cenário constrói um espaço simbólico sustentado por numerosas possibilidades de

aventuras. Cada aventura corresponde a uma potencial vivência a ser desenvolvia em uma

partida de RPG, com seus personagens e desafios próprios. De forma mais acirrada, uma

mesma aventura pode envolver alguns universos simbólicos. Desse modo, Tormenta RPG está

orientada para um consumo múltiplo, tendo como centro a multiplicidade de vivências, que

podem acabar e recomeçar de acordo com as simples vontades e interesses dos jogadores. No

espaço lúdico construído pelo cenário, as consequências das ações não têm peso como teriam

no cotidiano, permitindo o recomeço constante e a experimentação dentro dessas vivências,

idealmente fluidas, quase indolores quando terminam, pois sempre podem iniciar de novo.

Complementarmente, segundo Harvey, a habilidade de lidar com a fluidez é valorizada

no mundo pós-moderno porque, por meio dela, os indivíduos podem responder prontamente

às mudanças, melhor aproveitando as oportunidades de curto prazo. Ademais, esse poder

possibilita que a opinião e o gosto sejam intensamente influenciados por meio da construção e

circulação de imagens e sistemas de signos. A publicidade e a mídia são atuantes na criação

de desejos, causando efeitos diretos nas cadeias produtivas e de consumo, mesmo sem

necessariamente cultivar relações simbólicas diretas com os produtos de que tratam. Essa

circulação de imagens expande um contexto marcado pela efemeridade e acesso simbólico

instantâneo ao espaço, aliando-se aos objetivos capitalistas. Em Tormenta RPG, a circulação

de imagens é ainda mais livre, já que é dissociada de um produto físico ou narrativa única. As

associações de sentido são fluidas no sentido de que devem respeito apenas à verossimilhança

do cenário e ao interesse dos jogadores em consumi-lo, em usá-lo a favor de suas criações

próprias.

De acordo com Bauman, a pós-modernidade define-se, entre outros movimentos, pela

centralização do software como regulador da tríade tempo-espaço-produção. A tecnologia dos

computadores possibilitou que o espaço, em um nível virtual, pudesse ser alcançado na

velocidade da luz, em tempo quase nulo. Esse novo limite minimizou os custos de acesso

envolvidos, impondo menos restrições às ações humanas, e comprometendo o antigo valor

world of the schizophrenic), so we have to learn how to cope with an overwhelming sense of compression of

our spatial and temporal worlds.

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estratégico dos territórios fixos. Assim, o tempo, em uma aparente contradição, nivelou-se na

instantaneidade, no ideal de sua própria ausência. Como aponta Bauman:

na era do software, da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de

alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, com o efeito paradoxal de

nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as unidades no

campo dos objetivos potenciais. O ponto de interrogação moveu-se do lado

dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso

significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo

período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é

privilegiada, nenhuma tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço

podem ser alcançadas qualquer momento, não há razão para se preocupar em

garantir o direito de acesso a qualquer uma delas (BAUMAN, 2009, p. 137).

O valor da duração não é aniquilado, mas é drasticamente abalado. Tal abalo atribui

descrença a um futuro que, afetado pela sucessão de instantaneidades disruptivas, se torna

ainda mais instável e de previsão difícil. Desse modo, a ação presente e de “curto prazo” são

preferidas em relação às de “longo prazo”, de planejamento quase irrelevante dada a

irregularidade do porvir. O agora é idealmente desagregado das simultaneidades sequenciais

que definem o conceito do tempo, tornando-se absoluto em sua pretensa atemporalidade

instantânea.

O que torna possível a concatenação de presentes disruptivos é o papel inalcançável do

instante. O ideal de instantaneidade é a força motriz para a perseguição do prazer de aquisição

que, atemporal mas imediato, esgota-se no momento da conquista e reergue-se em uma

idealização seguinte. Assim, por meio da negação da duração, a fluidez permite comprimir

inúmeros ciclos de vivência em um único período de vida, criando uma experiência artificial

de imortalidade, que, em tempos anteriores, cabia à transcendência simbólica da

descontinuidade do fim. Em outras palavras, a busca à eternidade, como perenidade infinita, é

substituída pela busca à infinitude, como presente destacado do fluxo do tempo. Em Tormenta

RPG, observamos um meio de comprimir vivências em um espaço fantástico e lúdico. O

consumo do cenário é um consumo de vivências, dentro da multiplicidade de memória do

texto.

Com efeito, ao longo de uma vida mortal é possível extrair tudo aquilo que a

eternidade poderia oferecer. Talvez não se possa eliminar a restrição

temporal da vida mortal, mas podem-se remover (ou pelo menos tentar)

todos os limites das satisfações a serem vividas antes que se atinja o outro

limite, o irremovível.

[...] Se alguém se move com rapidez suficiente e não se detém para olhar

para trás e contar os ganhos e perdas, pode continuar comprimindo um

número cada vez maior de vidas no tempo de duração da existência mortal,

talvez tantas quantas a eternidade permitir (BAUMAN, 2009, p. 15).

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Por meio dos vetores contemporâneos do consumo, os objetos, que representavam o

lastro capaz de ultrapassar a finitude da vida e condensar o estado caótico da modernidade,

perdem o valor associado à durabilidade e são imbuídos de um caráter transitório, expresso

pela sua rápida obsolescência e descarte. O poder deixa de residir na capitalização de bens

fixos e o acúmulo de objetos por tempo demais torna-se indesejável. Manter os produtos além

do seu “prazo de descarte”, em vez de reinventá-los simbolicamente ou substituí-los por

objetos novos, passa a configurar-se muitas vezes como um sintoma de privação. O poder

ampara-se na capacidade de descartar as coisas a fim de abrir espaço para mais coisas. Como

Bauman sintetiza: “Uma vez que a infinitude de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo

de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco”

(2009, p.146).

A fim de estender a investigação de como se desenvolvem as dinâmicas de consumo

no contexto de temporalidades contemporâneas, destacamos a obra de Colin Campbell (2008).

O autor aponta que o advento da modernidade encontra ressonância com o romantismo. Ele

propõe que o movimento estético romântico esteve atuante de forma aliada ao puritanismo,

servindo de base para o modelo de consumo necessário aos ideais produtivos modernos.

Desse modo, concorreram duas frentes de naturezas simbólicas contrastantes, mas que, em

relação, serviram como mecanismos para a implementação de uma sociedade produção e

consumo. O puritanismo, como cerne da racionalidade moderna apresentada por Max Weber,

impeliu o esforço do trabalho para a produção industrial. Do outro lado, o romantismo, guiado

pela paixão e anseio pelo prazer, ofereceu o escape ao desencantamento causado pela ruptura

com as tradições, por meio do consumo. A relação entre os dois valeu-se da utilidade

materialista e o prazer hedonista como engrenagens simbólicas da modernidade e pós-

modernidade.

Sendo assim, Campbell edifica a teoria de que o indivíduo moderno e pós-moderno,

de forma distinta ao que o senso comum costuma apontar, não tem o consumo motivado, em

todos os casos, por um ideal materialista utilitário. De outro modo, persegue, como objetivo

final, o prazer, e não necessariamente o saneamento de uma necessidade. O consumo, com

bases no romantismo é “assinalado por uma preocupação com “o prazer”, idealizado como

uma qualidade potencial de toda experiência” (CAMPELL, 2008). Em Tormenta RPG, o

prazer é idealizado na resolução das aventuras, ou seja, é engendrado pelos conflitos que o

cenário mobiliza. Porém, na resolução dos conflitos, as aventuras esgotam-se, dando lugares a

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outras campanhas. Tal dinâmica de consumo cíclico é explicitada a seguir nas reflexões de

Campbell, coerentes à aceleração e fluidez pós-modernas defendidas por Harvey e Bauman.

Campbell propõe que o prazer que orienta o consumo nasce na diferença entre a

insatisfação e a potencial satisfação, encontrando na satisfação o seu ponto final, o seu

esvaziamento, a sua desilusão. Enquanto o desejo de experiências sensoriais oferecidas pelas

malhas simbólicas atribuídas aos produtos impele à compra de um produto, a desilusão

causada pela satisfação do ato de consumir, que esgota o prazer gerado pela expectativa

própria ao desejo (o “querer mas ainda não ter”), impele ao descarte, para que assim o desejo

seja atribuído a outro produto e feche o ciclo de engajamento-desengajamento. Trata-se de

uma lógica confluente ao caráter líquido da pós-modernidade, tendo a instantaneidade como

ideal máximo, promessa de estímulos imediatos e semente de novos ciclos de consumo que se

concatenam. Campbell resume:

o que é característico do moderno hedonismo racional e do comportamento

do verdadeiro romântico é a tendência a aproveitar oportunidades para criar

desejo, não meramente para satisfazê-lo, e é nisso que o adiamento da

verdadeira satisfação se torna essencial. Conclui-se daí que um padrão de

prática da educação das crianças que saliente a satisfação retardada serve

para estimular os atos de devaneio e fantasia, desenvolvendo portanto,

dentro do indivíduo, exatamente as habilidades necessárias a se transformar

num peito na manipulação do desejo. Ele cria, também, as circunstancias sob

as quais é mais provável que o indivíduo venha a reconhecer valor na

satisfação “instantânea” (CAMPBELL, 2008, p. 310).

Porém, nesse mesmo contexto iluminado por Harvey, Bauman e Campbell, observa-se

a profusão de manifestações de memória na cultura. Apesar do imperativo de aceleração,

descarte, fluidez, e culto à instantaneidade, os tempos passados e futuros têm amplo papel no

quadro das temporalidades contemporâneas, principalmente de forma conjugada às dinâmicas

da cultura do consumo, como é o caso de Tormenta RPG. A seguir, atentamos para os modos

como se configuram as relações entre o presente pós-moderno e os seus passados e futuros.

3.2 Presentismo, memória e o retorno

Fraçois Hartog (2014) defende que a modernidade nasceu futurista: o futuro

sobrepunha-se ao presente e ao passado como ideal utópico capaz de justificar os movimentos

do progresso. O futuro era dominante, a aceleração imperativa, e a história trilhada em razão

do porvir. Ainda que, em determinado período, as guerras e crises do capitalismo tivessem

abalado esse otimismo, o conceito do progresso manteve-se por longo tempo em sua razão

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mobilizadora, como demonstra por exemplo, o seu papel ideológico na reconstrução da

Europa pós-guerra. Porém, com o advento da pós-modernidade, o futurismo foi gradualmente

cedendo à dilatação do presente, ao presentismo. Quando a aceleração se tornou regra, o

presente engoliu o futuro. A ideia revolucionária perdeu força e o projeto de progresso foi

contraposto a um presente que pede respostas imediatas. As utopias e o olhar para o passado e

futuro passaram a restringir-se a momentos não muito distantes do agora. O imperativo é

controlar o tempo da melhor forma possível, comprimindo as ações e acontecimentos em

durações cada vez mais curtas.

Nesse cenário, a cultura do consumo fez com que o presente se hipertrofiasse e

saturasse em inovações, estímulos, obsolescências. Em ressonância com Harvey e Bauman,

Hartog aponta que a flexibilidade e mobilidade tornaram-se as habilidades cruciais para

navegar no mundo pós-moderno. Ademais, a mídia passou a operar não apenas o acesso

virtual quase instantâneo aos lugares, mas a reprodução e reciclagem veloz de imagens e

conceitos. O próprio tempo torna-se objeto de consumo, em seu ideal de instantaneidade. Sem

futuro ou passado orgânicos, há a criação diária de passados e futuros próximos, de acordo

com as exigências de presentes que se renovam em passo acelerado. De acordo com David

Harvey (1989), a experiência é reduzida à concatenação de momentos não relacionados entre

si e o presente é avassalador, preenchido de alta intensidade de estímulos cotidianos. A

imagem e o espetáculo ganham apelo devido à natureza do presente que os contextualiza,

atemporal, deslocado da continuidade do tempo. A imediatez torna-se o material de formação

da consciência.

No que toca a relação desse presente pós-moderno com o seu passado, Harvey observa

que há o abandono da continuidade histórica, sendo que a absorção da memória é posta em

razão de algum dos aspectos do presente, em subordinação a ele. A história torna-se uma

criação contemporânea, a favor do efeito dramático, e o seu valor passa a residir em seu

aspecto narrativo, dramático, midiático, não em possíveis desdobramentos críticos que o

passado possa prover. Tormenta RPG utiliza do passado para os seus objetivos de

divertimento. Os elementos simbólicos referentes a períodos históricos estão voltados para

possibilidades de aventura, para a construção de narrativas recheadas de elementos de

combate e magia.

De acordo com Pierre Nora (1993), a memória contemporânea, em oposição aos

tempos arcaicos, morreu, tornando-se vestígio, reação ao seu próprio esfacelamento. O autor

defende que a constante ruptura iniciada pela modernidade anulou os meios pelos quais a

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memória mantinha vínculos orgânicos com o presente. O passado rompido pelo movimento

de aceleração e negação às tradições deslocou-se da experiência, dando luz à preocupação em

fazer memória de tudo, de arquivar, de antecipar a história no agora, já que esse agora é

isolado, desenraizado. A memória individualizou-se, sendo constantemente evocada a fim de

reforçar valores identitários individuais, em uma relação com a história que tenta compensar a

sua descontinuidade primária. Em suma, o passado não é mais do mesmo plano do presente, é

distante e passa a ser ativado para servir aos objetivos do presente de autodefinir-se. A

história não mais se torna contínua pela memória: ao contrário, a memória promete repor a

descontinuidade da história.

Aceleração: o que o fenômeno acaba de nos revelar bruscamente, é toda a

distância entre a memória verdadeira, social, intocada, aquela cujas

sociedades ditas primitivas, ou arcaicas, representaram o modelo e

guardaram consigo o segredo – e a história que é o que nossas sociedades

condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela

mudança. Entre uma memória integrada, ditatorial e inconsciente de si

mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma

memória sem passado que reconduz eternamente a herança, conduzindo o

antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heróis, das origens e

do mito – e a nossa, que só é história, vestilho e trilha. Distância que só se

aprofundou à medida em que os homens foram reconhecendo como um

poder e mesmo um dever de mudança, sobretudo a partir dos tempos

modernos. Distância que chega hoje num ponto convulsivo (NORA, 1993, p.

8).

Em meio ao mar de rompimentos e esquecimentos, os esforços de lembrança

refugiaram-se em “lugares”. Os “lugares de memória”, como aponta Nora, são espaços de

desaceleração e de cristalização da memória, que passa a ser manifestada de forma restrita e

artificialmente construída, desintegrada da experiência do cotidiano. São imagens ativas, que

possam evocar os sentidos do passado, os discursos que suportaram essas imagens.

Hartog defende que os “lugares de memória” têm forte aderência ao contemporâneo

pois se adequaram às suas dinâmicas de consumo e aceleração. Os “lugares” comprimem as

experiências no tempo, limitando ambientes regidos por variedade de efeitos e fascínios,

como produtos feitos para o consumo. Tal variedade de efeitos parte de um passado que é

imprevisível, múltiplo, aberto para o entrecruzamento de diversas linhas históricas que foram

futuros possíveis segundo o olhar presentista. O presente isolado, ideal da sua própria

aceleração, pede os movimentos de memória para reapropriar-se de sua própria identidade.

Porém, os “lugares”, ao ansiarem o escape à centralidade do presente, reafirmam-na, partindo

de uma operação seletiva que é intrínseca à memória e que nesse caso serve para reconstruir o

passado, a história, pelas leis do presentismo.

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Tormenta RPG opera a multiplicidade do passado contemporâneo de acordo com as

lógicas de consumo, como defende Hartog e Nora. Portanto, a fim de complementar essa

perspectiva, referenciamos a obra de Andreas Huyssen (2000). O autor, de forma concordante

a Bauman, entende que as rupturas causadas pelo encadeamento de presentes mutantes criam

um estado de instabilidade. Porém, de forma variante, Huyssen aponta que o passado se eleva

como espaço de refúgio simbólico. Esse movimento não se comporta como simples nostalgia

ou projeto de restauração, mas marca-se como via de escapar à aceleração pós-moderna,

atribuindo um valor de estabilidade ao passado e transformando esse valor em um meio de

desaceleração simbólica.

De acordo com Harvey, quanto mais a efemeridade se aprofunda, mais urgente é a

necessidade de se encontrar verdades perenes, como exemplifica o aumento de interesse na

religião e em valores tradicionais como o da família, da comunidade, da identidade histórica.

A memória e o senso de duração são valorizados, prometidos como meios de segurança frente

à fluidez e perda de autoridade que são marcas da pós-modernidade.

Uma das lamentações permanentes da modernidade refere-se à perda de um

passado melhor, da memória, de viver em um lugar seguramente

circunscrito, com um senso de fronteiras estáveis e numa cultura construída

localmente com o seu fluxo regular de tempo e um núcleo de relações

permanentes. Talvez, tais dias tenham sido sempre mais sonho do que

realidade, uma fantasmagoria de perda gerada mais pela própria

modernidade do que pela sua pré-história. Mas, o sonho tem o poder de

permanecer, e o que eu chamei de cultura da memória, pode bem ser, pelo

menos em parte, a sua encarnação contemporânea. A questão, no entanto,

não é a perda de alguma idade de ouro de estabilidade e permanência. Trata-

se mais da tentativa, na medida em que encaramos o próprio processo real de

compreensão do espaço-tempo, de garantir alguma continuidade dentro do

tempo, para propiciar alguma extensão do espaço vivido dentro do qual

possamos respirar e nos mover (HUYSSEN, 2000, p. 30).

Huyssen atribui à pós-modernidade o que denomina “cultura da memória”. Trata-se de

uma cultura marcada pela profusão de manifestações de memória a um nível quase obsessivo,

em resposta ao imperante medo do esquecimento. Porém, Huyssen questiona se a ânsia e

urgência em lembrar também são explicadas pela correlação estrutural entre lembrança e

esquecimento. As numerosas manifestações midiáticas e de consumo não devem ser

encaradas como movimentos meramente reduzidos aos objetivos ideológicos do capitalismo.

De forma mais complexa, todo o movimento de memória é orientado para uma negociação de

sentidos, uma mediação simbólica, e, portanto, ideológica, do passado. Aqui, notamos que

Tormenta RPG produz uma memória afetiva com o passado, reinventando-o. Não exatamente

como um movimento de restauração ou de ânsia em lembrar, o cenário parece brincar com o

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que o passado lhe oferece, adicionando elementos mágicos, guiando-o pelas afetividades,

construindo seu lugar de consumo.

Sobre o viés de desaceleração pela memória, destacamos as reflexões de Hartog

(2014) em torno do tema. O autor defende que, na pós-modernidade, em resposta ao

isolamento do presente e a crise do futurismo que destruía em nome da utopia, nasce a larga

preocupação com a renovação e preservação do passado, seja pelo cuidado ao patrimônio

histórico, seja pelo respeito ao meio ambiente. Há a valorização do princípio da precaução,

frente à extrema ambiguidade e imprevisibilidade que não são mais sanadas pela ciência, vista

também como incerta. Porém, trata-se de uma dívida com o passado e futuro que não foge do

império do presentismo, já que tais movimentos partem de um senso de responsabilidade

enraizado no agora. Há um misto de medo, pela natureza ameaçada do porvir, e culpabilidade,

pela herança que inevitavelmente estenderemos daqui para o encadeamento de eventos

futuros.

A extensão do presente na direção do futuro dá lugar, seja, de maneira

negativa, a um catastrofismo (neste, caso não “esclarecido”), seja positiva, a

um trabalho sobre a própria incerteza. (...) Não se trata mais de “prever o

futuro”, mas de “medir os efeitos deste ou daquele futuro concebível sobre o

presente”, avançando virtualmente em várias direções antes de escolher uma

delas. Fala-se, então, de presente “multidirecional” ou “múltiplo”. Detendo-

me só no ponto que me diz respeito, o da relação com o tempo, pergunto-me

se tal postura não leva a “estender” ainda mais as dimensões do presente.

“Parte-se” do presente e não “se sai” dele. A luz vem dele. Em certo sentido,

só há mesmo presente: não infinito, indefinido (HARTOG, 2014, p. 258).

Nesse quadro, há a irrupção do senso do irreparável, do imperdoável. O tempo acirra-

se em seu traço de irreversibilidade, ou seja, na impossibilidade de se romper os passos da

história corrente. Assim, o presente, de tão dilatado, engole o seu próprio passado e futuro. Há

a extensão do presente tanto pela necessidade de preservação, de se responsabilizar pelos

erros do passado, de mantê-los vivos pela memória voluntária, como pelo medo de manchar o

que será o passado de um futuro por vir. É preciso lembrar os fracassos da história e fundar

um mundo melhor.

No caso de Tormenta RPG, esse caráter de irreversibilidade é contraposto pela

qualidade despretensiosa do jogo e da magia. O cenário nutre elementos mágicos que

permitem moldar a realidade a fim de reverter possíveis consequências das ações na ficção.

Além disso, a própria dinâmica lúdica permite que as aventuras sejam jogadas repetidamente,

sem consequências definitivas por eventuais fracassos em cumprir os desafios. O futuro

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aberto em Tormenta RPG alia-se a um sentimento de encantamento pela permissão de

escrever a história em atos heroicos.

Ademais, na realidade cotidiana pós-moderna, o presente dilatado é ansioso pela

historização, projeta-se à frente de si mesmo e recorre à história como a calcificação de suas

incertezas, que passam e se distanciam. Como complementa Hartog, o olhar da mídia para o

presente já o considera como passado mesmo antes de ele passar, prevendo o que se tornará

história. Em certo sentido, a história é construída ativamente pela mídia, e os acontecimentos

passados são criados e organizados desde o instante vivenciado.

Por meio de memória provocada, busca-se prover identidade, sustentação temporal,

substância para um agora que é insubstancial, ponto de vista de si mesmo. É preciso preencher

o enorme vão entre experiência, passado, e expectativa, futuro. Porém, esse vão se aprofunda

pois, além da dupla dívida com o passado e futuro, também convivem a instabilidade extrema,

a efemeridade, a amnésia. O presente é hipertrofiado e, ao mesmo tempo, efêmero, ou seja,

não paramos de olhar para frente e para trás, mas sempre do mesmo lugar avassalador,

mutante. Hoje, rompemos o caminho entre experiência e a expectativa e transitamos entre a

memória e a dívida, a incerteza e a amnésia. O agora não é mais o meio entre o passado e o

futuro, mas é tudo o que há de tempo, impossível se ser apreendido, apenas determinado por

si próprio, presentista.

Harvey (1989) parece concordar com os pensamentos de Hartog, no sentido de que

nota a perda de uma perspectiva de futuro, a não ser aquele futuro que pode ser descontado do

presente, ou seja, atribuído de um sentido de encantamento e ficção que serve aos objetivos de

consumo imediatos. Em vez de utilizar a metáfora de dilatação, o autor aponta para a

compressão da experiência espaço-tempo no presente. Em Tormenta RPG, a textura simbólica

do cenário é compressa no presente do jogo e da vivência. A partir desse presente de

consumo, exploram-se os diversos passados do cenário, assim como as possibilidades de

futuro. Os eventos de Tormenta RPG estendem-se por uma continuidade de anos. Porém,

todos estão a favor da imediatez das partidas a serem conduzidas de forma presencial e

improvisada.

Em vista de guiar a investigação teórica para o atributo afetivo da memória, que se alia

à natureza de consumo lúdico de Tormenta RPG, seguimos com a obra de Michel Maffesoli

(2012). De acordo com o autor, a pós-modernidade, por meio da potência do cotidiano,

viabiliza o retorno simbólico a traços antigos, originários. Desse modo, ainda que as forças de

dominação persistam, o cotidiano pós-moderno age como via de revolução frente aos ideais

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civilizatórios herdados da modernidade. Essa revolução encontra forças nas bases tradicionais

de comunhão, na sabedoria dos povos, e materializa-se em ações aparentemente

despretensiosas, em teatralidades e fantasias.

O contemporâneo aprofunda a descrença em uma civilização abstrata e descolada do

presente, como a modernidade havia idealizado. Em outro sentido, vislumbra uma cultura de

elementos simples, presentes e integradores, com espaços de socialidade opostos à

fragmentação causada pelo tempo racional e progressivo. Esses espaços de socialidade

encontram sua materialização nas tecnologias de comunicação, apoiando-se em uma

horizontalidade fraternal, não racional e afetiva, com a qual podemos identificar-nos ou da

qual podemos excluir-nos.

É importante notar que o não racional, diferente do irracional, é um tipo de lógica de

ação que não tem finalidade precisa, mas mantém significação real, capaz de sustentar, por

exemplo, manifestações de religiosidade, do estar social e político. No caso da pós-

modernidade, trata-se de um pacto emocional atravessado pelas dinâmicas contemporâneas de

consumo e pela mídia interativa. O indivíduo define-se por sua constante relação afetiva (de

união ou exclusão) com o coletivo, seja esse coletivo o grupo, a natureza ou o sagrado.

O objeto dessa pesquisa articula a memória a favor de uma identificação afetiva com

os jogadores. Esse afeto tem como leis o divertimento, a aventura, a fantasia. No espaço

simbólico do cenário, os consumidores podem criar as suas próprias narrativas, mesclar as

suas criatividades individuais com o substrato de memória oferecido por Tormenta RPG.

Nota-se que Tormenta RPG é sustentado pelo pacto não racional que apresenta Maffesoli, em

uma leitura pós-moderna do passado.

Outro aspecto determinante no pensamento pós-moderno reside na particularidade do

seu tratamento em relação à alteridade. Harvey defende que, na transição pós-moderna, houve

a tendência a privilegiar a espacialização do tempo (estar no espaço), do que a aniquilação do

espaço pelo tempo (tornar-se o espaço, dominá-lo). Depois que as barreiras locais foram

abaladas pelo capitalismo moderno, a presença do outro no espaço fragmentado passou a ser

explorada, assim como as múltiplas combinações simbólicas entre presente e passados

derivados dessa alteridade. Em outros termos, o domínio do espaço permite que os capitalistas

usem das diferenças entre regiões de modo a favorecer a sua busca pelo lucro. Esse

movimento contribui para um mundo unificado, mas desigual entre suas regionalidades,

fragmentário, instável, e suscetível a intensos choques culturais.

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Sendo assim, Maffesoli aponta que a pós-modernidade, em um teor estético, nutre o

resgate às formas complexas, ambíguas, opostas, mestiças, diversas, irregulares, cujas partes

tendem a não ser classificadas individualmente e ajustam-se à harmonia conflituosa do todo

que compõem. De forma análoga, a sinfonia do progresso entra em colapso frente às

dissonâncias geradas pelas consequências de seu projeto, assistindo ao retorno de uma postura

mágica do indivíduo em relação ao mundo. Os sentidos voltados à valorização do cotidiano,

ao culto do corpo, ao sentimento de pertencimento tribal e ao papel da emoção como eixo de

ação deixam de ser marginais e edificam as bases de um ideal que não é mais de

“progressismo”, mas de “progressividade”. Como considera Hartog, O progresso é posto em

perspectiva, tido não mais como o acúmulo de passados, mas como o desdobramento desses

passados nos espaços de um mesmo presente, heterogêneo, multicultural.

Sim, um ciclo se encerra, forçando a reconhecer que a saturação de um

mundo não é o fim do mundo. Eu disse sedimentação para explicar bem a

transformação do progressismo (outrora produtivo, liberador, mas que se

tornou brutal e devastador) em progressividade, acompanhando mais do que

cativando ou dominando a natureza. É algo dessa ordem que propõe

Heidegger: “O que há de mais antigo entre as coisas antigas nos seque [...] e,

no entanto, vem ao nosso encontro.” Esse “mais antigo” está presente no

coração de nossa humanidade. Ele é mesmo aquele pelo que este presente se

torna verdadeira presença para os outros e para o mundo. Ele é este fundo,

sendo em nada redutível à razão individual, mas que é um verdadeiro capital

que se constituiu ao longo dos séculos. Memória sedimentada. Tradição

enraizada (MAFFESOLI, 2012, p. 11).

Em suma, os tempos contemporâneos mantêm um estado crítico, decorrente da

sobreposição entre dois modelos ideológicos: um herdado pelo projeto “progressista”

moderno, e outro orientado para o retorno a traços arcaicos. De um lado, um tempo acelerado

e, de outro, um tempo imbricado na memória, na comunhão, na afetividade, na emoção, no

apelo à magia. Resgatando a obra de Hartog (2014), a pós-modernidade está entre um misto

de modernidade e arcaísmo. A modernização não matou o passado, mas anulou a sua

capacidade de orientar os homens pelo caos do presente e protegê-los da dúvida de um futuro

aberto. Sendo assim, as tradições, a fim de sanar as infelicidades do agora, são amplamente

inventadas, articuladas aos imaginários de consumo.

O mundo de Tormenta RPG é um desses passados inventados, com base no cotidiano,

ou seja, na natureza presencial e improvisada do jogo, e com base no apelo à magia, como

observa-se em seus traços fantásticos. A seguir, realizamos a análise sobre o objeto a fim de

compreender o mapa de temporalidades, memória e consumo que compõe e as suas

imbricações com o cotidiano pós-moderno que investigamos neste capítulo.

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4 Análise

Como explicado anteriormente, este trabalho divide-se em uma pesquisa

bibliográfica, realizada no primeiro e segundo capítulos, e uma pesquisa documental, voltada

para o texto inserido nas publicações editorais de Tormenta RPG. Neste capítulo, dissertamos

sobre o método empregado para a análise do objeto empírico, com vista ao cumprimento do

objetivo da pesquisa. Tomamos cuidado de criar um aparato rigoroso, que permita o

cruzamento do arcabouço teórico levantado em torno do tempo, da memória e do consumo de

forma a respeitar as especificidades e contextos do objeto a ser analisado.

Por isso, obrigamo-nos a mapear tais especificidades de Tormenta RPG, a fim de

compor método que possa corresponder aos desafios investigativos que o objeto suscita. A

seguir, realizamos um traçado histórico da marca editorial, uma análise descritiva do universo

ficcional, e um levantamento das diversas publicações que, durante mais de vinte anos,

construíram e mantêm o mais popular cenário brasileiro de RPG.

4.1 Tormenta RPG

Figura 1 – Logotipo de Tormenta RPG

Fonte: http://rpgmaisbarato.com/assets/upload/categorias/c20f17e63f1aa04ccf3d616c538a5278.jpg

Quando dizemos Tormenta RPG, nos referimos a uma marca editorial, um selo que

estampa grande número de livros e produtos digitais. Porém, mais do que isso, Tormenta RPG

refere-se a um mundo inteiro, uma complexa existência fantástica que, se é tão ampla, deve

sua riqueza criativa aos textos que se acumularam, se atualizaram e se entrecruzaram pelos

anos. Ainda hoje, é difícil delimitar exatamente o que é Tormenta RPG: é um conjunto de

livros e material digital, mas também é tudo o que existiu desde 1994 para produzir esses

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resultados e ainda mais toda a invenção lúdica dos jogadores e mestres em suas partidas ao

longo desse tempo, algo imensurável. Tormenta RPG não é uma narrativa medieval que fez

sucesso, como por exemplo, o “Senhor dos Anéis”, de J. R. R. Tolkien (2001), e que então se

expandiu para materiais derivados. De forma diferente, trata-se do próprio mundo onde

narrativas medievais ocorrem: histórias virtualmente infinitas, sejam criadas pelos escritores

oficiais das publicações, sejam jogadas entre amigos. Houve um começo para Tormenta RPG,

a primeira inspiração, mas não há uma linha de chegada. Podem haver fins para as incontáveis

aventuras nele passadas, mas não haverá um fim para o cenário, enquanto ele existir. Na

verdade, é a própria ausência de fim que mantém o mundo vivo, pulsante por aventuras a

serem vividas.

É crucial entendermos sobre os passos de Tormenta RPG, sobre como esse extenso

mundo imaginado foi tomando forma nas publicações editoriais atuais. Assim, podemos

contextualizar não os jogos e as histórias de fantasia medieval em si, mas o plano anterior a

eles, o substrato que é oferecido para serem construídos. Com esse exercício, temos indícios

de como se portam as dinâmicas de consumo particulares ao objeto.

Tormenta RPG conta com revistas, artigos online, quadrinhos, livros-jogo, adesivos,

audiodramas, game, contos, romances, músicas, pôsteres e streams online, e é considerado o

mais popular cenário brasileiro de RPG. Porém, já antes da data oficial de sua primeira

publicação (1999), o seu nascimento público deu-se por meio de um primeiro elemento

criativo apresentado em uma revista especializada em RPG (1994): os personagens Mestre

Arsenal e Luigi Sortudo, ainda pequenos frente à magnitude que o cenário alcançaria no

futuro. Essa revista era a Dragão Brasil, escrita por Marcelo Cassaro, um dos criadores do

cenário. Tormenta RPG nasceu efetivamente na Dragão Brasil, em pedaços do mundo

fantástico que iam sendo inseridos a cada edição da revista, como personagens, ambientes, e

até aventuras.

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Figura 2 – Capa da edição 50 da Dragão Brasil

Fonte: https://4.bp.blogspot.com/-SVcc_4e_C7c/V5TBRN3A3jI/AAAAAAAApE0/-

EUmoCLrYCotv226bMxGVAcUympgEGYUwCLcB/s1600/essa%2Beh%2Ba%2Bmais%2Binesquecivel%2Bp

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A revista seguiu com as edições apresentando cada vez mais elementos. De 1994 a

1999, a Dragon Brasil publicou tirinhas, histórias em quadrinhos, contos, descrições,

aventuras. Inclusive, uma série especial chamada “Só Aventuras” nasceu nessa época,

introduzindo aspectos fundamentais para a composição futura do universo fantástico. Na

edição 50 da Dragão Brasil, já com material acumulado suficiente, foi publicado o primeiro

encadernado que resumia todos os elementos em um mesmo lugar imaginado: “Tormenta

RPG Primeira Edição”, por J. M. Trevisan, Marcelo Cassaro e Rogério Saladino, o “Trio

Tormenta” (1999). Apesar de ainda apresentar o mundo medieval de forma bem simplificada,

os livros foram vendidos rapidamente, e a demanda por informações aumentou. Assim, ao

longo das próximas publicações da revista, Tormenta foi se expandindo.

Ainda em 1999, foi lançado “Holy Avenger”, uma série mensal de história em

quadrinhos que contava a jornada de um grupo de aventureiros com o objetivo de salvar o

mundo do Paladino de Arton, um herói corrompido. Essa publicação foi importante para

Tormenta pois, além de ter larga receptividade com o público, abriu caminho para explorar

alguns aspectos ainda indefinidos do cenário, de acordo com o caminho que os protagonistas

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iam tomando. Outro elemento importante foi a colaboração dos fãs, que construíram um

grupo de discussão sobre Tormenta por e-mail. Por meio dessa via, muito material criado

pelos consumidores foi incorporado oficialmente pelos autores.

Figura 3 – Capas das edições 22, 23 e 24 da Holy Avenger

Fonte: http://sm.ign.com/ign_br/screenshot/default/holy-avenger-montage_pqcr.jpg

Em 2000, como Tormenta já ocupava largo espaço na Dragão Brasil, que ainda tinha

de se dedicar a outros temas, o cenário ganhou a sua própria revista, a Revista Tormenta.

Nesse ano, mais lacunas descritivas foram preenchidas e houve o lançamento de “Tormenta –

segunda edição”, que atualizava a primeira edição com informações sobre os deuses. A

atuação dos fãs continuava expressiva, com contribuições marcantes. De 2000 a 2003, o

cenário continuou a se expandir, com novas edições, suplementos de regras, descrições mais

extensas. As mídias também se multiplicaram, e Tormenta começou a estar presente na

Internet.

Já em 2004 e 2005, uma crise com a editora causou o cancelamento da Revista

Tormenta e a perda ou atraso de grande quantidade de material a ser publicado. Ainda assim,

esses anos assistiram ao lançamento de livros de grande expressividade, como a aventura “A

Libertação de Valkaria”, que pela primeira vez envolvia consequências cósmicas. Também foi

nesse período que o “Trio Tormenta”, J. M. Trevisan, Marcelo Cassaro e Rogério Saladino,

começou a publicar pela Jambô, a atual editora do cenário

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Figura 4 – Logotipo da editora Jambô

Fonte: http://tapiocamecanica.com.br/wp-content/uploads/2016/11/jambo.png

Em 2006, a situação estabilizou-se e os autores passaram a concentrar esforços nas

publicações da Jambô. Livros proeminentes foram lançados, como “O Panteão”, que explicou

extensivamente a natureza dos deuses, e o romance “O Inimigo do Mundo”, que revelou

antigos mistérios em torno do universo fantástico, com um tom mais dramático que as

narrativas anteriores, inaugurando uma nova fase de Tormenta. Nesse ano, a Jambô criou o

website de Tormenta, aprofundando a sua atuação online. Em 2007, o ritmo produtivo

continuou, com o livro “Área de Tormenta”, que mapeou os detalhes do conflito que dá nome

ao cenário, e com o sucessor de “Inimigo do Mundo”: “O Crânio e o Corvo”. Diferente do seu

antecessor, o segundo romance estendeu a linha do tempo ficcional com novos

acontecimentos.

Em 2008, Tormenta começou a desenvolver o seu próprio sistema de regras, ou seja,

passou a incluir não apenas a descrição de uma ambientação fantástica, mas as regras de jogo

específicas para esse mundo. Anteriormente, Tormenta tinha as suas regras emprestadas de

outros sistemas, como por exemplo o “Dungeons e Dragons 3.5”, terceira edição do primeiro

sistema de RPG existente. Também em 2008, foi lançado o último volume da trilogia de

romances: “O Terceiro Deus”, que promoveu atualizações grandiosas no cenário. Por fim,

destacamos o aumento da participação dos fãs pela inauguração do fórum Jambô, uma

plataforma de discussão online em torno do material criativo.

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Figura 5 – Capas da trilogia de romances: O Inimigo do Mundo, O Crânio e o Corvo, O Terceiro Deus

Fonte: https://www.mundoepic.com.br/wp-content/uploads/2018/01/trilogia-tormenta.jpg

Em 2009, foi lançada a aventura “Contra Arsenal”, que definiu a morte de “Mestre

Arsenal”, o maior vilão de Tormenta e um dos primeiros personagens a serem apresentados,

ainda em 1994. Também foram introduzidas as Guerras Táuricas, um conflito de grandes

proporções que estourava no mundo fantástico. Em 2010, uma nova fase começou, com o

lançamento de “Tormenta RPG”, livro que incluiu o novo sistema de regras voltado para o

mundo de Tormenta, e a reunião das últimas atualizações descritivas. Em 2011 e 2012, houve

a publicação de mais material sobre regras de jogo, além de novas narrativas no formato de

histórias em quadrinhos e contos.

Em 2013 e 2014, a Dragon Slayer, então atual revista de Tormenta e última revista

brasileira de RPG, extinguiu-se. Sendo assim, a Jambô passou a concentrar as divulgações

sobre o cenário nas plataformas da Internet. Contudo, apesar do fim da Dragon Slayer,

Tormenta continuou publicando livros de regras, livros descritivos e livros de narrativas,

como o “Só Aventuras”, que compilava diversas aventuras, e as novas edições da trilogia de

romances. Nesse período, começou o projeto de financiamento coletivo do primeiro

videogame de Tormenta.

Em 2015, o videogame “Desafio dos Deuses” foi lançado, marcando um feito nunca

antes alcançado por outros cenários de RPG nacionais. Nesse ano, nasceram projetos em

novos formatos, como o livro-jogo “Ataque à Khalifor”, uma publicação que misturou

narrativa literária com jogo de RPG; e também os streams oficiais, ou seja, transmissões ao

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vivo de partidas online de RPG, jogadas pelos próprios autores oficiais de Tormenta. Em

2016, foram lançadas mais aventuras, livro-jogo, livros de regras, livros descritivos, contos,

uma estatueta do personagem Mestre Arsenal. Os streams continuaram frequentes e a revista

Dragão Brasil voltou a ser publicada, alavancada pela grande demanda do público e o suporte

de um projeto de financiamento coletivo.

Figura 6 – Cena do game O Desafio dos Deuses

Fonte: http://splitplayimages.s3.amazonaws.com/images/images/000/000/489/original/03.jpg?1426833350

Hoje, Tormenta RPG conta com dezenas de publicações. Se considerarmos as que

estão atualmente no catálogo do website da Jambô, são: “20 Deuses 1 Vol. 1”, “A Joia da

Alma”, “Academia Arcana”, “Área de Tormenta”, “Ataque a Khalifor”, “Bestiário de Arton”,

“Contra Arsenal”, “Crônicas da Tormenta”, “Crônicas da Tormenta Vol. 2”, “DBride: A

Noiva do Dragão”, “Dungeon Crawlers”, “Expedição à Aliança Negra”, “Galrasia: Mundo

Perdido”, “Guerras Táuricas”, “Guia da Trilogia”, “Holy Avenger – Edição Definitiva Vol.

1”, “Holy Avenger – Edição Definitiva Vol. 2”, “Holy Avenger – Edição Definitiva Vol. 3”,

“Holy Avenger – Edição Definitiva Vol. 4”, “Khalifor Vol. 1”, “Ledd Vol. 1”, “Ledd Vol.

2”, “Ledd Vol. 3”, “Ledd Vol. 4”, “Manual do Arcano”, “Manual do Combate”, “Manual do

Devoto”, “Manual do Malandro”, “Manual das Raças”, “Mundos dos Deuses”, “O Crânio e o

Corvo”, “O Desafio dos Deuses”, “O Inimigo do Mundo 3ª Edição”, “O Mundo de Arton”,

“O Panteão”, “O Senhor das Sombras”, “O Terceiro Deus”, “Piratas & Pistoleiros”, “Pôster

Tormenta 01: Paladino x Arsenal”, “Pôster Tormenta 02: A Batalha do Forte Amarid”,

“Pôster Tormenta 03: Orion x Crânio Negro”, “Só Aventuras”, “Só Aventuras Vol. 2”, “Só

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Aventuras Vol. 3”, “Só Aventuras Vol. 4”, “Tormenta RPG: Edição Guilda do Macaco”,

“Tormenta RPG – Edição Revisada”, “Tormenta RPG: Escudo do Mestre”, “Tormenta RPG:

Escudo do Mestre – Edição de Luxo”, “Valkaria: Cidade sob a Deusa” e “Vectora: Cidade nas

Nuvens”.

Propomos a divisão desse material em alguns tipos de publicação. Em primeiro, há

os livros de narrativas, ou seja, aqueles que contêm apenas histórias para serem lidas, não

jogadas. São as histórias em quadrinhos: “20Deuses 1 Vol. 1”, “DBride: A Noiva do Dragão”,

“Dungeon Crawlers”, “Holy Avenger – Edição Definitiva Vol. 1”, “Holy Avenger – Edição

Definitiva Vol. 2”, “Holy Avenger – Edição Definitiva Vol. 3”, “Holy Avenger – Edição

Definitiva Vol. 4”, “Khalifor Vol. 1”, “Ledd Vol. 1”, “Ledd Vol. 2”, “Ledd Vol. 3” e “Ledd

Vol. 4. São os livros de contos: “Crônicas da Tormenta” e “Crônicas da Tormenta Vol. 2”.

Finalmente, são os romances: “A Joia da Alma”, “O Crânio e o Corvo”, “O Inimigo do

Mundo 3ª Edição” e “O Terceiro Deus”. Todas essas narrativas tratam sobre grupos de

aventureiros enfrentando alguns dos terrores do mundo. Elas giram em torno de determinados

conflitos do mundo ficcional, como por exemplo, os protagonistas de “Inimigo do Mundo”

enfrentando a tempestade de demônios chamada Tormenta, e “Holy Avenger” envolvendo os

planos do maligno deus da traição, Sszzaas.

Figura 7 – Capa do livro Crônicas da Tormenta

Fonte: http://38bca89c3d8a7526dacad1a6c03bab61.jamboeditora.com.br/wp-content/uploads/2011/06/lit-cdt-

capa.jpg

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Em segundo, há as aventuras, livros que, centralmente, apresentam um roteiro

semiestruturado e uma série de desafios a serem enfrentados em partidas de RPG. Diferente

dos livros de narrativas, trata-se de material para ser jogado, e não apenas lido. São as

aventuras: “Contra Arsenal”, “Só Aventuras”, “Só Aventuras Vol. 2”, “Só Aventuras Vol. 3”,

“Só Aventuras Vol. 4” e “Expedição à Aliança Negra”. São os livro-jogos, narrativas que

podem tomar diferentes “caminhos” dependendo das escolhas do leitor: “Ataque a Khalifor” e

“O Senhor das Sombras”.

Figura 8 – Capa do livro Contra Arsenal

Fonte: https://images-americanas.b2w.io/produtos/01/00/item/6916/1/6916175gg.jpg

Em terceiro, há os livros que têm a apresentação do sistema de regras como conteúdo

principal, de forma a estarem mais voltados para a dinâmica das ações do jogo, do que para a

descrição da ambientação fantástica onde o jogo se passa. Ainda que a dinâmica de ações e a

descrição da ambientação não andem separadas, esses tipos de publicação enfocam no poder

dos personagens dos jogadores e na qualidade dos desafios a serem enfrentados. São:

“Bestiário de Arton”, “Manual do Arcano”, “Manual do Combate”, “Manual do Devoto”,

“Manual do Malandro” e “Manual das Raças”, “Piratas & Pistoleiros”, “Tormenta RPG:

Edição Guilda do Macaco” e “Tormenta RPG – Edição Revisada”. Aqui, também incluímos

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os livros que definem as regras para os elementos criativos introduzidos por determinadas

narrativas, como o “Guia da Trilogia”, referente à trilogia de romances, e “O Desafio dos

Deuses”, referente ao videogame de mesmo nome.

Figura 9 – Capa do livro Manual do Devoto

Fonte: https://images-americanas.b2w.io/produtos/01/00/item/6916/1/6916175gg.jpg

Em quarto, há as publicações que se voltam para a descrição de características

específicas do cenário. Podem descrever lugares, como “Academia Arcana”, “Galrasia:

Mundo Perdido”, “O Mundo de Arton”, “Valkaria: Cidade sob a Deusa” e “Vectora: Cidade

nas Nuvens”; conflitos, como “Área de Tormenta” e “Guerras Táuricas”; ou os deuses, como

“O Panteão”.

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Figura 10 – Capa do livro Área de Tormenta

Fonte:

https://vignette3.wikia.nocookie.net/tormenta/images/7/71/%C3%81rea_de_Tormenta_%28suplemento%29.jpg/

revision/latest?cb=20150326235248&path-prefix=pt

Por fim, em quinto, há os pôsteres ou escudos do mestre. Os escudos do mestre são

folhas rígidas, geralmente ilustradas, que têm a função de esconder as anotações e rolagens de

dados do mestre. Estão nesse grupo: “Pôster Tormenta 01: Paladino x Arsenal”, “Pôster

Tormenta 02: A Batalha do Forte Amarid”, “Pôster Tormenta 03: Orion x Crânio Negro”,

“Tormenta RPG: Escudo do Mestre”, e “Tormenta RPG: Escudo do Mestre – Edição de

Luxo”.

Após a síntese da história das publicações e o levantamento do que está publicado de

forma mais recente, descrevemos brevemente o mundo ficcional, a fim de contextualizar

alguns elementos que são evocados no material textual a ser analisado por esse trabalho. Para

isso, utilizamos como maior referência o livro “Tormenta RPG” (BRAUNER et al., 2010), já

que este reúne as regras e características básicas do cenário.

O mundo de Tormenta é centralizado por um continente chamado Arton. Arton mede

aproximadamente 11 mil quilômetros de norte a sul e 8 mil quilômetros de oeste a leste. Na

região sul de Arton, há uma larga porção de terra habitada principalmente por humanos, mas

também por membros de diversas raças fantásticas. Essa unidade territorial é chamada de

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Reinado de Arton. Ao norte do Reinado, há uma porção de vegetação intitulada A Grande

Savana, e mais a norte, uma área desértica nomeada O Deserto da Perdição. Ao leste, estão as

Sanguinárias, uma cordilheira árida infestada de monstros, e, ao oeste, está Lannestull, uma

cordilheira rodeada de florestas densas. Mais ao sul de Arton, há um istmo levando a outro

continente, chamado de Arton-Sul ou Lamnor, que atualmente é dominado por um exército de

humanoides monstruosos.

Figura 11 – Mapa de Arton

Fonte:

https://eternalpoose.files.wordpress.com/2011/10/262399_239163256115703_119316918100338_789829_7994

083_n.jpg

Arton é um mundo de fantasia medieval, ou seja, o Reinado e as terras além são

baseados em um imaginário da Idade Média. Porém, esses traços medievais não têm o

compromisso de manifestarem-se como um retrato histórico, e transitam entre economias,

tecnologias, culturas que extrapolam a época. Além disso, o mundo transborda de magia. No

geral, Arton não é ocupado densamente pelas civilizações, sendo preenchido majoritariamente

por áreas não colonizadas ou inexploradas, com perigos tanto selvagens quanto de natureza

fantástica.

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A região com mais centros de civilização, o Reinado, é uma coalizão de reinos

independentes que respondem à autoridade de um Rei-Imperador. Cada reino nutre uma

cultura particular e nitidamente demarcada. Também pode exibir características geográficas

específicas, ou ter a maioria de habitantes de alguma raça não humana. Arton é diverso nas

raças mágicas. Há os humanos, a raça mais numerosa e expressiva em Arton, guiados por

ambições e paixões; os anões, humanoides de baixa estatura que vivem em um reino

subterrâneo; os elfos, humanoides esguios com grande aptidão para magia, ciência, artes; os

goblins; os halflings; os quareens; os lefous; os minotauros; o povo-fada; entre muitas outras.

Figura 12 – Algumas raças de Tormenta RPG

Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-y1ciOvAQuVc/UzLPYTPEU7I/AAAAAAAAFGs/Mh8Fvh6va-

A/s1600/ra%C3%A7as.png

Outros elementos fortemente atuantes na cosmologia Arton são os deuses. O mundo

foi criado por vinte entidades mágicas, de proporções cósmicas e poderes imensuráveis. Cada

uma delas representa um aspecto da realidade fantástica, sendo que muitas foram responsáveis

pela criação de determinadas raças, espelhadas em seus valores. Os vinte deuses maiores

compõem o chamado Panteão. São os atuais: Allihanna, deusa da natureza e protetora dos

animais; Azgher, deus do sol e dos povos do deserto; Hyninn, deus da trapaça e dos halflings;

Kallyadranoch, deus dos dragões, recém-admitido no Panteão; Keenn, sanguinário deus da

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guerra; Khalmyr, deus da justiça e, até pouco tempo, líder do Panteão; Lena, deusa da vida,

criadora da vida; Lin-Wu, deus de Tamu-ra, uma ilha de Arton com sociedade inspirada no

Japão feudal; Marah, deusa da paz; Megalokk, deus dos monstros e irmão de Allihanna;

Nimb, deus do caos, considerado por alguns como verdadeiro líder do Panteão; Oceano, deus

dos mares e das criaturas aquáticas; Ragnar, deus da morte e patrono do exército monstruoso

em Arton-Sul; Sszzaas, deus da traição, também recentemente admitido no Panteão; Tanna-

Toh, deusa do conhecimento e provedora do dom da escrita; Tauron, deus da força, e recente

líder do Panteão; Tenebra, deusa das trevas, inimiga de Azgher; Thyatis, deus da ressureição e

ligado às profecias; Valkaria, deusa da ambição e criadora da raça humana e Wynna, deusa da

magia e protetora dos seres mágicos.

Figura 13 – O Panteão

Fonte: http://www.actionnerds.com.br/wp-content/uploads/2017/02/Deuses01-1.jpg

Por fim, destacamos os conflitos que assolam Arton. Arton é comumente apresentado

como “um mundo de problemas”. São esses “problemas” as justificativas para as aventuras, a

fonte de desafios para os personagens criados nas partidas de RPG. Arton tem problemas

locais, problemas de proporção continental, e até problemas com consequências cósmicas,

que ameaçam a própria existência. Os principais, como apresentados pelo manual “Tormenta

RPG” (BRAUNER et al., 2010), são: a Aliança Negra, o exército de humanoides monstruosos

que conquistou Arton-Sul e ameaça invadir o Reinado; os sszzaazitas, devotos traiçoeiros do

deus serpente, que promovem cultos malignos e rituais de sacrifício; Sckhar, Rei dos Dragões

Vermelhos, o mais poderoso dragão vivo, que assumiu um reino inteiro como seu covil

pessoal; os trolls nobres, criaturas vegetais poderosas e perversas que vivem no subterrâneo

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de Arton; e a Tormenta. O perigo da Tormenta é imenso: trata-se de uma raça superevoluída

criada por deuses revoltosos e que hoje pretende devorar toda Arton com sua existência

alienígena. Tormenta é o maior “problema” de Arton: contra ela, até os deuses são

impotentes.

Figura 13 – A Tormenta

Fonte: https://lh3.googleusercontent.com/7s26OCWd1fJgZnEUYycGfS-

81hPIpiMvhKLf0ICZlRemes0AOonVMiN47LHp-wr-ijjEyjZPrruIXNv1Qq-

uTCEZIzrSJGAmZ82yifneMqMjYkjwaEmgbHzAJXGjt9HvkFhiJbOw

4.2 Método

Dadas a pesquisa em torno de Tormenta RPG, ressaltamos a vasta extensão do

material e a sua natureza não linear, em razão da não existência de uma única narrativa, mas

diversas tramas em aberto, descrições, regras que compõem malha de sentidos marcada por

profunda heterogeneidade. Sendo assim, com esforço de abarcar os aspectos centrais,

resumidos, do mundo diverso, partimos o nosso olhar da publicação “Tormenta RPG”

(BRAUNER et al., 2010), que trata justamente de reunir os principais aspectos de Arton, a

fim de expor as características de forma clara e abrangente. Apesar de consistir em um livro

de regras, “Tormenta RPG” é o atual livro básico do cenário, que introduz Tormenta RPG em

relação às regras básicas, mas também em relação às descrições gerais do mundo.

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Um dos primeiros materiais apresentados na publicação é a linha do tempo, inserida

no subcapítulo “Uma História Parcial”. A linha do tempo é uma compilação dos maiores

acontecimentos de Arton, reunindo a heterogeneidade do cenário em uma síntese temporal

narrativa, unificada e linear. Sendo assim, figura como material rico para análise, garantindo

abrangência em relação aos aspectos múltiplos do objeto.

Figura 15 – Uma História Parcial

Fonte: BRAUNER, Gustavo; et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010.

O manual apresenta duas articulações explícitas de estruturas temporais. A primeira é

a linha do tempo, que compõe a história do mundo de Arton. A segunda está no sistema de

regras, que se vale de determinadas durações, como dias, horas, minutos e segundos para

regular as ações dos personagens, principalmente no que se refere ao combate e à conjuração

de magias. Como a segunda referência temporal existe em função das regras originais do

Dungeons & Dragons, sistema em que Tormenta RPG se baseia, detemos nosso olhar

analítico à linha do tempo, voltada para os elementos criativos específicos à ambientação.

No que concerne aos movimentos de memória, destacamos as descrições de Arton,

que partem de referências à Idade Média e a outras épocas, lembradas e imaginadas. Na linha

do tempo, esses movimentos de memória intrincam-se em uma trama complexa,

relacionando-se às estruturas temporais, à narrativa histórica, à fantasia, às dinâmicas de

consumo.

Em suma, recortamos o subcapítulo “Uma História Parcial” como substrato para a

análise desse trabalho visto que o texto atravessa o cenário, significa o tempo, articula a

memória e contextualiza-se no consumo. Entretanto, como apontado anteriormente,

estendemos o nosso olhar para outros capítulos ou livros de acordo com a eventual

necessidade de desdobrarmos a investigação sobre determinados elementos apresentados de

forma sintética na linha do tempo.

Repousamos sob a premissa de que Tormenta RPG, ao consistir em um composto de

textos heterogêneos em estado de afetação mútua, assemelha suas lógicas internas à da

semiosfera, conceito defendido por Lotman (1996). Lotman entende a cultura como espaço

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dinâmico, capaz de manter as informações ao longo da coletividade humana e da continuidade

do tempo. Esse espaço dinâmico é denominado de semiosfera, em referência à organização

integrativa própria, por exemplo, ao conceito de biosfera e noosfera. Trata-se, portanto, de um

modelo de inter-relação entre unidades compositivas que, heterogêneas, comunicam-se entre

si, mas, na totalidade, conservam as informações perante a transformação dos contextos.

A memória, para Lotman, é o mecanismo que define como os textos e códigos são

mantidos de acordo com as forças de transformação inerentes à semiosfera. Logo, a memória

é indissociável ao esquecimento, dada a constante seleção para a permanência de alguns

sentidos e para a dormência de outros. Nesse sentido, é possível haver manutenção sustentada

na transformação, ou seja, resiliência em uma cultura atravessada por códigos, textos, e

indivíduos em interação simbólica.

Se considerarmos a horizontalidade de Tormenta RPG, ou seja, as publicações mais

recentes do cenário, atualmente disponíveis para a venda pela editora, notamos que são textos

independentes: a maioria sobre assuntos específicos, circunscritos a determinados universos

simbólicos. Também notamos que as publicações estão em diálogo. Certas descrições sobre a

Tormenta, do livro “Área de Tormenta”, por exemplo, estão relacionadas às descrições sobre

o Reinado, do livro “O Mundo de Arton”, no qual são mapeadas as áreas em que a tempestade

é atuante. “O Mundo de Arton” está em relação aos deuses, descritos pelo livro “O Panteão”,

considerando que eles são a causa de múltiplos conflitos entre reinos. Ainda, a descrição dos

deuses se relaciona com a Tormenta, posto que foram três deles os responsáveis por criá-la.

Lotman (1996) divide os efeitos de memória na cultura em dois aspectos: um voltado

à conservação de informações pelo acúmulo e outro voltado à criação de novos nexos

semióticos pela descontinuidade. O aspecto de conservação reside na acumulação de textos e

códigos que comuniquem os resultados finais de estudos geralmente técnicos ou científicos.

Nesse processo, há o esquecimento de informações que detalhem a história dos percursos de

pesquisa que antecederam tais resultados. Porém, apenas a condensação das pesquisas em

conclusões sintéticas permite que o desenvolvimento técnico e científico seja estendido para a

continuidade inovativa do futuro, construindo as bases intelectuais e operacionais das

sociedades.

Já o segundo efeito de memória, de forma diferente do primeiro, pode ser entendido

como o produto de uma dinâmica cultural estruturalmente descontínua, de sincronicidades e

“dessincronicidades”, de lembranças e esquecimentos temporários e não lineares. A

atualização dos textos envolve regras complexas, que não se bastam à fórmula “o mais novo é

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sempre mais valioso”. Essa criação pela memória toma o passado em sua sincronicidade com

o presente, inter-relacionando as referências de diferentes contextos históricos em um mesmo

nível. Os esquecimentos temporários escondem-se em um estado de potência, que pode

eventualmente despertá-los como lembranças, dada a transformação das configurações

semióticas no tempo.

Assim, pois, este aspecto da memória da cultura tem um caráter pancrônico,

espacial-contínuo. Os textos atuais são iluminados pela memória, mas os não

atuais não desaparecem: é como se se apagassem, passando a existir em

potência. Esta disposição dos textos não tem um caráter sintagmático, mas

contínuo, e forma em sua totalidade um texto, que não se deve associar com

a biblioteca ou a memória da máquina nas formas hoje tecnicamente

possíveis, mas com um filme do tipo “O espelho” de A. Tarkovski ou Agnus

Dei de Miklós Jancsó. A memória cultural como mecanismo criador não só é

pancrônica, como opositora ao tempo. Conserva o pretérito como algo que

está. A partir do ponto de vista da memória como mecanismo que trabalha

com toda a sua corpulência, o pretérito não passou. Por isso, no estudo da

literatura, o historicismo, na forma em que a teoria hegeliana da cultura

primeiramente o criou, e depois a teoria positivista do progresso, é realmente

anti-histórico, já que faz vista grossa ao papel ativo da memória na geração

de novos textos (LOTMAN, 1996, p. 110, tradução nossa5)

Ao determo-nos às publicações de Tormenta RPG no decorrer do tempo, observamos

que há textos mais antigos, com linhas do tempo menos abrangentes, ou seja, nas quais o

cenário ainda comporta menos acontecimentos, e textos mais recentes, que se referem a linhas

do tempo atualizadas, de mais acontecimentos ficcionais acumulados. Ademais, existem

múltiplas atualizações do material de Tormenta RPG, seja por meio da publicação de novos

materiais sobre o mesmo assunto, assim como por reedições, ou até traduções, como é o

exemplo dos livros que explicam as regras dos elementos apresentados nos romances e

histórias em quadrinhos. Da mesma forma que a semiosfera, os textos mantêm-se e

transformam-se. Mantêm-se, pois, as ideias perseveram no tempo, como é o exemplo de

Mestre Arsenal, criado em 1994 e presente no cenário até hoje. Porém, transformam-se, como

5 Así pues, este aspecto de la memoria de la cultura tiene un carácter pancrónico, espacial-continuo. Los textos

actuales son alumbrados por la memoria, pero los no actuales no desaparecen, sino que es como si se

apagaran, pasando a existir en potencia. Esta disposición de los textos no tiene un carácter sintagmático, sino

continuo, y forma en su totalidad un texto, que no se debe asociar con la biblioteca o la memoria de máquina

en las formas técnicamente posibles en el presente, sino con una cinta cinematográfica del tipo de El espejo de

A. Tarkovski o Agnus Dei de Miklós Jancsó. La memoria cultural como mecanismo creador no sólo es

pancrónica, sino que se opone al tiempo. Conserva lo pretérito como algo que está. Desde el punto de vista de

la memoria como mecanismo que trabaja con todo su grueso, el pretérito no ha pasado. Por eso, en el estudio

de la literatura el historismo, en la forma en que lo creó primeramente la teoría hegeliana de la cultura, y

después la teoría positivista del progreso, es realmente antihistórico, ya que hace caso omiso del papel activo

de la memoria en la generación de nuevos textos.

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é exemplo do Panteão, que mudou seu líder nas últimas publicações em razão dos novos

conflitos no Reinado, descritos extensivamente no livro “Guerras Táuricas”. As

transformações, assim como na semiosfera, são desencadeadas pela inter-relação entre as

unidades textuais heterogêneas, pelo movimento dos textos que não tinham destaque e em

determinado tempo voltam a estar mais atuantes, em potência criativa, dinamizando a trama

simbólica. O conflito entre o Reinado e o reino de Tapista era constantemente latente na

cosmologia do cenário, mas apenas recentemente esse conflito teve grandes proporções,

fazendo com que Tauron o deus da força, tivesse influência suficiente para assumir a

liderança dos deuses.

A totalidade do universo simbólico que é Tormenta RPG, por sua vez, está em

correspondência à cultura que o circunscreve. As peças do jogo que Tormenta RPG constrói

entre as suas publicações partem da sua colocação na semiosfera, do diálogo com outros

textos e códigos. Isso ocorre tanto em relação às representações de tempo quanto à memória.

Já as dinâmicas de consumo são o pano de fundo desse processo: Tormenta RPG é um suporte

para ser consumido, em maioria, por indivíduos criadores. O cenário articula memória de

variados universos fantásticos, passados e futuros imaginados, ressignifica-os em sua própria

trama simbólica, e assim gera identificações com os seus possíveis consumidores, para que

eles possam pôr de pé suas próprias aventuras.

É importante notar, também, que Tormenta RPG simula uma forma de escrita

historiográfica ao compor sua própria linha do tempo. A fim de construir olhar analítico que

atente para as estruturas temporais envolvidas na escrita historiográfica, levantamos as

reflexões de Michel De Certeau. Certeau (1982) propõe que a escrita da história é um

processo de passagem do indefinido da pesquisa histórica para o certo de uma estrutura

textual. Sendo assim, toda história escrita prevê distorção.

A primeira distorção repousa no fato de que a escrita segue uma ordem cronológica,

indo do mais anterior ao mais posterior. A pesquisa, de forma diferente, parte da atualidade.

Em segundo, a pesquisa é um processo contínuo, enquanto o discurso é completo, encerrado.

Em terceiro, o texto é estável, um organismo de sentidos unidos por uma determinada

coerência interna. Por fim, a escrita pretende preencher as lacunas entre os acontecimentos

históricos, enquanto a pesquisa se engendra justamente por esses silêncios. Em Tormenta

RPG, podemos compreender que a pesquisa histórica é análoga à criação, que insere

acontecimentos na linha do tempo de Arton. Essa criação pode partir tanto dos autores oficiais

como das partidas desenvolvidas pelos consumidores.

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A escrita historiográfica, como discurso, é ideológica e didática. Esse viés didático é

explícito em Tormenta RPG, que apresenta “manuais” para as partidas de RPG. Além disso,

a escrita histórica temporaliza os resultados da pesquisa. Isso permite que o correr dos

acontecimentos seja moldado de acordo com um determinado ritmo textual. O tempo da

escrita permite que afirmações opostas possam coexistir, já que estão dispostas em momentos

diferentes: a narração une os opostos por meio da cronologia. No cenário, toda a

heterogeneidade de Arton é narrada nas múltiplas camadas e ritmos da linha do tempo.

Ademais, o momento em que vive o leitor da história é o objetivo da cronologia, o

seu alvo. A escrita se movimenta em direção a um determinado presente, que é o seu término.

O lugar onde ocorre a produção do texto, o presente, torna-se o resultado de sua produção.

Assim, a escrita é sempre limitada, um recorte, parte de um ponto definido para o momento.

O presente, no caso de Tormenta RPG, é o presente do jogo. A escrita histórica serve para

sustentar o contexto do consumo, da vivência da partida de RPG.

Michel De Certeau (1982) também aponta que a escrita da história estabelece um

determinado começo absoluto no passado, um ponto zero, e orienta-se por ele. A existência da

realidade é sustentada por esse início virtual, limite abstrato. A historiografia se dá a partir de

um não tempo fundador: todos os acontecimentos estão em função dessa flecha do tempo que

nasce do vazio. O zero do tempo é o mito, simboliza o passado perdido, e para que o passado

desça até o presente, apoia-se no nada. Assim, enquanto a pesquisa histórica é atual e

localizada, a escrita torna-se absoluta e abrangente, alcança um início distante, primordial,

sem nome. Aí está o seu meio de instaurar poder, de elevar a história e sua mensagem didática

acima do tempo dos homens. A partir do marco zero, o texto historiográfico reúne os

contraditórios na mesma cronologia e, portanto, os domina. Como Certeau resume: “Mesmo

aqui a linguagem do escritor ‘não apresenta tornando presente aquilo que mostra, mas

mostrando-o por detrás de tudo, como o sentido e a ausência deste todo (1982, p. 98)’”

Ainda, o discurso histórico, por meio de seu modelo narrativo, faz com que a

sucessividade de acontecimentos se torne causalidade, e a coexistência se torne coerência. Os

acontecimentos assim dispostos fazem-se plausíveis, sustentando uma autoridade e

credibilidade que compensam eventual falta de rigor. O discurso histórico é didático e crédulo

por meio da supressão da presença do autor. O discurso se autorreferencia, simula que a sua

enunciação parte da própria realidade, que ele compõe. Em Tormenta RPG, esse movimento

cria um efeito de verossimilhança no mundo ficcional.

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Além disso, Tormenta RPG, ao delimitar o passado histórico de Arton, abre as portas

para as aventuras do presente. Como diz Certeau (1982), a escrita da história simboliza o

passado e o elimina. Ela ensina sobre o fato de que algo se fazia e não se faz mais. Assim, a

cronologia produz os mortos para dizer o que os vivos devem fazer, exorciza o passado para

compor o presente. Dando nome ao passado perdido, preenchendo o ausente de sentido, a

história abre espaço para que o presente preencha os capítulos que ainda não foram contados,

de acordo com determinado motivo ideológico.

Nesse ponto, retomamos os segundo e terceiro objetivos específicos desse trabalho,

que são: mapear representações de tempo e suas associações com imaginários fantásticos da

Idade Média e de outros períodos históricos em Tormenta RPG; comparar a temporalidade

interna de Tormenta RPG com as lógicas temporais próprias às dinâmicas da cultura do

consumo e cultura da memória. Partimos de duas perspectivas analíticas. A primeira responde

ao segundo objetivo específico, visando compreender como a heterogeneidade do cenário é

articulada na linha do tempo, com atenção à construção de uma temporalidade interna e uma

malha de passados lembrados e imaginados. Nessa etapa, exploramos as lógicas de consumo

que operam de forma específica em Tormenta RPG, um conjunto multidimensional de textos

voltado para a criação das partidas de RPG.

Na primeira parte da análise, dividimos os tópicos da linha do tempo em grupos, de

acordo com as publicações que os originam e suas funções de contextualização no cenário.

Não se trata de uma divisão exclusiva, já que muitos acontecimentos cabem em um ou mais

grupos. Porém, categorizados, revelam padrões que permitem a investigação de como estão

postas as estruturas temporais e movimentos de memória.

A segunda parte da análise volta-se para o terceiro objetivo específico, e considera

Tormenta RPG como um conjunto de textos inserido na semiosfera. Nesse ponto, partimos do

mapeamento realizado anteriormente a fim de traçar comparações entre o objeto de pesquisa e

o contexto de cultura da memória, cultura do consumo, temporalidades contemporâneas,

como apresentado nos primeiros capítulos.

Com intuito de criar uma base de comparação, nessa etapa propomos a divisão da

linha do tempo em três segmentos, que denominamos como passado, presente e futuro. A

partir dessa divisão, dispomos de algumas categorias analíticas que permitem interpretar o

documento conceitualmente. São elas: permanências, ausências e transformações. As

permanências referem-se às estruturas temporais ficcionais confluentes com as lógicas das

temporalidades contemporâneas, cultura do consumo e cultura da memória. As ausências

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referem-se às omissões, aos elementos que não são apropriados a partir dessas mesmas

lógicas. Por fim, as transformações referem-se a uma mescla entre permanência e ausência, à

ressignificação do contexto pelo cenário ficcional, como são, por exemplo, os elementos

fantásticos. Tal método tem base no estudo de semiótica russa, como desenvolvido por

Lotman (1996).

4.3 Primeira análise

A linha do tempo inicia-se com o tópico: “7 bilhões de anos atrás. O Nada e o Vazio

se unem para gerar Arton e os vinte deuses maiores que formariam o Panteão.” Há pouco

texto que descreva o Nada e o Vazio. De acordo com o livro “O Panteão” (2006), trata-se de

duas entidades cósmicas primordiais que, ao se casarem, deram luz aos vinte deuses maiores,

os seres que moldariam o mundo de Arton como ele é. Os vintes deuses maiores são as

encarnações de fenômenos, ideais, aspectos que compõem a realidade fantástica, como

Tenebra, encarnação da noite e das trevas, Nimb, encarnação da aleatoriedade e do acaso, e

Wynna, encarnação da magia e seus efeitos. Essa é a única referência explícita ao Nada e ao

Vazio. Não se explica com detalhes sobre a sua natureza, o seu poder, ou o seu passado e

futuro além do acontecimento que determina o nascimento dos deuses e do mundo. Um dos

poucos indicativos nesse sentido está nos títulos, “Nada” e “Vazio”, que remetem à ideia de

que são encarnações da inexistência, paradoxalmente, seres do não ser.

Figura 16 – O Nada

Fonte: https://vignette.wikia.nocookie.net/tormenta/images/8/88/Vazio.jpg/revision/latest/zoom-

crop/width/90/height/55?cb=20140822170028&path-prefix=pt

Figura 17 – O Vazio

Fonte: https://vignette.wikia.nocookie.net/tormenta/images/4/4d/Nada.jpg/revision/latest/zoom-

crop/width/90/height/55?cb=20140822165809&path-prefix=pt

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A partir de tais considerações, entende-se que o evento descrito como ocorrido há 7

bilhões de anos marca justamente a mudança do estado infértil de inexistência para o correr de

toda a existência de Arton. Ademais, considerando que o evento introduz a linha do tempo,

também se trata do começo dos tempos. Aqui, não cabe elaborarmos discussão sobre as

narrativas de gênese do mundo, mas nos comporta a pungência da questão, recorrente aos

campos de conhecimento que a tocam, como é a filosofia, a mitologia, e mais recentemente,

as ciências naturais. Esses campos voltam-se para o mistério do “começo de tudo”. Tormenta

RPG vale-se de elementos desses distintos conhecimentos para tecer a sua própria narrativa,

respondendo à questão: “como Arton começou?”.

A gênese de Arton é articulada como um acontecimento fantástico, envolvendo

entidades mágicas. A escassez de informações precisas sobre o Nada e o Vazio reforça o traço

místico, misterioso, quase inexplicável desse começo. Além disso, nota-se que a criação do

mundo e dos deuses deriva de um “casamento”, também referenciado como “comunhão” em

outros títulos. A partir daí, delimita-se a ideia de “nascimento”, o surgimento de um terceiro

corpo, derivado da união entre um corpo materno e um corpo paterno. A criação do mundo e

dos deuses marca-se como a irrupção do novo, o nascimento de um produto diferente dos

pais. Isolados em suas inexistências individuais, o Nada e o Vazio são seres estéreis, mas,

quando conjugados, são fecundos.

Por outro lado, nota-se que o evento de gênese é comportado a uma estrutura

progressiva de tempo. A carga mitológica e fantástica circunscreve-se à racionalidade

científica, que organiza os eventos cósmicos em datações precisas, acomodadas em um tempo

linear, corrente. Além disso, data-se na forma de “anos atrás”, ou seja, em referência ao agora,

sob um olhar que prevê “distância”, maior ou menor, em relação ao instante presente. O curso

do passado apoia-se na amarração poética entre os acontecimentos que vêm “antes” e os que

vêm “depois”, em sua coerência narrativa. O primeiro acontecimento de Arton cumpre a

função de pontuar o começo da história e das histórias, o ponto de partida comum a todas as

coisas.

Como aponta Michel Certeau (1982), a escrita histórica vale-se de um ponto de

partida virtual, sem nome, inalcançável, a fim de sustentar a sua estrutura narrativa ao longo

do passado recortado. No caso de Tormenta RPG, esse ponto de partida é simbolizado

explicitamente na figura de entidades cósmicas, que dão sentido ao correr do tempo ficcional.

O cenário mimetiza a prática da escrita histórica e o seu exercício de pontuação da gênese,

atribuindo essa gênese ao próprio conceito da inexistência, o Nada e o Vazio. Assim, da

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mesma forma que o documento ressalta a natureza inapreensível do começo de tudo, domina-

o simbolicamente por meio da sua materialização em deuses. Por via desse mecanismo,

Tormenta RPG faz conviver os diversos aspectos quase contraditórios do seu mundo: a partir

do Nada, do Vazio primordial, desdobram-se as múltiplas histórias, nasce a alteridade do

mundo na forma de vinte deuses marcadamente diferentes, alguns antagônicos entre si.

Tormenta domina o próprio cenário, calcifica a sua multiplicidade na construção de um olhar

abrangente, capaz de capturar todo o tempo desde o começo dos começos; e também abre

espaço dentro desse tempo abrangente, para que assim coexistam todas as peças do seu jogo

heterogêneo.

Como Géza Szamosi (1994) aponta, o tempo do homem parte de um mecanismo

simbólico capaz de expandi-lo para domínios não imediatamente acessíveis, distantes da

realidade imediata. Em Tormenta RPG, não há apenas a expansão do tempo por meio da

mitologia, que procura explicar o tempo anterior aos homens, ou por meio das ciências

sociais, com o mesmo objetivo. Há a expansão para uma realidade ficcional inteira, que

depende sua existência nas mesmas bases simbólicas que sustentam a síntese que é o tempo.

Um passado imaginado em um mundo imaginado. Aí reside a função da gênese fantástica:

organizar o espaço simbólico em suas próprias regras, em sua própria coerência interna. A

história de Arton tem as mesmas regras da história em seu conceito moderno (KOSELLECK,

2006): é preciso mapear o passado, distante ou não, contar a grande narrativa em todos os

seus capítulos. Porém, o que está jogo em Tormenta é a imaginação, o apelo ao fantástico, a

diversão, o consumo.

No que se refere às lógicas de consumo específicas a Tormenta RPG, sublinhamos

que a linha do tempo é parte de um manual, um guia para as partidas de RPG. Nesse guia,

como já detalhado, são reunidas as características de um universo ficcional, para que a partir

delas o mestre e os jogadores criem suas próprias aventuras, selecionando e combinando os

elementos que lhes convêm. Os livros descrevem os vários espaços que compõem Arton,

sejam eles reinos, zonas geográficas, planos astrais, e esses espaços delimitam universos

criativos distintos, marcados por suas próprias políticas de regentes, populações de monstros,

deuses patronos. De forma semelhante, Tormenta RPG também promove a descrição dos

diferentes momentos por quais passou Arton. Pela linha do tempo, o cenário não apenas

organiza, mas expande as possibilidades de aventuras, que podem envolver um determinado

local de características e desafios específicos, como também um determinado momento

histórico, entre vários.

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Em seguida, observamos o tópico: “7 a 5 bilhões de anos atrás. Azgher, o Deus do

Sol, e Tenebra, Deusa da Escuridão, lutam entre si. A luta termina empatada. Arton recebe

doze horas de luz e doze horas de escuridão.” Azgher e Tenebra são deuses maiores, produtos

da união entre o Nada e o Vazio. Azgher é equivalente ao nosso sol, uma entidade benigna e

orgulhosa, que banha o mundo com energia, calor e clareza. É comumente referenciado como

um pai severo, e está relacionado com a luz, a verdade, os povos do deserto e o ouro. Tenebra,

por sua vez, é a representante das trevas, protegendo o mundo com sua escuridão. É uma

deusa ambígua, vista ora como uma mãe protetora, ora como uma dama sedutora, ora como

um monstro sombrio. Está relacionada aos mortos-vivos, à noite, à lua e aos povos do

subterrâneo. Azgher e Tenebra são inimigos entre si, dadas suas naturezas antagônicas.

Figura 18 – Azgher, Deus do Sol

Fonte: http://glad-you-came.weebly.com/uploads/5/7/4/8/5748319/1780151.png

Figura 19 – Tenebra, Deusa das Trevas

Fonte: http://glad-you-came.weebly.com/uploads/5/7/4/8/5748319/1632966.png

Nesse ponto da linha do tempo, aspectos naturais do mundo de Arton, semelhantes

aos do nosso mundo (dia e noite), são contextualizados como consequências das ações dos

deuses. Como a gênese, ainda se trata de uma narrativa mítica, que personifica a natureza em

entidades, seres animados. Esses eventos míticos estão inseridos em uma estrutura temporal

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progressiva, linear. Além disso, fica mais explícita a referência do presente para a construção

do passado. Como a própria ideia de cosmologia sugere, o presente como é, dividido

igualmente entre noite e dia, é explicado por um passado antigo, um “antes” na história, uma

batalha cósmica que durou 2 bilhões de anos.

Não obstante, há dois vetores atuando em conjunto no segundo tópico da linha do

tempo. Primeiro, há a articulação de um tempo de abstração alta, como proposto por Norbert

Elias (1998), já que a abstração de horas (em “doze horas”) é construção simbólica distante da

realidade imediata a ser observada na frequência da natureza, no passar dos dias e noites.

Segundo, porém, o próprio fenômeno do dia e da noite são referenciados como manifestações

de entidades animadas, concretas. Assim, notamos que não se trata inteiramente de um tempo

próprio às sociedades simples (ELIAS, 1998), tendo em vista que existe a ideia de um fluxo

contabilizado em unidades métricas. Tampouco se trata de um tempo radicalmente distante da

natureza além do homem, já que as entidades que simbolizam essa natureza existem, estão

presentes e são atuantes.

De outra forma, a narrativa determina que Azgher e Tenebra são sujeitos à

quantidade de horas, o substrato de sua disputa entre luz e trevas. Ou seja, vindo de um

pressuposto de tempo como abstração alta (“doze horas”), volta-se ao seu aspecto de

concretude, aos movimentos naturais (dia e noite), que por sua vez são atribuídos à vontade de

deuses (Azgher e Tenebra). Em Arton, o tempo em si passa a existir além dos deuses, e sobre

a sua existência independente é possível servir-se. Curiosamente, o caminho inverte-se: o

tempo não parte da natureza, a natureza parte do tempo. É sugerido que as estruturas

temporais que Tormenta RPG constrói têm natureza moderna, tanto no que toca à

acomodação da gênese em uma estrutura progressiva de tempo, quanto à articulação de um

tempo de síntese de abstração alta na disputa dos deuses. Sob esse substrato temporal

moderno, comum aos leitores de Tormenta RPG, os elementos mitológicos são manipulados.

O valor arcaico desses elementos serve ao seu potencial lúdico, à ressignificação do comum

por meio da magia e do fantástico.

Sob a perspectiva de como esse tópico opera à luz das lógicas de consumo de

Tormenta RPG, o texto se vale de um fenômeno ou conceito conhecido e ressignifica-o. O

cenário articula a memória cultural, apropriando-se do conhecimento compartilhado sobre o

dia e a noite, sobre as horas do dia, e associa tal apropriação a um universo mitológico. Gera-

se identificação, pois Arton, assim como nosso mundo, é dividido quase igualmente entre dia

e noite, que são medidos em horas; e também se cria um contexto novo, extraordinário,

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fantástico, já que as horas de dia e de noite se comportam da forma que conhecemos pois são

produtos de uma batalha cósmica entre deuses inimigos.

Após o acontecimento referente a Azgher e Tenebra, os tópicos passam a indicar o

surgimento da vida. Primeiro, há a criação primordial por Lena: “1 bilhão de anos atrás. Uma

lágrima de Lena, a Deusa da Vida, preenche os oceanos com as primeiras criaturas vivas.

(...)”. Então, há a diversificação da vida em animais aquáticos, terrestres, monstros e as várias

raças humanoides. Enquanto os primeiros seres nascem nos oceanos, por ação do deus Grande

Oceano, posteriormente são criados os seres terrestres, por obra de Allihanna, a deusa da

natureza. Daí, nascem, por ordem, os dragões, criação do poderoso deus Kallyadranoch; os

dinossauros, criação do nefasto deus Megalokk; os elfos, criação da orgulhosa deusa

Glórienn; as fadas, criação de Wynna, a deusa da magia; os anões, filhos da união entre

Khalmyr, o deus da justiça, e Tenebra; os bugbears, bestas humanoides criadas por Ragnar, o

deus da morte; os halflings, criação de Hyninn, o deus da trapaça; os humanos, criação de

Valkaria, a deusa da ambição; os antropossauros, criados a partir da essência de Lena; e os

minotauros, criação de Tauron, o deus da força.

Tais criações são descritas nos tópicos: “1 bilhão de anos atrás. O Grande Oceano

molda essa vida em infinitos seres, incluindo os elfos-do-mar.”, “700 milhões de anos atrás.

Moldados por Allihanna, a Deusa da Natureza, os seres vivos se arrastam para a terra firme.”,

“300 milhões de anos atrás. Surgem os dragões, esculpidos por Kallyadranoch.”, “260

milhões de anos atrás. Começa o reinado de Megalokk, o Deus dos Monstros. Monstros,

dragões, dinossauros e outras bestas gigantes dominam Arton.”, “65 milhões de anos atrás. Os

deuses unem-se contra Megalokk, fulminando seus monstros. Os dragões recolhem-se,

reduzindo sua influência direta sobre o mundo.”, “57 milhões de anos atrás. Nascidos de

Glórienn, surgem os elfos terrestres, em uma região distante e desconhecida.”, “22 milhões de

anos atrás. Wynna, a Deusa da Magia, cria o povo-fada.”, “890 mil anos atrás. Khalmyr, o

Deus da Justiça, e Tenebra, a Deusa da Escuridão, se apaixonam. Da sua união nascem os

primeiros anões.”, “230 mil anos atrás. Ragnar, um deus menor, cria os bugbears. Seus irmãos

Hurlaagh e Graolak criam, respectivamente, os hobgoblins e os goblins.”, “180 mil anos atrás.

Hyninn, um deus menor, cria os primeiros halflings, ludibriando Khalmyr. Os halflings se

dividem: os Filhos de Hyninn constroem barcos e partem para o Grande Oceano, e os Amigos

de Marah permanecem nas colinas.”, “160 mil anos atrás. Valkaria cria a raça humana,

destinada a desbravar Arton e desvendar os mistérios dos próprios deuses.”, “145 mil anos

atrás. Surge a ilha de Galrasia, arrancada de Vitalia, o Reino de Lena. Ali surgem os primeiros

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Thera-Psidah (antropossauros).” e “90 mil anos atrás. Tauron, Deus da Força, cria os

minotauros.”

A linha do tempo segue ambientando as características atuais do mundo como efeitos

de acontecimentos fantásticos do passado: o surgimento da vida também é atribuído aos

deuses. Tormenta RPG espelha-se na ordem cronológica fixada pelas ciências naturais:

primeiro, a vida nas águas, depois, a vida na terra, os dinossauros, o homem. Porém, de forma

distinta, o cenário cria ramificações dos povos humanoides, que são moldados de acordo com

os objetivos e essências dos diversos deuses. As raças civilizatórias não são apenas os

homens, mas os anões, elfos, fadas, minotauros, entre outros, afetados por magia e

determinados valores, como a justiça de Khalmyr para os anões, a esperteza de Hyninn para

os halflings, e a ambição de Valkaria para os humanos. A narrativa universal não concerne

apenas à humanidade, mas a múltiplas linhas temporais menores, em inter-relação.

Em referência à obra de Michel Certeau (1982), compreendemos que a escrita

histórica nomeia o passado, preenche seus silêncios e domestica suas contradições, a fim de

exorcizar os mortos e indicar certos modos de ação no espaço aberto do presente. Tormenta

RPG opera movimento análogo ao defendido por Certeau, no sentido de que atribui um

sentido histórico para cada raça. Cada raça fantástica é significada na história de acordo com

uma linha coerente de ação, referente a um ideal atribuído e mantido pelos deuses. Assim, os

elfos seguiram e seguem seu percurso histórico como filhos de Glórienn, uma deusa

orgulhosa, ou seja, tendo como traço maior o orgulho por suas artes e ciência. Já os haflings

seguiram com o ideal de esperteza de Hyninn. Por fim, os humanos, por mais variados que

sejam, sempre foram marcados pelo ideal de ambição da sua deusa criadora, Valkaria. O

cenário confere determinados sentidos ao passado para, assim, construir lógicas de ação para

o presente do jogo. Essas lógicas parecem operar na divisão demarcada dos ideais humanos,

muitas vezes contraditórios, em diversas raças possíveis, a organização do mundo em sua

heterogeneidade. O tempo, como aponta Elias (1998), serve como meio simbólico de

orientação, de ordenação. Nesse caso, o tempo passado organiza a alteridade do universo e,

desse modo, oferece variada gama de ideais para ação, sentidos de existência comportados a

cada raça e deus.

Tais linhas temporais variadas, concernentes a cada raça fantástica, estenderão suas

histórias particulares no decorrer da linha do tempo. Porém, antes de prosseguirmos nos

tópicos, atentamos para dois eventos que tratam sobre Megalokk, o deus dos monstros. Os

eventos são: “260 milhões de anos atrás. Começa o reinado de Megalokk, o Deus dos

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Monstros. Monstros, dragões, dinossauros e outras bestas gigantes dominam Arton” e “65

milhões de anos atrás. Os deuses unem-se contra Megalokk, fulminando seus monstros. Os

dragões recolhem-se, reduzindo sua influência direta sobre o mundo.” Para analisar esse

fragmento, articulamos material textual do livro “O Panteão” (2006), que descreve e ilustra os

vinte deuses do panteão de forma extensiva.

Figura 20 – Megalokk, Deus dos Monstros

Fonte: https://souloffireblog.files.wordpress.com/2012/05/megalokk.png

Megalokk, deus dos monstros, é a entidade maligna criadora de toda espécie de ser

grotesco ou monstruoso. Ele é irmão da bondosa deusa da natureza, Allihanna, criadora das

plantas e animais “naturais”. As duas divindades dividiram o mundo por milhões de anos e,

enquanto Allihanna protegia seus filhos como uma mãe gentil e amorosa, Megalokk lançava

no mundo monstros cada vez mais violentos e assassinos. Diferente da irmã, Megalokk não

acredita na coexistência pacífica entre as espécies, mas sim que a lei do mais forte deva ser o

único determinante na sobrevivência. O deus é um pai orgulhoso de suas criações aberrantes,

e não acredita na harmonia entre os povos. Incita conflito e a perseguição do mais fraco

(CALDELA, 2006).

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Em uma era antiga do mundo de Tormenta RPG, antes de a civilização nascer,

Megalokk reinava sobre Arton com dinossauros gigantes e outras bestas implacáveis. Porém,

em certo momento, teve seus anos de selvageria e dominação reprimidos pelos outros deuses.

Khalmyr, com objetivo de povoar o mundo com as raças inteligentes, liderou o Panteão para o

extermínio das crias do deus dos monstros, que ficaram restritas a certos territórios e proibidas

de atacar as comunidades humanoides. Esse ataque transformou Megalokk em uma divindade

ressentida, que não entende por que deve dividir espaço com criaturas mais fracas. Os termos

associados a ele são: dragões, monstros, morte, destruição, extinção. A ilustração de

Megalokk representa uma criatura de torso humanoide, mas com garras, asas, cauda e quatro

cabeças monstruosas (CALDELA, 2006).

O termo monstros, apresentado no fragmento verbal do texto de “O Panteão”, alia-se

ao traço antropomorfo da ilustração de Megalokk. A ilustração do livro conjuga membros

humanos a membros desproporcionais (como as asas gigantes) e membros associados a

criaturas predadoras (como as garras e as cabeças). Ao reunir traços ameaçadores de seres

distintos no mesmo corpo, a divindade é exaltada em sua natureza aberrante e

megalomaníaca.

O termo extinção, por sua vez, refere-se à queda do poder do deus e a restrição da

influência de seus monstros. Nota-se que o cenário se apropria do período pré-histórico em

que os dinossauros povoavam a Terra a fim de construir a sua cosmologia. Esse período é

atribuído ao domínio de Megalokk, representado com uma cabeça de tiranossauro, já que os

dinossauros são monstros criados para povoar o mundo com tirania. Porém, podemos

observar que a extinção dos dinossauros é justificada, em Tormenta RPG, não por um evento

natural, mas pela ação dos outros deuses, que ansiavam pelo advento da civilização. Sendo

assim, o cenário ficcional delimita aquilo que é de qualidade civilizatória (representado por

Khalmyr e os outros deuses), e aquilo que é de qualidade da natureza. A natureza é dividida

na faceta bondosa e pacífica de Allihanna, que ainda que não seja civilizatória, permite a

convivência pacífica com os humanos, e na faceta selvagem e cruel de Megalokk, que ameaça

diretamente os “seres fracos”.

Nesse sentido, compreendemos que Tormenta RPG cinde o bestial, referente aos

monstros e animais, e o civilizatório, referente aos homens. Ao construir uma narrativa que

reprime esse primeiro, o bestial, o cenário define a história como trajetória do homem, ainda

que essa trajetória seja forjada pelas mãos de divindades mágicas. Além disso, o cenário

instaura um sentido de progresso universal, em um tempo voltado e aberto para o futuro,

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posto que relativiza o fim da era dos dinossauros de acordo com a ideia de um percurso

civilizatório, capaz de encontrar maior ou menor harmonia com o mundo “natural”. Como

defende Koselleck (2006), o passado é significado como o início da narrativa universal da

humanidade: origina as circunstâncias do presente e sujeita-se para a construção de um futuro

almejado.

Tanto na criação dos aspectos naturais de Arton, na criação da vida, e na ascensão e

queda de Megalokk, há a ressignificação de um elemento observável na realidade imediata.

Como defende Szamosi (1994), o tempo, de acordo com uma perspectiva clássica, é

concebido na relação racional com os mecanismos de percepção do mundo, nas abstrações

diretamente coladas aos estímulos percebidos. Essa observação pretende dissociar-se da

combinação livre entre elementos simbólicos, como era recorrente nas sociedades

primordiais. Já em Tormenta RPG, o passado é significado de acordo com as flutuações

imaginativas dos autores e dos jogadores, que mobilizam elementos fantásticos. Porém, de

forma diferente ao tempo próprio às sociedades simples, esse passado ficcional não se

retroalimenta em sua própria representação. De outro modo, parte-se de uma concepção

racional, que entende racionalmente o mecanismo do dia e da noite, as etapas de surgimento

da vida, a época dos dinossauros e, a partir dessa concepção, joga-se com os sentidos: Azgher,

Tenebra, Lena, Oceano, Allihanna, Megalokk e toda a história fantástica de Arton. Não se

mistura fantasia com realidade: sob a realidade, brinca-se com a fantasia. Esse movimento de

ressignificação tem a sua permissão na natureza lúdica do objeto, na sua despretensão com o

retrato fiel do mundo. Na próxima etapa da análise, investigamos esse exercício de

ressignificação à luz das forças temporais e de consumo do cenário pós-moderno.

Após a sucessão de eventos referenciados pela expressão “anos atrás”, a linha do

tempo passa a dispor da indicação numeral dos anos, a partir do “ano 0”. O intervalo temporal

entre os acontecimentos torna-se menor: enquanto o último tópico antes do “ano 0” data de 90

mil anos atrás, todo o período entre o “ano 0” e a “época atual” não passa de 1500 anos.

Ademais, a partir desse ponto, o texto não trata mais de eventos primordiais, relacionados à

criação do mundo, da vida e das raças. De outra forma, passa a descrever marcos históricos de

qualidade civilizatória, como indicam os dois primeiros tópicos: “0. A frota élfica chega a

Lamnor, o continente ao sul. Os elfos expulsam os hobgoblins de seu território. Fundação da

cidade de Lenórienn.” e “100. Tanna-Toh oferece aos seres humanos o dom da palavra

escrita, marcando o início da civilização.”.

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Lenórienn é o primeiro centro de civilização de Arton e, por isso, define o início da

contagem de anos. Foi fundada pelos elfos, humanoides com grande aptidão para artes, magia

e combate, e com mais longevidade e capacidade tecnológica que os humanos. A chegada dos

elfos e a fundação de sua cidade marca a vitória dessa civilização sob os povos bárbaros

(representados pelos hobgoblins, raça de humanoides monstruosos), desorganizados, errantes.

Ao redor de Lenórienn, floresceram comunidades semelhantes. Os humanos também

fundaram seus centros, ainda que dispondo de menos conhecimento tecnológico, menos poder

mágico, e não se integrando aos ambientes naturais da mesma forma harmoniosa como faziam

os elfos. Essa prosperidade é possível pois Tanna-Toh, a deusa do conhecimento, compartilha

o dom da escrita também com a humanidade, possibilitando que ela estenda o conhecimento

nas suas bases de memória na cultura.

Figura 21 – Tanna-Toh, Deusa do Conhecimento

Fonte: https://vignette.wikia.nocookie.net/tormenta/images/1/16/Tanna-

Toh.jpg/revision/latest?cb=20161209183900&path-prefix=pt

A atribuição do “ano 0” ao início da civilização reforça que a história de Tormenta

RPG é protagonizada pelos homens e raças humanoides. Mais do que isso, a ideia de

civilização é associada ao poder da escrita, à implementação de linguagem que, ao permitir o

armazenamento físico de textos, pode ser comunicada de forma mais ampla, acumulativa e

precisa. Como aponta Norbert Elias (1998), o sistema de contagem de anos instaura um tempo

acumulativo, capaz de sedimentar a memória das instituições na cultura. Em Tormenta, o

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tempo linear sedimenta as trajetórias históricas das raças: os elfos são a memória da sua

cidade, assim como os humanos são a memória dos primeiros reinos que nasceram no

continente do sul. Trata-se do caminho da humanidade e raças derivadas, do “ano 0” ao

futuro. Como defende Szamosi (1994), com a construção do tempo linear, ressalta-se o caráter

irreversível dos acontecimentos. A partir da contagem do ano 0, cada novo ano pode ser

diferente do anterior, suscetível a novos acontecimentos.

A fim de viabilizar a análise dos numerosos tópicos que seguem, propomos o

agrupamento dos tópicos entre o “ano 0” e a “época atual” em algumas categorias. A primeira

categoria reúne os tópicos referentes à exploração e colonização de novas terras, fundação de

reinos ou outros movimentos territoriais e geopolíticos. Nesse grupo estão: “500. O dragão-rei

Sckhar funda o reino de Sckharshantallas.”, “750. Khalil de Gordimarr organiza uma

expedição ao continente de Ramnor (mais tarde conhecido apenas como Arton).”, “830.

Fundação de Tamu-ra, o Império Jade.”, “900. (...) Os minotauros começam a fundar uma

cidade própria.”, “951. Formação do reino de Tapista.” e “960. Roramar Pruss, uma criança

na caravana de exilados, começa a ter visões. Convence os líderes a seguir suas instruções na

colonização do novo continente.”.

Ainda, estão inclusos: “1020. Os exilados de Lamnor encontram a estátua de

Valkaria, e fundam a futura capital do Reinado aos seus pés. Roramar Pruss é nomeado

regente da nação de Deheon. Novas caravanas se formam, rumando para colonizar outros

pontos de Ramnor.”, “1021. Thomas Lendilkar funda o reino de Bielefeld. Jakkar Asloth

funda o Condado de Portsmouth. Fundação de Salistick, às margens do Rio Vermelho.”,

“1022. Forma-se a vila de Palthar, onde futuramente será o reino de Namalkah. Começa a

surgir o reino halfling de Hongari.”, “1023. O célebre Cyrandur Wallas parte de Valkaria com

uma caravana e inicia uma viagem exploratória pelas Montanhas Uivantes. Alguns colonos

decidem ficar ali, em Giluk.”, “1025. Fundação do reino de Tyrondir. Uma nova caravana,

liderada por Jeantalis Sovaluris, separa-se da caravana de Cyrandur.”, “1026. Fundação do

vilarejo de Triunphus, em algum lugar no reino de Sckharshantallas ou arredores.”, “1030.

Fundação do reino de Yuden por Larf Yudennach. Fundação de Altrim e do reino de Petrynia

por Cyrandur Wallas.”, “1032. Fundação de Sambúrdia.”, “1035. Fundação do reino de

Tollon. “1038. Fundação do reino de Fortuna.”, “1040. Tratado de paz com Khubar, agora

reconhecido como um reino independente.” e “1045. Fundação de Nova Ghondriann.”.

Nessa categoria, ainda: “1050. Wortar I, regente de Deheon, envia famílias nobres

para colonizar o território a sudoeste, que viria a se tornar o reino de Ahlen. Alguns colonos

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se separam e fundam o reino de Collen. Surgem as primeiras histórias a respeito de uma terra

de fadas nos confins de Sambúrdia.”, “1051. O grande mago Karias Theuderulf descobre

fenômenos causados por áreas de magia selvagem na costa a sudeste de Deheon.”, “1056.

Fundação de Wynnla, o Reino da Magia, por Karias Theuderulf.”, “1065. Primeiro uso do

nome Namalkah.”, “1082. Início da república em Tapista.”, “1085. Fundação do reino de

Lomatubar. (...) “1094. Fundação do reino de Hershey. Primeiros contatos com Tapista.”,

“1107. (...) O fim da Rebelião dos Servos em Sambúrdia leva à fundação de Trebuck.”,

“1109. Concessão do futuro território de Callistia a alguns nobres de Namalkah. Primeiro uso

do nome Pondsmânia.”, “1110. Sambúrdia concede independência ao Reino das Fadas, para

alívio da população. A Pondsmânia é oficializada como integrante do Reinado.”, “1114.

Callistia se separa oficialmente de Namalkah.”, “1122. Sckharshantallas é reconhecido como

parte do Reinado.” e “1300. A família Asloth incita a tensão entre tribos bárbaras e o reino de

Bielefeld. Deheon intervém, resultando na formação do reino da União Púrpura.”, “1350. (...)

Primeiros contatos formais entre o Reinado e Tamu-ra.”, “1365. Diplomatas minotauros

fazem os primeiros acordos de integração de Tapista ao Reinado (...).” e “1400. Primeiros

contatos com os Moreau e os Filhos de Hyninn, ambos vindos do mar do leste.”.

Adicionamos, por fim, o tópico: “100 mil anos atrás. Beluhga, Rainha dos Dragões

Brancos, é aprisionada por Khalmyr em uma cordilheira. A região congela ao longo dos

séculos, formando as Montanhas Uivantes”. Esse é o único tópico anterior ao “ano 0” que,

além de fazer referência ao movimento de um deus, trata da formação de uma área geográfica

de Arton.

Aqui, o cenário data as fundações de suas unidades territoriais, além de descrever os

contextos históricos que levaram a tais formações geopolíticas, geralmente envolvendo

conflitos entre raças e povos ou movimentos de exploração do continente e dos mares. A

divisão entre os reinos em Tormenta RPG é profundamente demarcada, no sentido de que

cada demografia, traços raciais, características geográficas, cultura ou regime local tem

especificidades bem definidas, contrastantes entre si. Desse modo, o jogo em Tormenta

diversifica-se, já que as aventuras podem experimentar as numerosas particulares de cada

região. Como exemplo, está o reino de Wynnla, que nutre extensa relação com a magia, desde

a sua política (o reino é governado por um conselho de magos), até a sua geografia (diversas

áreas do reino são afetadas por efeitos mágicos misteriosos). Outro exemplo é Tapista, um

império construído pelos minotauros, uma raça de grande poder militar e defensora de uma

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política escravagista. Ainda, podemos considerar Fortuna, um reino onde as crendices

cotidianas são levadas a sério.

Nota-se, portanto, que Tormenta RPG, de forma semelhante como faz com as raças,

cria múltiplas linhas históricas referentes a múltiplas unidades territoriais. Inclusive, algumas

raças coincidem suas trajetórias com as dos reinos, já que a própria divisão dos territórios é

muitas vezes definida pelo povo que os ocupa (minotauros em Tapista, halflings em Hongari,

fadas em Pondsmânia).

Figura 22 – Minotauro

Fonte:

https://vignette.wikia.nocookie.net/tsrd/images/8/87/Minotaurotrpg2.jpg/revision/latest?cb=20101008144530&p

ath-prefix=pt-br

Os territórios são também heterogêneos nos movimentos de memória que operam.

Exemplo é o Império de Tapista. Tapista é inspirado no imaginário de Roma Antiga, que

cobre desde a sua política interna até o tipo de vestimentas e armamento dos seus soldados.

Outro exemplo é o reino de Sallistick, que desenvolveu uma apurada ciência médica, de

grande poder tecnológico, em contraste à crença mística que define os demais curandeiros de

Arton. Tormenta não apenas se diversifica espacialmente, mas também temporalmente. Como

aponta Lotman (1996), a semiosfera é um espaço de memória pancrônica, no qual diferentes

passados convivem em um mesmo presente simbólico em transformação. Tormenta RPG

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parece assemelhar-se a essa lógica, unindo referências distintas em um mesmo universo

lúdico, a fim de multiplicar as possibilidades de jogo, de criação e de consumo. As relações

nascidas da heterogeneidade de espaços, tempos e memórias serão investigadas na próxima

categoria, a seguir.

A próxima categoria de tópicos que agrupamos refere-se aos que tratam sobre as

relações entre povos e raças. São: “391. Começa o conflito entre hobgoblins e elfos que

ficaria conhecido como a Infinita Guerra. 809. Os anões se recolhem aos subterrâneos,

convocados pelo Chamado às Armas, em guerra contra seus inimigos, os trolls.”, “900. Os

orcs escravizam os minotauros. Goratikis organiza um exército de minotauros e lidera seu

povo em uma revolta. (...).”, “950. Em Lamnor, ocorre a Grande Batalha. Os derrotados são

exilados para Ramnor.”, “1037. Thomas Lendilkar tenta invadir a nação de Khubar. Os xamãs

de Khubar realizam a invocação de Benthos, Dragão-Rei Marinho, que destrói a costa de

Bielefeld.”, “1075. Guerra civil em Deheon. Yuden conquista os reinos de Svalas e Kor

Kovith.”, 1076. Fim da guerra civil em Deheon. O novo regente integra a maior parte dos

reinos à coalizão, com a ajuda da Igreja de Marah. A expansão de Yuden é contida.”, “1085.

(...) Início das Guerras de Lomatubar, entre humanos e orcs.”, “1103. Fugindo de Sambúrdia,

muitos colonos entram em conflito com bárbaros que adoram a imagem de um dragão.

Intervenção de Sckhar, destruindo duas vilas e a maioria dos colonos invasores.”, “1380. (...)

O Conde Ferren Asloth aumenta as tensões entre o condado de Portsmouth e a Ordem da

Luz”, “1389. O condado de Portsmouth torna-se independente de Bielefeld após uma

sangrenta guerra civil.” e “1398. As tensões entre Deheon e Yuden aumentam.”

Esses eventos pontuam as relações, geralmente hostis, entre povos e raças, seja antes

ou depois das fundações dos reinos. Aliado a isso, são apontadas as origens de alguns

conflitos que se estendem até a “época atual” do cenário. Esses conflitos, como por exemplo,

a rivalidade política entre Deheon e Yuden, e o regime opressor de Tapista em Hershey, são

tanto elementos que justificam a formação dos reinos e suas culturas como bases históricas

para os “problemas” que atualmente assolam Arton.

Nota-se que, em Tormenta RPG, são recorrentes as relações de alteridade entre

universos simbólicos distintos. Cada um dos vinte deuses maiores representa um determinado

aspecto da natureza, e muitas vezes esses aspectos são antagônicos entre si. Os reinos e raças

podem nutrir políticas e culturas quase incompatíveis, dando margem a conflitos de grande

proporção. A luta entre o bem e o mal é tema central das narrativas e aventuras, e a

tempestade sangrenta que é a Tormenta deriva justamente do choque entre Arton e uma

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existência alienígena. A diversidade parece ser regra, e as relações que derivam dessa

diversidade são o movimento que dinamiza o cenário.

A heterogeneidade está presente, de forma ainda mais acirrada, na criação dos

personagens nas partidas de RPG. O sistema de regras de Tormenta RPG descreve variadas

raças e “classes”, a serem atribuídas aos personagens jogadores. Por meio delas, cada

aventureiro tem determinadas competências, que são usadas para enfrentar os desafios e

perigos do mundo ficcional de determinado modo. Enquanto as raças geralmente garantem

atributos inatos, as “classes” são especialidades, desenvolvidas ao longo da vida e aventuras.

Cada “classe” determina um padrão de ação e oferece certos poderes: há, por exemplo, o

guerreiro, especialista em combate armado, o mago, especialista na conjuração de efeitos

maravilhosos, e o clérigo, especialista em magias dos deuses.

Figura 23 – Grupo de aventureiros

Fonte: http://www.d30rpg.com.br/wp-content/uploads/2013/08/Mesa_Alfredo.jpg

Esse quadro costuma resultar na criação de personagens bem diferentes entre si, seja

pelos padrões de ação, seja pelas qualidades dos poderes. Por exemplo, um paladino, espécie

de guerreiro sagrado, é muito competente em combate armado, mas não tem muita habilidade

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para abrir fechaduras. Além disso, segue um estrito código de honra que, entre outras

restrições, impede-o de roubar, mentir, ferir inocentes. Já o ladino não é tão poderoso em

combate direto, apesar de ter grande habilidade para influenciar pessoas por meio da lábia.

Ele não tem um código de conduta como o do paladino, mas não se daria bem em ambientes

selvagens, dada a sua origem urbana.

Tormenta RPG, comparado com outros cenários, disponibiliza ainda mais raças e

classes para a criação dos jogadores. Ainda que cada uma delas delimite um determinado

padrão de ação e gama de poderes, existem numerosas raças e classes para que os jogadores

possam experimentar e combinar. Tormenta RPG facilita essas combinações, a fim de

exercitar a articulação entre universos simbólicos. Porém, as combinações nem sempre são

fáceis: é quase impossível existir um paladino que também é ladino, porque o código de honra

do paladino concorre com a habilidade do ladino de burlar as leis. O sistema de regras

estimula personagens muito competentes em determinadas áreas, pouco competentes em

outras, e com padrões de ação particulares. Desse modo, valoriza-se a cooperação entre os

jogadores, que complementam suas deficiências mútuas com seus poderes especializados. Já a

diferença entre os padrões de ação dinamiza a interpretação, tanto no diálogo entre os

personagens, como na relação com o mundo em geral.

Como defende Morin (2005) o tempo do lazer instaura-se como espaço de vivência

afetiva, privada no tempo do trabalho. Percebe-se que, no caso do nosso objeto, o seu

consumo envolve a oferta de múltiplas vivências fantásticas. Elas figuram como

possibilidades de aventuras dos mais variados tipos, como experimentações de vidas

possíveis, cada uma com as suas regras, comportamentos, e oportunidades criativas. As

próprias aventuras de Tormenta RPG valem-se disso, criando desafios de variadas naturezas e

introduzindo dilemas morais, a fim de explorar as múltiplas competências e perspectivas do

grupo de aventureiros. Em “A Libertação de Valkaria”, há inclusive a recomendação de que o

grupo de heróis a participar da aventura seja composto por pelo menos um representante das

classes básicas. Além disso, nesse livro, a heterogeneidade está amplamente presente nos

desafios, que são criados de acordo com as especificidades dos vinte deuses maiores.

Nota-se que, enquanto a alteridade é pano de fundo para as vivências lúdicas,

cooperativas e criativas, é também a própria fonte dos desafios e “problemas” a serem

enfrentados. Em Arton, cada universo simbólico nutre atributos positivos, mas, de forma

equilibrada, articula restrições, que, por sua vez, podem envolver conflitos e perigos. Por

exemplo, os servos dos deuses ganham poderes relacionados à natureza da divindade adorada,

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mas são obrigados a cumprir duras obrigações clericais. Ainda, os nativos dos reinos ganham

habilidades relacionadas à sua cultura, mas muitos desses reinos oferecem perigos específicos.

A ambiguidade é amplamente presente em Tormenta RPG, seja na luta do bem contra o mal,

seja em relação aos deuses, reinos, raças, etc. O Império de Tauron é um reino forte, que

protege os mais fracos, mas é um regime escravocrata. Tenebra, a deusa das trevas, é uma

entidade protetora, mas também perigosa. As armas de pólvora são artefatos de grande poder

bélico, mas são proibidas no Reinado. Seja pelo conflito, ou pela cooperação, há constante

diálogo entre as partes heterogêneas de Tormenta RPG.

A próxima categoria de acontecimentos que agrupamos na linha do tempo engloba os

que fazem referência a pessoas ou pontos conhecidos de Arton. Aqui estão: “1031. Morte de

Roramar Pruss. Seu filho sobe ao trono de Deheon.”, “1088. Talude, o Mestre Máximo da

Magia, chega a Arton.”, “1095. Fundação da Grande Academia Arcana, em um semiplano

oferecido a Talude por Wynna.”, “1126. Primeiro ataque do Moóck a Triunphus, devastando a

cidade e matando sua população. Concedida a bênção/maldição de Triunphus.”, “1252. Os

magos Talude e Vectorius se encontram em Malpetrim. Desafiado, Vectorius começa a

construção de Vectora.”, “1279. Fundação de Vectora, o Mercado nas Nuvens.”, “1290.

Fundação da Ordem de Khalmyr e da Ordem da Luz.”, “1292. Início da construção do Palácio

Imperial de Valkaria.”, “1342. Lorde Niebling, o gnomo, chega a Arton, após aparecer no

Deserto da Perdição.”, “1343. Nasce o futuro Rei-Imperador Thormy.”, “1350. Concluído o

Palácio Real de Valkaria (...).” , “1364. (...) Formação do Protetorado do Reino.”, “1365. (...)

Aparecimento repentino do Navio em meio à ilha de Collen, provavelmente alvo de uma

magia de teleporte mal sucedida.”, “1369. Cohared Frosthand inventa o gorad, em Hershey.

Jedmah Roddenphord assume a regência do mesmo reino.”, “1370. Nasce Vladislav Tpish,

futuro necromante, em Sambúrdia. George Ruud inaugura a Estalagem do Macaco Caolho.

Nasce Arkam, futuro líder do Protetorado do Reino. Retorno de Phillip Donovan ao Castelo

da Luz.”, “1371. Tilliann, um mendigo louco, é visto chorando aos pés da estátua de Valkaria,

e passa a viver na cidade.” e “1380. Thormy casa-se com Rhavana, uma rainha amazona.

(...).”

A maioria das pessoas e locais citados está viva ou ainda existe até a “época atual”.

Em relação às pessoas, trata-se de reis, magos poderosos, inventores exóticos, aventureiros

destemidos. Elas têm papéis de destaque em Arton, como é o exemplo do Rei-Imperador

Thormy, líder político do Reinado; Talude, um dos dois arquimagos mais poderosos do

mundo; e Arkam, integrante de um dos mais influentes grupos de aventureiros. São figuras

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importantes para ambientação do cenário: qualquer mago ou feiticeiro conhece sobre Talude,

o mestre máximo da magia, e qualquer habitante do Reinado já ouviu falar do Rei-Imperador

Thormy. Porém, geralmente, a proposta das partidas de RPG é que os personagens dos

jogadores sejam criados por eles mesmos, de forma que tenham um nível de poder menor que

o dessas grandes personalidades. Assim é, pois, primeiramente, as aventuras pautam-se em

desafios a serem superados, e personagens inicialmente poderosos podem ter recursos que

facilitem demais e, portanto, desqualifiquem o vencimento dos desafios. Em segundo, as

aventuras são motivadas por recompensas, e começar a aventura em um estado já de grande

poder, riqueza ou influência dificulta a trajetória evolutiva dos personagens. Sendo assim,

Talude, Thormy, Arkam e outros costumam servir como contextualização ou, no máximo,

como motes para as aventuras: por exemplo, figurando como os responsáveis por solicitar a

atuação dos personagens jogadores, ou garantir as recompensas no fim de uma jornada bem-

sucedida.

Sobre os locais referenciados, trata-se de pontos famosos de Arton, seja pelo mistério

que os envolve, seja pela sua relevância econômica, política, mágica. Assim como as pessoas,

servem de contextualização para as partidas de RPG. Muitos envolvem conflitos a serem

resolvidos. Exemplo é a cidade de Triunphus, vítima do ataque periódico de um monstro

lendário. Também, esses locais podem ter um caráter mais coadjuvante e recorrente, como

pode ser o caso de Vectora, a Cidade nas Nuvens, uma cidade voadora que oferece uma

grande variedade de itens mágicos para qualquer tipo de aventura e aventureiros.

Observamos que os personagens e lugares operam movimentos de memória. Trata-se

de apropriações de figuras comuns ao imaginário fantástico de Idade Média, como são o rei

medieval e o mago ancião. Outros exemplos são os dragões, os cavaleiros, as princesas, os

castelos, a magia. Essas figuras permaneceram na cultura desde as narrativas medievais

fantásticas na obra de Tolkien (2001). Hoje, expandem-se para numerosas outras narrativas,

jogos, etc., principalmente devido ao seu caráter de fantasia, de maravilha, que gera o seu

apelo imaginativo e de consumo. Como defende Adorno e Horkheimer (1998), a Indústria

Cultural vale-se dos elementos da cultura, nesse caso, específicos ao passado, para compor

produtos culturais voltados para os efeitos de divertimento, nesse caso por meio da fantasia.

Porém, de forma não restrita à padronização industrial, notamos que essas

apropriações medievais são ressignificadas de acordo com o estado heterogêneo específico a

Tormenta RPG, em uma relação com a criatividade, a ação criativa dos autores e jogadores na

recombinação das memórias. A fim de nos determos nesse quadro, voltamos nosso olhar

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analítico para o deus Khalmyr, líder do Panteão até os anos mais recentes. Khalmyr representa

a luta entre o bem e o mal, e marca forte presença nas descrições do cenário e no tema das

narrativas e aventuras publicadas.

Figura 24 – Khalmyr, Deus da Justiça

Fonte: http://glad-you-came.weebly.com/uploads/5/7/4/8/5748319/2642210.png

Khalmyr, deus da justiça, foi por muito tempo o líder do Panteão, a entidade que

esteve à frente dos outros deuses e cuja natureza refletia maior domínio sobre a existência.

Sobre os aspectos que são atribuídos a Khalmyr, destacam-se a luta contra o mal, a exaltação

do lado justo da guerra, a avaliação ponderada dos atos. Seus devotos costumam ser

cavaleiros e seguir estritos códigos de honra, como aquele que os obriga a nunca matar

inocentes, roubar, mentir ou trapacear. Para eles, a guerra tem valor apenas se voltada contra

os que ferem os ideais da justiça e do bem (CALDELA, 2006).

Os termos associados ao deus Khalmyr são: justiça, ordem, guerra santa, paladinos,

anões, luz. Seu símbolo sagrado é uma espada sobreposta a uma balança, e é comumente

gravado nos tribunais espalhados pelo cenário ficcional. A ilustração do deus representa um

homem vestindo uma armadura e empunhando um escudo e uma espada. Ao fundo, observa-

se a imagem de um edifício de arquitetura clássica (CALDELA, 2006).

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Ao desenvolver análise do fragmento textual concernente a Khalmyr, relacionando os

termos verbais à ilustração da divindade, observamos que o termo guerra e luz se ancoram à

figura de um combatente antigo, que porta suas armas e defesas a fim de enfrentar alguma

espécie de conflito bélico. Logo, vincula-se ao deus um imaginário medieval, “cavalaresco” e

heroico de guerra, ou seja, guerra dada pela espada, escudo e armadura, e enfocada na

performance individual, na disciplina, honra e poder necessários para defender o bem e

destruir o mal.

Entretanto, à ideia da guerra, está sobreposto o aspecto de justiça, que, na ilustração, se

ampara em uma dimensão jurídica, referente ao cumprimento de normas do Estado. Tal

dimensão é representada pela imagem de fundo, que recorre à ideia de uma instituição formal

de julgamento; e pelo símbolo de balança estampado no escudo do Khalmyr, comumente

associado ao poder Judiciário moderno. Em suma, o cenário recorta a guerra medieval, de

caráter “cavalaresco”, mas restringindo suas motivações a um racionalismo moderno, ou seja,

a ideia de um tribunal que julgaria rigorosamente as ações como condenáveis ou não. Trata-se

de uma crença apaixonada, já que o tribunal é alicerçado na avaliação divina dos atos

classificados como “bons” ou “maus”, porém, é imbuído a essa crença um rigor jurídico, de

ponderação. Nesse sentido, a memória atua na ressignificação do imaginário medieval, que

flutua entre a ideia de um julgamento religioso, arcaico, e um julgamento de acepção jurídica,

moderno.

De forma semelhante aos outros movimentos do cenário que mapeamos, há a

ressignificação de um conceito moderno, pautado na racionalidade moderna, pela atribuição

de elementos fantásticos. Nesse caso, acrescenta-se o valor arcaico, de memória, que

desenvolve a articulação do aspecto jurídico a uma entidade divina representante dos

cavaleiros medievais, da guerra contra o mal. Em suma, trata-se menos de um mundo baseado

no passado em si, e mais de um mundo construído nas bases do presente, brincando com as

roupas dos passados e as possibilidades da magia.

A próxima categoria de tópicos que agrupamos da linha do tempo abarca os eventos

relacionados aos “problemas” de Arton, sejam aqueles que já foram solucionados em algum

conteúdo textual das publicações de Tormenta RPG, sejam aqueles que persistem até a “época

atual”. Propomos a divisão desse grupo em três subgrupos.

Primeiro, recortamos os acontecimentos que envolvem narrativas publicadas por

Tormenta RPG, no caso a série de quadrinhos “Holy Avenger” e a trilogia de romances “O

Inimigo do Mundo”. Nem todos esses acontecimentos necessariamente foram retratados por

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essas narrativas, mas podem fazer parte da contextualização dos conflitos que elas envolvem

ou das consequências das ações desenvolvidas pelos protagonistas.

Seguem: “700. Sszzaas, o Deus da Traição, dá início a um plano para tomar o

controle do Panteão, convencendo os outros deuses a criar os Rubis da Virtude e então

roubando-os.”, “1007. O plano de Sszzaas é descoberto pelos demais deuses. Sszzaas é

aprisionado por Khalmyr na forma de um avatar. Começa uma grande caçada aos devotos de

Sszzaas.”, “1107. A Ordem de Sszzaas é extinta, mas os Rubis da Virtude continuam

desaparecidos (...).”, “1391. Primeira aparição do caçador de recompensas Crânio Negro. Um

grupo de aventureiros encontra os Rubis da Virtude em um antigo templo sszzaazita.”, “1392.

O necromante Vladislav Tpish implanta os Rubis da Virtude em um companheiro caído,

criando o Paladino de Arton.”, “1398. (...) Mestre Arsenal derrota o Paladino de Arton em

combate.”, “1400. O Paladino de Arton ressurge, corrompido por Sszzaas. O Panteão é

forçado a aceitar a volta do Deus da Traição, para que juntos consigam derrotar o Paladino.

Crânio Negro se torna o primeiro algoz da Tormenta (...).”, “1403. Destruição da cidade de

Norm por Cavaleiros da Luz corrompidos pela Tormenta. Shivara Sharpblade, rainha de

Trebuck, casa-se com o Príncipe Mitkov Yudennach, na esperança de obter auxílio contra a

Tormenta. O Exército do Reinado enfrenta guerreiros da União Púrpura corrompidos pela

Tormenta, triunfando.”, “1405. O Rei Mitkov é desmoralizado e deposto pelo Rei-Imperador

Thormy. Shivara Sharpblade assume o trono de Yuden. O Reino de Glórienn é tomado pela

Tormenta. Comandados por um Cavaleiro da Luz, um batalhão de deuses menores destrói a

área de Tormenta de Tamu-ra. Glórienn se torna uma deusa menor e escrava de Tauron.

Kallyadranoch, o Deus dos Dragões, retorna ao Panteão.” e “1406. (...) Começa o

repovoamento de Tamu-ra.”

“Holy Avenger” é uma série de quadrinhos produzida pela desenhista Erika Awano e

o roteirista Marcelo Cassaro. O primeiro volume foi publicado em 1999, seguido de 43

publicações mensais. “Holy Avenger” conta a história de um grupo de aventureiros que parte

em uma saga épica no mundo de Arton, em busca dos Rubis da Virtude. Já “O Inimigo do

Mundo” é um romance escrito por Leonel Caldela, publicado em 2004. O livro é seguido por

outros dois romances, que fecham a trilogia: “O Crânio e o Corvo” (2007), “O Terceiro Deus”

(2008). A narrativa trata de um grupo de aventureiros e, posteriormente, um cavaleiro, que

lutam contra a Tormenta.

Como explicado anteriormente, essas narrativas não são publicadas como aventuras a

serem jogadas em partidas de RPG. São histórias contadas pelos autores de Tormenta RPG,

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completas em si mesmas, protagonizadas por personagens também criados por eles. Porém, é

importante perceber que essas tramas derivam de uma ambientação ficcional já estabelecida, e

não o contrário. Os acontecimentos que elas figuram têm suas consequências na atual

conjuntura do mundo de Arton, o material criativo central. Ainda que, considerando a

proposta da publicação atual de Holy Avenger, os jogadores não criem seus próprios

personagens para vivenciar a saga dos Rubis da Virtude, já que o enredo e os personagens já

estão definidos; as consequências da narrativa, como por exemplo, a volta do Deus Sszzaas ao

Panteão, são incorporadas ao cenário. Quando alguém joga Tormenta RPG, pode jogar no ano

em que Sszzaas já está de volta ao Panteão, ou pode até interagir com um dos protagonistas da

série.

Figura 25 – Sszzaas, Deus da Traição

Fonte:

https://vignette.wikia.nocookie.net/tormenta/images/f/f5/Sszzaas.gif/revision/latest?cb=20161209183724&path-

prefix=pt

Esses tipos de acontecimentos oriundos das narrativas de Tormenta RPG tanto

resolvem conflitos do cenário como criam novos. Os protagonistas de “Holy Avenger” e “O

Inimigo do Mundo” não fracassam em todos os seus esforços heroicos e, por isso, alguns

“problemas” de Arton são resolvidos, como demonstra, por exemplo, a vitória contra o

Paladino de Arton corrompido e a destruição da área de Tormenta em Tamu-ra. Contudo, os

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conflitos maiores não são anulados, já que eles são os maiores ganchos para as aventuras de

RPG, e afetam o cenário de forma abrangente. Enquanto o Paladino é derrotado, Sszzaas

ainda consegue executar seu plano maligno para voltar ao Panteão, e enquanto a área em

Tamu-ra é destruída, a Tormenta ainda mantém o seu domínio perverso sob Arton.

Aqui, exalta-se o caráter narrativo do tempo. Géza Szamosi (1994) e Norbert Elias

(1998) ensinam que o tempo passou de um conceito cíclico, repetitivo e afirmativo da

frequência constante dos movimentos da natureza, para um fluxo linear, progressivo. Nesse

fluxo, os acontecimentos passam a ser encarados como irreversíveis, e a mudança é

inevitável. Observamos que Tormenta instaura uma série de mudanças no cenário que cria, ou

seja, não congela o seu mundo, atua nele, transforma-o. “Holy Avenger” e o “Inimigo Do

Mundo” são exemplo disso, gerando consequências irreversíveis em Arton. Porém, há um

cuidado para que as renovações não sejam profundas demais, mantendo o equilíbrio entre a

resolução e a manutenção de “problemas” que podem figurar como desafios para as aventuras

desenvolvidas pelos jogadores.

Além disso, como aponta Michel Certeau (1982), a escrita histórica permite, por

meio de sua base temporal narrativa, conviver as contradições, a alteridade, já que as

diferenças podem coexistir em momentos históricos diferentes. Em Tormenta RPG,

observamos que os diversos conflitos e suas possíveis resoluções estão espalhados pela

continuidade temporal do tempo, são organizados por ela. Assim, o cenário constrói, de forma

análoga ao apresentado por Certeau, um olhar acima desses vários momentos de Arton,

possibilitando que eles sejam vividos pelos jogadores de acordo com as suas disposições

criativas. Pode-se jogar antes ou depois dos conflitos serem resolvidos, em configurações

diferentes do cenário, em momentos históricos marcadamente distintos.

O segundo subgrupo circunscreve os acontecimentos relativos às aventuras

publicadas por Tormenta RPG. Os tópicos são: “633. (...) e Valkaria é aprisionada em Arton

na forma de uma gigantesca estátua de pedra.”, “1251. Em Hershey, uma caravana mercantil

de Tapista é atacada por saqueadores e massacrada. (...).”, “1312. Sartan, um antigo deus

maligno, tenta voltar ao mundo, mas é impedido por um grupo de aventureiros.”, “1381.

Mestre Arsenal chega a Arton trazendo consigo sua máquina de guerra, o Kishin. Ocorre o

Dia dos Gigantes em Valkaria, quando uma luta entre o Kishin e um estranho gigante

extraplanar arrasa parte da cidade. O Kishin é destruído.”, “1384. Mestre Arsenal derrota o

sumo-sacerdote de Keenn e assume seu posto (...).”, “1399. Rhumnam, a espada de Khalmyr,

é roubada de Doherimm pelo assassino conhecido como o Camaleão.”, “1401. Valkaria é

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liberta de seu cativeiro por heróis durante uma aventura épica. Estes aventureiros passariam a

ser conhecidos como “Os Libertadores” e “1406. Mestre Arsenal ataca o Reinado com o

Kishin, mas é derrotado por forças conjuntas de aventureiros. (...)”.

Como apontado anteriormente, as aventuras são um tipo de publicação editorial de

Tormenta RPG. Os acontecimentos que elas envolvem são descritos de forma menos extensa

que os referentes às narrativas, já que grande parte de uma aventura depende da atuação

imprevisível de quem a joga. Contudo, essas sagas podem resultar na solução de grandes

conflitos, gerando extensas consequências no mundo de Arton. Exemplo é a “Libertação de

Valkaria”, que trata sobre o retorno da deusa dos humanos ao Panteão, e “Contra Arsenal”,

que termina com a derrota de um dos mais nefastos e poderosos vilões de Arton.

Figura 26 – A prisão de Valkaria, Deusa da Ambição

Fonte: https://grupokalabouco.files.wordpress.com/2012/02/valkaria.jpg

Ressaltamos o caráter ativo que Tormenta RPG imprime na estrutura temporal da sua

história. Além de o cenário comportar mudanças em sua progressão, compete parte dessas

mudanças à ação dos jogadores. Aqui, o tempo não está apenas associado à regularidade dos

movimentos naturais, mas às arbitrariedades das sociedades humanas. Como aponta Elias, o

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tempo diz sobre os acontecimentos humanos, organiza-os em relação a si mesmos. Nesse

caso, legitima as vitórias, os atos heroicos.

O terceiro subgrupo contém os eventos que se referem aos grandes “problemas” do

mundo de Arton, ainda sem solução. São eles: “632. Ocorre a Revolta dos Três. Os deuses

Tilliann, Valkaria e Kallyadranoch criam a raça lefeu, mais tarde conhecidos como “demônios

da Tormenta”, “633. Os deuses revoltosos são descobertos e punidos. Tillian perde seu status

divino e enlouquece, Kallyandaroch é totalmente esquecido”, “1251. (...) Início da “proteção”

dos minotauros a Hershey.”, “1312. (...) A Praga Coral é liberada sobre o reino de Lomatubar,

exterminando os orcs locais e encerrando as Guerras de Lomatubar.”, “1364. O mais recente

eclipse total do sol. Nasce Thwor Ironfist, o futuro general bugbear (...).”, “1384. (...) Em

Lamnor, a princesa élfica Tanya é raptada por Thwor Ironfist. Isso leva à formação da Aliança

Negra dos goblinóides, sob a liderança de Thwor.”, “1385. Thwor Ironfist derrota o avatar de

Glórienn com as próprias mãos. Cai a nação élfica de Lenórienn. Formação dos Elfos Negros

de Berforam, devotados a Tenebra.”, “1390. Thwor Ironfist detém sua marcha antes de chegar

a Khalifor. A primeira manifestação da Tormenta destrói Tamu-ra.”, “1398. (...) Uma área de

Tormenta se forma ao norte do reino de Trebuck, trazendo pânico ao Reinado (...).”,

Ainda, são: “1400. (...) Thwor Ironfist toma Khalifor e inicia a conquista de

Tyrondir. A Tormenta avança sobre Trebuck e toma o Forte Amarid. O Exército do Reinado

marcha contra a Tormenta na Batalha de Amarid. O ataque fracassa, e descobre-se a

existência dos Lordes da Tormenta (...).“1402. Formação da Área de Tormenta de Zakharov.

Descobertas sobre os lefou. Um barão de Hershey tenta alertar o Reinado sobre uma invasão

de Tapista. Desacreditado, tenta organizar uma resistência, mas é morto pelos minotauros.

Invasão e escravização de Hershey pelos minotauros de Tapista.”, “1406. (...) Com a

escravidão de Hershey por Tapista, começam as Guerras Táuricas. Os minotauros conquistam

diversos reinos, formando o Império de Tauron. Thormy é tomado como refém, e Shivara

Sharpblade assume como Rainha-Imperatriz. Tauron assume o posto de líder do Panteão (...).”

e “1407. Com o fim das Guerras Táuricas e a derrota de Arsenal, começa a reconstrução do

Reinado. Callistia, Nova Ghondriann e Salistick se separam do Reinado, formando a Liga

Independente.”

As Guerras Táuricas são os conflitos que seguiram a invasão do Reinado pelo

Império de Tapista, nação escravocrata governada por minotauros e protegida por Tauron, o

deus da força. A Aliança Negra é o exército de humanoides monstruosos que, unidos pela

liderança do temido general Thwor Ironfist, dizimaram as comunidades humanas e élficas do

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continente do sul. Tormenta é a tempestade rubra que invadiu Arton e corrompe a realidade

com uma existência alienígena e brutal. Esses são alguns dos maiores “problemas” de Arton.

Eles são descritos nos guias gerais, como é “Tormenta RPG”, ou em publicações específicas,

como “Área de Tormenta”, e “Guerras Táuricas”.

Ao longo das publicações de Tormenta, esses conflitos foram sendo atualizados com

acontecimentos inéditos. Como exemplo temos a formação de uma nova área de Tormenta no

centro do Reinado e a própria invasão dos minotauros. Ainda, alguns livros de Tormenta

RPG, sejam de aventuras ou narrativas convencionais, giram em torno de “problemas”

secundários causados por esses desastres maiores, não os resolvendo diretamente, mas

contextualizando-os em seus desdobramentos. “Excursão à Aliança Negra” é uma aventura

que propõe a infiltração dos aventureiros nas legiões do exército de monstros, a fim de coletar

valiosas informações de guerra para o Reinado. Já “O Inimigo do Mundo” trata sobre o

primeiro contato dos mortais com a Tormenta, além de contar a reação dos deuses ao saberem

da chegada da tempestade alienígena.

Figura 27 – Thwor Ironfist, líder da Aliança Negra

Fonte:

https://vignette3.wikia.nocookie.net/tormenta/images/f/f7/Thwor_Ironfist.jpg/revision/latest?cb=2015073012474

9&path-prefix=pt

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O caráter inacabado de Tormenta ressalta-se nos conflitos não resolvidos, que se

abrem para aventuras, pedem a ação dos jogadores. Tormenta oferece a matéria-prima para as

partidas de RPG, indicando alguns caminhos de jogo. Esses caminhos são orientados por

desafios a serem vencidos em atos heroicos, por meio de poderes mágicos, de perícia ou de

combate: Tormenta é um conflito sobre monstros e seus efeitos devastadores, a Aliança Negra

é um conflito sobre exércitos e vilões profanos, as Guerras Táuricas são um conflito sobre

exércitos e política. Porém, dentro das indicações de combate, aventuras, heroísmo, o futuro

abre-se para as possibilidades de cada partida de RPG. Tormenta é lançada para o futuro, pois

o futuro é incerto, está a ser construído. Nas lógicas de consumo, a dinâmica de jogo é

oferecida em múltiplos universos simbólicos, mas os desdobramentos dessa dinâmica e desse

jogo são imprevisíveis.

Em referência à obra de Michel Certeau (1982), notamos que a escrita da história tem

um fim didático, ensina sobre o presente pelo passado. No caso do cenário ficcional, ensina-se

a configuração do mundo de Arton como forma de orientação para partidas de RPG nele

ambientadas. Ainda que não sejam apresentados meios claros para as resoluções dos

problemas, há a indicação de que esses problemas possam ser resolvidos, de que as aventuras

possam revolver em torno deles ou das suas consequências. Trata-se de um ensinamento de

consumo, caminhos para se consumir Tormenta RPG.

O último tópico da linha do tempo é: “1410. Época atual.” Esse é o momento em que

o cenário está: até aqui estão inclusos todos os acontecimentos já referenciados nas múltiplas

publicações editorais de Tormenta RPG. Essa indicação não significa que os jogadores não

possam mais vivenciar aventuras passadas em anos anteriores. Porém, atualmente, o que

acontece a partir de 1410 é inteiramente determinado pelas tramas que se desenvolvem nas

partidas, mesmo que possivelmente baseado nas narrativas já estabelecidas pelo cenário.

Tormenta RPG oferece um substrato criativo, um passado rico em conflitos, reinos, raças e

deuses. É essa memória fantástica que é consumida para a construção do presente

imprevisível do jogo de RPG. Para manter o presente fresco, o cenário vai apontado para

novos futuros, resolvendo os conflitos antigos, por meio de aventuras, e constantemente

desdobrando os conflitos maiores, por meio de manuais.

A fim de investigar o caráter presente e imprevisível dos jogos de RPG, construímos

análise em torno de um personagem de Arton que, curiosamente, envolve diretamente a

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temática dos jogos e da imprevisibilidade. Ele é Nimb, o deus do caos e uma das entidades

mais poderosas do Panteão.

Figura 28 – Nimb, Deus do Caos

Fonte: http://glad-you-came.weebly.com/uploads/5/7/4/8/5748319/6303829.png

Nimb, deus do caos, é também o deus do acaso, dos eventos inesperados, da sorte e

do azar. Ele é considerado louco e, devido ao seu grande poder e instabilidade, é tido como

uma entidade altamente perigosa. Muitos dos seus seguidores acreditam que Nimb é o

verdadeiro líder do Panteão, dada a proporção cósmica do que representa, e a sua aberta

oposição a Khalmyr, deus da ordem. Esta divindade acredita na aleatoriedade da existência, e

na constante mutabilidade do destino, que, de acordo com ele, é tão previsível quanto a

rolagem de um dado (CALDELA, 2006).

Os termos associados a Nimb são: caos, sorte, azar, loucura, coragem, aventureiros.

Seu símbolo sagrado é a figura de um dado de seis faces. A ilustração de Nimb representa um

homem de cabelos brancos vestindo terno, colete e cartola, empunhando um dado de vinte

faces e outro de dez faces. Seu olhar fixo, sorriso largo, e postura sugerem algum tipo de

obsessão intimidadora. Ao fundo, podemos observar uma imagem disforme, que, como

descrito no texto verbal, representa a natureza de instabilidade e indefinição do deus.

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O termo loucura, apresentado no fragmento verbal do texto, vincula-se, na imagem,

com a postura obsessiva de Nimb, como entidade ameaçadora, de ações imprevisíveis e

perigosas. Ademais, notamos que o deus assemelha sua aparência com a representação dos

leprechauns, fadas da mitologia irlandesa conhecidas por sua malícia, astúcia, poder mágico,

e promessa de riqueza. Percebemos que o cenário se apropria da figura folclórica do

leprechaun a fim de emprestar caráter de boa sorte e boa fortuna ao deus, mas aliando tais

atributos à instabilidade da loucura e do caos, à inesgotável possibilidade do azar, do

infortúnio.

Figura 29 – Leprechaun em sua representação contemporânea

Fonte: http://www.njfamily.com/NJ-Family/March-2013/Leprechaun-Tricks/Leprechaun.jpg

Já os dados que giram nas mãos de Nimb desdobram as características de acaso

atribuídas pelo texto verbal. O perigo da instabilidade insana é suavizado por uma dimensão

lúdica, posto que os dados representam uma força de imprevisibilidade própria aos jogos,

sejam eles mais ou menos dependentes da sorte. No que se refere especificamente ao RPG,

notamos, como descrito, que ele costuma basear sua dinâmica em dados (de diversa

quantidade de faces) a fim de simular o aspecto de aleatoriedade das ações no mundo e,

assim, construir verossimilhança. Nesse sentido, ainda que o RPG se trate de um jogo, um

ambiente de simulação, um círculo mágico (HUIZINGA, 1980) imune ao perigo inerente ao

curso de ações irreversíveis do cotidiano, empresta o peso dessa irreversibilidade com

objetivo de criar um mundo fictício fortemente amparado nos nexos simbólicos do mundo

real. Os dados, como em outros jogos, representam a ameaça do fracasso e a esperança do

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sucesso, e, no RPG, transitam entre o prazer da fantasia e o medo das consequências,

ficcionais, mas espelhadas na realidade (como, por exemplo, o perigo de morte do

personagem interpretado, a possibilidade do seu fim definitivo). Em suma, nota-se que os

sentidos do texto são ambíguos, oscilam entre uma instabilidade insana, perigosa e

destruidora, e uma incerteza lúdica, divertida e emocionante.

4.4 Segunda análise

Propomos, a partir dos olhares desenvolvidos na primeira parte da análise, a secção da

linha do tempo em três fragmentos, cujas justificativas analíticas são apresentadas a seguir. A

partir desse ponto, passamos a operar as categorias: permanências, ausências e

transformações. Elas foram criadas com o propósito de comparar as lógicas temporais e de

memória em Tormenta RPG com o contexto contemporâneo de temporalidades

contemporâneas, cultura da memória e cultura do consumo.

4.4.1 Passado

Consideramos, neste fragmento, os tópicos entre “7 bilhões de anos atrás (...)” e “1399

(...)”. Tais marcações temporais têm a qualidade comum de indicar eventos passados se

considerarmos qualquer uma das cronologias construídas pelas várias publicações editoriais

de Tormenta RPG: desde o primeiro manual até os livros mais atuais. Como apontado

anteriormente, ao longo do tempo, o cenário gradualmente acrescentou acontecimentos mais

recentes, que foram sendo incorporados em novos anos e ampliaram a extensão da sua linha

temporal. Os acontecimentos deste fragmento são considerados fixos, ou seja, servem como

“passado” para qualquer “presente” do cenário.

Alguns apontamentos devem ser destacados. O primeiro deles refere-se às

características dos tópicos entre “7 bilhões de anos atrás.” e “90 mil anos atrás.”, antecedentes

ao ano “0”. Esses tópicos apresentam marcações temporais em uma estrutura particular: um

número seguido pela expressão “de anos atrás”. Ainda, nota-se que não há determinações

temporais precisas, mas a indicação de vastos períodos, na grandeza dos milhões e bilhões de

anos. Por fim, como mapeado na primeira parte da análise, todos os eventos assim

referenciados são acontecimentos cósmicos, que indicam a criação do mundo, criação de

aspectos físicos do mundo e a criação dos seres vivos.

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Figura 30 – Passado: primeira seção

Fonte: BRAUNER, Gustavo; et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010.

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Este fragmento da linha do tempo opera permanências em relação às estruturas

temporais do conceito moderno de história, como defendido por Koselleck (2006) pois, ao

instaurar um “começo dos tempos” marcado pela criação de múltiplos aspectos da realidade,

empresta caráter de narrativa universal ao passado, ordenando sob o lastro de um mesmo

ponto de partida acontecimentos que vêm “antes” e que causam os que vêm “depois”. Aliado

a isso, os eventos operam transformações em relação à natureza do “começo dos tempos”,

que, apesar de se conformar à noção linear do tempo, é engendrado por entidades mágicas de

forma semelhante às narrativas míticas e religiosas.

Não apenas em relação à gênese, os aspectos físicos do nosso cotidiano e o surgimento

da vida são transformados de forma a serem imbuídos de um caráter fantástico. Porém, as

estruturas temporais, em si, permanecem e não sofrem transformações drásticas, tanto no que

concerne ao conceito moderno de história, à prática da escrita histórica e ao tempo como

síntese de abstração alta. Em relação ao tempo como síntese de abstração alta, evidenciamos a

utilização de uma estrutura numérica de “anos atrás” em referência ao presente, e a disputa de

Azgher e Tenebra pelas doze horas de luz e escuridão. Já em relação à prática da escrita

histórica, observamos o movimento de definir um ponto inicial, um vazio primordial antes do

tempo (CERTEAU, 1982), assim como de preencher simbolicamente os silêncios do passado.

Há o exercício de domínio do curso da história, de pontuação dos seus limites, de

preenchimento de suas lacunas, tanto no passado como no futuro: nesse caso, em favor da

experimentação das partidas de RPG.

Em relação à grande quantidade de anos que são mobilizados neste fragmento,

notamos que Tormenta RPG cria passado distante a fim de contextualizar a atual configuração

do presente do cenário. Esse passado nutre continuidade com esse presente, no sentido de que

introduz entidades ou raças que existem e são atuantes no mundo até a “época atual”,

alongando conflitos ancestrais pela linha do tempo. Exemplo disso é Megalokk, que ainda

nutre sentimento de revolta por Khalmyr, o responsável por restringir seus domínios. Há um

movimento de ausência em relação à descontinuidade apresentada por Nora (1993) e Huyssen

(2000), já que os autores defendem que, no contemporâneo, a história não sustenta a

identidade do presente, figurando como um objeto distante e cindido. De forma diferente,

Tormenta RPG parece construir a própria história e memória já a favor da identificação do

presente do jogo, ou seja, a memória é artificialmente construída para simular-se orgânica.

Em seguida, nota-se que os passados são restritos a determinados universos simbólicos

inseridos em Tormenta, em vez de estarem diluídos pela totalidade do cenário. Exemplo é a

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região das Montanhas Sanguinárias, refúgio atual para as bestas de Megalokk. Nesse sentido,

há um movimento de permanência, posto que, como defende Nora, a memória contemporânea

é delimitada a lugares, espaços artificialmente construídos para evocar o tempo perdido. Em

suma, percebe-se que o passado ficcional existe como uma construção simbólica que serve ao

presente, ou seja, é contínuo e orgânico a ele. Porém, é também restrito a determinados

lugares e não é imperativo que a memória seja contínua ao presente: os universos simbólicos

podem ser escolhidos por quem joga. A própria história ficcional torna-se um lugar de

memória, orientada para a constituição de diversos espaços de consumo e divertimento.

Como investigado, a linha do tempo é atravessada pela recorrente significação

fantástica dos eventos passados. Por exemplo, a era dos dinossauros é atribuída ao reinado de

um deus tirano. Assim, há um movimento de transformação, já que o passado contemporâneo

é imbuído de um espírito de fascínio e, especificamente em Tormenta, esse fascínio é

instaurado pela fantasia. A cultura da memória, que, de acordo com Huyssen (2000), gira em

torno da quase obsessão por construir escapes à instabilidade e efemeridade do agora, parece

não dizer, no caso do objeto dessa pesquisa, sobre uma desaceleração do tempo. De outra

forma, o texto mobiliza passados a fim de aproveitá-los em seu aspecto fascinante, para que

sejam aproveitados como substrato de criatividade, consumo, divertimento. Por meio desse

movimento, é possível viver uma realidade outra, do jogo, mais ou menos livre nas

associações criativas.

Adiante, levantamos as propriedades dos eventos entre “0” e “1399.”. Tais marcações

temporais são mais precisas que as anteriores, já que cada uma está pontuada por um

algarismo indicando a quantidade de anos decorridos a partir do “ano 0.”. Nota-se, também,

que a maioria dos acontecimentos inseridos nesta seção faz referência a fundações de centros

de civilização, guerras e outros conflitos, relações políticas entre povos e raças, lugares

famosos e personalidades notáveis.

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Figura 31 – Passado: segunda seção

Fonte: BRAUNER, Gustavo; et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010.

Neste fragmento da linha do tempo, o movimento de permanência repousa na

contagem de anos a partir de um ano 0, infundindo lógica de continuidade e progressão.

Assim como na realidade contemporânea, empresta-se um sentido unidirecional para a

história, que impele o sequenciamento de acontecimentos para o futuro. Como transformação,

observa-se que a linha do tempo de Arton, diferente do conceito moderno de história, não tem

seu ano 0 pautado nos eventos de narrativas religiosas. De forma oposta, o ano 0 de Tormenta

RPG define o fim dos acontecimentos míticos e o início da história das civilizações que,

mesmo fantásticas, não têm seus traços mágicos aqui ressaltados.

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Ademais, percebemos que as linhas históricas referentes às raças, reinos e deuses,

seguem pelos anos, entrelaçando-se. Há a compressão de passados na totalidade de Tormenta

RPG de forma coerente à proposição de que os lugares de memória são imbuídos de um

caráter de produto (HARTOG, 2014). Como permanência, encontramos os efeitos de fascínio

pelo passado conjugados no produto que é Tormenta RPG, assim como a articulação do apelo

dramático e fascinante da história nos tempos contemporâneos. Como apontado por Hartog e

como engendrado pelo objeto de pesquisa, o passado contemporâneo multiplica-se, torna-se o

mosaico de plurais linhas históricas, futuros possíveis guiados pelo olhar presentista.

Na porção da linha do tempo que agrupamos como “passado”, notamos, com base na

primeira parte da análise, uma aparente cisão entre acontecimentos de qualidade pré-histórica,

fantásticos, mitológicos, cosmológicos, antes do ano 0; e acontecimentos de qualidade

civilizatória, com enfoque em eventos mundanos, quase independentes dos aspectos mágicos

do cenário, depois do ano 0. Contudo, nessas duas qualidades, a linha do tempo é composta

por múltiplas linhas narrativas menores, referentes às trajetórias das raças, deuses, reinos.

A heterogeneidade de Tormenta RPG é um traço que remete às temporalidades

contemporâneas. Como defende Bauman (2009), as múltiplas vivências pós-modernas são

fluidas, comprimidas na curta duração do tempo. Em Tormenta RPG, essas vivências são tão

fluidas quanto a facilidade de começar e recomeçar as partidas de RPG, tão múltiplas quanto a

oportunidade de passar pelos mais variados desafios, visitar os mais variados lugares, criar os

mais variados personagens, em variadas narrativas e aventuras. Tormenta RPG cria um

mosaico de memória e ludicidade, no qual os ciclos de consumo (BAUMAN, 2001) podem

ser engendrados inúmeras vezes, dada a abundância de universos simbólicos a serem

aproveitados e desafios em aberto a serem enfrentados. Nesse sentido, a linha do tempo

promove movimento de permanência em relação às temporalidades contemporâneas.

Já a memória vale-se como identificação de consumo, considerando que Tormenta

RPG não recria uma Idade Média, ou nem uma outra idade passada. De outra forma, cria a

sua própria existência paralela, formada pelo mosaico de apropriações. O imperativo é que

tais apropriações sejam diversas, a fim de estender as possibilidades de divertimento.

Contudo, Harvey disserta que a pós-modernidade é marcada pela aceitação das formas

heterogêneas, fragmentárias, sem a tentativa de encontrar verdades fixas em meio a esse

estado de ambiguidade. Em Tormenta, apesar de reconhecemos a alteridade, compreendemos

que, no movimento de escrita de uma história ficcional, delimitada por uma gênese e

preenchida em seus silêncios, há a construção de um olhar distanciado e fixo do cenário em

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relação a si mesmo. Ainda que esse olhar esteja dependente das partidas de RPG, de forma

presentista, consiste em um movimento de transformação em relação às temporalidades

contemporâneas. A verossimilhança, as regras do jogo, os manuais, a escrita, são instrumentos

que andam no sentido de cristalizar a dinâmica das partidas de RPG, pautadas na fluidez

criação, oralidade e improvisação dos consumidores.

4.4.2 Presente

Este fragmento contempla os tópicos iniciados em “1400.” e encerrados em “1407.”. A

existência ou não destes tópicos depende do livro usado como referência. Ao longo das

publicações, o cenário estendeu sua linha de tempo em novos anos e acontecimentos, ou seja,

atualizou-se pela inserção de novas narrativas, já futuras em relação ao “ano presente” do

primeiro livro de Tormenta RPG. Logo, neste fragmento, estão inclusos os anos que foram

introduzidos após o nascimento oficial do cenário.

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Figura 32 – Presente

Fonte: BRAUNER, Gustavo; et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010.

O primeiro traço que evidenciamos neste fragmento da linha do tempo é o menor

número de tópicos e menor abrangência temporal em relação ao fragmento antecedente.

Percebe-se que há a descrição de apenas sete anos diferentes (1400, 1401, 1402, 1403, 1405,

1406, 1407), que abrangem o período total de apenas oito anos (de 1400 a 1407), em contraste

com os tópicos anteriores, que descrevem setenta anos com abrangência de um período de

1400 anos, depois do ano 0. Nota-se, também, que o volume de texto para cada ano é maior,

em uma média de mais acontecimentos e descrições por tópico.

Tormenta RPG é um cenário apresentado repetidamente como “um mundo de

problemas”. A exemplo disso, na página 14 do livro “Tormenta RPG” (2010), o subcapítulo

intitulado “Um Mundo de Problemas” introduz os maiores conflitos que assolam Arton,

pretextos para aventuras. Como explicado anteriormente, os maiores são a Tormenta, uma

tempestade de sangue e demônios, e a Aliança Negra, um vasto exército de monstros que

ameaça destruir o centro da civilização. Os dois são conflitos de grande proporção e

complexidade, e não são apontados meios claros para a sua resolução. Ademais, existem

outros “problemas” de menores proporções, como a ameaça de Mestre Arsenal, um vilão

devoto do Deus da Guerra, e o aprisionamento de Valkaria, a Deusa dos Humanos. No que se

refere a esses últimos, existem publicações de aventuras semiestruturadas correspondentes

(“Contra Arsenal”, e “A Libertação de Valkaria”). A recompensa de cumprir uma dessas

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aventuras e vencer os desafios propostos, em partidas de RPG, é a resolução do em questão,

como a derrota de Mestre Arsenal e a liberdade de Valkaria.

Na primeira etapa da análise, percebemos que os acontecimentos inclusos neste

fragmento se referem aos “problemas” do cenário, tanto no apontamento de seus desfechos,

como nas atualizações sobre os conflitos maiores. Apesar de não ser necessário cumprir as

aventuras oferecidas por Tormenta RPG para apropriar-se desses acontecimentos, o cenário,

ao indeterminar quem “libertou Valkaria”, e quem “derrotou o Mestre Arsenal”, abre espaço

para a atuação dos jogadores. Sendo assim, esses tópicos pretendem representar a

performance de quem joga, ainda que conformada a caminhos narrativos predefinidos.

Há um rompimento com o grupo que intitulamos como “passado”, dado o

movimento veloz de resolução dos “problemas” ancestrais que se estendiam desde os anos

fixos e comuns a todas as publicações de Tormenta RPG. Logo, como permanência em

relação ao conceito moderno de história (KOSELLECK, 2006), nota-se a reorientação do

curso de acontecimentos iniciados no passado, que, por sua vez, pode ter seus conflitos

solucionados em poucos anos. Tal reorientação convoca a atuação de quem joga, com o

objetivo de transformar o mundo fictício em um mundo melhor, livre de “problemas”.

Contudo, como transformação, a ruptura do passado pelas ações do presente, de forma

incongruente com o conceito moderno de história, viabiliza-se por meio de aventuras e

desafios heroicos, no presente do jogo, e não pela idealização de utopias futuras.

Nesse ponto, entendemos que são as dinâmicas de consumo que mobilizam o

passado em forma de conflitos e aventuras que os resolvam. Como Harvey (1989) defende, a

pós-modernidade assistiu à articulação de imaginários e fantasias na diversificação dos

produtos com fim de renovar mais rapidamente os ciclos de consumo. Em Tormenta RPG, há

essa articulação e diversificação de imaginários e fantasias. Tormenta RPG é ainda mais

fluida que os produtos físicos, já que, por meio de uma única materialidade que são as

publicações editoriais, permite a visita à múltiplos universos simbólicos combináveis entre si.

As únicas restrições nesse sentido, como apontado, são a verossimilhança do cenário, as

regras, entre outros. Logo, o destaque do presente de Tormenta RPG como visita das faces do

passado, ou seja, a oferta de consumo de diversos subprodutos inseridos na cosmologia total

do cenário, consiste em uma permanência em relação às temporalidades contemporâneas

articuladas ao consumo.

No que concerne às atualizações do cenário que são pontuadas neste fragmento,

entendemos que se trata de um movimento de permanência em relação ao quadro observado

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por Bauman (2009) e Campbell (2008). Bauman entende que a modernidade líquida imbui o

longo prazo com uma sensação de risco, valorizando os movimentos de curto prazo e

renovações simbólicas. Em Tormenta RPG, entendemos que as atualizações do cenário, a

construção de novos anos, trabalham nesse caminho, renovando as possibilidades de

aventuras e seus apelos de consumo. De forma ainda mais acirrada, a diversificação de

imaginários e fantasias e suas atualizações constantes estão em diálogo com os ciclos de

consumo como observados por Campbell. O autor entende o consumo contemporâneo como

um movimento de prazer gerado pela diferença entre a atual insatisfação e a potencial

satisfação. Em Tormenta RPG, as aventuras, como observado, desenvolvem-se nessa lógica,

de idealização das recompensas e da resolução dos conflitos. Esses ciclos são renovados

justamente pela atualização dos problemas maiores, pela resolução de outros problemas, e

pelo surgimento de outros. Aí reside o caráter dos tópicos inseridos neste fragmento.

A partir desse mapa, constrói-se um espaço de afeto, de identificação afetiva com os

movimentos de memória operados pelo cenário. Maffesoli explica que há, na pós-

modernidade, o retorno a valores arcaicos que, por sua vez, sustentam os pactos não racionais.

Há um misto de modernidade e arcaísmo (HARTOG, 2014), e as tradições são amplamente

inventadas para gerar substância para o presente. Como transformação, no caso de Tormenta

RPG, todo o tempo é reinventado de forma fantástica, e o contexto de consumo efetiva os

valores afetivos da memória de forma não a retomar valores arcaicos, mas a gerar um

ambiente lúdico, de entretenimento, que permita ações despretensiosas.

4.4.3 Futuro

Neste fragmento, encontra-se apenas o último tópico: “1410. Época atual.” Ainda

que pareça contraditória tal classificação, optamos por agrupar esse tópico como “futuro” pois

ele mantém uma natureza de abertura para os eventos indefinidos, que ainda não aconteceram,

mas poderão acontecer. A partir dessa data, enquanto o cenário não se atualizar, cabe aos

jogadores, na mobilização de suas partidas, definir o que se seguirá.

Figura 33 – Futuro

Fonte: BRAUNER, Gustavo; et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010.

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É importante atentar, como permanência, que o futuro da linha do tempo é lançado

ao desconhecido assim como é percebido o futuro referente ao conceito moderno de história.

As ausências, porém, indicam que a linha do tempo de Tormenta RPG não se utiliza do

conceito de progresso. Por fim, como transformação, percebemos que, apesar de o esforço

esperado dos jogadores voltar-se à resolução dos “problemas” atuais do cenário, fundando

assim as bases de um mundo melhor, esse percurso não é guiado pela idealização de um

estado utópico, desejado e que se possa planejar. De forma diferente, o futuro é construído por

ações fragmentadas, completas nas resoluções de cada “problema”, encerradas nas próprias

aventuras.

Hartog (1989) defende que, a partir da pós-modernidade, o olhar para o futuro passou

a estar ancorado na proximidade com o presente, comprimindo as expectativas do porvir na

vivência dilatada do agora. Assim, os futuros foram simbolizados de acordo com as

exigências do presente que está sempre em mutação, é ao mesmo tempo efêmero e

hipertrofiado. Podemos observar movimentos de permanência em relação ao defendido por

Hartog, posto que o cenário não define nenhum traçado de futuro a não ser a sugestão de que

se resolva os problemas apresentados. Esses futuros múltiplos e curtos são modificados de

acordo com as atualizações do cenário, que introduzem novos conflitos ou desdobram suas

consequências. Além disso, como permanência, o presente de Tormenta RPG pode ser

entendido como sempre em mutação, já que as partidas de RPG transitam entre vários

momentos de Arton. De forma análoga ao desenvolvido por Hartog, além de dilatados, trata-

se de presentes efêmeros, baseados no improviso e na oralidade, e que eventualmente podem

calcificar-se na narrativa oficial do cenário.

No que se refere às reflexões articuladas por Harvey (1989), Bauman (2009), Hartog

(2014), Tormenta opera ausências em relação às temporalidades contemporâneas, posto que o

futuro não é colocado como um lugar inacessível. De outra forma, o futuro em que os

problemas estão resolvidos, os desafios cumpridos e as recompensas ganhas é o que move as

narrativas e aventuras do cenário. Porém, são operadas permanências no sentido de que essas

narrativas e aventuras apenas existem no momento presente, e se atualizam por meio da

constante renovação de futuros incompletos. A ação está no presente, e não na utopia. Como

discorrido, um dos movimentos do cenário é atualizar Arton a fim de que os desafios não se

esgotem, para que assim o consumo persevere.

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Conclusão

O primeiro objetivo específico dessa pesquisa foi: delimitar as lógicas referentes às

temporalidades contemporâneas, destacando o papel do consumo e da memória cultural nesse

quadro. Nesse sentido, construímos o segundo capítulo da dissertação visando a delimitação

do tempo como ferramenta social, desde o seu desenvolvimento biológico até às diferentes

cargas simbólicas que teve ao longo das sociedades humanas, culminando no advento da

modernidade. No terceiro capítulo, mapeamos a pós-modernidade e as temporalidades

contemporâneas, tendo como enfoque o consumo, no que toca a aceleração, fluidez, a

instantaneidade; e a memória, nas relações entre passado, presente e futuro.

No quarto capítulo, desenvolvemos a análise de Tormenta RPG em duas etapas. Elas

visaram responder aos dois últimos objetivos específicos: mapear representações de tempo e

suas associações com imaginários fantásticos da Idade Média e de outros períodos históricos

em Tormenta RPG, comparar a temporalidade interna de Tormenta RPG com as lógicas

temporais próprias às dinâmicas da cultura do consumo e cultura da memória.

Compreendemos que Tormenta RPG, ao construir suas representações, apropria-se das

estruturas temporais próprias ao contexto contemporâneo.

É feita escrita histórica que “narrativiza” os acontecimentos ficcionais em um curso

universal de causalidades, lançado para o futuro. Logo, constrói-se um tempo linear,

progressivo e como síntese de abstração alta, com datas pontuadas. Entendemos que há a

construção de um lugar reconhecível para que haja identificação no consumo realizado pelos

leitores de Tormenta RPG. Nesse caminho, está a gênese inscrita em um formato de datação.

Também está o dia e a noite, divididos em quantidades de horas. Está o surgimento da vida,

dos oceanos para a terra. Também está a era dos dinossauros, pelo exotismo que esses répteis

suscitam. Todos esses elementos reconhecíveis, que se estabelecem em uma estrutura

temporal contemporânea, são imbuídos de traços fantásticos e mitológicos. Porém, a

mitologia não acompanha as estruturas temporais das sociedades arcaicas. Há apenas a

utilização do fantástico em seu caráter de apelo, fascínio. Ressignificando-se, gera-se, além da

identificação, o inesperado. Tormenta vale-se de modelos arcaicos não para construir um

passado, mas para construir uma realidade presente alternativa, com magia, deuses, elementos

medievais e de outros períodos históricos.

Ademais, notamos que Tormenta RPG tem na heterogeneidade seu aspecto maior,

fazendo coexistir diversos universos simbólicos em um mesmo plano. Esse movimento pode

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ser observado na construção de várias linhas históricas referentes às várias raças, aos vários

deuses. Os conflitos que se estabelecem entre essas diferenças são fonte dos desafios para os

jogadores, assim como a base para o seu divertimento, a sua vivência lúdica. Observamos que

a experiência da alteridade reside em algumas faces de Tormenta RPG. Primeiro, reside na

dinâmica de criação de personagens, que transitam entre raças e classes, sendo que cada uma

é lastreada por motivações, padrões de ação, conjuntos de habilidades específicas. Assim,

cada personagem pode experimentar universos simbólicos contrastantes entre si, podendo, até

certa medida, combiná-los. Em segundo, os personagens podem sair em aventuras de

naturezas diversas, passear por lugares diferentes, em reinos com culturas e geografias muito

demarcadas. Por fim, enquanto os próprios desafios apresentados originam-se no conflito

entre heterogeneidades, as soluções apontadas repousam na possibilidade de cooperação entre

as diferenças.

No que se refere a esse quadro, há a compressão de vidas ficcionais nos presentes dos

jogos. As experiências de consumo passam pela criatividade dos consumidores, que edificam

suas aventuras de acordo com a improvisação e oralidade das partidas. Tormenta RPG, por

sua vez, oferece um mundo verossímil que comporte a ferramentas a serem mobilizadas nesse

consumo criativo. Com base nesse pensamento, Tormenta RPG é presentista, os elementos

estão comprimidos em um mesmo espaço simbólico e temporalidade interna a fim de servir

aos presentes dos jogos. O passado serve como identidade dos conflitos que culminam no

presente do jogo. Ele simula uma memória cindida, devorada pelo presente. A partir do

passado, há a construção ativa da história, a sua reorientação pela solução dos conflitos

ancestrais em poucos anos. Porém, o futuro aberto, sempre ávido por aventuras, é o motor

desse tempo, e por isso, também é devorado pelo presente. Mesmo que os jogos e a

atualização do cenário provoquem as resoluções dos conflitos, eles devem ser mantidos a fim

de manter a falta do cenário a ser preenchida no consumo. O consumo de Tormenta preenche

as ausências que o cenário dispõe, as suas demandas por aventuras.

A memória, no caso do nosso objeto de pesquisa, atua como meio de fascínio, aliada à

fantasia, à ressignificação de elementos cotidianos. Entendemos que Tormenta RPG porta-se

como produto cultural, ofertando escape simbólico frente ao tempo do trabalho, engendrando

vivências que rompem o cotidiano. Esse escape é suportado pela natureza lúdica e fantástica

que o cenário mantém, e potencializado pela sua mecânica criativa, os consumidores criando

junto com os produtores.

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As bases temporais de Tormenta RPG são semelhantes às do tempo contemporâneo,

no sentido da compressão da experiência, do presentismo, da “progressividade”. Entretanto,

devemos observar que há uma carga de afeto específica a Tormenta, derivada dos mesmos

mecanismos de memória e criação. A natureza criativa do jogo permite que os jogadores

intercalem suas próprias vivências no produto a ser consumido, e a memória permite que os

elementos do passado figurem como lastro frente à perda de referência do presente

contemporâneo. Mantém-se a força da racionalidade moderna, por exemplo, na ideia de

julgamento jurídico, porém, brinca-se com o arcaico e suas combinações. Trata-se de um

movimento presentista, mas que pretende mudar esse presente, imbuí-lo com o fantástico.

Diferente dos fenômenos de cultura da memória que anseiam restaurar a continuidade

do passado com o presente, aqui, o passado é mobilizado em sua forma já cindida, já

descontextualizada, a favor de um universo de fantasia. Não se visa a desaceleração do tempo,

mas a vivência de um outro tipo de tempo, o tempo do consumo e da criação, do exótico, da

compressão.

Em Tormenta RPG, simula-se uma semiosfera na qual a velocidade de transformação

é tão rápida e fluida quanto à improvisação das partidas de RPG e atualizações do cenário.

Ainda que o cenário vise cristalizar os sentidos em publicações editoriais, os elementos

introduzidos pelas novas publicações e pelas partidas construídas pelos consumidores vão

mudando o cenário, resolvendo problemas que antes eram centrais, centralizando universos de

sentido que antes eram marginais. A heterogeneidade dentro dessa pequena semiosfera é

exaltada e o diálogo entre os universos simbólicos gera movimento.

Ainda, nessa semiosfera, há um mecanismo de memória pancrônica, pelo qual

diferentes memórias referentes a diferentes passados coexistem em uma mesma atualidade. O

esquecimento é a base desse quadro: o contexto desses passados é esquecido e os seus traços

são mobilizados em função de uma estrutura temporal contemporânea e um apelo de

consumo. Formam-se vários lugares de memória destituídos de sua função histórica, a serviço

do entretenimento, da vivência do tempo do lazer. Assim, não é pela desaceleração que se

contrapõe o tempo do trabalho: é pela compressão de vivências fantásticas e heterogêneas.

No intuito de desdobrar a discussão pontuada por esse trabalho, sugerimos a

investigação de como a construção das partidas de RPG efetivamente mobiliza as estruturas

temporais estabelecidas por Tormenta RPG, em uma aproximação voltada para os sujeitos que

criam e consomem no cenário. A partir daí, pode-se explorar o outro lado dessa pesquisa, com

enfoque na recepção do material criativo de Tormenta RPG. Com esse esforço, pode-se

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investigar como o tempo e memória engendrados pelas publicações editoriais de Tormenta

RPG são apropriados na prática efetiva dos consumidores, na criação dos seus personagens e

aventuras, em suas próprias temporalidades lúdicas e contemporâneas.

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PETERSON, Jon. Playing at the World: A History of Simulating Wars, People, and Fantastic

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TOLKIEN, John Ronald Reuel. O senhor dos anéis. Tradução de Lenita Maria Rimoli

Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Apêndice

“Uma história parcial

7 bilhões de anos atrás. O Nada e o Vazio se unem para gerar Arton e os vinte deuses maiores

que formariam o Panteão.

7 a 5 bilhões de anos atrás. Azgher, o Deus do Sol, e Tenebra, Deusa da Escuridão, lutam

entre si. A luta termina empatada. Arton recebe doze horas de luz e doze horas de escuridão.

1 bilhão de anos atrás. Uma lágrima de Lena, a Deusa da Vida, preenche os oceanos com as

primeiras criaturas vivas. O Grande Oceano molda essa vida em infinitos seres, incluindo os

elfos-do-mar.

700 milhões de anos atrás. Moldados por Allihanna, a Deusa da Natureza, os seres vivos se

arrastam para a terra firme.

300 milhões de anos atrás. Surgem os dragões, esculpidos por Kallyadranoch.

260 milhões de anos atrás. Começa o reinado de Megalokk, o Deus dos Monstros. Monstros,

dragões, dinossauros e outras bestas gigantes dominam Arton.

65 milhões de anos atrás. Os deuses unem-se contra Megalokk, fulminando seus monstros. Os

dragões recolhem-se, reduzindo sua influência direta sobre o mundo.

57 milhões de anos atrás. Nascidos de Glórienn, surgem os elfos terrestres, em uma região

distante e desconhecida.

22 milhões de anos atrás. Wynna, a Deusa da Magia, cria o povo-fada.

890 mil anos atrás. Khalmyr, o Deus da Justiça, e Tenebra, a Deusa da Escuridão, se

apaixonam. Da sua união nascem os primeiros anões.

230 mil anos atrás. Ragnar, um deus menor, cria os bugbears. Seus irmãos Hurlaagh e

Graolak criam, respectivamente, os hobgoblins e os goblins.

180 mil anos atrás. Hyninn, um deus menor, cria os primeiros halflings, ludibriando Khalmyr.

Os halflings se dividem: os Filhos de Hyninn constroem barcos e partem para o Grande

Oceano, e os Amigos de Marah permanecem nas colinas.

160 mil anos atrás. Valkaria cria a raça humana, destinada a desbravar Arton e desvendar os

mistérios dos próprios deuses.

145 mil anos atrás. Surge a ilha de Galrasia, arrancada de Vitalia, o Reino de Lena. Ali

surgem os primeiros Thera-Psidah (antropossauros).

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100 mil anos atrás. Beluhga, Rainha dos Dragões Brancos, é aprisionada por Khalmyr em

uma cordilheira. A região congela ao longo dos séculos, formando as Montanhas Uivantes.

90 mil anos atrás. Tauron, Deus da Força, cria os minotauros.

0. A frota élfica chega a Lamnor, o continente ao sul. Os elfos expulsam os hobgoblins de seu

território. Fundação da cidade de Lenórienn.

100. Tanna-Toh oferece aos seres humanos o dom da palavra escrita, marcando o início da

civilização.

391. Começa o conflito entre hobgoblins e elfos que ficaria conhecido como a Infinita Guerra.

500. O dragão-rei Sckhar funda o reino de Sckharshantallas.

632. Ocorre a Revolta dos Três. Os deuses Tilliann, Valkaria e Kallyadranoch criam a raça

lefeu, mais tarde conhecidos como “demônios da Tormenta”.

633. Os deuses revoltosos são descobertos e punidos. Tillian perde seu status divino e

enlouquece, Kallyandaroch é totalmente esquecido, e Valkaria é aprisionada em Arton na

forma de uma gigantesca estátua de pedra.

700. Sszzaas, o Deus da Traição, dá início a um plano para tomar o controle do Panteão,

convencendo os outros deuses a criar os Rubis da Virtude e então roubando-os.

750. Khalil de Gordimarr organiza uma expedição ao continente de Ramnor (mais tarde

conhecido apenas como Arton).

809. Os anões se recolhem aos subterrâneos, convocados pelo Chamado às Armas, em guerra

contra seus inimigos, os trolls.

830. Fundação de Tamu-ra, o Império Jade.

900. Os orcs escravizam os minotauros. Goratikis organiza um exército de minotauros e lidera

seu povo em uma revolta. Os minotauros começam a fundar uma cidade própria.

950. Em Lamnor, ocorre a Grande Batalha. Os derrotados são exilados para Ramnor.

951. Formação do reino de Tapista.

960. Roramar Pruss, uma criança na caravana de exilados, começa a ter visões. Convence os

líderes a seguir suas instruções na colonização do novo continente.

1007. O plano de Sszzaas é descoberto pelos demais deuses. Sszzaas é aprisionado por

Khalmyr na forma de um avatar. Começa uma grande caçada aos devotos de Sszzaas.

1020. Os exilados de Lamnor encontram a estátua de Valkaria, e fundam a futura capital do

Reinado aos seus pés. Roramar Pruss é nomeado regente da nação de Deheon. Novas

caravanas se formam, rumando para colonizar outros pontos de Ramnor.

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1021. Thomas Lendilkar funda o reino de Bielefeld. Jakkar Asloth funda o Condado de

Portsmouth. Fundação de Salistick, às margens do Rio Vermelho.

1022. Forma-se a vila de Palthar, onde futuramente será o reino de Namalkah. Começa a

surgir o reino halfling de Hongari.

1023. O célebre Cyrandur Wallas parte de Valkaria com uma caravana e inicia uma viagem

exploratória pelas Montanhas Uivantes. Alguns colonos decidem ficar ali, em Giluk.

1025. Fundação do reino de Tyrondir. Uma nova caravana, liderada por Jeantalis Sovaluris,

separa-se da caravana de Cyrandur.

1026. Fundação do vilarejo de Triunphus, em algum lugar no reino de Sckharshantallas ou

arredores.

1030. Fundação do reino de Yuden por Larf Yudennach. Fundação de Altrim e do reino de

Petrynia por Cyrandur Wallas.

1031. Morte de Roramar Pruss. Seu filho sobe ao trono de Deheon.

1032. Fundação de Sambúrdia.

1035. Fundação do reino de Tollon.

1037. Thomas Lendilkar tenta invadir a nação de Khubar. Os xamãs de Khubar realizam a

invocação de Benthos, Dragão-Rei Marinho, que destrói a costa de Bielefeld.

1038. Fundação do reino de Fortuna.

1040. Tratado de paz com Khubar, agora reconhecido como um reino independente.

1045. Fundação de Nova Ghondriann.

1050. Wortar I, regente de Deheon, envia famílias nobres para colonizar o território a

sudoeste, que viria a se tornar o reino de Ahlen. Alguns colonos se separam e fundam o reino

de Collen. Surgem as primeiras histórias a respeito de uma terra de fadas nos confins de

Sambúrdia.

1051. O grande mago Karias Theuderulf descobre fenômenos causados por áreas de magia

selvagem na costa a sudeste de Deheon.

1056. Fundação de Wynnla, o Reino da Magia, por Karias Theuderulf.

1065. Primeiro uso do nome Namalkah.

1075. Guerra civil em Deheon. Yuden conquista os reinos de Svalas e Kor Kovith.

1076. Fim da guerra civil em Deheon. O novo regente integra a maior parte dos reinos à

coalizão, com a ajuda da Igreja de Marah. A expansão de Yuden é contida.

1082. Início da república em Tapista.

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1085. Fundação do reino de Lomatubar. Início das Guerras de Lomatubar, entre humanos e

orcs.

1088. Talude, o Mestre Máximo da Magia, chega a Arton.

1094. Fundação do reino de Hershey. Primeiros contatos com Tapista.

1095. Fundação da Grande Academia Arcana, em um semiplano oferecido a Talude por

Wynna.

1103. Fugindo de Sambúrdia, muitos colonos entram em conflito com bárbaros que adoram a

imagem de um dragão. Intervenção de Sckhar, destruindo duas vilas e a maioria dos colonos

invasores.

1107. A Ordem de Sszzaas é extinta, mas os Rubis da Virtude continuam desaparecidos. O

fim da Rebelião dos Servos em Sambúrdia leva à fundação de Trebuck.

1109. Concessão do futuro território de Callistia a alguns nobres de Namalkah. Primeiro uso

do nome Pondsmânia.

1110. Sambúrdia concede independência ao Reino das Fadas, para alívio da população. A

Pondsmânia é oficializada como integrante do Reinado.

1114. Callistia se separa oficialmente de Namalkah.

1122. Sckharshantallas é reconhecido como parte do Reinado.

1126. Primeiro ataque do Moóck a Triunphus, devastando a cidade e matando sua população.

Concedida a bênção/maldição de Triunphus.

1251. Em Hershey, uma caravana mercantil de Tapista é atacada por saqueadores e

massacrada. Início da “proteção” dos minotauros a Hershey.

1252. Os magos Talude e Vectorius se encontram em Malpetrim. Desafiado, Vectorius

começa a construção de Vectora.

1279. Fundação de Vectora, o Mercado nas Nuvens.

1290. Fundação da Ordem de Khalmyr e da Ordem da Luz.

1292. Início da construção do Palácio Imperial de Valkaria.

1300. A família Asloth incita a tensão entre tribos bárbaras e o reino de Bielefeld. Deheon

intervém, resultando na formação do reino da União Púrpura.

1312. Sartan, um antigo deus maligno, tenta voltar ao mundo, mas é impedido por um grupo

de aventureiros. A Praga Coral é liberada sobre o reino de Lomatubar, exterminando os orcs

locais e encerrando as Guerras de Lomatubar.

1342. Lorde Niebling, o gnomo, chega a Arton, após aparecer no Deserto da Perdição.

1343. Nasce o futuro Rei-Imperador Thormy.

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1350. Concluído o Palácio Real de Valkaria. Primeiros contatos formais entre o Reinado e

Tamu-ra.

1364. O mais recente eclipse total do sol. Nasce Thwor Ironfist, o futuro general bugbear.

Thormy assume o trono de Deheon. Formação do Protetorado do Reino.

1365. Diplomatas minotauros fazem os primeiros acordos de integração de Tapista ao

Reinado. Aparecimento repentino do Navio em meio à ilha de Collen, provavelmente alvo de

uma magia de teleporte mal sucedida.

1369. Cohared Frosthand inventa o gorad, em Hershey. Jedmah Roddenphord assume a

regência do mesmo reino.

1370. Nasce Vladislav Tpish, futuro necromante, em Sambúrdia. George Ruud inaugura a

Estalagem do Macaco Caolho. Nasce Arkam, futuro líder do Protetorado do Reino. Retorno

de Phillip Donovan ao Castelo da Luz.

1371. Tilliann, um mendigo louco, é visto chorando aos pés da estátua de Valkaria, e passa a

viver na cidade.

1380. Thormy casa-se com Rhavana, uma rainha amazona. O Conde Ferren Asloth aumenta

as tensões entre o condado de Portsmouth e a Ordem da Luz.

1381. Mestre Arsenal chega a Arton trazendo consigo sua máquina de guerra, o Kishin.

Ocorre o Dia dos Gigantes em Valkaria, quando uma luta entre o Kishin e um estranho

gigante extraplanar arrasa parte da cidade. O Kishin é destruído.

1384. Mestre Arsenal derrota o sumo-sacerdote de Keenn e assume seu posto. Em Lamnor, a

princesa élfica Tanya é raptada por Thwor Ironfist. Isso leva à formação da Aliança Negra dos

goblinóides, sob a liderança de Thwor.

1385. Thwor Ironfist derrota o avatar de Glórienn com as próprias mãos. Cai a nação élfica de

Lenórienn. Formação dos Elfos Negros de Berforam, devotados a Tenebra.

1389. O condado de Portsmouth torna-se independente de Bielefeld após uma sangrenta

guerra civil.

1390. Thwor Ironfist detém sua marcha antes de chegar a Khalifor. A primeira manifestação

da Tormenta destrói Tamu-ra.

1391. Primeira aparição do caçador de recompensas Crânio Negro. Um grupo de aventureiros

encontra os Rubis da Virtude em um antigo templo sszzaazita.

1392. O necromante Vladislav Tpish implanta os Rubis da Virtude em um companheiro

caído, criando o Paladino de Arton.

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1398. As tensões entre Deheon e Yuden aumentam. Uma área de Tormenta se forma ao norte

do reino de Trebuck, trazendo pânico ao Reinado. Mestre Arsenal derrota o Paladino de Arton

em combate.

1399. Rhumnam, a espada de Khalmyr, é roubada de Doherimm pelo assassino conhecido

como o Camaleão.

1400. O Paladino de Arton ressurge, corrompido por Sszzaas. O Panteão é forçado a aceitar a

volta do Deus da Traição, para que juntos consigam derrotar o Paladino. Thwor Ironfist toma

Khalifor e inicia a conquista de Tyrondir. A Tormenta avança sobre Trebuck e toma o Forte

Amarid. O Exército do Reinado marcha contra a Tormenta na Batalha de Amarid. O ataque

fracassa, e descobre-se a existência dos Lordes da Tormenta. Crânio Negro se torna o

primeiro algoz da Tormenta. Primeiros contatos com os Moreau e os Filhos de Hyninn, ambos

vindos do mar do leste.

1401. Valkaria é liberta de seu cativeiro por heróis durante uma aventura épica. Estes

aventureiros passariam a ser conhecidos como “Os Libertadores”.

1402. Formação da Área de Tormenta de Zakharov. Descobertas sobre os lefou. Um barão de

Hershey tenta alertar o Reinado sobre uma invasão de Tapista. Desacreditado, tenta organizar

uma resistência, mas é morto pelos minotauros. Invasão e escravização de Hershey pelos

minotauros de Tapista.

1403. Destruição da cidade de Norm por Cavaleiros da Luz corrompidos pela Tormenta.

Shivara Sharpblade, rainha de Trebuck, casa-se com o Príncipe Mitkov Yudennach, na

esperança de obter auxílio contra a Tormenta. O Exército do Reinado enfrenta guerreiros da

União Púrpura corrompidos pela Tormenta, triunfando.

1405. O Rei Mitkov é desmoralizado e deposto pelo Rei-Imperador Thormy. Shivara

Sharpblade assume o trono de Yuden. O Reino de Glórienn é tomado pela Tormenta.

Comandados por um Cavaleiro da Luz, um batalhão de deuses menores destrói a área de

Tormenta de Tamu-ra. Glórienn se torna uma deusa menor e escrava de Tauron.

Kallyadranoch, o Deus dos Dragões, retorna ao Panteão.

1406. Mestre Arsenal ataca o Reinado com o Kishin, mas é derrotado por forças conjuntas de

aventureiros. Com a escravidão de Hershey por Tapista, começam as Guerras Táuricas. Os

minotauros conquistam diversos reinos, formando o Império de Tauron. Thormy é tomado

como refém, e Shivara Sharpblade assume como Rainha-Imperatriz. Tauron assume o posto

de líder do Panteão. Começa o repovoamento de Tamu-ra.

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1407. Com o fim das Guerras Táuricas e a derrota de Arsenal, começa a reconstrução do

Reinado. Callistia, Nova Ghondriann e Salistick se separam do Reinado, formando a Liga

Independente.

1410. Época atual.”