Modernidade Líquida

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A modernidode imediata e "l eve" , "llquida", "fluida" e infinilamenle mois dinomico que o modernidode "solido" que suplantou A passagem de uma o outro ocorretou profundos em todos os aspectos do vi da humana. Zygmun t Baumar cumpre aqui sua missoo de soci6logo, esclarecendo como se deu essa e nos auxiliondo o re· pensar os conceilos e esquemas cognitivos usados para descrever a expenencia individual humana e suo hist6ria conj un ta. Este Modernidade liquida complementa e conclui a anali se realizada pelo autor em as conseqiiencias humanas e Em busca da politico. Ju nt os, esses tres volumes formam uma ana l ise bri lhante das co ndic;:oes cambiantes do vida social e pol itico. Outros obros de ZYGMUNT BAUMAN publicoda s por esto editora: AMOR L'QUIDO A ARTE:. DA VIDA COMUNIDADE CONFIAN<;:A E MEDO NA CIDADE EM BUSCA DA POLiTICA EUROPA GL OBALIZA<;:AO AS CONSEQUENCIAS HUMANAS IDENTIDADE 0 MAL ESTAR DA P6S-MOOERNIDADE MEDO LiQUIDO MODERNIDADE E AMBIVALENCIA MODERNIDADE E HOLOCAUSTO A SOCIEDADE INDIVIDUAUZADA TEMPOS LiQUIDOS V IDAS DESPERDI<;:ADAS VI DA L[QUIDA VIDA PARA CONSUMO ZAHAR Zygn1 ,Zygmunt Bauman 0 0 m :;;u z ,.. 0 )> 0 m r- o' c 0 )>

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Modernidade Líquida de Bauman

Transcript of Modernidade Líquida

Page 1: Modernidade Líquida

A modernidode imediata e " leve" , "llquida", "fluida" e

infinilamenle mois dinomico que o modernidode "solido" que

suplantou A passagem de uma o outro ocorretou profundos

mudan~as em todos os aspectos do vida humana.

Zygmunt Baumar cumpre aqui sua missoo de soci6logo,

esclarecendo como se deu essa transi~oo e nos auxiliondo o re·

pensar os conceilos e esquemas cognitivos usados para descrever

a expenencia individual humana e suo hist6ria con junta.

Este Modernidade liquida complementa e conclui a anal ise

realizada pelo autor em Globaliza~iio: as conseqiiencias humanas e Em busca da politico. Juntos, esses tres volumes

formam uma analise brilhante das condic;:oes cambiantes do

vida social e politico .

Outros obros de ZYGMUNT BAUMAN publicodas por esto editora :

AMOR L'QUIDO

A ARTE:. DA VIDA

COMUNIDADE

CONFIAN<;:A E MEDO NA CIDADE

EM BUSCA DA POLiTICA

EUROPA

G LOBALIZA<;:AO AS CONSEQUENCIAS HUMANAS

IDENTIDADE

0 MAL ESTAR DA P6S-MOOERNIDADE

~~

MEDO LiQUIDO

MODERNIDADE E AMBIVALENCIA

MODERNIDADE E

HOLOCAUSTO

A SOCIEDADE INDIVIDUAUZADA

TEMPOS LiQUIDOS

VIDAS DESPERDI<;:ADAS

V IDA L[QUIDA

VIDA PARA CONSUMO

ZAHAR

Zygn1 ,Zygmunt Bauman

~ 0 0 m :;;u z ,.. 0 )> 0 m r-

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Page 2: Modernidade Líquida

"Serio imprudente negar, au mesmo

subestimar, a profunda mudanc;:a que o

advento do 'modernidade flu ida' pro­

duziu no condi<;Oo humane." Portindo

desse principia, o soci6logo Zygmunt

Bauman, urn dos mais originais pen­

sadores do atualidade, examine aqui

como se deu a passagem do moder­

nidade "pesada" e "sOlido" para uma

modernidade "I eve" e "liquida", infi­

nitamente mois din6mico

Essa transir;Oo afetou as mais variados

aspectos de nossa vida. E a fun<;Oo do

sociologic, segundo Bauman, e despertar

a outoconsci8ncia, a compreens6o e a responsabilidode individuais, a fim de

promover o autonomic e a liberdode.

Em outras polavros, explicitor os termos

dessa nova modernidade, permitindo­

nos en tender como a mundo funciono,

para que possamos nele operar.

E a essa tarefa que se dedica este livro.

Analisando cinco conceitos bOsicos que

organizam a vida humane compartilha­

da - emoncipo<;Cio, individualidade,

tempo/espa<;o, lrabalho e comunida­

de -, Bouman tra<;o suas sucessivas for­

mas e mudan<;as de significado.

Modernidode lfquida complementa e

conclui a ancilise realizoda pelo autor

em dais livros onteriores, Globalizac;:Oo. as conseqU&ncias humanm Uorge Zahar,

1999) e Em busca do politico !Jorge

lahar, 2000) Juntos, esses tr8s volumes

formam umo an6lise brilhonte das

condi<;Oes cambiantes da vida social e politico.

MODERNIDADE LiQUIDA

Page 3: Modernidade Líquida

Livros do autor publicados por esta editora

, Amor liquido

• A arte da vida

• Comunidadc

• Confiano;;a e medo na cidade

• Em busca da polftica

• Europa

• Globalizao;;iio: As conseqiiencias humana~

• Jdentidade

• 0 mal-estar da p6s-modernidadc

• Medo Jiquido

• Modnnidade e ambiva!Cncia

• Modernidade e Holocausto

• Modcrnidade Hquida

• A socicdadc individualizada

• Tempos liquidus

• Vidas desperdioyadas

• Vida liquida

• Vida para consumo

Zygmunt Bauman

MODERN I DADE LIQUIDA

Traduo;;ao: Plinio Dentzien

"~ ZAHAR Rio de Janeiro

Page 4: Modernidade Líquida

Titulo original: Liquid Modernity

Tradw;:ao autorizada da edis;ao inglesa publicada em 2000 par Polity Press,

de Oxford, Inglaterra

Copyright© 2000, Zygmunt Bauman

Copyright da edit;:ao em lingua portuguesa © 2001: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mexico 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2!08-0808/ fax: (21) 2108-0800

e-mail: [email protected]

site: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.

A reprodus:ao nao-autorizada desta publicas;ao, no todo au em parte, constitui violas:ao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Capa: Carol sa e Sergio Campante

CIP-Brasil. Catalogas:ao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Bauman, Zygmunt, 1925-B341m Modernidade liquida I Zygmunt Bauman; tradu-

t;:iio, Plinio Deritzien.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001

Tradus;iio de: Liquid modernity ISBN: 978-85-7110-598-0

1 .. Civilizas:ao moderna - Seculo XX. 2. Sociolo­

gia. I. Titulo.

CDD 303.4 01-0404 CDU 316.42

SuMARIO

l1!ni(Jdo: Ser levee Uquido ..... 7

11pllulo 1. Emancipasao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

II>< hc11~aos mistas da liberdade • As casualidades e a sorte 1 :nnhianles da critica • 0 individuo em combate como cida­diio • 0 compromisso da teoria critica na sociedade dos indi­vidttWi • A teoria critica revisitada • A critica da politica-vida

c ocpllulo 2. lndividualidade. . . . . . . . . . . . . . ........... 64

( ;,tpilalismo- pesado e leve • Tenho carro, posso via jar • Pare tl1· 1111' dizer; mostre-me! • A compulsao transformada em vicio • I ) ,., wpo do consumidor • Comprar como ritual de exorcism a • I .ivn· para comprar- ou assirn parece • Separados, compramos

11pllcclo 3. Tempo/Espaso ......................... 107

l,)t1ando estranhos se encontfam • Lugares emicos, lugares l/1p,il'os, n5o-lugares, espac;os vazios • Nao fale com estranhos • II cccoclernidade como hist6ria do tempo • Da modernidade l~~"~~ada ~~ modernidade leve • A sedutora leveza do ser • Vida lll~dalttfllwa

I 11plloln 4. Trabalho. 150

l'rogn~s."'O ere na hist6ria. Ascensao e queda do trabalho. Do l'iUWllll'll(O a coabitac;ao. Digressao: breve hist6ria da procras­IIIIIIC~···w • Os lac;os humanos no mundo fluido • A autoperpe-1 IIU~Ilo cia fa ita de confian~a

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Capitulo 5. Comunidade ......................... . 193

Nacionalismo, marco 2 • Unidade - pela semelhan~a ou pela d1feren~a? • Seguran~a a urn certo pre~o • Depois do Estado­nac;ao • Preencher o vazio • Cloakroom communities

PosfCcio: Escrever; Escrever Sociologia . . . . . . . . . . . . . . . . 231

Noles .................. . fndice remissivo .......... .

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255

PREFACIO

SER LEVE E UQUIDO

lukn·upc;iio, incoerencia, surpresa silo as condiyOes comuns de no:-1~a vida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para nulitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas . por outra coisa que niio mudanyas repentinas e estfmulos mnstantemente renovados ... Nao podemos mais tolerar o que dum. Ni:io sabemos mais fazer com que o tedio d~ frntos.

Assim, toda a questiio se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?

Paul Pixliry

i"ll!ld•·,:· <'· a qualidade de liquidus e gases. 0 que os distingue d .. ., 1~t'd1do."!, como a Enciclopidia britCinica, com a autoridade que 11'111, 114 IN lllfOI'IllJ, e que eles "nao podem SUpOrtar UIDU for<;a tall­tJ.''111'1111 nt1 ddOrmante quando im6veis" e assim "sofrem uma tii1Pd!llllc· 11111dan-;a de forma quando submetidos a tal tensao':

l':rr~ll r'Oildnu;t e irrecuperivel mudan~a de posic;ao de uma parte do llllllni;d I'll\ rclac;ao a outra parte quando sob pressao deformante r r~IPriiiLii o fluxo, propriedade caracteristica dos fluidos. Em contras­tr·, lUI t'or\·:ts clcformantes num sOlido torcido ou flexionado se man­H'Ill, o r·dJiido nao sofre 0 fluxo e pode voltar a_ sua forma original.

I),, U'luidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notiveis 'lll'thdudt·s ao fato de que suas ~'molecula~ sao mantidas num ar­lttlljtl ordl'nado que atinge apenas poucos diametros moleculares': ''"'1"'"'1" "a variedade de comportamentos exibida pelos s61idos i• 11111 l'c'Mtdtado direto do tipo de liga que une os seus itomos e dw• lll'l'lllljos (~HtTUturais destes': OGLiga': por sua vez, e urn termo

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Modernidade Uquida

que indica a estabilidade dos s6Iidos - a resistencia que eles "o pOem a separac;ao dos :homos'~

Isso quanta a Enciclopidia britdnica- no que parece uma ten­tativa de oferecer "fluidez" como a principal rnedJora para o esti­gio presente da era moderna.

0 que todas essas caracteristicas dos fluidos mostram, em lin­guagem simples, e que OS liquidos, diferentemente dos soJidos, nao mantem sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, nao fixam o espa~o nem prendem o tempo. Enquanto os s6lidos tern dimensOes espaciais claras, mas neutralizam o irnpacto e, par­tanto, diminuem a significa~ao do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos nao se atem muito a qualquer forma e estio constantemente prontos (e propensos) a mud£-la; assim, para eles, 0 que conta e 0 tempo. mais do que 0

espa~o que lhes toea ocupar; espa~o que, afinaL preenchem apenas ~~por urn memento': Em certo sentido, os s6lidos suprimem o tem­po; para OS liquidos, ao contrario, 0 tempo e 0 que importa. Ao descrever os s6lidos, podernos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria urn grave erro. Descri~oes de Iiquidos sao fotos instantaneas, que precisam ser datadas.

Os fluidos se movern facilmente. Eles "fluem': "escorrem': "es­vaem-se': ''respingam", "transbordam': "vazam': "'inundam': "bani­faro': "pingam"; sao "filtrados': "destilados"; diferentemente dos s6Iidos, nao sao facilmente contidos- contornam certos obstacu­Ios, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com s6Iidos emergem intactos, enquanto os s6lidos que encontraram, se permanecem s6lidos, sao alterados - ficam mo­lhados ou encharcados. A extraordinaria mobilidade dos fluidos e 0 que OS associa a ideia de "Ieveza': Ha Iiquidos que, centimetre cubico por centimetre cubico, sao mais pesados que muitos s61i­dos, mas ainda assim tendemos a ve-Ios como mais Ieves, menos "pesados" que qualquer sOlido. Associamos ''Ieveza" ou "ausencia de peso"·a mobilidade e a inconstancia: sabemos pela pratica que quanta mais !eves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos.

Pref6cio 9

11:1111111111 "'\c 1 rm':tJes para considerar "fluidez" ou "liquidez" como 1Hf'11il111'11" llclc•c!lladas quando queremos captar a natureza da pre­••illlli hill I'. 1/(Jflfl de muitas maneiras, na hist6ria da modernidade.

C :uu .. ordo prontamente que tal proposic;ao deve fazer vacilar '1"* 1111 ,,.,tnMija ;, vontade no "discurso da modernidade" e esti lttltttlt•tnt.uclo t'OIII o vocabuhlrio usado normalmente para narrar •• lit111111ta lnoclt·nw. Mas a modernidade nao foi urn processo de lltpt•·l~•~.·,to" dt'sde o comec;o? Nao foi o ~'derretimento dos s6Ii­

d••h · 111'11 ntaior passatempo e principal realizac;ao? Em outras pa­ltH 11111, ,, rnoclt•rnidade nao foi "fluida" des de sua concepc;ao?

I···'*'Htlj ,. outras objec;Oes semelhantes sao justificadas, eo pare­•••ttlll ttiiHla 1nais se lembrarmos que a famosa frase sabre "derre­IH I lit ltt'dtllt IS·: quando cunhada hi urn seculo e meio pelos auto res .1 .. . 1111111/;'.l'lo t'omuni.rta~ referia-se ao tratamento que o antocon­

fltlltlt· I' I'XtdH'J'ante espirito moderno clava a sociedade, que cOn­illtf..ttl\'11 t'Hiap,ttada demais para seu gosto e resistente demais para untd•ll t' ,uuoldar-se a suas ambic;Oes- porque congelada em seus 1 •llntnho~• hahituais. Se o "espirito" era "moderno': ele o era na 1111 drd., I'll I If"'~ estava determinado que a realidade deveria ser t·llltllll tpucla cia ""mao marta" de sua prOpria hist6ria - e isso s6 1'""'.''" ,.,.,. li·ilo derretendo os s6Jidos (isto e, por defini~ao, dis­.,,.j, l'lltlt Ill I jill' CjllCr que persistiSSe flO tempO e fOSSe infeflSQ a SUa 1'•1"'~''1'·''"' on inmne a seu fluxo). Essa intenc;ao clamava, par sua , . ..,,. p1·la "prol'anac;ao do sagrado": pelo replidio e destronamento dll jtt111'Uicin, C, UrltCS e acima de tudO, da ~"tradic;ao" - iStO e, 0

ltt'tliiiH'IIIo ou residua do passado no presente; clamava pelo es­llltl/'.•'lnc·nlo da armadura protetora forjada de crenc;as e lealdades tjllt· l'''l'lrtitiant que os s6lidos resistissem a "liquefac;ao':

I ,t•tnlu·t'lllos, no entanto, que tudo isso seria feito nao para tll•tllltl' cl~· 11111a vez par todas com os s6lidos e construir urn admi­titv•·ltrltlllcltl ll£lVO livre de}es para sempre, mas para Iimpar a irea I''" •I nor 1o.r f' afH!':'feiroados srflidos; para substituir o con junto herda­du cl1• H1 1duloH ddicientes e defeituosos por outro conjunto, aper­lt•i!,IIUcill I' prpj(~rivelmente perfeitO, e por iSSO nao mais alter<lvel. "" 1.,,. " A ""i"" Regime de Tocqueville, podemos nos perguntar til~ qur~ ponto os "s6lidos encontrados" nao teriam sido despreza­""'· l'llllil('llil!k>S c destinados a liquefa~ao por ja estarem enferru-

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10 Modernidade Uquida

jados, esfarelados, com as costuras abrindo; por nao se poder confiar neles. Os tempos modernos encontraram os s6lidos pre­modernos em estado avan~ado de desintegra~ao; e urn dos moti­ves mais fortes por td.s da urgencia em derrete-Ios era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar s6lidos de solidez duradou­ra, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsivel e, portanto, administravel.

Os primeiros s6lidos a derreter e os primeiros sagrados a pro­fanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigac;5es que atavam pes e maos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente s61ida!) era necessario primeiro li­vrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. "Derreter os s6lidos" significava, antes e acima de tudo, eliminar as obriga~oes "irrelevantes" que impediam a via do citlculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a em­presa de neg6cios dos grilhoes dos deveres para com a familia e o lar e da densa trama das obrigac;Oes eticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre OS varios la~os subjacentes as responsabi­lidades humanas mUtuas, deixar restar somente o "nexo dinheiro'~ Por is so mesmo, essa forma de "derreter os s6lidos" deixava toda a complexa rede de relac;Oes sociais no ar - nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir as regras de a~ao e aos criterios de racionalidade inspirados pelos neg6cios, quanta mais para competir efetivamente com eles.

Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasao e do­mina~ao (como dizia Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formula~ao de Karl Marx) para o papel determinante da eco­nomia: agora a "base" da vida social outorgava a todos os outros dominies 0 estatuto de "superestrutura" - isto e, urn artefato da "base': cuja Unica fun~ao era auxiliar sua opera~ao suave e conti­nua. 0 derretimento dos s6lidos levou a progressiva liberta~ao da economia de seus tradicionais embara~os politicos, eticos e cultu­rais. Sedimentou uma nova ordem; definida principalmente em termos econOmicos. Essa nova ordem deveria ser mais "s6Iida" que as ordens que substituia, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer a~ao que nao fosse economica. A

Prefacio 11

maioria das alavancas politicas ou marais capazes de mudar ou reformar a nova ordem foram quebradas ou feitas curtas ou fracas Jemais, ou de alguma outra forma inadequadas para a tarefa. Nao que a ordem econ6mica, uma vez instalada, tivesse colonizado, reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem veio a dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz respeito a implac!tvel e continua reprodu~ao dessa ordem.

Esse estagio na carreira da modernidade foi bern descrito por Claus Offe (em "A utopia da op~ao zero': publicado originalmente em 1987 em Praxis international): as sociedades "complexas se tornaram rigidas a tal ponto que a propria tentativa de refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua 'ordem: isto e. a natureza da coordena~ao dos processes que nelas tern Iugar, e virtualmente impedida por for~a de sua propria futilidade, donde sua inadequa<;lo essencial': Por mais livres e voliteis que sejam os ""subsistemas" dessa ordem, isoladamente ou em conjunto, o modo como sao entretecidos e "rigido, fatale desprovido de qual­quer liberdade de escolha': A ordem das coisas como urn todo nao esta aberta a op~oes; esta Ionge de ser claro quais poderiam ser essas op~Oes, e ainda menos clara como uma op~ao ostensivamen­te viivel poderia ser real no caso pouco prov<lvel de a vida social ser capaz de concebe-la e gesta-la. Entre a ordem como urn to do e cada uma das agencias, ve:iculos e estratagemas da a~ao propo­sital hit uma clivagem- uma brecha que se amplia perpetuamente, sem ponte a vista.

Ao contririo da maioria dos cenirios dist6picos, este efeito nao foi alcan~ado via ditadura, subordina~ao, opressao ou escra­viza<;lo; nem atraves da "coloniza<;iio" da esfera privada pelo "sis­tema': Ao contnlrio: a situa<;lo presente emergiu do derretimento radical dos grilhoes e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e de agir. A rigidez da ordem eo artefato e o sedimento da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez e o resultado de "soltar o freio": da desre­gulamenta~ao, da liberaliza~ao, da "flexibiliza~ao': da "fluidez" crescente, do descontrole dos mercados financeiro, .imobiliirio e

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12 Modernidade Uquida

de trabalho, tornando mais !eve o peso dos impastos etc. (como Offe observou em "Amarras, algemas, grades'; publicado original­mente em 1987); ou (para citar Richard Senett em Flesh and Stone) das tecnicas de "velocidade, fuga, passividade" - em outras pala­vras, tecnicas que permitem que o sistema e os agentes livres se mantenham radicalmente desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se. Se o tempo das revolw;Oes sist@micas passou, e porque nao ha edificios que alojem as mesas de controle do sistema, que poderiam ser atacados e capturados pelos revolu­cionanos; e tambem porque e terrivelmente dificil, para nao dizer impossivel imaginar o que os vencedores, uma vez dentro dos edificios ( se os tivessem achado ), poderiam fazer para virar a mesa e por fim a miseria que OS levou a rebeliao. Ninguem ficaria sur­preso ou intrigado pela evidente escassez de pessoas que se dis­poriam a ser revolucionarios: do tipo de pessoas que articulam o desejo de mudar seus pianos individuais como projeto para mudar a ordem da sociedade.

A tarefa de construir uma ordem novae melhor para substituir a velha ordem defeituosa nao esta hoje na agenda - pelo menos nao na agenda daquele dominio em que se sup6e que a a~ao politica resida. 0 "derretimento dos s6lidos'; tra~o permanente da modernidade, adquiriu, portanto, urn novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a urn novo alva, c urn dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolu~ao das for~as que poderiam ter mantido a questao da ordem e do sistema na agenda politica. Os s6lidos que estiio para ser lan~ados no cadinho e os que estao derretendo neste momenta, o momenta da modernidade fluida, sao os elos que entrela~am as escolhas individuais em projetos e a~6es coletivas - os padr6es de comunica~ao e coordena~ao entre as politicas de vida conduzidas individualmente, de urn !ado, e as a~6es politicas de coletividades humanas, de outro.

Numa entrevista a Jonathan Rutherford no dia tres de feverei­ro de 1999, Ulrich Beck (que alguns anos antes cunhara o termo "segunda modernidade" para conotar a fase marcada pela moder­nidade "'voltando-se sobre si mesma': a· era da assim chamada ''moderniza~ao da modernidade") fala de "categorias zumbi" e "instituic;Oes zumbi': que est3.o "mortas e ainda vivas': Ele mencio-

Pref6cio 13

1111 a liunflia, a classe eo bairro como principais exemplos do novo IPIIIHJ~eno. A familia, por exemplo:

Pt·rp;unte-se o que e realmente uma familia hoje em dia? 0 que sig­llilica? E clara que hi criam;as, meus filhos, nossos filhos. Mas, mes­mo a paternidade e a maternidade, o nUcleo da vida familiar, estao romc($ando a se desintegrar no div6rcio ... Av6s e avOs sao incluidos ~~ t~xcluidos sem meios de participar nas decis5es de seus filhos e filhas. Do ponto de vista de seus netos, o significado das av6s e dos avOs tern que ser determinado por decis6es e escolhas individuais.

() que esta acontecendo hoje e, por assim dizer, uma redistri­illlit;iin e realoca~o dos "poderes de derretimento" da moderni­cladl~. Primeiro, eles afetaram as institui<;Oes existentes, as moldu­r:l~ qne circunscreviam o dominic das a~Oes-escolhas possiveis, , ., 11110 os estamentos heredicirios com sua aloca<;ao por atribui<;ao, ,.,.,, chance de apela~ao. Configura~6es, constela~6es, padr6es de < l<'pt~ndencia e intera<;3.o, tudo is so foi posto a derreter no cadinho, para ser depois novamente moldado e refeito; essa foi a fase de "quehrar a forma" na hist6ria da modernidade inerentemente 1 ransgressiva, rompedora de fronteiras e capaz de tudo desmoro­"""· Quanta aos individuos, porem- eles podem ser desculpados 1'"1' ter deixado de nota-lo; passaram a ser confrontados por pa­clri)es e figura<;Oes que, ainda que "novas e aperfei<;oadas': eram I:·H) duras e indomiveis como sempre.

Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse subs­lituido por outro; as pessoas foram libertadas de suas velhas gaio­las apenas para ser admoestadas e censuradas caso niio conseguis­<<'111 se realocar, atraves de seus pr6prios esfor~os dedicados, con­tinuos e verdadeiramente infindaveis, nos nichos pre-fabricados da nova ordem: nas classes, as molduras que (tao intransigente­mente como os estamentosja dissolvidos) encapsulavam a totalida­de das condi~6es e perspectivas de vida e determinavam 0 ambito dos projetos e estrategias realistas de vida. A tarefa dos individuos livrcs era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropria­do e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele Iugar ..

iaradavilazorzal
Highlight
Page 9: Modernidade Líquida

14 Modernidade Liquida

Sao esses padroes, c6digos e regras a que podiamos nos con­formar, que podlamos selecionar como pontes est:lveis de orien­ta~ao e pelos quais podiamos nos deixar depois guiar, que estao cada vez mais em falta. Isso nao quer dizer que nossos contempo­raneos sejam guiados dio somente por sua prOpria imagina~ao e resolu~ao e sejam livres para construir seu modo de vida a partir do zero e segundo sua vontade, ou que nao sejam mais depen­dentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de cons­tru~ao. Mas quer dizer que estamos passando de uma era de "gru­pos de referencia" predeterminados a uma outra de "compara~ao universal': em que o destino dos trabalhos de autoconstru~ao in­dividual est:l end@mica e incuravelmente subdeterminado, nao esti dado de antemao, e tende a sofrer numerosas e profundas mudan~as antes que esses trabalhos alcancem seu {mico fim ge­nuino: o fim da vida do individuo.

Hoje, os padr5es e configura<;5es niio sao mais "dados': e me­nos ainda "'auto-evidentes"; eles sao muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada urn foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. E eles mudaram de natureza e foram reclassificados de acordo: como itens no in­ventario das tarefas individuais. Em vez de preceder a politica­vida e emoldurar seu curso futuro, eles devem segui-la ( derivar dela), para serem formados e reformados por suas flexoes e tor­~oes. Os poderes que liquefazem passaram do "sistema" para a "sociedade': da "politica" para as "politicas da vida"- ou desceram do nivel "macro" para o niyel "micro" do convivio social.

A nossa e, como resultado, uma versao individualizada e pri­vatizada da modernidade, e o peso da trama dos padroes e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os om­bros dos individuos. Chegou a vez da liquefa~ao dos padroes de dependencia e intera<;ao. Eles sao agora maleaveis a urn ponto que as gerac:;5es passadas nao experimentaram e nero poderiam imagi­nar; mas, como todos os fluidos, eles nao mantem a forma por muito tempo. Dar-lhes forma e mais facil que mante-los nela. Os s6lidos sao moldados para sempre. Manter OS fluidos em uma forma requer muita atenc:;ao, vigilincia constante e esforc:;o perpe-

Pref6cio 15

11111 -- c mesmo assim o sucesso do esfon;o e tudo menos in evi­l {lvc~l.

Scria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda 11111<ian<;a que o advento da "modernidade fluida" produziu na c'cHHiic;.~ao humana. 0 fato de que a estrutura sistemica seja remota ,. illalcan~avel, aliado ao estado fluido e nao-estruturado docena­rio irnediato da politica-vida, muda aquela condi~ao de urn modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costuma­v a 111 cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos sao hoje 111or1os-vivos. A questao pnltica consiste em saber se sua ressur­n·i~;ilo, ainda que em nova forma ou encamac:;ao, e possivel; ou -~~· nilo for- como fazer com que eles tenham urn enterro decente c· ~~ricaz.

Este livro se dedica a essa questao. Foram selecionados para t•xame cinco dos conceitos bisicos em torno dos quais as narrati­vas ortodoxas da condic:;ao humana tendem a se desenvolver: a <'IIJallcipa~ao, a individualidade, o tempo/espa~o, o trabalho e a c·onmnidade. 'fransformac:;Oes sucessivas de seus significados e aplica~oes praticas sao exploradas (ainda que de maneira muito lraf1rnend.ria e preliminar) com a esperan~a de salvar os bebes do ha11h0 desta torrente de agua poluida.

A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanc:;o podem ser aferidos utilizando-se muitos marcadores diferentes. l Jma caracteristica da vida moderna e de seu moderno entomo se impOe, no entanto, talvez como a "diferen.;;a que faz a diferenc:;a"; como o atributo crucial que todas as demais caracteristicas se­guem. Esse atributo e a relac:;ao cambiante entre espac:;o e tempo.

A modernidade come~a quando o espa<;o e o tempo sao sepa­rados da pritica da vida e entre si, e assim podem ser teorizados l'omo categorias distintas e mutuamente independentes da estra­l (,gia e da a~ao; quando deixam de ser, como eram ao Ion go dos _,(,culos pre-modernos, aspectos entrela<;ados e dificilmente distin­gulveis da experiencia vivida, presos numa estivel e aparentemen.:. lc invulneravel correspondencia biunivoca. Na modernidade, o lcrnpo tern historia, tern hist6ria por causa de sua "capacidade de l'arga': perpetuamente em expartsao - o alongamento dos trechos do espa<;o que unidades de tempo permitem "passar': "atravessar':

iaradavilazorzal
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16 Modernidade Uquida

"cobrir" - ou conquistar. 0 tempo adquire hist6ria uma vez que a velocidade do movimento atraves do espa~o ( diferentemente do espa~o eminentemente inflexivel, que niio pode ser esticado e que niio encolhe) se to rna uma questiio do engenho, da imagina~iio e da capacidade humanas.

A propria ideia de velocidade ( e mais ainda a de acelera~iio ), quando se refere 3. rela<;iio entre tempo e espa<;o, supOe sua varia­bilidade, e dificilmente teria qualquer significado se niio fosse aquela uma rela~ao verdadeiramente variavel, se fosse urn atributo da realidade inumana e pre-humana e nao uma questao de inven­tividade e resolu~ao humanas, e se nao sc lan~asse para muito alem da estreita gama de variac;6es a que as ferramentas naturais da mobilidade - as pernas humanas ou eqi.iinas - costumavam confinar os movimentos dos corpos pre-modernos. Quando a dis­tancia percorrida numa unidade de tempo pas sou a depender da tecnoJogia, de meios artificiais de transporte, todos OS JimiteS a velocidade do movimento, existentes ou herdados, poderiam, em principia, ser transgredidos. Apenas o ceu ( ou, como acabou sen­do depois, a velocidade da luz) era agora o limite, e a modernida­de era urn esfor~o continuo, rapido e irrefreavel para alcan~a-lo.

Gra~as a sua flexibilidade e expansividade recentemente ad­quiridas, o tempo moderno se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espac;o. Na modema luta entre tempo e espa~o, 0 espa~o era 0 !ado solido e impassive!, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras - urn obs­taculo aos avan~os do tempo. 0 tempo era o !ado dinamico e ativo na batalha, o !ado sempre na ofensiva: a for~a invasora, conquista­dora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso a meios mais rapidos de mobilidade chegaram nos tempos moder­nos a posi~ao de principal ferramenta do poder e da domina~ao.

Michel Foucault utilizou o projeto do Panoptico de Jeremy Bentham como arquimet:lfora do poder moderno. No Panoptico, os internes estavam presos ao Iugar e impedidos de qualquer mo­vimento, confinados entre muros grosses, densos e bem-guarda­dos, e fixados a suas camas, celas ou bancadas. Eles nao podiam se mover porque estavam sob vigilancia; tinham que se ater aos lugares indicados sempre pbrque nao sabiam, e nem tinham como

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•~du•r, on de estavam no momenta seus vigias, livres para mover-se ,, v• 0111ade. As instala~oes e a facilidade de movimento dos vigias 0"101111 a p;arantia de sua domina~iio; dos multiplos la~os de sua 11111hnrdiuac;ao, a "fixa.:;:io" dos internes ao lugar era o mais seguro ,. old lei I de romper. 0 dominic do tempo era o segredo do poder doH administradores - e imobilizar os subordinados no espa($o, nc·Kando-lhes o direito ao movimento e rotinizando o ritmo a que clc·viam obedecer era a principal estrategia em seu exercicio do pooolo•r. A piramide do poder era feita de velocidade, de acesso aos 11wios de transportee da resultante liberdade de movimento.

0 Pan6ptico era urn modele de engajamento e confronta~ao 1111'o1uos entre os dais !ados da rela~ao de poder. As estrategias dos .10l111inistradores, mantendo sua propria volatilidade e rotinizando ', lluxo do tempo de seus subordinados, se tornavam uma so. Mas lt:ovia tensiio entre as duas tarefas. A segunda tarefa punha limites ;, primeira - prendia os "rotinizadores" ao Iugar dentro do qual os objetos da rotiniza~ao do tempo estavam confmados. Os roti­nizadores n:ao eram verdadeira e inteiramente livres para se mo­ver: a opt;:iio "ausente'' estava fora de questao em termos pr~ticos.

0 Pan6ptico apresenta tambem outras desvantagens. E uma c·strategia cara: a conquista do espat;o e sua manutent;:iio, assim I'OIDO a manutent;:iio dos internos no espat;o vigiado, abarcava am­pia gama de tarefas administrativas custosas e complicadas. Ravia os edificios a erigir e manter em born estado, os vigias profissio­nais a contratar e remunerar, a sobrevivencia e capacidade de lrabalho dos internes a ser preservada e cultivada. Finalmente, administrar significa, ainda que a contragosto, responsabilizar-se pelo bem-estar geral do Iugar, mesmo que em nome de urn inte­resse pessoal consciente - e a responsabilidade, outra vez, sig­nifica estar preso ao Iugar. Ela requer presen~a, e engajamento, pelo menos como uma confronta~ao e urn cabo-de-guerra per­manentes.

0 que leva tantos a falar do "fim da historia': da pos-moder­nidade, da "segunda modernidade" e da "sobremodernidade': ou a articular a intui~ao de uma mudan~a radical no arranjo do con­vivio humane e nas condit;6es sociais sob as quais a politica-vida e hoje levada, e o fato de que o Iongo esfor~o para acelerar a

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velocidade do movimento chegou a seu "limite natural': 0 poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrOnico - e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essen­ciais se reduziu a instantaneidade. Em termos prclticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial nao mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistencia do espa~o ( o advento do telefone celular serve bern como "golpe de misericordia" simboli­co na dependencia em rela~ao ao espa~o: o proprio acesso a urn ponte telef6nico nao e mais necessaria para que uma ordem seja dada e cumprida. Nao importa mais onde esta quem da a ordem - a diferenc;a entre "prOximo" e "distante'~ ou entre o espac;o selvagem e o civilizado e ordenado, esta a ponto de desaparecer ). Isso da aos detentores do poder uma oportunidade verdadeira­mente sem precedentes: eles podem se livrar dos aspectos irritan­tes e atrasados da tecnica de poder do Panoptico. 0 que quer que a historia da modernidade seja no estagio presente, ela e tambem, e talvez acima de tudo, pos-Panoptica. 0 que importava no Panop­tico era que os encarregados '"estivessem 13.': pr6ximos, na torre de controle. 0 que importa, nas rela~oes de poder pos-panopticas e que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos volateis na rela~ao podem fugir do alcance a qualquer momenta - para a pura inacessibilidade.

0 fim do Panoptico e o arauto do fim da era do engajamento mutuo: entre supervisores e supervisados, capital e trabalho, !ide­res e seguidores, exf:rcitos em guerra. As principais tf:cnicas do poder sao agora a fuga, a astUcia, o desvio e a evita<_;ao, a efetiva rejei~ao de qualquer confinamento territorial, com os complicados corol<irios de constru<;ao e manuten<;ao da ordem, e com a respon­sabilidade pelas consequencias de tudo, bern como com a neces­sidade de arcar com os custos.

Essa nova tecnica do poder foi vividamente ilustrada pelas estrategias desenvolvidas pelos atacantes nas guerras do Golfo e da lugoslavia. A relutilncia em utilizar for~as terrestres na guerra foi impressionante; quaisquer que tenham sido as explica~oes ofi­ciais, essa relutilncia foi ditada nao apenas pela amplamente refe­rida sindrome dos "cadaveres ensacados': 0 engajamento num combate terrestre foi evitado nao s6 por seus posslveis efeitos

Pref6cio 19

••h•t~ •n" 1111 politica interna, mas tambem (talvez principalmente) 11111 111111 lolal inutilidade e mesmo contra-produtividade em rela­, ... 111111 oiJjt•livos da guerra. Afinal, a conquista do territ6rio com 11ul1111 11l1UH conseqi.i&ncias administrativas e gerenciais nao s6 esta­\'lliiiP~~'IIIt' da lista de objetivos das a<_;Oes de guerr~ como era uma H·I-IIIIIUiidadc a ser ·evitada a todo custo, vista com repugnancia 111\1111 01111'0 tipo de "prejuizo colateral': desta vez infligido a pr6-

l•llll j, •n;a atacante. I ;.,lpes desferidos par bombardeiros furtivos e "espertos"

111111111'1~ anlodirigidos capazes de seguir seus alvos - law;ados de ~till pr•·~w. vindos do nada e desaparecendo imediatamente de vista

,,,d,~litulram os avan<;os territoriais das tropas de infantaria eo ,.,,lon;n para expulsar o inimigo de seu territ6rio - o esfor<;o de ,,, 11par o territ6rio possuido, controlado e administrado pelo ini­llllgo. Os atacantes definitivamente nao queriam mais ser ''os Ulti­"'"" ""campo de batalha" depois da fuga ou retirada do inimigo. A l<>n:a militar e seu plano de guerra de "atingir e correr" prefigu­' "· uworpora e pressagia o que de fato est:l em jogo no novo tipo 1l,· f!,llerra na era da modernidade liquida: nao a conquista de novo 1 r'l'l'iH'>rio, mas a destrui<;ao das muralhas que impediam o fluxo d<>s novas e fluidos poderes globais; expulsar da cabe~a do inimi­p,o o Uesejo de formular suas pr6prias regras, abrindo assim o ate ,·nlilo inacessivel, defendido e protegido espa<;o para a opera<;ao , j," outros ramos, nao-militares, do poder. A guerra hoje, pode-se dizer (parafraseando a famosa formula de Clausewitz), parece ~·ada vez mais uma "promo<;ao do livre comercio por outros

nwios': Jim MacLaughlin nos lembrou recentemente (em Sociology

I /99) de que o advento da era moderna significou, entre outras C"oisas, o ataque consistente e sistem<itico dos "assentados': con­vertidos ao modo sedencirio de vida, contra os povos eo estilo de vida nomades, completamente alheios as preocupa~oes territoriais e de fronteiras do emergente Estado moderno. Ibn Khaldoun, no secuJo XIV, podia e!ogiar 0 nomadismo, que faz com que OS noma­des "sejam melhores que os povos assentados porque ... estao mais afastados de todos os maus habitos que infectaram o cora~ao dos assentados'' - mas a febre de constru~ao de na~oes e Estados,na-

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~iio que logo em seguida come~ou a serio por toda a Europ& colocou o "solo" firmemente acima do "sangue" ao lan~ar as fun­da~oes da nova ordem legislada e ao codificar os direitos e deveres dos cidadiios. Os n6mades, que faziam pouco das preocupa~oes terntonaiS dos legisladores e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esfor~os em tra~ar fronteiras, foram colocados entre os principais vil5es na guerra santa travada em nome do progresso e da civiliza~ao. A ~'cronopolitica" moderna OS situa nao apenas como seres inferiores e primitives, "subdesenvolvidos" e necessi­tados de profunda reforma e esclarecimento, mas tambem como atrasados e "aqwbm dos tempos': vitimas da '"defasagem cultural': arrastando-se nos degraus rnais baixos da escala evolutiva, e im­perdoavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para seguir o "padriio universal de desenvolvimento':

Ao Iongo do estagio solido da era moderna, OS hitbitos n6ma­des foram mal vistos. A cidadania andava de miios dadas com o a~se?tamento, e a falta de "enderec;o fixo" e de "estado de origem" Sigmficav.a exclusiio da comunidade obediente e protegida pelas leis, frequentemente tornando os n6mades vitimas de discrimina­~iio legal, quando nao de persegui~ao ativa. Embora isso ainda se aplique a "subclasse" andarilha e "sem-teto': sujeita as antigas tec­nicas de controle pan6ptico ( tecnicas quase abandonadas como veiculo principal para integra~ao e disciplina do grosso da popu­la~ao ), a era da superioridade incondicional do sedentarismo so­bre o nomadismo e da domina~ao dos assentados sobre os n6ma­des esta chegando ao fim. Estamos testemunhando a vingan~a do nomadismo contra o prindpio da territorialidade e do assenta­mento. No estagio fluido da modernidade, a maioria assentada e dominada pela elite n6made e extraterritorial. Manter as estradas abertas para o trifego nOmade e tornar mais distantes as barreiras remanescentes tornou-se hoje o meta-prop6sito da politica, e tam­bern das guerras, que, como Clausewitz originalrnente declarou, nao sao mais que "a extensao da politica por outros meios'~

A elite global contemporanea e formada no padrao do velho estilo dos "senhores ausentes': Ela pode dominar sem se ocupar com a administra<;ao, gerenciamento, bem-estar, ou, ainda, com a missao de "levar a luz': "reformar os modos': elevar moralmente,

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"ttvlitzar" e com cruzadas culturais. 0 engajamento ativo na vida d 11 ,. pnpula<;Oes subordinadas nao e mais necess<lrio (ao contririo, ,-, j, tl"lt~llJ(~nte evitado como desnecessariamente custoso e ineficaz)

1', porlanto, 0 ••maior" nao s6 nao e mais 0 "melhor': mas carece ,if- ttiguilicado racional. Agorae o menor, mais levee mais portatil qu•· ~ip;uifica melhoria e "progresso'~ Mover-se leve, e nao mais ,,h·rrar-se a coisas vistas como atraentes por sua confiabilidade e

""'"'''' - isto e, por seu peso, substancialidade e capacidade de n·.'li,"llencia- e hoje recurso de poder.

Fixar-se ao solo nao e tao importante se o solo pode ser alcan­"ado c abandonado a vontade, imediatamente ou em pouquissimo ic·lltpo. Por outro !ado, fixar-se muito fortemente, sobrecarregando ,,~ la<;os com compromissos mutuamente vinculantes, pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que sur­i!,<'lll em outros lugares. Rockefeller pode ter desejado construir suas fabricas, estradas de ferro e torres de petr6leo altas e volu-1\tosas e ser dono delas por urn Iongo tempo (pela eternidade, se r11cdirmos o tempo pela dura~ao da propria vida ou pela da fami­lia). Bill Gates, no entanto, nao sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; e a velocidade atordoante da circula~ao, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substitui~ao que traz lucro hoje - nao a durabilidade e confiabi­lidade do produto. Numa notavel reversao da tradi~ao milenar, sao os grandes e poderosos que evitam o duravel e desejam o transi­t6rio, enquanto os da base da piriimide - contra todas as chances - lutam desesperadamente para fazer suas frageis, mesquinhas e transit6rias ·posses durarem mais tempo. Os dais se encontram hoje em dia principalmente nos !ados opostos dos balcoes das mega-liquida~oes ou de vendas de carros usados.

A desintegra~ao da rede social, a derrocada das agencias efetivas de a~ao coletiva, e recebida muitas vezes -com grande ansiedade e lamentada como "efeito colateral"· nao previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vez mais m6vel, escorregadio, evasivo e fugitivo. Mas a desintegra~ao social e tanto uma condi~ao quanto urn resultado da nova tecnica do poder; que tern como ferramentas

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principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, bar­reiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede dens a de lac;os sociais, e em particular uma que esteja territorialrnente en­raizada, e urn obstaculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua continua e crescente fluidez, principal fonte de sua for~a e garantia de sua invencibilidade. E sao esse derrocar, a fragilidade, o quebradi~o, o imediato dos la~os e redes humanos que permitem que esses poderes operem.

Se essas tendencias entrela<;adas se desenvolvessem sem freios, homens e mulheres seriam reformulados no padrao da tou­peira eletronica, essa orgulhosa inven~ao dos tempos pioneiros da cibernetica imediatamente aclamada como arauto do porvir: urn plugue em castores atarantados na desesperada busca de tomadas a que se ligar. Mas no futuro anunciado pelos telefones celulares, as tomadas serao provavelmente declaradas obsoletas e de mau gosto, e passarao a ser fornecidas em quantidades cada vez meno­res e com qualidade cada vez mais duvidosa. No momenta, muitos fornecedores de eletricidade exaltam as vantagens da conexao a suas respectivas redes e disputam os favores dos que procuram por tomadas. Mas a Iongo prazo ( o que quer que "Iongo prazo" signifique na era da instantaneidade) as tomadas serao provavel­mente banidas e suplantadas por baterias descartaveis compradas individualmente nas lojas e em oferta em cada quiosque de aero­porto e posto de gasolina ao Iongo das estradas.

Essa parece sera distopia feita sob medida para a modernida­de liquida - e capaz de substituir os terrores dos pesadelos de Orwell e Huxley.

]unho de 1999

1 • EMANCIPA<;:AO

fl., lim das "tres decadas gloriosas" que se seguiram ao final da So·gnnda Guerra Mundial - as tres decadas de crescimento sem !'~"~''""dentes e de estabelecimento da riqueza e da seguran~a eco­IJ(.Jillica no pr6spero Ocidente- Herbert Marcuse reclamava:

Em rela<;ao a hoje e a nossa prOpria condi<;ao, creio que estamos diante de uma situa<;ao nova na hist6ria, porque temos que ser liber­tados de uma sociedade rica, poderosa e que funciona relativamente bern ... 0 problema que enfrentamos e a necessidade de nos liber­tarmos de uma sociedade que desenvolve em grande medida as ne­cessidades materiais e mesmo culturais do homem - uma sociedade que, para usar urn slogan, cumpre o que prometeu a uma parte cres­cente da popula<;ao. E isso implica que enfrentamos a liberta<;8.o de urn a sociedade na qual a lib erta<;ao aparentemente nao conta com uma base de massas. 1

Devermos nos emancipar, '~libertar-nos da sociedade': nao era problema para Marcuse. 0 que era um problema - o problema especifico para a sociedade que "cumpre o que prometeu" - era a falta de uma "base de mass as" para a liberta~ao. Para simplificar: poucas pessoas desejavam ser 1ibertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmente ninguem tinha certeza de como a "liberta~ao da sociedade" poderia distinguir-se do Estado

em que se encontrava. "Libertar-se" significa literalmente libertar-se de algum tipo

de grilhao que obstrui ou impede os movimentos; come~ar a sen­tir-se livre para se mover ou agir. "Sentir-se livre" significa nao experimentar dificuldade, obstaculo, resistencia ou qualquer ou­tro impedimenta aos movimentos pretendidos ou concebiveis.

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Como observou Arthur Schopenhauer, a "realidade" e criada pelo at? de _querer; e a teimosa indiferew;a do mundo em relac;ao a minha lnten<;io, a relut3.ncia do mundo em se submeter a minha vontade, que resulta na percep<;io do mundo como '"rear: cons­trangedor, limitante e desobediente. Sentir-se livre das limita~oes, hvre para agir conforme os desejos, significa atingir o equilibria ~ntre os desejos, a imagina<;io e a capacidade de agir: sentimo-nos hvres na medida em que a imagina~ao nao vai mais Ionge que nosso_s desejOS e que nem uma nem os outros ultrapassam nossa capac1dade de agir. 0 equilibria pode, portanto, ser alcan~ado e manndo de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos

· e/ ou a 1magma~ao, ou ampliando nos sa capacidade de a~ao. Uma vez alcan~ado o equilibria, e enquanto ele se mantiver, "liberta­~ao" e urn slogan sem sentido, pois falta-lhe for~a motivacional. " Tal u,~o nos per?'ite distinguir entre liberdade "subjetiva" e objetlVa. -. e tambem entre a "necessidade de liberta~ao" subje­

tlva e objetlva. Pode ser que o desejo de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tido oportunidade de surgir (por exem­plo, pela pressao do "principia de realidade" exercido, segundo Sigmund :reud, sabre a busca humana do prazer e da felicidade); ~s 1n~e?c;~es, fossem elas realmente experimentadas ou apenas nnagmave1s, foram adaptadas ao tamanho da capacidade de agir, e partlcularmente a capacidade de agir razoavelmente - com chance de sucesso. Por outro !ado, pode ser que, pela manipula~ao d1reta das mten~oes - uma forma de "lavagem cerebral" - nunca se pudesse chegar a verificar os limites da capacidade "objetiva" ?e agr: e menos ainda saber quais eram, em primeiro Iugar, essas mten~oes, acabando-se, portanto, por coloca.-las abaixo do nivel da liberdade "objetiva':

A distin~ao entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" abriu uma genuina caixa de Pandora de questoes embara~osas como "feno­meno versus essencia" - de significa<;io filos6fica variad~ mas no todo consideravel, e de importancia politica potencialmente enor­me. Uma dessas questoes e a possibilidade de que o que se sente como hberdade nao seja de fato liberdade; que as pessoas pode­rem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja Ionge de ser "objetivamente" satisfat6rio; que, vivendo

Emancipo~Oo 25

111t •·~uTuvidiio, se sintam livres e, portanto, niio experimentem a IJII• l')l~iclade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar fo'l'llllllllllllt'.nte livres. 0 corol3.rio dessa possibilidade e a suposic;iio d•· quc• aH pcssoas podem ser juizes incompetentes de sua prOpria 11111111•;uo, c devem ser forc;adas ou seduzidas, mas em todo caso p,uwdn.o;, para experimentar a necessidade de ser "objetivamente" lin•·" c· para reunir a coragem e a determinac;ao para lutar par isso. A uwu•;a mais sombria atormentava o corac;iio dos fil6sofos: que as l~~'"~oa!-l pudessem simplesmente niio querer ser livres e rejeitas­"''"' a perspectiva da liberta~ao pelas dificuldades que o exerdcio oloo lil .. ,rdade pode acarretar.

A•• bon~aos mistas do liberdade

N11111a versao ap6crifa da Odisseia ("Odysseus und die Schweine: ol.o·o llnbehagen an der Kultur"), Lion Feuchtwanger propos que 11:1 tnarinheiros enfeitic;ados por Circe e transformados em porcos g• •sjaram de sua nova condic;iio e resistiram desesperadamente aos o·Hf<>r\·os de Ulisses para quebrar 0 encanto e traze-los de volta a lonna humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha c·twontrado as ervas m<lgicas capazes de desfazer a maldic;iio e de 'I'"' logo seriam humanos novamente, fugiram numa velocidade 'I"" seu zeloso salvador nao pode acompanhar. Ulisses conseguiu alinal prender urn dos suinos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele eri~ada deu Iugar a Elpenoros - urn marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos os sentidos mediano e comum, ··xatamente "como todos os outros, sem se destacar por sua fon;a <>II por sua esperteza': 0 "libertado" Elpenoros nao ficou nada wato por sua liberdade, e furiosamente atacou seu "libertador":

Entao voltaste, 6 tratante, 6 intrometido? Queres novamente nos aborrecer e importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forc;ar nossos corac;Oes sempre a novas decisOes? Eu estava tao feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao sol, eu podia comer e heber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditac;6es e dlividas: «Q que devo fazer, isto ou aquila?" Par que- vieste? Para jogar-me outra· vez na vida odiosa que eo levava antes?

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26 Modernidade Liquida

A liberta9ao e uma ben9ao ou uma maldi9ao? Uma maldi9ao disfar9ada de ben9ao, ou uma ben9ao temida como maldi9ao? Tais quest5es assombraram os pensadores durante a maior parte da era moderna, que punha a "liberta9ao" no topo da agenda da reforma politica e a "liberdade" no alto da lista de valores - quando ficou suficientemente clara que a Jiberdade custava a chegar e os que deveriam deJa gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A primeira lan9ava duvidas sobre a pronti­dao do "povo comum" para a Jiberdade. Como o escritor norte­americana Herbert Sebastian Agar dizia (em A Time for Greatness, 1942), "a verdade que torna OS homens Jivres e, na maioria dos casas, a verdade que os homens preferem nao ouvir': A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem nao estar inteiramen­te equivocados quando questionam os beneficios que as liberda­des oferecidas podem lhes trazer.

Respostas do primeiro tipo inspiram, intermitentemente, com­paixao pelo "povo" desorientado, enganado e levado a desistir de sua chance de liberdade, ou desprezo e ultraje contra a "massa" que nao quer assumir os riscos e responsabilidades que acompa­nham a autonomia e a auto-afirma<;ao genuinas. 0 protesto de Marcuse envolve uma mistura das duas, alem de uma tentativa de deixar na soleira da nova prosperidade a culpa pela reconcilia9ao evidente dos niio-livres com sua falta de Jiberdade. Outros discur­sos freqiientes para protestos semelhantes foram os do "aburgue­samento" dos despossu:idos (a substitui<;ao de "ser'' por '"ter': e a de "'agir" por "ser" como os val ores mais altos) e da ''cultura de massas" (uma lesiio cerebral coletiva causada pela "industria cul­tural': plantando uma sede de entretenimento e diversao no Iugar que - como diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixao pela do9ura e pela luz e pela paixao de fazer com que estas triunfem").

Respostas da segunda especie sugerem que o tipo de liberda­de louvada pelos libertarios nao e, ao contr:\rio do que eles dizem, uma garantia de felicidade. Vai trazer mais tristeza que a!egria. Segundo este ponte de vista, os libertarios estao errados quando afirmam - como o faz, por exemplo, David Conway,2 seguindo o prindpio de Henry Sidgwick - que a felicidade geral e promovida

Emancipa<;Oo 27

1111tl111 1·lka?.mente se mantivermos nos adultos ''a expectativa de 'l'lf' t·uda 11m sed. deixado com seus pr6prios recursos para prover 1111111'• prt\prias necessidades"; ou Charles Murray,3 que beira o lirico till dt•!H'I'(~VCf a felicidade intrinseca a busca Solitaria: "Q que faz IIIII llt'OilteCimentO causar satisfa<_;iiO e que voceo produziu ... COID ll'ttl'onsahilidade substancial sabre seus ombros, sendo uma parte 1111 h~j <HI<'ial do bern alcanc;ado uma contribuic;:lo sud' "Ser aban­donado a seus pr6prios recursos" anuncia tormentas mentais e a ,,p,onia da indecisiio, enquanto a ''responsabilidade sabre os prO­prio!'! ombros" prenuncia urn medo paralisante do risco e do fra­•-uMso, sem direito a apelac;ao ou desistencia. Esse nao pede ser o "'p,11ificado real da "liberdade"; e se a Jiberdade "realmente exis­i<'lltP'; a Jiberdade oferecida, significar tudo isso, ela nao pode ser 11<'111 a garantia da felicidade, nem urn objetivo digno de !uta.

ltespostas do segundo tipo nascem em ultima analise do hor­n>~" visceral hobbesiano ao "hom em a salta'~ Derivarn sua credibi­lidade da suposi9ao de que urn ser humane dispensado das limi­t a~iies sociais coercitivas ( ou nunca submetido a elas) e uma besta ,. nUo urn individuo livre; e o horror que ele gera vern de outra suposi9ao: a de que a falta de limites eficazes faz a vida "detestavel, brutal e curta" - e, assirn, qualquer coisa, menos feliz. A mesma visao hobbesiana foi desenvolvida por Emile Durkheim numa fi­losofia social compreensiva, de acordo com a qual e a "norma·: mcdida pela media ou pelo mais comum, e apoiada em duras san96es punitivas, que verdadeiramente liberta os pseudo-huma­uos da mais horrenda e tem:ivel das escravid6es; o tipo de escra­vidao que nao se esconde em nenhuma pressao extema, mas den­tro, na natureza pre-social ou associal do homem. A coerc;ao social e, nessa filosofia, a for9a emancipadora, e a unica esperan9a de Jiberdade a que urn humane pode razoavelmente aspirar.

0 individuo se submete a sociedade e essa submissao e a condi~ao de sua liberta~ao. Para o homem a liberdade consiste em nao estar sujeito as for~as fisicas cegas; ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente for~a da sociedade, sob cuja prote<;iio se abriga. Ao colocar-se sob as asas da sociedade, ele se toma, ate certo ponte, dependente dela. Mas e uma dependencia libertadora; nao hit nisso contradi~ao.4

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Nao so nao ha contradi~ao entre dependencia e Jiberta~ao: nao ha:outro caminho para buscar a libertac;ao senao "submeter-se a sociedade" e seguir suas normas. A Jiberdade nao pode ser ga­nha contra a sociedade. 0 resultado da rebeliao contra as normas, mesmo que os rebelados nao tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua propria condi~ao, e uma agonia perpetua de indecisao ligada a urn Estado de incerteza sabre as intenc;5es e movimentos dos outros ao redor - o que faz da vida urn inferno. Padroes e rotinas impas­tos por press5es sociais condensadas poupam essa agonia aos he­mens; gra~as a monotonia e a regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais foram treinados e a que podem ser obrigados, os homens sabem como proceder na maior parte do tempo e raramente se encontram em situac;Oes sem sinalizac;ao, aquelas situa~oes em que as decisoes devem ser tomadas com a propria responsabilidade e sem o conhecimento tranqiiilizante de suas conseqiiencias, fazendo com que cada movimento seja im­pregnado de riscos dificeis de calcular. A ausencia, ou a mera falta de clareza~ das normas - anomia - e 0 pior que pode acontecer as pessoas em sua !uta para dar conta dos afazeres da vida. As normas capacitam tanto quanta incapacitam; a anomia anuncia a pura e simples incapacita~ao. Uma vez que as tropas da regulamen­ta~ao normativa abandonam o campo de batalha da vida, sobram a pen as a duvida e o medo. Quando (como notavelmente formula­do por Erich Fromm) "cada indivlduo deve ir em frente e tentar sua sorte': quando "ele tern que nadar ou afundar" - "a busca compulsiva da certeza" se instala, come~a a desesperada busca por "soluc;5es" capazes de "eliminar a consczlncia da dUvida" - o que quer que prometa "assumir a responsabilidade pela 'certeza"' e bem-vindo.5

"A rotina pode apequenar, mas ela tambem pode proteger"; e o que diz Richard Sennett, para entao lembrar seus leitores da velha controversia entre Adam Smith e Dennis Diderot. En quanta Smith advertia contra os efeitos degradantes e estupidificantes da rotina de trabalho, "Diderot nao acreditava que o trabalho rotinei­ro e degradante ... 0 maior herdeiro moderno de Diderot, o socio­logo Anthony Giddens, tentou manter viva a percep~ao diderotia-

Emancipa<_;Oo 29

na, apontando para o valor primario do habito tanto para as pra­ticas sociais quanta para a autocompreensao': A proposi~ao do proprio Sennett e direta: "Imaginar uma vida de impulses momen­tineos, de a<;Oes de curta prazo, destituida de retinas sustentiveis, uma vida sem hibitos, e imaginar, de fato, uma existencia sem sentido~' 6

A vida ainda nio atingiu os extremes que a fariam sem senti­do, mas muito dana foi causado, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novissimas retinas (que provavelmente nao durarao o suficiente para se tornarem habitos) nao poderao ser mais que muletas, artificios do engenho humano que so parecem a coisa em si se nos abstivermos de examina-las muito de perto. Toda certeza alcan~ada depois do "pecado original" de desmante­lar o mundo cotidiano cheio de retinae vazio de reflexao tera que ser uma certeza manufaturada, uma certeza escancarada e desa­vergonhadamente "fabricada'; sobrecarregada com toda a vulne­rabilidade inata das decis6es tomadas por humanos. De fa to, como insistem Deleuze e Guattari,

nao acreditamos mais no mito da existencia de fragmentos que, como pec;as de uma antiga esd.tua., estao meramente esperando que apare­<;a o Ultimo caco para que todas possam ser coladas novamente para criar uma unidade que e precisamente a mesma que a unidade ori­ginal. Nao mais acreditamos numa totalidade primordial que existiu uma vez, nero numa totalidade final que espera por n6s numa data futura.7

0 que foi separado nao pode ser colada novamente. Abando­nai toda esperan~a de totalidade, tanto futura como passada, v6s que entrais no mundo da modernidade fluida. Chegou o tempo de anunciar, como o fez recentemente Alain Touraine, ''o fim da defini~ao do ser humane como urn ser social, definido por seu Iugar na sociedade, que determina seu comportamento e a~oes': Em seu Iugar, o prindpio da combina~ao da "defini~ao estrategica da a~ao social que nao e orientada pof normas sociais" e "a defesa., por todos os atores sociais, de sua especificidade cultural e psico­logica" "pode ser encontrado dentro do indivlduo, e nao mais em institui<;Oes sociais ou em principios universais':8

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30 Modernidade lfquida

A suposi9ao tl!cita que ap6ia uma tomada de posi9iio tao radi­cal e que a liberdade concebivel e passive! de alcan9ar ja foi atin­gtda; nada resta a fazer senao limpar os poucos cantos restantes c::

preencher OS poucos Jugares vazios- traba[Jio que sera comp[et." do em pouco tempo. Os homens e as mulheres sao inteira e v< dadeiramente Jivres, e assim a agenda da liberta9iio esta pratic mente esgotada. 0 protesto de Marcuse e a nostalgia comunita da comunidade perdida podem ser manifesta9iies de valores rr tuamente opostos~ mas sao igualmente anacrOnicos. Nem o ret raizar dos desenraizados, nero o "despertar do povo'' para a tan nao-realizada da liberta9iio estao nas cartas. A perplexidade Marcuse esta ultrapassada, pois "o individuo" ja ganhou tod• liberdade com que poderia sonhar e que seria razoltvel esperar; : instituic;Oes sociais estao mais que dispostas a deixar 3 iniciati". individual o cuidado com as defini9iies e identidadcs, e os princi pios universais contra os quais se rebelar estao em falta. Quanto ao sonho comunit<lrio de "reacomodar os dcsacomodados': nada pode mudar o fato de que o que estl! disponivcl para a rcacomo­da<,;:Uo sao somente camas de motel, sacos de dormir e divas de analistas, e que de agora em diante as comunidades- mais postu­ladasque "imaginadas"- podem ser apenas a1tcfatos dcmcros da pec;a da individualidade em curso, e ni'io mais as fon"~as determi­nantes e definidoras das identidades.

As casualidades e a sorte cambiantes do crltica

0 que est3. errado com a sociedade em que vivemos, diss(~ Corne­lius Castoriadis, e que ela deixou de sc qne:;;tionar. I~ 111n lipo de socicdade que nao mais reconhecc qtwkpwl' altc·•·nativa para si mcsma e, portanto, sente-se absolvida do dev<w de examinar, de­monstrar, justificar (e que dira provar) a validade de suns suposi­~iies tacitas e declaradas.

lsso nao significa, cntrctanto, que nossn soci"cli~ele t"nha su­pl'imido (ou venha a suprimi1·) o pensam"nto l'l'ltic·o rollin tal. Ela uno dcixou seus mcmhroH reticentt~H (<~ JTWlloM ainda temerosos) t~lll lhe dar voz. Ao contrfll'io: noHHn Hocit~dnd<~ - uma sociedade

Emancipa~Oo 31

de "individuos livres" - fez da critica da realidade, da insatisfa9iio com "o que ai esta" e cia expressao dessa insatisfa9iio uma parte inevitavel e obrigat6ria dos afazeres cia vida de cada urn de seus membros. Como Anthony Giddens nos lembra, estamos hoje en­gajados na "politica-vida"; somos "seres reflexivos" que olhamos de perto cada movimento que fazemos, que estamos raramente satisfeitos com seus resultados e sempre prontos a corrigi-los. De alguma maneira, no entanto, essa reflexao nao vai longe o suficien­te para alcant;ar os complexes mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os determinam, e menos ainda as condic;Oes que mantem esses mecanismos em operat;3.o. Somos talvez mais "predispostos a critica': mais assertivos e intransigentes em nossas criticas, que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa critica e, por assim dizer, "desdentada': incapaz de afe­tar a agenda estabelecida para nossas escolhas na "politica-vida': A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como ha tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela tambem uma impott~ncia sem precedentes.

Ouve-se algumas vezes a opiniao de que a sociedade contem­por~nea (que aparece sob 0 nome de ultima sociedade moderna ou p6s-moderna, a sociedade da "segunda modernidade" de Ul­rich Beck ou, como prefiro chama-la, a "sociedade da modernida­de fluida") e in6spita para a critica. Essa opiniao parece perder de vista a natureza cia mudan9a presente, ao supor que o proprio significado de "hospitalidade" permanece invariavel em sucessivas fases hist6ricas. A questao e, porem, que a sociedade contempora­nea deu a "hospitalidade a critica" urn sentido inteiramente novo e inventou urn modo de acomodar o pensamento e a ac;ao criticas, permanecendo imune as conseq~encias dessa acomoda<;iio e sain­do, assim, intacta e sem cicatrizes - refor<;ada, e nao enfraquecida - das tentativas e testes cia "politica de portas abertas'~

0 tipo de "hospitalidade a critica" caracteristico cia sociedade moderna em sua forma presente pode ser aproximada do padrao do acampamento. 0 Iugar esti aberto a quem quer que venha com seu trailer e dinheiro suficiente para o aluguel; os h6spedes v~m e vao; nenhum deles presta muita aten9iiO a como 0 Iugar e gerido, desde que haja espa~o suficiente para estacionar o trailer, as toma-

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32 Modernidad1 Llquldn

das elt~tricas e encanamentos estcjum ~m m•dt•m ,. c n1 donas dos trailers vizinhos nao fa<;am muito bnrulho r IIIUIII<'Ilham baixo o som de suas TVs portateis e aparelho• dr Mom clc•poiN cle escurecer. Os motoristas trazem para o acampu11U'IIIIo !IIIIUH )H'c

1Jjll'ias casas, equipadas com todos os aparelhos de cpw lll'<•c·iHUIII para a estada, que em todo caso pretendem que st~ju l'lll'ln. ( :uda 11111 tern seu prOprio itinedrio e horclrio. 0 que os molol'iHIHH IJIH'I'<~m dos ad­ministradores do lugar nao f:. IDUito 01Ui.!1 (111111'1 (UIIlJH>liCO menos) do que ser deixados a vontade. Em !fO('II, 11~11 l'l'l'll'lllklll desafiar a autoridade dos administradores e pa~o~am o alup;cll'l 110 prazo. Como pagam, tambem demandam. Thndm11u HI' I' i11lkxiveis quan­do defendem seus direitos aos servi~os pronu•liclos, mas em geral querem seguir seu caminho e ficariam irritudmt !W isso niio lhes fosse permitido. Ocasionabnente podem reivi11clil'a1' mdhores ser­vic;.os; se forem bastante incisivos, vociferaut<~H t• J't'!mlulos, podem ate obte-los. Se se sentirem prejudicados, 1""'"11' ,·.,damar e co­brar 0 que lhes e devido - mas llUllCa Jhes OI'OI'I't'l'ia questionar e negociar a filosofia administrativa do Iugar, t~ 11111ito nwnos assu­mir a responsabilidade pelo gerenciamento do lll<'.,lllo. Podem, no miximo, anotar mentalmente que nao devem llllll<'a mais usar o Iugar novamente e nem recomenda-lo a seus amip;os. ()uando vao embora, seguindo seus pr6prios itinerarios, o lu~o~ar lica como era antes de sua chegada, sem ser afetado pelos ocupantcs anteriores e esperando por outros no futuro; embora, se alflllmas queixas continuarem a ser feitas por grupos sucessivos de h6spedes, os servic;os oferecidos possam vir a ser modificados para impedir que as queixas sejam novamente manifestadas no futuro.

Na era da modernidade liquida a hospitalidade a critica da sociedade segue o padrao do acampamento. Quando Adorno e Horkheimer formularam a teoria critica classica, gerada pela expe­riencia de outra modernidade, obcecada pela ordem, e assim in­formada e orientada pelo telosda emancipa~ao, era muito diferente o modelo em que se inscrevia, com born fundamento empirico, a ideia de critica: o modelo de uma casa compartilhada, com suas normas institucionalizadas e regras habituais, atribui~ao de deve­res e desempenho supervisionado. Embora !ide bern com a critica a forma de hospitalidade do acampamento em rela~ao aos donos

Emancipa~Cio 33

dos trailers, nossa sociedade definitivamente niio aceita hem a cntica COffiO a que OS fundadores da esco!a critica supunham e a qual endere<;aram sua teoria. Em termos diferentes, mas corres­pondentes, poderiamos dizer que uma "critica ao estilo do consu­midor" veio substituir sua predecessora, a "cr:itica ao estilo do produtor':

Contrariamente a uma moda difundida, essa mudanc;a nao pode ser explicada meramente por referencia a mudan~a na dis­posi~ao do publico, a diminui~ao do apetite pela reforma social, do interesse pelo bern com urn e pelas imagens da boa sociedade, a decadencia da popularidade do engajamento politico, ou a alta dos sentimentos hedonisticos e do '"eu primeiro" - ainda que tais fen&menos sem dlivida se destaquem entre as marcas do nosso tempo. As causas da mudanc;a vao mais fundo; estao enraizadas na profunda transforma~ao do espa~o publico e, de modo mais geral, no modo como a sociedade moderna opera e se perpetua.

0 tipo de modernidade que era o alvo, mas tambem o quadro cognitivo, da teoria cr:itica cla.ssica, numa analise retrospectiva, pa­rece muito diferente daquele que enquadra a vida das gera~oes de hoje. Ela parece "pes ada" (contra a "!eve" modernidade contem­porinea); melhor ainda, "s6lida" ( e nao "fluida': "Hquida" ou "li­quefeita"); condensada (contra difusa ou "capilar"); e, finalmente, "sist@mica" (por oposic;ao a 0'em forma de rede").

Essa modernidade pesada/s61ida/condensada/sistemica da "teoria critica" era impregnada da tendencia ao totalitarismo. A sociedade totalit:l.ria da homogeneidade compuls6ria, imposta e onipresente, estava constante e ameac;;.adoramente no horizonte -como destino Ultimo, como uma bomba nunca inteiramente de­sarmada ou urn fantasma nunca inteiramente exorcizado. Essa mo­dernidade era inimiga jurada da contingencia, da variedade, da ambigiiidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas "anomalias"; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras vftimas da cruzada. Entre os principais icones dessa modernidade estavam a_fclbrica .fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados, destinados a serem obe­diente e mecanicamente seguidos, sem envolver as faculdades

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mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual; a burocracia, afim, pelo menos em suas tendencias inatas, a~ ~odelo ideal de Max Weber, em que as identidades e la<;os soc1a1s eram pendurados no cabide da porta da entrada junto com os chapeus, guarda-chuvas e capotes, de tal forma que somen~e o comando e os estatutos poderiam dirigir, incontestados, as a<;oes dos de den­tro enquanto estivessem dentro; o pan6P_tico com suas torres de controle e com os internes que nunca podmm contar com os even­tuais lapses de vigilancia dos supervisores; o Grande Irmiio, que nunca cochila, sempre atento, r:ipido e expedito em pre~nar os fieis e punir os infieis; e - finalmente - o Ifonzlager (ma1s tarde acompanhado no contra-panteao dos demomos modernos pelo Gulag), Iugar onde os limites da maleabihdade humana eram tes­tados em laborat6rio e onde aqueles que suposta ou realmente nao eram male:iveis o suficiente eram condenados a morrer de exaust:io ou mandados as camaras de g<is ou aos crematOries.

Mais uma vez, em retrospecto, podemos dizer que a teoria critica pretendia desarmar e neutralizar, e de ~referencia eliminar de uma vez, a tendencia totalitaria de uma socredade que se supu­nha sobrecarregada de inclina<;6es totalitirias intrinseca e perma­nentemente. 0 principal objetivo da teoria critica era a defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da auto-afirma<;ao humanas, do direito de ser e permanecer diferente. Como nos antigos me­lodramas de Hollywood, que supunham que o momento em que

08 amantes se encontravam novamente e pronunciavam os votos

do casamento assinalava o fim do drama eo comec;o do bem-aven­turado ""viveram felizes para sempre': a teoria critica, no inicio, via a Jiberta<;ao do individuo da garra de ferro da retina ou sua fuga da caixa de a<;o da sociedade afligida por urn insaciavel apetite totalitirio, homogeneizante e uniformizante como o Ultimo ponto da emancipa<;~O e o fim do sofrimento humane - o mo~nento ~a ""missao cumprida': A critica devia servir a esse propos1to; na,o precisava procurar alem disso, nem alem do momenta de alcan<;a­

lo - nem tinha tempo para tanto. Na epoca em que foi escrito, o 1984 de George Orwell er~ o

mais complete - e canOnico- inventirio dos ~~dos, ~ apreen~oes que assombravam a modernidade em seu estag10 solido. Projeta-

Emancipat;Cio 35

dos sabre os diagn6sticos dos problemas e das causas dos sofri­rnentos contemporineos, esses medos desenham o horizonte dos programas emancipat6rios do periodo. Chegado o 1984 real, a vis~o de Orwell foi prontamente lembrada, trazida novamente ao debate publico, como era de se esperar, e, uma vez mais (talvez a ultima), amplamente considerada. A maioria dos escritores, como tamhem era de se esperar, afiou suas penas para separar a verdade da inverdade das profecias de Orwell, testadas pelo lapso de tem­po que o proprio Orwell previra para que suas palavras se concre­tizassem. Nao surpreende, no entanto, que em nossos tempos -quando mesmo a imortalidade dos marcos e rnonumentos da his­t6ria cultural da humanidade esta sujeita a reciclagem continua e precisa ser periodicarnente trazida de volta a atenc;ao em comemo­ra<;Oes ou pela excita~ao que precede e acompanha as exibi<;6es retrospectivas (apenas para desaparecer da vista e do pensamento tao logo as exibic;6es terrninem ou aparec;a outro aniversirio para consumir o espa~o da imprensa e o tempo da TV) - a encena<;ao do "even to Orwell" nao tenha sido muito diferente do tratamento dado intermitentemente a coisas como Thtancamon, o ouro inca, Vermeer, Picasso ou Monet.

Mesmo assim, a brevidade da celebra<;ao de 1984, a tepidez e o n\pido esfriamento do interesse que produziu e a velocidade com que a obra-prima de Orwell novamente afundou no esqueci­mento uma vez cessada a excitac;ao criada pela midia nos fazem parar para pensar. Afmal, esse livro serviu durante muitas decadas ( e ate algumas decadas atras) como o catalogo mais competente dos medos, pressentimentos e pesadelos publicos; en tao, por que nao mais que urn interesse passageiro em sua breve ressurreic;i'io? A unica explica<;ao razoavel e que as pessoas que discutiram o livro em 1984 nao se sentiram estimuladas e ficaram quase indiferentes ao assunto que tinham sido encarregadas de discutir e ponderar, porque nao mais reconheciam na distopia de Orwell suas pr6prias afli~oes e agonias, ou os pesadelos de seus semelhantes. 0 livro voltou a aten<;ao publica apenas fugazmente, e ganhou uma posi­<;iio mais ou menos entre a Hirtoria natJ.tralir de Plinio o Velho e as profecias de Nostradamus.

Nao e mau definir epocas hist6ricas pelo tipo de "dem6nios Intimas" que as assombram ·e atormentam. Durante muito tempo,

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a distopia de Orwell, juntamente com o sinistro potencia~ do pro­jeto iluminista revelado por Adorno e Horkhetmer, o panoptico d~ Bentham/Foucault ou sintomas recorrentes de retomada da mare totalititria, foi identificada com a ideia de "modernidade': Nao e surpreendente, pois, que, quando os velhos medos foram afasta­dos do palco e novos medos, muito diferentes dos horrores da iminente Gleichschaltung e da perda da liberdade, surgiram no primeiro plano e no debate publico, diversos observadores te­nham rapidamente proclamado o "fim da modernidade" ( ou mes­mo, mais ousadamente, o fim da propria hist6ria, argumentando que ela tinha atingido seu telos ao tornar a liberdade, pelo menos o tipo de liberdade exemplificado pelo mercado hvre e pela esco­lha do consumidor, imune a quaisquer amea~as). E no entanto (creditos para Mark '!\vain) a noticia do falecimento da moderni­dade, mesmo os rurnores sabre sen canto de ctsne, era grosseira­mente exagerado: sua profusao niio faz os obitu:lrios menos pre­matures. Parece que o tipo de socicdade diagnosticada e levada a juizo pelos fundadores da teo ria critica ( ou, pela di:~opia de Or­well) era apenas uma clas form as que a vcrsat1l e vanavel socteda­de moderna assumia. Scu dcsaparccimento nao anuncia o fim da modernidade. Nem 6 o arauto do lim da mis{,ria humana. Menos ainda assinala o fim da critica <~omo tarcfa c voca<;Uo intelectual. E em nenhuma hip6tese torna essa crltica dispensitvel.

A sociedade que entra no s(~culo XXI nao t.~ menos "moderna" que a que entrou no sCculo XX; o m{tximo que se pode dizer e que ela e moderna de urn modo difercntc. 0 que a faz tao moderna como era mais ou menos hU um s(~culo Co que distingue a moder­nidade de todas as outras forrnas histbricas do convivio humano: a compulsiva e obsessiva, continua, irrefrcllvel c sempre incomple­ta modernizar;iio; a opressiva c inerradicllvel, insaciUvel sede de destrui~ao criativa (ou de criatividadc destrutiva, se foro caso: de "limpar o lugar'' em nome de urn ~'uovo c aperfeic;oado'' projeto; de ''desmantelar': "cortar': "defasar': ''reunir" on ""rcduzir': tudo isso em nome da maior capacidade d\' fazer o 11wsmo no futuro -em nome da produtividade ou da compctitividade).

Como assinalava Lessing ha. muito tempo, no limiar da era moderna fomos emancipados da crenc;a no ato da criac;iio, da re-

Emancipac;Cio 37

vdac;iio e da condenac;ao eterna. Com essas crenc;as fora do cami­n ho, nOs, humanos, nos encontramos "por nossa prOpria conta" -o que significa que, desde entiio, niio conhecemos mais limites ao a perfei<;oamento alem das limita<;iies de nossos pr6prios dons her­d ados ou adquiridos, de nossos recursos, coragem, vontade e de­lermina<;ao. E o que o homem faz o homem pode desfazer. Ser 1noderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser inca­paz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e ('ontinuaremos a nos mover niio tanto pelo "adiamento da satisfa­~;;io': como sugeriu Max Weber, mas par causa da impossibilidade de atingir a satisfa<;ao: o horizonte da satisfa~ao, a linha de chega­da do esfor~o e o momenta da auto-congratula~ao tranqiiila mo­vcm-se r:lpido demais. A consumac;ao estcl sempre no futuro, e os ohjetivos perdem sua atra~ao e potencial de satisfa~ao no momen­lo de sua realizac;ao, se nao antes. Ser moderno significa estar S<~mpre a frente de si mesmo, num Estado de constante transgres­siio (nos termos de Nietzsche, nao podemos ser Mensch sem ser, ou pelo menos lutar para ser, t.ibermen.rch); tambem significa ter IIJJla identidade que SO pode existir COffiO projeto llao-reaJizado. II esse respeito, nao hit muito que distinga nossa condi<;ao da de llOSSOS avOs.

Duas caracteristicas, no entanto, fazem nossa situac;ao - nossa J(>rma de modernidade - nova e diferente.

A primeira e o colapso gradual e o ritpido declinio da antiga dusao moderna: da cren~a de que hit urn fim do caminho em que andamos, urn telos alcan~itvel da mudan~a hist6rica, urn Estado de perfeic;ao a ser atingido amanha, no prOximo ano ou no prOximo 111ilenio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados: do l"i rme equilibria entre oferta e procura e a satisfa~ao de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo e colocado no Iugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum Iugar e posto ~~m dUvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transpa­rcntes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo dominio sabre o futuro - tao completo que poe fim a toda con­lingencia, disputa, ambival&ncia e conseqiiencias imprevistas das i11iciativas humanas.

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38 Modernidade Uquida

A segunda mudan~a e a desregulamenta~ao e a privatiza~ao das tarefas e deveres modernizantes. 0 que costumava ser consi­derado uma tarefa para a razao humana, vista como dotac;ao e propriedade coletiva da especie humana, foi fragmentado ("indi­vidualizado"), atribuido as visceras e energia individuais e deixa­do a administra9ao dos individuos e seus recursos. Ainda que a id<\ia de aperfei~oamento ( ou de toda moderniza~ao adicional do status quo) pela a~ao legislativa da sociedade como urn to do nao tellha sido completamente abandonada, a enfase (juntamente, 0

que e importante, com 0 peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a auto-afirma~ao do individuo. Essa importan­te altera~ao se reflete na realoca~ao do discurso etico/politico do quadro da "sociedade justa" para 0 dos "direitos humanos': isto e, vo[tando o foco daquele discurso ao direito de os individuos per­ffi'lnecerem diferentes e de escolherem a vontade seus pr6prios modelos de felicidade e de modo de vida adequado.

As esperan~as de aperfei~oamento, em vez de convergir para gr'lndes somas nos cofres do governo, procuram o troco nos bol­sos dos contribuintes. Se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje e !eve no alto, tendo se livrado de seus deveres "emancipat6rios': exceto o clever de ceder a quest::io da emancipa~ao as camadas media e inferior, as quais foi relegada a :maior parte do peso da modernizac;ao continua. "N:lo mais a salva~ao pela sociedade': proclamou o ap6stolo do novo espirito da empresa, Peter Drucker. "Nao existe essa coisa de sociedade'; declarou Margaret Thatcher, mais ostensivamente. Nao olhe para tr~s, ou para cima; olhe para dentro de voce mesmo, onde supos­ta:rnente residem todas as ferramentas necess:irias ao aperfeic;oa­mento da vida - sua astucia, vontade e poder.

E nao hi mais "o Grande Irmao a espreita"; sua tarefa agora e observar as fileiras crescentes de Grandes Irmaos e Grandes Irmas e observi-las atenta e avidamente, na esperan~a de encontrar algo de uti! para voce mesmo: urn exemplo a imitar ou uma palavra de conselho sabre como lidar com seus problemas, que, como as de!es, devem ser enfrentados individualmente e s6 podem ser enfrentados individualmente. Nao mais grandes lideres para !he dizer o que fazer e para alivii-lo da responsabilidade pela conse-

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cpit•ncia de seus atos; no mundo dos individuos h:l apenas outros 111clividuos cujo exemplo seguir na condu~ao das tarefas da pr6-J'I"ia vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqiien­t·ia.~ deter investido a confianc;a nesse e nao em qualquer outro •·x•·mplo.

0 individuo em combate com o cidadao

I l litulo dado por Norbert Elias a seu ultimo livro, publicado postumamente, A sociedade dos indiv{duos, capta com perfei<;iio a c·.<>encia do problema que assombra a teoria social desde seu co­'""~o. Rompendo com uma tradi~ao estabelecida desde Hobbes e I< wjada novamente por John Stuart Mill, Herbert Spencer e a or­'"doxia liberal na doxa (o quadro nao examinado de toda cogni­•.::lo adicional) de nosso seculo, Elias substituiu o "'e" e o "versus" l'•·lo "de" e, assim, deslocou o discurso do imaginirio das duas r, ,·~as, travadas numa batalha mortal mas infindivel entre liberda­d(~ e dominac;ao, para uma "concep<;io rec:iproca": a sociedade clan do forma a individualidade de seus membros, e OS individuOS liJrmando a sociedade a partir de suas a<;Oes. na vida, enquanto sPguem estrategias plausiveis e factiveis na rede socialmente teci­cla de suas depend~ncias.

A apresentat;ao dos membros como individuos e a marca re­gistrada da sociedade moderna. Essa apresenta<;ao, porem, nao foi n rna pe<;a de urn a to: e uma atividade reencenada diariamente. A !-!Ociedade moderna existe em sua atividade incessante de "indivi­dualizat;ao·: assim como as ativi.dades dos individuos consistem na rcformula~ao e renegocia~ao diirias da rede de entrela~amentos chamada "sociedade'~ Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim o significado da "individualiza~ao" muda, assumindo sempre novas formas - a medida que os resultados acumulados de sua hist6ria passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir no­vas premios no jogo. A '"individualizat;iio" agora significa uma coisa muito diferente do que significava ha cern anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna - os tempos da

iaradavilazorzal
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exaltada "emancipa.;:ao" do homem da trama estreita da depen­dencia, da vigilancia e da imposi<;:ao comunitanas.

'1enseits von Klasse und Stand?'; de Ulrich Beck, e poucos anos depois seu "Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne"9 Guntamente com "Ein Stiick eigenes Leben: Frauen im Individualisierung Prozess'; de Elisabeth Beck-Gernsheim) abri­ram urn novo capitulo em nossa compreensao do "processo de individualiza<;iio'~ Esses trabalhos apresentaram o processo como uma hist6ria em curso e infind.lvel, com seus distintos est:igios -ainda que com urn horizonte m6vel e uma 16gica errcltica de giros e curvas abruptos em Iugar de urn telos ou urn destine predeter­minado. Pode-se dizer que, assim como Elias historicizou a teoria de Sigmund Freud do "individuo civilizado" explorando a civili­za<;:ao como urn evento na hist6ria (moderna), Beck historicizou a narrativa de Elias do nascimento do individuo ao reapresentar esse nascimento como urn aspecto perpetuo da continua, compul­siva e obsessiva modemizafrio. Beck tamb€:m estabeleceu o retrato da individualiza.;:ao liberta de suas roupagens transit6rias, hoje mais obscurecedoras que clarificadoras da compreensao (antes e acima de tudo, liberta de suas visoes do desenvolvimento linear, uma progressao assinalada ao Iongo dos eixos da emancipa.;:ao, da crescente autonomia e da liberdade de auto-afirma.;:ao ), expondo assim para exame a variedade de tendencias a individualizac:;ao e seus produtos, e permitindo uma melhor compreensao das carac­teristicas distintivas de seu est£gio presente.

Resumidamente, a "individualizac:;ao" consiste em transformar a "identidade" humana de urn '"dado" em uma "tarcfa" e encarre­gar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqU.encias (assim como dos efeitos colaterais) de sua reallza­<;ao. Em outras palavras, consiste no estabelecimeuto dP urna au­tonomia de jure (independentemente de a autonomia dejacto tam­bern ter sido estabelecida).

Os seres humanos nao mais "nascem" em s11as id(•.ntidades.

Como disse Jean-Paul Sartre em frase cclehn" 111lo ha<la ter nas­cido burgues- e precise viver a vida como iHII'fiiiCH, (Not!1·SC que o mesmo.nao precisaria ser nem poderia Sl~r dito Molu·t~ principes, cavaleiros ou H<~rvos da era pr6-modernUi lll!JU pode1·ia 1-wr dito de

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modo tao resolute dos ricos nem dos pobres de ber<;:o dos tempos modernos ). Precisar tornar-se 0 que jfl se e e a caracteristica da vida moderna - e s6 da vida moderna (nao da "individualiza.;:ao mo­derna'; a expressiio sendo evidentemente pleonastica; falar da in­dividualiza.;:ao e da modernidade e falar de uma e da mesma con­di.;:ao social). A modernidade substitui a determina.;:ao heterono­ma da posi~ao social pela autodetermina.;:ao compulsiva e obriga­t6ria. Isso vale para a "individualiza.;:ao" por toda a era moderna - para todos os periodos e todos os setores da sociedade. No entanto, dentro daquela condi~ao compartilhada hit varia.;:oes sig­nificativas, que distinguem gera<;Oes sucessivas e tambem as v&rias categorias de atores que compartilham 0 mesmo cenario hist6rico.

A antiga modernidade "desacomodava" a fim de "reacomo­dar'~ Enquanto a desacomoda.;:ao era o destino socialmente san­cionado, a reacomoda<;:ao era tarefa posta diante dos individuos. Uma vez rompidas as rigidas molduras dos estamentos, a tarefa de "auto-identifica~ao" posta diante de homens e mulheres do prin­cipia da era moderna se resumia ao desafio de viver "de acordo" (nao ficar atd.s dos outros ), de conformar-se ativamente aos emer­gentes tipos sociais de classe e modelos de conduta, de imitar, seguir o padrao, "aculturar-se': nao sair da linha nem se desviar da norma. Os "estamentos" enquanto lugares a que se pertencia por hereditariedade vieram a ser substituidos pelas "classes" como objetivo de pertencimento fabricado. Enquanto os estamentos eram uma questao de atribui<;ao, 0 pertencimento as classes era em grande medida uma realiza.;:ao; diferentemente dos estamen­tos, 0 pertencimento as classes devia ser buscado, e continuamente renovado, reconfirmado e testado na conduta diaria.

Retrospectivamente, pode-se dizer que a divisiio em classes ( ou em generos) foi urn resultado secundario do aces so desigual aos recursos necessclrios para tornar a auto-afirma<;iio eficaz. As classes diferiam na gama de identidades disponiveis e na facilida­de de escolher entre elas e adota-las. As pessoas com menos re­cursos e, portanto, com menos escolha, tinham que compensar suas fraquezas individuais pela "for<;:a do numero" - cerrando fileiras e partindo para a a~ao coletiva. Como assinalou Claus Offe, a a.;:ao coletiva, orientada pela classe, era tao natural e corriqueira

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para os que estavam nos niveis mais baixos da escala social quanta a persegui~ao individual de seus objetivos de vida o era para seus patroes.

As privac;Oes se somavam, por assim dizer; e, uma vez somadas, congelavam-se em "interesses comuns" e eram vistas como trat<l­veis apenas com urn remedio coletivo. 0 "coletivismo" foi a pri­meira op~ao de estrategia para aqueles situados na ponta recepto­ra da individualiza~ao mas incapazes de se auto-afirmar enquanto indivlduos se limitados a seus pr6prios recursos individuais, cla­ramente inadequados. A orienta~ao de classe dos mais bem-aqui­nhoados era, por outro \ado, parcial e, em certo sentido, derivativa; assumia o primeiro plano principalmente quando a distribui~ao desigual dos recursos era desafiada e contestada. Qualquer que fosse o caso, por6m, os individuos da modernidade "clclssica': dei­xados "desacomodados" pela decomposi~ao da ordem estamental, dispunham de seus novas poderes e autonomia na busca frenetica da "reacomodac;ao':

E nao faltavam "camas" a espera e prontas para acomodcl-los. A classe - embora formada e negociaveL e nao herdada, como eram os estamentos - tendia a prender seus membros tao firme e fortemente quanta o estamento heredit!trio pre-moderno. Classe e genera projetavam-se pesadamente sabre a gama de escolhas do individuo; escapar a esses limites n<io era muito mais f<lcil do que contestar o Iugar ocupado na "cadeia divina do ser" pre-moderna. Para todos os efeitos, a classe e o genera eram "fatos da natureza': e a tarefa reservada a auto-afirmac;ao da maioria dos individuos era "adaptar-se" ao nicho alocado, comportando-se como os de­mais ocupantes.

Isso e precisamente o que distingue a "individualiza~ao" de outrora da forma que veio a tamar na Risikogesellschaft, em tempos de "modernidade reflexiva" ou "segunda modernidade" (nas di­ferentes formas como Ulrich Beck se refere a era contemporanea). Nao sao fornecidos "lugares" para a "reacomoda~ao'; e OS lugares que podem ser postulados e perseguidos mostram-se frageis e freqiientemente desaparecem antes que o trabalho de "reacomo­da~ao" seja completado. 0 que hit sao "cadeiras musicais" de va­rios' tamanhos e estilos, assim como em nUmeros e posic;Oes cam-

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hiantes, que fazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e nio prometem nem a "realizac;ao ·: nem o des­canso, nem a satisfa~ao de "chegar'; de alcan~ar o destino final, quando se pode desarmar-se, relaxar e deixar de se preocupar. Nao hit perspectiva de "reacomoda~ao" no final do caminho torna­do pelos individuos (agora cronicamente) desacomodados.

Nao se engane: agora, como antes - tanto no esdgio leve e fluido da modernidade quanta no solido e pesado -, a individua­liza~ao e uma fatalidade, nao uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a op~ao de escapar a individualiza9ao e de se recusar a participar do jogo da individualiza~ao esta decidida­mente fora da jogada. A autoconten~ao e a auto-suficiencia do individuo podem ser outra ilusao: que homens e mulheres nao tenham nada a que culpar por suas frustra~oes e problemas nao precisa agora significar, nao mais que no passado, que possam se proteger contra a frustra~ao utilizando suas pr6prias estrategias, ou que escapem de seus problemas puxando-se, como o Bariio de Munchausen, pelas pr6prias botas. E, no en tanto, se ficam doentes, supoe-se que foi porque nao foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desemprega­dos, foi porque nio aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque nao se esfor~aram o suficiente para encontrar trabalho ou porquc sao, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se nao estao seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, e porque nao sao suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como de­veriam, as artes da auto-expressao e da impressio que causam. Isto e, em todo caso, 0 que lhes e dito hoje, e aquila em que passara.rn a acreditar, de modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. Como Beck adequada e pungentemente diz, "a maneira como se vive torna-se uma solw;do biogrc[fica das contradziJes si.sti­micas'~10 Riscos e contradic;Oes continuam a ser so<;ialmente pro­duzidos; sao apenas o clever e a necessidade de enfrenta-los que estao sendo individualizados.

Para resumir: o abismo entre a individualidade como fatalida­de e a individualidade como capacidade realista e prittica de auto­afirma~ao esta aumentando. (Melhor ser afastado da "individuali-

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dade por atribui~ao'; como "individua~ao": o tenno escolhido por Beck para distinguir o individuo auto-sustentado e auto-impulsio­nado daquele que nao tern escolha senao a de agir, ainda que contrafactualmente, como se a individualiza~ao tivesse sido alcan­~ada). Saltar sobre esse abismo niio e- isso e crucial- parte dessa capacidade.

A capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individua­lizados deixa a desejar, como regra, em rela~ao ao que a genuina autoconstitui<;ao requereria. Como observou Leo Strauss~ o outro !ado da liberdade ilimitada e a insignifidi.ncia da escolba, cada !ado condicionando 0 outro: por que cuidar de proibir 0 que sera, de qualquer modo, de ponca conseqiiencia? Urn observador dnico diria que a liberdade chega quando nao faz mais diferen~a. Ha urn desagradavel ar de impotencia no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirao da individualiza~ao; essa impotencia e sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder que se esperava que a liberdade trou­xesse.

Quem sabe nao seria urn remedio manter-se, como no passa­do, ombro a ombro e marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tao frageis e impotentes isoladamente, foss em condensados em posi~oes e a~oes coletivas, poderiamos realizar em conjunto o que ninguem poderia realizar sozinho? Quem sabe ... 0 problema e, porem, que essa convergencia e condensa~ao das queixas individuais em interesses compartilhados, e depois em a~ao ~onjunta, e uma tarefa assustadora, dado que as afli~oes mais comuns dos "individuos por fatalidade" nos dias de hoje sao niio­aditivas, na.o podem ser "somadas" numa ~'causa comum'~ Podem ser postas !ado a !ado, mas nao se fundirao. Pode-se dizer que desde o come~o sao moldadas de tal maneira que lhes faltam interfaces para combinar-se com os problemas das demais pes­seas.

Os problemas pod em ser semelhantes ( e os cad a vez mais po­pulares programas de entrevistas insistem em demonstrar sua se­rnelhan~a, enquanto martelam a mensagern de que sua semelhan~a rnais importante consiste em que sao enfrentados por conta pro­pria pelos que os sofrem), mas niio formam uma "totalidade que e maior que a soma de suas partes"; nao adquirern qualquer qua-

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lidade nova, nero se tornam mais faceis de manejar par serem enfrentados, confrontados e trabalhados em conjunto. A {mica vantagem que a companhia de outros sofredores pode trazer e garantir a cada urn deles que enfrentar os problemas solitariamen­te e 0 que todos fazem diariamente - e portanto renovar e enco­rajar a fatigada decisao de continuar a fazer o mesmo. Talvez pos­sa-se tambem aprender da experiSncia de outras pessoas a como sobreviver a nova rodada de "redu~ao de tamanho" (downsizing); como lidar com crian~as que pensam que sao adolescentes e ado­lescentes que se recusam a se tamar adultos; como p6r a gordura e outros "corpos estranhos" indesej:lveis ''para fora do sistema"; como livrar-se de urn vicio que nao d:l mais prazer ou de parceiros que nio sao mais satisfat6rios. Mas o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros e que 0 unico auxilio que ela pode prestar e como sobreviver em nossa solidao irremivel, e que a vida de to do mundo e cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente.

E assim ha tambem outro obstaculo: como de Tocqueville ha muito suspeitava, libertar as pessoas pode torn:l-las indij'erentes. 0 individuo e 0 pior inimigo do cidadao, sugeriu ele. 0 "cidadao" e uma pessoa que tende a buscar seu proprio bem-estar atraves do bem-estar da cidade - enquanto o indiv.iduo tende a ser morllo, cetico ou prudente em rela<;io a "causa comum': ao "bern conium': a "boa sociedade" ou a "sociedade justa'~ Qual e 0 sentido de "interesses comuns" senio permitir que cada individuo satisfa9a seus proprios interesses? 0 que quer que os indiv:iduos fa~am quando se unem, e por mais beneficios que seu trabalho con junto possa trazer, eles 0 perceberao como limita~ao a sua liberdade de buscar 0 que quer que lhes pare~a adequado separadamente, e nao ajudarao. As unicas duas coisas uteis que se espera e se deseja do "poder pUblico" sao que ele observe os "direitos humanos': isto e, que permita que cada um siga seu proprio caminho, e que permita que todos o fa~am "em paz" - protegendo a seguran~a de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas pri­soes e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus.

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Com seu humor habitual e inimititvel, Woody Allen aponta as modas e manias dos "individuos por decreta" ao fo[hear OS anun­cios de imaginaries curses de verao do tipo que os norte-america­nos adorariam freqlientar. 0 curso de teoria econOmica inclui o item "Infla<;ao e depressao - como vestir-se para cada ocasiao"; o curse de euca envolve "0 imperative categ6rico - e seis maneiras de faze-lo funcionar a seu favor'; enquanto o prospecto de astro­nomia informa que "o Sol, que e feito de gas, pode explodir a qualquer momenta, mandan do nos so plan eta inteiro pelos ares; os estudantes sao instruidos sabre 0 que 0 cidadao media pode fazer

em tal caso': Em suma: o outro !ado da individualiza~ao parece ser a cor­

rosao e a lenta desintegra~ao da cidadania. Joel Roman, co-editor de Esprit, as sin ala em seu livro recente (La dimocratie des individus, 1998) que "a vigilancia e degradada a guarda dos hens, enquanto 0 interesse geral nao e. mais que urn sindicato de egoismos, que envolve emo<;5es coletivas e o medo do vizinho': Roman concita os leitores a buscarem uma "renovada capacidade de decidir em con junto" - hoje not:lvel por sua inexistencia.

Se o individuo e o pior inimigo do cidadao, e se a individua­liza~ao anuncia problemas para a cidadania e para a politica fun­dada na cidadania, e porque OS cuidados e preocupa~oes dos in­dividuos enquanto individuos enchem o espa~o publico ate o topo, afirmando-se como seus unicos ocupantes legitimos e expul­sando tudo mais do discurso publico. 0 "publico" e colonizado pelo "privado"; o "interesse pUblico" e reduzido a curiosidade sabre as vidas privadas de figuras publicas e a arte da vida publica e reduzida a exposi~ao publica das questoes privadas e a confis­soes de sentimentos privados (quanta mais intimas, melbor). As "questoes publicas" que resistem a essa redu~ao tornam-se quase

inco.mpreens:iveis. As perspectivas de que os atores individualizados sejam "rea­

comodados" no corpo republicano dos cidadaos sao nebulosas. 0 que OS leva a aventurar-se no palco publico nao e tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bern com urn e dos principios da vida em comum quanta a necessidade deses­perada de "fazer parte da rede': Compartilhar intimidades, como

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Richard Sennett insiste, tende a ser o metoda preferido, e talvez o Unico que resta, de "constrw:;:ao da comunidade'~ Essa tecnica de constru91io s6 pode criar "comunidades" tao fr<lgeis e transit6rias como emo90es esparsas e fugidias, saltando erraticamente de urn objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de urn porto segu­ro: comunidades de temores, ansiedades e 6dios compartilhados - mas em cada caso comunidades ''cabide': reuniOes momentil­neas em que muitos indiv:iduos solit<lrios penduram seus solit<lrios medos individuais. Como diz Ulrich Beck (no ensaio "Sabre a mortalidade da sociedade industrial"),

0 que emerge no Iugar das normas sociais evanescentes e o ego nu, atemorizado e agressivo a procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma sociabilidade afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu ... Alguem que tateia na bruma de seu prOprio eu nao e mais capaz de perceber que esse isolamento, esse "confinamento solitirrio do ego': e uma senten<;a de massa.l 1

A individualiza~ao chegou para ficar; toda elabora~ao sabre os meios de enfrentar seu impacto sabre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato. A indivi-. dualiza9ao traz para urn nllmero sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar- mas (timeo danaos ct dona ferentes ... ) traz junto a tarefa tambem sem precedentes de enfrentar as conseqU.encias. 0 abismo que se abre entre o direito a auto-afirma9aO e a capacidade de controlar as situa96es sociais que podem tornar essa auto-afirma~ao algo factivel ou irrealista parece ser a principal contradi~ao da modernidade fluida - con­tradic;ao que, por tentativa e erro, reflexao critica e experimentac;ao corajosa, precisamos aprender a manejar coletivamente.

0 compromisso da teoria critica na sociedade dos individuos

0 impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da realidade. A privatiza~ao do impulso signifi-

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ca a compulsiva auto-critica nascida da desafeic;ao perpetua: ser urn individuo de jure significa nao ter ninguem a quem cui par pela prOpria miseria, significa niio procurar as causas das pr6prias der­rotas senao na prOpria indolencia e preguic;a, e nao procurar outre remedio senao tentar com mais e mais determinac;ao.

Viver diariamente com o risco da auto-reprovac;iio e do auto­desprezo nao e facil. Com OS olhos postos em seu proprio desem­penho - e portanto desviados do espa~o social onde as contradi­~6es da existencia individual sao coJetivamente produzidas -, OS homens e mulheres sao naturalmente tentados a reduzir a comple­xidade de sua situac;iio a fim de tornarem as causas do sofrimento inteliglveis e, assim, tratclveis. Nao que considerem as "solw;Oes biognlficas" onerosas e embar:ic;osas; simplesmente niio hi "solu­c;5es biogr3Jicas para contradic;Oes sistemicas" eficazes, e assim a escassez de solw;Oes possiveis a disposic;ao precisa ser compensa­da por solu~6es imaginarias. No entanto - imaginarias ou genui­nas -, todas as "solu<;Oes': para parecerem razo<lveis e vi<iveis, devem ser acompanhadas pela "individualiza~ao" das tarefas e responsabilidades. Ha, entao, demanda por cabides individuais onde os individuos atemorizados possam pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo e propi­cio aos bodes expiat6rios- sejam eles politicos que fazem de suas vidas privadas uma confusao, criminosos que se esgueiram nas ruas enos bairros perigosos ou "estrangeiros entre n6s'~ 0 nos so e urn tempo de cadeados, cercas de arame farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e tambem de jornalistas de tabl6ides "investi­gativos" que pescam conspira~oes para povoar de fantasmas o es­pa<;o publico funestamente vazio de atores, conspira~6es suficien­temente ferozes para liberar boa parte dos medos e 6dios repri­midos em nome de novas causas plausiveis para o "panico moral'~

Repito: ha urn grande e crescente abismo entre a condi~ao de individuos de jure e suas chances de se to mar individuos de facto - isto e, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as deci­soes que em verdade desejam. E desse abismo que emanam os E:flUvios mais venenosos que contaminam as vidas dos individuos contemporaneos. Esse abismo nao pode ser transposto apenas por esfor~os individuais: nao pelos meios e recursos disponiveis den-

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I ro da politica-vida auto-administrada. Transpor o abismo e a ta­rcfa da Politica com P maiusculo. Pode-se supor que o abismo em tjtJcstlio emergiu e cresceu precisamente por causa do esvaziamen-1" do espa~o publico, e particularmente da agora, aquele Iugar 111termediario, publico/privado, onde a politica-vida encontra a l'olitica com P maiusculo, onde os problemas privados sao tradu­zidos para a linguagem das quest6es publicas e solu~6es publicas para OS problemas privados SaO buscadas, negociadas e acordadas.

A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria critica foi invertida. Essa tarefa costumava sera defesa da autonomia privada contra as tropas avan~adas da "esfera publica'; so<;obrando sob o dominio opressivo do Estado onipotente e impessoal e de seus muitos tentaculos burocraticos ou replicas em escala menor. Hoje a tarefa e defender 0 evanescente dominio publico, ou, antes, ree­<[Uipar e repovoar o espa~o publico que se esvazia rapidamente devido a deser~ao de ambos OS Jados: a retirada do "cidadao in­lcressado" e a fuga do poder real para urn territ6rio que, por tudo que as institui<;Oes democr:lticas existentes sao capazes de realizar, s6 pode ser descrito como urn "espa<;o c6smico':

Nao e mais verdade que o "publico" tente colonizar o "priva­do': 0 que se da e 0 contrario: e 0 privado que coloniza 0 espa~o

publico, espremendo e expulsando o que quer que nao possa ser expresso inteiramente, sem deixar residuos, no vern<iculo dos cui­dados, angustias e iniciativas privadas. Repetidamente informado de que e 0 senhor de seu proprio destino, 0 individuo nao tern razao de atribuir "relevancia topica" (o termo e de Alfred Schutz) ao que quer que resista a ser engolfado no eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa razao e agir sobre ela e precisa­mente a marca registrada do cidadao.

Para o individuo, o espa<;o publico nao e muito mais que uma tela gigante em que as afli~6es privadas sao projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da amplia~ao: 0 espa~o publico e onde se faz a confissao dos segredos e intimidades privadas. Os individuos retornam de suas excurs6es diarias ao espa~o "publico" refor~ados em sua individualidade de jure e tranqi.iilizados de que o modo

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solitario como levam sua vida e 0 mesm:o de todos ·as outros "indivfduos como eles': enquanto- tambem como eles- dao seus pr6prios trope~os e sofrem suas ( talvez transit6rias) derrotas no processo.

Quanto ao poder, ele navega para Ionge da rua e do mercado, das assembleias e dos parlamentos, dos governos locais e nacio­nais, para alem do alcance do controle dos cidadaos, para a extra­territorialidade das redes eletronicas. Os prindpios estrategicos favoritos dos poderes existentes hoje em dia sao fuga, evitat;iio e descompromisso, e sua condi~ao ideal e a invisibilidade. Tentativas de prever seus movimentos e as conseqiiencias nao-previstas de seus movimentos (sem falar dos esfor~os para deter ou impedir os mais indesejaveis entre eles) tern uma eficacia pratica semelhante a da "Liga para Impedir Mudan~as Meteorol6gicas'~

E assim o espa~o publico esta cada vez mais vazio de questoes publicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga fun~ao de Iugar de encontro e diitlogo sobre problemas privados e questoes publicas. Na ponta da corda que sofre as pressOes individualizantes, os in­dividuos estiio sendo, gradual mas consistentemente, despidos da armadura protetora da cidadania e expropriados de suas capaci­dades e interesses de cidadaos. Nessas circunst3.ncias, a perspecti­va de que o individuo de jure venha a se tornar algum dia indivi­duo de facto (aquele que COntrola OS recursos indispensaveis a genu ina autodetenninac;ao) parece cada vez mais remota.

0 individuo de jure nao pode se tornar individuo de facto sem antes tornar-se cidadiio. Nao hcl individuos aut&nornos sem uma sociedade autOnoma, e a autonomia da sociedade requer uma auto­constitui~ao deliberada e perpetua, algo que s6 pode ser uma reali­za~ao compartilhada de seus membros.

"Sociedade" sempre manteve uma rela~ao ambigua com a au­tonomia individual: era sifi\ultaneamente sua inimiga e condit;ao .rine qua non Mas as propor~oes de amea~as e oportunidades no que fon:;osamente continuad. sen do uma relat,;5.o ambivalente mu­daram radicalmente no curso da hist6ria moderna. Embora as r·azoes para examina-la de perto possam nao ter desaparecido, a <ociedade e hoje antes de tudo a condi~ao de que OS indiv]duos precisam muito, e que lhes faz falta - em sua !uta va e frustrante

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para transformar seu status de jure em genuina autonomia e capa­cidade de auto-afirma~ao.

Esta e, nos termos mais amplos, a situat;ao que hoje se coloca 1)ara a teoria critica- e, em termos mais gerais, para a cr:itica social. t•:ta se reduz a unir novamente o que a combina~ao da individua­lrza~ao formal eo div6rcio entre o poder e a politica partiram em tl('da~os. Em outras palavras, redesenhar e repovoar a hoje quase v:l'ia agora - o Iugar de encontro, debate e negocia~ao entre o i11dividuo eo bern comum, privado e publico. Se o velho objetivo da teoria critica- a emancipa~ao humana- tern qualquer signifi­cado hoje, ele e 0 de reconectar as duas faces do abismo que se ahriu entre a realidade do individuo de jure e as perspectivas do i11dividuo de facto. E individuos que reaprenderam capacidades csquecidas e reapropriaram ferramentas perdidas da cidadania sao OS tJ.niCOS COllStrUtores a altura da tarefa de erigir essa ponte em particular.

A teoria crflica revisitada

A necessidade de pensar e o que nos faz pensar, disse Adorno12

Sua Dia!etica negativa, essa longa e tortuosa explora~ao dos modos de ser humano num mundo in6spito a humanidade, acaba com cssa frase contundente, mas em Ultima analise vazia: ao fim de centenas de paginas, nada foi explicado, nenhum misterio revela­do, nenhuma seguran~a alcan~ada. 0 segredo de ser humano per­manece tao impenetr3.vel como no come<;o da jornada. Pensar nos faz humanos, mas e por sermos humanos que pensamos. 0 pensar nao pode ser explicado; mas nao precisa de explica~ao. 0 pensar nao precisa ser justificado; mas nao poderia ser justificado, ainda que tent3.ssemos.

Essa situat;ao nao e, Adorno nos dir3. muitas e muitas vezes, nem urn sinal de fraqueza do pensamento, nem marca da vergonha de quem pensa. Talvez seja o contrario. Na pena de Adorno, a triste necessidade se transforma em privilegio. Quanto menosum pensa­meuto puder ser explicado em termos familiares, que fa~am senti­do para os homens e mulheres imersos em sua busca diaria da

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sobrevivencia, tanto mais proximo fica dos padroes da humanida­de; quanto menos puder ser justificado em termos de ganhos e usos tangiveis ou das etiquetas de pre~o afixadas a ele no super­mercado ou na balsa de valores, tanto maior seu valor humanizan­te. Sao a busca ativa do valor de mercado e a urgencia do consumo imediato que amea~am o genuino valor do pensamento. ~Nenhum pensamento e imune': escreve Adorno,

a comunica~ao, e faze-Ia no Iugar errado e num acordo equivocado e o suficiente para solapar sua verdade . ... Pais o isolamento intelec­tual inviohlvel e agora a {mica maneira de mostrar algum grau de solidariedade . ... 0 observador distante esti tao envolvido quanta o participante ativo; a {mica vantagem do primeiro e a visao desse envolvimento e a•liberdade infinitesimal que reside no conhecimen­to enquanto taL 1 '

1

Ficara clara que a visao e o come~o da liberdade se lembrar­mos que "para urn sujeito que age ingenuamente ... seu proprio condicionamento e n1io-transparente"14 e que a niio-transpar@ncia do condicionamento e garantia de ingenuidade perpetua. Assim como o pensamento niio precisa de nada senao de si mesmo para perpetuar-se, tambem a ingenuidade e auto-suficiente; enquanto nao for perturbada pela visao, mantera intacto seu proprio condi­cionamento.

"Nao perturbado": em verdade, a chegada da visao quase nun­ca e bem-vinda para aqueles que se acostumaram a viver sem ela como dace perspectiva da liberdade. A inocencia da ingenuidade faz com que ate mesmo a condi~ao mais turbulenta e trai~oeira pare~a familiar e, portanto, segura, e qualquer visiio de seus pre­caries andaimes e urn prodigio de falta de confian~a. duvida e inseguranc;a que poucos receberiam esperanc;;osamente. Parece que, para Adorno, essa ampla rejei~ao da visao e positiva, embora nao anuncie urn caminho facil. A !alta de liberdade do ingenuo e a liberdade da pessoa que pensa. Ela torn a o "isolamento inviola­vel" mais facil. "Aquele que pil~ a Vtmda algo que ninguem quer comprar representa, mesmo contm sua vontade, a liberdade em rela~ao a troca:'15 Ha apenas um passo que leva dessa ideia a

Emancipac;6o 53

mJtra: a do exilio como condi~ao arquetipica da liberdade em rela~ao a troca. Os produtos que o exilio oferece sao tais que ninguem teria qualquer inclina~ao de compri-los. "Todo intelec­tual emigrado est<i, sem excet;ao, mutilado': escreveu Adorno em seu proprio exilic nos Estados Unidos. "Ele vive num ambiente que permanecera incompreensivel': Nao surpreende que ele esteja protegido contra o risco de produzir qualquer coisa de valor no mercado local. Portanto, "se na Europa o gesto esoterico era fre­qiientemente apenas urn pretexto para o mais cego auto-interesse, o conceito de austeridade parece, no exilic, o mais aceitavel dos salva-vidas"16 0 exilic e para 0 pensador 0 que 0 lar e para 0

ingenue; e no exilic que 0 distanciamento, modo de vida habitual da pessoa que pensa, adquire valor de sobrevivencia.

Ao lerem a edi~ao dos Upanishads de Deussen, Adorno e Horkheimer comentam amargamente que os sistemas te6ricos e pdticos dessas pessoas que buscam da uniiio entre a verdade, a beleza e a justic;a, esses "estranhos a hist6ria': ~'nao sao muito rigorosos e centrados; distinguem-se dos sistemas acabados por urn elemento de anarquia. Atribuem maier importilncia a ideia e ao individuo que a administra~ao e ao coletivo. Portanto, desper­tam 6dio"17. Para que as ideias tenham sucesso, para que atinjam a imaginac;ao dos habitantes da caverna, 0 elegarite ritual vedico devercl superar as vagas meditac;Oes dos Upanishads; os fries e bem-comportados estoicos deverao substituir os impetuosos e ar­rogantes cinicos; e o absolutamente pritico Sao Paulo devenl substituir o estranhamente pouco pratico Sao Joao Batista. A gran­de questao, porem, e se 0 poder emancipatorio dessas ideias pode sobreviver a seu sucesso mundane. A resposta de Adorno a tal questao recende a melancolia: "A historia das antigas religioes e escolas, como a dos ·particles e revoluc;Oes modernas, nos ensina que 0 pre~o da sobrevivencia e 0 envolvimento pratico, a transfer-

- d 'd'. d . - "18 mac;ao as 1 e1as em om1nac;ao . Nesta ultima frase, o principal dilema estrategico que assom­

brava o fundador e mais not6rio escritor da "escola critica" origi­nal encontra sua mais vlvida expressiio: quem quer que pense e se aflija esti conderrado a navegar entre o Sila do pensamento limpo

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mas impotente e o Caribdis da tentativa eficaz mas poluida pela domina<;ao. Tertium non datu.r. Nem a aposta na pr:ltica nem a recusa a ela constituem boa solu~ao. A primeira tende, inevitavel­rnente, a transformar-se em dominac:;ao - com todo seu sequito de horrores: novas limita~oes a liberdade, a pragmatica utilitaria dos efeitos tendo precedencia sabre OS prindpios eticos das raz5es e a dilu·i~ao e subseqiiente distor~ao das ambi~oes da liberdade. A segunda pode talvez satisfazer o desejo narcisistico da pureza in­tocada, mas manteria o pensamento ineficaz e, no limite, esteril: a filosofia, como Ludwig Witgenstein observou com tristeza, deixa­ria tudo como era; o pensamento nascido da revolta contra ainu­manidade da condi~ao humana faria pouco au nada para tornar mais humana essa condic:;ao. 0 dilema entre vita contemplativa e vita activa se resume a uma escolha entre duas perspectivas igual­mente pouco atraentes. Quanta mais os valores preservados no pensamento forem protegidos da polui~ao, menos significativos serao para a vida daqueles a quem devem servir. Quanta maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida reformada fad.lembrar os valores que induziram e inspiraram a reforma.

0 tormento de Adorno tern uma longa hist6ria, chegando a questao de Platao sabre a sabedoria e a possibilidade do "retorno a caverna'~ Essa questao surgiu a partir da invocac;ao de Platao aos fil6sofos para que abandonassem a caverna escura do quotidiano e - em nome da pureza do pensamento - recusassem qualquer intercimbio com os habitantes da caverna enquanto durasse sua jornada no iluminado mundo exterior das ideias claras e lucidas. 0 problema era se, na volta, os fil6sofos quereriam compartilhar os trofeus da jornada com as de dentro da caverna e - caso o quisessern - se OS outros OS ouviriam e lhes dariarn credito. Fiel as ideias de seu tempo, Platiio esperava que o provavel desencon­tro na cornunicac;iio resultasse na morte dos portadores das noti­Cias ...

A versao de Adorno do problema de Platiio tomou forma no mundo p6s-iluminista, quando queimar hereges e dar cicuta aos arautos de uma vida rnais nobre estavam definitivamente fora de moda. Nesse novo mundo, os habitantes da caverna, reencarnados como Biirger, niio exibiam mais o entusiasmo pela verdade e pelos

Emancipac;6o 55

valores mais altos dos originais de Platao; esperava-se que opuses­sem firme e feroz resistencia a uma mensagem fadada a perturbar a tranqiiilidade de sua rotina diaria. Fie! as novas ideias, porem, o resultado da ruptura na comunica~ao aparecia de forma diferente. A uniiio entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platao, tornou-se urn postulado rotineiro e quase axiom3.tico da filosofia e uma afirma~ao comum e diariamente repetida da poli­lica. De alga pelo que se poderia morrer, a verdade tornou-se alga que oferecia boas razoes pelas quais se poderia matar. (Foi urn pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporc;Oes na mistura mudaram drasticamente). Era portanto naturale razoavel esperar, nos tempos de Adorno, que as rejeitados ap6stolos das boas noti­cias recorressem a forc;a sempre que pudessem; e buscassem a domina<_;iio para quebrar a resistencia e compelir, impelir ou su­bornar seus opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho dilema- como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos niio-iniciados sem comprometer a essencia da mensagem; como expressar a verdade numa forma fclcil de compreender e suficien­temente atraente para que sua compreensiio pudesse ser desejada sem deturpar ou diluir seu contelldo -, a esse dilema veio somar­se uma nova dificuldade, particularmente dura e angustiante no caso de uma mensagem com ambic;5es emancipadoras e liberta­doras: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da domina~ao, vistas agora como principal veiculo porta­dar da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes? As duas angus­tias se entrela<_;am, as vezes se fundem - como na ispera, ainda que inconclusiva, disputa entre Leo Strauss e Alexandre Kojeve.

''A filosofia': insiste Strauss, e a busca da "ordem eterna e imutavel na qual a hist6ria acontece e que permanece inalterada pela hist6ria". 0 que e eterno e imutavel e tambem universal; embora a aceitac;ao universal dessa ordem eterna e imut<l.vel possa ser atingida somente com base no conhecimento genuine ou na sabedoria - niio atraves da reconciliac;ao ou do acordo entre opi­

nioes.

0 acordo fundado na opiniao nao pode nunca se tomar urn acordo universaL Toda fe que pretende a universalidade, isto e, a aceita<;iio

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universal, necessariamente provoca uma contra-fe com a mesma pre­tensiio. A difusao entre os niio-iniciados do conhecimento genuine adquirido pelos sabios nao serviria para nada, pais pela difusiio ou dilui<;:iio o conhecimento inevitavelmente se transforma em opiniiio, preconceito ou mera cren<;a.

Tanto para Strauss quanta para Kojiwe, essa diferen<;a entre o saber e a "mera cren~a'; bern como a dificuldade de comunica~iio entre elas, apontava imediata e automaticamente para a questiio do poder e da politica. Os dois polemistas viam a incompatibilidade entre os dois tipos de conhecimento como a questiio da dire~ao, da coer~iio e do engajamento politico dos "portadores do saber'; como o problema da rela~ao entre a filosofia e o Estado, conside­rado o Iugar e foco por excelencia da politica. 0 problema se reduz a uma escolha entre o envolvimento politico e o radical distancia­mento da pratica poHtica, e ao dlculo cuidadoso dos ganhos, ris­cos e prejulzos potenciais de cada uma dessas posi<;Oes.

Dado que a ordem eterna, a questiio com que os fil6sofos verdadeiramente se ocupam, niio e "afetada pela hist6ria': de que maneira 0 Comercio pode, COin OS administradores da hist6ria, OS

poderes do momenta, auxiliar a causa da filosofia? Para Strauss, tratava-se de uma quest3.o ret6rica, pois "nao h<i como" seria a unica resposta razoavel e auto-evidente. A verdade da filosofia pode, de fato, niio ser afetada pela hist6ria, respondia Kojeve, mas dai niio decorre que se possa evitar a hist6ria: o objetivo dessa verdade e entrar na hist6ria para re-formi-la - e assim a tarefa pratica do COmercio COm OS detentores do poder, OS guardioes que vigiam essa entrada e controlam o tnlfego, permanece como parte integrante e vital dos afazeres da filosofia. A hist6ria e a realiza~iio da filosofia; a verdade da filosofia encontra seu teste e confirma­<;3.o Ultimos em sua aceita<;3.o e reconhecimento, tornando-se, nas palavras dos fil6sofos, a carne da polis. 0 reconhecimento e 0 telos e verifica~iio ultima da filosofia; e assim 0 objeto da a~ao dos fiJosofos nao sao apenas OS proprios fiJosofos, seu pensamento, 0

"fazer interne" do filosofar, mas o mundo enqu~nto tal, e, por fim, a harmonia entre OS dois, OU, antes, 0 refazer 0 mundo a imagem da verdade cujos guardioes sao os fil6sofos. "Niio ter intercil.mbio"

Emancipat;Oo 57

com a politica niio e. portanto, uma resposta; cheira a traic;ao nao s6 ao "mundo que ai est3.': mas tambem a prOpria filosofia.

Niio ha como evitar o problema da "ponte politica" para o mundo. E como essa ponte nao pode seniio ser controlada pelos servidores do Estado, a questiio de como usa-los para suavizar a passagem da filosofia ao mundo niio desaparecera e tera de ser enfrentada. E tampouco ha como evitar o fato duro de que - pelo menos no come~o, enquanto a distancia entre a verdade da filoso­fia e a realidade do mundo nao for preenchida - o Estado seja tiranico. A tirania (Kojeve e inflexivel quanta a possibilidade de essa forma de governo ser definida em termos mora/mente neutros)

ocorre quando

uma fra':;ao dos cidad:iios (pou-co importa que sejam minoria ou maio­ria) impOe a todos os outros cidadaos suas ideias e a<;Oes, que sao guiadas por uma autoridade que essa fra<;iio reconhece espontanea­mente, mas que nao conseguiu fazer que os outros reconhe<;am; e quando essa fra<;iio as impOe aos outros sem "chegar a acordo" com eles, sem tentar chegar a algum «compromisso" com eles e sem con­siderar suas ideias e desejos ( determinados por outra au tori dade,

que esses outros reconhecem espontaneamente).

Como e essa desconsidera~ao das ideias e desejos dos "ou­tros" que faz a tirania tirinica, a tarefa consiste em rompe~ a" co:­rente cismogenetica (como diria Gregory Bateson) da neghgenc.a arrogante, de urn !ado, e do dissenso mudo, de outro, e encontrar algum terreno em que ambos possam s.e en~ontrar para uma con­versa~iio frutifera. Esse terreno ( e aqm Kojeve e Strauss concor­dam) s6 pode ser oferecido pela verdade da filosofia, que se ocupa - necessariamente - das coisas eternas e v:ilidas absoluta e uni­versalmente. (Todos os outros terrenos, oferecidos pelas "meras cren<;as': s6 poderao servir como campos de batalha, e nunca como salas de conferencia). Kojeve acreditava que isso e passive!, mas Strauss nao: "Niio acredito na possibilidade de uma conversa~ao entre Socrates e o povo': Quem quer que se envolva em tal conver­sa~ao niio e urn fil6sofo, mas "algum tipo de ret6rico" preocupado niio tanto em construir o caminho pelo qual a verdade pode che­gar ao povo quanta em obter a obediencia ao que quer que os

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poderes precisem ou desejem estabelecer. Os fil6sofos pouco po­dem fazer a!em de aconselhar os ret6ricos, e a probabilidade de seu sucesso esta fadada a ser minima. As chances de a filosofia e a sociedade virem a se reconciliar e a se tornar uma s6 sao mini­mas.19

Strauss e Kojeve concordavam que o elo entre os valores uni­versais e a realidade da vida social historicamente constituida e a politica; escrevendo de dentro da modernidade pesada, tinham como ponto pacifica que a politica se imbrica nas a~oes do Estado. E assim se seguia sem maiores discuss6es que o problema diante dos fil6sofos era o de uma simples escolha entre "pegar ou largar": sep uuhzando esse elo, a despeito de todos os riscos que uma tentauva de utiliza-lo deve necessariamente envolver, seja (em nome da pureza de pensamento) mantendo-se Ionge dele e cui­dando da distancia em rela~ao ao poder e seus detentores. A es­c~lha se dava,A em outras palavras, entre a verdade fadada a impo­tenCia e a potencia fadada a ser infiel a verdade.

A modernidade pesada era, afinaL a epoca de moldar a reali­dade como na arquitetura ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razao deveria ser "construida" sob estrito con­trole de qualidade e conforme rigidas regras de procedimento, e ma1s que tudo projetada antes da construc;:ao. Era uma epoca de pranchetas e projetos - nao tanto para mapear 0 territ6rio social como,rara erguer_tal territ6rio ate o nivel de lucidez e 16gica de que s_o ~s mapas sao capazes. Era uma epoca que pretendia impor a razao a reahdade por decreta, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de to do co~portamento contririo a razao tao alto que OS impedisse. Em razao do decreta, negligenciar os legisladores e as agencias coer­citivas nao era, obviamente, uma op~ao. A questao da relac;:ao com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de forma~iio; de fato, uma questao de vida ou morte.

A crftica da politico-vida

Com? o Estado nao mais promete ou deseja agir como plenipo­tenciarlo da razao e mestre-de-obras da sociedade racional; como

Emancipa~Oo 59

as pranchetas nos escrit6rios da boa sociedade estilo em processo de ser eliminadas; e como a variada multidao de conselheiros, interpretes e assessores assume cada vez mais as tarefas previa­mente reservadas aOS legisladores, ni.io e de surpreender que OS

criticos que desejavam ser instrumentais na atividade de emanci­pa~ao lamentem sua priva~ao. Nao apenas o suposto velculo - e, simultaneamente, o alvo da !uta pela liberta~ao - esta se esface­lando; o dilema central, constitutivo, da teoria critica, o proprio eixo em torno do qual girava o discurso critico, dificilrnente sobre­vivenl ao desaparecimento do veiculo. 0 discurso critico, como muitos podem sentir, esta a ponto de ficar sem objeto. E muitos podem agarrar-se - e de fato 0 fazem - desesperadamente a estrategia ortodoxa da critica apenas para confirmar, inadvertida­mente, que o discurso carece, de fato, de urn objeto tangiveL a medida que os diagn6sticos sao cada vez mais desligados das realidades correntes e as propostas sao cada vez mais nebulosas; muitos insistem em travar velhas batalhas em que ganham compe­tencia e preferem isso a uma mudan~a do campo de batalha fami­liar e confi:lvel para urn novo territ6rio ainda nao inteiramente explorado, de muitas maneiras uma terra incognita.

As perspectivas para uma teoria critica (para nao falar da de­manda por ela) nao estao, porem, amarradas as formas de vida hoje em recuo da mesma maneira que a autoconsciencia dos cri­ticos esta amarrada as formas, habilidades e programas desenvol­vidos no curso do enfrentamento com elas. Foi s6 o sentido atri­buido a emancipa~ao sob condic;:oes passadas e nao mais presentes que ficou obsoleto - nao a tarefa da emancipa~ao em si. Outra coisa esta agora em jogo. Hit uma nova agenda publica de eman­cipa~ao ainda a espera de ser ocupada pela teoria critica. Essa nova agenda publica, ainda a espera de sua politica publica critica, esta emergindo junto com a versao "liquefeita" da condi~ao humana moderna - e em particular na esteira da "individualiza~ao" das tarefas da vida que derivam dessa condi~ao.

Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre a individualidade dejuree de facto, ou entre a "liberdade negativa" legalmente imposta e a ausente - ou, pelo menos, Ionge de uni­versalrnente disponivel - "liberdade positiva': isto e, a genuina

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potencia da auto-afirma~ao. A nova condi~ao nao e muito diferen­te daquela que, segundo a Biblia, levou a rebeliao dos israelitas e ao exodo do Egito. "0 fara6 ordenou aos inspetores e seus capa­tazes que deiXa~sem de suprir o povo com a palba utilizada para fa~er TIJOios ... Que. eles vao e colham sua propria palha, mas cmdem para que atmpm a mesma quota de tijolos de antes:" Quando OS capatazes argumentaram que nao Se pode fazer tijoJos efiCientemente a menos que a palha seja devidamente fornecida e acu:aram o fara6 de ordenar o impossivel, ele inverteu a respon­sabihdade pelo fracasso: "Voces sao pregui~osos, voces sao pregui­~osos:' Hoje nao h:\ fara6s ~ando ordens aos capatazes para que a~o~tem os d:,sphc~ntes. (At~ o a~oite se tornou urn trabalho "fa~a­voce-mesmo . e fm subsutmdo pela auto-flagela~ao ). Mas a tarefa de providenCiar a palha foi igualmente abandonada pelas autori­dades do momento, que dizem aos produtores de tijolos que s6 sua pregm~a os Impede de fazer o trabalho adequadamente _ e ac1ma de tudo que o fa~am para sua propria satisfa~ao.

0 trabaJho de que OS homens estao encarregados hoje e muito semelhante ao que era desde o come~o dos tempos modemos: a autoconstituir a ~ida individual e tecer e manter as redes de Ia~os com outros md!Vlduos em processo de autoconstitui~iio. Esse tra­balhonunca foi questionado pela teoria critica. 0 que estes te6ri­cos cn~cavam era a sinceridade e rapidez com que os indiv.iduos eram hbertados para realizar o trabalho que lhes tinha sido atri­buido. A teoria critica acusava de duplicidade ou ineficiencia aqueles que deveriam ter providenciado as condi~oes adequadas para a auto-afirma~ao: havia limita~oes demais a liberdade de es­colha e havia a tendencia totalit:lria intrinseca ao modo como a sociedade moderna fora estruturada e conduzida- tendencia essa que amea~ava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a Iiber­dade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub­reptlCiamente introduzida.

0 destino do agente livre esta cheio de antinomias dificeis de avaliar e aind~ ~ais di~ceis. de resolver. Consideremos, por exem­plo, a contrad1~ao ,das 1denudades autoconstituidas que devem ser suficientemente sohdas para· serem reconhecidas como tais e ao mesmo tempo flexlveis o suficiente para nao impedir a liberdade

Emancipa~ao 61

de movimentos futures em circunsdncias constantemente cam­biantes e volateis. Ou a precariedade das parcerias humanas, agora sobrecarregadas de expectativas maiores que nunca~ mas mali~S­titucionalizadas (se institucionalizadas), e portanto menos resi~­tentes a carga adicional. Ou o triste compromisso da responsabJ­Iidade repossuida, perigosamente a deriva entre as rochas da m­diferen~a e da coer~ao. Ou a fragilidade de toda a~ao com urn, que tern como apoio apenas o entusiasmo e a dedica<;iio dos atores, mas que precisa de algo mais duravel para manter sua}ntegridade durante 0 tempo que leva para alcan~ar se~s propos1tos. Ou a not6ria dificuldade de generalizar as expenenCias, VIVJdas como inteiramente pessoais e subjetivas, em proble_mas que ~ossa~ ser inscritos na agenda publica e tornar-se questoes de poliuca pub~I­ca. Esses sao apenas alguns exemplos, que oferecem uma VIsao ·usta do tipo de desafio diante dos criticos que desejam reconectar J I'. 'bli sua disciplina a agenda da po mea pu ca. -

Com boas razOes os criticos suspeitavam de que, na versao iluminista do "despota esclarecido'~ tal como incorporada nas pr:l­ticas politicas da modernidade, 0 que conta e 0 resultado - a sociedade racionalmente estruturada e d1ngida; suspe1tavam de que as vontades, desejos e prop6sitos individua_Is: a vis .formandi e a libido jormandi individuais, a propensiio pmetlca a ~n.ar nov~s significa~oes independentes de fun~oe;, usos e propos1tos, nao eram mais que recursos, ou mesmo obstaculos no cam1nho. Contra essa pr:ltica, ou sua suposta tendf.ncia, os criticos formul~ram a visiio de uma sociedade que se rebela contra essa perspecuv.a, de uma sociedade em que precisamente essas vontades, deseJOS e prop6sitos, e sua satisfa~ao, sao o que coma e deve ser honrado -visiio de uma sociedade que, por 1sso, mthta contra todos os. es­quemas de perfei~ao impostos aos desejos ( ou que os desconside­ram) dos homens e mulheres que sao incluidos sob seu nome generico. A {mica "totalidade" reconhecida e aceitavel pela maw_na dos fil6sofos da escola critica era a que podena emergir das a~oes de individuos criativos e livres para escolher.

Ravia urn tra<;o anarquista em toda a teoriza<;iio critica: todo poder era suspeito, via-se o inimigo apenas no !ado do poder, ': o mesmo inimigo era acusado de todos os retrocessos e. frustra<;oes

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sofridas pela liberdade (inclusive pela falta de valor das tropas que deveriam enfrentar valentemente suas guerras de Iiberta<;ao, como no caso do debate da "cultura de massas"). Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do !ado "publico': sempre pronto a invadir e colonizar o "privado': o "subjetivo': o "individual': Muito menos aten~ao - quase nenhuma - foi dada aos perigos que se ocultavam no estreitamento e esvaziamento do espa,o publico e a possibilidade da invasao inversa: a coloniza~ao da esfera publica pela privada. E no entanto essa eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstaculo a emancipa~ao, que em seu estagio presente s6 pode ser descrita como a tarefa de transformar a autonomia individual de jure numa autonomia de .facto.

0 poder politico implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou desaparecimento prenuncia a impotbzcia prd­tica da liberdade legalmente vitoriosa. A hist6ria da emancipa,ao moderna desloca-se de urn confronto com o primeiro perigo para urn confronto com o segundo. Para utilizar os termos de Isaiah Berlin, pode-se dizer que, depois da !uta vitoriosa pela "liberdade negativa': as alavancas necess3rias para transform<l-la numa "liber­dade positiva" - isto e, a liberdade para estabelecer a gama de op~oes e a agenda para a escolha entre elas - quebraram. 0 poder politico perdeu muito de sua terrlvel e ameac;adora potencia opressiva - mas tambem perdeu boa parte de sua potencia capa­citadora. A guerra pela emancipa,ao nao acabou. Mas, para pro­gredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua hist6ria lutou por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertariio requer hoje mais, e ntio menos, da "eifera pUblica» e do ]loder pUblico': Agora e a esfera publica que precisa desesperadamente de defesa contra 0 invasor privado - ainda que, paradoxahnente, nao para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.

Como sempre, o trabalho do pensamento critico e trazer a luz os muitos ohstclculos que se amontoam no caminho da emancipa­,ao. Dada a natureza das tarefas de hoje, os principais obstaculos que devem ser examinados urgentemente estiio ligados as cres­centes dificuldades de traduzir os problemas privados em ques­toes publicas, de condensar problemas intrinsecamente privados

Emancipa~Oo 63

, . - · es que a soma de seus ingre-t'Hl interesses publicos que sao maior . . . da << o-

. . d' 'd . de recoletivizar as utopms pnvauzadas p dwntes In IVI uais, . forma I' . 'd " de tal modo que possam assumir novamente a !I!Ca-Vl a !i . 'b!'

. - d sociedade "boa" e "justa': Quando a po uca pu Ica :~~~:::~::: s~as fun<;Oes e a ''politica-vida~' assume, os problema~ "nfrentados pelos indiv!duos de jure em s~us esfor,os pa_:a se :::~­!l'lfem individuos de facto pas sam a ser nao-adiUvos ~ n:o-cu \·:tivos destituindo assim a esfera publica de toda su sta~cla 1ue , - : do lugar em que as afli,oes individuais sao con essa as

11ao sep a · d' 'd [' - -bl. mente Do mesmo modo, am lVl ua IZa,ao pa

<' expostas pu 1ca · d · . . d mao Unica e tambem parece estrulr, ao

rece ser uma VIa e ' d · avan<;ar, todas as ferramentas que poderiam ser usa as para tm-

plementar seus objetivos de outrora. Essa tarefa coloca a teoria critica cara a .cara com urn :o;o

destinatario. 0 espectro do Grande Irmao deiX~u de peram u ar ' - - do mundo quando o despota esclarecido

pelos sotaos e poroes - E novas <leixou de habitar as salas de estar e recep<;ao .. m suas -

- oderno-liquidas e drasticamente encolhidas, ambo; en versoes, m · · d pohuca-

b . o dominio diminuto, em mlniatura, a contram a ngo n . d d ia . 'd 1· ' la' que as amea,as e oportumda es a autonom v1 a pessoa , e a!' t a individual - essa autonomia que nao se pode re IZar exce o n sociedade autonoma - devem ser procuradas e locahzadas. A bus­ca de uma vida em comum alternauva deve come,ar pelo exame

das alternativas de politica-vida.

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2 • INDIVIDUALIDADE

Agora, aqui, veja, e preciso correr o m3.ximo que voce puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro Iugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!

Lewis Carroll

IS ditlcil lcmbrar, e ainda mills ditlcil compreender, que ha nao rnais de 50 anos a disputa sabre a essencia dos progn6sticos po­ptr lan~s, sobre o que se deveria temer e sabre os tipos de horrores '!"" o filluro estava fadado a trazer se nao fosse parado a tempo «'lravava entre o Brave New WOrld de Aldous Huxley eo 1984de Ccorgc Orwell.

A disputa certamente era legitima e honesta, pois os mundos liio vividamente retratados pelos dois visionirios dist6picos eram tao diferentes quanta agua e vinho. 0 de Orwell era urn mundo de misf:_ria e destitui<;ao, de escassez e necessidade; 0 de Huxley t~nt uma terra de opul&ncia e devassidao, de abundancia e sacie­dade. Como era de se esperar, os habitantes do mundo de Orwell cmrn tristes e assustados; os de Huxley, despreocupados e alegres. llavia muitas outras diferen<;as nao menos not<i.veis: os dois mun­dos se opunham em quase todos os detalhes.

No entanto, havia alguma coisa que unia as duas visi5es. (Sem i~so, as duas distopias nao dialogariam, e muito menos se opo­nam.) 0 que elas compartilhavam era o pressentimento de urn mundo estritamente controlado; da liberdade individual nao apenas t•cduzJda a nada ou quase nada, mas agudamente rejeitada por pcssoas tremadas a obedecer a ordens e seguir rotinas estabeleci­das; de uma pequena elite que manejava todos os cordi5es - de

lndividualidade 65

1111 lltodo que o resto da humanidade poderia passar toda sua vida IIIHVI'IIdo-se como marionetes; de urn mundo dividido entre ad­lllllli.slradores e administrados, projetistas e seguidores de proje­ltm os primeiros guardando os projetos grudados ao peito e os 11111 ros nem querendo nem sen do capazes de espiar os desenhos l'·"·a !'aptar seu sentido; de urn mundo que fazia de qualquer 11l1t·rnativa alga inimaginclvel.

() fa to de o futuro trazer menos liberdade, mills controle, yj­

gd:lncia e opressao nao estava em discussao. Orwell e Huxley nao dtmu·davam quanta ao destino do mundo; eles apenas viam de llltHio diferente o caminho que nos levaria ate lcl se continmlsse­IIIOS suficientemente ignorantes, obtusos, plclcidos ou indolentes para permitir que as coisas seguissem sua rota natural.

Em carta de l 769 a Sir Horace Mann, Horace Walpole escrevia tpll~ "'o mundo f:_ Uffia comf:_dia para OS que pensam, e uma tragf:_dia para os que sentem': Mas os sentidos de "c6mico" e "tnlgico" mu­dam ao Iongo do tempo, e quando Orwell e Huxley esbo~aram os t·ontornos do trclgico futuro, ambos sentiram que a tragf:_dia do IIHIIldO era Sell OStensiVO e incontrolavel progreSSO ffiffiO a Separa-1,':10 entre os cada vez mais poderosos e remotos controladores e o n·sto, cada vez mills destituido de poder e controlado. A visao de p<'sadelo que assombrava os dais escritores era a de homens emu­llieres que nao mais controlavam suas pr6prias vidas. De modo .'l'lnelhante a pensadores de outros tempos, Platao e Arist6teles, que 11ilo eram capazes de imaginar uma sociedade boa ou mel sem es­navos, Huxley e Orwell nao podiam conceber uma sociedade, fosse c•la feliz ou infeliz, sem administradores, projetistas e supervisores que em conjunto escreviam o roteiro que outros deveriam seguir, '>rdenavam o desempenho, punham as falas na boca dos atores e demitiam ou encarceravam quem quer que improvisasse seus pr6-prios textos. Nao podiam imaginar urn mundo sem toiTes e mesas de controle. Os medos de seu tempo, tanto quanta suas esperan~as e sonhos, giravam em torno de Reparti~oes de Comando Supremo.

Copitolismo - pesodo e I eve

Nigel Thrift teria talvez classificado as hist6rias de Orwell e Hux­ley como "discurso de Joshua" e nao como "discurso do Genesis'~ 1

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66 /V\UUtlllllUUU<:> '-''-lu''-''-'

(Discursos, diz Thrift, sao "metalinguagens que ensinam as pes­seas a viver como pessoas'~) ~·Enquanto no discurso de Joshua a ordem e a regra e a desordem, uma exce~ao, no discurso do Ge­nesis a desordem e a regra e a ordem, uma exce~ao:' No discurso de Joshua, o mundo (aqui Thrift cita Keneth Jowitt) e "central­mente organizado, rigidamente delirnitado e histericamente preo­cupado com fronteiras impenetrclveis':

"Ordem': permitam-me explicar, significa monotonia, regulari­dade, repeti~ao e previsibilidade; dizemos que uma situa~ao esta "em ordem" se e somente se alguns eventos tern maier probabi­lidade de acontecer do que suas alternativas, enquanto outros eventos sao altamente improvclveis ou estao inteiramente fora de questiio. Isso significa que em algum Iugar alguem (urn Ser Supre­mo pessoal ou impessoal) deve interferir nas probabilidades, ma­nipulcl-las e viciar os dados, garantindo que os eventos nao ocor­ram aleatoriamente.

0 mundo ordeiro do discurso de Joshua e urn mundo rigida­mente controlado. Thdo nesse mundo serve a algum proposito, mesmo que nao seja clara (par enquanto, para alguns, mas para sempre, para a maioria) qual e esse proposito. Esse mundo nao tern espa<;o para 0 que nao tiver uso ou prop6sito. 0 niio-uso, alt~m disso, seria reconhecido nesse mundo como proposito legitime. Para ser reconhecido, deve servir a manutenc;ao e perpetuac;ao do todo ordenado. E a propria ordem, e somente ela, que nao requer legitima~ao; ela e, por assim dizer, "sen proprio proposito'~ Ela sim plesmente e; e nao adianta desejar que nao fosse: is so e tudo 0

que precis amos ou podemos saber sobre ela. Talvez exista porque Deus a fez existir em Seu ato de Cria~ao Divina; ou porque cria­turas humanas, mas a imagem de Deus, a fizeram existir em seu trabalho continuado de projetar, construir e administrar. Em nos­sos tempos modernos, com Deus em prolongado afastamento, a tarefa de projetar e servir a ordem cabe aos seres humanos.

Como Karl Marx descobriu, as ideias das classes dominantes tendem a ser as ideias dominantes (proposi~ao que, com nossa nova compreensao da linguagem e de seu funcionamento, pode­riamos considerar pleonastica). Por pelo menos 200 anos foram os administradores das empresas capitalistas que dominaram o mun-

lnO!VIOUOIIOQOe 67

?o ~ isto e, separaram 0 factivel do implausivel, 0 racional do Irracwnal._ o sensato do insano, e de outras formas ainda determi­naram e Circu~sc~e_veram a gama de alternativas dentro das quais confinar as trajetonas da vida humana Era, portanto s · • d . . , ua VIsao o mundo, em con]unto como proprio mundo, formado e reformado a Imagem dessa visao, que alimentava e clava substancia ao discur­SO dominante.

. At~ rec~ntemente era o discurso de Joshua; agora, e cada vez mms, e o d1scurso do Genesis. Mas ao contrario do que Thrift da a entender, o encontro de hoje, dentro do mesmo discurso de empr_:sa~ e a~ademia, dos que fa:Zem e os que interpretam 0 ~un­do, n~o e n~vidade; nem urna qualidade restrita ao novo capitalis­mo ( m~le, como o chama Thrift) avido de conhecimento. Par alguns seculos, a academia nao teve outro mundo para envolver ~m suas trarnas conceituais, sabre o qual refletir, para descrever e Interpretar, que nao aquele sedimentado pela visao e pratica capi­tahstas. Durante esse perfodo, ernpresas e academia estavarn em perrnanente c~ntato, mesrno que - por sua incapacidade de con­versar entre SI - tenharn dado a irnpressao de manter distincia. E o !~gar de encontro tern sido sempre, como hoje, indicado e for­necrdo pela primeira.

0 I':undo que sustentava o discurso de Joshua e !he clava credJbi!idade era o mundo, fordista. (O termo "fordismo" foi uti­lizado pela pnme1ra vez ha muito tempo por Antonio Gramsci e Henn de Man, mas, fie! aos habitos da coruja de Minerva de He­geL fm redescoberto e trazido ao primeiro plano e ao usa comum apenas quando o sol que brilhava sabre as praticas fordistas co­me~?u a se p8r.) Na descri~ao retrospectiva de Alain Lipietz,

0 fordismo !01, em seu apogeu, urn modele de industrializa~ao, de acumula~ao e de regular;ao:

(uma] combinat;;ao de formas de ajuste das expectativas e do co _ po~amento c~ntradit6rio dos agentes individuais aos prind.pios :_ letJ.vos do reglme de acumula~ilo ... _ 0 ~aradigma industrial incluia o principia tailorista da racionaliza­

c;ao, JUntamente com ~ constante mecanizat;;ao. Essa "raciorializac;ao" baseava-se na separa~ao dos aspectos intelectual e manual do traba-

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68 Modernidade Uquida

. . · d artir de cima e incor-lho ... 0 conhecimento social s1stemattza o a p e-

orado ao maquimlrio pelos projetistas. Quando Taylor e as e~g ~heiros tailoristas introduziram esses prindpios no com~<;~ ~o sec~­lo XX, seu objetivo exp~cito era for~ar o controle da a mmistrac;ao

sabre 05 trabalhadores.

Mas o modelo fordista era mais que isso, urn local epist_emdo-

b 1 ·gia toda uma v1sao e 16 ico de constru9ii.o so re o qua se en . . ' m~ndo e a partir da qual ele se sobrepunba maJestaucamente a

totalidade da experiencia vivida. 0 modo como os '~~es ~us::~: entendem o mundo tende a ser sempre praxeom01)~co.

determinado pelo know-how do dia, p~lo queAa;ah;:~:;~~~s~=~ fazer e elo modo como usualmente o azem. - . . . . com a !eticulosa separa~ao entre projeto e _:_xecu9ao, ml~latlv~ ~

d. t a comandos liberdade e obed!encla, mven9ao e e

aten nnen o ' d t dentro de . - com o estreito entrela<;amento os opos os

term1na<;ao, · - de coman­cada uma das oposi9i5es binarias e a suave transmls;ao d' . da do do rimeiro elemento de cada par ao segundo- m sem uvl a mai:r realiza9ii.o ate boje da engenhana soclal on~ntada ;~~~

d m Nao surpreende que tenha estabelecldo o qua ro me a o

':coed~ referencia (mesmo que a referencia nao fo;s~ ~ta~1~.::~: todos os ue tentavam compreender como a rea I a e

q ' . - tanto o societal-global quanta o opera em todos os seus mvels , f' .l d

d .d . d .. dual Sua presen9a dissimulada ou aberta e aCl e

a VI a In IVI · . 0 '"sistema detectar em visOes aparentemente tao d~sta~t~· ~o~o lo "con

. l" arsoniano, que se auto-reproduz e e mgl o pe -soCla P tr l de valores" eo "projeto de vida" sartreano, que serve ~:'::,~ c;~oj:to-guia par~ 0 esfor9o de constru9ao da identidade

do eu. ' f'b · £ d. ta nem De fa to, pare cia nao existir alternativa ~ a nca or IS , d.

al urn obstitculo serio a impedir a expansao do modelo for~::: at~ os mais reconditos recesses e fissuras da soCJedade. 0 alde entre On-vell e I-Iuxley, assim como o confronto entre socl Jsmo e

. - . ue uma desaven~a em capitalismo, foi, a esse respelto, nao mals q . d I for-familia. 0 comunismo, afinal, deseja~a apenas h~rar o mo ;a~i no dista de suas polui9i5es presentes (nao lmperfel~oes)-: d: d Zlti­caos gerado pelo mercado que se interpunha no camm o a

IIIUIVIUUUIIUUUI:l

rna e total derrota dos acidentes e da contingencia e que assim limitava o planejamento racional. Nas palavras de Lenin, a visao do socialismo seria efetivada se os comunistas conseguissem "combinar o poder sovietico e a organiza~ao sovietica da adminis­trac;ao com o Ultimo progresso do capitalismo':3 com a "organiza­~ao sovietica da administra9ao" significando, para Lenin, permitir que 0 "ultimo progresso do capitalismo" (isto e, como ele insistia em repetir, a "organiza9ao cientifica do trabalho") transbordasse de dentro dos muros da fabrica para penetrar e saturar a vida social como urn todo.

0 fordismo era a autoconsciencia da sociedade moderna em sua fase "pesada': "volumosa': ou "im6vel" e "enraizada': "s6lida': Nesse estagio de sua hist6ria conjunta, capital, administra~ao e trabalho estavam, para o hem e para o mal, condenados a ficar juntos por muito tempo, talvez para sempre - amarrados pela combina~ao de fabricas enonnes, maquinaria pesada e for9a de trabalho maci~a. Para sobreviver, e principahnente para agir de modo eficiente, tinham que GGcavar': desenhar fronteiras e marci­las com trincheiras e arame farpado, ao mesmo tempo em que raziam a fortaleza suficientemente grande para abrigar todo 0 ne­cessaria para resistir a urn cerco prolongado, talvez sem perspec­tivas. 0 capitalismo pesado era obcecado por volume e tamanho, e, por isso, tambem por fronteiras, fazendo-as firmes e impenetra­veis. 0 genio de Henry Ford foi descobrir o modo de manter os defensores de sua fortaleza industrial dentro dos muros - para suarda-los da tenta~ao de desertar ou mudar de !ado. Como disse o economista da Sorbonne Daniel Cohen:

Henry Ford decidiu urn dia "dobrar" os salarios de seus trabalhado­res. A razao (publicamente) declarada, a celebre frase "quero que meus trabalhadores sejam pagos suficientemente bern para comprar meus carros" foi, obviamente, uma brincadeira. As compras dos tra­balhadores eram uma fra~iio Infima de suas vendas, mas os sal<lrios pesavam muito mais em seus custos ... A verdadeira razao para o aumento dos sal3.rios foi a formid3.vel rotatividade de for~a de traba­lho que a Ford enfrentava. Ele decidiu dar o aumento espetacular aos trabalhadores para fixa-los a linha .. 4

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A corrente invisivel que prendia os trabalhadores a seus luga­res e impedia sua mobilidade era, nas palavras de Cohen, "o cora­~ao do fordismo'~ 0 rompimento dessa corrente foi tambem o divisor de aguas decisive na experiencia de vida, e se associa a decadencia e extin~ao aceleradas do modelo fordista. "Quem co­mec;a uma carreira na Microsoft': observa Cohen, "nao sabe onde ela vai terminar. Come~ar na Ford ou na Renault implicava, ao contnlrio, a quase certeza de que a carreira seguiria seu curso no

1 " mesmo ugar. Em seu estigio pesado, o capital estava tiio fixado ao solo

quanto os trabalhadores que empregava. Hoje o capital viaja !eve - apenas com a bagagem de mao, que inclui nada mais que pasta, telefone celular e computador portatil. Pode saltar em quase qual­quer ponto do caminho, e nao precisa demorar-se em nenhum Iugar alem do tempo que durar sua satisfa~ao. 0 trabalho, porem, permanece tiio imobilizado quanto no passado - mas o Iugar em que ele imaginava estar fixado de uma vez por todas perdeu sua solidez de outrora; buscando rochas, as ancoras encontram areias movedi~as. Alguns dos habitantes do mundo estiio em movimen­to; para OS demais, e 0 mundo que se recusa a ficar parado. 0 discurso de Joshua soa vazio quando o mundo, que uma vez teve legislador, arbitro e corte de apela~ao reunidos em uma s6 entida­de, parece cada vez mais com urn dos jogadores, escondendo as cartas, preparando armadilhas e aguardando sua vez de blefar.

Os passageiros do navio "Capitalismo Pesado" confiavam (nem sempre sabiamente) em que os seletos membros da tripula­c;ao com direito a chegar a ponte de co man do conduziriam 0 navio a sen destino. Os passageiros podiam devotar toda sua aten~ao a aprender e seguir as regras a eles destinadas e exibidas ostensiva­mente em todas as passagens. Se· reclamavam ( ou As vezes se amotinavam), era contra o capitao, que nao levava o navio a porto com a suficiente rapidez, ou por negligenciar excepcionalmente o conforto dos passageiros. Ja os passageiros do aviao "Capitalismo Leve" descobrem horrorizados que a cabine do piloto esta vazia e que nao ha meio de extrair da "caixa preta" chamada piloto auto­matico qualquer informa~ao sabre para onde vai 0 aviao, onde aterrizari, quem escolheri o aeroporto e sabre se existem regras

II IUIVIUUUIIUUUt::'

"

que permitam que os passageiros contribuam para a seguran~a da chegada.

Tenho cerro, posso viajar

Podemos dizer que o rumo dos eventos no mundo do capitalismo provou ser o exato oposto do que Max Weber previa quando es­colheu a burocracia como prot6tipo da sociedade por vir e a re­tratou como a forma por excel en cia da a~ao racional. Extrapolando sua visao do futuro a partir da experiencia contemporanea do capitalismo pesado ( o hom em que cunhou a expressao "gaiola de ferro" nao podia estar ciente de que o "peso" era urn mero atributo temporario do capitalismo e que outras modalidades da ordem capitalista eram concebiveis e estavam em gesta~ao ), Weber previu o triunfo iminente da G'racionalidade instrumental": como destino da hist6ria humana dado como sabido, e a questao dos fins da nc;ao h.umana acertada e nao mais aberta a contesta~ao, as pessoas passanam a se ocupar mais, talvez exclusivamente, da questao dos meios - o futuro seria, par assim dizer, obcecado com os meios. rlbda racionaliza~ao adicional, em si mesma uma conclusao ante­cipada, consistiria em afiar, ajustar e aperfei~oar os meios. Saben­do que a capacidade racional dos seres humanos tende a ser sola­pada constantemente por propensoes afetivas e outras inclina~oes igualmente irracionais, poder-se-ia suspeitar de que a disputa so­bre os fins dificilmente chegaria a urn final; mas essa disputa seria no futuro expulsa da corrente principal impulsionada pela inexo­ravel racionaliza~ao - e deixada para OS profetas e pregadores a margem dos superiores ( e decisivos) afazeres da vida.

Weber tam bern se referiu a outro tipo de a~ao orientada, a que chamou de racional par referencia a valores, mas ai se referia a procura de valores "enquanto tais" e "independente da perspecti­VB de sucesso exterior'~ Tambem deixou clara que os valores em que pensava eram de tipo etico, estetico ou religiose - isto e, pertencentes a categoria que 0 capitalismo moderno degradou e dec!•:ou praticamente dispensavel e irrelevante, quando nao pre­tudlC!al para a conduta racional que promovias Po demos apenas

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especular que a necessidade de adicionar a racionalidade por re­fer&ncia a valores a seu invent<lrio dos tipos de a~ao ocorreu a Weber tardiamente, sob o impacto da revolu9iio bolchevique, que parecia refutar a conclusao de que a questii.o dos objetivos tinha sido resolvida de uma vez por todas, e implicava, ao contrario, que ainda poderia surgir uma situa9iio em que algumas pessoas se manteriam fieis a seus ideais, por mais remota e infima que fosse a chance de realiza-los e por mais exorbitante que fosse o custo da tentativa - e assim se desviariam da (mica preocupa9iio legiti­ma, a saber, 0 ca\cu\o dos meios apropriados a obten9a0 de deter­

minados fins. Quaisquer que sejam as aplica96es do conceito da racionalida­

de referida a valores no esquema weberiano da hist6ria, esse con­ceito e inlltil se quisermos captar a essencia do momenta hist6rico presente. 0 capitalismo \eve de hoje nao e "racional por r~ferencia a valores" no sentido de Weber, ainda que se afaste do upo Ideal da ordem racional-instrumental. 0 capitalismo \eve parece estar a anos-luz de distancia da racionalidade referida a valores no estilo weberiano; se alguma vez na hist6ria os valores foram abra9ad~s ""em termos absolutes': isso certamente nao e 0 que acontece hoJe. 0 que realmente aconteceu no curso da passagem ~o caf.italismo pesado para o \eve foi o desbaratamento dos m:v1SlveiS pohtbu­ros" capazes de "absolutizar" os valores, das cortes suprem~s ~es­tinadas a pronunciar veredictos sem apela9iio sabre os objeUvos dignos de persegui9iio (as institui96es indispensaveis e centralS

para o discurso de Joshua). Na falta de uma Suprema Reparti9iio ( ou melhor, na presen9a

de muitas reparti96es competindo pela supremacia, ne~huma de; las com grandes.chances de veneer), a questao dos objeUvo_s es~a novamente pasta e destinada a tornar-se causa de mu1ta hes1tac;:o e de agonia sem fim, a solapar a confian,9a e a gerar a sensa9ao enervante de incerteza e, portanto, tambem um Estado de ansie­dade perpetua. Nas palavras de Gerhard Schulze, este e um novo tipo de incerteza: "nao saber os fins, em Iugar da mcerteza tradi­cional de nao saber OS meios':6 Nao e mais 0 caso de tentar, sem ter 0 conhecimento completo, calcular os meios ( os ja disponiveis e os tidos como necessitrios e zelosamente buscados) em rela<;iio

lndiVIdualldode 73

a determinado fim. 0 que esta em pauta e a questao de considerar e decidir, em face de todos os riscos conhecidos ou meramente adivinhados, quais dos muitos flutuantes e sedutores fins "ao al­cance" (isto e, que pod em ser razoavehnente perseguidos) devem ter prioridade - dada a quantidade de meios disponiveis e le­vando em considera~ao as infimas chances de sua utilidade du­radoura.

Nas novas circunstincias, o mais prov:lvel e que a maier parte da vida humana e a rnaioria das vidas humanas consuma-se na agonia quanto a escolha de objetivos, e nao na procura dos meios para os fins, que nao exigem tanta reflexao. Ao contrario de seu antecessor, o capitalismo !eve tende a ser obcecado por valores. 0 pequeno anuncio ap6crifo na co luna de "empregos procurados"­"tenho carro, posso viajar" - pode servir de epitome as novas problematicas da vida, ao \ado da questao atribuida aos chefes dos institutos e laborat6rios tecnicos e cientificos de hoje: "Achamos a 1olu~ao. Vamos agora procurar o problema:' A pergunta "o que posso fazer?" passou a dominar a ac;ao, minimizando e excluindo a questiio "como fazer da melhor maneira possivel aquila que tenho que niio posso deixar de fazer?"

Como as Supremas Reparti~oes que cuidavam da regularidade do mundo e guardavam os limites entre o certo e o errado nao estao mais a vista, o mundo se torna uma colec;ao infinita de pos­libilidades: urn conteiner cheio ate a boca com uma quantidade lncontavel de oportunidades a serem exploradas ou ja perdidas. Hit mais- muitissimo mais -possibilidades do que qualquer vida IndividuaL por mais longa, aventurosa e industriosa que seja, pode tentar explorar, e muito menos adotar. E a infinidade das oportu­nidades que preenche o espa9o deixado vazio pelo desapareci­mento da Suprema Reparti~ao.

Nao surpreende que nao mais se escrevam distopias nestes tempos: o mundo p6s-fordista, "moderno fluido'; dos individuos que escolhem em liberdade, nao mais se ocupa do sinistro Grande lrmii.o, que puniria os que saissem da linha. Neste mundo, no lntanto, tampouco ha espa9o para o benigno e cuidadoso Irmao Mais "Velho em quem se podia confiar e buscar apoio para decidir que coisas eram dignas de ser feitas ou possuidas e com quem se

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podia contar para proteger o irmao mais novo dos valentOes que se punham em seu caminho; e assim as utopias da boa sociedade tambem deixaram de ser escritas. Thdo, por assim dizer, corre agora por conta do individuo. Cabe ao individuo descobrir o que e capaz de fazer, esticar essa capacidade ao m:iximo e escolher OS

fins a que essa capacidade poderia melhor servir - isto e, com a maxima satisfa~ao concebivel. Compete ao individuo "amansar o inesperado para que se torne urn entretenimento'~ 7

Viver num mundo cheio de oportunidades - cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma ~'compensando a anterior, e preparando o terrene para a mudanc;a para a seguinte"8

- e uma experiencia divertida. Nesse mundo, poucas coisas sao predeterminadas, e menos ainda irrevog3veis. Poucas derrotas sao definitivas, pouquissimos contratempos, irrevers:iveis; mas nenhu­ma vit6ria e tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permane~am liquidas e fluidas e tenham "data de validade'; caso contrario poderiam excluir as oportunida­des remanescentes e abortar o embriiio da prOxima aventura. Como dizem Zbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu inte­ressante estudo de problemas da identidade, 9 viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou pelo menos em meio a maior nU.mero de chances do que seria razmlvel experimentar) tern o gosto dace da "liberdade de tornar-se qualquer urn': Porem essa do<;ura tern uma cica amarga porque, enquanto o '"tornar-se" su­gere que nada esta acabado e temos tudo pela frente, a condi~iio de ""ser alguem·: que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do arbitro, indicando o fim do jogo' "Voce niio esta mais livre quando chega 0 final; voce niio e voce, mesmo que tenha se tor­nado alguem:' Estar inacabado, incompleto e subdeterminado e urn estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contr<lrio tambem niio traz urn prazer plena, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto.

A consciencia de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o invent:irio das maravilhas que a vida pode oferecer sao muito agradaveis e satisfat6rios; A suspeita de que nada do que ja foi testado e apropriado e duradouro e garantido contra a

lnOlVIOUOitaaae I>

decadencia e, porem, a proverbial mosca na sop a. As perdas equi­valem aos ganhos. A vida esta fadada a navegar entre os dois e nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado urn itinerario seguro e sem riscos.

0 mundo cheio de possibilidades e como uma mesa de bure com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal po.den~ esperar provar de todos. Os comensais sao consumidores, e a ma1s cu~tosa ~ irritante das tarefas que se pode pOr diante de urn consum1dor e a necessidade de estabelecer prioridades, a ne­cessidade de diSpensar algumas op~oes inexploradas e abandona­las. A mfelic1dade dos consumidores deriva do excesso e niio da falta de escolha. "Sera que utilizei os meios a minha disposi~ao da ~e~h~r maneira poss:ivel?" e a pergunta que mais assombra e causa msoma ao consumidor. Como disse Marina Bianchi num trabalho coletivo de economistas que tinham em mente os vendedores de hens de consumo,

no caso do consumidor, a fun~ao objetiva ... est<l vazia ... Os ~ns _coerente~ente se equivalem aos meios, mas 08 pr6prios

fins nao sao escolh1dos racionalmente ...

Hipoteticamente, os consumidores, mas na:o as firmas, nao podem nunca errar, ou ser pegos errando.10

Mas se nao se pode errar, tambem nao se pode saber se se est£ C~rt?. S~ nao hi ~ovimentos errados, nao h£ nada que permita diStmgmr urn mov1mento como melhor, e assim nada que permita reconhecer o moVImento certo entre as v£rias alternativas - nem antes nem depois de fazer o movimento. E uma ben~iio mista que o pengo do erro niio esteja nas cartas - uma alegria duvidosa, certamente, dado que seu pre~o e a incerteza perpetua e urn desejo que provavelmente nunca sera saciado. E uma boa noticia., uma promessa de per~anecer no ramo, para os vendedores, mas para OS compradores e a certeza de que continuariio aflitos.

Pare de me dizer; mostre-me!

~ capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que Itavam as leiS, dos proJeUstas de rotinas e dos supervisores; 0

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mundo de homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, do modo determinado por outros. Por essa razao era tambem o mundo das autoridades: de lideres que sabiam mais e de professores que ensinavam a proceder melhor.

0 capitalismo !eve, amigivel com o consumidor, nao aboliu as autoridades que ditam leis, nem as tornou dispensaveis. Apenas deu Iugar e permitiu que coexistissem autoridades em numero tao grande que nenhuma poderia se manter por muito tempo e menos ainda atingir a posi~ao de exclusividade. Ao contrario do erro, a verdade e s6 uma, e pode ser reconhecida como verdade (isto e, com o direito de declarar erradas todas as alternativas a ela mes­ma) justamente por ser lmica. Parando para pensar, "numerosas autoridades" e uma contradi~ao em termos. Quando as autorida­des sao muitas, tendem a cancelar-se mutuamente, e a Unica auto­ridade efetiva na area e a que pode escolber entre elas . .E por cortesia de quem escolhe que a autoridade se torna uma autorida­de. As autoridades nao mais ordenam; elas se tornam agradaveis a quem escolhe; tentam e seduzem.

0 "lider" foi urn produto nao-intencional, e urn complemento necessario, do mundo que tinha por objetivo a "boa sociedade': ou a sociedade '"certa e apropriada': e procurava manter as alter­nativas impr6prias a distancia. 0 mundo da "modernidade liqui­da" niio faz nem uma coisa nero outra. A infame frase de efeito de Margaret Thatcher "nao existe essa co is a de sociedade" e ao ·IDes­

roo tempo uma reflexiio perspicaz sabre a mudanc;a no canlter do capitalismo, uma declara~ao de inten~oes e uma profecia auto­cumprida: em seus rastros veio o desmantelamento das redes nor­mativas e protetoras, que ajudavam o mundo em seu percurso de tornar-se carne. "Nao-sociedade" significa nao ter nem utopia nem distopia: como Peter Drucker, o guru do capitalismo !eve, disse, "nao mais salva~ao pela sociedade" - sugerindo ( ainda que por omissao e nao por afirma~ao) que, por implica~ao, a responsabili­dade pela dana~ao nao pode ficar com a sociedade; a reden~ao e a condena~ao sao produzidas pelo individuo e somente por ele -o resultado do que o agente livre fez livremente de sua vida.

Nao faltam, obviamente, pessoas que afirmam "estar por den­tro': e muitas delas tern legioes de seguidores prontos a lhes fazer

lndividualidade 77

cora. Tais pessoas "por dentro': mesmo aquelas cujo conhecimento nao foi posto publicamente em duvida, nao sao, no entanto, lfderes;

elas sao, no miximo, conselheiros - e uma diferen~a crucial entre lideres e COUselheiros e que OS primeiros devem ser seguidos e OS segundos precisam ser contratados e podem ser demitidos. Os lideres demandam e esperam disciplina; os conselheiros podem, na melhor das hip6teses, contar com a boa vontade do outro de ouvir e prestar aten9ao. E devem primeiro conquistar essa vontade bajulando os possiveis ouvintes. Outra diferen9a crucial entre H­deres e COllSelheiros e que OS primeiros agem COffiO intermedi;lri_os entre o bern individual e o "bern de todos': ou, (como diria C. Wright Mills) entre as preocupa96es privadas e as questoes publi­cas. Os conselheiros, ao contrario, cuidam de nunca pisar fora da :lrea fechada do privado. Doen<;as sao individuais, assim cOmo a terapia; as preocupa<;6es sao privadas, assim como os meios de lutar para resolve-las. Os conselhos que os conselheiros oferecem se referem a politica-vida, nao a Politica com P mailisculo; eles se referem ao que as pessoas aconselhadas podem fazer elas mesmas e para si pr6prias, cada uma para si - nao ao que podem realizar em conjunto para cada uma delas, se unirem for9as.

Em urn dos maiores sucessos entre os popularissimos livros de auto-ajuda (vendeu mais de cinco milhoes de c6pias desde sua publica~ao em 1987), Melody Beattie adverte/aconselha seus lei­tares: "A maneira mais garantida de enlouquecer· e e·nvolver-se com os assuntos de outras pessoas, e a maneira mais ripida de tomar-se sao e feliz e cuidar dos pr6prios?' 0 livro deve seu su­cesso instantaneo ao titulo sugestivo (Codependent no More), que resume seu conteudo: tentar resolver os problemas de outras pes­soas nos torna dependentes, e a dependencia oferece refens ao destino - ou, mais precisamente, a coisas que nao dominamos e a pessoas que nao controlamos; portanto, cuidemos de nossos pro­blemas, e apenas de nossos problemas, com a consciencia limpa. Hi pouco a ganhar fazendo o trabalho de outros, e isso desviaria nossa aten~ao do trabalho que ninguem pode fazer senao n6s mesmos. Tal mensagem soa agradavel - como uma confirma~ao, uma absolvi9ao e uma luz verde necessaria - a todos os que, s6s, sao for<;ados a seguir, a favor ou contra seu prOprio juizo, e nao

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sem dor na consciencia, a exorta~ao de Samuel Butler: "No fim, o prazer e melhor guia que 0 direito ou 0 clever:'

"Nos" e o pronome pessoal usado com mais freqiiencia pelos lideres. J;l os conselheiros V~m pouco que fazer com ele: "n6s" niio e mais que urn agregado de "eus': e 0 agregado, ao contrluio do "grupo" de Emile Durkheim, nao e maior que a soma de suas partes. Ao fim da sessao de aconselhamento, as pessoas aconselha­das estiio tao s6s quanta antes. Isso quando sua solidiio niio foi refor~ada: quando sua impressao de que seriam abandonadas a sua propria sorte nao foi corroborada e transformada em uma quase certeza. Qualquer que fosse o conteudo do aconselhamento, este se referia a coisas que a pessoa aconselhada deveria fazer por si mesma, aceitando inteira responsabilidade por faze-las de ma­neira apropriada, e nao culpando a ninguem pelas conseqiiencias desagradaveis que so poderiam ser atribuidas a seu proprio erro ou negligencia.

0 melhor conselheiro e 0 que esta ciente do fato de que aque­les que receberao os conselhos querem uma lit;ao-objeto. Desde que a natureza dos problemas seja tal que eles possam ser enfren­tados pelos individuos por conta propria e por esfor~os indivi­duais, o que as pessoas em busca de conselho precis am ( ou acre­ditam precisar) e urn exemplo de como outros hom ens e mulheres, diante de problemas semelhantes, se desincumbem deles. E elas precisarn do exemplo por raz5es ainda mais essenciais: o nllmero dos que se sentem "infelizes" e maior que 0 dos que conseguem indicar e identificar as causas de sua infelicidade. 0 sentimento de "estar infeliz" e muitas vezes difuso e solto; seus contornos sao apagados, suas raizes, espalhadas; precisa tornar-se "tangivel" -moldado e nomeado, a fim de tamar o igualmente vago desejo de felicidade uma tarefa especHica. Olhando para a experiencia de outras pessoas, tendo uma ideia de suas dificuldades e atribula­~6es, esperamos descobrir e localizar os problemas que causaram nossa propria infelicidade, dar-lhes urn nome e, portanto, saber para onde olhar para encontrar meios de resistir a eles ou resolv~­los.

Explicando a fenomenal popularidade do Jane Fonda's Workout Book (1981) e a tecnica de auto-disciplina que esse livro pas a

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disposi~ao de milhoes de mulheres norte-americanas, Hilary Rad­ner observa que

a instrutora se oferece como urn exemplo ... mais do que como uma autoridade ...

A mulher que se exercita possui seu prOprio corpo pela identifica­c;ao com uma imagem que n:lo e a sua prOpria mas a dos corpos que lhe sao oferecidos como exemplo.

Jane Fonda e bastante explicita sabre a essencia do que ofe­rece e bastante direta sabre o tipo de exemplo que seus leitores devem seguir: "Gosto muito de pensar que meu corpo e produto de mim mesma, e meu sangue e entranhas. E minha responsabili­dade:' 11 A mensagem de Fonda para toda mulher e que trate seu corpo como sua propriedade (meu sangue, minhasentranhas), seu proprio produto e, acima de tudo, sua propria respomabilidade. Para sustentar e reforc;ar o amour de .soi p6s-moderno, ela invoca

(ao !ado da tendencia de consumidora de auto-identificar-se pela propriedade) a memoria do muito pre-pos-moderno- em verda­de mais pre-moderno do que moderno - instinto de artesanato: 0 produto de meu trabalho e tao born quanta (e nao melhor que) a habilidade, aten~ao e cuidado que ponho em sua produ~ao. Quaisquer que sejam os resultados, nao tenho ninguem mais a quem possa elogiar ( ou cui par, se for o caso ). 0 !ado in verso da mensagem tambem nao e amb.iguo, ainda que n:io soletrado com a mesma clareza: voce deve a seu corpo cui dado, e se negligenciar esse clever, voce deve sentir-se culpada e envergonhada. Imperfei­~6es de seu corpo sao sua culpa e vergonha. Mas a reden~ao do pecado esti ao alcance das m:ios da pecadora, e s6 de suas m:ios.

Repito com Hilary Radner: ao dizer tudo isso, Jane Fonda nao age como autoridade (como quem formula a lei, estabelece a nor­ma, prega ou ensina). Ela se "oferece como exemplo': Sou famosa e amada; sou urn objeto de desejo e admira~ao. Por que? Qualquer que seja a razao, existe porque eu a fiz existir. Olhem meu corpo: e esguio, flexivel, tern boa forma - perenemente jovem. Voce cer­tamente gostaria de ter - de ser - urn corpo como o meu. Meu corpo e meu trabalho; se voce se exercitar como eu, vOce poderi

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te-lo. Se voce sonha em "ser como Jane Fonda': lembre-se que fui eu, Jane Fonda, que fiz de mim a Jane Fonda desses sonhos.

Ser rica e famosa ajuda, e claro; confere peso a mensagem. Embora Jane Fonda se esforce para se p6r como exemplo, e niio autoridade, seria tolo negar que, sendo quem e, seu exemplo traz "naturalmente" uma autoridade que outros exemplos teriam que trabalhar muito para obter. Jane Fonda e de certa maneira urn caso excepcional: ela herdou a condic;;:ao de "estar sob os refletores" e atraiu ainda mais refletores sabre suas atividades muito antes de decidir fazer de seu corpo urn exemplo. Em geral, porem, niio podemos estar certos da dire9iio em que funciona a rela9iio causal entre a disposi9ao de seguir urn exemplo e a autoridade da pessoa que serve como exemplo. Como observou Daniel J Boorstin -com gra\'a, mas niio de brincadeira (em The Image, 1961) -, uma celebridade e uma pessoa conhecida por ser muito conhecida, e urn best-seller e urn livro que vende bern porque esta vendendo bern. A autoridade amplia o numero de seguidores, mas, no mun­do de fins incertos e cronicamente subdeterminados, e 0 nllmero de seguidores que faz - que tf- a autoridade.

Qualquer que seja o caso, no par exemplo-autoridade a parte do exemplo e a mais importante e mais solicitada. As celebridades com autoridade suficiente para fazer com que o que dizem seja digno de aten9iio mesmo antes que o digam sao muito poucas para estrelar os inumenlveis programas de entrevistas da TV ( e rara­mente aparecem nos mais populares deles, como o de Oprah e o de Thsha), mas isso niio impede que esses programas sejam uma compulsao diaria para milhoes de homens e mulheres avidos por aconselhamento. A autoridade da pessoa que compartilha sua his­t6ria de vida pode fazer com que os espectadores observem o exemplo com atenc;;:ao e aumenta os indices de audiencia. Mas a falta de autoridade de quem conta sua vida, o fato de ela niio ser uma celebridade, sua anonimidade, pode fazer com que o exem­plo seja mais f!tcil de seguir e assim ter urn potencial adicional pr6prio. As niio-celebridades, os homens e mulheres "comuns': "como voce e eu': que aparecem na telinha 3:penas porum momen­ta passageiro (niio mais do que 0 necessaria para contar a hist6ria e receber o aplauso merecido, assim como alguma critica por es-

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conder partes picantes ou gastar tempo demais com as partes de­sinteressantes) sao tao desvalidas e infelizes quanta OS espectado­res, sofrendo o mesmo tipo de golpes e buscando desesperada­mente uma saida honrosa e urn caminho promissor para uma vida mais feliz. E assim, o que elas fizeram eu tambem posso fazer; talvez ate melhor. Posso aprender alguma co is a uti! tanto com suas vit6rias quanta com suas derrotas.

Seria arrogante, alem de equivocado, condenar ou ridiculari­zar o vicio dos programas de entrevistas como efeito da eterna avidez humana pela fofoca e da "curiosidade barata': Num mundo repleto de meios, mas notoriamente pouco clara sabre os fins, as li96es retiradas dos programas de entrevistas respondem a uma demanda genuina e tern valor pragmatico inegavel, pois ja sabe­mos que depende de n6s mesmos fazer (e continuar a fazer) o melhor passive! de nossas vidas; e como tambem sabemos que quaisquer recursos requeridos portal empreendimento s6 podem ser procurados e encontrados entre nossas pr6prias habilidades, coragem e determina<;ao, e vital saber como agem outras pessoas diante de desafios semelhantes. Podem ter descoberto estratage­mas admiraveis que niio percebemos; podem ter explorado partes da questao a que nfio demos aten<;fio ou em que nfio nos aprofun­damos o suficiente.

Essa nao e, porem, a (mica vantagem. Como dito acima, no­mear o problema e em si uma tarefa assustadora, e sem esse nome para o sentimento de inquieta9iio ou infelicidade niio ha esperan~a de cura. No entanto, embora o sofrimento seja pessoal e privado, uma "linguagem privada" e uma incongruencia. 0 que quer que seja nomeado, inclusive os sentimentos mais secretes, pessoais e intimas, s6 0 e propriamente Se OS DOffieS escolhidos forem de dominio publico, se pertencerem a uma linguagem compartilhada e publicae forem compreendidos pelas pessoas que se comunicam nessa linguagem. Os programas de entrevistas sao li9oes" publicas de uma linguagem ainda-niio-nascida-mas-prestes-a-nascer. For­necem as palavras que poderiio ser utilizadas para "nomear o pro­blema" - para expressar, em modos publicamente legiveis, o que ate agora era inefcivel e assim permaneceria sem tais palavras.

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Esse e, em si, urn ganho da maior importancia - mas ha ainda outros. Nos programas de entrevistas, palavras e frases que se referem a experiencias consideradas intimas e, portanto, inade­quadas como tema de conversa sao pronunciadas em publico -para aprovac;ao, divertimento e aplauso universais. Pela mesma razao, OS programas de entrevistaS fegitimam 0 discurSO publico sobre questoes privadas. Tornam o indizivel dizivel, o vergonhoso, decente, e transformam o feio segredo em questao de orgulho. Ate certo ponto sao rituais de exorcismo - e muito eficazes. Grac;as aos programas de entrevistas, posso falar de agora em diante aber­tamente sobre coisas que eu pensava ( equivocadamente, agora vejo) infames e infamantes e, portanto, destinadas a permanecer secretas e a serem sofridas em siiencio. Como minha confissao nao e mais secreta, ganho mais que 0 conforto da absolvic;ao: nao precise mais me sentir envergonhado ou temeroso de ser despre­zado, condenado por impudencia ou relegado ao ostracismo. Es­sas sao, afinal, as coisas de que as pessoas falam compungidas na presen9a de milhoes de espectadores. Seus problemas privados, e assim tambem meus pr6prios problemas, tao parecidos aos deles, sao adequados para discussao pUblica. Nao que se tornem questOes pUblicas; entram na discussao precisamente em sua condi<;ao de questoes privadas e, por mais que sejam discutidas, como os leopar­dos, tambem nao mudam suas pintas. Ao contr3rio, sao reafirma­das como privadas e emergirao da exposi9ao publica refor9adas em seu carater privado. AfinaJ, todos OS que faJaram concordaram que, na medida em que foram experimentadas e vividas priva­damente, e assim que essas coisas devem ser confrontadas e re­solvidas.

Muitos pensadores influentes (sendo Jurgen Habermas o mais importante deles) advertem sobre a possibilidade de que a "esfera privada" seja invadida, conquistada e colonizada pela "pu­blica': Voltando a memoria recente da era que inspirou as distopias como as de Huxley ou de Orwell, pode-se compreender tal temor. As premoni96es parecem, no entanto, surgir da leitura do que acontece diante de nossos olhos com as lentes erradas. De_fato, a tend en cia oposta a advertencia e. a que parece estar se operando

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- a coloniza~ao da esfera publica por questoes anteriormente clas­sificadas COffiO privadas e inadequadas a exposi9a0 publica.

0 que esta ocorrendo nao e simpJesmente Outra renegocia9a0 da fronteira notoriamente m6vel entre o privado e o publico. 0 que parece estar em jogo e uma redefini9a0 da esfera publica como urn palco em que dramas privados sao encenados, publica­mente expostos e publicamente assistidos. A defini9ao corrente de "interesse pUblico': promovida pela midia e amplamente aceita por quase todos OS setores da sociedade, e 0 clever de encenar tais dramas em publico e o direito do publico de assistir a encena9ao. As condi~oes sociais que fazem com que tal desenvolvimento nao seja surpreendente e pare~a mesmo "natural" devem ficar eviden­tes a luz do argumento precedente; mas as consequencias desse desenvolvimento ainda nao foram inteiramente exploradas. Po­clem ter maior alcance do que em geral se aceita.

A conseqUencia que pode ser considerada mais interessante e o desaparecimento da "politica como a conhecemos" - da Politica com P maiusculo, a atividade encarregada de traduzir problemas privados em questoes publicas ( e vice-versa). E o esfor~o dessa tradu9ao que hoje esta se detendo. Os problemas privados nao se tornam questoes publicas pelo fato de serem ventilados em publi­co; mesmo sob o olhar publico nao deixam de ser privados, e o que parece resultar de sua transferencia para a cena publica e a expulsao de todos os outros problemas "nao-privados" da agenda publica. 0 que cada vez mais e percebido como "questoes publi­cas" sao OS problemas privados de figuras publicas. A tradicional questao da politica democratica - quao uti! ou prejudicial para 0 bem-estar de seus suditos/ eleitores e 0 modo como as figuras publicas exercitam seus deveres publicus- foi pelo ralo, sinalizan­do para que o interesse publico na boa sociedade, na justi9a pu­blica ou na responsabilidade coletiva pelo bem-estar individual a siga no caminho do esquecimento.

Atingido por uma serie de "esc~ndalos" (isto e, exposi9aO pu­blica de frouxidiio moral nas vidas privadas de figuras publicas ), Tony Blair (no Guardian de 11.1.1999) se queixava de que "a politica se reduziu a uma coluna de mexericos" e conclamava a audiencia a enfrentar a alternativa: "'Ou teremos a pauta de noti-

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cias dominada pelo escandalo, pelo mexerico e pela trivialidade, ou pelas coisas que realmente importam:'12 Tais palavras nao po­dem senao surpreender, vindo, como vern, de urn politico que consulta diariamente "grupos focais" na esperanc;a de ser regular­mente informado sabre os sentimentos da base e "as coisas que realmente importam" na opinitio de seus eleitores, e cujo modo de manejar as coisas que realmente importam para as condifoes em que seus eleitores vivem e ela mesma urn fator importante no tipo de vida responsive! pela "redu~ao da politica a uma coluna de mexericos" que ele lamenta.

As condi~oes de vida em questao levam os homens e mulheres a buscar exemplos, e nao lideres. Levam-nos a esperar que as pessoas sob os refletores - todas e qualquer uma delas - mostrem como "as coisas que importam" (agora confinadas a suas proprias quatro pare des e ai trancadas) sao feitas. Afinal, eles ouvem dia­riamente que o que est:i errado em suas vidas provem de seus proprios erros, foi sua propria culpa e deve ser consertado com suas proprias ferramentas e por seus proprios esfor~os. Nao e, portanto, por acaso que supoem que a maior utilidade (talvez a {mica) das pessoas que alegam "estar por dentro" e mostrar-lhes como manejar as ferramentas e fazer o esfor~o. Ouviram repetida­mente dessas "pessoas por dentro" que ninguem mais faria o que eles mesmos deveriam fazer, cada urn por si. Por que, entao, al­guem ficaria intrigado se o que atrai a atenc;ao e provoca o inte­resse de tantos hom ens e muJheres e 0 que OS politicos ( e outras celebridades) fazem em privado? Ninguem entre os "grandes e poderosos': nem mesmo a "opiniao publica" ofendida, propos o impeachment de Bill Clinton por ter abolido a previdencia en­quanta "questiio federal" - e, portanto, em termos pnhicos, anu­lado a promessa coletiva e o clever de proteger os individuos con­tra os movimentos do destino, notorios por seu habito desagrada­vel de administrar individualmente seus golpes.

No espetitculo colorido das celebridades da telinha e das man­chetes, os homens e mulheres de Estado nao ocupam uma posi~ao privilegiada. Nao importa muito qual a razao da "notoriedade" que, segundo Boorstin, faz com que uma celebridade seja uma celebridade. Urn Iugar sob os refletores e urn modo de ser por si

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mesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol e ministros de governo compartilham em igual medida. Urn dos requisitos que se aplica a todos e que se espera - "eles tern 0 clever publico" -que confessem "para consumo publico" e ponham suas vidas pri­vadas a disposi<;ao, e que nao reclamem se outros 0 fizerem por eles. Uma vez expostas, essas vidas privadas podem se mostrar pouco esclarecedoras ou decididamente pouco atraentes: nem to­dos os segredos privados con tern li~oes que outras pessoas pode­riam considerar Uteis. Os desapontamentos, por mais numerosos que sejam, dificilmente mudarao os habitos confessionais ou dis­siparao o apetite pelas confissoes; afinal - repito - o modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas individuais e os enfrentam com habilidades e recursos individuais e a Unica G"questao pUblica" remanescente e 0 Unico objeto de "interesse publico': E enquanto isso for assim, espectadores e ou­vintes treinados para confiar em seu proprio julgamento e esfor~o na busca de esclarecimento e orienta<;ao continuadio a olhar para as vidas privadas de outros "como eles" com o mesmo zelo e esperan~a com que poderiam ter olhado para as li~oes, homilias e sermOes de visionirios e pregadores quando acreditavam que as misf:rias privadas s6 poderiam ser aliviadas ou curadas '"reunindo as cabe<;as': "cerrando fileiras" e '"em ordem unida':

A compulsao tronsformoda em vfcio

Procurar exemplos, conselho e orienta<;ao e urn vicio: quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da droga procurada. Como meio de aplacar a sede, todos OS vfcios sao auto-destrutivos; destroem a possibi[idade de se chegar a satisfa~ao.

Exemplos e receitas sao atraentes enquanto nao-testados. Mas dificilmente algum deles cumpre o que promete - virtualmente, cada urn fica aquem da realiza~ao que dizia trazer. Mesmo que algum deles mostrasse funcionar do modo esperado, a satisfa~ao nao duraria muito, pois no mundo dos consumidores as possibili­dades sao infinitas, e 0 volume de objetivos sedutores adisposi~ao

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nunca poderi ser exaurido. As receitas para a boa vida e os uten­s.ilios q-ue a elas servem t&m "data de validade'~ mas muitos cairiio em desuso bern antes des sa data, apequenados, desvalorizados e destituidos de fasdnio pela competi~ao de ofertas "novas e aper­fei~oadas': Na corrida dos consumidores, a linha de chegada sem­pre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; mas a maioria dos corredores na pista tern mllsculos muito flicidos e pulm6es muito pequenos para correr velozmente. E assim, como na Maratona de Londres, pode-se admirar e elogiar os vencedores, mas o que verdadeiramente conta e permanecer na corrida ate o fim. Pelo menos a Maratona de Londres tern urn fim, mas a outra corrida - para alcan~ar a promessa fugidia e sempre distante de uma vida sem problemas -, uma vez iniciada, nunca termina: co­mecei, mas posso niio terminar.

En tao e a continua~ao da corrida, a satisfat6ria consciencia de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vicio - e niio algunl pr81nio a espera dos poUCOS que CfUZaiD a linha de chegada. Nenhum dos premios e suficientemente satisfat6rio para destituir os outros premios de seu poder de atra~ao, e ha tantos outros premios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda nao foram tentados. 0 desejo se torna seu proprio prop6sito, e 0 unico pro­p6sito nao-contestado e inquestionavel. 0 papel de todos OS OU­

trOS prop6sitos, seguidos apenas para serem abandonados na prO­xima rociada e esquecidos na seguinte, e 0 de manter OS corredo­res correndo - como "marcadores de passo': corredores contrata­dos pelos empresarios das corridas para correr poucas rodadas apenas, mas na m:lxima velocidade que puderem, e entia retirar­se tendo puxado os outros corredores para o nivel de quebra de recordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo levado a es­pa~onave a velocidade necessaria, sao ejetados para 0 espa~o e se desintegram. Num mundo em que a gama de fins e ampla demais para o conforto e sempre mais ampla que a dos meios disponiveis e ao volume e efic:lcia dos meios que se deve atender com mais cuidado. Permanecer na corrida e o mais importante dos meios, de fato o meta-meio: o meio de manter viva a confianc;a em outros meios .e a demanda por outros meios.

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0 arquetipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo est:l correndo (tudo numa sociedade de consumo e uma questao de escolha, exceto a compulsao da escolha - a compulsao que evolui ate se tamar urn vicio e assim nao e mais percebida como compulsao) e a atividade de comprar. Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e nao sao s6 as lojas ou supermercados ou lojas de departamentos ou aos "tem­plos do consumo" de George Ritzer que visitamos. Se "comprar" significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear o's hens a mostra, comparando seus custos com o con­teUdo da carteira ou como credito restante nos cart6es de credito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta as prateleiras -entao vamos as compras tanto nas lojas quanta fora delas; vamos as compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos. 0 que quer que fa~amos e qualquer que seja o nome que atribuamos a nossa atividade, e como ir as compras, uma atividade feita nos padroes de ir as compras. 0 c6digo em que nossa "politica de vida" esta escrito deriva da pragmatica do com­prar.

Nao se compra apenas comida, sapatos, autom6veis ou itens de mobiliario. A busca avida e sem fim por novos exemplos aper­fei~oados e por receitas de vida e tambem uma variedade do com­prar, e uma variedade da m3xima importancia, seguramente, a luz das li~oes gemeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competencia pessoal mas que somos (como diz Michael Parenti13) pessoalmente incompetentes, ou nao tao competentes como deveriamos, e poderiamos, ser se nos esforc;:lssemos mais. H:l muitas -:lreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma "compra': "Vamos as compras" pelas habi­lidades necess:lrias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possiveis empregadores de que as temos; pelo tipo de ima­gem que gostariamos de vestir e por rnodos de fazer com que os outros acreditem que somas o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que nao mais queremos; pelos modos de atrair aten~ao e de nos escondermos do escrutinio; pelos meios de extrair mais satisfac;ao do amor e pelos meios de evitar nossa "dependencia" do parceiro amado ou

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amante; pelos modos de obter o amor do amado eo modo menos custoso de acabar com uma uniiio quando o amor desapareceu e a rela~ao deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para urn futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar di­nheiro antes de ganha-lo; pelos recursos para fazer mais rapido 0

que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo entao disponivel; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as conseqii&ncias de come-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pilulas contra a dor de cabe~a. A lista de compras niio tern fim. Pon\m por mais longa que seja a lista, a op~ao de nao ir as compras nao figura nela. E a compet&ncia mais necess<lria em nosso mundo de fins ostensi­vamente infinitos e a de quem vai as compras habil e infatiga­velmente.

0 consumismo de hoje, porem, nao diz mais respeito a satis­fa<;ao das necessidades - nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, nao muito corretamente, ~"artificiais': "inventadas': "derivativas") necessidades de identifica~ao ou a auto-seguran~a quanto a "adequa~ao': Ja foi dito que 0 spiritus movens da atividade consumista nao e mais o conjunto mensurivel de necessidades articuladas, mas o desejo - entidade muito mais volatil e efemera, evasiva e caprichosa, e essencialmente niio-referencial que as "ne­cessidades'; urn motivo autogerado e autopropelido que nao pre­cisa de outra justifica<;-iio ou "causa': A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duniveis reificac;5es, o desejo tern a si mesmo como objeto constante, e por essa razao estit fadado a permanecer insaciavel qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos (fisicos ou psiquicos) que marcam seu passado.

E no entanto, por 6bvias que sejam suas vantagens sobre as necessidades, muito menos maleaveis e mais lentas, o desejo poe mais limites a prontidao dos consumidores para ir as compras do que os fornecedores de hens de consumo consideram palatavel ou ate suportavel. Afinal. toma tempo, esfor~o e consideravel gasto despertat 0 desejo, leva-lo a temperatura requerida e canaliza-lo na dire~ao certa. Os consumidores guiados pelo desejo devem ser "produzidos'; sempre novos e a alto custo. De fato, a propria pro­du~ao de consumidores devora uma fra~ao intoleravelmente gran-

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de dos custos totais de produ~ao- fra~ao que a competi~ao tende a ampliar ainda mais.

Mas (felizmente para os produtores e comercializadores de hens de consume) o consumisrno ern sua forma atual nao estit. como sugere Harvie Ferguson, "fundado sobre a regula¢o ( esti­mula~ao) do desejo, mas sobre a libera~ao de fantasias desejosas': A no~ao de desejo, observa Ferguson,

liga o consume a auto-expressiio, e a noc;Oes de gosto e discrimina­c;iio. 0 individuo expressa a si mesmo atraves de suas posses. Mas, para a sociedade capitalista avanc;ada, comprometida com a expansiio continuada da produc;ao, esse e urn quadro psicol6gico muito limi­tado, que, em Ultima analise, d<i Iugar a uma "economia" psiquica muito diferente. 0 querer substitui o desejo como forc;a motivadora do consumo. 14

A historia do consumismo e a historia da quebra e descarte de sucessivos obstaculos "solidos" que limitam o voo livre da fantasia e reduzern o "principia do prazer" ao tamanho ditado pelo "prin­cipio da realidade". A "necessidade'; considerada pelos economis­tas do secu!o XIX como a propria epitome da "solidez" - inflexivel, permanentemente circunscrita e finita- foi descartada e substitui­da durante algum tempo pelo desejo, que era muito mais "fluido" e expansive! que a necessidade por causa de suas rela<;5es meio ilicitas com sonhos plasticos e voluveis sobre a autenticidade de urn '"eu intima" a espera de expressao. Agora e a vez de descartar o desejo. Ele sobreviveu a sua utilidade: tendo trazido o vicio do consumidor a seu Estado presente, nao pode mais ditar o ritmo. Urn estimulante mais poderoso, e, acima de tudo, mais versatil e necessirio para manter a demanda do consumidor no nivel da oferta. 0 "querer" e o" substitute tao necessitrio; ele completa a liberta¢o do principio do prazer, limpando e dispondo dos ulti­mos residuos dos impedimentos do "principio de realidade": a substantia naturalmente gasosa foi finalmente Iiberada do contei­ner. Citando Ferguson uma vez mais:

En quanta a facilitac;ao do desejo se fundava na comparac;iio, vaidade, inveja e a "necessidade" de auto-aprovac;iio,-nada est<i por baixo do

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imediatismo do querer. A compra e casual, inesperada e espontanea. Ela tern uma qualidade de sonho tanto ao expressar quanta ao reali­zar urn querer, que, como todos OS quereres, e insincere e infantilJS

0 corpo do consumidor

Como afirmei em Lift in Fragments (Polity Press, 1996), a socieda­de p6s-moderna envolve seus membros primariamente em sua condi~ao de consumidores, e nao de produtores. A diferen~a e fundamental.

A vida organizada em torno do papel de produtor tende a ser normativamente regulada. Ha urn minimo de que se precisa a fim de manter-se vivo e ser capaz de fazer o que quer que o papel de produtor possa requerer, mas tambem urn miximo co~ que .se pode sonhar, desejar e perseguir, contando com a aprova~ao social das ambi<;Oes, sem mcdo de ser desprezado, rejeitado e posto na linha. 0 que passar acima desse limite e luxo, e desejar 0 luxo e pecado. 0 principal cuidado, portanto, e com a conformidade: man­ter-se seguramente entre a linha inferior e o hm1te supenor -manter-se no mesmo nivel (tao alto ou baixo, conforme o caso) do vizinho.

A vida organizada em torno do consumo, por outro lado, deve se bastar sem normas: ela e orientada pela sedu~ao, por desejos sempre crescentes e quereres volclteis - niio mais por regula~ao normativa. Nenhum vizinho .em particular oferece urn ponto de referencia para uma vida de sucesso; uma sociedade de consumi­dores se baseia na compara<;iio universal- eo ceu eo Unico limite. A ideia de "luxo" niio faz muito sentido, pois a ideia e fazer dos luxos de hoje as necessidades de amanha, e reduzir a distancia entre o "hoje" e o "amanha" ao minima - tirar a espera da vonta­de. Como niio h:i normas para transformar certos desejos em ne­cessidades e para deslegitimar outros desejos como ''falsas neces­sidades'; nao ha teste para que se possa medir o padrao de "con.­formidade': 0 principal cuidado diz respeito, entao, a adequaqiio -a estar "sempre pronto"; a ter a capacidade de aproveitar a opor­tunidade quando ela se apresentar; a desenvolver novos deseJOS

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feitos sob medida para as novas, nunca vistas e inesperadas sedu­~Oes; e a nao permitir que as necessidades estabelecidas tornem as novas sensac;Oes dispensclveis ou restrinjam nossa capacidade de absorve-las e experimentcl-las.

Se a sociedade dos produtores coloca a saude como o padrao que seus membros devem atingir, a sociedade dos consumidores acena aos seus com o ideal da aptidiio (fitness). Os dois termos -saUde e aptidao - sao freqiientemente tornados como coextensi­vos e usados como sinOnimos; afinal, ambos se referem a cuidados com o corpo, ao Estado que se quer que o corpo alcance e ao regime que se deve seguir para realizar essa vontade. 1l:atar esses termos como sinOnimos e, pon§m, urn erro - e nao meramente pelos fatos conhecidos de que nem todos os regimes de aptidao "sao bons para a saude" e de que 0 que ajuda a manter a saude niio necessariamente leva a aptidao. Sallde e aptidao pertencem a dois discursos muito diferentes e apelam a preocupa~oes muito diferentes.

A saude, como todos os conceitos normativos da sociedade dos produtores, demarca e protege os limites entre "norma" e "anormalidade': "Saude" e o estado proprio e desejavel do corpo e do espirito humanos - urn Estado que (pelo menos em prind­pio) pode ser mais ou menos exatamente descrito e tambem pre­cisamente medido. Refere-se a uma condi~ao corporal e psiquica que permite a satisfa~ao das demandas do papel socialmente de­signado e atribuido - e essas demandas tendem a ser constantes e firmes. "Ser saudclvel" significa na maioria dos casas "ser empre­gavel": ser capaz de urn hom desempenho na fabrica, de "carregar o fardo" com que o trabalho pode rotineiramente onerar a resis­tencia fisica e psiquica do empregado.

0 estado de ""aptidiio': ao contrario, e tudo menos "sOlido"; nao pode, por sua natureza, ser fixado e circunscrito com qualquer precisao. Ainda que muitas vezes tornado como resposta a pergun­ta "como voce estci se sentindo?" (se estou "apto': provavelmente responderei "6timo"), seu verdadeiro teste fica para sempre no futuro: "estar apto" significa ter urn corpo flexivel, absorvente e ajustavel, pronto para viver sensa~oes ainda nao testadas e impos­siveis de descrever de antemao. Se a saUde e uma condi<;iio "nem

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mais nem menos': a aptidao est<l sempre aberta do lado do G'mais": nao se refere a qualquer padrao particular de capacidade corporal, mas a seu (preferivelmente ilimitado) potencial de expansao. "Ap­tidao" significa estar pronto a enfrentar 0 niio-usual, 0 nao-rotinei­ro, o extraordimlrio - e acima de tudo o novo e o surpreendente. Quase se poderia dizer que, se a saude diz respeito a "seguir as normas': a aptidao diz respeito a quebrar todas as normas e supe­rar todos os padr6es.

Chegar a urn padrao interpessoal seria de qualquer forma de­mais, pois uma compara<;ao objetiva de graus de aptidao indivi­duais nao e possivel. A aptidao, por contraste com a saude, diz respeito a uma experihzcia suf?jetiva (no sentido de experiencia ~'vivida': "sentida" - e nao a urn Estado ou evento que possa ser observado de fora, e verbalizado e comunicado ). Como todos os estados subjetivos, a experiencia de "estar apto" e notoriamente dificil de articular de modo adequado a comunica<;ao interpessoal, e menos ainda a compara<;ao interpessoal. A satisfa<;ao e o prazer sao sensa<;Oes que niio podem ser postas em termos abstratos: precisam ser "subjetivamente experimentadas" - vividas. Nunca saberemos com certeza se nossas sensa~Oes sao tao profundas e excitantes, tao prazerosas em suma, como as do prOximo. A busca da "aptidao" e como garimpar em busca de uma pedra preciosa que nao podemos descrever ate encontrar; nao temos, porem. meios de decidir que encontramos a pedra, mas temos todas as raz5es para suspeitar de que nao a encontramos. A vida organiza­da em torno da busca da aptidao promete uma serie de escaramli­~as vitoriosas, mas nunca o triunfo definitivo.

Ao contrario do cuidado com a saude, a busca da aptidao nao tern, portanto, urn fim natural. Os objetivos podem ser estabeleci­dos apenas para a presente etapa do esfor<;o sem fim - e a satisfa­<;.ao de alcan<;ar urn objetivo e apenas momentiinea. Na longa bus­ca pela aptidao nao ha tempo para descanso, e toda celebra~ao de sucessos moment:ineos nao passa de urn intervalo antes de outra rodada de trabalho duro. Uma coisa que os que buscam a "apti­dao" sabem com certeza e que ainda nao estao suficientemente aptos, e que devem continuar tentando. A busca da aptidao e urn

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estado de auto-exame minucioso, auto-recrimina~ao e auto-depre­cia~ao permanentes, e assim tambem de ansiedade continua.

A saude, circunscrita por seus padroes ( quantificavel e men­sur:ivel, como a temperatura do corpo ou a pressao sanguinea) e armada de uma clara distin~ao entre "norma" e "anormalidade': deveria estar, a principio, livre des sa ansiedade insaciavel. Tambem a principio, deveria ser claro o que deve ser feito a fim de alcan~ar urn estado saudavel e protege-lo, em que condi<;oes podemos de­clarar que uma pessoa goza de "boa saude': ou em que ponto do tratamento podemos declarar que 0 estado de saude foi restaura­do e nada mais precisa ser feito. A prindpio sim ...

Na verdade, porem, o status de todas as normas, inclusive a norma da saude, foi severamente abalado e se tornou fragil, numa sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades. 0 que ontem era considerado normal e, portanto, satisfat6rio, pode hoje ser considerado preocupante, ou mesmo patol6gico, requerendo urn remedio. Primeiro, estados do corpo sempre renovados tornam-se razoes legitimas para interven~ao medica - e as terapias disponi­veis tambem nao ficarn est:lticas. Segundo, a ideia de ''doen~a·: outrora claramente circunscrita, torna-se cada vez mais confusa e nebulosa. Em vez de ser percebida como urn evento excepcional com urn come~o e urn fim, tende a ser vista como permanente companhia da saude, seu "outro !ado" e amea<;a sempre presente: clama por vigilancia incessante e precisa ser cornbatida e repelida dia e noite, sete dias por semana. 0 cuidado com a sallde torna-se uma guerra permanente contra a doen<;a. E, finalmente, o signifi­cado de urn "regime saudavel de vida" nao fica parado. Os concei­tos de "dieta saudavel" mudam em menos tempo do que duram as dietas recomendadas simultilnea ou sucessivamente. 0 alimen­to que se pensava benefico para a sallde ou in6cuo e denunciado por seus efeitos prejudiciais a Iongo prazo antes que sua influencia benigna tenha sido devidamente saboreada. Terapias e regimes preventives voltados para algum tipo de enfermidade aparecem como patogenicos em outros aspectos; a interven~ao medica e cada vez mais requerida pelas doen~as "iatrogenicas" - enfermi­dades causadas por terapias passadas. Quase qualquer clira apre­s·enta grandes riscos, e mais curas sao necess3.rias para enfrentar as conseqiiencias de riscos assumidos no passado.

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Por tudo isso, o cuidado com a sallde, contrariamente a sua natureza, torna-se estranhamente semelhante a busca da aptidao: continuo, fadado a insatisfa~iio permanente, incerto quanto a ade­qua~iio de sua dire~iio atual e gerando muita ansiedade.

Enquanto o cuidado com a sallde se tom-a cada vez mais seme­lhante a busca da aptidao, esta tenta imitar, quase sempre em vao, 0

que era a base da autoconfian~a em rela~iio aos cuidados com a saude: a mensurabilidade do padriio de saude, e conseqiientemente tambem do progresso terapeutico. Essa ambi~iio explica, por exem­plo, a notivel popularidade do controle do peso entre os muitos "regimes de aptidiio" disponiveis: os centimetres e gramas que de­saparecem sao dois dos poucos ganhos visiveis que pod em realmen­te ser medidos com algum grau de precisiio - como a temperatura do corpo no diagn6stico da saude. A semelhan~a e uma ilusiio: seria precise imaginar urn tenn&metro sem base em sua escala ou uma temperatura que melhoraria quanta mais a marca baixasse.

Na esteira dos ajustes recentes ao modelo da '"aptidao': o cui­dado com a saude se expande a tal ponto que Ivan Illich recente­mente sugeriu que "a propria busca da saude tornou-se 0 fator patog@nico mais importante': 0 diagn6stico nao tern mais como objeto o individuo: seu verdadeiro objeto, em cada vez mais casos, e a distribui~iio das probabilidades, uma estimativa do que pode derivar da condi~iio em que o paciente diagnosticado se encontra.

A saude e cada vez mais identificada com a otimiza~iio dos riscos. Isso e. em todo caso, 0 que OS habitantes da sociedade de consume treinados a t.rabalhar por sua aptidiio fisica esperam e desejam que seUS medicos fac;am - e 0 que OS irrita e OS torna hosi:is aos medicos que nao cumprem com esse papel. Num caso que gerou jurisprudencia, urn medico de Tiibingen foi condenado por dizer a gravida que a probabilidade de a crian~a nascer com alguma ma-forma~iio niio era "grande demais': em vez de citar a probabilidade exata.16

Comprar como ritual de exorcismo

Pode-se conjecturar que os temores que assolam o "dono do cor­po" obcecado com niveis inalcan~aveis de aptidiio e com uma

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sallde cada vez menos definida e cada vez mais a imagem da aptidiio provocariam cautela e circunspecc;iio, moderac;iio e auste­ridade - atitudes que destoam da 16gica da sociedade de consu­midores, para a qual podem ser desastrosas. Mas essa conclusiio seria errOnea. Exercitar os demOnios interiores requer uma atitude positiva e muita ac;ao - e nao a retirada e o silencio. Como quase toda ac;iio numa sociedade de consumidores, esta custa caro; re­quer diversos mecanismos e ferramentas especiais que s6 o mer­cado de consume pode fornecer. A atitude "meu corpo e uma fortaleza sitiada" nao leva ao ascetismo, a abstinencia ou a renlln­cia; significa consumir mais - porem consumir alimentos espe­ciais, "saudclveis': comprados no comercio. Antes de ser retirada do mercado por seus efeitos prejudiciais, a droga mais popular entre as pessoas preocupadas com controle de peso era o Xenilin, anunciada pelo slogan "coma mais e pese menos': Segundo os c:ilculos de Barry Glassner, em urn ano - 1987 - os norte-ameri­canos preocupados com o corpo gastaram 74 bilhOes de d6lares em alimentos dieteticos, cinco bilhoes em academias, 2,7 bilhoes em vitaminas e 738 milh5es em equipamentos de exercicios.I7

H<i, em suma, raz5es mais que suficientes para "ir as compras'~ Qualquer explica~ao da obsessiio de comprar que se reduza a uma causa llnica est3. arriscada a ser urn erro. As interpreta~Oes comuns do comprar compulsive como manifesta~iio da revolu~iio p6s-mo­derna dos valores, a tendencia a representar o vicio das compras como manifesta~iio aberta de instintos materialistas e hedonistas udormecidos, ou como produto de uma "conspira~ao comercial" que e uma incita~iio artificial (e cheia de arte) a busca do prazer como prop6sito maximo da vida, capturam na melhor das hip6te­•cs apenas parte da verdade. Outra parte, e necess:\rio comple­mcnto de todas essas explica~oes, e que a compulsiio-transforma­da-e.m-vicio de comprar e uma luta morro acima contra a incerteza o.guda e enervante e contra urn sentimento de inseguranc;a inc&­modo e estupidificante.

Como observou T.H. Marshall em outro contexte, quando muitas pessoas correm simultaneamente na mesma dire~ao, e pre­ciiO perguntar duas coisas: atrd.s de que e do que estao correndo? 01 consumidores podem estar correndo atr3.s de sensa~Oes - t<l-

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teis, visuais ou olfativas - agrad:lveis, ou atr:ls de delicias do pa­ladar prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras dos supermercados, ou atrcls das sensa<;Oes mais pro­fundas e reconfortantes prometidas por urn conselbeiro especiali­zado. Mas estao tambem tentando escapar da agonia chaniada inseguran~a. Querem estar, pelo menos uma vez, livres do medo do erro, da negligencia ou da incompetencia. Querem estar, pelo menos uma vez, seguros, confiantes; e a admid.vel virtude dos objetos que encontram quando vao as compras e que eles trazem consigo ( ou parecem por algum tempo) a promessa de seguran9a.

Ainda que possa ser algo mais, o comprar compulsivo e tam­hem urn ritual feito a luz do dia para exorcizar as horrendas apa­ric;Oes da incerteza e da inseguran<;a que assombram as noites. E, de fato, urn ritual didrio: os exorcismos precisam ser repetidos diariamente, porque quase nada e posto nas prateleiras dos super­mercados sem urn carimbo como "melhor consumir antes de': e porque 0 tipo de certeza a venda nas lojas pouco adianta para cortar as raizes da inseguranc;a, que foram o que levou o compra­dor a visitar as lojas. 0 que importa, porem, e permite que o jogo continue- nao obstante a falta de perspectivas -, e a maravilhosa qualidade dos exorcismos: eles sao eficazes e satisfat6rios nao tanto porque afugentam os fantasm as ( o que raramente fazem), mas pelo proprio fato de serem realizados. Enquanto a arte de exorcizar estiver viva, os fantasm as nao pod em reivindicar a inven­cibilidade. E, na sociedade dos consumidores individualizados, tudo 0 que precisa ser feito precisa ser feito a !a "fa9a-voce-mes­mo': 0 que mais, alem das compras, preenche tao hem os pre-re­quisites desse tipo de exorcismo?

Livre para comprar- ou assim parece

As pessoas de nosso tempo, observou Albert Camus, sofrem por nao serem capazes de possuir o mundo de maneira suficientemen­te completa:

Exceto por vividos mementos de realiza<;ao, toda a realidade para eles e incompleta. Suas a<;Oes lhes escapam na forma de outras a<;Oes,

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retomam sob apar&ncias inesperadas para julgi-los e desaparecem, como a :igua que T'antalo desejava heber, por algum orificio ainda nao descoberto.

lsso e 0 que cada urn de n6s sabe por urn olhar introspectivo: isso e 0 que nossas pr6prias biografias, quando examinadas em retraspecta, nos ensinam sabre a munda em que vivemos. Mas nao quando olhamos ao redor: quanto aos outros que conhece­mos, e especialmente pessoas de que sabemos - "vistas a distan­cia, (sua] existencia parece ter uma coerencia e uma unidade que na verdade nao pode ter, mas que parece evidente ao espectador': Is so e uma ilusao de 6tica. A distancia ( quer dizer, a pobreza de nosso conhecimento) borra os detalhes e apaga tudo o que nao se encaixa na Gestall Ilusaa au nao, tendemas a ver as vidas dos autros como abras de arte. E tendo-as vista assim, lutamos para fazer o mesmo: "To do o munda tenta fazer de sua vida uma obra de arte?'18

Essa obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradi9o da vida chama-se "identidade': Quando falamos de identidade hi, no fundo de nossas mentes, uma tenue imagem de harmonia, 16gica, consistencia: todas as caisas que parecem- para nosso desespero eterno - faltar tanto e tao abominavelmente ao fluxo de nossa experiencia. A busca da identidade e a busca inces­sante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrivel fluidez logo abaixo do fino envolt6rio da for­ma; tentamos desviar OS olhos de vistas que eles nao podem pe­netrar ou absorver. Mas as identidades, que nao tornam o fluxo mais lento e muito menos o detE:m, sao mais parecidas com crostas que vez par outra endurecem sabre a lava vuldlnica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se. Entao ha necessidade de autra tentativa, e mais outra- e isso s6 e posslvel se nos aferrarmos desesperadarnente a coisas s6lidas e tangiveis e, portanto, que prometam ser duradouras, fa-9am ou nao parte de urn con junto, e deem ou uao razoes para que esperemos que permane9am juntas depois que as juntamos. Nas palavras de Deleuze e Guattari, "o desejo constantemente une o

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fluxo continuo e objetos parciais que sao por natureza fragmenta-. fr d " 19 nos e agmenta os . .

As identidades parecem fixas e s6lidas apenas quando VIstas de relance, de fora. A eventual solidez que podem ter quando contempladas de dentro da propria experiencia biografica parece fragil, vulneravel e constantemente dilacerada por for9as 1ue ex­poem sua fluidez e por contracorrentes que amea9am faze-la em peda9os e desmanchar qualquer forma que possa ter adquirido.

A identidade experimentada, vivida, so pode se manter umda com o adesivo da fantasia, talvez o sonhar acordado. Mas, dada a teimosa evidencia da experiencia biogr:\fica, qualquer adesivo mais forte - uma substiincia com maior poder de fixa9ao que a fantasia facil de dissolver e limpar- pareceria uma p;rspectiva tao repugnante quanta a ausencia do sonhar acordado. E precisamen­te por isso que a moda, como observou Efrat Tseelon, e tao ade­quada: exatamente a coisa certa, nem mais fraca nero ma1s forte que as fantasias. A moda oferece ~'meios de explurar ~: li~it~s"sem compromisso com a a<;:io, e ... sem sofrer as consequenc1as . Nos cantos de facias': lembra Tseelon, "as roupas de sonho sao a chave da verdadeira identidade da princesa, como a fada-madrinha sabe

" · c· d 1 h ·1 "20 perteitarnente ao vestlr m ere a para o a1 e.

Em vista da volatilidade e instabilidade intrinsecas de todas ou quase todas as identidades, e a capacidade de "ir as compras" no supermercado das identidades, o grau de liberdade genuina ou supostamente genuina de selecionar a propria identidade e de mante-la enquanto desejado, que se torna o verdadeiro caminho para a realiza9ao das fantasias de identidade. Com essa capacida­de, somas livres para fazer e desfazer identidades a vontade. Ou

assim parece. Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependencia de

consumidor - a dependencia universal das compras - e a condi-9ao sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de "ter identidade': Num arroubo de sinceridade ( ao mesmo tempo em que acena para os elientes so­fisticados que sabem como e o jogo ), urn comercial de TV mostra uma multidao de mulheres com uma variedade de penteados e cores de cabelos, enquanto o narrador comenta: "Todas lmicas;

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todas individuais; todas escolhem X" (X sendo a marca anunciada de condicionador). 0 utensilio produzido em massa e a ferramen­ta da variedade individual. A identidade - "{mica" e "individual" - so pode ser gravada na substancia que todo o mundo compra e que so pode ser encontrada quando se compra. Ganha-se a inde­pendencia rendendo-se. Quando no fil.me Elizabeth a rainha da lnglaterra decide "mudar sua personalidade': tornar-se a "filha de seu pai" e forc;ar os cortes:ios a obedecerem a suas ordens, ela o faz mudando o penteado, cobrindo o rosto com grossa camada de pinturas artesanais e usando uma tiara tambem feita por artesaos.

A medida em que essa liberdade fun dada na escolha de con­sumidor, especialmente a liberdade de auto-identifica0o pelo uso de objetos produzidos e comercializados em mas sa, e genuina ou putativa e uma questao aberta. Essa liberdade nao funciona sem dispositivos e substiincias disponiveis no mercado. Dado isso, quao ampJa e a gama de fantasias e experimenta9a0 dos feJizes compradores?

Sua dependencia nao se limita ao ato da compra. Lembre-se, por exemplo, o formidavel poder que os meios de comunica9ao de massa exercem sobre a imaginac;ao popular, coletiva e individual. lmagens poderosas, "mais reais que a realidade'; em telas ubiquas estabelecem os padroes da realidade e de sua avaliac;ao, e tambem a necessidade de tornar mais palatavel a realidade "vivida': A vida uesejada ten de a sera vida "vista na TV". A vida na telinba diminui e tira 0 charme da vida vivida: e a vida vivida que parece irreal, e continuara a parecer irreal enquanto nao for remodelada na forma de imagens que possam aparecer na tela. (Para completar a reali­dade de nossa propria vida, precisamos passa-la para videotape -essa coisa confortavelmente apagavel, sempre pronta para a subs­titui9iio das velhas gravac;oes pelas novas). Como diz Christopher Lasch: "A vida moderna e tao completamente mediada por ima­sens eletronicas que nao podemos deixar de responder aos outros como se suas ar;Oes - e as nossas - estivessern sendo gravadas e transmitidas simultaneamente para uma audiencia escondid~ ou suardadas para serem assistidas mais tarde:,z]

Em"livro posterior,22 Lasch lembra a seus leitores que "o velho aentido da identidade se refer'e tanto a pessoas como a coisas.

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Ambas perderam sua solidez na sociedade moderna, sua defini~ao e continuidade': A implica~ao e que, nesse universal "desmanchar dos s6lidos': a iniciativa est:l com as coisas; e, como as coisas sao os ornamentos simb6licos das identidades e as ferramentas dos esfor~os de identifica~ao, as pessoas logo as seguem. Referindo-se ao famoso estudo de Emma Rothschild sabre a industria automo­

bilistica, Lasch sugere que

as inova~Oes de Alfred Sloan no marketing - a mudan<;a anual de modelos, o constante aperfei<;oamento do produto, o esfon;:o de as­soci:l-lo ao status social, a deliberada estimula<;ao de urn apetite ili­mitado pela mudanc;a- constitulram uma contraparti?a necessaria a inova<;:io de Henry Ford na prodm;ao ... Ambas tend1arn a desenco­rajar a iniciativa e o pensamento inde~en.de~te e a fazer com que os individuos desconfiassem de seu propno Julgamento, mesmo em quest6es de gosto. Parecia que suas pr6prias preferencias nao-tutela­das poderiam se atrasar em rela~ao a rnoda e tambem precisavam ser periodicamente aperfei~oadas.

Alfred Sloan era urn pioneiro do que mais tarde se tornaria uma tendencia universal. A produ<;fio de mercadorias como urn todo substitui hoje "o mundo dos objetos duraveis" pelos "produ­tos pereciveis projetados para a obsolescgncia imediata': As con­seqiiencias dessa substitui~ao foram sagazmente descntas por Je­remy Seabrook:

Q capitalismo nii.O entregou OS hens as pessoas; as pessoas foram crescentemente entregues aos hens; o que quer dizer que o prOprio cadter e sensibilidade das pessoas foi reelaborado, reformulado, de tal forma que elas se agjupam apr~ximada~ente ... c~m as merc~d~­rias, experiencias e sensa~tOes ... cuja venda eo que da forma e s1gm-

d "d 23 fica o a suas Vl as.

Num mundo em que coisas deliberadamente inst!tveis sao a materia-prima das identidades, que sao necessarian:ente inst<1veis; e precise estar constantemente em alerta; mas .ac1ma de tu~o e preciso manter a propria flexibilidade e a veloc1dade de rea1uste em rela~ao aos padr6es cambiantes do mundo "lit fora': Como observou recentemente Thomas Mathiesen, a poderosa metifora do Pan6ptico de Bentham e de Foucault nao da conta dos modos

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em que o poder opera. Mudamo-nos agora, sugere Mathiesen, de uma sociedade do estilo Pan6ptico para uma sociedade do estilo si7ufptico: as mesas foram viradas e agora silo muitos que observam

24 0 ' 1 poucos. . s espetacu os tomam o Iugar da supervisao sem perder o poder d1~aplinador do antecessor. A obedigncia aos padr6es ( uma maleavel e es?"anhamente ajustavel obedigncia a padr6es emmentemente flexJVeis, acrescento) ten de a ser alcan~ada hoje em d1a pela tenta~ao e pela sedu~ao e nao mais pela coer~ao - e aparece sob o disfarce do livre-arbitrio, em vez de revelar-se como for~a externa.

Essas verdades devem ser reafinnadas mais e mais, pois o cadaver do "conceito romantico do eu'; adivinhando uma profun­da essencia Intima que se esconde por trcls das aparencias extemas e superficiais, hoje em dia tende a ser artificialmente reanimado pelos esfor~os con juntos do que Paul Atkinson e David Silverman apropriadamente denominaram de "'sociedade da entrevista" (""apoiada, em todos os seus aspectos, em entrevistas face a face para revelar o eu pessoal e privado do sujeito") e de grande parte cia pesquisa social de hoje (que visa a "chegar a verdade subjetiva do eu" provocando e entao dissecando as narrativas pessoais na eeperan~a de nelas encontrar uma revela~ao da verdade intima). At kmson e Silverman contestam essa pritica:

Nas ciencias sociais nao revelamos eus coletando narrativas mas criamos o eu pela narrativa do trabalho biografico- ... '

0 d~s:jo de revelac;ao e revelac;6es do desejo dao a aparencia de nutenticidade mesmo quando a prOpria possibilidade de autenticida­de est<l em questao.25

A possibilidade em questiio e, de fato, bastante questionavel. Numcrosos estudos mostram que as narrativas pessoais sao mera­nJ~ntc ensaios _de ret6rica publica montados pelos meios publicos d• comumca~ao para "representar verdades subjetivas': Mas a lllo·autenticJdade do eu supostamente autentico esta inteiramen-1• tllll'ar~ada pelos espetaculos de sinceridade - os rituais publi-11111 d~ perguntas pessoais e confiss6es publicas de que os progra­UI de entrevistas sao o exemplo mais preemi.nente, ainda que nao

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0 Unico. Ostensivamente, OS espetclculos existem para dar vazao a agita«;:io dos ''eus intimas" que lutam· para se expor; de fato, sao os velculos da versao da sociedade do consume de uma "educa<;iio sentimental": expoem e carimbam com a aceita~ao publica o an­seio por Estados emotivos e suas expressOes com os quais serao tecidas as "identidades inteiramente pessoais':

Como disse recentemente Harvie Ferguson, com sua maneira inimit<lvel,

no mundo p6s-moderno todas as distin~6es se tornam fluidas, os limites se dissolvem, e tudo pode muito bern parecer seu contririo; a ironia se torna a sensa~iio perpetua de que as coisas poderiam ser urn tanto diferentes, ainda que nunca fundamental ou radical~ente diferentes.

Em tal mundo, o cuidado com a identidade tende a adquirir urn brilho inteiramente novo:

A "idade da ironia" foi substitulda pela "idade do glamour': em que a apar&ncia e consagrada como lmica realidade ...

A modernidade, assirn, muda de urn periodo do eu "autentico" para urn periodo do eu "ir6nico" e para uma cultura contemporaoea do que poderia ser chamado de eu "associative" - urn "afrouxamen­to" continuo dos la~os entre a alma "interior" e a forma "exterior" da rela~ao social ... As identidades silo assim oscila<;6es continuas ... 26

Isso e o que a condi~ao presente parece quando pasta sob o microscopic dos analistas culturais. 0 retrato da inautenticidade publicamente produzida pode ser verdadeiro; os argumentos que ap6iam sua verdade sao irresistiveis. Mas niio e a verdade desse retrato que d"etermina o impacto dos "espetaculos de sinceridade': 0 que importa e como se sente a necessidade planejada da cons­tru~ao e reconstru~ao da identidade, como ela e percebida "de dentro': como ela e "vivida'~ Seja genuine eu putative aes elhes do analista, o status frouxo, "associative'; da identidade, a oportu­nidade de "ir as compras'; de escolher e descartar 0 "verdadeiro eu'~ de "estar em mevimente'~ veie a significar liberdade na socie­dade do consume atual. A escolha do consumidor e hoje urn valor

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em si mesma; a a<;ae de· escelher e mais importante que a coisa escolhida, e as situa<;Oes sao elogiadas ou censuradas, aproveitadas ou ressentidas, dependendo da gama de escolhas que exibem.

A vida de quem escolhe ser:\ sempre uma ben~ao mista, po­rem, mesmo se ( ou talvez porque) a gam a de escolhas for ampla e o volume das experiencias possiveis parecer infinito. Essa vida csta assolada pelos riscos: a incerteza esti destinada a ser para sempre a desagradavel mosca na sopa da livre escolha. Alem disso (e a adi~ao e importante) o equilibria entre a alegria e a tristeza do viciado depende de fatores outros que a mera gama de escolhas a disposi~ao. Nem todas elas sao realistas; e a propor~ao de esco­lhas realistas nao e fun~ao do numero de itens a disposi~ao, mas do volume de recursos a disposi~ao de quem escolhe.

Quando os recursos sao abundantes pode-se sempre esperar, eerto ou errado, estar ')or cima" ou "a frente" das coisas, ser capaz d" alcan~ar os alvos que se movem com rapidez; pode-se mesmo r111'ur ~nc~inado a subestimar os riscos e a insegurall(;a e super que u [>I'Ofusao de escolhas compensa de sabra o desconforto de viver 110 et-~curo, de nunca estar seguro sobre quando e ende termina a luru, se e que termina . .E a propria cortida que entusiasma, e, par muio cansativa qu<; seja, a pista e urn Iugar mais agradavel que a lin hu de chegada. E a essa situa~ao que se a plica o velho proverbio •~~~;undo o qual "viajar com esperan~a e melhor do que chegar': A t·h~~~;uda, o fim definitive de toda escolha, parece muito mais te­tllnou c consideravelmente mais assustadora do que a perspectiva tl• I[IIC us escolhas de amanha anulem as de hoje. S6 0 desejar e tl'w~jrlvcl - quase nunca sua satisfa~ao.

IC•twrur-se-ia que o entusiasme pela corrida diminuisse com a l'urva doH nHlsculos - que o amer pelo risco e a aventura se apa­••riD t'lllll a diminui~ao dos recursos e com a chance de escolher lUna np~·tlo verdadeiramente desejavel cada vez mais nebulosa. Ki11 ~Xpt•t•taliva esta fadada a ser refutada, porem, porque os cor­l'ltduro• do rnuitos e diferentes, mas a pista e a mesma para todos. Uutnu diz j.,remy Seabrook,

Ul puU1·~~~ nt\o vi vern numa cultura separada da dos ricos. Eles devem WIYer IIU lllCIIIIlO mundo que foi planejado em proveito daqueles que

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tern dinheiro. E sua pobreza e agravada pelo crescimento econ&mico, da mesma forma que e intensificada pela recessiio e pelo niio-cresci­mento.27

Numa sociedade sinoptica de viciados em comprar/assistir, os pobres nao podem desviar OS oJhos; nao hit mais para onde oJhar. Quanta maior a liberdade na tela e quanta mais sedutoras as ten­ta~oes que emanam das vitrines, e mais profunda o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistivel se torna o desejo de experimentar, ainda que por urn momenta fugaz, 0 extase da es­colha. Quanta mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportitvel para todos.

Separados, compramos

Paradoxalmente, ainda que nada inesperadamente, o tipo de liber­dade que a sociedade dos viciados em compras elevou ao posto maximo de valor - valor traduzido acima de tudo como a pleni­tude da escolha do consumidor e como a capacidade de tratar qualquer decisao na vida como uma escolha de consumidor- tern urn efeito muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles a que ostemivamente se destina. 0 estilo de vida da elite com recursos, dos senhores da- arte de escolher, sofre uma mudan~a fatal no curso de seu processamento eletronico. Ela es­corre pela hierarquia social, filtrada pelos canais do sinoptico ele­trOnico e por reduzidos volumes de recursos, como a caricatura de urn mutante monstruoso. 0 produto final desse "escorrimento" esta despido da maioria dos prazeres que o original prometia -em vez disso expondo seu potencial destrutivo.

A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras adiadas significa conceber o mundo como urn deposito abarrotado de mercadorias. Dada a profusao de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria tende a se exaurir rapidamente. Felizmente para os consumidores com re­cursos, estes os garantem contra conseqiiencias desagrad<lveis como a mercantilizac;ao. Podem descartar as posses que nao mais

lndividualidade 105

querem com a mesma facilidade com que podem adquirir as que desejam. Estao protegidos contra o ritpido envelhecimento e con­tra a obsolescencia planejada dos desejos e sua satisfa~ao transi­t6ria.

Ter recursos implica a liberdade de escolher, mas tambem - e talvez mais importante- a liberdade em rela~ao as conseqiiencias da escolha errada, e portanto a liberdade dos atributos menos atraentes da vida de escolhas. Por exemplo, "o sexo de plitstico': "amores mllltiplos" e "rela<;Oes puras': os aspectos da mercantili­za~ao das parcerias humanas, foram retratados por Anthony Gid­dens como veiculos de emancipa~ao e garantia de uma nova feli­cidade que vern em sua esteira - a nova escala sem precedentes da autonomia individual e da liberdade de esco!ha. Se isso e ver­dade, e nada mais que a verdade, para a elite move! dos ricos e poderosos e uma questao aberta. Mesmo no caso deles, s6 e pas­sive! aderir de cora~ao a afirmativa de Giddens pensando no mais forte dos membros da parceria, que necessariamente inclui o mais fraco, nao tao hem dotado dos recursos necessaries para seguir livremente seus desejos (para nao mencionar as crian<_;as - essas involunt:irias mas dunlveis conseqi.iencias das parcerias, que rara­mente veem o rompimento de urn cilsamento como manifestac;ao de sua propria liberdade ). Mudar de identidade pode ser urn a questao privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vinculos e o cancelamento de certas obriga~oes; os' que estao do !ado que sofre quase nunca sao consultados, e menos ainda tern chance de exercitar sua liberdade de escolba.

E, no entanto, mesmo levando em considerac;ao tais "efeitos secunditrios" de "rela~oes puras': pode-se ainda dizer que no caso dos rices e poderosos os arranjos costumeiros de div6rcio e as pensoes para as crian~as ajudam a aliviar a inseguran~a intrinseca as parcerias ate-que-acabem, e que qualquer que seja a inseguran­~a remanescente ela nao e urn pre~o excessive a pagar pela "redu­~llo dos prejuizos" e por evitar a necessidade do arrependimento eterno pelos pecados porventura cometidos. Mas nao hit duvida de que, "escorrida" para os pobres e destituidos, a parceria nesse novo estilo com a fragilidade do contrato matrimonial e a "purifi­co~ao" da uniao de todas as fun~oes exceto ada "satisfa~ao mutua"

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espalha muita tristeza, agonia e sofrimento e urn volume crescente de vidas partidas, sern arnor e sem perspectivas.

Em suma: a mobilidade e a flexibilidade da identifica~ao que caracterizam a vida do "ir as compras" nao sao tanto veiculos de emancipar;iio quanto instrurnentos de redistribuir;iio das liberdades. Sao por isso ben~aos mistas -tanto tentadoras e desejadas quanto repulsivas e temidas, e despertam os sentimentos mais contradit6-rios. sao valores altarnente ambivalentes que tendem a gerar rea­~oes incoerentes e quase neur6ticas. Como diz Yves Michaud, fi-16sofo da Sorbonne, "'como excess a de oportunidades, ere seem as amea~as de desestrutura~o, fragmenta~ao e desarticula~ao':28 A tarefa da auto-identifica~ao tern efeitos colaterais altamente des­trutivos; torna-se foco de conflitos e dispara energias mutuamente incompativeis. Como a tarefa compartilhada por todos tern que ser realizada por cada urn sob condi~oes inteiramente diferentes, di­vide as situa<_;Oes humanas e induz a competi<;iio mais rispida, em vez de unificar uma condi<;iio humana inclinada a gerar coopera­~ao e solidariedade.

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3 • TEMPO/ESPA<;O

George Hazeldon, arquiteto ingles estabelecido na Africa do Sui, tern urn sonho: uma cidade diferente das cidades comuns, cheia de estrangeiros sinistros que se esgueiram de esquinas escuras, surgem de ruas esqualidas e brotam de distritos notoriamente perigosos. A cidade do sonho de Hazeldon e como uma versao atualizada, high tech, da aldeia medieval que abriga detras de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadi9as uma aldeia prote­gida dos riscos c pcrigos do mundo. Uma cidadc fcita sob mcdida para individuos que querem administrar e monitorar seu estar juntos. Alguma coisa, como ele mesmo disse, parecida como Mon­te Saint-Michel, simultaneamente um claustra e uma fortaleza ina­cessivel e hem guardada.

Quem olha os projetos de Hazeldon concorda que a parte do "'claustro" foi imaginada pelo desenhista a semelhan9a da Theieme de Rabelais, a cidade da alegria e do divertimento compuls6rios, onde a felicidade e o Unico mandamento, e nao se parece nada com o esconderijo dos ascetas voltados para os ceus, que se auto­imolam, sao piedosos, oram e jejuam. A parte da "fortaleza': por outro !ado, e original. Heritage Park, a cidade que Hazeldon esta para construir em 500 acres de terra nao muito Ionge da Cidade do Cabo, deve diferenciar-se das outras cidades por seu autocer­camento: cercas eletricas de alta voltagem, vigil&ncia eletr&nica das vias de acesso, barreiras por todo o caminho e guardas fortemente armadas.

Se voce puder se dar ao luxo de comprar uma casa em Heri­tage Park, pode passar boa parte de sua vida afastado dos riscos e perigos da turbulenta, hostil e assustadora selva que come9a logo que terminam os port6es da cidade. Thdo o que uma vida agrada-

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vel requer esta !a: Heritage Park tera suas pr6prias lojas, igrejas, restaurantes, teatros, areas de lazer, florestas, urn parque centraL lagos com salmoes, playgrounds, pistas de corrida, campos de es­portes e quadras de tenis - e irea livre suficiente para se acres­centar o que quer que a moda de uma vida decente possa deman­dar no futuro. Hazeldon e bastante explicito quando esclarece as vantagens de Heritage Park sobre os lugares onde a maioria das pessoas vive hoje em dia:

Hoje a primeira ques6io e a seguranc;a. Queiramos ou nao, e o que faz a diferem;a ... Quando eu cresci, em Londres, tinhamos uma co­munidade. Voce nao fazia nada errado porque todos o conheciam e contariam para seu pai ou mae ... Queremos recriar isso aqui, uma comunidade que nao precisa se preocupar. 1

Entao e assim: ao prec;o de uma casa no Heritage Park voce ganha acesso a uma comunidade. '"Comunidade" e, hoje, a I'1ltima reliquia das utopias da boa sociedade de outrora; e 0 que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos me­lhores, todos seguindo melhores regras de convivio. Pois a utopia da harmonia reduziu-se realisticamente, ao tamanho da vizinhan-' . c;a mais prOxima. Por isso, a ''comunidade" e urn born argumento de venda. Por isso tambem, nos. prospectos distribuidos por Geor­ge Hazeldon, o incorporador, a comunidade foi colocada como o complemento indispensavel, embora ausente em outros projetos, dos bans restaurantes e pitorescas pistas de treinamento que ou­tras cidades tambem oferecem.

Note-se, no entanto, qual eo sentido dessa reuniao comuniti­ria. A comunidade que Hazeldon lembra de seus a!'-os de inffincia em Londres e quer recriar nas terras virgens da Africa do Sui e, antes e acima de tudo, seniio apenas, urn territ6rio vigiado de perto, onde aqueles que fazem algo que desagrada aos outros provo cam seu ressentimento- e sao por isso prontamente punidos e postos na linha - enquanto os desocupados, vagabundos e ou­tros intrUSOS que "niio fazem parte" sao impedidos de entrar OU, entiio, cercados e expulsos. A diferen9a entre o passado afetuosa­mente lembrado e sua replica atualizada e que 0 que a comunida-

Tempo/Espac;o 109

de das mem6rias da inffincia de Hazeldon obtinha usando os olhos, linguas e mi:ios, casualmente e sem muito pensar, no Heri­tage Parke confiado a cameras de TV ocultas e duzias de seguran-9as armados verificando senhas nos portoes e discretamente ( ou ostensivamente, se necessaria) patrulhando as ruas.

Urn grupo de psiquiatras do Victorian Institute of Forensic Mental Health, na Australia, advertiu recentemente que "mais e mais pessoas esti:io denunciando falsamente terem sido vitimas de assaltantes, gastando credibilidade e dinheiro publico" - dinheiro que, como dizem os autores do relato, "deveria ser canalizado para as verdadeiras vltimas'~2 Alguns dos "falsos denunciantes" investi­gados forarn diagnosticados como vitimas de "severas desordens mentais': e ~'acreditavam estar sendo assaltados em seus delirios de que todos conspiravam contra eles':

Poderiamos comentar as observa9oes dos psiquiatras dizendo que a crenc;a na conspirac;ao dos outros contra n6s nao e novidade; seguramente atormentou certos homens em todos os tempos e em todos os cantos do mundo. Nunca e em nenhum Iugar faltaram pessoas prontas a encontrar uma 16gica para sua infelicidade, frus­tra9oes e derrotas humilhantes atribuindo a culpa a inten9oes ma­Ievolas e mal-intencionados pianos albeios. 0 que e novo e que sao- os assaltantes (juntamente com os vagabundos e outros deso­cupados, personagens estranhos ao Iugar em que se movem) que levam agora a culpa, representando o diabo, os incubos, maus espiritos, duendes, mau-olhado, gnomes malvados, bruxas ou co­munistas embaixo da cama. Se as ''falsas vitimas" podem '"gastar a credibilidade pUblica" e porque "assaltante" j3 se tornou urn nome cornum e popular para o medo arnbiente que assola nossos con­ternpodineos; e assim a presenc;a ubiqua dos assaltantes tornou-se crivel e o temor de ser assaltado, amplamente compartilhado. E, se pessoas falsamente obcecadas pela amea9a de serem assaltadas po­d em "gastar 0 dinheiro publico': e porque 0 dinheiro publico ja foi destinado de antemiio, em quantidades que crescem a cada ano, para o prop6sito de identificar e ca~ar os assaltantes, vaga­bundos e outras versoes atualizadas daquele terror moderno, o mobile vulgus- os tipos inferiores de pessoas em movimento, sur­gindo e se espalhando em lugares onde s6 deveriam estar as pes-

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soas certas - e porque a defesa das ruas perigosas, como outrora o exorcismo das casas assombradas, e reconhecida como urn ob­jetivo digno de ser perseguido e como a maneira apropriada de proteger as pessoas que precisam de prote<;iio contra os medos e perigos que as fazem sobressaltadas, nervosas, timidas e assusta­das.

Citando City of Quartz (1990), de Mike Davis, Sharon Zukin descreve a nova aparencia dos espa<;os publicos de Los Angeles reformados pelas preocupa<;oes com a seguran<;a dos seus habi­tantes e de seus defensores eleitos ou nomeados: "Os helic6pteros zunem nos ceus sabre os guetos, a policia hostiliza os jovens como possiveis membros de gangues, os proprietaries compram a defesa armada que podem ... ou tern coragem de usar?' Os anos 1960 e 1970 foram, diz Zukin, "urn divisor de aguas na institucionaliza<;iio dos medos urbanos'~

Os eleitores e as elites- uma ampla classe media nos Estados Unidos - poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a poHtica govema­mental para eliminar a pobreza, administrar a competi<;ilo etnica e integrar a todos em instituic;Oes pUblicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar protec;ao, estimulando o crescimento da indUstria da seguranc;a privada.

0 perigo mais tangivel para o que chama de "cultura publica" ~sta, para Zukin, na "politica do medo cotidiano'~ 0 espectro arre­piante e apavorante das "cruas inseguras" man tern as pessoas longe dos espa<;os publicos e as afasta da busca da arte e das habilidades necessarias para compartilhar a vida publica.

"Endurecer" contra o crime construindo mais prisOes e impondo a pena de morte sao as respostas mais corriqueiras a politica do medo. "Prendam toda a popula~iio': ouvi urn homem dizer no 6nibus, redu­zindo a solw:;ao a seu ridicule extreme. Outra resposta e a privatiza­<;ilo e militariza<;ilo do espac;o pUblico - fazendo das ruas, parques e mesmo lojas lugares mais seguros, mas menos livres ... 3

A comunidade definida par suas fronteiras vigiadas de perto e niio mais por seu conteudo; a "defesa da comunidade" traduzida

Tempo/Espa~o 111

como o emprego de guardioes armadas para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos a posi<;iio de inimigo numero urn; compartimenta<;ao das areas publicas em enclaves "defensa­veis" com acesso seletivo; separac;ao no lugar da vida em com urn - essas sao as principais dimens5es da evoluc;ao corrente da vida urbana.

Quando estranhos se encontram

Na classica defini<;iio de llichard Sennett, uma cidade e "urn assen­tamento humano em que estranhos tern chance de se encontrar'~4

Isso significa que estranhos tern chance de se encontrar em sua condi<;ao de estranhos, saindo como estranhos do encontro casual que termina de maneira tao abrupta quanto come<;ou. Os estra­nhos se encontram numa maneira adequada a estranhos; urn en­centro de estranhos e diferente de encontros de parentes, amigos ou conhecidos - parece, por compara<;iio, urn "desencontro'~ No encontro de estranhos nao ha uma retomada a partir do ponto em que o Ultimo encontro acabou, nem troca de informa<;Oes sobre as tentativas, atribula<;oes ou alegrias desse intervale, nem lembran­<;as compartilhadas: nada em que se apoiar ou que sirva de guia para 0 presente encontro. 0 encontro de estranhos e um evento sem

pass ado. Freqiientemente e tambem um evento sem foturo ( o espe­rado e niio tenha futuro), uma hist6ria para "niio ser continuada'; uma oportunidade Unica a ser consumada enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar quest5es inacabadas para outra oca­siiio. Como a aranha cujo mundo inteiro estcl enfeixado na teia que ela tece a partir de seu proprio abdome, 0 unico apoio com que estranhos que se encontram podem contar devercl ser tecido do fio fino e solto de sua aparencia, palavras e gestos. No momenta do encontro niio ha espa<;o para tentativa e erro, nem aprendizado a partir dos erros ou expectativa de outra oportunidade.

0 que se segue e que a vida urbana requer urn tipo de ativi­dade muito especial e sofisticada, de fato urn grupo de habilidades que Senett listou sob a rubrica "civilidade'; isto e

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112 Modernidade Uquida

a atividade que protege as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que possam estar juntas. Usar uma mascara e a ess€ncia da civilidade. As mascaras permitem a sociabilidade pura, distante das circunstWcias do poder, do mal-estar e dos sentimentos privados das pessoas que as usam. A civilidade tern como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso.5

Segue-se esse objetivo, e claro, esperando reciprocidade. Pro­teger os outros contra a indevida sobrecarga refreando-se de in­teragir com eles so faz sentido se se espera generosidade seme­lhante dos outros. A civilidade, como a linguagem, nao pode ser "privada': Antes de se tornar a arte individualmente aprendida e privadamente praticada, a civilidade deve ser uma caracteristica da situa~ao social. E o entorno urbana que deve ser "civil'; a fim de que seus habitantes possam aprender as dificeis habilidades da

civilidade. 0 que significa, entao, dizer que 0 meio urbane e "civil" e,

assim, propicio a pra.tica individual da civilidade? Significa, antes e acima de tudo, a disponibilidade de espa~os que as pessoas possam compartilhar como personae publicas- sem serem instiga­das, pressionadas ou induzidas a tirar as m:iscaras e "deixar-se ie: "expressar-se': confessar seus sentimentos .intimas e exibir seus pensamentos, sonhos e angUstias. Mas tambem significa_uma cida­de que se apresenta a seus residentes como urn hem comum que nao pode ser reduzido ao agregado de propositos individuais e como uma tarefa compartilhada que nao pode ser exaurida por urn grande nllmero de iniciativas individuais, como uma forma de vida com urn vocabulario e logica proprios e com sua propria agenda, que e ( e esta fadada a continuar sen do) maior e mais rica que a mais completa lista de cuidados e desejos individuais - de tal forma que "vestir uma mascara publica" e urn ato de engaja­mento e participa<;ao, e nao urn ato de descompromisso e de reti­rada do "verdadeiro eu'; deixando de !ado o intercurso eo envol­vimento publico, manifestando o desejo de ser deixado so e con­tinuar s6.

Ha muitos lugares nas cidades contemporaneas a que cabe o nome de "espa<;os pllblicos'~ sao de muitos tipos e tamanhos, mas

Tempo/Espa~o 113

a maio ria deles faz parte de uma de duas gran des categorias. Cad a categoria se afasta do modelo ideal do espa~o civil em duas dire­~oes opostas mas complementares.

A pra<;a La Defense, em Paris, urn enorme quadrihltero na mar­gem direita do Sena, concebida, comissionada e construida por Fran~ois Mitterrand (como monumento duradouro de sua presi­dencia, em que o esplendor e grandeza do cargo foram cuidado­samente separados das fraquezas e falhas pessoais de seu ocupan­te ), in corpora todos os tra~os da primeira das duas categorias do espa~o publico urbano, que nao e, no entanto- enfaticamente nao e -, "civil': 0 que chama a aten~ao do visitante de La Difense e antes e acima de tudo falta de hospitalidade da pra~a: tudo o que seve inspira respeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanen­cia. Os edificios fantasticos que circundam a pra~a enorme e vazia sao para serem admirados, e nao visitados; cobertos de cima a baixo de vidro refletivo, parecem nao ter janelas ou portas que se abram na dire<;iio da prac:;a; engenhosamente diio as costas a pra<;a diante da qual se erguem. Sao imponentes e inacessiveis aos olhos - imponentes porque inacessiveis, estas duas qualidades que se complementam e refon;am mutuamente. Essas fortalezas/ conven­tos hermeticamente fechadas estao na pra~a, mas nao fazem parte deJa - e induzem quem quer que esteja perdido na vastidao do espa<;o a seguir seu exemplo e sentimento. Nada alivia ou inter­rompe o uniforme e mon6tono vazio da pra<;a. Nao h3. ban cos para descansar, nem irvores sob cuja sombra esconder-se do sol escal­dante. (Ha, e certo, urn grupo de bancos geometricamente dispos­tos no !ado mais afastado da pra~a; eles se situ am numa plataforma urn metro acima do chao da pra~a - uma plataforma como urn palco, o que faria do ato de sentar-se e descansar urn espetaculo para todos os outros passantes que, diferentemente dos sentados, tem o quefazer ali). De tempos em tempos, com a regularidade dos horirios do metrO, esses outros - filas de pedestres, como fonni­gas apressadas - emergem de debaixo da terra, estiram-se sabre o pavimento de pedras que separa a saida do metro de um dos brilhantes monstros que cercam ( sitiam) a pra~a e desaparecem rapidamente da vista. E a pra~a fica novamente vazia - ate a che­gada do proximo trem.

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A segunda categoria de espa~o publico mas nao civil se desti­na a servir aos consumidores, ou melhor, a transformar o habitante da cidade em consumidor. Nas palavras de Liisa Uusitalo, "os con­sumidores frequentemente compartilham espa~os fisicos de con­sumo, como salas de concertos ou exibi~Oes, pontos turisticos, areas de esportes, shopping centers e cafes, sem ter qualquer inte­ra<;io social real':6 Esses lugares encorajam a a<;io e nao a interayiio.

Compartilhar o espa<;o fisico com outros atorcs que realizam ati­vidade similar da importancia a a~ao, carimba-a com a "aprova~ao do nllmero" e assim corrobora seu sentido e a justifica sem neces­sidade de mais razoes. QuaJquer intera~aO dos atores OS afastaria das a<;5es em que estiio individualmente envolvidos e constituiria prejuizo, e nio vantagem, para eles. Nao acrescentaria nada aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa.

A tarefa eo consume, eo consume e urn passatempo absoluta e exclusivarnente individual uma serie de sensa<;Oes que s6 podem ser experimentadas - vividas - subjetivamente. As multidoes que enchem os interiores dos "temples do consume" de George Ritzer sao ajuntamentos, nao congrega~Oes; conjuntos, nao esquadrOes; agregados, nao totalidades. Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo nao tern nada de "coletivo': Para utilizar a memoravel expressao de Althusser, quem quer que entre em tais espa~os e "interpelado" enquanto individuo, chamado a suspender ou romper os la~os e descartar as lealdades.

Os encontros, inevitiveis num espa~o lotado, interferem com 0 prop6sito. Precisam ser breves e superficiais: nao mais longos nem mais profundos do que 0 ator OS deseja. 0 Iugar e protegido contra aqueles que costumam quebrar essa regra - todo tipo de intrometidos, chatas e outros que poderiam interferir co:rh o ma­ravilhoso isolamento do consumidor ou comprador. 0 templo do consumo hem supervisionado, apropriadamente vigiado e guarda­do e uma ilha de ordem, livre de mendigos, desocupados, assal­tantes e traficantes - pelo menos e o qu.e se espera e supOe. As pessoas niio vao para esses temples para conversar ou socializar. Levam com elas qualquer compauhia de que queiram gozar ( ou tolerem ), como os carac6is levam suas casas.

Tempo/Espa~o

Lugares emicos, lugares fagicos, nOo-lugares, espac;os vazios

II I

0 que quer que possa acontecer dentro do templo do consuiiHI tern pouca ou nenhurna rela~ao com o ritmo e tear da vida diclria que /lui "fora dos portoes': Estar num shopping center se parece com "estar noutro lugar': 7 Idas aos lugares de consumo diferem dos carnavais de Bakhtin, que tambem envolvem a experiencia de "ser transportado": idas as compras sao principalmente viagens no espa~o, e apenas secundariamente viagens no tempo.

0 carnaval e a rnesma cidade transformada, mais exatamente urn intervalo de tempo durante o qual a cidade se transforma antes de cair de novo em sua rotina. Por urn lapso de tempo estritamente definido, mas urn tempo que retorna ciclicamente, o carnaval des­venda o "outro !ado" da realidade diaria, urn !ado constantemente ao alcance, mas normalmente oculto a vista e imposs.ivel de tocar. A lembran~a da descoberta e a esperan~a de outros relances por vir nao permitem que a consciencia desse "outro lado" seja intei­ramente suprimida.

Uma ida ao templo do consume e uma questao inteiramente diferente. Entrar nessa viagem, mais do que testemunhar a tran­substanciac;ao do mundo familiar, e como ser transportado a urn outro mundo. 0 templo do consumo ( claramente dis tin to da "loja da esquina" de outrora) pode estar na cidade (se nao construido, simbolicamente, fora dos limites da cidade, a beira de uma auto­estrada), mas nao faz parte dela; nao e 0 mundo comum tempora­riamente transformado, mas urn mundo "completamente outro': 0 que 0 faz "outro" nao e a reversao, nega<;ao ou suspensao das regras que governam o cotidiano, como no caso do carnaval, rrias a exihi<;Uo do modo de ser que o cotidiano impede ou tenta em vao alcan<;ar- e que poucas pessoas imaginam experimentar nos lugares que habitam normalmente.

A metifora do "templo" de Ritzer e adequada; OS espa~os de compra/ consumo sao de fa to temp los para os peregrinos - e de­finiti:amente nao se destinam a celebra<;ao das missas negras anua1s das festas carnavalescas nas par6quias. 0 carnaval mostra que a realidade nao e tao dura quauto parece e que a cidade pode

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ser transformada; os templos do consumo nao revelam nada da natureza da realidade cotidiana. 0 templo do consumo, como o "barco" de Michel Foucault, "e urn peda9o flutuante do espa9o, urn Iugar sem Iugar, que existe por si mesmo, que esta fechado em si mesmo e ao mesmo tempo se d<i ao infinite do mar"8; pode realizar esse "dar-se ao infinito" porque se afasta do porto domestico e se man tern a distfincia.

Esse "Iugar sem Iugar" auto-cercado, diferentemente de todos OS \ugares OCUpados OU cruzados diariamente, e tambem Uffi es­pa90 purificado. Nao que tenha sido limpo da variedade e da dife­renc;a, que constantemente ameac;am outros lugares com poluic;ao e confusao e deixam a limpeza e a transparencia fora do alcance dos que os us am; ao contrario, os lugares de compra/ consumo devem muito de sua atra<;iio magnetica a colorida e caleidosc6pica variedade de sensa96es eJTI oferta. Mas as diferen9as dentro, ao contrario das diferen9as fora, foram amansadas, higienizadas e garantidas contra ingredientes perigosos - e por isso nao sao ameac;adoras. Podem ser aproveitadas sem medo: excluido o risco da aventura, 0 que sabra e divertimento puro, sem mistura ou contamina9ao. Os lugares de compra/ consumo oferecem o que nenhuma "realidade real" externa pode dar: o equilibria quase perfeito entre liberdade e seguran9a.

Dentro de seus temp los, os compradores/ consumidores po­d em encontrar, aiem disso, o que zelosamente e em vao procuram fora deles: o sentimento reconfortante de pertencer- a impressao de fazer parte de uma comunidade. Como sugere Sennett, a au, sencia de diferen9a, 0 sentimento de que "somos todos semelhan­tes': 0 suposto de que "nao e preciso negociar pais temos a mesma inten9ao': e 0 significado mais profunda da ideia de "comunidade" e a causa Ultima de sua atrac;ao, que cresce proporcionalmente a pluralidade e multivocalidade da vida. Podemos dizer que "comu­nidade" e uma versao compacta de estar junto, e de urn tipo de estar junto que quase nunca ocorre na "vida real": urn estar junto de pura semelhan9a, do tipo "n6s que somos todos o mesmo"; urn estar junto que por essa razao e nao-problemcltico e nao exige esfor9o ou vigilancia, e esta na verdade pre-determinado; urn estar

Tempo/Espa<;o 117

junto que nao e uma tarefa, mas ~0 dado" e dado muito antes que o esfor9o de jaze-lo. Nas palavras de Sennett,

imagens de solidariedade comunit;lria sii.O forjadas para que OS ho­mens possam evitar lidar com outros homens ... Por urn ato de von­tade, uma mentira se quiserem, o mito da solidariedade comunit3.ria deu a essas pessoas modemas a possibilidade de ser covardes e esconder-se dos outros ... A imagem da comunidade e purificada de tudo o que pode implicar urn sentimento de diferen~a, ou conflito, a respeito de o que "n6s" somos. Desse modo, o mito da solidariedade comunitclria e urn ritual de purifica<_;iio.9

0 obstaculo, porem, e que "o sentimento de uma identidade comum ... C uma fabrica<;ao da experiencia': Se e assim, entao quem projetou e quem supervisiona e dirige os templos do con­sumo sao mestres da falsifica<;ao e da vigarice. Em suas maos a impressao e tudo: nao e necessclrio fazer mais perguntas - que, de qualquer forma, nao seriam respondidas.

Dentro do templo, a imagem se torna realidade. As multidoes que enchem os corredores dos shopping centers se aproximam tanto quanto e concebivel do ideal imaginario de "comunidade" que nao conhece a diferen<;a (mais exatamente, diferen<;a que con­te, diferen9a que requeira confronto diante da alteridade do outro, negocia~ao, clarifica9ao e acordo quanto ao modus vivendz). Por essa razao, essa comunidade nao envolve negocia<;Oes, nem esfor-90 pela empatia, compreensao.e .concessoes. To do o mundo entre as paredes dos shopping centers pode supor com seguran9a que aqueles com que trombara ou pelos quais passara nos corredores vieram com o mesmo prop6sito, foram seduzidos pelas mesmas atra~oes (reconhecendo-as, portanto, como atra96es) e sao guia­dos e movidos pelos mesmos motivos. "Estar dentro" produz uma verdadeira comunidade de crentes, unificados tanto pelos fins quanto pelos meios, tanto pelos valores que estimam quanta pela l6gica de conduta que seguem. Assim, uma viagem aos "espa9os do COnsumo" e uma viagem a taO a!mejada COII\I.lnidade que, COffiO a prOpria experiencia de ir as compras, est£ permanentementt "alhures': Pelos poucos minutos ou horas que dura nosso "pas

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seio': podemos encostar nos ombros de "outros como n6s': fieis do mesmo templo; outros cuja alteridade pode ser, pelo menos neste Iugar, aqui e agora, deixada Ionge da vista, da mente e da considera<;aO. Para todos OS prop6sitos, 0 Iugar e puro, tao puro quanta os lugares do culto religioso e a comunidade imaginada (ou postulada).

Claude Levi-Strauss, o maior antrop6logo cultural de nosso tempo, sugeriu em Tristes trOpicos que apenas duas estrategias fa­ram utilizadas na hist6ria humana quando a necessidade de en­frentar a alteridade dos outros surgiu: uma era a antropobnica, a outra, a antropifdgica.

A primeira estrategia consiste em '~vomitar': cuspir os outros vistas como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato fisico, o dialogo, a intera<;ao social e todas as variedades de com­

merciu'J'Tl, comensalidade e connubium. As variantes extremas da estrategia "@mica" sao hoje, como sempre, o encarceramento, a deporta<;ao e o assassinato. As formas elevadas, "refinadas" (mo­dernizadas) da estrategia "emica" sao a separa<;Uo espacial, os gue­tos urbanos, o acesso seletivo a espa<;os e o impedimenta seletivo a seu uso.

A segunda estrati:gia consiste numa soi-disant "desaliena~iio" das substiincias alheias: ''ingerir': "devorar" corpos e esp.iritos es­tranhos de modo a faze-los, pelo metabolismo, identicos aos cor­pas que OS ingerem, e portanto nao distinguiveis deles. Essa estra­tegia tambem assumiu ampla gama de formas: do canibalismo a assimila<;ao for<;ada - cruzadas culturais, guerras declaradas con­tra costumes locais, contra calendarios, cultos, dialetos e outros "preconceitos" e "supersti~Oes': Se a primeira estrati:gia visava ao exilio ou aniquila<;ao dos "outros': a segunda visava a suspensao ou aniquila<;ao de sua alteridade.

A ressonancia entre a dicotomia das estrati:gias de Levi­Strauss e as duas categorias de espa<;os "publicos-mas-nao-civis" e impressionante, mas nao surpreendente. A pra~a La D{fense em Paris Guntamente com muitos outros "espa~os inter.dit6rios" que, segundo Steven Flusty, ocupam Iugar de destaque entre inova<;oes urban as correntes ) 10 e urn exemplo arquitetonico da estrategia "e~ica': enquanto os ''espa~os de consumo" representam a "f<lgi-

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ca': Ambas - cada uma a sua maneira - respondem ao mesmo desafio: a tarefa de enfrentar a chance de encontrar estranhos, caracteristica constitutiva da vida urbana. Enfrentar essa possibi­lidade e uma tarefa que requer medidas "assistidas pelo poder" se os habitos de civilidade estiverem ausentes ou forem pouco de­senvolvidos e nao profundamente enraizados. Os dois tipos de espa<;os urbanos "publicos-mas-nao-civis" derivam da evidente falta de habilidades da civilidade; ambos lidam com as conseqiien­cias potencialmente prejudiciais dessa falta nao pela promo<;ao do estudo e aquisi<;ao das habilidades que faltam, mas tornando sua posse irrelevante e desnecess£ria para a pnltica da arte do viver urbana.

E preciso acrescentar as duas respostas descritas uma terceira. cada vez mais comum. Ela e o que Georges Benko, seguindo Marc Auge, chama de "nao-lugares" ( ou, alternativamente, segundo Garreau, "cidades-de-lugar-nenhum").11 "Nao-lugares" partilham certas caracteristicas com nossa primeira categoria de lugares os­tensivamente pllblicos mas enfaticamente niio-civis: desencorajam a ideia de "estabelecer-se'~ tornando a coloniza~ao ou domestica­<;ao do espa<;o quase impassive!. Ao contrario de La Dlftnre, po­rem, espa~o cujo Unico destine e ser atravessado e deixado para tr<ls o mais rapidamente possivel, ou dos espa~os "interdit6rios" cuja principal fun<;ao consiste em impedir o aces so e que sao de­senhados para serem circundados, e niio atravessados, os niio-lu­gares aceitam a inevitabilidade de uma adiada passagem, as vezes muito longa, de estranhos, e fazem o que podem para que sua presen~a seja "meramente flsica" e socialmente pouco diferente, e preferivelmente indistinguivel da ausencia, para cancelar, nivelar ou zerar, esvaziar as idiossincd.ticas subjetividades de seus "pas­sautes': Os residentes tempor<lrios dos nao-lugares sao possivel­mente diferentes, cada variedade com seus pr6prios h:\bitos e ex­pectativas; e 0 truque e fazer com que is so seja irrelevante durante sua estadia. Quaisquer que sejam suas outras diferen<;as, deveril.o seguir os mesmos padroes de conduta: e as pistas que disparam o padrao uniforme de conduta devem ser legiveis por todos eles, independente das linguas que prefiram ou que costumem utilizar em seus afazeres diarios. 0 que quer que aconte~a nesses "niio-lu-

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gares': todos devem sentir-se como se estivessem em casa., mas ninguem deve se comportar como se verdadeiramente em cas a. Urn nao-lugar "e urn espa~o destituido das expressoes simb6licas de identidade, rela~oes e hist6ria: exemplos incluem aeroportos, auto-estradas, an6nimos quartos de hotel, transporte publico ... Jamais na hist6ria do mundo os nao-lugares ocuparam tanto es­pa~o·:

Os nao-lugares nao requerem dominio da sofisticada e dificil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em publico a preceitos simples e ficeis de aprender. Par causa dessa simplifica~ao, tambem nao sao escolas de civilidade. E, como hoje 'Gocupam tanto espac;o': como colonizam fatias cada vez maiores do espa~o publico e as reformulam a sua semelhan~a, as ocasioes de aprendizado sao cada vez mais escassas e ocorrem a intervalos cada vez maiores.

As diferen~as podem ser expelidas, engolidas, mantidas a par­te, e hi lugares que se especializam em cada casu. Mas as diferen­~as tambem podem ser tornadas invisiveis, ou melhor, impedidas de serem percebidas. Esse e o caso dos "espac;os vazios': Como propiiem Jerzy Kociatkiewicz e Monika Kostera, que cunharam o termo, OS espa<;OS vazios sao

lugares a que nao se atribui significado. Nao precisam ser delimita­dos fisicamente por cercas ou barreiras. Niio sao lugares proibidos, mas espa<;os vazios, inacessiveis porque invisiveis.

Se ... o fazer sentido e urn ato de padroniza<;ao, compreensiio, supera<;3:o da surpresa e cria<;1io de significado, nossa experiencia dos espa<;os vazios nao inclui o fazer sentido. 12

Os espac;os vazios sao antes de mais nada vazios de significado. Nao que sejam sem significado porque sao vazios: e porque nao tern significado, nem se acredita que possam te-lo, que sao vistas como vazios (melhor seria dizer nao-vistos). Nesses lugares que resistem ao significado, a questao de negociar diferenc;as nunca surge: nao ha com quem negocia-la. 0 modo como os espa~os vazios lidam com a diferen~a e radical numa medida que outros tipos de lugares projetados para repelir ou atenuar o impacto de estranhos nao podem acompanhar.

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Os espac;os vazios que Kociatkiewicz e Kostera listam sao lu­gares nao-colonizados e lugares que nem OS projetistas nero OS

gerentes dos usuarios superficiais reservam para coloniza~ao. Eles sao, podemos dizer, lugares que "sobram" depois da reestrutura­~ao de espa~os realmente importantes: devem sua presen~a fantas­mag6rica a falta de superposi~ao entre a elegancia da estrutura e a confusao do mundo ( qualquer mundo, inclusive o mundo dese­nhado propositalmente ), not6rio par fugir a classifica~oes cabais. Mas a familia dos espa~os vazios nao se limita as sabras dos pro­jetos arquitet6nicos e as margens negligenciadas das visoes do urba:qista. Muitos espac;os vazios sao, de fato, nao apenas reslduos inevitiveis, mas ingredientes necess.lrios de outro processo: o de mapear 0 espa~o partilhado par muitos usuarios diferentes.

Numa de minhas viagens de conferencias (a uma cidade po­pulosa, grandee viva do sui da Europa), fui recebido no aeroporto par uma jovem professora, filha de urn casal de profissionais ricos e de alta escolaridade. Ela se desculpou porque a ida para o hotel nao seria f:lcit e tomaria muito tempo, pois nao havia como evitar as movimentadas avenidas para o centro da cidade, constantemen­te engarrafadas pelo trafego pesado. De fato, levamos quase duas horas para chegar ao lugar. Minha guia ofereceu -se para conduzir­me ao aeroporto no dia da partida. Sabendo quao cansativo era dirigir na cidade, agradeci sua gentileza e boa vontade, mas disse que tomaria urn taxi. 0 que fiz. Desta vez, a ida ao aeroporto tomou menos de dez minutos. Mas o motorista foi par fileiras de barracos pobres, decadentes e esquecidos, cheios de pessoas ru­des e evidentemente desocupadas e crian~as sujas vestindo farra­pos. A enfase de minha guia em que nao havia como evitar o trafego do centro da cidade nao era mentira. Era sincera e adequa­da a seu mapa mental da cidade em que tinha nascido e onde sempre vivera. Esse mapa nao registrava as ruas dos feios "distritos perigosos" pelas quais o taxi me levou. No mapa mental de minha guia, no lugar em que essas ruas deveriam ter sido projetadas havia, pura e simplesmente, urn espa~o vazio.

A cidade, como outras cidades, tern muitos habitantes, cada urn com urn mapa da cidade em sua cabe~a. Cada mapa tern seus espac;os vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem

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em lugares diferentes. Os mapas que orientam os movimentos das virias categorias de habitantes nao se superpOem, mas, para que qualquer mapa "fa~a sentido'~ algumas areas da cidade devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que o resto brilhe e se encha de significado.

0 vazio do lugar esti no olho de quem ve e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios sao os lugares em que nao se entra e onde se sentiria perdido e vulneravel, surpreendido e urn tanto atemorizado pela presen~a de humanos.

Nco fale com estranhos

A principal caracteristica da civilidade e a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pres­siena-los a abandona-la ou a renunciar a alguns dos tra~os que os fazem estranhos. A principal caracteristica do~ lugares "pliblicos mas nao civis" - as quatro categorias listadas acima - e a dispen­sabilidade dessa interariio. Se a proximidade fisica nao puder ser evitada, ela pode pelo menos ser despida da amea~a de "estar juntos" que contem, com seu convite ao encontro significative, ao di3Jogo e a interac;ao. Se nao se puder evitar o encontro com estranhos, pode-se pelo menos tentar evitar maior contato. Que os estranhos, como as crianc;as da era vitoriana, possam ser vistas mas nao ouvidos, ou, se nao se puder evitar ouvi-los, que ao menos nao se escute o que dizem. A questao e fazer o que quer que digam irrelevante e sem conseqiiencias para o que pode e deve ser feito.

Todos esses expedientes nao passam de meias-medidas: as solU<;5es menos ruins ou os menos detestiveis e prejudiciais dos males. Lugares "publicos mas nao civis" permitem que lavemos llOSSaS maos de qualquer intercfimbio COm OS estranhos a llOSSa volta e que evitemos o comercio arriscado, a comunicac;ao dificil, a negociac;ao enervante e as concess5es irritantes. Nao impedem, porem, o encontro com estranhos; ao contr:irio, sup5em-no - fo­ram criados por causa dessa suposic;ao. Sao, por assim dizer, curas para uma doen<;a j:i contraida - e nao uma medicina preventiva que tornaria desnecess:irio o tratamento. E todos os tratamentos,

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como sabemos, podem ou nao debelar a doen~a. Hit poucos - se houver- metodos eficazes a toda prova. Como seria born, portan­to, tamar o tratamento desnecessirio imunizando o organismo contra a doen~a. Donde livrar-se da companhia de estranhos pa­rece uma perspectiva mais atraente e segura que as estratf:gias mais sofisticadas para neutralizar sua presen~a.

Essa pode parecer uma solu~ao melhor, mas nao esta livre de seus pr6prios perigos. Mexer com o sistema imunol6gico f: arris­cado e pode mostrar-se patogenico. Ademais, tornar o organismo resistente a certas amea<;as provavelmente o torna vulnenlvel a outras. Dificilmente qualquer interferencia estad.livre de horriveis efeitos colaterais: diversas interven<;Oes mf:dicas sao conhecidas pelas doen~as iatrogenicas que provocam - doen~as que resultam da propria interven~ao, que nao sao menos (se nao mais) perigo­sas que a doen~a que se pretendia curar.

Como indica Richard Sennett,

invocam-se mais a lei e a ordem quando as comunidades estao mais isoladas das outras pessoas na cidade ...

Durante as Ultimas duas decadas as cidades nos EUA cresceram de maneira que homogeneizou as areas etnicas; nao e por acaso, entao, que o medo do estranho tambem cresceu a medida que essas comu­nidades etnicas foram isoladas. I3

A capacidade de conviver com a diferen~a, sem falar na capa­cidade de gostar dessa vida e beneficiar-se deJa, nao e facil de adquirir e nao se faz sozinha. Essa capacidade e uma arte que, como toda arte, requer estudo e exerdcio. A incapacidade de en­frentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalencia de todas as decis5es classificat6rias, ao contr:irio, se autoperpetuam e refor­~am: quanto mais eficazes a tendencia a homogeneidade e 0 esfor­~0 para eliminar a diferen~a. tanto mais dificil sentir-se a vontade em presen~a de estranhos, tanto mais amea<;adora a diferen~a e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera. 0 projeto de escon­der-se do impacto enervante da multivocalidade urbana nos abri­gos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitarias e urn projeto que se auto-alimenta, mas que esta fadado a derrota.

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Essa poderia ser uma verdade trivial, niio fosse o fato de que o ressentimento em relac:;ao a diferen<;a tambem se autocorrobora: a medida que 0 impulso a uniformidade se intensifica, 0 mesmo acontece com o horror ao perigo representado pelos "estranhos no portiio': 0 perigo representado pela companhia de estranhos e uma classica profecia autocumprida. Torna-se cada vez mais f:icil misturar a vis:lo dos estranhos com os medos difusos da insegu­raw;a; o que no comec:;o era uma mera suposic:;ao torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente.

A perplexidade se torna urn drculo vicioso. Como a arte de negociar interesses comuns e urn destine compartilhado vern cain­do em desuso, raramente e praticada, est:! meio esquecida ou nun­ca foi propriamente aprendida; como a ideia do "bern comum" e vista com suspei<;:lo, como ameac:;adora, nebulosa ou confusa - a busca da seguranc:;a numa identidade comum e nao em fuw;;ao de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensate, efi­caz e lucrativo de proc:eiler; e as preocupa~Oes com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a ideia de interesses co­muns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais incrl­vel e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improv:lvel o surgi­mento da capacidade e da vontade de sair em busca desses inte­resses comuns. Como resume Sharon Zukin: "Ningu€:m mais sabe falar com ningu€:m':

Zukin sugere que "a exaustiio do ideal de urn destino comum refon;ou o apelo da cultura"; mas '"no uso norte-americana co­mum, a cultura e. antes de tudo, a etnicidade': que, por sua vez e "urn modo legitimo de escavar urn nicho na sociedade':14 Escavar urn nicho, niio ha duvida, implica acima de tudo separa~iio territo­rial, o direito a urn "espa~o defensive!" separado, espa~o que pre­cisa de defesa e e digno de defesa precisamente por ser separado - isto e, porque foi cercado de postos de fronteira que permitem a entrada apenas de pessoas "da mesma" identidade e impedem o acesso a quaisqiler outros. Como o prop6sito da separat;ao tenito­rial e a homogeneidade do baitto, a "emicidade" e mais adequada que qualquer outra "identidade" imaginada.

Ao contrario de outras identidades postuladas, a ideia de et­nicidade e semanticamente carregada. Ela supOe axiomaticamente urn casamento divino que nenhum esfort;o na terra pode desman-

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char, uma especie de la~o predeterminado de unidade que prece­de toda negociat;ao e eventuais acordos sabre direitos e obriga­~oes. Em outras palavras, a homogeneidade que presumivelmente marca as entidades €:tnicas e heterOnoma: nao urn artefato humane, e certamente niio o produto da gera~iio atual de humanos. Niio surpreende, pois, que a emicidade, mais que qualquer outra espe­cie de identidade postulada, seja a primeira escolha quando se trata de fugir do assustador espa~o polif&nico onde "ninguem sabe falar com ninguem" para o "nicho seguro" onde "todos sao parecidos com todos"- e onde, assim, ha pouco sobre o que falar e a fala e facil. Tampouco surpreende que, sem muita considera~ao pela 16gica, outras comunidades postuladas, enquanto reivindicam seus pr6prios '"niches na sociedade': queiram tirar sua lasquinha da etnicidade e inventem cuidadosamente suas pr6prias raizes, tradit;Oes, hist6ria compartilhada e futuro comum - mas, antes e acima de tudo, sua cultura separada e singular, que por causa de sua genulna ou putativa singularidade merece ser considerada "urn valor em si mesma'~

Seria equivocado explicar o renascido comunitarismo de nos­sos tempos como urn solut;o de instintos ou inclinat;Oes ainda nao inteiramente erradicados que o progresso da modernizat;ao mais cedo ou mais tarde vai neutralizar ou diluir; seria igualmente equi­vocado descarta-lo como uma falha da raziio moment:inea - urn lamentavel mas inevit:ivel caso de irracionalidade, em flagrante contradi~iio com as implica~oes de uma "escolha publica" racio­nalmente fundada. Gada forma~iio social promove seu proprio tipo de racionalidade, investe seu proprio significado na ideia de uma estrategia racional de vida- e pode-se argumentar em defesa da hip6tese de que a- Corrente metamorfose do comunitarismo {: uma resposta racional a crise genulna do ""espat;o pUblico" - e portanto da politica, essa atividade humana para a qual o espa~o publico e 0 terreno natural.

Com o dominio da polltica se estreitando aos limites das con­fissoes publicas, exibi~oes publicas da intimidade e exame e cen­sura publicas de virtudes e vicios privados; com a questilo da credibilidade das pessoas expostas a vista publica substituindo a considera~ao sobre qual e e deve ser 0 objeto da politica; com a visao de uma sociedade boa e justa praticamente ausente do dis-

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curso politico - nao e de surpreender que (como ja observava Sennett ha 20 anos) 15 as pessoas "se tornem espectadores passivos de uma personagem politica que lhes oferece para consumo suas inten~Oes e sentimentos em lugar de seus atos': A questao e, po­rem, que OS espectadores nao esperam, dos politicOS e de todos OS outros na ribalta, mais que urn born espetaculo. E assim o espeta­culo da politica, como outros espetaculos publicamente encena­dos, se torna a mensagem mon6tona e incessantemente martelada da prioridade da identidade sobre os interesses, ou a li~ao publica continua de que a identidade, e n3.o OS interesses, e 0 que verda­deiramente importa, assim como o que verdadeiramente importa e quem se e e nao o que se esta fazendo. De cima a baixo, e a revela~ao do verdadeiro eu que se torna a essencia das rela~oes em publico e da vida publica como tal; e e a identidade que se torna 0 esti!ha~o a que OS naufragos em busca de socorro se agar­ram quando afundam os navies do interesse. E entao, como sugere Sennett, "'"manter a comunidade torna-se urn fim em si mesmo; o expurgo dos que nao fazem parte torna-se assunto da comunida­de'~ Nao mais se precis a uma "justifica~,;ao para a recusa a negocia­~ao, para o expurgo continuo dos de fora':

Esfon;os para manter a distancia o "outre·: o diferente, o es­tranho e o estrangeiro, e a decisao de evitar a necessidade de comunica<;ao, negocia<;ao e compromisso mU.tuo, nao sao a lmica resposta concebfvel a incerteza existencial enraizada na nova fra­gilidade ou fluidez dos la~os sociais. Essa decisao certamente se adapta a nossa preocupa<_;ao .contemporanea obsessiva com polui­~ao e purifica~ao, a nossa tendencia de identificar 0 perigo para a seguran~a corporal com a invasao de "corpos estranhos" e de iden­tificar a seguran~a nao-amea~ada com a pureza. A aten~ao aguda­mente apreensiva as substincias que entram no corpo pela boca e pelas narinas, e aos estranhos que se esgueiram sub-repticiamente pelas vizinhan~as do corpo, acomodam-se !ado a !ado no mesmo quadro cognitivo. Ambas ativam urn desejo de "expeli-los do sis­tema'~

Esses desejos convergem, aliam-se e condensam-se na politica da separa~ao etnica, e particularmente na defesa contra a vinda dos "estrangeiros': Como diz Georges Benko, 16

Tempo/Espor;o 127

hi Outros que sao mais Outros que OS Outros, OS estrangeiros. Ex­cluir pessoas como estrangeiras porque nao somas mais capazes de conceber o Outro indica uma patologia social.

Pode ser patologia, mas nao uma patologia da mente que tenta em vao for~ar urn sentido para urn mundo destituido de significa­do estavel e confiavel; e uma patologia do espa~o publico que resulta numa patologia da politica: o esvaziamento e a decaden­cia da arte do di:ilogo e da negocia~ao, e a substitui~ao do enga­jamento e mutuo comprometimento pelas tecnicas do desvio e da eva sao.

"Nao fale com estranhos" - outrora uma advertencia de pais zelosos a seus pobres filhos - tornou-se o preceito estrategico da normalidade adulta. Esse preceito reafirma como regrade pruden­cia a realidade de uma vida em que os estranhos sao pessoas com quem nos recusamos a falaf. Os governos impotentes para atacar as ralzes da inseguran<;a c ansiedade de seus sUditos estio bero­dispostos e felizes com a situa<;ao. Uma frente de "imigrantes': essa mais completa e tang:ivel encarna<;ao do "outre'~ pode muito bern levar a unir o difuso amontoado de indiv:iduos atemorizados e desorientados em alguma coisa vagamente assemelhada a uma ''comunidade nacional"; e essa 1:, Uma das poucas tarefas que OS

governos de nosso tempo sao capazes de fazer e tern feito. 0 Heritage Park de George Hazeldon seria urn Iugar onde,

afinal, todos os passantes poderiam falar livremente uns com os outros. Eles seriam livres para falar porque haveria muito pouco sobre 0 que falar - a exce~ao da troca de frases rotineiras e fami­liares que nao geram controversia, mas tampouco implicam com­prometimento. A sonhada pureza da comunidade de Heritage Park s6 pode ser conquistada ao pre~o do desengajamento e da ruptura dos la~os.

A modernidade como historic do tempo

Quando eu era crian~a ( e is so aconteceu em outro tempo e em outro espa~o) nao era in com urn ouvir a pergunta "Quao Ionge e

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daqui ate !a?'' respondida por urn "Mais ou menos uma hora, ou urn pouco menos se voce caminhar r:lpido': Num tempo ainda anterior a minha inffincia, suponho que a resposta mais comum teria sido "Se voce sair agora, estar:l 13. por volta do meio-dia" ou "Melhor sair agora, se voce quiser chegar antes que escure9a': Hoje em dia, pode-se ouvir ocasionalmente essas respostas. Mas serao normalmente precedidas por uma solicita9ao para ser mais espedfico: "Voce vai de carro ou ape?''

"Longe" e "tarde': assim como "perto" e "cedo': significavam quase a mesma coisa: exatamente quanta esfor<;o seria necessaria para que urn ser humane percorresse uma certa disdncia - fosse caminhando, semeando au arando. Se as pessoas fossem instadas a explicar o que entendiam por "espa9o" e "tempo'; poderiam ter dito que "espa9o" e 0 que se pode percorrer em certo tempo, e que "tempo" e o que se precisa para percorre-lo. Se nao fossem muito pressionados, porem, nao entrariam no jogo da defini9aO. E por que deveriam? A maioria das coisas que fazem parte da vida coli­diana sao compreendidas razoavelmente ate que se precise defini­las; e, a menos que solicitados, nao precisariamos defini-las. 0 modo como compreendiamos essas coisas que hoje tendemos a chamar de "espa~o" e "tempo" era nao apenas satisfat6rio, mas tao preciso quanta necess:lrio, pois era o wetware - os humanos, os bois e os cavalos - que fazia o esfor9o e punha os limites. Urn par de pernas humanas pode ser diferente de outros, mas a substitui-9ao de urn par por outro nao faria uma diferen9a suficientemente grande para requerer outras medidas alem da capacidade dos mlisculos humanos.

No tempo das Olimpiadas gregas ninguem pensava em regis­trar os recordes olimpicos, e menos ainda em quebra-los. A inven-9ao e disponibilidade de alga alem da for9a dos musculos huma­nos ou animais foi necess<lria para que essas ideias fossem conce­bidas e para a decisao de atribuir importancia as diferen~as entre as capacidades de movimento dos individuos humanos - e, assim, para que a pn!-historia do tempo, essa longa era da pratica limitada pelo wetware, terminasse, e a historia do tempo come9"sse. A his­t6ria do tempo come9ou com a modernidade. De fato, a moderni-

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dade e, talvez mais que qualquer outra coisa, a historia do tempo: a modernidade e 0 tempo em que 0 tempo tern uma hist6ria.

Se pesquisarmos em livros de hist6ria a razao por que espa9o e tempo, outrora mesclados nos afazeres da vida humana, se sepa­raram e se afastaram no pensamento e pritica dos homens, encon­traremos com frequencia hist6rias edificantes de descobertas rea­lizadas pelos valentes cavaleiros da razao - fil6sofos intrepidos e cientistas corajosos. Aprendemos sohre astr6nomos que mediam distancias e a velocidade dos corpos celestes, sabre Newton calcu­lando as rela<;5es exatas entre a acelera<;iio e a disdncia percorrida pelo "corpo fisico" e seus enormes esfor9os para expressar tudo isso ern nllmeros - as mais abstratas e objetivas de todas as me­didas imaginaveis; ou sobre Kant, impressionado por suas realiza-96es a ponto de conceber espa9o e tempo como duas categorias transcendentalmente separadas e mutuamente independentes do conhecimento humano. E no entanto, por mais justificivel que seja a vocayao dos fil6sofos de pensar sub specie aeternitatis, e sempre urn peda9o do infinito e da eternidade, sua parte finita corrente­mente ao alcance da pra.tica humana, que fornece o "campo epis­temol6gico" para a reflexao filos6fica e ciencifica e o material em­pirico que pode ser trabalhado para construir verdades eternas; essa limita9ao, na verdade, separa os gran des pensadores dos ou­tros que desapareceram na hist6ria como fantasistas, fabricantes de mitos, poetas e outros sonhadores. E assim algo deve ter acon­tecido a amplitude e a capacidade de carga da pratica humana para que os soberanos espa9o e tempo repentinamente se ponham a encarar, olhos nos olhos, os fil6sofos.

Esse "alga" foi, podemos adivinhar, a constru9ao de veiculos que podiam se mover mais rapido que as pernas dos humanos ou dos animais; e veiculos que, em clara oposi<;ao aos humanos e aos cavalos, podem ser tornados mais e mais velozes, de tal modo que atravessar distfincias cada vez maiores tomar<l cada vez menos tempo. Quando tais meios de transporte nao-humanos e nao-ani­mais apareceram, o tempo necess<lrio para viajar deixou de ser caracteristica da distancia e do inflexivel '"wetware'; tornou-se, em vez disso, atributo da tecnica de viajar. 0 tempo se tornou o pro­blema do "hardware" que os humanos podem inventar, construir,

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apropriar, usar e controlar, nao do ~'wetware" impossivel de esticar, nem dos poderes caprichosos e extravagantes do vento e da agua, indiferentes a manipulac;io humana; por is so mesmo, 0 tempo se tornou urn fator independente das dimens5es inertes e imut:iveis das massas de terra e dos mares. 0 tempo e diferente do espa~o porque, ao contrario deste, pode ser mudado e manipulado; tor­neu-se urn fator de disrupc;io: o parceiro din3.mico no casamento

tempo-espa~o.

Numa declara~ao famosa, Benjamin Franklin disse que tempo e dinheiro; pode dizi3-lo porque antes ja havia definido 0 homem como o "animal que faz ferramentas': Resumindo a experii3ncia de mais dais seculos, John Fitzgerald Kennedy advertia seus conci­dadios norte-americanos a usarem o "'tempo como uma ferramen­ta, e nao como urn sofa': 0 tempo se tornou dinheiro depois de se ter tornado uma ferramenta ( ou arma?) voltada principalrnente a veneer a resis&ncia do espac;o: encurtar as disdincias, tornar exe­qi.iivel a supera~ao de obstaculos e limites a ambi~ao humana. Com essa arma, foi passive! estabelecer a meta da conquista do espa<;o e, com toda seriedade, iniciar sua implementac;3.o.

Os reis talvez pudessem viajar mais confortavelrnente que seus prepostos, e os barGes mais convenientemente que seus servos; mas, em principia, nenhum deles poderia viajar muito mais de­pressa que qualquer dos outros. 0 wetware tornava os humanos semelhantes; o hardware os tornava diferentes. Essas diferen~as (ao contrario das que derivavam da dissimilitude dos musculos humanos) eram resultados de a~oes humanas antes de se transfor­marem em condic;Oes de sua eficicia, e antes que pudessem ser utilizadas para criar ainda mais diferen~as, e diferen~as mais pro­fundas e menos contestaveis do que antes. Com o advento do vapor e do motor a explosao, a igualdade fundada no wetware chegou ao fim. Algumas pessoas podiam agora chegar on de que­riam muito antes que as outras; podiam tamb6m fugir e evitar serem alcan~adas ou detidas. Quem viajasse mais depressa podia reivindicar mais territ6rio - e controla-lo, mapea-lo e supervisio­na-lo -, mantendo distancia em rela~ao aos competidores e dei­

xando os intrusos de fora.

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Pode-se associar o comec;o da era moderna a v:lrias facetas das pr3.ticas humanas em mudaw;a, mas a emancipac;ao do tempo em rela~ao ao espa~o, sua subordina~ao a inventividade e a capacida­de tecnica humanas e, portanto, a coloca~ao do tempo contra o espa~o como ferramenta da conquista do espa<;o e da apropria~ao de terras nao sao urn momenta pior para come<;ar uma avaliac;ao que qualquer outro ponto de partida. A modernidade nasceu sob as estrelas da acelerac;ao e da conquista de terras, e essas estrelas formam uma constela~ao que contem toda a informa~ao sobre seu carater, conduta e destino. Para le-la, basta urn soci6logo treinado; nao e preciso urn astr6logo imaginativo.

A rela~ao entre tempo e espa<;o deveria ser de agora em diante processual, mutavel e dinamica, nao predeterminada e estagnada. A "conquista do espa<;o" veio a significar maquinas mais velozes. 0 movimento acelerado significava maior espac;o, e aceler~r o mo­vimento era o l:mico meio de ampliar o espac;o. Nessa conida, a expansao espacial era o nome do jogo e o espa<;o, seu objetivo; o espac;o era o valor, o tempo, a ferramenta. Para maximizar o valor, era necess<irio afiar OS instrumentos; muito da "racionalidade ins­trumental" que, como Max Weber sugeriu, era o principia opera­tive da civilizac;ao moderna, se centrava no desenho de modos de realizar mais rapidamente as tarefas, eliminando assim o tempo "improdutivo", ocioso, vazio e, portanto, desperdic;ado; ou, para contar a mesma hist6ria em termos dos efeitos e nao dos meios da ac;ao, centrava-se em preencher o espac;o mais densamente de ob­jetos e em ampliar o espa~o que poderia ser assim preenchido num tempo determinado. No limiar da moderna conquista do espa~o, Descartes, olhando a frente, identificava existencia e espacialidade, definindo tudo o que existe materialmente como res extensa. (Como Rob Shields espirituosamente diz, poder-se-ia reformular o famoso cog£to cartesiano, sem distorcer seu sentido, como ''ocupo

1 · ")17N . espac;o, ogo ex1sto . urn momenta em que essa conqu1sta per-de gas e se encerra, Michel de Certeau - olhando para m\s -declara que o poder diz respeito a territ6rio e fronteiras. (Como Tim Cresswell resumiu a posic;ao de Certeau recentemente, ''as armas dos fortes sao ... classifica~ao, delineamento, divisao. Os fortes dependem da 'corre~o do mapeamento"' 18; note-se que

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todas as armas arroladas sao opera~oes realizadas sobre o espa~o.) Poder-se-ia dizer que a diferen~a entre OS fortes e OS fracos e a diferen~a entre urn territ6rio formado como no do mapa- vigiado de perto e estritamente controlado - e urn territ6rio aberto a invasao. ao redesenho das fronteiras e a proje<;ao de novas mapas. Pelo menos foi isso que se tornou assim e assim permaneceu por

boa parte da hist6ria modema.

Da modernidade pesada a modernidade leve

Essa parte da hist6ria, que agora chega ao fim, poderia ser chama­da, na falta de nome melhor, de era do hardware, ou modernidade pesada- a modernidade obcecada pelo volume, uma modernida­de do tipo '"quanto maior, melhor': "tamanho e poder, volume e sucesso': Essa foi a era do hardware., a epoca das miquinas pesadas e cada vez mais desajeitadas, dos muros de fabricas cada vez mais longos guardando fabricas cada vez maiores que ingerem equipes cada vez maiores, das poderosas locomotivas e dos gigantescos transatHinticos. A conquista do espa~o era o objetivo supremo -agarrar tudo o que se pudesse manter, e manter-se nele, marcan­do-o com todos os sinais tangiveis da posse e tabuletas de "proi­bida a entrada'~ 0 territ6rio estava entre as mais agudas obsessOes modernas e sua aquisi<;ao, entre suas urg@ncias mais prementes -enquanto a manutenc;ao das fronteiras se tornava urn de seus vi­cios mais ubiquos, resistentes e inexoriveis.

A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra - volumosos, fortes e inamoviveis como os leitos de minerio de ferro e de carvao. Os imperios se espalhavam, preenchendo todas as fissuras do globo: apenas outros imperios de for~a igual ou superior punham limites a sua expansao. 0 que quer que ficasse entre os postos avanc;ados dos dominios imperials em competic;ao era vista como terra de ninguem, sem dono e, portanto, como um espa~o vazio - e o espa<;o vazio era urn desafio a a~ao e uma censura a pregui~a. (A ciencia popular da epoca captou seu clima com perfei~ao ao informar aos leigos que "a

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natureza nao tolera o vazio':) Ainda menos suport3vel era a ideia dos "espa~os em branco" do globe: ilhas e arquipelagos desconhe­cidos. massas de terra a espera de descoberta e colonizac;ao, OS

interiores intocados dos continentes, os "corac;;:5es das trevas" cla­mando por luz. Intrepidos exploradores eram os her6is das novas vers5es modernas das ~~hist6rias de marinheiros" de Walter Benja­min, dos sonhos da inf'ancia e da nostalgia adulta; entusiastica­mente aplaudidos na partida e aclamados com honrarias na che­gada, eles andaram, de expedi~ao em expedi~ao, por selvas, sava­nas eo gelo etemo em busca da cordilheira, !ago ou planalto ainda nao-cartografado. Tambem o paraiso modemo, como o Shangri­La de James Hilton, estava "h\ fora'; num Iugar ainda "nao desco­berto'; escondido e inacessivel, urn pouco alem de nao-passadas e nao-pass<iveis massas de montanhas ou desertos mortais, ao fim de uma trilha ainda niio marcada. A aventura e a felicidade, a riqueza e o poder eram conceitos geograficos ou "propriedades territoriais" - atados a seus lugares, inamoviveis e intransferiveis. lsso exigia muros impenetnlveis e postos avan<;ados rigorosos, guardas de fronteiras em permanente vigilia e localiza~iio secreta. (Urn dos segredos mais bern guardados da Segunda Grande Guerra, a base aerea norte-americana a partir da qual seria desfe­rido o mortal ataque sobre T6quio em 1942, era apelidada "Shan­gri-la':)

Riqueza e poder que dependem do tamanho e qualidade do hardware tend em a ser lentas, resistentes e complicadas de mover. Elas sao "encorpadas" e fixas, feitas de a~o e concreto e medidas por seu volume e peso. Crescem expandindo o Iugar que ocupam e protegem-se protegendo esse Iugar: o Iugar e simultaneamente seu viveiro, sua fortaleza e sua prisao. Daniel Bell descreveu uma das mais poderosas, invejadas e emuladas dessas prisoes/fortale­zas/viveiros: a planta "Willow Run" da General Motors em Michi­gan19 0 Iugar ocupado pelas instala~oes era de urn quil6metro por 400 metros. Thdo o material necessaria para a produ~iio de carros era reunido sob urn Unico e gigantesco teto, numa lmica e mons­truosa jaula. A 16gica do poder e a 16gica do controle estavam fundadas na estrita separa<;ao entre o "dentro" e o "fora" e numa vigilante defesa da fronteira entre eles. As duas 16gicas, reunidas

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em uma, estavam incorporadas na 16gica do tamanho, organizada em torno de urn preceito: maior significa mais eficiente. Na versio pesada da modernidade, o progresso significava tamanho crescen­te e expansao espacial.

Era a rotiniza~ao do tempo que mantinha o Iugar como urn todo compacta e sujeito a uma 16gica homogenea. (Bell invocava a principal ferramenta de rotiniza~ao ao chamar esse tempo de "menico'~)

Na conquista do espa~o, o tempo tinha que ser flexivel e ma­leivel, e acima de tudo tinha que poder encolher pela crescente capacidade de "devorar espa~o" de cada unidade: dar a volta ao mundo em 80 dias era urn sonho atraente, mas ser capaz de faze-lo em oito dias era infinitamente mais atraente. Voar sabre o Canal da Mancha e depois sobre o Atlantica eram os marcos pelos quais se media o progresso. Quando, porem, chegava o momenta da fortifica~ao do espa~o conquistado, de sua coloniza~ao e domesti­ca<;io, fazia-se necess:irio urn tempo rlgido, uniforme e inflexivel: o tipo de tempo que pudesse ser cortado em fatias de espessura semelhante e passive! de ser arranjado em seqiiencias mon6tonas e inalteriveis. 0 espa~o s6 era "possuido" quando controlado - e controle significava antes e acima de tudo ""amansar o tempo': neutralizando seu dinamismo interne: simplificando, a uniformi­dade e coordena~ao do tempo. Era maravilhoso e excitante alcan-. <;ar as nascentes do Nilo antes que outros exploradores as alcan­<;assem, mas urn trem adiantado ou pe<;as de autom6veis que che­gassem a Jinha de montagem antes das Outras eram OS pesadeJos mais assustadores da modernidade pesada.

0 tempo rotinizado se juntava aos altos muros de tijolos arre­matados por arame farpado ou cacos de vidro e portoes bem-guar­dados para proteger o Iugar contra intrusos; tambem impedia que OS de dentro saissem a vontade. A "fib rica fordista'; 0 modelo mais cobi~ado e avidamente seguido da racionalidade planejada no tempo da modernidade pesada, era o Iugar do encontro face a face, mas tambem do voto de "ate que a morte nos separe" entre o capital e o trabalho. Esse casamento era de conveniencia e ne­cessidade - raramente de amor -, mas era -para durar "para sem­pre" ( o que quer que is so significasse em termos da vida indivi-

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dual), e com freqiiencia durava. Era essencialmente monogamico - e para ambas as partes. 0 div6rcio estava fora de questao. Para o bern ou para o mal, as partes unidas no casamento deveriam permanecer unidas; uma nao poderia sobreviver sem a outra.

0 tempo rotinizado prendia o trabalho ao solo, enquanto a massa dos predios da fibrica, o peso do maquinirio e o trabalho permanentemente atado acorrentavam o capital. Nem o capital nem o trabalho estavam ansiosos para mudar, e nem seriam capa­zes dis so. Como qualquer outro casamento que nao contasse com a valvula de escape do div6rcio sem dor, a hist6ria dessa conviven­cia era cheia de som e furia, varrida por irrup~oes de inimizade e marcada por uma guerra de trincheiras ligeiramente menos dra­m:ltica, mas mais constante e persistente, dia sim, dia nao. Em nenhum momenta, porem, os plebeus pensaram em abandonar a cidade; os patricios tampouco eram livres para faze-lo. E nem era necessaria a orat6ria de Menenius Agrippa para manter a ambos em seus lugares. A propria intensidade e perpetuidade do conflito era viva evidencia do destino comum. 0 tempo congelado da ro­tina de fabrica, junto com os tijolos e argamassa das paredes, imobilizava o capital tao eficientemente quanta o trabalho que este empregava. Thdo isso mudou, no entanto, com o advento do capitalismo de software e da modernidade "!eve': 0 economista da Sorbonne Daniel Cohen resume: "Quem come~a uma carreira na Microsoft nao tern a minima ideia de onde ela terminari Quem come~ava na Ford ou na Renault podia estar quase certo de ter­minar no mesmo lugar~'20

Nao estou certo de que seja legitime utilizar o termo "carreira" para os dois casos, como Cohen faz. "Carreira" evoca uma trajet6-ria estabelecida, nao muito diferente do processo da "tenurd' (es­tabilidade) das universidades norte-americanas, com uma sequen­cia de estagios estabelecida de antemao e marcada por condi~oes de entrada e regras de admissao razoavelmente claras. As "carrei­ras" tendem a ser feitas por pressoes coordenadas de espa~o e tempo. 0 que quer que aconte~a aos empregados da Microsoft ou seus incont.iveis admiradores e imitadores - onde tudo o que ocupa os gerentes sao "formas organizacionais mais soltas e por isso mais adequadas ao fluxo" e onde a organiza~ao de neg6cios

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e cada vez mais vista como uma tentativa permanente, nao-conclu­siva, "de formar uma ilha de adaptabilidade superior"; num mun­do percebido como "mtiltiplo, complexo e ripido e, portanto, como "ambiguo: 'vago' ou ~pl:lstico"'21 - milita contra estruturas duriveis, e notadamente contra estruturas que envolvem uma ex­pectativa proporcional a dura~ao costumeira da vida titil. Em tais condi<;5es a ideia de uma "carreira" parece nebulosa e inteiramen­te fora de Iugar.

Essa e, contudo, uma mera questao terminol6gica. Seja como for, a questao principal e que a compara~ao de Co.hen capta sem erro o divisor de iguas na hist6ria moderna do tempo e alude ao impacto que essa mudan9a come~a a ter na condi9iio da existencia humana. A mudan9a em questao e a nova irrelevancia do espa~o, disfar9ada de aniquila9ao do tempo. No universo de software da viagem a velocidade da luz, 0 espa90 pode ser atravessado, literal­mente, em '"tempo nenhum"; cancela-se a diferen<;a entre "lange" e '"aqui': 0 espac;o nao imp6e mais limites a ac;ao e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta. Perdeu seu "valor estrategico': diriam os especialistas militares.

Todos OS valores, observou Simmel, sao "valiosos" na medida em que devem ser conquistados "pela supera9ao de outros valo­res"; e o "'desvio da busca por certas coisas" que nos faz "vS-las como valiosas'~ Sem usar essas palavras, Siininel conta a hist6ria do "fetichismo do valor": as coisas, escreveu, "valem exatamente o que custam"; e essa circunstineia parece perversamente "significar que elas CUStaffi 0 que valem': Silo OS obst:iculos que precisam ser superados no caminho que leva a sua apropria9a0, "a tensao da !uta por elas': que as fazem valiosas22 Se tempo nenhum precisa ser perdido ou superado - "sacrificado"- para chegar mesmo aos lugares mais remotos, os lugares silo destitu:idos de valor, no sen­tido posto por Simmel. Quando as distancias podem ser percorri­das ( e assim as partes do espa90 atingidas e afetadas) a velocidade dos sinais eletrOnicos, todas as referencias ao tempo parecem, como diria Jacques Derr-ida, "sour rallm!: A "instantaneidade" apa­rentemente se refere a urn movimento muito r:ipido e a urn tempo rnuito CUrtO, mas de fato denota a ausencia do tempo COffiO fator do evento e, por isso mesmo, como elemento rio c<ilculo do valor.

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0 tempo nao e mais 0 "desvio na busca'~ e assim nao mais confere valor ao espa9o. A quase·instantaneidade do tempo do software anuncia a desvaloriza9iio do espa9o.

Na era do hardware, da modernidade pesada, que nos termos de Max Weber era tambem a era da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era o espa9o, pudesse ser maxi­mizado; na era do software, da modernidade !eve, a eficitcia do tempo como meio de alcan9ar valor tende a aproximar-se do infi­nito, com o efeito paradoxa! de nivelar por cima ( ou, autes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivos po­tenciais. 0 ponto de interroga9ao moveu-se do !ado dos meios para o !ado dos fins. Se aplicado a rela~ao tempo-espa9o, isso significa que, como todas as partes do espa9o podem ser atingidas no mesmo periodo de tempo (isto e, em "tempo nenhum"), ne­nhuma parte do espa90 e privilegiada, nenhuma tern urn "valor e•pecial': Se todas as partes do espa9o podem ser alcan9adas a qualquer momento, nao hit razao para alcan~ar qualquer uma de­las num dado memento e nem tampouco raziio para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas. Se souber­mos que podemos visitar urn lugar em qualquer momenta que quisermos, niio h<l urgencia em visit<l-lo nem em gastar dinheiro em uma passagem v:ilida para sempre. H:i ainda menos raziio para suportar o gasto da supervisao e administra<;iio permanentes, do laborioso e arriscado cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme interesses de memento e "re­leviincias t6picas':

A sedutora leveza do ser

0 tempo instantaneo e sem substancia do mundo do siftware e tambem urn tempo sem conseqiiencias. "Instantaneidade" signifi­ca realiza<;iio imediata, "no ato" - mas tambem exaustiio e desa­parecimento do interesse. A disdincia em tempo que separa o co­me~o do fun esti diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas no<;5es, que outrora eram usadas para marcar a passagem do tern-

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po, e portanto para calcular seu "valor perdido'; perderam muito de seu significado - que, como todos os significados, derivava de sua r.igida oposi~ao. Hi apenas '"mementos"- pontos sem dimen­soes. Mas, sera ainda urn tal tempo - tempo com a morfologia de urn agregado de momentos - o tempo "como o conhecemos"? A expressao "momenta de tempo" parece, pelo menos em certos aspectos vitais, urn oximoro. Teria o tempo, depois de matar o espa<;o enquanto valor, cometido suiddio? Nao teria sido o espa<;o apenas a primeira baixa na corrida do tempo para a auto-aniqui­la<;io?

0 que foi aqui descrito e, claro, uma condi<;iio liminar na his­t6ria do tempo - o que parece ser, em seu estclgio presente, a tendincia Ultima des sa hist6ria. Par mais prOximo de zero que seja 0 tempo necessario para alcan<;ar urn destine espacial, ele ainda nao chegou Ia. Mesmo a tecnologia mais avan<;ada, armada de processadores cada vez mais poderosos, ainda tern muito caminho pela frente ate atingir a genuina "instantaneidade'~ E em verdade a conseqU@ncia 16gica da irrelev&ncia do espac;o ainda nao se rea­lizou plenamente, como tamb€m nao se realizou a leveza e a infi­nita volatilidade e flexibilidade da agencia humana. Mas a condi­c;ao descrita e, de fato, 0 horizonte do desenvolvimento da moder­nidade !eve. E, o que e ainda mais importante, e o ideal do buscar sempre, ainda que ( ou sera porque?) para nunca alcan<;ar plena­mente, de seus principais operadores, o ideal que, no surgimento de uma nova norma, penetra e satura cada 6rgao, tecido e celula do corpo sociaL Milan Kundera retratou "a insustentavelleveza do ser" como o centro da tragedia do mundo moderno. A leveza e a velocidade (juntas!) foram oferecidas por ftalo Calvino, inventor de personagens totalmente livres ( completamente livres porque sao inalcan~aveis, escorregadios e impossiveis de prender) - o barao que saltava sabre as clrvores eo cavaleiro sem corpo - como as Ultimas e mais plenas encarnac;5es da eterna func;ao emancipa­t6ria da arte liter:lria.

Ha mais de 30 anos (em seu classico Fenomeno burocratico), Michel Crozier identificava a domina<;io (em todas suas variantes) com a proximidade das fontes da incerteza. Seu veredicto ainda vale: quem ruanda sao as pessoas que conseguem manter suas

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ac;5es livres, sem normas e portanto imprevisiveis, ao mesmo tem­po em que regulam normativamente (rotinizando e portanto tor­nando mon6tonas, repetitivas e previsiveis) as a<;iles dos protago­nistas. Pessoas com as maos livres mandam em pessoas com as miios atadas; a liberdade das primeiras e a causa principal da falta de liberdade das ultimas - ao mesmo tempo em que a falta de liberdade das ultimas e 0 significado ultimo da liberdade das pnme1ras.

Nesse aspecto, nada mudou com a passagem da modernidade pesada a !eve. Mas a moldura foi preenchida com urn novo con­teudo; mais precisamente, a busca da "proximidade das fontes da incerteza" reduziu-se a urn s6 objetivo - a instantaneidade. As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentfineo do movimento, sao as pessoas que agora mandam. E sao as pessoas que nao podem se mover tao rapido - e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que nao podem deixar seu Iugar quando quiserem- as que obedecem. A domina<;ao consiste em nossa propria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar "em outro Iugar'; e no direito de decidir sabre a velocidade com que isso ser:l feito - e ao mesmo tempo de destituir os que estao do !ado dominado de sua capaci­dade de parar, ou de limitar seus movimentos ou ainda torn:l-los mais lentos. A batalha contempora.nea da domina<;ao e travada entre forc;as que empunham, respectivamente, as armas da acele­rac;ao e da procrastinac;ao.

0 acesso diferencial a instantaneidade e crucial entre as ver­soes correntes do fundamento duradouro e indestrucivel da clivi­sao social em todas as suas formas historicamente cambiantes: o acesso diferencial a imprevisibilidade e, portanto, a liberdade. Num mundo povoado por servos que semeavam a terra, saltar sobre as arvores era a receita perfeita dos baroes para a liberdade. E a facilidade corn que os baroes de hoje se comportam de modo semelhante ao saltar sabre as :lrvores que mantem os sucessores dos servos em seus lug ares, e e a imobilidade for<;ada desses su­cessores, sua ligac;ao a terra, que permite que OS barGes continuem a saltar. Por mais profunda e deprimente que seja a miseria dos servos, nao h;i ninguem contra quem se rebelar, e se tivessem se

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rebelado nao teriarn alcan~ado os ripidos alvos de sua rebeliao. A modernidade pesada mantinha capital e trabalho numa gaiola de ferro de que nao podiam escapar.

A modernidade !eve permitiu que urn dos parceiros saisse da gaiola. A modernidade "s6lida" era uma era de engajamento mu­tuo. A modernidade "fluida" e a epoca do desengajamento, da fuga ficil e da persegui~ao in uti!. Na modernidade "liquida" man­dam os mais escapadic;os, os que sao livres para se mover de modo

imperceptive!. Karl Polanyi (em A grande tranrformm;iio: a origem pol{tica e

economica de nosso tempo, publicado em 1944) proclamou a fic~ao do tratarnento do trabalho como "mercadoria" e desenvolveu as conseqiiencias do arranjo social fundado nessa fic~ao. 0 trabalho, observou Polanyi, nao pode ser uma mercadoria (pelo menos nao uma mercadoria como as outras ), dado que nao pode ser vendido ou comprado separado de seus portadores. 0 trabalho sobre o qual Polanyi escrevia era de fato trabalho incorporado: trabalho que nao podia ser movido sem mover os Corpos dos trabalhadores. S6 se podia alugar e empregar trabalho humano junto com o resto dos corpos dos trabalhadores, e a inercia dos corpos alugados punha limites a liberdade dos empregadores. Para supervisionar o trabalho e canalizi-lo conforme o projeto era preciso administrar e vigiar os trabalhadores; para controlar o processo de trabalho era preciso controlar os trabalhadores. Esse requisito colocou o capital e o trabalho face a face e, para o bern ou para o mal, os manteve juntos. 0 resultado foi muito conflito, mas tambem muita acomodac;ao mUtua: icidas acusac;Oes, lutas amargas e pouco amor perdido, mas tambem urn tremendo engenho na formula~ao de regras de convivio razoavelmente satisfat6rias ou apenas suportcl­veis. Revolu~oes e o Estado de bem-estar foram o resultado nao previsto mas inevitivel da condi~ao que impedia a separa~ao como op~ao factivel e viivel.

Vivemos agora uma outra "grande transformac;ao': e urn de seus aspectos ·mais vislveis e urn fen&meno que e 0 exato oposto da condi~ao que Polanyi supunha: a "descorporifica~ao" daquele tipo de trabalho humano que serve como principal fonte de nutri­~ao, ou campo de pastagem, para o capital contemporiineo. Insta-

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lac;Oes de vigiHincia e treinamento a !a Pan6ptico, volumosas, con­fusas e desajeitadas, nao sao mais necessirias. 0 trabalho foi liber­tado do Pan6ptico, mas, o que e mais importante, o capital se livrou do peso e dos custos exorbitantes de mante-lo; o capital ficou livre da tarefa que o prendia e o for~va ao enfrentamento direto com os agentes explorados em nome de sua reprodu~ao e engrandeci­mento.

0 trabalho sem corpo da era do software nao mais amarra o capital: permite ao capital ser extraterritorial, volitil e inconstante. A descorporifica~ao do trabalho anuncia a ausencia de peso do capital. Sua dependencia mutua foi unilateralmente rompida: en­quanto a capacidade do trabalho e, como antes, incompleta e ir­realizavel isoladamente, o inverso niio mais se aplica. 0 capital viaja esperanc;oso, contando com breves e lucrativas aventuras e confiante em que nao haver:! escassez delas ou de parceiros com quem compartilhi-las. 0 capital pode viajar ripido e !eve, e sua leveza e mobilidade se tornam as fontes mais importantes de in­certeza para todo o resto. Essa e hoje a principal base da domina­~ao e o principal fator das divisoes sociais.

Volume e tamanho deixam de ser recursos para se tornar ris­cos. Para os capitalistas que preferem trocar maci~os predios de escrit6rios por cabines em halOes, flutuar e o mais lucrative e desejado dos recursos; e a melhor maneira de garantir a flutua<;iio e jogar peJa amurada to do peso nao-vitaJ, deixando OS membros nao-indispensiveis da tripula~ao em terra. Urn dos itens mais em­bara~osos do lastro de que e preciso livrar-se e a onerosa tarefa da administra9iio e supervisao de uma equipe grande - tarefa que tern a tendencia irritante de crescer incessantemente e aumentar de peso com a adi~ao de camadas sempre novas de compromissos e obriga~oes. Sea "ciencia da administra~ao" do capitalismo pes a­do se centrava em conservar a "mao-de-obra" e fon;:l-la ou subor­ni-la a permanecer de prontidao e trabalhar segundo os prazos, a arte da administra<;iio na era do capitalismo leve consiste em man­ter afastada a "mao-de-obra humana" ou, melhor ainda, for~i-la a aair. Encontros breves substituem engajamentos duradouros. Nao te faz uma planta~ao de limoeiros para espremer urn limao.

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0 equivalente gerencial da lipoaspira9ao se tornou o principal estratagema da arte de administrar: emagrecer, reduzir de tama­nho (downsizing), superar, fechar ou vender algumas unidades porque nao sao suficientemente eficazes, e outras porque e mais barato deixar que lutem por sua conta pela sobrevivencia do que assumir a tarefa cansativa e demorada da supervisao gerencial, sao as principais aplica9iies dessa nova arte.

Alguns observadores se apressaram a conduir que "maier" nao e mais considerado "mais eficiente': Nessa apresenta<;iio muito geral, porem, a conclusao nao e correta. A obsessao pela redu9aO de tamanho e urn complemento inseparavel da mania das fusiies. Os melhores jogadores nesse campo sao conhecidos por negociar ou for9ar fusiies para adquirir mais espa9o para opera9iies de re­du9ao de tamanho, ao mesmo tempo em que a redu9ao "ate o ossa" dos ativos e amplamente aceita como precondi<;1io funda­mental para o sucesso dos pianos de fusao. Fusiies e redu9ao de tamanho nao se contrapOem; ao contririo, se condicionam e refor-9am mutuamente. E urn paradoxa apenas aparente: a contradi9ao aparente se dissolve se considerarmos uma '}lova e melhorada" apresenta9ao do principio de Michel Crozier. E a mistura de estra­tegias de fusao e redu9ao de tamanho que oferece ao capital e ao poder financeiro o espa9o para se mover rapidamente, tornando a amplitude de sua viagem cada vez mais global, ao mesmo tempo em que priva o trabalho de seu poder de barganha e de ruido, imobilizando-o e atando suas m3.os ainda mais firmemente.

A fusao prenuncia uma corda mais longa para o capital esguio, flutuante, ao estilo Houdini, que transformou a evasao e a fuga nos maiores veiculos de sua dominac;ao, substituiu compromissos du­radouros por neg6cios de curto-prazo e encontros fugazes, man­tendo sempre aberta a possibilidade do "ato de desaparecimento': 0 capital ganha mais campo de manobra - mais abrigos para esconder-se, maier matriz de permutac;Oes possiveis, mais ample sortimento de transformac;5es disponiveis, e portanto mais forc;a para manter o trabalho que emprega sob controle, juntamente com a capacidade de lavar as maos das conseqi.i@ncias devastado­ras de sucessivas rodadas de reduc;ao de tamanho; essa e_ a cara contemporanea da domina9ao - sobre aqueles que ja foram atin-

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gidos e sobre os que temem estar na fila para golpes futuros. Como a Associa9ao Norte-Americana de Administra9ao aprendeu com urn estudo que comissionou, "o moral e a motiva9ao dos trabalha­dores caiu acentuadamente depois de varios arrochos de redu9a0 de tamanho. Os trabalhadores sobreviventes esperavam pelo novo golpe de foice em vez de exultarem com a vit6ria sobre os demi­tidos':23

A competic;ao pela sobreviv@ncia certamente nao e apenas o destino dos trabalhadores - ou, de maneira mais geraL de todos os que estao do !ado que sofre a mudan9a da rela9ao entre tempo e espa~o. Ela domina de alto a baixo a empresa obcecada com a "dieta de emagrecimento'~ Os gerentes devem reduzir o tamanho de setores que empregam trabalhadores para continuar vivos; a alta ger@ncia deve reduzir o tamanho de seus escrit6rios para me­recer o reconhecimento das bolsas, ganhar os votes dos acionistas e garantir o direito aos cumprimentos quando completar a rodada de cones. Depois de come<;ada, a tendencia "'ao emagrecimento" ganha for9a propria. A tendencia se torna autopropelida e auto­acelerada, e (como os empresarios perfeccionistas de Max Weber, que nao mais precisavam das exorta~iies de Calvina ao arrependi­mento) o motivo original - maior eficiencia - torna-se cada vez mais irrelevante; o medo de perder o jogo da competi9ao, de ser ultrapassado, deixado para tras ou excluido dos neg6cios e sufi­ciente para manter o jogo da fusao/redu9ao de tamanho. Esse jogo se torna cada vez mais seu prOprio prop6sito e sua prOpria recom­pensa; melhor ainda, 0 jogo ja nao precisa de urn prop6sito, se continuar nele for sua Unica recompensa.

Vida instantanea

Richard Sennett foi durante muitos anos urn observador regular do encontro mundial dos poderosos, realizado anualmente em Davos. 0 tempo e o dinheiro gastos nas viagens a Davos deram belo retorno; Sennett trouxe de suas escapadas uma serie de per­cepc;Oes sabre OS motives e trac;os de carater que movimentam OS

principais atores no jogo global de hoje. A julgar por seu relato,24

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Sennett ficou particularmente impressionado pela personalidade, desempenho e pelo credo publicamente articulado de Bill Gates. Gates, diz Sennett, "parece livre da obsessao de agarrar-se as coi­sas. Seus produtos surgem furiosamente para desaparecer tao ra­pido como apareceram, enquanto Rockefeller queria possuir oleo­dutos, predios, maquinas ou estradas-de-ferro por Iongo tempo': Gates repetidamente declarou preferir "colocar-se numa rede de possibilidades a paralizar-se num trabalho particular': 0 que mais chamou a aten~ao de Sennett parece ter sido o desejo explicito de Gates de "destruir o que fizera diante das demandas do momento imediato': Gates parecia urn jogador que "floresce em meio ao deslocamento': Tinha cui dado em nao desenvolver ape go ( e espe­cialmente apego sentimental) ou compromisso duradouro com nada, inclusive suas pr6prias cria~oes. Nao tinha medo de tomar o caminho errado, pois nenhum caminho o manteria na mesma di­re~ao por muito tempo e porque voltar atras ou para o outro lado eram op<;Oes constante e instantaneamente disponlvei;s. Pode-se dizer que, com exce~ao da crescente gama de oportunidades aces­slveis, nada mais se acumulava ou aumentava na trilha da vida de Gates; OS trilhos continuavam a ser desmontados a medida que a locomotiva avan~ava alguns metros; as pegadas eram apagadas, as coisas eram descartadas tao rapidamente como tinham sido colhi­das - e logo esquecidas.

Anthony Flew cita urn dos personagens de Woody Allen: "Eu nao quero a imortalidade por minha obra, eu quero alcan~ar a imortalidade nao morrendo:'25 Mas o sentido da imortalidade de­riva do sentido atribuido a vida sabidamente mortal; a preferencia por "nao morrer" nao e tanto uma escolha de outra forma de imortalidade ( uma altemativa a "imortalidade pela obra"), mas uma declara~ao de despreocupa~ao com a eterna dura~ao em fa­vor do carpe diem. A indiferen~a em rela~ao a dura~ao transforma a imortalidade de uma ideia numa experiencia e faz dela urn ob­jeto de consume imediato: eo modo como se vive o momenta que faz desse momenta uma '<experiencia imortal'~ Se a "infinitude" sobre~ive a transmuta~ao, ·e apenas como medida da profundida­de ou intensidade da Erlebnis. 0 ilimitado das sensa~oes possiveis ocupa o Iugar que era ocupado nos sonhos pela dura~ao infinita.

Tempo/Espa~o 145

A instantaneidade ( anula~ao da resistencia do espa~o e liquefa~ao da rnaterialidade dos objetos) faz com que cada momento pare~a ter capacidade infinita; e a capacidade infinita significa que nao ha limites ao que pode ser extraido de qualquer momento- por mais breve e "fugaz" que seja.

0 "Iongo prazo'; ainda que continue a ser mencionado, por h3.bito, e uma concha vazia sem significado; se o infinito, como o tempo, e instand.neo, para ser usado no ato e descartado imedia­tamente, entao "mais tempo" adiciona pouco ao que o momenta ja ofereceu. Nao se ganha muito com considera~oes de "Iongo prazo': Se a modernidade salida punha a dura~ao eterna como principal motivo e prindpio da a~ao, a modernidade "fluida" nao tern fun~ao para a dura~ao eterna. 0 "curto prazo" substituiu o "Iongo prazo" e fez da instantaneidade seu ideal ultimo. Ao rnes­mo tempo em que promove o tempo ao posto de conteiner de capacidade infinita, a modernidade fluida dissolve - obscurece e desvaloriza - sua dura<;Uo.

Ha 20 anos Michael Thompson publicou urn estudo pioneiro do tortuoso destino hist6rico da distin~ao duravel/transit6rio26

Objetos "duraveis" se destinam a ser preservados por muito e muito tempo; eles chegam a inco:rporar tanto quanta possivel a no~ao abstrata e eterea de eternidade; de fato, a imagem de eter­nidade e extrapolada da postulada ou projetada antiguidade dos "durclveis': Atribui-se aos objetos duriveis urn valor especial, e eles sao cobi~ados e estimados por sua associac;ao com a imortalidade - valor ultimo, "naturalmente" desejado e que nao requer argu­mentos para ser abra~ado. 0 oposto dos objetos "duraveis" sao os ~~transit6rios': destinados a serem usados - consumidos - e a desaparecer no processo de seu consumo. Thompson observa que "aquelas pessoas pr6ximas do topo ... podem garantir que seus pr6prios objetos sejam sempre duraveis e os dos outros sejam sempre transit6rios ... Elas nao podem perdd' Thompson supoe que 0 desejo de "tornar duraveis seus pr6prios objetos" e uma constante das "pessoas pr6ximas do topo"; talvez o que as colo que la seja mesmo essa capacidade de tamar os objetos duraveis, de acumuli-los, manH~-los e asseguri-los contra roubo e deteriora­~iio; mais ainda: de monopoliza-los.

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Esses pensamentos tinham uma aura de verdade ( ou pelo me­nos de credibilidade) entre as realidades da modernidade s6lida. Sugiro, entretanto, que o advento da modernidade fluida subver­teu radicalmente essa credibilidade. E a capacidade, como a de Bill Gates, de encurtar o espa<;o de tempo da durabilidade, de esque­cer o "Iongo prazo': de enfocar a manipula<;ao da transitoriedade em vez da durabilidade, de dispor levemente das coisas para abrir espa<;o para outras igualmente transit6rias e que deverao ser utili­zadas instantaneamente, que e 0 privilegio dos de cima e que faz com que estejam por cima. Manter as coisas por Iongo tempo, alem de seu prazo de "'descarte" e alem do momenta em que seus "substitutos novos e aperfeic;oados" estiverem em oferta e, ao con­tr:l.rio, sintoma de priva<;ao. Uma vez que a infinidade de possibi­lidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atra<;ao e passa de urn recurso a urn risco. Talvez seja mais adequado observar que a propria linha de demar­ca<;ao entre u "dunlvel" e o '"transit6rio'~ outrora foco de disputa e engenharia, foi substituida pela policia de fronteiras e por bata­lh6es de construtores.

A desvaloriza<;ao da imortalidade nao pode senao anunciar uma rebeliao culturaL defensavelmente o marco mais decisive na hist6ria cultural humana. A passagem do capitalismo pesado ao !eve, da modernidade s6lida a fluida, pode vir a ser urn ponto de inflexao mais radical e rico que o advento mesmo do capitalismo e da modernidade, vistos anteriormente como os. marcos cruciais da hist6ria humana, pelo menos desde a revolu<;ao neolitica. De fato, em toda a hist6ria humana o trabalho da cultura consistiu em peneirar e sedimentar duras sementes de perpetuidade a partir de transit6rias vidas humanas e de ac:;6es humanas fugazes, em invo­car a dura<;ao a partir da transitoriedade, a continuidade a partir da descontinuidade, e em assim transcender os limites impastos pela mortalidade humana, utilizando homens e mulheres mortals a servi<;o da especie humana imortal. A demanda por esse tipo de trabalho esta diminuindo hoje em dia. As conseqiiencias dessa demand a em queda estao para ser vistas e sao dificeis de visualizar de antemao, pois nao M precedentes a lembrar ou em que se apmar.

Tempo/Espac;o 147

A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a moda­lidade do convivio humano - e mais conspicuamente o modo como os humanos cui dam ( ou nao cui dam, se for o caso) de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como trans formam ( ou nao trans formam, se foro caso) certas quest6es em quest6es coletivas.

A "teoria da escolha publica': que hoje faz avan<;os impressio­nantes na ciencia politica, captou corretamente a nova inflexao (ainda que- como freqiientemente acontece quando novas pr<lti­cas humanas montam urn novo cenirio para a imagina<;ao humana - tenha se apressado em generalizar desenvolvimentos relativa­mente recentes como a verdade eterna da condi<;iio humana, su­postamente desapercebida ou negligenciada pela "pesquisa ante­rior"). Segundo Gordon Tullock, urn dos mais importantes promo­tares da nova moda te6rica, "a nova abordagem come<;a supondo que os eleitores sao muito parecidos com consumidores e que os politicos sao muito parecidos com homens de neg6cios': Cetico em rela<;iio ao valor da teoria da "escolha publica; Leif Lewin comentou, caustico, que OS pensadores da esco!a da "esco!ha pu­blica" "retratam o hom em politico como ... urn homem das caver­nas miope': Lewin pensa que isso estU inteiramente errado. Pode ter sido verdade na epoca dos trogloditas, "antes que 0 homem 'descobrisse o amanha' e aprendesse a fazer calculos de Iongo prazo': mas nao agora, em nossos tempos modernos, quando todos sabemos, ou pelo menos a maioria, tanto eleitores como politicos, que "amanha nos encontraremos novamente" e, portanto, a credi­bilidade e "o recurso mais valioso do politico"27

( enquanto a atri­bui<;ao da confian<;a, podemos acrescentar, e a arma mais zelosa­mente utilizada pelo eleitor). Para apoiar sua critica da teoria da "escolha pUblica': Lewin cita numerosos estudos empiricos que mostram que poucos eleitores votam pensando em seus bolsos, e a maioria deles declara que o que guia seu cornportamento eleito­ral e o estado do pais como urn todo. Isso e, diz Lewin, o que se poderia esperar; is sO e, sugiro eu, 0 que OS eleitores entrevistados acharam que se esperava que eles dissessem eo que seria adequa­do. Se considerarmos a not6ria disparidade entre o que fazemos e como narramos nossas a<;6es, nao rejeitariamos de uma vez as afirma<;6es dos te6ricos da "escolha publica" ( 0 que e diferente de

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aceitar sua validade universal e atemporal). Nesse caso, sua teoria pode ter ganhado percep~ao ao se livrar do que foi tornado, acri­ticamente, como "dado empirico'~

:E verdade que "uma vez" os homens das cavernas "descobri­ram o amanha': Mas a hist6ria e tanto urn processo de esquecer como de aprender, e a memoria e famosa par sua seletividade. Talvez nos "encontremos novamente amanh:r: Mas talvez nii.o, ou entii.o o "n6s" que nos encontraremos amanhii nao seja o mesmo "nos" de ha pouco. Se for esse o caso, a credibilidade e a atribui­<;iio de confianc;a serii.o recursos ou riscos?

Lewin lembra a parabola dos ca~adores de veados de Rous­seau. Antes que os homens "descobrissem o amanhii." - corre a hist6ria - poderia acontecer que urn cat;ador, em vez de esperar pacientemente que o veado surgisse da floresta, se distra.isse, par causa da fame, com urn coelho que passava, a despeito de que sua cota de carne do veado cac;ado em conjunto fosse ser muito maior que o coelho. E verdade. Mas tambem acontece que hoje poucas equipes de ca~a se mantem unidas pelo tempo que o veado leva para aparecer, de modo que quem coloca sua fe nos beneficios do empreendimento conjunto pode sofrer amarga decep~ao. E tam­bern acontece que, diferentemente dos veados que, para serem alcan~ados e capturados, requerem ca~adores que cerrem fileiras, mantenham-se ombro a ombro e ajam solidariamente, os coelhos, adequados ao consume individual, sao muitos e diferentes, e de­mandam pouco tempo para serem ca~ados, escalpelados e cozidos. Essas sao tambem descobertas - novas descobertas, talvez tao ferteis em conseqi.iencias como uma vez o foi a "descoberta do amanhii'~

A "escolha racional" na era da instantaneidade significa huscar a grat!ficar;do evitando as conseqiibzcias, e particularmente as respon­sabilidades que essas conseqi.iencias podem implicar. 'fra~os dura­veis da gratifica~ao de hoje hipotecam as chances das gratifica~oes de amanha. A dura~ao deixa de ser urn recurso para tornar-se urn risco; 0 mesmo pode ser dito de tudo 0 que e volumoso, solido e pesado - tudo o que impede ou restringe o movimento. Gigantes­cas plantas industriais e corpos volumosos tiveram seu dia: outrora testemunhavam o poder e a for~a de seus donas; hoje anunciam

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a derrota na prOxima rociada de acelerac:;iio e assim sinalizam a impotencia. Corpo esguio e adequa~ao ao movimento, roupa !eve e tenis, telefones celulares (inventados para 0 usa dos nomades que tern que estar "constantemente em cantata"), pertences por­titeis OU descartiveis - silo OS principais objetos culturais da era da instantaneidade. Peso e tamanho, e acima de tudo a gordura (literal ou metaforica) acusada da expansao de ambos, comparti­lham o destino da durabilidade. Sao os perigos que devemos temer e contra os quais devemos lutar; melhor ainda, manter distancia.

E dificil conceber uma cu!tura indiferente a eternidade e que evita a durabilidade. Tamhem e dificil conceber a moralidade in­diferente as conseqi.iencias das a~oes humanas e que evita a res­ponsabilidade pelos efeitos que essas a~oes podem ter sabre ou­tros. 0 advento da instantaneidade conduz a cultura e a etica humanas a urn territ6rio nao-mapeado e inexplorado, onde a maioria dos hilbitos aprendidos para lidar com os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido. Na famosa frase de Guy Debord, "os hom ens se parecem mais com seus tempos que com seus pais'~ E os homens e mulheres do presente se distinguem de seus pais vivendo num presente "que quer esquecer o passado e nao parece mais acreditar no futuro"28. Mas a memOria do passado e a con­fian~a no futuro foram ate aqui os dais pilares em que se apoiavam as pontes culturais e morais entre -a transitoriedade e a durabili­dade, a mortalidade humana e a imortalidade das realiza~oes hu­manas, e tambem entre assumir a responsabilidade e viver o mo­mento.

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4 • TRABALHO

A Prefeitura de Leeds, cidade em que passei OS ultimos 30 anos, e urn monumento majestoso as enormes ambi<;Oes e autoconfianc;a dos capitaes da Revolu~ao IndustriaL Construida em meados do seculo XIX, grandiosa e rica, pesada e em pedra, foi feita para durar para sempre, como o Partenon e os templos egipcios cuja arquite­tura imita. Cont€.m, como pe<;a central, uma enorme sala de assem­bl€.ias onde os cidadaos deviam se encontrar regularmente para debater e decidir os pr6ximos passos na dire~ao da maior gloria da cidade e do Imperio Britanico. Sob o teto desse salao estao detalhadas em letras douradas e purpura as regras que devem guiar quem quer que se junte a essa caminhada. Entre os princl­pios sacrossantos da etica burguesa segura e assertiva, como "ho­nestidade e a melhor politica': <o auspicium melioris aevt' ou '"lei e ordem': urn preceito chama atew;ao por sua firme e segura brevi­dade: "Para frente". Ao contrfu-io do visitante contempor&neo da Prefeitura, os antigos cidadaos que compuseram o c6digo nao te­rao tido dllvidas sobre seu significado. Seguramente nao sentiram necessidade de perguntar o sentido da ideia de "andar para fren­te'; chamada "progresso': Eles sabiam a diferen~a entre "para frente" e "para tras': E podiam dizer que sabiam porque praticavam a a~ao que fazia a diferen~a: ao !ado do "para frente" outro preceito foi pintado em dourado e purpura - "labor omnia vincz"t: "Para frente" era o destino, o trabalho era o veiculo que os conduziria, e os antigos cidadaos que se encarregaram da Prefeitura tinham senti­mentes suficientemente fortes para persistir na trilha o tempo ne­cesstirio para alcan<;ar seu destine.

Em 25 de maio de 1916, Henry Ford dizia ao correspondente

da Chicago Tribune:

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Trabalho 151

A hist6ria e mais ou menos uma bobagem. N6s nao queremos tradi­c;ao. Queremos viver no presente, e a {mica hist6ria digna de interesse e a hist6ria que fazemos hoje.

Ford era famoso por dizer em alto e hom som o que outros pensariam duas vezes antes d_e admitir. Progresso? Nao se pense nele como G"obra da hist6ria'~ E obra nossa, de nOs, que vivemos no presente. A unica hist6ria que conta e a que ainda nao esta feita, mas est:l sendo feita neste memento e se destina a ser feita: e o foturo, do qual outro americano pragmatico e objetivo, Ambrose Bierce, escrevera dez anos antes em seu Devil's Dictionary que e "'o tempo quando nossos neg6cios prosperam, nossos amigos sao ver­dadeiros e nossa felicidade esta assegurada':

A autoconfian~a moderna den urn brilho inteiramente novo a eterna curiosidade humana sobre o futuro. As utopias modernas nunca foram meras profecias, e menos ainda sonhos inUteis: aher­tamente ou de modo encoberto, eram tanto declara~oes de inten­~oes quanto expressoes de fe em que o que se desejava podia e devia ser realizado. 0 futuro era visto como os demais produtos nessa sociedade de produtores: alguma coisa a ser pensada, pro­jetada e acompanhada em sen processo de produ~ao. 0 futuro era a cria~ao do trabalho, e o trabalho era a fonte de toda cria~ao. Ainda em 1967, Daniel Bell escreveu que

toda sociedade hoje est<l conscientemente comprometida como cres­cimento econOmico, com a elevac;ao do padrao de vida de seu povo, e portanto [ 0 grifo e meu] com 0 planejamento, direc;ao e controle da mudant;a social. 0 que faz os estudos atuais tao completamente di­ferentes dos anteriores e que eles se orientam para prop6sitos espe­dficos de politica social; e junto com essa nova dimensao sao formu­lados, autoconscientemente, por uma nova metodologia que promete oferecer fundamentos mais confiaveis para alternativas e escolhas realistas ... 1

Ford teria proclamado triunfante o que Pierre Bourdieu notou recentemente com tristeza: para dominar 0 futuro e precise estar com os pes firmemente plantados no presente.2 Os que mant@m o presente nas miios tern confian<;a de que seriio capazes de fon;ar

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o futuro a fazer com que seus neg6cios prosperem, e por essa mesma razao podem ignorar o passado; eles, e somente eles, po­dem tratar a hist6ria passada como "bobagem': que se traduz, em termos mais elegantes, como "sem sentido" ou "mistifica<;ao': Ou, pelo menos, dar ao passado tanta aten~ao quanto as coisa~ desse tipo merecem. 0 progresso nao eleva ou enobrece a h!s,tona. _o "progresso" e uma declara<;ao da cren<;a de que a histona nao conta e da resolu~ao de deixa-la fora das contas.

Progresso e fe no hist6ria

Esta e a questao: o "progresso" nao representa qualquer qualidade da hist6ria, mas a autoconfiam;a do presente. 0 sentido mais profun­do, talvez unico, do progresso e feito de duas cren~as interrelacio­nadas - de que "o tempo est:i do nosso lado': e de que "somos n6s que fazemos acontecer': As duas cren<;as vivem juntas e mar­rem juntas - e continuarao a viver enquanto o poder_de f~~~r com que as coisas aconte<;am encontrar sua con:obor~<;ao d1ana n~s feitos das pessoas que as professam. Como d1z Alam Peyrefitte, ~ Unico recurso capaz de transformar urn deserto na terra de Canaa e a confian<;a mUtua das pessoas, e a cren<;a de todos no futuro que compartilha6io':3 Thdo o mais que possamos querer dizer ou ouvir sabre a "essencia" da ideia de progresso e urn esfor<;o com­preens!vel, ainda que futil e equivocado, de "ontologizar" aquele sentimento de fe e autoconfian~a.

A hist6ria e uma marcha em dire~ao a uma vida melhor e de mais felicidade? Se isso fosse verdade, como o saber!amos? N6s, que o dizemos, nao vivemos no passado; os que viveram no pas­sado nao vivem hoje. Quem, entiio, fari a compara~ao? Quer fuja­mos para o futuro (como o Anjo da Hist6ria de Benjamin/Klee), repelidos e empurrados pelos horrores do passado, quer nos apressemos em dire~ao a ele (como a mais sangu!nea que drama­rica versao whzg da hist6ria gostaria que acreditassemos ), atra!dos e puxados pela esperan~a de que "nossos neg6;:ios prosperariio': a Unica "evidencia" que temos e 0 jogo da memona e da Imagina­<;ao, e o que as liga ou as separa e nossa autoconfian<;a ou sua

Traba!ho 153

ausencia. Para as pessoas que confiam em seu poder de mudar as co~sas, 0 <Cprogresso" e urn axioma. Para as que sentem que as co1sas lhes escapam das maos, a ideia de progresso nao ocorre, e seria risivel se ouvida. Entre as duas condi<;Oes polares, hcl pouco espa~o para urn debate sine ira et studio, para n1io falar de consenso. Henry Ford talvez aplicasse ao progresso uma opiniao semelhante a que expressou sobre o exercicio: "Exercicio e bobagem. Se voce for saudavel, nao precisa dele; se for doente, nao 0 fara:'

Mas se a autoconfian~a - o sentimento tranqiiilizador de que se esd "firme no presente" - e o Unico fundamento em que a fe no progresso se ap6ia, entia nao surpreende que em nossos tem­pos a fe seja oscilante e fraca. E as razoes por que isso se da nao sao diflceis de encontrar.

Primeiro, a notcivel ausencia de uma agbzcia capaz de "mover o mundo para frente': A mais pungente e menos respondivel das questoes dos nossos tempos de modernidade liquida nao e "o que fazer?" (para tornar o mundo melhor ou mais feliz), mas "quem vai faze-lo?" Kenneth Jowitt4 anunciou o colapso do "discurso de Joshua'~ que ate recentemente costumava dar forma a nosso pen­samento sobre o mundo e suas perspectivas, e que considerava o mundo como "centralmente organizado, rigidamente cercado e histericamente preocupado com fronteiras impenetr:iveis': Num tal mundo, as duvidas sobre a agencia dificilmente surgiriam: afi­nal, o mundo do "discurso de Joshua" era pouco mais que uma conjun~ao entre uma agencia poderosa e os residuos/ efeitos de s~as a~oes. Essa imagem tinha urn fundamento epistemol6gico sohdo que compreendia entidades tao s6lidas, inabaLiveis e irre­duciveis como a fabrica fordista e os Estados soberanos (sobera­nos se niio na realidade, pelo menos em sua ambi~ao e determina­~ao) capazes de projetar e de administrar a ordem.

Esse fundamento da fe no progresso e hoje visivel principal­mente por suas rachaduras e fissuras. Os mais s61idos e menos question:iveis de seus elementos estao perdendo seu car:iter com­pacto junto com sua soberania, credibilidade e confiabilidade. A fadiga do Estado moderno e talvez sentida de modo mais agudo, pms s1gmfica que o poder de estimular as pessoas ao trabalho -0 poder de fazer coisas - e tirado da politica, que costumava

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decidir que tipos de coisas deveriam ser feitas e quem as deveria fazer. Embora todas as agencias da vida politica permane~am onde a "modernidade liquida" as encontrou, presas como antes a suas respectivas localidades, o poder flui bern alem de seu alcance. A nossa experiencia e semelhante a dos passageiros que descobrem, bern alto no ceu, que a cabine do piloto esta vazia. Para citar Guy Debord, "o centro de controle tornou-se oculto: nunca mais sera ocupado por urn lider conhecido ou por uma ideologia clara':5

Segundo, fica cada vez menos clara o que a agencia - qual­quer agencia- deveria fazer para aperfei~oar o mundo, no impro­vitvel caso de que tenha for~a para tanto. As imagens de uma sociedade feliz pintadas em muitas cores e por muitos pinceis no curse dos dais Ultimos seculos provaram-se sonhos inatingiveis ou (naqueles casos em que sua chegada foi anunciada) impossiveis de viver. Cada forma de projeto social mostrou-se capaz de pro­duzir tanto tristeza quanto felicidade, senao mais. Isso se aplica em igual medida aos dois principais antagonistas - o hoje falido mar­xismo e o hoje esperan~oso liberalismo econ6mico. (Como Peter Drucker, reconhecidamente defensor do Estado liberal, observou em 1989, "tambem o laissezfaire prometia a 'salva~ao pela socie­dade': remover todos OS obstacuJos a busca do ganho individual produziria ao final uma sociedade perfeita, ou pelo menos a me­lhor possivel" - e por essa razao sua bravata nao pode ser levada a serio.) Quanto aos outros competidores, a questao colocada por Fran~ois Lyotard, "que tipo de pensamento seria capaz de superar Auschwitz num processo geral em direc;iio a emancipa<;iio univer­sal': continua sem resposta, e assim permanecer:l. Jcl passou o auge do discurso de Joshua: todas as visoes ja pintadas de urn mundo feito sob medida pare cern nao-palataveis, e as que ainda nao foram pintadas sao suspeitas a priori . .Viajamos agora sem uma ideia de destino que nos guie, nao procuramos uma boa sociedade nem estamos muito certos sabre o que, na sociedade em que vivemos, nos faz inquietos e prontos para correr. 0 veredicto de Peter Dru­cker - "nao mais salva~ao pela sociedade ... Quem quer que hoje proclame a 'Grande Sociedade', como Lyndon Baines Johnson fez apenas 20 anos atras, deveria ser posto para fora da sala sob gar­galhadas"6 - captou sem erro o espirito do tempo.

Trabalho 155

0 encantamento moderno com o progresso - com a vida que pode ser "trabalhada" para ser mais satisfat6ria do que e, e desti­nada a ser assim aperfeic;oada - ainda nao terminou, e nao e provavel que termine tao cedo. A modernidade nao conhece outra vida senao a vida "feita": a vida dos homens e mulheres modernos e uma tarefa, nao algo determinado, e uma tarefa ainda incomple­ta, que clama incessantemente por cuidados e novos esfon;os. Quando nada, a condiGao humana no estitgio da modernidade "fluida" ou do capitalismo "!eve" tornou essa modalidade de vida ainda mais visivel: 0 progresso nao e mais uma medida tempor:iria, uma questao transit6ria, que leva eventualmente ( e logo) a urn estado de perfeiGaO (isto e, urn estado em que o que quer que devesse ser feito tera sido feito e nao sera necessaria qualquer mudan~a adicional), mas urn desafio e uma necessidade perpetua e talvez sem fim, o verdadeiro significado de "permanecer vivo e bern':

Se, no entanto, a ideia de progresso em sua encarna<;3.o pre­sente parece tao pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda a mantemos, e porque 0 progresso, como tantos outros pa­rimetros da vida moderna, esti agora "individualizado"; mais pre­cisamente - desregulado e privatizado. Estit agora desregulado -porque as ofertas de "elevar de nivel'' as realidades presentes sao muitas e diversas e porque a questao "uma novidade particular significa de fato urn aperfei~oamento?" foi deixada a livre compe­ti<;ao antes e depois de sua introdu<;ao, e permaneceri em disputa mesmo depois de feita a escolha. E esta privatizada porque a ques­tiio do aperfei~oamento nao e mais urn empreendimento coletivo, mas individual; sao os hom ens e mulheres individuais que a suas pr6prias custas deverao usar, individualmente, seu prOprio juizo, recursos e indUstria para elevar-se a uma condi<;8:o mais satisfat6-ria e deixar para tras qualquer aspecto de sua condiGao presente de que se ressintam. Como disse Ulrich Beck em sua advertencia sobre a Risiicogesellschaft,

a tend&ncia e o surgimento de formas e condi<;Oes de existencia individualizadas, que compelem as pessoas- para sua prOpria sobre­viv&ncia material - a se tornarem o centro de seQ prOprio planeja-

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menta e conduc;ao da vida ... De fato, e precise escolher e mudar a prOpria identidade social, e assurnir os riscos de faze-lo ... 0 prOprio indiv{duo se torna a unidade de reproduriio do social no mundo da vida?

A questao da exeqiiibilidade do progresso, seja ela vista como destine da especie ou tarefa do individuo, permanece como estava antes que se instalassem a desregula9ao e a privatiza9ao - e exa­tamente como articulada por Pierre Bourdieu: para projetar o fu­turo, e precise estar firmemente plantado no presente. A Unica novidade aqui e que 0 que importa e a ancoragem do individuo em seu proprio presente. E para muitos dos contemporaneos, tal­vez a maioria, sua ancoragem no presente e, na melhor das hip6-teses, inst<lvel, e muitas vezes prima pela ausencia. Vivemos num mundo de flexibilidade universal, sob condi~oes de Unsicherheit aguda e sem perspectivas, que penetra todos os aspectos da vida individual - tanto as fontes da sobrevivencia quanta as parcerias do amor e do interesse com urn, os parametros da identidade pro­fissional e da cultural, os modos de apresenta9ao do eu em publico e os padroes de saude e aptidao, valores a serem perseguidos e o modo de persegui-los. Sao poucos os portos seguros da fe, que se situam a grandes intervalos, e a maior parte do tempo a fe flutua sem ancora, buscando em vao enseadas protegidas das tempesta­des. Todos aprendemos as nossas pr6prias custas que mesmo OS

pianos mais cuidadosos e elaborados tern a desagradavel tenden­cia de frustrar-se e produzir resultados muito distantes do espera­do; que nossos ingentes esfon;os de "pOr ordem nas coisas" fre­qiientemente resultam em mais caos, desordem e confusao; e que nos so trabalho para eliminar o acidente e a contingencia e pouco mais que urn jogo de azar.

Fiel a seus hibitos, a ciencia prontamente seguiu a sugesdio da nova experiencia hist6rica e refletiu o espirito emergente na prolifera~ao de teorias cientificas do caos e da catastrofe. Outrora movida pela cren9a de que "Deus nao joga dados': de que o uni­verso e essencialmente deterministico e de que a tarefa humana e fazer urn inventario completo de suas leis, de modo que se pare de tatear no escuro e que a ac;ao humana seja acertada e precisa, a ciencia contemporinea voltou-se para o reconhecimento dana-

Trabalho 157

tureza endemicamente indeterministica do mundo, do enorme pa­pel desempenhado pelo azar, e para a excepcionalidade, nao a nonnalidade, da ordem e do equilibrio. Tambem fieis a seus h:\.bi­tos, os cientistas trazem as notfcias cientificamente processadas de volta ao dominic onde pela primeira vez as intuiram: para o mun­do das questoes humanas e da a9ao humana. E assim Iemos, por exemplo, na popular e influente apresenta9ao que David Ruelle faz da filosofia inspirada pela ciencia contemporanea, que "a ordem deterministica cria uma desordem do azar":

':fratados de economia ... dao a impressao de que o papel dos legisla­dores e membros respons<lveis do governo e encontrar e implemen­tar urn equilibria particularmente favor<lvel para a comunidade. Exemplos do caos na fisica nos ensinam, contudo, que, em vez de levarem a um equilibria, certas situa~Oes din;lmicas ativam desenvol­vimentos temporariamente ca6ticos e imprevislveis. Os legisladores e governantes respons<lveis devem, portanto, considerar a possibili­dade de que suas decis6es, que buscam produzir urn equilibria me­Ihor, poderao produzir em vez disso oscila~6es violentas e imprevis­tas, com efeitos possivelmente desastrosos. 8

Quaisquer que tenham sido as virtu des que fizeram o trabalho ser elevado ao posto de principal valor dos tempos modernos, sua maravilhosa, quase magica, capacidade de dar forma ao informe e durac;ao ao transit6rio certamente esta entre elas. Grac;as a essa capacidade, foi atribuido ao trabalho urn papel principal, mesmo decisivo, na moderna ambic;ao de submeter, encilhar e col6nizar o futuro, a fim de substituir o caos pela ordem e a contingencia pela previsivel ( e portanto controlavel) sequencia dos eventos. Ao trabalho foram atribuidas muitas virtudes e efeitos beneficos, como, por exemplo, o aumento da riqueza e a eliminac;ao da mi­seria; IDaS subjacente a todos OS meritos atribufdos estava SUa

suposta contribui9ao para o estabelecimento da ordem, para o ato hist6rico de colocar a especie humana no comando de seu prOprio destino.

0 "trabalho" assim compreendido era a atividade em que se supunha que a humanidade como urn todo estava envolvida por

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seu destine e natureza, e niio por escolha, ao fazer hist6ria. E o "trabalho" assim definido era urn esfon;o coletivo de que cada membra da especie humana tinha que participar. 0 resto nao pas­sava de conseqiiencia: colocar o trabalho como "condi~ao natural" dos seres humanos, e estar sem trabalho como anormalidade; de­nunciar o afastamento dessa condi~iio natural como causa da po­breza e da miseria, da priva~ao e da deprava~ao; ordenar homens e mulheres de acordo como suposto valor da contribui~ao de seu trabalho ao empreendimento da especie como urn todo; e atribuir ao trabalho o primeiro Iugar entre as atividades humanas, por levar ao aperfei~oamento moral e a eleva~ao geral dos padroes eticos da sociedade.

Quando a Unsicherheit se tom a permanente e e vista como tal, o estar-no-mundo e sentido menos como uma cadeia de a<;5es legal obediente, 16gica, consistente e cumulativa, e mais como urn jogo, em que o "mundo Ia fora" e urn dos jogadores e se com porta como todos os jogadores, mantendo as cartas fechadas junto ao peito. Como em qualquer outro jogo, os pianos para o futuro tendem a se tornar transit6rios e inconstantes, niio passando de uns poucos movimentos a frente.

Como urn estado de perfei~ao ultima nao esta para aparecer no horizonte dos e$fon;os humanos, e como arena efic:lcia a toda prova de qualquer esfor~o nao existe, nao faz muito sentido a ideia de uma ordem "total" a ser erigida andar por andar num esfor~o controlado, consistente e proposital. Quanta menor e a firmeza no presente, tanto menos o "futuro" pode ser integrado no projeto. Lapsos de tempo rotulados de "futuro" encurtam, e a dura~ao da vida como urn todo e fatiada em epis6dios considerados "urn de cada vez'~ A continuidade nao e mais marca de aperfei<;oamento. A natureza outrora cumulativa e de Iongo prazo do progresso esti cedendo Iugar a demandas dirigidas a cada epis6dio em separado: o merito de cada epis6dio deve ser revelado e consumido inteira­mente antes mesmo que ele termine e que o prOximo comece. Noma vida guiada pelo preceito da flexibilidade, as estrategias e pianos de vida s6 podem ser de curto prazo.

Jacques Attali sugeriu recentemente que e a imagem do labi­rinto que hoje domina, ainda que sub-repticiamente, nossas ideias

Trabalho 159

sabre o futuro e nossa propria participa<;ao nele; essa imagem se torna o principal espelho em que nossa civiliza~ao se contempla, no presente estigio. 0 labirinto como alegoria da condi<;ao huma­na foi a mensagem transmitida pelos nomades aos sedentarios. Os mil&nios passaram, e os sedentirios ganharam a autoconfian<;a e a coragem para enfrentar o desafio do destino labirintico. "Em todas as linguas europeias': observa Attali, "a palavra labirinto pass a a ser sin6nimo de complexidade artificial, escuridao inutil, sistema tor­tuoso, selva impenetravel. Clareza se torna sinonimo de 16gica."

Os sedendrios se dedicaram a tornar transparentes as pare­des, endireitar e sinalizar as passagens tortuosas, iluminar os cor­redores. Tamb€:m produziram guias e instru<;5es claras e nao-am­biguas para uso dos futuros passantes, indicando que rumo tamar e evitar nas encruzilhadas. Fizeram tudo isso para descobrir no final que o labirinto esta firme em seu Iugar; talvez tenha se tor­nado ainda mais trai~oeiro e confuso devido ao ilegivel emaranha­do de pegadas que se cruzam, a cacofonia de comandos e a con­tinua adi<;ao de novas passagens tortuosas, novas vias sem saida, 9.s que foram deixadas para tr<is. Os sedent<irios se tornaram "nO­mades involuntirios': lembrando com atraso a mensagem recebi­da no comec;o de suas viagens hist6ricas e tentando desesperada­mente recuperar seus contelldos esquecidos que - como suspei­tam- podem ser portadores da "sabedoria necessaria a seu futu­ro': Uma vez mais, o labirinto se torna a imagem-mestra da condi­~ao humana - e significa "o Iugar opaco onde o desenho dos caminbos nao obedece a qualquer lei. 0 azar e a surpresa mandam no labirinto, o que sinaliza a derrota da Razao Pura:'9

No mundo humano labirintico, os trabalhos humanos se divi­dem em epis6dios isolados como o resto da vida humana. E, como no caso de todas as outras a<;oes que os humanos podem empreen­der, o objetivo de manter urn curso proximo aos projetos dos atores e evasive, talvez inatingivel. 0 trabalho escorregou do uni­verso da constru~ao da ordem e controle do futuro em dire~ao do reino do jogo; atos de trabalho se parecem mais com as estrategias de urn jogador que se poe modestos objetivos de curto prazo, nao antecipando mais que urn ou dois movimentos. 0 que conta sao os efeitos imediatos de cada movimento; os efeitos devem ser

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passiveis de ser consumidos no ato. Suspeita-se que o mundo esteja repleto de pontes demasiado longinquas, o tipo de pontes que e melhor nao pensar em atravessar ate encontrcl-las, 0 que nao acontecera tao cedo. Gada obstaculo deve ser negociado quando chegar sua vez; a vida e uma seqUencia de epis6dios - cada urn a ser calculado em separado, pois cada urn tern seu pr6prio balau<;o de perdas e ganhos. Os caminhos da vida nao se tornam mais retos por serem triJhados, e virar uma esquina nao e garantia de que OS

rumos corretos serao seguidos no futuro. E assim o trabalho mudou de carater. Muitas vezes e urn ato

Unico: arma<;ao de urn hricoleur, urn trapaceiro, que mira o que estit a mao e e inspirado e Jimitado pelo que esta a mao, mais formado que formador, mais o resultado de agarrar a oportunidade que o produto de planejamento e projeto. Tern uma sinistra semelhan<;a com a famosa toupeira cibern/::,tica que sabia como se mover em husca de uma tomada eletrica a que se ligar para repor a energia gasta no movimento em busca de uma tomada eletrica a que se ligar para repor a energia gasta ...

Talvez o termo "'remendar" capte melhor a nova natureza do trabalho separado do grande projeto de missao universalmente partilhada da humanidade e do nao menos grandiose projeto de uma voca<;ao para toda a vida. Despido de seus adere<;os escatol6-gicos e arrancado de suas raizes metafisicas, o trabalho perdeu a centralidade que se !he atribuia na galaxia dos valores dommantes na era da modernidade s6lida e do capitalismo pesado. 0 trabalho nao pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodefini<;oes, identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido com facilidade como fundamento etico da socieda­de, ou como eixo etico da vida individual.

Em vez disso, o trabalho adquiriu - ao !ado de outras ativida­des da vida - uma significa<;ao principalmente estetica. Espera-se que seja satisfat6rio por si mesmo e em si mesmo, e nao mais medido pelos efeitos genuinos ou possiveis que traz a nossos se­melhantes na humanidade ou ao poder da na<;ao e do pais, e menos ainda a bem-aventuran<;a das futuras gera<;oes. Poucas pes­seas apenas - e mesmo assim raramente - podem reivindicar privilegio, prestigio ou honra pela importancia e beneficia comum

Trabalho 161

gerados pelo trabalho que realizam. Raramente se espera que o trabalho "enobre<;a" os que o fazem, fazendo deles "seres burna­nos melhores", e raramente alguem e admirado e elogiado por is so. A pessoa e medida e avaliada por sua capacidade de entreter e alegrar, satisfazendo nao tanto a voca<;io etica do produtor e cria­dor quanta as necessidades e desejos esteticos do consumidor, que procura sensa<;6es e coleciona experi€.ncias.

Ascens6o e quedo do trabalho

De acordo com o Dicionario Oxford de ingles o primeiro uso da palavra "trabalho" (labour) no sentido de "esfor<;o fisico dirigido a a tender as necessidades materiais da comunidade" foi registrado em I 776. Urn seculo depois, veio a significar, alem disso, "o corpo geral dos trabalhadores e operarios" que tomam parte na produ­<;io, e pouco mais tarde tambem os sindicatos e outros cm-pos que ligavam os dois significados, mautinham essa liga<;ao e a reformu­lavam como questiio politica e instrumento de poder politico. 0 uso ingles e not!tvel por tornar clara a estrutura da "trindade do trahalho": a proximidade (de fato, a convergencia semantica ligada a identidade de destino) entre a significa<;ao atribuida ao trabalho ( essa lab uta "fisica e mental"), a autoconstitui<;ao dos que traba­lham numa classe e a politica fundada nessa autoconstitui<;iio -em outras palavras, a liga<;ao entre definir a labuta fisica como principal fonte da riqueza e bem-estar da sociedade, e a auto­afirma<;iio do movimento trabalhista. Ascenderam juntos e juntos cairam.

A maioria dos historiadores economicos concorda (ver, por exemplo, o resumo recente de suas descobertas por Paul Bai­roch 1") que, em termos dos niveis de riqueza e renda, hit pouco que distinga as civiliza~oes no auge de seus poderes: as riquezas de Roma no seculo I, da China no XI, da India no XVII, nao eram muito diferentes das da Europa no Jimiar da Revolu~ao Industrial. Por algumas estimativas, a renda per capita na Europa Ocidental no seculo XVIII nao era mais que 300/o mais alta que a da India, Africa ou China daquelas epocas. Porem pouco mais de urn seculo

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foi suficiente para transformar drasticamente a propor9iio. Por vol­ta de 1870 a renda per capita na Europa mdustnalizada era 11 vezes maior que nos palses mais pobres do mundo. No curso do seculo seguinte esse fator quintuplicou, chegando a 50 e~ 1995. Como indica o economista da Sorbonne Dame! Cohen, arnsco afinnar que 0 fenomeno da desigualdade entre as na96es e de

'l' d · ' 1 " 11 E sim origem recente; e produto dos U biDOS 018 SeCU OS · a: , tambem a ideia do trabalho como fonte da riqueza, e a pohuca

surgida dessa suposi9iio e guiada por ela. . A nova desigualdade global e a nova autoconfian9U e senu­

mento de superioridade que se seguiram foram espetaculares e sem precedentes: novas no<;6es, novos quadros cognitlvos eram necessaries para capta-las e assimila-las in;electuahnent;· Essas no96es e quadros foram fornecidos pela r~ce,m-nasoda cwnc1a da economia politica, que veio a subsutu1r as Ide1as fis1oc~atas e mer­cantilistas que acompanharam a Europa em seu cammho para a fase moderna de sua hist6ria, ate o limiar da Revolu9iio Industnal.

Nao "par acaso" essas no<;Oes foram cunhadas ~a ~sc6cia, pais ao mesmo tempo envolvido e separado do curso pnnc1pal da con­vulsao industrial, fisica e psicologicamente proximo do pais que se tornaria o epicentro da emergente ordem industrial. mas que per­maneceria por certo tempo relat:IVamente Imune_ a seu IID~acto econOmico e cultural. As tendencias em pleno moVImento no cen­tro" sao em regra, mais prontamente detectadas e mais claramente articuladas em lugares temporariamente relegados as "margens': Viver na periferia do centro civilizacional significa estar sufioen­temente prOximo para ver as coisas com clareza, mas suficwnte­mente longe para "objetiv:i-las" e assim mo~~ar e co~d~n~ar .a~ percepc;Oes em conceitos. Nao foi, p~~anto,. mera co1nc1dencm que 0 evangelho tenha vindo da Escoc1a: a nqueza vern do traba­

lho, sua fonte principal, talvez !mica. . . Como Karl Polanyi viria a sugerir muitos anos depms, atuali­

zando Karl Marx, que o ponto de partida da "grande transfonna-9;;0" que trouxe a vida a nova ordem industrial foi a separa9a0 dos trabalhadores de suas fontes de existencia. Esse evento memento­so era parte de urn processo mais amplo: a prod~9iio e ~ troca deixaram de se inscrever num modo de VIda mdJVJSJvel, mrus geral

Trabalho 163

e inclusive, e assim se criaram as condi96es para que o trabalho (junto com a terra e o dinheiro) fosse considerado como mera mercadoria e tratado como tal12 Po demos dizer que foi a mesma nova desconexao que liberou os movimentos da for9a de trabalho e de seus portadores que os tornou passiveis de serem movidos, e assim serem sujeitos a outros usos C"melhores" - mais Uteis ou lucrativos ), recombinados e tornados parte de outros arranjos ("melhores"- mais uteis ou lucrativos). A separa~ao das ativida­des produtivas do resto dos objetivos da vida permitiu que o ""esforc;o fisico e mental" se condensasse num fenOmeno em si mesmo - uma ""coisa" a ser tratada como todas as coisas, isto e, a ser "manipulada': movida, reunida a outras "coisas" ou feita em peda~os.

Se essa desconexao nao acontecesse, haveria poucas possibi­lidades para a ideia de separar mentalmente o trabalho da "totali­dade" a que ele pertencia "naturahnente" e condensa-lo num ob­jeto autocontido. Na visao pre-industrial da riqueza, "a terra" era uma totalidade desse tipo - por inteiro, junto com os que a culti­vavam e aravam. A nova ordem industrial e a rede conceitual que permitiu a proclama~ao do advento de uma sociedade diferente -industrial -- nasceram na Gra-Bretanha; e esta se destacava entre seus vizinhos europeus por ter destruido seu campesinato, e com ele a liga9ao "natural" entre terra, trabalho humano e riqueza. Os cultivadores da terra tinham primeiro que ficar ociosos, vagando e "sem senhores·: para que pudessem ser vistos como portadores de "for~a de trabalho" pronta para ser usada; e para que essa for9a pudesse ser considerada como potencial "fonte de riqueza'' por si mesma.

Essa nova ociosidade e o desenraizamento dos trabalhadores parecia as testemunhas contempor:ineas mais inclinadas a reflexao como emancipa9ao do trabalho - parte da alegre sensa9iio da liberta~ao das capacidades humanas em geral das vexat6rias e estultificantes limita96es paroquiais, e da inercia da for9a do habi­to e da hereditariedade. Mas a emancipa9iio do trabalho de suas "limitac;Oes naturais" nao m'anteve o trabalho flutuando, desvinCu­lado e "sem senhor"es" par muito tempo; nem o tornou aUt&nomo, autodeterminado e livre para fixar e seguir seus pr6prios desig-

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nios. 0 desmantelado "modo tradicional de vida" de que o tra?a­lho era parte antes de sua emancipa~ao estava para ser ~ubsutmdo por uma nova ordem; desta vez, pon\m, uma ordem pre-projetada, uma ordem "construida': nio mais o sed1mento do vagar sem ob­jetivo do destino e dos azares da hist6ria, mas produto de pensa­mento e a~ao racionais. Ao descobnr que o trabalho era a fonte da riqueza, a raz:io tinha que buscar, utilizar e explorar essa fonte de

modo mais eficiente que nunca. Alguns comentadores imbuidos do espirito imp~tuoso da era

moderna (Karl Marx o mais importante entre eles) v1ram o passa­mento da velha ordem principalmente como resultado de urn ata­que deliberado: uma explosao causa~a por uma bomba plantad: pelo capital dedicado a "derreter os ,'~lidos e p~ofanar o sagrado · Outros, como de Tocqueville, mats cetJ.co e cons1deravelmente me­nos entusiclstico viram aquele desaparecimento como urn caso de implosao, e na; de explosao: olhando para tras, ~erceberam as sementes da destrui~ao no cora~ao do Ane1en Regtme ( sempre mais fitceis de revelar ou adivinhar retrospectivamente) e viram a agita.:;ao e arrogincia dos novas senh?res como, b:sicam.ente, ~s Ultimos estremecimentos de urn monbundo ou nao mu1t0 ma1s que a busca vigorosa e resoluta das mesmas curas milagrosas que a velha ordem testara muito antes em esfor~os desesperados e vaos para impedir ou pelo menos adiar seu pr6prio desapareci­mento. Ravia, porem, pouco debate sobre as perspectJ.v~~ do novo regime e as inten~6es dos novos senhores: a velha e J" defunta ordem deveria ser substituida por uma nova ordem, menos vulne­r3vel e mais vi3vel que sua antecessora. Novas s6lidos deveriam ser concebidos e construidos para encher o vazio deixado pelos derretidos. As coisas pastas para flutuar deveriam ser novamente ancoradas, de modo mais seguro que antes. Para expressar a roes­rna inten~ao no idioma hoje em moda: o que tin~~ sido "desaco.: modado" precis aria ser, mais cedo ou ma1s tarde, reacomodado ·

Romper os velhos vinculos local/ com una!, declarar guerra aos modos habituais e as leis costumeiras, quebrar e pulvenzar les pouvoirs intermrfdiaires- o resultado disso tudo foi o deliria into­xicante do "novo come~o''. "Derreter os s6lidos" era sentido como derreter minerio de ferro para moldar barras de a~o. Realidades

Trabalho IAI

derretidas e agora fluidas pareciam prontas para sei'CIII l't't'llllllli

zadas e derramadas em novas moldes, onde ganhariamun1n j(,1•11111

que nunca teriam adquirido se tivessem sido deixadaH rOI'I't'IHio

no~ pr6p~~s cursos que tinham cavado. Nenhum propbsilo, por mats ambtcwso que fosse, parecia exceder a capacidade hu 111 a11 a de pensar, descobrir, inventar, planejar e agir. Sea sociedade !'eli" - a sociedade de pessoas felizes - ainda nao estava na pr6xi 11111

esquma, sua chegada iminente ja estava prevista nas pranchelas dos homens de pensamento, e seus contornos esbo~ados pelos homens de pensamento eram encarnados nos escrit6rios e postos de comando dos homens de a~ao. 0 prop6sito em que tanto 08

homens de pensamento quanta os de a~ao empregavam seu tra­balho era a constru~ao da nova ordem. A liberdade recem-desco­berta deveria ser utilizada no esfor~o de gerar a ordenada rotina futura. Nada deveria ser deixado em seu curso caprichoso e irn­previs.ivel, ao acidente e a contingencia; nada deveria ser mantido em sua forma presente, se essa forma pudesse ser aperfei~oada e tornada mais Util e eficaz.

_ Essa nova ordern em que todos os fins presentemente soltos serao novamente amarrados, enquanto as cargas e destroc;os de fatalidades passadas, naufragos abandonados ou a deriva, serao recolocados e fixados em seus lugares corretos, deveria ser rnassi­va, s6lida, feita de pedra ou armada em a~o: destinada a durar. Grand_: era belo, grande era racional; "grande" queria dizer poder, amb1~ao e coragem. 0 local de constru~ao da nova ordem indus­trial era repleto de monumentos ao poder e a ambi~ao, monumen­Ws que, fossem ou nao indestrutiveis, deveriam parece-lo: fabricas g1gantescas lo,tadas de maquinaria volumosa e multid6es de ope­radores de maqumas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos, pontuados de majestosas esta~6es dedicadas a emular os antigos templos eng1dos para a adora~ao da eternidade e para a eterna gl6ria dos adoradores.

0 mesmo Henry Ford que declarara que "a hist6ria e boba­gem·: que "nao queremos tradi<;ao" e que "queremos viver no pr:s:nte e ~ lmica hist6ria que importa e a hist6ria que fazemos hoje, urn d1a dobrou os salarios de seus trabalhadores, explicando que quena que eles comprassem os carros que produzia. Essa

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explica~ao era falsa: os carros comprados pelos. trabalhadores da Ford eram uma frac;ao minima das vendas totals, enquanto o au­menta dos salclrios pesava muito nos custos de produc;ao da. em­presa. A verdadeira raziio para o passo heterodoxo era o desejO de Ford de deter a mobilidade irritantemente alta do trabalho. Ele queria atar seus empregados as empresas Ford de urn a vez _ por todas, fazendo com que o dinheiro gasto em sua prepara~ao e treinamento se pagasse muitas vezes, por toda a duraGiiO da v1da uti! dos trabalhadores. E para alcan~ar tal efeito tinha que liDObl­lizar sua equipe, para mante-los onde estavam, de preferencia ate que sua forGa de trabalho fosse inteiramente ut1hzada. Tmha que torna-los tao dependentes do emprego em sua fabrica e vendendo seu trabalho a seu dono como ele mesmo dependia de emprega-los e usar seu trabalho para sua pr6pria riqueza e poder.

Ford expressava em voz alta os pensamentos que outros aca­lentavam mas s6 se permitiam murmurar; ou, melhor, pensou o que outros na mesma situa~:,;iio sentiam, mas eram incapazes de expressar em palavras. 0 emprestimo do nome de Ford para o modelo universal das inten~oes e praticas tipicas da modermdade s6lida ou do capitalismo pesado e apropriado. 0 modelo de He~ry Ford de uma ordem novae racional criou o padrao para a tenden­cia universal de seu tempo: e era urn ideal que todos ou pelo menos a maioria dos outros empres<lrios lutavam, com graus va­riados de sucesso, para alcan~ar. 0 ideal era o de atar capital e trabalho numa uniao que- como urn casamento divino- nenhum poder humano poderia, ou tentaria, desatar. .

A modernidade s6lida era, de fato, tambem o tempo do cap•­talismo pesado - do engajamento entre capital e trabalho fortifi­cado pela mutualidade de sua dependbzcia. Os trabalhadores depen­diam do emprego para sua sobrevivencia; o capital depend1a de emprega-los para sua reproduGao e crescimento. Seu Iugar de en­contra tinha endereGO fixo; nenhum dos d01s podena mudar-se com facilidade para outra parte - os muros da grande fabrica abrigavam e mantinham os parceiros numa prisao compartilhada. Capital e trabalhadores estavam unidos, pode-se clizer, na riqueza e na pobreza, na sallde e na doenc;a, atE: que a morte os separasse. A fabrica era seu habitat comum - simultaneamente o campo de

Trabalho Ill

batalha para a guerra de trincheiras e lar natural parn '''l"'l'~ll~~· e sonhos.

0 que pos capital e trabalho face a face e os atou l'oi 11 '"'""'

c;ao de compra e venda; e assim, a fim de permanect~l't'lll VIVO'!,

cada urn tinha que se manter em forma para essa traw~;u;;~o: os donos do capital tinham que ser capazes de continuar compra11do trabalho, e os donos do trabalho tinham que permanecer al.,•·las, saudaveis, fortes e suficientemente atraentes para nao afasta•' os compradores e n:io sobrecarreg<l-los com os custos totais de sua concli~ao. Gada !ado tinha "interesses investidos" em manter o outro !ado em forma. Nao surpreende que a "remercantiliza~ao" do capital e do trabalho tenha se convertido na principal fun~ao e ocupa~ao da politica e da suprema agencia politica, o Estado. 0 Estado era o encarregado de que os capitalistas se mantivessem aptos a comprar trabalho e a poder arcar com seus pre~os corren­tes. Os desempregados eram inteira e verdadeiramente o "exercito reserva de trabalho': e tinham que ser mantidos em Estado de prontidao, caso fossem chamados de volta a ativa. 0 Estado de bem-estar, urn Estado dedicado a fazer justamente is so, estava, por essa razao, genuinamente "alem da esquerda e da direita': esteio sem o qual nem capital nem trabalho poderiam manter-se vivos e saudiveis, quanta mais crescer.

Algumas pessoas viam o Estado de bem-estar como uma me­dida temporaria, que sairia de cena quando a seguran~a coletiva contra o infortlinio tivesse dado aos segurados aud<lcia e recursos suficientes para desenvolver plenamente seu potencial e reunir a coragem para assumir riscos - e assim permitir-lhes '"firroar-se sobre seus pr6prios pes': Observadores mais ceticos viam 0 Estado de bem-estar como urn dispositivo sanitaria coletivamente finan­ciado e administrado - uma operaGiiO de limpeza e saude que teria que funcionar enquanto a empresa capitalista continuasse a gerar detritos sociais que nao tinha nem inten~ao nem recursos de reci­clar (isto e, por muito tempo ainda). Havia urn consenso geral, COntudo, de que o Estado de bem-estar era urn dispositivo desti­nndo a atacar as anomalias, impedir afastamentos da norma e di­luir as conseqiiencias das rupturas desta, se estas ainda assim lcontecessem. A propria norma, quase nunca pasta em questiio,

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era 0 mutua engajamento direto, face a face, de capital e trabalho: e a resolw:;3.o de todas as questOes socials Importantes e constran

doras no marco desse engajamento. . . ge uem como . ovem aprendiz, tivesse seu pnmeir~ emprego na

Fon~ pod~ria ter lcerteza de terminar sua vida profissw~al :~:~~ mo Iugar. Os horizontes temporais do capltahsmo pesa o d h -

P os trabalhadores, os honzontes eram esen a Iongo prazo. ara da a vida dentro de uma dos pela perspectiva de emprego por toal . . da seria de

deria ou nao ser Imort ' mas cuja VI ' emplresa que po muito mais longa que a deles mesmos. Para os qua quer mane1ra, I' d ida de

. . "f familiar" destinada a durar a em a v capnahstas, a ortuna ', . . , · das fabricas que

I uer dos membros da familia, era smommo . ' . ~~:d;ram, construiram ou pretendiam acrescentar ao patnmonw

familiar. " ·t 1'a uma . al"d d d "Iongo prazo constl u Para resumir: a ment l a e e . b -. ., . e da repeuda corro orac;ao ectativa nasclda da expenencia,

~P . ' . a de que os destinos das pessoas que com pram tr:~~~:pee~:~;e~soas que o vendem estao insep~r.avelmente en~

. . d em termos praucos, para sem trelac;ados por mmto tempo am a-: de urn modo de convivencia

e que portanto, a construc;ao ' ' pre - ' d ""nteresses de todos' quanta a ' 1 orrespon e tanto aos 1 . suportav: cdas regras de convivio de vizinhan<;a entre os propne-

~a;~~~~~a~asas num mesmo loteamento. Essa experienciaSlev~u . d seculo para se firmar. urgm

muitas decadas, talvez ma•s e urn d' " lidifica<;iio': Como ao final do Iongo e tortuoso processo e so . ' de ois da

. R. h d Sennett em seu estudo recente, fm so P . sugenud GIC ar que a desordem original da era capitalista vew a Segun a uerra · adas por

b . . 'd pelo menos nas economias ma•s a van<; '

~:~n~~c:~:u~o~es, garantidores do bEstado de !e;~~~":ir ::~~~ raroes de larga escala': que se com maram pa

~ I . ,13 de "estabilidade re auva · rt 0

A "estabilidade relativa" em questiio rec~bre cor;' cle eza . etuo De fato, tomou esse conflito possiVe . e, num

con~~~ ppa::"doxai, bern observado em seu tempo porLewis Coser, sen b ara o mal os antagonistas estavam "f · 1" ra o em ou p • u~cwna : ~~endencia mutua. 0 confronto, testes de for<;a e a

~~~g:~Jao~u= se seguiam reforc;avam a unidade das partes em

Trabalho 169

conflito precisamente porque nenhuma delas podia continuar so­zinha e ambos os !ados sabiam que sua sobrevivencia dependia de encontrar soluc;Oes que todos considerassem aceid.veis. Enquanto se sup6s que a companhia mUtua duraria, as regras dessa uniao foram objeto de intensas negociac;Oes, as vezes com acrim&nia e confrontac;Oes, outras com treguas e concess5es. Os sindicatos re­criaram a impotencia dos trabalhadores individuais na forma do poder de barganha coletivo e lutaram com sucesso intermitente para transformar os regulamentos incapacitadores em direitos dos trabalhadores e reformula-los como limita<;oes impostas a liberda­de de manobra dos empregadores. Enquanto se manteve a mutua dependencia, mesmo as jornadas impessoais odiadas com todas as for<;as pelos artesiios reunidos nas antigas fabricas capitalistas ( e que causavam resistencia, o que E.P. Thompson documentou vivi­damente), e ainda mais suas Ultimas versOes "novas e aperfei<_;oa­das" na forma das infames medi<;oes de tempo de Frederic Taylor, esses atos, nas palavras de Sennett, "de repressio e dominac;ao praticados pela gerencia em beneficia do crescimento da gigantes­ca organizac;ao industrial" "tinham se tornado uma arena em que os trabalhadores podiam afirmar suas pr6prias demandas, uma arena que dava poder': Sennett conclui: "A rotina pode diminuir, mas pode tambem proteger; a rotina pode decompor o trabalho, mas pode tambem compor uma vida:'14

Essa situa<;iio mudou, eo ingrediente crucial da mudan<;a mul­tipla e a nova mentalidade de "curta prazo': que substituiu a de "longo prazo': Casamentos "ate que a morte nos separe" estao decididamente fora de moda e se tornaram uma raridade: os par­ceiros niio esperam mais viver muito tempo juntos. De acordo com o Ultimo c:llculo, urn jovem americana com nlvel media de educa­~iio espera mudar de emprego 11 vezes durante sua vida de tra­balho - e o rit1no e freqiiencia da mudan9a deverao continuar crescendo antes que a vida de trabalho dessa gera<;ao acabe. "Fle­xibilidade" e o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho augura urn fim do "emprego como o conhecemos': anun­ciando em seu Iugar o advento do trabalho por contratos de curta prazo, ou sem contratos, posi<;Oes sem cobertura previdenci:lria, mas com clausulas "ate nova ordem': A vida de trabalho esta satu­rada de incertezas.

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Do casomento o coabita~ao - h' d particularmente novo

Pode-se sempre responder que nao a na a . . . - . a vida de trabalho sempre foi chela de mcertezas,

nessa s1tua~ao. . , ' d m desde tempos imemoriais. A incerteza de hoje, porem, e e u ti o inteiramente novo. Os temiveis desastres que po~em devastar n~ssa sobrevivencia e suas perspectivas nao sao do upo que possa ser re elido ou contra que se possa 1utar unindo for~as, permane-

d P ,·dos e com medidas debatidas, acordadas e postas em

cen o un , · t m ho]e ' . con]·unto Os desastres mais ternveis aeon ece pratJca em · ' · · b.

aleatoriamente, escolhendo suas vitimas com a logica Il_lals Izarr~ ou sem qua1quer 16gica, distribuindo seus go1pes c~pnc~osa~en te de tal forma que nao ha como prever quem sera c~n enaj; o e ~em sera salvo. A incerteza do presente e uma po e:osa I or<;a

Zndividualizadora. Ela divide em vez de unir, e como~·~· ha_ma­neira de dizer quem acordara no proximo dia em :ut JVJsaod: ideia de "'interesse comum" fica cada vez mais ne u osa e per

todo valor pratico. , - f · Os rnedos, ansiedades e angllstias contempor:neos sao e~tos

ara serem sofridos em solidao. Nao se somam, ,nao se acu.mu am p " m" nao tern endere<;o espeCifico, e multo me-numa causa cornu • d t nos 6bvio. lsso priva as posi<;6es de solidarie~ade e s~u st~i~; anti o de t:lticas racionais e sugere uma estrategia d~ Vl _a m .. dife~ente da que levou ao estabe1ecimento das orgamza~oes mih; t ntes em defesa da classe trabalhadora. Ao falar com pessoas ]a a~ngidas ou que temiam vir a ser atingidas pelas mudan~as cor­rentes nas condic;Oes de emprego, Pierre BourdleU ~uVlU vezes

"em face das novas formas de explora<;ao, notave1-sem conta que 1 d 1 mente favorecidas pela desregu1a~ao do trabalho e pe o. ~env~-vimento do emprego tempor:lrio, as formas tradlclOnals . e ac;ao sindical sao consideradas inadequadas': Bourdieu conc~u~ que fa-

tes "quebraram os fundamentos das sohdane a es pas-tos recen · d - d das

d " e que o resultante '"desencantamento val e mao_s . a -~~,:so desaparecimento do espirito de militancia e parUc!pa~ao politica'~15

uando a utiliza<;iio do traba1ho se torna de curto prazo e 9 . tendo sido ele despido de perspectivas firmes ( e mmto

precana,

Trabalho Ill

menos garantidas) e portanto tornado epis6dico, quando vir11111l mente todas as regras relativas ao jogo das promoc;5es e demiHf·H-H'N foram esgotadas ou tendem a ser alteradas antes que o joKo lc·r­

mine, ha pouca chance de que a lea1dade eo compromisso mtllllo<

brotem e se enraizem. Ao contrano dos tempos de dependG11cia mUtua de longo prazo, nao h:l quase estimulo para urn inten~ss<' agudo, serio e crltico por conhecer OS empreendimentOS COI1lllllS e os arranjos a eles relacionados, que de qualquer forma scriam transit6rios. 0 emprego parece urn acampamento que se visita por alguns dias e que se pode abandonar a qualquer momento se as vantagens oferecidas nao se verificarem ou se forem consideradas insatisfat6rias - e nao com urn domicilio compartilhado onde nos inclinamos a ter trabalho e construir pacientemente regras aceit<l.­veis de convivencia. Mark Granovetter sugeriu que o nosso e urn tempo de "la<;os fracos': enquanto Sennett propoe que "formas fugazes de associat;ao sao mais Uteis para as pessoas que conex6es de Iongo prazo':16

A presente versao "liquefeita': "fluida': dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode nao implicar 0 div6rcio e rup­tura final da comunica<;ao, mas anuncia o advento do capitalismo !eve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos la<;os que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o ''viver jun­to': com todas as atitudes disso decorrentes e conseqiiencias es­trategicas, incluindo a suposi~ao da transitoriedade da coabita~ao e da possibilidade de que a associa~ao seja rompida a qualquer momenta e par qualquer razao, uma vez desaparecida a necessi­dade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questao de acordo redproco e de mutua dependencia, 0 desengajamento e unilateral: urn dos !ados da configura~ao adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca bavia mani­festado seriamente antes. Numa medida nunca alcan<;ada na reali­dade pelos "senhores ausentes" de outrora, o capital rompeu sua dependencia em rela<;ao ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensavel no passado. A reprodu<;ao eo crescimen­to do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfa~iio dos acio­nistas se tornaram independentes da dura~ao de qualquer com-,rometimento local com o trabalho.

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172 Modernidade Uquida

:E claro que a independencia nao e completa, e o capital nao e ainda tao volatil como gostaria de e tenta ser. Fatores territoriais - locais - ainda devem ser considerados na maioria dos calculos, e o "poder de confusao" dos governos locais ainda pode colocar limites constrangedores a sua liberdade de movimento. Mas o capital se tornou exterritoria~ !eve, desembara~ado e solto numa medida sem precedentes, e seu nivel de mobilidade espacial e na maioria dos casas suficiente para chantagear as agCncias politicas dependentes de territ6rio e faze-las se submeterem a suas deman­das. A amea~a (mesmo quando nao expressa e meramente adivi­nhada) de cortar OS la~os locais e mudar-se para outro Iugar e uma coisa que qualquer governo responsive!, em beneficia proprio e no de seus concidadiios, deve tratar com a maier seriedade, ten­tando subordinar suas politicas ao prop6sito supremo de evitar a ameac;a do desinvestimento.

A politica hoje se tornou urn cabo-de-guerra entre a velocida­de com que o capital pode se movere as capacidades cada vez mais lentas dos poderes locais, e sao as instituic;6es locais que com mais freqiiencia se lan~am numa batalha que nao podem veneer. Urn governo dedicado ao bem-estar de seus cidadaos tern pouca esco­lha a!em de implorar e adular, e nao pode for~ar o capital a vir e, uma vez dentro, a construir arranha-ceus para seus escrit6rios em vez de ficar em quartos de hotel alugados por dia. E isso pode ser feito ou tentado (para usar 0 jargao comum a politica da era do livre co mercia) "criando melhores condic;Oes para a livre empresa': 0 que significa ajustar 0 jogo politico as regras da "livre empresa" - isto e, usando todo 0 poder regulador a disposi~o do governo a servi~o da desregula~ao, do desmantelamento e destrui~ao das leis e estatutos "restritivos as empresas': de modo a dar credibili­dade e poder de persuasao a promessa do governo de que seus poderes reguladores nao serao utilizados para restringir as liber­dades do capital; evitando qualquer movimento que possa dar a impressao de que o territ6rio politicamente administrado pelo go­verna e pouco hospitaleiro COID OS USOS, expectativas e todas as realiza~oes futuras do capital que pensa e age globalmente, ou menos hospitaleiro que as terras administradas pelos vizinhos mais pr6ximos. Na pritic~ isso significa baixos impastos, menos

Trabalho 173

regras e, acima de tudo, urn "mercado de trabalho flexiveC Em termos mais gerais, significa uma popula~ao d6cil, incapaz ou nao­desejosa de oferecer resistencia organizada a qualquer decisao que o capital venha a tomar. Paradoxalmente, os governos podem ter a esperan<;a de manter o capital em S:eu Iugar apenas se o convencerem de que ele esti livre para ir embora - com ou sem aviso previo.

Tendo se livrado do entulho do maquinario volumoso e das enormes equipes de fabrica, o capital viaja !eve, apenas com a bagagem de mao - pasta, computador portatil e telefone celular. 0 novo atributo da volatilidade fez de todo compromisso, espe­cialmente do compromisso estave~ algo ao mesmo tempo redun­dante e pouco inteligente: seu estabelecimento paralisaria o movi­mento e fugiria da desejada competitividade, reduzindo a priori as op~oes que poderiam levar ao aumento da produtividade. As balsas de valores e diretorias administrativas em todo o mundo estiio prontas para premiar todos os passos dados na "dire~ao certa': como "emagrecer" e "reduzir o tamanho': e a punir com a mesma presteza quaisquer noticias de expansao de equipe, au­menta do emprego e envolvimento da empresa em projetos cus­tosos de Iongo prazo. A habilidade de desaparecer como Houdini, "artista da fuga': a estrategia do desvio e da evita~ao e a prontidao e capacidade de fugir se necessaria, esse nucleo da nova politica de desengajamento e descomprometimento, sao hoje sinais de saber e sucesso gerenciais. Como Michel Crozier indicou ha muito tempo, estar livre de la~os complicados, compromissos embara~o­sos e dependencias limitadoras da liberdade de manobra foram sempre as armas preferidas e eficazes da domina~ao; mas a oferta dessas armas e a capacidade de usa-las parecem hoje distribuidas de maneira mais desigual do que nunca antes na hist6ria moderna. A velocidade de movimento se tornou urn fator importante, talvez o principal, da estratifica~ao social e da hierarquia da domina~iio.

As principais fontes de lucro- dos grandes lucros em especial, e portanto do capital de amanha - tendem a ser, numa escala sempre em expansao, ideias e nao ohjetos materials. As ideias sao produzidas uma vez apenas, e ficam trazendo riqueza depen­dendo do numero de pessoas atraidas como compradores/ eli en-

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tes/ consumidores - e niio do numero de pessoas empregadas e envolvidas na replica9iio do prot6tipo. Quando se trata de tornar as ideias lucrativas, os objetos da competi<;ilo sao os c~nsumidores e niio os produtores. Niio surpreende, pois, que hoje o principal compron1isso do capital seja com os consumidores. 86 nessa esfera se pode falar de "dependencia mutua': 0 capital depende, para sua competitividade, efid.cia e lucratividade, dos consumidores - e seus itineritrios sao guiados pela presen~a ou ausencia de consu­midores ou pela chance da produ9iio de consumidores, de gerar e depois fortalecer a demanda pelas ideias em oferta. No planeja­mento das viagens e na prepara9iio de deslocamentos do capital, a presen9a de for9a de traba[ho e apenas uma considera9a0 secun­daria. Conseqi.ientemente, o "poder de pressao" de uma for9a de trabalho local sobre o capital ( sobre as condi96es de emprego e disponibilidade de postos de trabalbo) encolheu consideravel­

mente. Robert Reich17 sugere que as pessoas presentemente envolvi­

das em atividades economicas podem ser divididas em quatro grandes categorias. "Manipuladores de simbolos': pessoas que in­ventam as ideias e maneiras de torn:i-las desej:lveis e vend<lveis, formam a primeira categoria. Os envolvidos na reprodu9iio do trabalho ( educadores ou diversos funcionarios do Estado de bem­estar) pertencem a segunda. A terceira categoria compreende pes­soas empregadas em "servi9os pessoais" ( o tipo de ocupa96es que John O'Neill classificava como "mercadores de peles"), que reque­rem encontros face a face com os que recebem o servi~,;o; os ven­dedores de produtos e os produtores do desejo pelos produtos

formam o grosso desta categoria. Finalmente, a quarta categoria inclui as pessoas que pelo ulti­

mo seculo e meio formaram 0 "substrata social" do movimento operario. Sao, nos termos de Reich, "trabalhadores de rotina': pre­sos a linha de montagem ou (em fabricas mais atualizadas) as redes de computadores e equipamentos eletr&nicos automa­tizados como pontos de contro!e. Hoje em dia tendem a ser as partes mais dispens:iveis, disponlveis e troc:lveis do sistema eco­nomico. Em seus requisitos de emprego niio constam nem habili­dades particnlares, nem a arte da intera9iio social com clientes -

Trobalho 175

e assim silo os mais f<iceis de substituir; tem pow·uN ~1ualidades e_:peciais que poderiam inspirar seus empregadc)f'I~H n clt•Mt~jar man­te-Ios a todo custo; controlam, se tanto, apenas parlc• l'esidual e negligenciavel do poder de barganha. Sabem que sao dispensa­veis, e por isso nao v&em razOes para aderir ou se comprometer com seu trabalho ou entrar numa associa~ao mais duritvel com seus companheiros de trabalho. Para evitar frustra9iio iminente, tendem a desconfiar de qualquer lealdade em rela9iio ao local de trabalho e relutam em inscrever seus pr6prios pianos de vida em urn futuro projetado para a empresa. E uma rea9aO natural a "fle­xibilidade" do mercado de trabalho, que, quando traduzida na experiencia individual de vida, significa que a seguran~a de Iongo prazo e a ultima coisa que se aprende a associar ao trabalho que se realiza.

Como Sennett descobriu ao visitar uma confeitaria de Nova York duas decadas depois de sua visita anterior, "o moral e a motiva9iio dos trabalhadores diminuiu marcadamente depois de sucessivas rodadas de redu9iio de tamanho. Os trabalhadores so­breviventes esperavam pelo novo golpe da foice em vez de exultar com a vit6ria competitiva sabre os demitidos': Mas ele acrescenta outra razao para a diminui~ao do interesse dos trabalhadores por seu trabalho e pelo local de trabalho e para o desaparecimento de seu desejo de investir raciodnio e energia moral no futuro de ambos:

Em todas as formas de trabalho, da escultura a servir refei~6es, as pessoas se identificam com tarefas que as desafiam, tarefas dificeis. Mas nesse Iugar de trabalho flexivel, com seus trabalhadores poliglo­tas que entram e saem irregulannente, com ordens radicalmente di­ferentes a cada dia, 0 maquinario e 0 llnico padrao de ordem, e portanto tern que ser facil de operar par qualquer urn. A dificuldade e contraproducente num regime flexivel. Par urn terrivel paradoxa,

quan~~ diminuimo~ ~ dificuld~~e e a.res~stencia, criamos,as pr6frias cond1~oes para a atiVIdade acnnca e md1ferente dos usuarios. 1

Em torno do outro polo da divisiio social, no topo da piril.mide de poder do capitalismo !eve, circulam aqueles para os quais o espa9o tern pouca ou nenhuma importancia- os que estao fora de

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Iugar em qualquer Iugar em que possam estar fisicamente presen­tes. sao tao leves e vol:lteis quanta a nova economia capitalista que os gerou e dotou de po der. Na descri~ao de Jacques Attali: "Nao possuem fibricas, terras, nem ocupam posic;6es administrativas. Sua riqueza vern de urn recurso port.ltil: seu conhecimento das leis do labirinto?' Eles "adoram criar, jogar e estar em movimento': Vivem numa sociedade "de valores voliteis, despreocupada com o futuro, egoista e hedonista': "Tomam a novidade como boas novas, a precariedade como valor, a instabilidade como imperati­vo, e a hibridez como riqueza."19 Ainda que em graus variados, todos dominam a arte de "viver no labirinto": aceita~ao da deso­rienta~ao, disposi~ao a viver fora do espa~o e do tempo, com ver­tigens e tonturas, sem indica~ao da dire~ao ou dura~ao da viagem em que embarcaram.

Ha alguns meses, sentei com minha mulher num bar de aero­porto esperando par urn voo de conexao. Dais homens par volta dos 30 anos sentaram-se a mesa ao !ado, cada urn armada de urn telefone celular. Em aproximadamente uma bora e meia de espera, nao trocaram uma s6 palavra, embora ambos tenham falado sem interrup~ao - com interlocutores invisiveis do outro !ado da liga­c;ao. 0 que nao quer dizer que se ignorassem mutuamente. De fato, era a percep~iio dessa presen~a que parecia motivar suas a~oes. Os dois homens estavam envolvidos numa competic;ao - intensa, fre­netica e furiosa. Aquele que terminasse a conversa enquanto o outro ainda falava buscava febrilmente outro numero para ligar; claramente, o nllmero de conexOes, o grau de "conectividade': a densidade das respectivas redes, que faziam deles intersec~oes, a quantidade de outras intersec~oes a que podiam se ligar a vonta­de, eram questoes de grande importancia, talvez importancia ma­xima, para ambos: eram indices de nivel social, de posi~ao, poder e prestigio. Ambos gastaram uma hora e meia no que era, em rela~ao ao bar do aeroporto, urn espa~o exterior. Quando o voo que ambos deveriam ·tamar foi anunciado, trancaram simultanea­mente as pastas com identicos gestos sincronizados e sairam, man­tendo os telefones pr6ximos aos ouvidos. Estou certo de que difi­cilmente teriio notado a minha mulher e a mim, sentados a dais metros e observando cada movimento que faziam. No que diz

Trabalho 177

respeito a sua Lebenswelt, estavam (num padrao de antrop6logos ortodoxos censurado par Claude Levi-Strauss) fisicamente pr6xi­mos de n6s, mas, espiritualmente, infinitamente distantes.

Em seu brilhante ensaio sabre o que escolheu chamar de ca­pitalismo "mole': Nigel Thrifr0 observa a native! mudan~a de vocabulirio e do quadro cognitivo que marcam a nova elite global e exterritorial. Para referir-se a suas pr6prias a~oes, usam met:'tfo­ras como "dan<;ar" e "surfar"; nao falam mais de "engenharia'~ mas de culturas e redes, equipes e coalizoes, nem de controle, lideran~a e ger&ncia, mas de influ&ncias. Ocupam-se com formas mais soltas de organiza~ao que possam ser formadas, desmanteladas e repos­tas a curto prazo ou mesmo sem aviso previa; e essa forma fluida de montagem que se adapta a sua visao do mundo circundante como "multiplo, complexo e rapido, e portanto 'ambiguo: 'difuso: e 'pl<lstico~ incerto, paradoxa!, ca6tico mesmo': A organiza<;ao de neg6cios de hoje tern urn elemento de desorganiza~ao delibera­damente embutido: quanta menos s6lida e mais fluida, melhor. Como tudo o mais no mundo, o conhecimento nao pode deixar de envelhecer rapidamente e assim e a "recusa a aceitar 0 conhe­cimento estabelecido': a seguir os precedentes e a reconhecer a sabedoria das li~oes da experiencia acumulada que e agora vista como preceito basico da eficicia e da produtividade.

Os dais jovens com telefones celulares que observei no bar do aeroporto podem ter sido especimes (reais ou aspirantes) dessa novae numericamente reduzida elite dos residentes do ciherespa­~o que prosperam na incerteza e na instabilidade de todas as coisas mundanas, mas o estilo dos dominantes tende a se tornar o estilo dominante - se nao pela oferta de uma escolha atraente, pelo menos pela imposi<;ao de uma vida cuja imita~iio se torna simultaneamente desej<ivel e imperativa, chegando a ser uma questiio de auto-satisfa~ao e sobrevivencia. Poucas pessoas gastam seu tempo em saguOes de aeroportos, e menos ainda sao as que ai se sentem a vontade, ou sao pelo menos suficientemente exterri­toriais para nao se sentir oprimidas ou embara~adas pelo tedio do Iugar e pela multidao desconhecida e barulhenta que o ocupa. Mas muitos, talvez a maioria, sao n&mades sem abandonar suas caver­nas. Podem ainda buscar refugio em seus lares, mas dificilmente

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acharao 1:1 o isolamento, e por mais que tentem nunca estar:io verdadeiramente em casa: os refllgios tern paredes porosas, onde se espalham fios sem conta e que sao facilmente penetradas por ondas aereas.

Essas pessoas sao, como a maioria antes delas, dominadas e '"remotamente controladas"; mas sao dominadas e controladas de uma maneira nova. A lideran~a foi substituida pelo espetaculo: ai daqueles que ousem lhes negar entrada. Acesso a "informa~ao" (em sua maioria eletr6nica) se tornou o direito humano mais ze­losamente defendido e o aumento do bem-estar da popula~ao como urn todo e hoje medido, entre outras coisas, pelo numero de domidlios equipados com (invadidos por?) aparelhos de televisao. E aquilo sobre o que a informa~ao mais informa e a fluidez do mundo habitado e a flexibilidade dos habitantes. "0 noticiario" -essa parte da informa<;ao eletrOnica que tern maior chance de ser confundida com a verdadeira representa~ao do "mundo la fora': e a mais forte pretensao ao papel de "espelho da realidade" ( e a que comumente se da o credito de refletir essa realidade fielmente e sem diston;ao) - est:i na estimativa de Pierre Bourdieu entre os mais peredveis dos hens em oferta; de fato, a vida uti! dos noti­ci:lrios e risivelmente curta se OS comparafiDOS as llOVelas, progra­mas de entrevistas e programas c6micos. Mas a perecibilidade dos notici<lrios enquanto informa<;ao sabre 0 "mundo real" e em si mesma uma importante informa<_;iio: a transmissao das noticias e a celebra~ao constante e diariamente repetida da enorme velocida­de da mudan~a, do acelerado envelhecimento e da perpetuidade dos novos comec;.os.21

Digressao: breve hist6ria do procrostino~ao

Cra.s, em latim, quer dizer "amanha': A palavra tambem costumava ser semanticamente elistica, nao muito diferente do famosamente vago maiiana, para incluir o "'mais tarde" - o futuro como tal. Crastinus e o que pertence ao amanha. Pro-crastinar e p6r alguma coisa entre as coisas que pertencem ao amanha. Por algo la implica imediatamente que 0 amanha nao e 0 lugar natural dessa coisa,

Trabalho l/9

que a coisa em questao nao faz parte por direilo do 111111111hB. I'm· implica~ao, ela faz parte de outro lugar. Qual'? Obvinllll'lll<' o J>l'<'­sente. Para ser destinada ao amanha, essa coisa priniC'iro lc•vt• quP

ser tirada do presente ou teve barrado seu acesso a elt~. "''ProcTaH­

tinar" significa ntio tamar as COiSaS COIDO elas vern, niiu ap;il' Hl'IJ;Illl­

do uma sucessao natural de coisas. Contra uma impress;1o que se tornou comum na era moderna, a procrastinac;.iio niio e uma ques­tao de displid~ncia, indolencia ou lassidao; e uma posi~ao ativa, uma tentativa de assumir o controle da seqUencia de eventos e faze-la diferente do que seria caso se ficasse d6cil e nao se resis­tisse. Procrastinar e manipular as possibilidades da presenra de uma coisa, deixando, atrasando e adiando seu estar presente, man­tendo-a a distancia e transferindo sua imediatez.

A procrastina~ao como pr:\.tica cultural surgiu com a-moderni­dade. Seu novo sentido e seu significado etico derivam do novo significado do tempo, do tempo que tern hist6ria, do tempo que i hist6ria. Esse sentido deriva do tempo concebido como uma pas­sagem entre "momentos presentes" de qualidade diferente e de valor variado; do tempo considerado como viajando em dire~ao a outro presente distinto (e mais desejavel) do presente vivido agora.

Resumindo: a procrastina~ao deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma peregrinac;.ao, como urn movimento que se aproxima de urn objetivo. Em tal tempo, cada presente e avalia­do por alguma coisa que vern depois. Qualquer valor que este presente aqui e agora possa ter nao passari de urn sinal premoni­t6rio de urn valor maior por vir. 0 uso - a tarefa - do presente e levar-nos mais para perto desse valor mais alto. Em si mesmo, o tempo presente carece de sentido e de valor. E, por isso, falho, deficiente e incompleto. 0 sentido do presente esta adiante; o que esta a mao ganha sentido e e avaliado pelo noch-nicht-geworden, pelo que ainda nao existe.

Viver a vida como uma peregrinac;.iio e, portanto; intrinseca­mente aporetico. E obriga cada presente a servir a alguma coisa que ainda-nao-e, e a servi-la diminuindo a distancia, trabalhando para a proximidade e a imediatez. Mas se a distiincia desaparecesse e o objetivo fosse alcan~ado, o presente perderia tudo o que o

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fazia significativo e valioso. A racionalidade instrumental favore­cida e privilegiada pela vida do peregrina leva a busca dos meios que podem realizar o estranho feito de manter o fim dos esfor~os sempre a vista sem nunca chegar Ia., de trazer o fim cada vez mais para perto, mas impedindo ao mesmo tempo que a distilncia caia para zero. A vida do peregrina e uma viagem em dire~ao a reali­zac;ao, mas "realizac;ao" nesta vida e equivalente a perda de senti­do. Viajar em dire~ao a realiza~ao da sentido a vida do peregrina, mas o sentido que da tern algo de urn impulso suicida; esse sentido nao pode sobreviver a chegada ao destino.

A procrastina~ao reflete essa ambivalencia. 0 peregrina pro­crastina para estar mais bern preparado para captar as coisas que verdadeiramente importam. Mas capta-las sinalizara o fim da pe­regrina9ao, e assim tambem o fim de uma vida que dela deriva seu Unico sentido. Por essa raziio, a procrastinac;ao tern uma tend€:ncia a romper qualquer limite de tempo colocado de antemao e a es­tender-se indefinidamente - ad calendar graecas. A procrastina9ao tende a tornar-se seu prOprio objetivo. A coisa mais importante deixada de !ado no ato da procrastina9ao tende a ser o fim da propria procrastina9iio.

0 preceito comportamental e de atitude que fundou a socie­dade moderna e tornou posslvel e inescapclvel o modo moderno de estar no mundo foi o principia do adiamento da satisfaqiio ( da satisfa~ao de uma necessidade ou urn desejo, do momento de uma experiencia agradavel, do gozo ). E ness a transforma9ao que a pro­crastinac;ao entra na cena moderna ( ou, mais exatamente, to rna moderna a cena). Como explicou Max Weber, foi esse adiamento particular, e nao a pressa e a impaci&ncia, que resultou em moder­nas inova9iies espetaculares e frutiferas - como, de urn !ado, a acumula9iio do capital e, de outro, a propaga~ao eo enraizamento da etica do trabalho. 0 desejo de melhorar deu ao esfor90 seu estimulo e momenta; mas o "nao ainda': o "nao ja': conduziu esse esforc;o a sua conseqii&ncia niio-prevista, que veio a ser conhecida como crescimento, desenvolvimento, acelera<;ao e, portanto, socie­

dade moderna. Na forma do "adiamento da satisfa~ao': a procrastina9iio retem

toda sua ambivalencia interior. Libido e 'Fanatos competem entre

Trabalho 181

si em cada ato de adiamento, e cada adiamento e 0 triunfo da Libido sobre seu inimigo mortal. 0 desejo estimula o esfor9o pela esperan<;a de satisfa<;ao, mas o estimulo retem sua for<;a enquanto a satisfa~ao desejada permanecer uma esperan9a. Todo o poder motivador do desejo e investido em sua realiza9iiO. No fim, para permanecer vivo o desejo tern que desejar apenas sua propria sobrevivencia.

Na forma do "adiamento da satisfa<;ao'~ a procrastina<;ao pOe arar e semear acima de colher e ingerir o produto, o investimento acima do lucro, a poupanc;a acima do gasto, a autoconten<;ao acima da auto-indulgencia, o trabalho acima do consume. Mas nunca diminuiu o valor das coisas a que negava prioridade nem subesti­mou seu merito e significac;ao. Essas coisas eram OS premios da abstinencia auto-infligida, as recompensas do adiamento volunt:l­rio. Quanta mais severa a auto-restri<;ao, maior seria eventualmen­te a oportunidade de auto-indulgencia. Poupe, pois quanta mais voce poupar mais voce podera gastar. 'J}abalhe, pois quanta mais voce trabalhar mais voce consumiri. Paradoxalmente, a nega9ao da imediatez, a aparente degrada9ao dos objetivos, redunda em sua eleva9iio e enobrecimento. A necessidade de esperar magnifi­ca os poderes sedutores do premia. Longe de rebaixar a satisfa9ao dos desejos como motivo para os esfor9os da vida, o preceito de adia-la torna-a o proposito supremo da vida. 0 adiamento da sa­tisfa9iio mantem o produtor a servi9o do consumidor- mantendo o consumidor que vive no produtor plenamente acordado e de olbos bern abertos.

Devido a sua ambivalencia, a procrastina9ao alimenta duas tendencias opostas. Uma leva a etica do trabalho, que estimula a troca de lugares entre meios e fins e proclama a virtude do traba­lho pelo trabalho, o adiamento do gozo como urn valor em si mes­mo, e, valor mais refinado do que os valores que se destinava a servir, a etica do trabalho insiste em que 0 adiamento se estenda indefinidamente. Outra tendencia leva a estetica do consumo, re­baixando o trabalho ao papel puramente subordinado e instru­mental de revolver a terra, uma atividade que deriva todo seu valor daquilo para que prepara 0 terreno, e tambem leva a consi-

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dera<;[o da abstinepcia e da renllncia como sacrificios talvez ne­cessaries~ mas embarat;;:osos e corretamente mal-vistas, a serem reduzidos ao minima.

Como uma faca de dois gumes, a procrastina~ao pode servir a sociedade moderna tanto em seu estagio "solido" como no "liqui­do'; tanto em seu estagio de produtor como no de consumidor, ainda que sobrecarregue cada estagio com tensoes e conflitos de atitude e axiol6gicos nao-resolvidos. A passagem para a sociedade de consumidores do presente significou portanto uma mudan~a de enfase mais que uma mudan~a de valores. E, no entanto, levou o principia da procrastina~ao ao ponto de ruptura. Esse principia esta hoje vulneravel, e perdeu o escudo protetor da proibi~ao etica. 0 adiamento da satisfa~ao nao e mais urn sinal de virtude moraL E uma prova.;;:ao pura e simples, uma problemcltica sobre­carga que sinaliza imperfei<;5es nos arranjos sociais ou inadequa­<;[o pessoal, ou nas duas ao mesmo tempo. Nao uma exorta<;[o, mas uma admissao resignada e triste de urn estado de coisas de­sagradavel (mas remediavel).

Se a etica do trabalho pressiona por uma extensao indefinida do adiamento, a estetica do consume pressiona por sua aboli<;[o. Vivemos, como disse George Steiner, numa "'cultura de cassino': e no cas sino a chamada nunca muito distante de "rien ne va plus" coloca o limite a procrastina~ao; se urn ato merece recompensa, a recompensa e instantilnea. Na cultura do Cassino, a espera e tirada do querer, mas a satisfa~ao do querer tambem deve ser breve; deve durar apenas ate que a bolinha da roleta corra de novo, ter tao pouca dura~ao quahto a espera, para nao sufocar 0 desejo, que deveria preencher e reinventar- desejo que e a recompensa mais ambicionada no mundo dominado pela estetica do consume.

E assim se encontram o comec;o e o fim da procrastina<;io, a distancia entre o desejo e sua satisfa~ao se reduz a urn momenta de extase - extase que, como observou John Thsa (no Guardian de 19.7.1997) deve haver em quantidade: "Imediato, constante, divertido, agradavel, em quantidade cada vez maior, em formas cada·vez mais diversificadas, em ocasiOes cada vez mais freqiien­tes:' 0 que conta, entre as qualidades das coisas e dos atos e s6 a

Trabalho 183

"auto-satisfac;ao instantilnea, constante e irrefletida': Obviamente a demanda de que a satisfat;ao seja instantcinea vai contra 0 prin~ cipio da procrastina<;ao. Mas, sendo instantilnea, a satisfa<;ao nao pode ser constante, a menos que tambem seja de curta dura<;ao, impedida de se estender alem da dura~ao de seu poder de diver­sao e entretenimento. Na cultura do cassino, o principia da pro­crastina~ao sofre ataque em duas frentes ao mesmo tempo. Estiio sob pressao o adiamento tanto da chegada da satisfa~ao quanta 0

de sua partida.

Esse e, porem, urn dos !ados da hist6ria. Na sociedade dos produtores, o principia Ctico do adiamento da satisfa<;iio costuma­va assegurar a durabilidade do esfor~o do trabalho. Na sociedade dos consumidores, por outro !ado, o mesmo principia pode ainda ser necessaria na pratica para assegurar a durabilidade do desejo. Muito mais efemero e fragil que o trabalho, e, ao contrario do trabalho, nao refor~ado por retinas institucionalizadas, 0 desejo nao tern chance de sobreviver se a satisfac;a~ for deixada para as calendas gregas. Para se manter vivo e fresco, o desejo deve ser, algumas vezes, e freqi.ientemente, satisfeito - ainda que a satisfa­~ao signifique o fim do desejo. A sociedade dominada pela estetica do consume precisa portanto de urn tipo muito especial de satis­fa~ao - semelhante ao pharmakon de Derrida, essa droga curativa que e ao mesmo tempo urn veneno, ou melhor, uma droga que deve ser dosada cuidadosamente, nunca na dosagem completa -que mata. Uma satisfa<;ao que nao e realmente satisfat6ria, nunca bebida ate o fim, sempre abandonada pela metade ...

A procrastina~ao serve a cultura do consumidor pela sua auto­nega~ao. A fonte do esfor~o criativo nao e mais o desejo induzido de adiar a satisfa~ao do desejo, mas o desejo induzido de encurtar o adiamento ou aboli-lo de todo, acompanhado do desejo induzi­do de encurtar a dura~ao da satisfa~ao quando ela chega. A cultura em guerra com a procrastinac;ao e uma novidade na hist6ria mo­derna. Ela nao tern lugar para tomar distilncia, nem para reflexao, continuidade, tradi~ao - essa Wi"ederholung (recapitula~ao) que, de acordo com Heidegger, era a modalidade do Ser como o co­nhecemos.

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Os la~os humanos no mundo fluido

Os dois tipos de espa~o, ocupados pelas duas categorias de pes­seas, sao marcadamente diferentes, mas inter-relacionados; nao conversam entre si, mas estao em constante comunicac;ilo; tern muito pouco em comum, mas simulam semelhan~a. Os dois espa­~os sao regidos por logicas drasticamente diferentes, moldam di­ferentes experiencias de vida, geram itinerarios divergentes e nar­rativas que usam definic;Oes distintas, muitas vezes opostas, de codigos comportamentais semelhantes. E no entanto os dois espa­~os se acomodam dentro do mesmo mundo - e o mundo de que ambos fazem parte e 0 mundo da vulnerabilidade e da precarie­dade.

0 titulo de urn artigo apresentado em dezembro de 1997 por urn dos analistas mais incisivos de nos so tempo, Pierre Bourdieu, e "Le precarite est aujourd'hui partout"22 0 titulo diz tudo: pre­cariedade, instabilidade, vulnerabilidade, e a caracteristica mais difundida das condi~oes de vida contemporaneas ( e tambem a que se sente mais dolorosamente). Os teoricos franceses falam de prfcaritt!, os alemaes, de Unsicherheit e Risikogesellschaft, os italia­nos, de incertezza e os ingleses, de insecurity- mas todos tern em mente o mesmo aspecto da condi~ao humana, experimentada de varias formas e sob names diferentes por todo 0 globo, mas sen­tida como especialmente enervante e deprimente na parte alta­mente desenvolvida e prospera do planeta - por ser urn fato novo e sem precedentes. 0 fenOmeno que todos esses conceitos te"ntam captar e articular e a experiencia combinada da falta de garantias (de posi~ao, titulos e sobrevivencia ), da incerteza (em rela~ao a sua continua~ao e estabilidade futura) e de inseguranra (do corpo, do eu e de suas extensoes: posses, vizinhan~a, comunidade).

A precariedade e a marca da condi~ao preliminar de todo o resto: a sobrevivencia, e particularmente o tipo mais comnm de sobrevivencia, a que e reivindicada em termos de trabalho e em­prego. Essa sobrevivencia j:i se tornou excessivamente frigil, mas se torna mais e mais frigil .e menos confiivel a cada ano que passa. Muitas -pessoas, quando ouvem as opini5es contradit6rias dos es­pecialistas, mas em geral apenas olhando em volta e pensando

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sabre o destine de seus entes pr6ximos e queridos, suspeitam com boas razOes que, por mais admir:lveis que sejam as caras e as promessas que os politicos fazem, o desemprego nos paises pros­peres tornou-se "estrutural": para cada nova vaga ha alguns em­pregos que desapareceram, e simplesmente nao hi empregos su­ficientes para todos. Eo progresso tecnologico - de fa to, o proprio esforc;o de racionalizac;ao - tende a anunciar cada vez menos, e nao mais, empregos.

Quao frageis e incertas se tornaram as vidas daqueles ja dis­pensaveis como resultado de sua dispensabilidade nao e muito dificil de imaginar. A questao e, porem, que - pelo menos psico­logicamente - todos OS Outros tambem sao afetados, ainda que por enquanto apenas obliquamente. No mundo do desemprego estrutural ninguem pode se sentir verdadeiramente seguro. Em­pregos seguros em empresas seguras parecem parte da nostalgia dos av6s; nero hi muitas habilidades e experiencias que, uma vez adquiridas, garantam que 0 emprego sera oferecido e, uma vez oferecido, sera duravel. Ninguem pode razoavelmente supor que esta garantido contra a nova rociada de "redu~ao de tamanho': "agilizat;iio" e "racionaliza<;io': contra mudanc;as erd.ticas da de­manda do mercado e press5es caprichosas mas irresistiveis de "competitividade': "produtividade" e "efic:lcia': "Flexibilidade'' e a palavra do dia. Ela an uncia empregos sem seguran~a, compromis­sos ou direitos, que oferecem apenas contratos a prazo fixo ou renov<lveis, demissao sem aviso previa e nenhum direito a com­pensa~ao. Ninguem pode, portanto, sentir-se insubstituivel - nem os ja demitidos nem os que ambicionam o emprego de demitir os outros. Mesmo a posi~ao mais privilegiada pode acabar sendo apenas tempor<iria e '"ate disposi~ao em contririo'~

Na falta de seguran~a de Iongo prazo, a "satisfa~ao instantii­nea" parece uma estrategia razoavel. 0 que quer que a vida ofere­~a, que o fa~a hie et nunc- no a to. Quem sabe o que o amanha vai trazer? 0 adiamento da satisfa~ao perdeu seu fascinio. E, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esfor~o investidos hoje ve­nham a contar como recursos quando chegar a hora da recompen­sa. Esta Ionge de ser certo, alem disso, que os premios, que hoje parecem atraentes serao tao desejaveis quando fmalmente forem

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conquistados. Todos aprendemos com amargas experiencias que os premios podem se tornar riscos de uma hora para outra e pre­mios rcsplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas verne v[o COID velocidade estonteante, todos OS objetOS de desejo se tornam obsoletes, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveita-los. Estilos de vida que sao "chiques" hoje serao amanha alvos do ridicule. Citando Bourdieu uma vez mais: "Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de nosso tempo nao deveriam deixar de relaciona-lo as condi~Oes sociais e econ6micas que o favorecem ... " Quando Roma pega fogo e hit muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o ind~ndio, tocar violino n[o parece mais hobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa.

Condi~5es econ6micas e sociais precclrias treinam homens e mulheres ( ou os fazem aprender pelo caminho mais dificil) a per­ceber o mundo como urn conteiner cheio de objetos descartciveis, objetos para uma sO utiliza<;iio; o mundo inteiro -inclusive outros seres humanos. Alem disso, o mundo parece ser constituido. de "caixas pretas': hermeticamente fechadas, e que jamais deverao ser abertas pelos usuaries, nem consertadas quando quebram. Os me­dlnicos de autom6veis de hoje nao sao treinados para consertar motores quebradas ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as pe~as usadas ou defeituosas e substitui-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles nao tern a menor ideia da estrutura interna das "pe~as sobressalentes" ( uma expressao que diz tudo ), do modo misterioso como funcionam; nao consi­deram esse entendimento e a habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competen­cia. Como na oficina medinica, assim tambem na vida em geral: cada "pe~a" e "sobressalente" e. substituivel, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se nao e preciso 111ais que alguns momentOS para jogar fora a pet;a dani­ficada e colocar outra em seu Iugar?

Num mundo em que o futuro e, na melhor das hip6teses, sombrio e nebuloso, porem mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar 0 interesse pri­vado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em

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nome de uma felicidade futura nao parecem uma proposi<;iio atraente, ou mesmo razoivel. Qualquer oportunidade que nao for aproveitada aqui e agorae urn a oportnnidade perdida; nao a apro­veitar e assim imperdoavel e nao hit desculpa facil para isso, e nem justificativa. Como OS comprornissos de hoje sao obsdculos para as oportunidades de amanha, quanta mais forem !eves e superfi­ciais, menor o risco de prejuizos. "Agora" e a palavra-chave da estrategia de vida, ao que quer que essa estrategia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisiveL o viaj ante esperto fara o passive! para imitar os felizes globais que viajam leves; e nao derramarao muitas ligrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os la9os humanos nao sao como pe<;as de autom6vel - que raramente vern prontos, que tendem a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que nao sao faceis de substituir quan­do perdem a u tilidade.

E assim a politica de "precariza9ao" conduzida pelos operado­res dos mercados de trabalho acaba sendo apoiada e refor~ada pelas politicas de vida, sejam elas adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas. Ambas convergem para o mesmo resultado: o enfraquecimento e decomposi~ao dos la9os humanos, das comunidades e das parcerias. Compromissos do tipo "ate que a morte nos separe" se transformam em contratos do tipo '"en­quanta durar a satisfa9ao'; temporais e transit6rios por defini9ao, por projeto e por impacto pragmatico - e assim passiveis de rup­tura unilateral, sempre que urn dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salva-la a qualquer - incalculilVel - custo.

Em outras palavras, la<;os e parcerias tendem a ser vistas e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e nao produ­zidas; estio sujeitas aos mesmos criterios de avalia<;ao de todos os outros objetos de consume. No mercado de consume, OS produtos duraveis sao em geral oferecidos por urn "periodo de teste"; a devoJu9a0 do dinheiro e prometida se 0 COmprador estiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria e "con­cebido" ·em tais termos, en tao nao e mais tarefa para ambos OS

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parceiros ~"fazer com que a rela<;iio funcione': "na riqueza e na pobreza': na saUde e na doen<;a, trabalhar a favor nos bans e maus mementos, repensar, se necess:lrio, as pr6prias preferencias, con­ceder e fazer sacrificios em favor da uma uniiio duradoura. :E, em vez disso, uma questao de obter satisfa~ao de urn produto pronto para o consume; se o prazer obtido nao corresponder ao padrao prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a a<;iio de div6rcio, com base nos direitos do consumidor. Nao ha qualquer razao para ficar com urn produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outre "novo e aperfei­~oado" nas lojas.

0 que se segue e que a suposta transitoriedade das parcerias tende a se tornar uma profecia autocumprida. Se o la~o humane, COIDO todos OS OUtrOS objetOS de CODSUIDO, niio e alguma coisa a

ser trabalhada com grande esfor~o e sacrificio ocasional, mas algo de que se espera satisfac;iio irnediata, instantlliea, no momenta da compra - e alga que se rejeita se niio satisfizer, a ser usada apenas en quanta continuar a satisfazer ( e nern urn minuto al6m dis so) -, entao nao faz sentido "jogar dinheiro born em cima de dinheiro ruim': tentar cada vez mais, e menos ainda sofrer com o descon­forto e o embara<;o para salvar a parceria. Mesmo urn pequeno problema pode causar a ruptura da parceria; desacordos triviais se tornam conflitos amargos, pequenos atritos sao tornados como sinais de incompatibilidade essencial e irreparavel. Como o soci6-logo norte-americana W.L Thomas teria dito, se tivesse testemu­nhado essa situa<;ao: seas pessoas sup6em que seus compromissos sao tempod.rios e ate segunda ordem, esses compromissos ten­dem a se tornar temponlrios em conseqiit~ncia das pr6prias a<;6es dessas pessoas.

A precariedade da existencia social inspira uma percep~ao do mundo em volta como urn agregado de produtos para consume imediato. Mas a percep<;ao do mundo; com seus habitantes. como urn conjunto de itens de consume, faz da negocia~ao de la~os humanos duradouros algo excessivamente dificil. Pessoas insegu­ras tendem a ser irrit<lveis; sao tambem intolerantes com qualquer coisa que funcione como obst:lculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serao de qualquer forma frustrados, nao ha escas-

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sez de coisas e pesseas que sirvam de objeto a essa intolerancia. Se a satisfa<;ao instant3.nea e a Unica maneira de sufocar e sen­timento de inseguran9a (sem jamais saciar a sede de seguran~a e certeza ), nao hrl razao evidente para ser tolerante em rela<;ao a alguma coisa ou pessoa que nao tenha 6bvia relevancia para a busca da satisfa~ao, e menos ainda em rela~ao a alguma coisa ou pessoa complicada ou relutante em trazer a satisfa9ao que se busca.

H3. ainda outra liga<;ae entre a "consumiza<;ao" de urn mundo precario e a desintegra~ao dos la~os humanos. Ao contrario da produ~ao, 0 consume e uma atividade solitilria, irremediavelmente selitiria, mesme nos mementos em que se realiza na companhia de outros. Esfor~os produtivos (em geral de Iongo prazo) reque­rem coopera~ao mesmo quando apenas demandam a adi~ao de fer<;a muscular bruta: se carregar urn pesado tronco de urn lugar para outre requer uma hora a oito homens, nao se segue que urn homem o possa fazer em oito (ou qualquer numero de) horas. No caso de tarefas mais complexas que envolve1n a divisi'iu do traba­lho e demandam diversas habilidades especializadas que nao se encontram em uma s6 pessoa, a necessidade de coopera<;ao e ain­da mais 6bvia; sem ela, o produto nao teria chance de surgir. E a coopera<;ao que transforma os esfor<;es diversos e dispersos em esfor<;es produtivos. No case do consume, porem, a coopera<;ao nao s6 e desnecessiria como e inteiramente superflua. 0 que e consumido o e individualmente, mesmo que num saguao replete. Num toque de seu genic versatil, Luis Buiiuel (em 0 jantas;ma da liberdade) mostra o ato de comer, esse ato prototipico de gregarie­dade e sociabilidade, como a mais solitaria e secreta de todas as atividades, zelosamente protegida da curiosidade dos outros.

A autoperpetua~fio do folia de confian~a

Em seu estudo retrospective da sociedade capitalista/ moderna do "desenvolvimento compulsive e obsessive': Alain Peyrefitte23 che­ga a conclusao de que a caracteristica mais importante, e mesme constitutiva dessa sociedade era a corifiam;a: confian<;a em si roes-

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mo, nos outros e nas institui<;6es. Os tres constituintes da confian­<;a costumavam ser indispensiveis. Condicionavam-se e se apoia­vam entre si: sem urn deles, os outros dois implorllriam e entra­riam em colapso. Poderiamos descrever a moderna constru~ao da ordem como urn esforc:;o continuo de implantar as funda<;Oes ins­titucionais da confianc:;a: oferecendo uma estrutura est:ivel para o investimento da confianc:;a e tornando aceitivel a crenc:;a de que os valores presentemente estimados continuariam a ser estimados e desejados, e de que as regras para a busca e obten~ao desses valores continuariam a ser observadas, nao seriam infringidas e seriam imunes a passagem do tempo.

Peyrefitte indica a empresa que gera empregos como o Iugar por excelencia para a dissemina~iio e cultivo da confian~a. 0 fato de que a empresa capitalista fosse tambem o foco de conflitos e confrontac:;Oes nao deve nos enganar: nao hi en.frentamento sem conjianr;a. Se OS empregados lutavam por seus direitos, e porque confiavam no "poder" do quadro em que, como esperavam e que­riam, seus direitos se inseriam; confiavam na empresa como lugar adequado a quem entregavam seus direitos para guarda.

Esse nao e mais o caso, ou pelo menos deixa rapidamente de se-lo. Nenhuma pessoa racional esperaria passar toda sua vida, ou pelo menos boa parte deJa, em uma mesma empresa. A maioria das pessoas racionais preferiria confiar as economias de toda a vida aos notoriamente arriscados fundos de investimento e companhias de seguros, que jogam nas balsas, e n1io con tar com as pens5es que as empresas em que atualmente trabalham podem pagar. Como bern resumiu Nigel Thrift recentemente, "e muito dificil construir a confian<;a em organiza<;Oes que est1io sendo ao mesmo tempo 'desmontadas~ 'reduzidas' e 'reengenheirizadas':'

Pierre Bourdieu24 mostra a liga~iio entre o colapso da confian­~a eo enfraquecimento da vontade de engajamento politico e a~iio coletiva: a capacidade de fazer proje<;Oes para o futuro, sugere, e a conditio sine qua non de todo pensamento "transformador" e de todo esfor~o de reexaminar e reformar o estado presente das coi­sas -mas proje<;Oes sabre o futuro raramente ocorrer1io a pessoas que nao tern o pe firme no presente. A quarta categoria de Reich claramente carece dessa firmeza. Presos como est1io a seus lugares,

Trabalho 111

impedidos de se movere detidos no primeiro po•to tl•• l\'111111111, se o fizerem, estiio numa posic;ao a priori inferior :1 du•npll•tl qua·\' se move livremente. 0 capital e cada vez mais global, ••I•·•. put·.lm, permanecem locais. Por essa raz1io estiio expostoH, dt'hltriiBUtUit

aos inescrut:lveis caprichos de misteriosos "investidon··t ,, --,"hi

nistas': e das ainda mais desconcertantes "for<_;as do 1111'11 t1tln 1:

"termos de troca" e "demandas da competic;1io'~ 0 qu(' tpwl •p11-1

ganhem hoje lhes pode ser tirado amanha sem aviso pri·v10• N,l>, podem veneer. Nem- sendo as pessoas racionais que sao ou h11,1111

por ser- estao dispostos a arriscar a !uta. E improvavel qu., ,..-~,, mulem suas queixas como uma questiio politica e se volten1 p;H al

o poder politico estabelecido em busca de repara~ao. Como pn· viu Jacques Attali ha alguns anos, "o poder residira amaoha "" capacidade de bloquear ou facilitar o movimento por certas via<. 0 Estado nao exercera seus poderes para controlar a rede. E assim a impossibilidade de exercer o controle sabre a rede enfraqueceri irreversivelmente as institui<;Oes politicas'~25

A passagem do capitalismo pesado ao !eve e da modernidade s6lida a fluida ou liquefeita e 0 quadro em que a hist6ria do movimento dos trabalhadores foi inscrita. Ela tambem vai Ionge para dar sentido as not6rias reviravoltas dessa hist6ria. N1io seria nem razoavel nem particularmente esclarecedor dar conta dos lu­gubres dilemas em que o movimento dos trabalhadores caiu na parte "avan~ada" (no sentido "modernizante'') do mundo, em re­la~ao a mudan~a na disposi~ao do publico - tenha sido ela pro­duzida pelo impacto debilitante dos meios de comunica~ao de mass a, por uma conspira<;1io dos anunciantes, pela sedu tora atra­~iio da sociedade do consumo ou pelos efeitos soporiferos da sociedade do espetaculo e do entretenimento. Culpar os ataba­lhoados ou ambiguos "politicos trabalhistas" tambem niio ajuda. Os fen&menos invocados nessas explica<;Oes nao sao imagin:lrios, mas nao fnncionariam como explica(.;Oes se nao fosse pelo fato dP que o contexto da vida, o ambiente social em que as pessoas (raramente por sua propria escolha) conduzem os afazeres da vida, mudou radicalmente desde o tempo em que os trabalhadores que se amontoavam nas fabricas de produ~iio em larga escala se uniam para lutar por termos mais humanos e compensadores de

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venda de seu trabalho, e os te6ricos e praticos do movimento dos trabalhadores sentiam na solidariedade destes o desejo, informe e ainda nao articulado (mas inato e a longo prazo avassalador), de uma "boa sociedade" que efetivaria os prindpios universais da justi~a.

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5 • COMUNIDADE

As diferenc;as nascem quando a razio niio est:l inteiramente des­perta ou voltou a adormecer. Esse era o credo implicito que em­prestava credibiJidade a clara confian~a que OS Jiberais pos-iJumi­nistas depositavam na capacidade dos individuos humanos para a imaculada concep~ao. N6s, humanos, somas dotados de tudo de que todos precisarn para tomar o caminho certo que, uma vez escolhido, sera o mesmo para todos. 0 sujeito de Descartes e o homem de Kant, armadas da raziio, niio errariam em seus cami­nhos humanos a menos que empurrados ou atraidos para fora da reta trilha iluminada pela razao. Escolhas diferentes sao o sedi­mento de trope~os da hist6ria- o resultado de uma lesao cerebral chamada pelos v<lrios names de preconceito, superstic;iio ou falsa consci€.ncia. Ao contd.rio dos veredictos eindeutigda raziio que sao propriedade de cada ser humano, as diferen~as de juizo tern ori­gem coletiva: os "idolos" de Francis Bacon estiio onde os homens circularn e se encontram - no teatro, num mercado, em festas tribais. Libertar o poder da razao humana significava libertar o individuo de tudo isso.

Esse credo foi trazido a tona pelos criticos do liberalismo. Nao eram poucos os criticos, que denunciavam a interpretac;ao liberal do legado do Iluminisrno par entender errado as coisas ou par errar ao faz€.-las. Poetas romanticos, historiadores e soci6logos se uniram aos politicos nacionalistas ao observar que - antes mesmo que OS homens come<;assem a exercitar seus cerebrOs para criar o rnelhor c6digo de convivio que sua razao podia sugerir - eles ja tinham urna hist6ria (coletiva) e costumes (coletivamente segui­dos). Nossos contemporaneos comunitirios dizem quase o mes­mo, apenas utilizando termos diferentes: quem se "auto-afirma" e

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se ""autoconstr6i" nao e 0 individuo "'desacomodado" e "desimpe­dido': mas uma pessoa que usa a linguagem e e escolarizada/ so­cializada. Nem sempre e clara 0 que OS crlticos tern em mente: a visao do individuo autocontido e falsa ou prejudicial? Devem OS

liberais ser censurados por pregar a "opiniao falsa" ou por fazer,

inspirar ou absolver a falsa politica? Parece, contudo, que a recente querela entre liberais e comu­

nitirios diz respeito a politica e nao a "natureza humana". A ques­tao nao e tanto saber se a Iiberta~ao do individuo das opinioes herdadas e da garantia coletiva contra as inconvenienci~s da res­ponsabilidade individual acontece ou nao- mas se isso e hom ou ruim. Raymond Williams percebe hi muito que o que e notivel sabre a "'comunidade" e que ela sempre existiu. _Hci como~ao em torno da necessidade de comunidade principalmente porque e cada vez menos clara se as realidades que os retratos da "comuni­dade" afirmam representar sao evidentes, e, se, caso possam ser encontradas, merecerao ser tratadas, em vista da expectativa de sua dura~ao, com o respeito que exigem. A valente defesa da co­munidade e a tentativa de restaurar sua posic;ao negada pelos liberais dificilmente teriam acontecido se nao fosse pelo fato de que os arreios com os quais as coletividades atam seus membros a uma hist6ria conjunta, ao costume, linguagem e escola, ficam mais esgar~ados a cada ano que pas sa. No estagio liquido da mo­dernidade, s6 sao fornecidos arreios com ziper, e o argumento para sua venda e a facilidade com que podem ser usados pela ~anha e despidos a noite ( ou vice-versa). As comunidades vern em v:irias cores e tamanhos, mas, se colocadas num eixo weberia­no que vai de ""leve manto" a "'gaiola de ferro': aparecerao todas

notavelmente proximas do primeiro polo. Na medida em que precisam ser defendidas para sobreviver e

apelar para seus pr6prios membros para que assegurem essa s~­brevivencia com suas escolhas individuais e assumam responsabi­lidade individual por essa sobrevivencia - todas as comunidades sao postulada.t mais projetos que realidades, alguma coisa que vern depois e nao antes da escolha individual. A comunidade "tal como aparece nas pinturas comunid.rias" poderia ser suficientemente

Comunidade IV\

tangivel para ficar invisivel e permitir o silencio; mas os comuJdli'l rios nao pintam suas semelhanc;as, e muito menos as exibern.

Esse e o paradoxa interno do comunitarismo. Dizer "'e bon1 ser parte de uma comunidade" e urn testemunho oblique de nao fazer parte, ou nao fazer parte por muito tempo, a menos que os musculos e mentes dos individuos sejam exercitados e expandi­dos. Para realizar o projeto comunitirio, e preciso apelar as mes­missimas (e desimpedidas) escolhas individuais cuja possibilida­de havia sido negada. Nao se pede ser urn comunitario bona fide sem acender uma vela para o diabo: sem admitir numa ocasiao a liberdade da escolha individual que senega em outra.

Aos olhos dos logicos, essa contradi~ao poderia por si so de­sacreditar o esfor~o de disfar~ar o projeto politico comunitario como uma teoria descritiva da realidade social. Para o sociologo, no entanto, o que constitui urn importante fato social que merece ser explicado/compreendido e a propria popularidade (talvez crescente) das ideias comunitarias (enquanto o fato de que o dis­farce tenha sido tao born a ponto de nao obstruir o sucesso comu­nit:lrio nao melindraria muito, sociologicamente falando - e cor­riqueiro demais ).

Em termos sociol6gicos, o comunitarismo e uma rea<;iio_ espe­ravel a acelerada "liquefa~ao" da vida moderna, uma rea~ao antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborre­cida e incOmoda entre suas numerosas conseqii@ncias penosas -o crescente desequilibrio entre a liberdade e as garantias indivi­duais. 0 suprimento de provisOes se esvai rapidamente, enquanto o volume de responsabilidades individuais (atribuidas, quando nao exercidas na pr:ltica) cresce numa escala sem precedentes para as gera~oes do pos-guerra. Urn aspecto muito visivel do desapare­cimento das velhas garantias e a nova fragilidade dos la~os huma­nos. A fragilidade e transitoriedade dos la~os pode ser urn pre~o inevidvel do direito de os individuos perseguircm seus objetivos individuais, mas nao pode deixar de ser, simultaneamente, urn obstaculo dos mais fonnidaveis para perseguir eficazmente esses objetivos - e para a coragem necessiria para persegui-los. Isso tambem e urn paradoxa- e profundamente enraizado na natureza da vida na modernidade liquida. E nem e a primeira vez que

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situa.:;6es paradoxais provocam e evocam respostas parado~ai~. A luz da natureza paradoxa! da "individualiza~ao" moderna-hqmda, a naturez;a contradit6ria da resposta comunitaria ao paradoxa nao deve espantar: a primeira e uma explica~ao adequada da segunda, enquanto esta e Uffi efeito ad~quado da pri~eira. - I

0 comunitarismo renasc1do responde a questao genu1na e pungente de que o pendulo oscila radicahnente - e talvez para Ionge demais - afastando-se do polo da seguran~a na diade dos valores humanos fundamentais. Par essa razao, o evangelho comu­nitario tem uma grande audiencia. Ele fala em nome de milhoes: precariti, como insiste Bourdieu, estaujourd)huipartou~- ela pe~1e­tra cada canto da existencia humana. Em seu recente livre Proteger ou disparaltre.,1 urn irado manif~sto contra a ~~dolenc~a e a. hipo­crisia das ·elites do poder de hoje em face de !a montee des znsecu­rites: Philippe Cohen lista o desemprego (nove de cada dez novas vagas sao estritamente temporarias e de curto prazo ), as perspec­tivas incertas na velhice e os infortUnios da vida urbana como as principais fontes da difusa ansiedade em rela~ao ao presente, ;o dia de amanha e ao futuro mais distante: a falta de seguran~a e o que une as tres, e 0 principal apelo do comunitarism.o e ~ promess.a de urn porto seguro, o destino dos sonhos dos mannhe1ros perdl­dos no mar turbulento da mudanc;a constante, confusa e Imprevl-

sivel. Como observou amargamente Eric Hobsbawm, "a palavra 'co-

munidade' nunca foi utilizada tao indiscriminadamente quanto nas dE:cadas em que as comunidades no sentido sociol6gico se tornaram dificeis de encontrar na vida real':2 "Hom ens e mulheres procuram grupos de que possam fazer parte, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo o mais se deslo,ca e muda, em que nada mais e certo:'3 Jock Young faz urn sumano SUClll.to da observa~ao de Hobsbawm: "Exatamente quando a comumdade entra em colapso, inventa-se a identidade:'4 Pode-se dizer que a "comunidade" do evangelho comunitario [communi('! of the com­munitarian gospe~ nao e a Gemeinschaft pre-estabet;cida e se~ura.~ mente fun dada da teo ria social ( e formulada como le1 da h1stor1a por Ferdinand Tonnies), mas urn criptonimo para a "identidade" zelosamente buscada mas nunca encontrada. E como observou

Comunidade 197

Orlando Patterson ( citado por Eric Hobsbawm), em bora as pes­soas tenham que escolher entre diferentes grupos de referencia de ic1entidade, sua escolha implica a forte crenc;a de que quem esco­lhe nao tern op~ao a nao ser 0 grupo especifico a que "pertence':

A comunidade do evangelho comunitario e urn lar evidente ( o lar familiar, nao urn lar achado ou feito, mas urn lar em que se nasceu, de tal forma que nao se pode encontrar a origem, a "razao de existir': em qualquer outro Iugar): e um tipo de Jar, por certo, que para a maioria das pessoas e mais como urn belo conto de fadas que uma questiio de experiencia pessoal. (A casa familiar, outrora envolta seguramente por uma densa rede de habitos rotinizados e expectativas costumeiras, teve as protec;5es desmanteladas e esti inteiramente amerce das mares que a~oitam 0 resto da vida.) Que o lar esteja fora do dominio da experiencia ajuda: seu aconchego nao pode ser posto a prova, e seus atrativos, como sao imaginados, ficam imunes aos aspectos menos atraentes do pertencimento obrigat6rio e das obriga<;Oes nao~negociiveis - as cores mais for­tes estao ausentes da palheta da imagina~iio.

Ser urn lar evidente tambem ajuda. Os que estavam presos dentro de uma casa com urn de alvenaria podiam, vez ou outra, ser assaltados pela estranha impressao de estar numa prisao e nao num porto seguro; a liberdade da rua acenava de fora, tao inaces­sivel quanto a sonhada seguran~a do lar tende a ser hoje. Se a sedutora seguran~a do lar e, porem, projetada numa tela suficien­temente grande, nao sobra "de fora" nada para estragar a festa. A comunidade ideal e urn compleat mappa mundi: um mundo total, que oferece tudo de que se pode precisar para levar uma vida significativa e compensadora. Focando o que mais causa dor aos sem teto, 0 remedio comunitario da passagem ( disfar~ada de re­torno) para urn mundo total e totalmente consistente aparece como uma solu~iio verdadeiramente radical de todos os proble­mas, presentes e futuros; outros cuidados parecem pequenos e insignificantes, se comparados.

0 mundo comunit!trio esta completo porque todo o resto e irrelevante; mais exatamente, hostil - urn ermo repleto de embos­cadas e conspira~oes e fervilhante de inimigos que brandem o caos como sua arma principal. A harmonia interior do mundo

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comunit:lrio brilha e cintila contra a escura e impenetr:lvel selva que come~a do outro !ado da estrada. E hi, para esse erma, que as pessoas que se juntam no calor d a identidade partilhada jOgam ( ou esperam banir) os medos que as levaram a procurar o abngo comunitario. Nas palavras de Jock Young, "o desejo de demonizar os outros se baseia nas incertezas ontol6gicas" dos de dentro.

5

Uma '"comunidade includente" seria uma contradi~ao em termos. A fraternidade comunitaria seria incompleta, talvez impensavel, ainda que invejaveL sem essa inclina~ao fratricida inata.

Nacionalismo, marco 2

A comunidade do evangelho comunit<lrio e 6tnica, ou uma comu­nidade imaginada no padrao de uma comunidade etnica. Essa

escolha de arquetipo tern boas razoes. Primeiro, a "etnicidade': ao contrario de qualquer outre fun­

damento da unidade humana, tern a vantagem de ""naturalizar a hist6ria': de apresentar o cultural como urn "fato da natureza': a lib erda de como "necessidade compreendida ( e aceita)': Fazer par­te de uma etnia estimula a ·~ao: devemos escolher a lealdade a nossa natureza - devemos tentar, com o maior esfor<;o e sem descanso, viver a altura do modelo e assim contribuir para sua preserva~ao. 0 proprio modele, contudo, nao e ~ma questao de escolha, que nao se da entre diferentes referenctaiS de pertenct­mento, mas entre pertencimento e falta de raizes, entre urn lar e a falta de urn lar, o ser e o nada. Esse e precisamente o dilema que o evangelho comunitario quer ( e precis a) tornar clara.

Segundo, ao promover o principia de que a unidade etnica supera todas as outras lealdades, o Estado-na~ao foi o unico "case de sucesso" da comunidade nos tempos modernos, ou, melhor, a {mica entidade que apostou no estatuto de comunidade com al­gum grau de convic~ao e efeito. A ideia da etnicidade ( e da homo­geneidade etnica) como base legitima da unidad; e da auto-afir­ma~ao ganhou com isso uma fundamenta<;ao htstonca. 0 comum­tarismo contemporilneo naturalmente espera capitalizar essa tr~­di~ao; dada a oscila~ao atual da soberania do Estado e a necesst-

Comunidade

dade evidente de que alguem carregue a bandeira que par< 'I'<' ruir das maos desse Estado, a esperan<;a nao esta de to do perdida. Ma' e facil observar que h:l limites para se tra<:;.ar p::~ralelos t>.Jlll'l'. a!> realiza~Oes do Estado-nac;ao e as ambic;Oes comunit<lrias. Afinal, o Estado-nac;ao deveu seu sucesso a supressiio de comunidades que se auto-afirmavam; lutou com unhas e dentes contra o "paroquia­lismo': os costumes ou "dialetos" locais, promovendo uma Hngna unificada e uma memOria hist6rica as expensas das tradi<;Oes co­munit<lrias; quanta .mais determinada a Kulturkiimpft iniciada e supervisionada pelo Estado, maior o sucesso do Estado-na~o na produ~ao de uma "comunidade natural': A!em dis so, os Estados­na~ao ( diferentemente das comunidades hoje projetadas) nao se lan<;aram a tarefa no escuro e nem pensariam em depender apenas da for<;a da doutrina~ao. Seu esfor~o tinha o poderoso apoio da imposi~ao legal da lingua oficial, de curriculos escolares e de urn sistema legal unificado, que as comunidades projetadas nao tern e nem estao perto de adquirir.

Bern antes do recente crescimento do comunitarismo, havia argumentos de que existia uma pedra preciosa sob a carapa<;a feia e espinhenta da moderna constru<;ao da na~ao. Isaiah Berlin suge­riu que hi aspectos humanos e elogi<lveis na moderna "terra natal': separados de seu !ado cruel e potencialmente sangrento. A distin­~ao entre patriotismo e nacionalismo e bastante popular. Em geraL 0 patriotismo e 0 membra "positivo" da du pla, deixando 0 nacio­nalismo, com suas realidades desagrad<lveis, como membra "ne­gative": o patriotismo, mais postulado que empiricamente verifica­do, e 0 que 0 nacionalismo (se amansado, civilizado e eticamente enobrecido) poderia ser mas nao e. 0 patriotismo e descrito pela nega~ao dos tra~os mais rejeitados e vergonhosos do nacionalis­mo. Leszek Kol'akowski6 sugere que, enquanto o nacionalista quer afirmar a existencia tribal pela agressao e 6dio aos outros, acredita que todos os infortUnios de sua prOpria na<;io sao resultado de conspira<;6es estrangeiras e se ressente contra todas as outras na­~oes por nao admirarem apropriadamente nem darem o merecido credito a sua propria tribe, 0 patriota destaca-se pela "benevolente tolerilncia em rela¢ao a variedade cultural e especialmente as mi­norias etnicas e religiosas'~ assim como por sua disposi<;iio de dizer

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a SUa pr6pria na9a0 coisas que a desagradam e que ela nao gostaria de ouvir. Ainda que a distin<;ao seja boa, e morale intelectualmen­te louv<ivel, seu valor e urn tanto enfraquecido pelo fato de que ela nao opOe duas opc;5es passiveis de adesao, mas sim uma id€.ia nobre e uma realidade ignobil. A maioria das pessoas que gosta­riam que seus entes queridos fossem patriotas com toda probabi­lidade denunciariam as caracteristicas atribuidas a posic;ao patri6-tica como evid€ncia de hipocrisia, traic;ao a p:ltria ou pior. Tais caracteristicas - tolerancia da diferen9a, hospitalidade para com as minorias e coragem de clizer a verdade, ainda que desagradavel - sao mais encontr:iveis em terras onde 0 "patriotismo" nao e urn "problema"; em sociedades suficientemente seguras de sua cida­dania republicana para nao se preocuparem com 0 patriotismo enquanto problema, e menos ainda em ve-lo como tarefa urgente.

Bernard Yack, organizador de Liberalism without Illusions (Uni­versity of Chicago Press, 1996), nao estava errado quando, em sua polemica contra Maurizio Viroli, au tor de Love of Country: An Essay on Patriotism and Nationalism (Oxford University Press, 1995), pa­rafraseou Hobbes, cunhando urn aforismo, '"'o nacionalismo e o patriotismo indesejado e o patriotismo, o nacionalismo deseja­do':17 De fato, ha razoes para concluir que ha pouco que distinga nacionalismo de patriotismo, al€.m de nosso entusiasmo por suas manifestac:;Oes ou a aus€ncia delas ou o grau de vergonha ou cons­ci€ncia de culpa com que os admitamos ou neguemos. :E nome<l­los que faz a diferen9a, e a diferen9a e principalmente ret6rica, e distingue nao a substancia dos fenOmenos mencionados, mas o modo como falamos sabre sentimentos ou paixOes que sao essen­cialmente similares. Contudo sao a natureza dos sentimentos e paixOes e suas conseqU&ncias comportamentais e politicas que contam e afetam a qualidade do convivio humano, e nao as pala­vras que usamos para descreve-las. Olhando para os feitos narrados nas hist6rias paLri6Licas, Yack conclui que, sempre que sentimcntos patri6ticos sublimes "se elevaram ao nivel da paixao compartilha­da': ""os patriotas mostraram uma paixiio feroz, nunca gentil': e que OS patriotas podem ter demonstrado ao Iongo dos seculos "muitas virtudes Uteis e memor<lveis, rnas a gentileza e a simpatia para com estranhos nunca foram preeminentes entre elas'~

Comunidade 201

Nao ha como negar, contudo, que a diferen~a na ret6rica e significante, nem suas ocasionais e pungentes reverbera<;Oes prag­m<lticas. Uma ret6rica F: feita a imagem do discurso do ""ser': a outra, do "'tornar-se': 0 "'patriotismo" como urn todo e tribut<lrio do credo moderno do "inacabado'; da maleabilidade (mais preci­samente, da "reformabilidade") dos homens: pode, portanto, de­clarar em sa consci@ncia (mantendo ou niio a promessa na pr<ltica) que 0 chamado a "cerrar fileiras" e urn convite feito e aberto: que "cerrar fileiras" e uma escolha e que tudo 0 que se pede e que seja feita a escolha certa e que se permane<;a fie! a ela, para o bern ou para o mal, por to do o sempre. 0 "nacionalismo'; por outro !ado, e mais como a versao calvinista da salva<;ao ou a ideia de Santo Agostinho do livre arbitrio: deposita pouca fe na escolha - voce e "urn de n6s" ou niio e, e em qualquer caso ha pouco, talvez nada, que voce possa fazer para muda-lo. Na narrativa nacionalista, "per­tencer" e urn destine, niio 0 produto de uma escolha ou de urn projeto de vida. Pode ser uma questiio de hereditariedade biol6-gica, como a hoje fora de moda e abandonada versao racista do nacionalismo, ou de hereditariedade cultural, como na variante "culturalista'; hoje em voga - mas em qualquer dos casas a ques­tio foi decidida bern antes que essa ou outra pessoa come<;asse a an dar e falar, de modo que a !mica escolha disponivel ao individuo e entre abra9ar 0 veredicto do destino com as duas maos e de boa fe, ou rebelar-se contra ele e assim tornar-se urn traidor da sua voca<;iio.

Essa diferen<;a entre patriotismo e nacionalismo tende a ultra­passar a mera ret6rica e entrar no domfnio da pr.ltica politica. Seguin do a terminologia de Claude Levi-Strauss, podemos dizer que a primeira fOrmula e mais capaz de inspirar estrategias "antro­pofagicas" ("devorar" os estrangeiros, de modo que sejam assimi­lados pelo corpo de quem devora e se tornem identicos as outras celulas deste, perdendo sua pr6pria distintividade ), enquanto que a segunda se associa mais a estrategia "antropo@mica': de ''vomi­tar" e "cuspir" aqueles que.nao silo "aptos a ser nOs': seja isolando­os por encarceramento dentro dos muros vislveis dos guetos ou nos invisfveis (ainda que niio menos tangiveis por essa raziio) muros das proibi96es culturais, seja cercando-os, deportando-os

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ou for<;ando-os a fugir, como na pratica que recebe o nome de limpeza etnica. Seria prudente, no entanto, lembrar que a 16gica do pensamento raramente se impOe a 16gica dos atos, e niio hi uma rela<;iio biunivoca entre a ret6rica e a pr3.tica, e assim cada uma das estrategias pode estar envolvida em qualquer dessas re­

t6ricas.

Unidade- pela semelhan<;a ou pela diferen~a?

0 "n6s" do credo patri6tico/nacionalista significa pessoas como

nOs, "eles" significa pessoas que sao diferentes de nOs. Nao que "n6s" sejamos identicos em tudo; hi diferen<;as entre "n6s'; ao !ado das caracteristicas comuns, mas as semelhanc:;as diminuem, tornam di­fuso e neutralizam seu impacto. 0 aspecto em que somas seme­lhantes e decididamente mais significativo que 0 que nos separa; significativo bastante para superar o impacto das diferen<;as quan­do se trata de tomar posi<;ao. E nao que "eles" sejam diferentes de n6s em tudo; mas eles diferem em urn aspecto que e mais impor­tante que todos os outros, importante o bastante para impedir uma posic:;iio comum e tornar improv<lvel a solid~riedade genuina, in­dependente das semelhan<;as que existam. E uma situa<;ao tipica­mente ou/ ou: as fronteiras que "nos" separam "deles" estiio clara­mente trac:;adas e silo f:lceis de ver, uma vez que o certificado de "pertencer" s6 tem uma rubrica, e o formulario que aqueles que requerem uma carteira de identidade devem preencher contem uma s6 pergunta, que deve ser respondida "sim ou nao':

Note-se que a questao de qual das diferen<;as e "crucial"- isto e, qual delas e 0 tipo de diferen<;a que importa mais que qualquer semelhanc:;a e faz todas as caracteristicas comuns parecerem pe­quenas e insignificantes (a diferen<;a que torn a a divisao que gera hostilidade urn caso encerrado antes mesmo do come<_;:o da reu­niao em que a eventuaiidade da unidade poderia ser discutida) -e menor e acima de tudo derivativa, e nao constitui 0 ponto de partida do argumento. Como explicou Frederick Barth, as frontei­ras niio reconhecem e registram urn estranhamento j3. existente; elas sao tra<;adas, como regra, antes que o estranhamento seja

Comunidade 203

produzido. Primeiro hi um conflito, uma tentativa desesperada de separar "n6s" e "eles"; entiio os trac;os cuidadosamente espiados '"'neles" sao tornados como prova e fonte de uma estranheza que niio admite conciliac;iio. Sendo os seres humanos como sao, cria­turas multifacetadas com muitos atributos, nao e dificil encontrar tais trac;os quando a busca e feita a serio.

0 nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estao dentro tem direito de ai estar e acomodar-se de vez. 0 patriotismo e, pelo menos aparentemente, mais tolerante, hospitaleiro e acessivel -deixa a questao para os que pedem admissao. E no entanto o resultado ultimo e, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patri6tico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas as suas dife­ren<;as, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, Ionge de requerer a semelhan<;a ou promove-la como um valor a ser amhlcionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e conhecimento, ao mesmo tempo em que acres­centa for<;a e substincia ao que as faz o que sao - e isso significa ao que as faz diferentes.

Bernard Crick cita da Politica de Arist6teles sua ideia de uma "boa polis'; articulada contra o sonho de Platao de uma verdade, um padrao unificado de justi~a, que subjuga a todos:

Hcl urn ponto em que uma polis, ao avanc;ar na unidade, deixa de ser uma polis; mas de qualquer forma chega quase a perder sua essen cia, e assim sera uma polis pior. :E como se se transformasse a harmonia em mero unissono, ou se reduzisse urn tema a uma {:mica batida. A verdade e que a polis e urn agregado de muitos membros.

Em seu comentario, Crick avan<;a na ideia de um tipo de uni­dade: que nem o patriotismo nero o nacionalismo estUo dispostos a admitir e com freqiiencia rejeitarao ativamente: urn tipo de uni­dade que supoe que a sociedade civilizada e inerentemente plura­lista, que viver em conjunto em tal sociedade significa negocia<;iio e concilia<;ao de interesses "naturalmente diferentes" e que "e nor' malmente melhor conciliar interesses diferentes que coagir e opri-

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mir perpetuamente"8: em outras palavras, que o pluralismo da moderna sociedade civilizada nao e simplesmente urn "fato brute" que pode niio ser desejado o~ mesmo detes~ado m:s q~e nero por isso desaparece, mas uma cotsa boa e uma circunstancia afortuna­da, pais oferece beneficios rnuito maiores que os desconfo~tos e inconveniencias que produz, amplia os horizontes da humamdade e multiplica as oportunidades de uma vida melhor que a que qual­quer das alternativas pode oferecer. Podemos dizer que em riga­rosa oposi~ao tanto a u, patri6tica quanta a nacionalista, 0 tipo mais promissor de unidade e a que e alcam;ada, e realcan~ada a cada dia, pelo confronto, debate, negocia~ao e compromisso entre valores, preferencias e caminhos escolhidos para a vida e a auto­identifica~ao de muitos e diferentes membros da polis, mas sempre

autodeterminados. Esse e, essencialmente, o modelo republicano de unidade, de

uma unidade emergente que e uma realiza~ao conjunta de agentes engajados na busca de auto-identifica~ao; uma unidade que e urn resultado, e nao uma condic;ao dada a prior~ da v1da comparulha­da; uma unidade erguida pela negocia<;ao e reconcilia<;ao, e nao pela negac;ao, sufocac;ao ou supressao das diferenc;as.

Essa, quero propor, e a lmica variante da unidade (a Unica forma de estar juntos) compativel com as condic;oes da moderni­dade liquida, variante plausivel e realista. Uma vez que as crenc;as, valores e estilos foram "privatizados" - descontextualizados ou "desacomodados': com lugares de reacomoda.:;ao que mais lem­bram quartos de motel que urn lar proprio e permanente -, as identidades nao podem deixar de parecer frageis e temporarias, e despidas de todas as defesas exceto a habilidade e determinac;ao dos agentes que se aferram a elas e as protegem da erosao. A volatilidade das identidades, por assim dizer, encara os habitantes da modernidade liquida. E assim tambem faz a escolha que se segue logicamente: aprender a dificil arte de vive,r ~om a difcrcnc;.a ou produzir condic;oes tais que fac;am desnecessano esse aprendi­zado. Como disse recentemente Alain Touraine, o presente estado da sociedade assinala "o fim da definic;ao do ser humano como urn ser social, definido por seu Iugar na sociedade, que determina seu comportamento ou ac;ao'~ e assim a defesa, pelos atores sociais, de

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sua "especificidade cultural e psico16gica" s6 pode ser conduzida com "'consci@ncia de que o prindpio de sua combinac;ao pode ser encontrado dentro do individuo. e: nao mai~ em instituic;Oes so­ciais ou prindpios universais'~9

As noticias da condic;ao sobre as quais os te6ricos teorizam e OS fiJosofos filosofam sao diariamente marteladas peJas for~aS COn­juntaS das artes populares, quer aparec;am com seu nome de ficc;ao, quer disfan;adas de "hist6rias verdadeiras': Como os que assisti­ram ao filme Elizabeth foram informados, mesmo ser a rainha da Inglaterra e uma questao de auto-afirmac;ao e de autocria~ao; ser uma filha de Henrique VIII demanda muita iniciativa individual, apoiada em astucia e determina~ao. Para forc;ar os briguentos e recalcitrantes cortesaos a se ajoelharem e fazer reverencia e, mais que isso, a ouvir e obedecer, ela precisou comprar muita maquila­gem para o rosto e mudar seu estilo de cabelo, enfeites eo restante da aparencia. Nao hit afirmac;ao que nao seja auto-afirmac;ao, nem identidade que nao ~P:ja construida.

Thdo se resume, com certeza, a forc;a do agente em questiio. As armas de defesa niio estiio disponlveis de maneira uniforme para todos, e e razoavel que indivlduos mais fracas e mal armadas procurem a for<_;a do nUmero para compensar sua impotencia in­dividual. Dada a variada amplitude do hiato universalmente expe­rimentado entre a condic;ao do '"individuo de jurd' e a possibilida­de de obter o status de '"individuo de facto'; o mesmo ambiente moderno fluido pode favorecer uma diversidade de estrategias de sobreviv@ncia. 0 "n6s': como insiste Richard Sennett, "e hoje urn ato de autoprote~ao. 0 desejo de comunidade e defensivo ... Cer­tamente e quase uma lei universal que 0 "n6s'' pode ser usado como defesa contra a confusao e o deslocamento': Mas - e este 6 urn "mas" crucial - quando o desejo de comunidade "se expressa como rejeic;ao dos imigrantes e outros estranhos", e porque

a politica atual baseada no desejo de refUgio tern por alvo os fracos, que viajam nos circuitos do mercado global de trabalho, e nao os fortes, as institui~Oes que mobilizam os trabalhadores pobres ou fazem uso de sua priva~ao relativa. Os programadores da IBM ... Num modo importante, conseguiram transcender esse sentido defensive

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da comunidade quando deixaram de culpar seus colegas indianos e seu presidente judeu. 10

"'Num modo importante': talvez - mas s6 em urn, nao neces­sariamente o mais significative. 0 impulso de retirar-se da com­plexidade eivada de riscos para 0 abrigo da uniformidade e uni­versal; o que difere sao os modos de agir a partir desse impulso, e esses modos tendem a diferir em propor~ao direta aos meios e recursos de que os atores dispoem. Os mais bern aquinhoados, como os programadores da IBM, confortaveis em seu enclave cibe­respacial mas muito merios imunes aos azares do destino no setor fisico do mundo social, mais dificil de "virtualizar:' podem arcar com os custos de fossos e pontes levadi~as high-tech para manter o perigo a distiincia. Guy Nafilyah, dirigente de uma companhia imobiliclria lider na Fran~a, observou que "os franceses esta.o in­quietos, tern medo dos vizinhos, com exce<;ao dos que se parecem com eles': Jacques Patigny, presidente da Associa~ao Nacional dos Locadores de Im6veis, concorda, e ve o futuro no '"fechamento periferico e filtro seletivo" das areas residenciais com 0 uso de cartoes magneticos e guardas. 0 futuro pertence a "arquipe!agos de ilhas situadas ao Iongo dos eixos de comunica~ao': As areas residenciais verdadeiramente extraterritoriais, isoladas e cercadas, equipadas com intricados sistemas de intercomunica<;ao, ub.iquas cameras de video para vigilancia e guardas fortemente armados em rondas 24 horas por dia se espalham ao redor de Toulouse, como fizeram hi algum tempo nos EUA e como fazem em nllmeros crescentes em toda a parte pr6spera do mundo que se globaliza rapidamente_ll Os enclaves fortemente guardados tern uma seme­lhan~a notavel com OS guetos etnicos dos pobres. Diferem, entre­tanto, num aspecto importante: foram livremente escolhidos como urn privilegio pelo qual deve-se pagar urn alto pre~o. E os segu­ran~as que guardam o acesso foram empregados e portam suas armas legalmente.

Richard Sennett faz uma interpreta~ao sociopsicol6gica da

tendencia:

A irnagern da cornunidade e purificada de tudo o que pode trazer urna sensa~iio de diferem;a, que diril. conflito, a quem somas "n6s':

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Desse modo, o mito da solidariedade comunit<lria e urn ritual de purifica($3.0 ... 0 que distingue esse compartilhamento mitico nas comunidades e que aS pessoas sen tern que pertencem umas as outras, e ficam juntas, porque siio as mesmas ... 0 sentimento de "n6s': que expressa o desejo de semelhanc;;a, e urn modo de evitar olhar mais profundamente nos olhos dos outros. 12

Como muitas outras iniciativas dos poderes publicos, o sonho de pureza foi, na era da modemidade liquida, desregulamentado e privatizado; agir sobre esse sonho foi deixado para a iniciativa privada - local, de gru pos. A prote~ao da seguran~a pessoal e agora uma questiio de cada urn, e as autoridades e a policia local estiio a mao para ajudar com conselhos, enquanto as imobiliarias assumem de born grado o problema daqueles que sao capazes de pagar por seus servi~os. Medidas tomadas pessoalmente - isola­damente ou em conjunto - precisam estar ao n.ivel da urgencia que levou a sua busca. De acordo com as regras comuns do racio­c:inio mitico, 0 metonimico e reformulado em metaf6rico: 0 desejo de repelir e empurrar os perigos ostensivos pr6ximos ao corpo amea<;ado se transforma na necessidade de tornar o "fora" seme­lhante, "parecido" ou identico ao '"dentro': refazer 0 "1<1 fora" a semelhan~a do "aqui dentro"; o sonho da "comunidade de seme­lhan~a" e, essencialmente, uma proje~ao de !'amour de soi.

E tambem uma tentativa frenetica de evitar a confronta~ao com questOes constrangedoras sem resposta: se o eu, amedronta­do e carente de autoconfian<;a, merece amor em primeiro lugar, e se merece portanto servir como modelo para a renova~ao do ha­bitat e como padrao para avaliar e medir a identidade aceitavel. Numa "comunidade de semelhan~a" tais questoes, esperamos, nao serao colocadas, e assim a credibilidade da seguran~a obtida pela purifica<;ao nunca sera posta a prova.

Em outro Iugar (Em bu.rca da poHtica, Jorge Zahar, 2000), dis­cuti a "nao-sanclssima trindade" de incerteza, inseguran<;a e falta de garantias, cada uma gerando ansiedade ainda mais aguda e penosa pela duvida quanto a sua proveniencia; qualquer que seja su·a origem, a pressao acumulada busca desesperadamente uma sa.ida, e com 0 acesso as fontes da incerteza e da inseguran<;a

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bloqueado ou fora de alcance, toda a pressao se desloca, para cair afinal sobre a finissima e institvel valvula de seguran~a corporal, domestica e ambiental. Como resultado, o "problema da seguran­~a" tende a ser cronicamente sobrecarregado de cuidados e an­seios que nao pode levar nem descarregar. Essa alian<;:a resulta na sede perpetua por mais seguran9a, uma sede que nenhuma medi­da pratica pode saciar, pois seu destino e deixar intactas as fontes primarias e prolificas da incerteza e da falta de garantias, as prin­cipais provedoras da ansiedade.

Seguran~a a um certo pre~o

Lendo os escritos dos renascidos apastolos do culto comunitario, Phil Cohen conclui que as comunidades que eles elogiam e reco­mendam como cura para os problemas da vida de seus contempo­raneos se assemelharn mais a orfanatos, pris5es ou manicOmios que a Iugares de libera<;:ao potencial. Cohen esta certo; mas o potencial de libera<;io nunca foi a questao dos comunit:lrios; os problemas que se esperava que as futuras comunidades sanassern eram sedimentos dos excessos de libera~ao, de urn potencial de libera~ao grande demais para ser confortavel. Na longa e incon­clusiva busca de equilibria entre liberdade e seguran~a, o comu­nitarismo ficou firme ao !ado da ultima. Tambem aceitou que OS

dois valores humanos ambicionados estao em oposic;ao, e que nao se pode querer mais de urn sem renunciar a urn tanto, talvez grande parte, do outro. Uma possibilidade que os comunitarios nao admitem e que a amplia~ao e 0 enraizamento da Iiberdade humana podem aumentar a seguran<;:a, que a liberdade e a segu­ran<;a podem crescer juntas, e menos ainda que cada uma s6 pode ere seer ern conj unto com a outra.

A imagem da comunidade e a de uma ilha de u·anqi.iilidade caseira .e agradavel num mar de turbulencia e hostilidade. Ela tenta e seduz, levan do os admiradores a impedir-se de examina-la muito de perto, pois a eventualidade de comandar as ondas e domar os mares ja foi retirada da agenda como uma proposi~ao tanto suspeita quanta irrealista. Ser o unico abrigo da a essa visao

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da comunidade urn valor adicional, e esse valor continua a crescer a medida que a balsa onde se negociam outros valores da vida se torna cada vez mais caprichosa e imprevislvel

Como investimento seguro (ou melhor, investimento menos notoriamente arriscado que outros ), o valor do abrigo comunid.­rio nao tern competidores serios, a exce<;iio, talvez, do corpo do investidor - agora, em contraste com o passado, o elemento da Lebensweltcom uma expectatlva de vida ostensivamente mais Ion­ga (de fa to incomparavelmente mais longa) que o de qualquer de seus adere<;os ou embalagens. Como antes, o corpo continua mor­tal e portanto transitario, mas sua brevidade parece uma eternida­de quando comparada a voJatiJidade e efemeridade de todos OS

quadros de referencia, pontos de orienta~ao, classifica~ao e avalia­~ao que a modernidade liquida pile e tira das vitrines e prateleiras. A familia, OS colegas de trabalho, a classe e OS vizinhos sao fluidos demais para que imaginemos sua permanencia e os crediternos com a capacidade de quadros de referencia confiaveis. A esperan­c;a de que "'nos encontrarernos outra vez arnanh;:c: crenc;a que cos­turnava oferecer todas as razOes necess:lrias para pensar a frente, agir a longo prazo e tecer os passos, urn a urn, nurna trajet6ria cuidadosarnente desenhada da vida transit6ria e incuravelmente mortal perdeu muito de sua credibilidade; a probabilidade de que o que encontraremos amanha ser:i nosso prOprio corpo imerso em familia, classe, vizinhan<;:a e companhia de outros colegas de tra­balho inteiramente diferentes ou radicalmente mudados e muito mais crivel e, portanto, uma aposta mais segura.

Num ensaio que se le hoje como uma carta a posteridade enviada da terra da modernidade salida, Emile Durkheim sugeria que apenas "a~iles que tern uma qualidade duradoura sao dignas de nossa voli~ao, apenas prazeres duradouros sao dignos de nos­sos desejos': Essa era, de fato, a li~ao que a modernidade salida incutia na mente de seus habitantes, com bons resultados, mas ela soa estranha e vazia aos ouvidos contemporilneos - ainda que talvez menos bizarra que o conselho pratico que Durkheim deri­vava dessa li9iio. Tendo formulado o que !he parecia uma questao merarnente ret6rica, "qual o valor de nossos prazeres individuais, tao curtos e vazios?': apressa-se a acalrnar seus leitores, indicando

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que, afortunadamente, nao estamos condenados a ca~a de tais prazeres - "porque as sociedades tern vida infinitamente ma1s longa que os individuos': "elas nos permitcm saborear satisfa<;Oes que niio sao simplesmente efemeras': A sociedade, na visao de Durkheim (perfeitamente aceitivel em seu tempo) e aquele corpo "em cuja prote~ao abrigar-se do horror de nos sa propria transito­

riedade': 13

0 corpo e suas satisfac;Oes niio se tornaram menos efemeros desde o tempo em que Durkheim louvou as institui~oes sociais duradouras. 0 empecilho, no entanto, e que tudo 0 mais - e principalmente aquelas instituic;Oes sociais - se tornou ainda mais eremero que o "corpo e suas satisfa~oes': A dura~ao da vida e uma no~ao comparativa, e 0 corpo mortal e agora talvez a mais longeva entidade a vista (de fato, a (mica entidade cuja expectativa de vida ten de a crescer ao Iongo do tempo). 0 corpo, pode-se dizer, se tornou 0 unico abrigo e santuario da continuidade e da dura~ao; o qne quer que possa significar o "Iongo prazo': dificilmente exce­dera os limites impastos pela mortalidade corporal. Esta se torna a ultima linha de trincheiras da seguran~a, expostas ao bombar­deio constante do inimigo, ou o Ultimo o:isis entre as areias asso­ladas pelo vento. Donde a preocupa~ao furiosa, obsessiva, febril e excessiva com a defesa do corpo. A demarcac;iio entre o corpo e o mundo exterior estit entre as fronteiras contempor3.neas mais vi­gilantemente policiadas. Os orificios do corpo ( os pontos de en­trada) e as superficies do corpo ( os lugares de contato) sao agora os principais focos do terror e da ansiedade gerados pela cons­ciencia da mortalidade. Eles nao dividem mais a carga com outros focos ( exceto, talvez, a "comunidade").

A nova primazia do corpo se reflete na tendencia a formar a imagem da comunidade (a comunidade dos sonhos de certeza com seguran~a, a comunidade como viveiro da seguran~a) no pa­drao do corpo idealmente protegido: a visualiza-Ia como uma en­tidade internamente homogenea e harmoniosa, inteiramente lim­pa de toda substiincia estranha, com todos os pontos de entrada cuidadosamente vigiados, controlados e protegidos, mas forte­mente armada e envolta por armadura impenetravel. As fronteiras da comunidade postulada, como os limites exteriores do corpo,

Comun1dade 211

sao para separar o dominio da confian~a e do cuidado amoroso da selva do risco, da suspei~ao e da perpetua vigilancia. 0 corpo e tambem a comunidade postulada sio aveludados por dentro e asperos e espinhosos por fora.

Corpo e comunidade sao os Ultimos postos de defesa no cam­po de batalha cada vez mais deserto em que a guerra pela certeza, pela seguran~a e pelas garantias e travada, diariamente e sem tre­guas. Corpo e comunidade devem de agora em diante realizar as tarefas no passado divididas entre muitos bastioes e barricadas. 0 que depende deles agora e mais do que podem suportar, de tal forma que provavelmente aprofundarao, em vez de aliviar, os te­mores que levaram aqueles que andavam a procura de seguran~a a voltar-se para eles em busca de prote~ao.

A nova solidao de corpo e comunidade e o resultado de urn amplo con junto de mudan~as importantes subsumidas na rubrica modernidade liquida. Uma mudan~a no conjunto e, contudo, de particular importancia: a renuncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de todas as suas principais responsabilidades em seu papel como maior proved or ( talvez mesmo monopolistico) de certeza, seguran<;a e garantias, seguido de sua recusa em endossar as aspi­ra<;Oes de certeza, seguran<;a e garantia de seus cidadiios.

Depois do Estodo-nasao

Nos tempos modernos, a na~ao era a "outra face" do Estado e a arma principal em sua !uta pela soberania sobre o territ6rio e sua popula~ao. Boa parte da credibilidade da na~ao e de seu atrativo como garantia de seguran~a e de durabilidade deriva de sua asso­cia~ao intima com o Estado e - atraves dele - com as a~oes que buscam construir a certeza e a segurap~a dos cidadaos sabre urn fundamento dur:lvel e confi:lvel, porque coletivamente assegura­do. Sob as novas condi~oes, a na~iio tern pouco a ganhar com sua proximidade do Estado. 0 Estado pode nao esperar muito do potencial mobilizador da na~ao de que ele precisa cada vez menos, Q medida que OS massivos exercitos de CO~scritos, reunidos pelo frenesi patri6tico febrilmente estimulado, sao substituidos pelas

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212 Modernidade Uquida

unidades high-tech elitistas, secas e profissionais, enquanto a rique­za do pais e medida, nao tanto pela qualidade, quantidade e moral de sua for~a de trabalho, quanta pela atra<;lio que o pais exerce sobre as for~as friamente merceniuias do capital global.

Em urn Estado que nao e mais a ponte segura alem do confi­namento da mortalidade individual, urn cbamado ao sacrificio do bem-estar individual, para nao falar da vida individual, em nome da preserva~ao ou da gloria imorredoura do Estado soa vazio e cada vez illais bizarre, se nao engr~:u;ado. 0 romance secular da na~ao com o Estado esta cbegando ao fim; nao exatamente urn div6rcio, mas urn arranjo de "viver juntos" estcl substituindo a consagrada uniao conjugal fundada na lealdade incondicional. Os parceiros estao agora livres para procurar e entrar em outras alian­~as; sua parceria nao e mais 0 padrao obrigat6rio de uma conduta prOpria e aceit<ivel. Podemos dizer que a nac;io, que costumava ser o substituto da comunidade ausente na era da Gesellschaft se volta em dire<;ao da Gemeinrchaft deixada para tras em busca de urn padrao a emular e que !he sirva de modelo. 0 andaime institucio­nal capaz de manter a nac;ao unida e pensitvel cada vez mais como urn trabalho do tipo fa~a-voce-mesmo. Sao os sonhos de certeza e seguran<;a, e nio suas disposic;Oes factuais e rotinizadas, que de­vern levar os individuos 6rfaos a abrigar-se sob as asas da na<;io,

enquanto buscam a seguran<;a teimosamente fugidia. Parece haver pouca esperan<;a de resgatar os servi~:,;os de cer­

teza, seguran~a e garantias do Estado. A liberdade da politica do Estado e incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terriveis armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e capacidade de evasao e fuga; a retribui~ao pela viola~ao do novo estatuto global e rapida e impiedosa. De fato, a recusa a participar do jogo nas novas regras globais eo crime a ser mais impiedosamente punido, crime que o poder do Estado, preso ao solo por sua prOpria soherania territorialmente definida, dcvc impedir-se de cometer e evitar a qualquer custo.

Muitas vezes a puni~:,;ao e econOmica. Governos insubordina­dos, culpados de politicas protecionistas ou provisoes publicas generosas para os setores "economicamente dispensiveis" de suas popula~oes e de nao deixar 0 pais a merce dos "mercados finan-

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ceiros globais" e do "livre comercio global': tern seus emprestimos recusados e negada a redu~ao de suas dividas; as moedas locais sao transforrnadas em leprosas globais, press.ionadas a desvalori~ za~:,;ao e sofrem ataques especulativos; as a~:,;Oes locais caem nas bolsas globais; 0 pais e isolado por san~oes econ6micas e passa a ser tratado por parceiros comerciais passados e futuros como urn paria global; os investidores globais cortam suas perdas antecipa­das, embalam seus pertences e retiram seus ativos, deixando que as autoridades locais limpem os res.iduos e resgatem as vltimas.

Ocasionalmente, no entanto, a puni~:,;ao nao se confina a "me­didas econ6micas': Governos particularmente obstinados (mas nao fortes o bastante para resistir por muito tempo) recebem uma li~ao exemplar que tern por objetivo advertir e atemorizar seus irnitadores potenciais. Se a dernonstra~:,;ao diiria e rotineira da su­perioridade das for~as globais nao for suficiente para for~ar 0

Estado a ver a razao e cooperar com a nova ''ordem mundial': a for~:,;a militar e exercida: a superioridade da velocidade sabre a lentidao, da capacidade de escapar sobre a necessidade de enga­jar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de for<;as armadas especializadas em tltticas de atacar e correr e a estrita separa~:,;ao entre '"vidas a serern salvas" e vidas que nao merecem socorro.

Uma questao a ser discutida e se o modo como se conduziu a guerra contra a Jugoslavia foi, em termos eticos, correto e apro­priado. Essa guerra fez sentido, porem, como "promo~ao da or­dem econ6mica global por outros meios que nao os politicos': A estrategia escolhida pelos atacantes funcionou bern como exibi~ao espetacular da nova hierarquia global e das novas regras do jogo que a sustentam. Se nao fosse por snas milhares de "baixas" muito reais e por urn pais arruinado c privado da sobrevivCncia c da capacidade de auto-regenera~ao por muitos anos ainda, seriamos tentados a descreve-la como uma '"guerra simb6lica" sui generis; a guerra em si, suas estrategias e tltticas, foi urn s.imbolo ( consciente ou subconscientemente) da emergente rela~ao de poder. 0 meio foi de fato a mensagem.

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214 Modernidade liquida

Como professor de sociol,~gia,,repeti ameus :_lu!,'os, ano ap6s ano, a versao padronizada da h1stona da CIVIliza~ao com a ma_r~a da ascensao gradual mas incessante da sedentanedade : da ,Vl.to­

ria, por fim, dos sedentarios sobre OS nomad~s; nao haVla duvtda de que os derrotados nomades eram, essenCialmente, a for9a re­gressiva e anticivilizacional. Jim MacLaughlin recentemente ~es­vendou 0 significado dessa vit6ria, esbo9ando uma bre~e h1stona do tratamento dispensado aos "nomades" pelas popula9oes seden­tarias dentro da 6rbita da civiliza9ao moderna14 0 nomad1smo, observa, era visto e tratado como "caracteristica de sociedades 'barbaras' e subdesenvolvidas': Os nomades eram defimdos como primitivos, e, de Hugo Grotius em diante, tra9ava-se ~m paralelo entre "primitive" e "natural" (isto e, inculto, cru, pre-cultural e incivilizado): "0 desenvolvimento das leis, o progres~o cultu~al e 0 avan9o da civiliza9ao esravam intimamente ligados a evolu9ao e ao aperfei9oamento das •ela96es homem-terra ao Iongo do tem­po e do espa9o?' Para resumir: o progresso era 1dentt~cado com ,o abandono do nomadismo em favor de um1nodo de VIda sedcnta­rio. Thdo isso aconteceu no tempo da modernidade pesada, quan­do a domina9ao implicava envolvimento direto e estre1to e stgm­ficava conquista, anexa9ao e coloniza9ao territorial. 0 fundador e principal te6rico do "difusionism_o~' (visao da hist6ria outrora mm­to popular nas capitais dos impenos ), Fnednch Ratzel, pregador dos "direitos do mais forte': que ele conceb1a como etlcamente superior e inescapavel em vista da raridade dogenio civilizad_or e da existencia da imita9ao passJVa, captou prec1samente o espmto da epoca quando escreveu, no limiar do seculo colonialista, que

a luta pela existencia significa uma lut~ ~elo espat;o ··· Urn. povo superior, invadindo o territ6rio de seus VIzmhos selvagens m~s fra­cas, rouba-lhes a terra, encurrala-os em cantos pe~uenos demrus par~ seu sustento e continua a usurpar mesmo suas mmguadas posses, ate que os mais fracos finalmente perdem os Ultimos residuos de s:u dominio, e sao expulsos da terra ... A superioridade dessa e~pans_a? consiste principalmente em sua maior capacidade de apropnar, uuh­Zar plenamente e povoar o territ6rio.

Claramente, nao mais. 0 jogo da domina9ao na era da moder-""" '~"as nidade liquida nao e mais jogado entre 0 mawr e 0 menor, m

Comunidade 215

entre o mais ripido e o mais lento. Dominam os que sao capazes de acelerar alem da velocidade de seus opositores. Quando a ve­locidade significa dominac;ao, a "apropriac;ao, utilizac;ao e povoa­mento" do territ6rio se toma uma desvantagem - urn risco e niio urn recurso. Assumir algo sob nos sa prOpria jurisdic;ao e anexar a terra alheia implicam as tarefas caras, embara9osas e nao-lucrativas de administra9ao e policiamento, responsabilidades e compromis­sos - e acima de tudo limitac;Oes consideriveis a nossa futura liberdade de movimento.

Esta Ionge de ser claro se outras guerras no estilo atacar e fugir serao empreendidas, em vista do fato de que a primeira tentativa terminou por imobilizar os vencedores - sobrecarregando-os com a atividade de ocupa9ao da terra, envolvimentos locais e respon­sabilidades administrativas e gerenciais inadequadas as tecnicas de poder da modernidade l!quida. 0 poderio da elite global reside em sua capacidade de escapar aos compromissos locais, e a globa­lizac;iio se destina a evitar tais necessidades, a dividir tarefas e fun96es de modo a ocupar as autoridades locais, e somente elas, com o papel de guardi6es da lei e da ordem (local).

Em verdade, disseminam-se sinais de urn certo '"arrependi­mento" no campo dos vencedores: a estrategia da "for~a policial global" esd. uma vez mais submetida a intense escrutinio critico. Entre as fun~6es que a elite global deixaria para os Estados-na9ao transformados em delegacias de policia, crescente numero de vo­zes incluiria os esforc;os para resolver conflitos sangrentos entre vizinhos; a soluc;ao de tais conflitos, ouvimos, deveria ser "descon­gestionada" e "descentralizada'; rebaixadas na hierarquia global, com ou sem atenc;ao aos direitos humanos, e entregue "a quem de direito", aos senhores da guerra locais e as armas que possuem grac;as a generosidade ou "hem compreendido interesse econ&mi­co" das empresas globais e dos governos que querem promover a globaliza~iio. Por exemplo, Edward N. Luttwak, senior fillow do Centro Norte-Americana de Estudos Estrategicos e Internacionais e durante muitos anos termOmetro confiivel das mutiveis dispo­si~6es do Pentagono, apelou no numero de julho-agosto de 1999 da revista Foreign Affairs ( descrita pelo Guardian como "a mais influente em circula9ao") para que se "de uma chance a guerra':

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216 Modernidade Uquida

As guerras, segundo Luttwak, niio sao de todo mas, pois levam a paz. A paz, pon\m, s6 vira "quando todos os beligerantes est:lverem exaustos ou quando urn veneer de maneira decisiva~: A pier coisa ( e a OTAN fez justamente is so) e dete-las a meio caminho, antes que o tiroteio termine na exausdio mUtua ou na incapacita~ao de uma das partes em guerra. Nesses casas~ os conflitos nao sao re­solvidos, mas apenas temporariamente congelados, e os adversa­ries usam o tempo da tregua para rearmamento, reposicionamento e para repensar as taticas. Portanto, em seu proprio beneficia e no deles, nunca interfira "em guerras alheias':

0 apelo de Luttwak pode hem cair em ouvidos favoraveis e gratos. Afinal, do modo como avan9a a "promo9iio da globaliza9iio por outros meios': abster-se de intervir e permitir que. a guerra atinja seu "fim natural" teria trazido os mesmos beneflcws sem o inc&modo do envolvimento direto em "'guerras alheias': e especial­mente em suas complicadas e pesadas conseqii&ncias. Para aplacar a consciencia despertada pela imprudente dccisao de fazer a guer­ra sob uma bandeira humanit!tria, Luttwak indica a 6bvia inade­qua<;3.o do envolvimento militar como meio para urn fim: "~esmo uma desinteressada interven~iio de larga escala pode deJXar de alcan~ar seu objetivo humanitario ostensive. E precise perguntar­se se os kosovares nao estariam em melhor situa<;iio se a OfAN nao tivesse intervindo?' Teria sido provavelmente melhor para as for-9as da CYrAN ter continuado com seus treinamentos diaries e dei­xado aos locais o que os locais tinham que fazer.

0 que causou o arrependimento e levou os vencedores a la­mentarem a interferencia ( oficialmente proclamada urn sucesso) foi que eles niio conseguiram escapar a mesmissima eventualidade que a campanha "atingir e fugir" pretendia evita~:, a. necess1~ade da invasiio e da ocupa9iio e administra9iio do terntono conqmsta­do. Quando os para-quedistas aterrissaram e se estabeleceram em Kosovo, os beligerantes foram impedidos de se matar entre si, mas a tarefa de mante-los a distancia segura trouxe as for9as da CYrAN "do ceu para a terra" e as envolveu com a responsabilidade das sujas realidades em campo. Henry Kissinger, urn s6brio eatento analista e o mestre da politica entendida (de urn modo mew antl­quado) como a arte do possivel, advertiu contra outro trope9o que

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seria arcar com a responsabilidade pela recupera~ao das terras devastadas pelos ataques dos bombardeiros. 15 Esse plano, diz Kis­singer, "arrisca tornar-se urn compromisso aberto em dire<;3.o a urn envolvimento cada vez maior, colocando-nos no papel de gendar­mes de uma regiiio de 6dios apaixonados e onde temos poucos interesses estrategicos': Eo '"envolvimento" e justamente o que as guerras destinadas a "promover a globaliza9ao por outros meios'' devem evitar! A administra9ao civil, acrescenta Kissinger, envolve­ria inevitavelmente conflitos, e caberia aos administradores, como tarefa custosa e eticamente dubia, resolve-los pela for9a.

Ate agora hit poucos (se houver) sinais de que as for~as de ocupa9iio possam sair da tarefa de resolver o conflito em condi­~oes melhores que aqueles a quem bombardearam e substituiram em nome de seu fracasso. Em clara contraste com o destine dos refugiados em cujo nome a campanha de bombardeios foi inicia­da, as vidas cotidianas dos que retornaram raramente chegam as manchetes, mas as noticias que ocasionalmente chegam aos leito­res e ouvintes sao sinistras. "Uma onda de vioiencia e represilias continuadas contra servios e a minoria roma em Kosovo amea<;a solapar a precaria estabilidade da provincia, deixando-a etnica­mente limpa de servios apenas urn mes depois da tomada de con­trole pelas tropas da CYrAN'; relata Chris Bird de Pristina16 As for-9as da CYrAN em campo parecem perdidas e desvalidas diante dos furiosos 6dios etnicos, que pareciam tao faceis de atribuir a malicia de apenas urn celerado, e portanto tao faceis de resolver, quando vistos das cameras de TV instaladas a bordo dos bombardeiros supers&nicos.

Jean Clair, e com ele outros observadores, espera que o resul­tado imediato da guerra nos Balcas seja uma profundae duradou­ra desestabiliza<;ao de toda a area, e a implosao, nao a matura<;ao, das jovens e vulneraveis ( ou ainda nem nascidas) democracias como a macedonia, albanesa, croata ou bUlgara. 17 (Daniel Vernet apresenta seu levantamento das opini6es sabre a questao por cien­tistas politicos e sociais de classe alta da regiiio sob o titulo "Os Balciis diante do risco de agonia sem fim': 18) Mas Clair tambem se pergunta como sera preenchido 0 vazio aberto depois que as rai­zes da viabilidade dos Estados-na9iio foram cortadas. As for9as

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globais de mercado, jubilosas com a perspectiva de nao mais se­rem detidas ou obstruidas, provavelmente se instalarao no local, mas nao vao querer (nein cuu~eguir, se quiseren1) representar as autoridades politicas ausentes ou enfraquecidas. Nem estarao ne­cessariamente interessadas na ressurrei~ao de urn Estado-na<;iio forte e confiante em pleno controle de seu territ6rio.

"Outro Plano Marshal" e a resposta mais co mum a perplexida­de atual. Nao sao s6 OS generais que sao conhecidos por estar sempre envolvidos na ultima guerra vitoriosa. Mas nao e passive! pagar para sair de cada apuro, por maior que seja a soma pasta de !ado para isso. 0 problema dos B;\lcas e inteiramente diferente do da reconstru~ao da soberania e do sustento dos cidadaos dos Estados-na~ao depois da Segunda Guerra. 0 que enfrentamos nos Balcas depois da guerra do Kosovo nao e apenas a tarefa da re­constru~ao material quase a partir do zero ( o sustento dos iugos­lavos esta praticamente destruido ), mas tambem os agitados e inflamados chauvinismos interetnicos que sairam da guerra refor­~ados. A inclusao dos Balcas na rede dos mercados globais nao sera de muita serventia para amainar a intolerincia e 0 6dio, dado que aumentara a inseguran~a que era ( e continua sen do) a fonte principal dos sentimentos tribais em ebuli~ao. Hit, por exemplo, urn perigo real de que o enfraquecimento da capacidade de resis­tencia servia possa servir como convite para que seus vizinhos se envolvam em nova rodada de hostilidades e limpezas etnicas.

Dada a lamentavel folha-corrida dos politicos da OTAN em sua grosseira administra~ao das delicadas e complexas questoes tipi­cas do "cinturao de popula~oes mistas" (como Hannah Arendt adequadamente chamou a regiao) dos Balcas, pode-se temer nova serie de custosos desastres. Nao errariamos em muito tampouco em suspeitar da iminencia do momenta em que os Hderes euro­peus, tendo se assegurado de que nenhuma nova onda de refugia­dos em busca de asilo amea~a seu pr6spero eleitorado, percam o interesse intrinseco nas tenas inadministr:lveis, como j:l fizeram tantas vezes antes - na Somalia, Sudao, Ruanda, Timor Leste e Afeganistiio. Estaremos entao de volta ao come<;o, depois de urn desvio semeado de cadaveres. Antonina Jelyazkova, diretora do Instituto Intemacional de Estudos de Minorias, expressou hem a

Comunidade 219

questao ( citada por Vernet): "Nao se pode resolver o problema das minorias com bombas. As explosoes deixam o diabo a solta dos dois lados~'19 Tomando o lado das posi<;Oes nacionalistas, as a<;Oes da aTAN fortaleceram OS j:l freneticos nacionalismos da <irea e prepararam o terreno para futuras repeti.;oes de atentados geno­cidas. Uma das mais terriveis conseqi.iencias e que a mUtua aco­moda~ao e a amigavel coexistencia de linguas, culturas e religioes da area nunca foi ta.o improv.lvel como agora. Quaisquer que se­jam as inten-;Oes, os resultados contrariam o que urn empreendi­mento verdadeiramente etico nos levaria a esperar.

A condusao, ainda que preliminar, nao e auspiciosa. As tenta­tivas de mitigar a agressao tribal pelas novas "a~oes policiais glo­bais" foram ate aqui incondusivas, e mais provavelmente contra­producentes. Os efeitos totais da incessante globaliza.;ao tern sido marcadamente desequilibrados: a ferida do reinicio da guerra civil chegou antes do remedio necessaria para cur!t-la, que est:\, na melhor das hip6teses, na fase de testes (mais provavelmente na de tentativa e erro ). A globaliza<;ao parece ter mais sucesso em au­mentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que ern promover a coexistencia pacifica das comunidades.

Preencher o vazio

Para as multinacionais (isto e, empresas globais com interesses e compromissos locais disperses e cambiantes ), "o mundo ideal" ''e urn mundo sem Estados, ou pelo menos com pequenos e nao grandes Estados'; observou Eric Hobsbawm. "A menos que tenha petr6leo, quanta menor o Estado, mais fraco ele e, e menos dinhei­ro e necess.lrio para se comprar urn governo~'

0 que temos hoje e, com efeito, urn sistema dual, 0 sistema oficial das "economias nacionais" dos Estados, e o real, mas nao oficial, das unidades e institui.;:6es transnacionais ... Ao contririo do Estado com seu territ6rio e poder, outros elementos da "na.;:ao" podem ser e silo facilmente ultrapassados pela globaliza<;3.o da economia. Etnicidade e lingua sao dois exemplos 6bvios. Sem o poder e a for<;a coercitiva do Estado, sua relativa insignificfulcia € clara.20

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220 Modernidade Uquida

Como a globaliza~ao da economia procede aos saltos, "com­prar governos" e, certamente, cada vez menos necess:lrio. A clara incapacjdade dos gov~rnos de eqnilibrar as contas com os recur­sos que COlltfolam (isto e, OS recUfSOS que eles podem estar CertOS de que continuariio no dominic de sua jurisdi~ao independente do modo que escolham para equilibrar as contas) seria suficiente para faze-los nao s6 se renderem ao inevit:ivel, mas colaborarem ativamente e de hom grado com os "globais':

Anthony Giddens utilizou a met:lfora ap6crifa do "juggernaut' para captar o mecanisme da "moderniza~ao" do mundo. A mesma met!tfora se adapta hem a globaliza~ao da economia de hoje: e cada vez mais dificil separar os atores e seus objetos passivos, pois a maioria dos governos competem entre si para implorar, adular ou seduzir 0 juggernaut global a mudar de rumo e vir primeiro as terras que administram. Os poucos entre eles que sao lentos, mio­pes ou orgulhosos demais para entrar na competi~ao enfrentarao serios problemas por nao terem 0 que dizer a seus eleitores que «votam com suas carteiras': ou entiio sedio prontamente condena­dos e relegados ao ostracismo pelo afinado coro da "opiniao mun­dial': para serem depois varridos ( ou amea~ados de ser varridos) por bomb as capazes de restaurar seu hom sen so, trazendo-os (de volta) ao redil.

Se o principia da soberania dos Estados-na~ao esta finalmente desacreditado e removido dos estatutos do direito internacional, se a capacidade de resistencia dos Estados esta efetivamente que­brada a ponto de nao precisar ser levada seriamente em conta nos calculos dos poderes globais, a substitui~ao do "mundo das na­~oes" pela ordem supranacional (urn sistema politico global de freios e contrapesos para limitar e regular as fon;as econOmicas glcibais) e a pen as urn dos posshceis cenarios - e, da perspectiva de hoje, nao o mais provavel. A dissemina~ao mundial do que Pierre Bourdieu chamou de "politica da precariza<;io" e igualmente pro­vavel, se nao mais. Se o golpe na soberania do Estado se demons­trar fatal ou terminal, se o Estado perder seu monop6lio da coer­~ao (que tanto Max Weber como Norbert Elias consideravam como sua caracteristica distintiva e, simultaneamente, o atributo sine qua non da racionalidade moderna ou ordem civilizada), nao

Comunidade 221

se segue necessariamente que o volume total de viol@ncia, inclu­sive violencia com conseqi.i@ncias potencialmente genocidas, dimi­nuid.; ela pode ser apenas "desregulada'~ descendo do nivel do Estado para o da "comunidade" (neotribal).

Na falta do quadro institucional de estruturas "arb6reas" (para utilizar a metitfora de Deleuze/Guattari), a socialidade pode per­feitamente retornar a suas manifesta<;5es "explosivas'~ ramifican­do-se e fazendo brotar forma~oes de grau variado de durabilida­de, mas invariavelmente inst.1veis, calorosamente contestadas e destituidas de base em que se apoiar - a exce~ao das a~oes apai­xonadas e freneticas de seus partidarios. A instabilidade endemica dos fundamentos precisara ser compensada. Uma cumplicidade ativa (voluntaria ou for~ada) nos crimes, que s6 a existencia con­tinuada de uma "comunidade explosiva" pode isentar efetivamente de puni~ao, e a candidata mais provavel a ocupar a vaga. Comuni­dades explosivas precisam de violencia para nascer e para conti­nuar vivendo. Precis am de inimigos que ameacem sua exisd~ncia e inimigos a serem coletivamente perseguidos, torturado~ e mutila­dos, a fim de fazer de cada membro da comunidade urn cumplice do que, em caso de derrota, seria certamente dedarado crime contra a humanidade e, portanto, objeto de puni~ao.

Noma serie de estudos provocatives (Des choses cachees depuis Ia fondation du monde:, Le bouc imissaire:, La violence et le sacre), Rene Girard desenvolveu uma teoria ampla do papel da violencia no nascimento e persistencia da comunidade. Urn impulso violento esta sempre em ebuli~ao sob a calma superficie da coopera~ao pacifica e amigavel; esse impulso precisa ser canalizado para fora dos limites da comunidade, onde a violencia e proibida. A violen­cia, que caso contrario desmascararia o blefe da unidade comunal, e entao recidada como arma de defesa comunal. Dessa forma recidada ela e indispensavel; precisa ser reencenada sempre sob a forma de urn sacrificio ritual, cuja vitima substituta e escolhida de acordo com regras que raramente sao explicitadas, e sao no entanto estritas. "H.i urn denominador comuin que determina a efidtcia de todos OS sacrificios~' Esse denominador comum e

a viol&ncia interna - todas as dissens6es, rivalidades, ciUme e que­relas dentro da comunidade, que os sacrificios contribuem para ·su-

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primir. 0 prop6sito do sacrificio e restaurar a harmonia da comuni­dade, reforc;;:ar o tecido social.

0 que une as diversas formas de sacrificio ritual e seu propo­sito de manter viva a memOria da unidade comunal e de sua pre­cariedade. Mas, para que desempenhe essa fun~ao, a "vitima subs­tituta'; objeto sacrificado no altar da unidade comunal, deve ser escolhida adequadamente - e as regras de sele~ao sao exigentes e precisas. Para ser adequado ao sacrificio, o objeto potencial "deve ter grande semelhan~a com as categorias humanas excluidas das fileiras dos 'sacrificiveis' (istO e, OS humanos considerados 'membros da comunidade'), ainda que mantenham urn grau de diferen~a que impe~a qualquer possivel confusao': Os candidates devem ser de fora, mas nao distantes demais; semelhantes "a n6s, membros cabais da comunidade'; mas inequivocamente diferen­tes. 0 ato de sacrificar esses objetos se destina, afinal, a tra~ar estritas e impass3veis fronteiras entre o "dentro" e o '"fora" da comunidade. Nao e preciso dizer que as categorias das quais as vitimas sao regularmente selecionadas sao

seres que estiio fora ou nas fronteiras da sociedade; prisioneiros de guerra, escravos ... individuos de fora au marginais, incapazes de estabelecer ou compartilhar os la<;os sociais que unem o resto dos habitantes. Seu status como estrangeiros ou inimigos, sua condi<;iio servil, ou simplesmente sua ida de, impede essas futuras vftimas de se integrarem a cornunidade.

A falta de la~os sociais com os membros "legitimos" da comu­nidade (ou a proibi~ao de estabelecer tais la~os) tern uma vanta­gem adicional: as vitimas "podem ser expostas a violencia sem risco de vingan~a";21 pode-se puni-los com impunidade - ou pelo menos pode-se esperar por isso, manifestando, porem, a expecta­tiva oposta, pintando a capacidade assassina das vitimas nas cores mais vivas e lembrando que a comunidade deve cerrar fileiras e manter seu vigor e vigiHincia no mhimo.

A teoria de Girard parece fazer sentido da violencia que e profusa e exaltada nas esgar~adas fronteiras das comunidades, especialmente, comunidades cujas identidades sao incertas ou

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contestadas, ou, mais precisamente, do uso comum da violencia como instrumento para desenhar fronteiras quando estas est:io ausentes, ou sao porosas ou apagadas. Tres comentUrios parecem, porem, necess3.rios.

Primeiro: se 0 sacrificio regular de "vitimas substitutas" e uma cerim&nia de renovac;ao do "contrato social" n:io-escrito, ele pode desempenhar esse papel gra~as a seu outro aspecto - o da lem­bran~a coletiva de urn "ato de cria~ao" hist6rico ou mitico, do pacto original a partir de urn campo de batalha mergulhado em sangue inimigo. Se nao houve tal evento, ele precisa ser retrospec­tivamente construido pela assidua repeti~ao do ritual de sacrificio. Genulno ou inventado, porem, ele cria urn padrao para todas as candidatas ao status de comunidade - as futuras comunidades que ainda nao estao em posi<;Uo de substituir a ""coisa real" pelo ritual benigno e o assassinate de vltimas reais pela morte de viti­mas substitutas. Por mais sublimada que seja a forma do sacrificio ritual que transforma a vida comunal numa reencena<;ao continua do milagre do "dia da independencia'; as li~oes pragmiticas tira­das par todas as que aspiram ao status de comunidade induzem a fa~anhas de pouca sutileza ou elegancia liturgica.

Segundo: a ideia de uma comunidade cometendo o "assassi­nate original" a fim de tornar sua existencia segura e garantida e cerrar fileiras e incongruente nos pr6prios termos de Girard; antes que o assassinio original fosse cometido dificilmente haveria filei­ras a serem cerradas e uma existi:~ncia comunal para ser assegura­da. (0 proprio Girard deixa isso implicito, quando explica em seu capitulo 10 o simbolismo ubiquo do corte na liturgia do sacrificio: "0 nascimento da comunidade e antes e acima de tudo urn ato de separa~ao?') A visao da exporta~ao calculada da violencia inten1a para alem das fronteiras da comunidade (a comunidade assassi­nando estranhos a fim de manter a paz entre seus membros) e mais urn caso do expediente tentador mas equivocado de tomar a fun~ao (genuina ou imputada) por explica~ao causal. E antes o proprio assassinate original que traz a comunidade a vida, colo­cando a demanda de solidariedade e a necessidade de cerrar filei­ras. E a legitimidade das vitimas originais que clama pela salida-

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riedade comunal e que ten de a ser confirmada ano ap6s ano nos rituais de sacrificio.

Terceiro: a afirma~ao de Girard de que o "sacrificio e princi­palmente urn ato de violencia sem risco de vingan9a" (p.l3) pre­cisa ser complementada pela observa9ao de que, para tornar o sacrificio eficaz, a aus&ncia de risco deve ser cuidadosamente ocul­tada ou, melhor ainda, enfaticamente negada. Do assassinio origi­nal o inimigo deve ter emergido nao inteiramente morto, mas morto-vivo, urn zumbi pronto a levantar-se da tumba a qualquer momenta. Urn inimigo realmente morto, ou urn inimigo morto incapaz de ressuscitar, niio inspiranl temor suficiente para justificar a necessidade de unidade - e os rituais de sacrificio sao regular­mente realizados para lembrar a todos que os rumores do desapa­recimento final do inimigo sao propaganda do proprio inimigo e, portanto, a prova obliqua, mas vivida, de que o inimigo esta vivo.

Numa formidivel serie de estudos sobre o genoddio na Bos­nia, Arne Johan Vedesen diz que, na falta de fundamentos institu­cionais confi<lveis (esperariamos que dur<iveis e seguros), urn es­pectador nao-envolvido, morno ou indiferente se torna o mais odiado eo melhor dos inimigos: "Do ponto de vista de urn agente do genoddio, esses estranhos sao pessoas que tern urn potencial ... para deter o genoddio em curso:m Independente de que os espectadores efetivem ou niio esse potencial, sua presenc;a en­quanto "espectadores" (pessoas que nao fazem nada para destruir 0 inimigo) e urn desafio a unica proposi~ao de que a comunidade deriva sua raison d)etre: de que e uma situac;ao "ou n6s, ou eles': que a destruic;ao "deles" e indispensclvel para "nossa" sobreviven­cia e mati-"los" e a conditio sine qua non da "nossa" sobrevivencia. Como a participac;ao na comunidade nao esti predeterminada ou institucionalmente assegurada, o "batismo do sangue ( derrama­do )" - uma participac;ao pessoal no crime coletivo - e a unica maneira de aderir e a unica legitimac;ao da participa~ao continua. Por oposic;ao ao genocidio praticado pelo Estado (e, principalmen­te, por oposic;ao ao Holocausto ), o tipo de genocidio que eo ritual de nascimento das comunidades explosivas nao pode ser confiado aos especialistas ou delegado a departamentos ou unidades espe-

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ciais. Nao e tanto uma questao de quantos "inimigos" sao mortos; e mais importante quantos sao OS assassinos.

Tambem e importante que OS assassinatOR sejam cometidos abertamente, a luz do dia e a vista de todos, que existam testemu­nhas do crime que conhec;am os assassinos pelo nome - de modo que a evasao e a impunidade deixem de ser uma opc;ao viivel e a comunidade nascida do crime iniciitico permanec;a como Unico refugio para OS assassinos. A limpeza etnica, como Arne Johan Vedesen descobriu em seu estudo da Bosnia,

fixa e mantim as condic;Oes de proximidade entre criminoso e vitima e ate cria essas condic;Oes se elas nao existirem, e as estende, como questao de prindpio, se correm o risco de desaparecer. Nessa violen­cia superpersonalizada, familias inteiras foram forc;adas a ser teste­munhas de tortura, estupro e assassinate ... 23

Outra vez por contraste com o genoddio ao estilo antigo, e acima de tudo ao Holocausto como "tipo ideal': as testemunhas sao ingredientes indispensclveis na mistura de fatores que dao vida a uma comunidade explosiva. Uma comunidade explosiva pode contar razoavelmente (ainda que as vezes enganosamente) com longa vida apenas enquanto o crime original for lembrado e, as­sim, seus membros, cientes de que as provas do crime que come­teram sao abundantes, permanecem unidos e solidirios - cimen­tados pelo interesse conjunto de cerrar fileiras para contestar a natureza criminosa e punivel de seus atos. A melhor maneira de gerar essas condic;Oes e reavivar peri6dica ou continuamente a memoria do crime e o medo da punic;ao pela adi~ao de novos crimes aos velhos. Como as comunidades explosivas nascem em pares (nao haveria o ''n6s" se nao fosse por ""eles") e como a violencia genocida e urn crime a que qualquer dos membros do par recorre com facilidade quando se sente mals forte, niio faltam oportunidades para encontrar urn pretexto adequado a uma nova "limpeza emica" ou atentado genocida. A violencia que acompa­nha a sociabilidade explosiva e e 0 modo de vida das comunida­des que sedimenta, portanto, se autopropaga, autoperpetua e auto­refor9a. Ela gera o que Gregory Bateson chamou de "cadeias es-

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quizogeneticas': que resistem bravamente a serem interrompidas,

que dira revertidas. Uma caracteristica que torna as comunidades do tipo analisa­

do par Girard e Vetlesen particularrnente ferozes, violentas e san­grentas, dotando-as de consider:lvel potencial genocida, e sua "co­nexao territorial'~ Esse potencial tern origem em outro paradoxa da era da modemidade liquida. A territorialidade esta intimamen­te ligada as obsessoes espaciais da modernidade s61ida; alimenta­se delas e contribui, par sua vez, para sua preserva~ao. As comu­nidades explosivas, ao contririo, estao em casa na era da moder­nidade liquefeita. A mescla de sociabilidade explosiva com aspira­<;Oes territoriais est:l fadada, portanto, a resultar em muta<;5es monstruosas. A altern:lncia de estrategias "figicas" e "emicas" na conquista e defesa do espac;o (que em geral era a principal questao nos conflitos da modernidade s61ida) aparece inteiramente fora de Iugar ( e o que e ainda mais importante, "fora do tempo") num mundo dominado pela variedade leve/fluida/de software da mo­dernidade; nesse mundo, ela quebra a norma em vez de segui-la.

As popula<;Oes sedent:lrias sitiadas se recusam a aceitar as re­gras e riscos do novo jogo de poder "nomade': atitude que a nova elite global nomade acha extremamente dificil (bern como repul­siva e indesejavel) de entender e nao pode perceber senao como urn sinal de retardamento e atraso. Quando se trata de confrontos, e particularmente confrontos militares, as elites nomades do mo­derno mundo liquido percebem a estrategia territorialmente orientada das popula~oes sedentirias como "barbara" por compa­ra~ao a sua propria estrategia militar "civilizada': Agora e a elite nomade que da 0 tom e dita OS criterios peJos quais as obsessoes territoriais sao classificadas e julgadas. A mesa foi virada - e a velha e testada arma da "cronopolitica'; outrora utilizada pelas triunfantes popuJa~OeS sedentarias para expuJsar OS nomades para a pre-hist6ria barbara e selvagem, e agora utilizada pelas vitoriosas elites nomades em sua !uta com o que reston da soberania terri­torial e contra aqueles que ainda se dedicam a sua defesa.

Em sua reprovac;ao das pd.ticas territoriais, as elites .nOmades podem contar com 0 apoio popu1ar. 0 ultraje experimentado a vista das massivas expulsoes chamadas de "limpeza etnica" ganha

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vigor adicional pelo tato de que elas parecem estranhamente uma versao ampliada das tendencias manifestadas diariamente, ainda que em men or cscala, pcrto de casa - em todos os espa<;os urba­nos das terras que fazem a cruzada civilizadora. Lutando contra OS "faxineiros etnicos'~ exorcizamOs nossos "demOnios'~ que nos estimulam a pOr em ·guetos os indesejtlveis '"estrangeiros': a aplau­dir o estreitamento do direito de asilo, a demandar a remoc;ao dos constrangedores estrangeiros das ruas da cidade e a pagar qual­quer prec;o pelos abrigos cercados de cameras de vigilancia e guar­das armadas. Na guerra iugoslava o que estava em jogo para os dois !ados era notavelmente semelhante, embora o que era o ob­jetivo declarado de urn dos !ados fosse urn segredo ansiosamente guardado pelo outro. Os servios queriam expulsar de seu territ6rio uma minoria albanesa recalcitrante e embarac;osa, enquanto os pa:ises da OTAN, por assim dizer, "respondiam a altura": sua cam­panba militar foi deslanchada pelo desejo dos outros europeus de manterem OS albaneses na Servia, matando assim DO ninho a ameac;a de sua reencarnac;ao como migrantes constrangedores e indesejados.

Cloakroom communities'

A liga<;iio entre a comunidade explosiva em sua encarna<;iio mo­derna especificamente liquida e a territorialidade nao e porem necess<iria, nem, certamente, universal. A maioria das comunida­des explosivas contemporaneas sao feitas sob medida para os tem­pos liquidos modernos mesmo que sua disseminac;ao possa ser projetada territorialmente; elas sao extraterritoriais ( e tend em a obter sucesso mais espetacular quanta mais livres forem das limi­tac;oes territoriais)- precisamente como as identidades que invo­cam e mantem precariamente vivas no breve intervale enu·e a

Literalmente, '"comunidades de guarda-casacos': em alusiio aos locais onde, em museus e teatros, deixam-se capas e casacos, que sao retirados ~ saida. (N.T)

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explosao e a extiw;ao. Sua natureza "explosiva" combina bern com as identidades da era moderna liquida: de modo semelhante a tais identidadcs, as comunidades em questiio tendem a ser volheis, transit6rias e voltadas ao ""aspecto {mica" ou "prop6sito Unico'~ Sua dura<;ao e curta, embora cheia de som e furia. Extraem poder nao de sua possivel dura<;ao mas, paradoxalmente, de sua preca­riedade e de seu futuro incerto, da vigiHincia e investimento emo­cional que sua frigil existencia demanda a gritos.

0 termo "cloakroom communitzj' capta bern alguns de seus tra­<;os caracteristicos. Os freqiientadores de urn espetaculo se vestem para a ocasiiio, obedecendo a urn c6digo distinto do que seguem diariamente- - o ato que simultaneamente separa a visita como uma "ocasiao especial" e faz com que os freqiientadores pare<;am, en quanta durar o even to, mais uniformes do que na vida fora do teatro. E a apresenta<;ao noturna que leva todos ao Iugar - por diferentes que sejam seus interesses e passatempos durante o dia. Antes de entrar no audit6rio, deixam os sobretudos ou capas que vestiram nas ruas no cloakroom da cas a de espet:iculos ( contando o numero de cabides usados pode-se julgar quao cheia esta a casa e quao garantido estil o futuro imediato da produ<;ao ). Durante a apresenta«;;ao, todos os olhos estao no palco; e tambem a aten«;;iio de todos. Alegria e tristeza, risos e silencios, ondas de aplauso, gritos de aprova«;;ao e -exclama«;;Oes de surpresa sao sincronizados - como se cuidadosamente planejados e dirigidos. Depois que as cortinas se fecham, porem, os espectadores recolhem seus perten­ces do cloakroom e, ao vestirem suas roupas de rua outra vez, retornam a seus papeis mundanos, ordimlrios e diferentes, dissol­vendo-se poucos mementos depois na variada multidao que enche as ruas da cidade e da qual haviam emergido algumas horas antes.

Cloakroom communities precis am de urn espetaculo que apele a interesses semelhantes em individuos diferentes e que os retina durante um certo te1npo em que outros interesses - que os sepa­ram em vez de uni-los - sao temporariamente postos de !ado, deixados em fogo brando ou inteiramente silenciados. Os espeta­culos enquanto ocasi6es para a breve existencia de cloakroom com­munities nao fundem e misturam cuidados individuais em '"inte­resses de grupo"; adicionadas, as preocupa<;6es em questao nao

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adquirem uma nova qualidade, e a ilusao de compartilhar que o espetaculo pode gerar nao dura muito mais que a excita«;;iio da performance.

Os espet:iculos passaram a substituir a "causa comum" da era da modernidade s6lida, do hardware- o que faz diferen<;a para a natureza das identidades ao novo estilo e leva a dar sentido as tens6es emocionais e traumas geradores de agressividade que de tempos em tempos as acompanham.

"Comunidades de carnaval" parece ser outro nome adequado para as comunidades em discussao. Tais comunidades, afinal, dao urn allvio tempor:irio as agonias de solit:irias lutas cotidianas, a cansativa condi<;ao de individuos de jure persuadidos ou for<;ados a puxar a si mesmos pelos pr6prios cabelos. Comunidades explo­sivas sao eventos que quebram a monotonia da solidao cotidiana, e como todos os eventos de carnavalliberam a pressao e permitem que os foliOes suportem melhor a rotina a que devem retornar no momenta em que a brincadeira terminar. E, como a filosofi.a, nas melanc6licas medita<;6es de Wittgenstein, "deixam tudo como es­tava" (scm con taros feridos e as cicatrizes marais dos que escapa­ram ao destino de "baixas marginais").

""Cloakroom" ou ""de carnaval': as comunidades explosivas sao uma caracteristica tao indispensavel da paisagem da modernidade liquida quanto o pleito essencialmente solitario dos individuos de jure em seus ardentes ( embora vaos) esfor~os de elevar-se a indi­viduos de facto. Os espetaculos e cabides no cloakroom e as fo!ias carnavalescas que atraem multidOes sao muitos e variados, para todos os tipos de gostos. 0 admiravel mundo novo de Huxley tomou emprestado ao 1984 de Orwell o estratagema dos "cinco minutos de 6dio ( coletivizado )'; complementando-o esperta e en­genhosamente com o expediente dos '"cinco minutes de adora«;;ao ( coletivizada Y A cada dia, as manchetes de primeira pagina da imprensa e dos cinco primeiros Ininutos da TV acenan1 com novas bandeiras sob as quais reunir-se e marchar ombro (virtual) a om­bro (virtual). Oferecem urn "objetivo comum" (virtual) em torno do qual comunidades virtuais podem se entrela<;ar, alternadamen­te atraidas e repelidas pelas sensa<;6es sincronizadas de panico (as vezes moral, mas geralmente imoral ou amoral) e extase.

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Urn efeito das cloakroom communities/ comunidades de carna­val e que elas eficazmente impedem a condensac;iio de comunida­des "genuinas" (isto e, compreensivas e duradonras), que imitam e prometem replicar ou fazer surgir do nada. Espalham em vez de condensar a energia dos impulses de sociabilidade, e assim con­tribuem para a perpetuac;iio da solidiio que busca desesperada­mente reden<;iio nas raras e intermitentes realizac;Oes coletivas or­questradas e harmoniosas.

Longe de ser uma cura para o sofrimento nascido do abismo niio-transposto e aparentemente intransponivel entre o destine do individuo de jure e 0 do individuo de facto, silo OS sintomas e as vezes fatores causais da desordem social especifica da condic;iio de modernidade liquida.

POSFACIO

ESCREVER; ESCREVER SOCIOLOGIA1

A necessidade de pensar e o que nos faz pensar. Theodor W. Adorno

Citando a opiniiio do poeta tcheco Jan Skitcel sobre a condic;iio do poeta (que, nas palavras de SkitceL apenas descobre os versos que "estiveram sempre, profundamente, Ia''), Milan Kundera comenta (em l.Art du roman, 1986): "Escrever significa para o poeta romper a muralha atr:is da qual se esconde alguma coisa que 'sempre esteve Ia:" Sob esse aspecto, a tarefa do poeta niio e diferente da obra da hist6ria, que tambem descobre) e nao inventa: a hist6ria, como os poetas, descobre, em sempre novas situac;oes, possibilida­des humanas antes ocultas.

0 que a hist6ria faz corriqueiramente e urn desafio, uma tarefa e uma missiio para o poeta. Para elevar-se a essa missiio, o poeta deve recusar servir verdades conhecidas de antemiio e hem usa­das, verdades ja "6bvias" porque trazidas a superficie e ai deixadas a flutuar. Niio importa que essas verdades "supostas de antemiio" sejam classificadas como revolucion<irias ou dissidentes, cristiis ou ateias - ou quao corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua denominac;iio, essas "verdades" niio sao as "coisas ocultas" que 0 poeta e chama­do a desvelar; sao antes partes da muralha que f.. miss;)o do poeta destruir. Os porta-vozes do 6bvio, do auto-evidente e "daquilo em que todos acreditamos" sao falsos poetas, diz Kundera.

Mas o que tern que vera vocac;iio do poeta com a do soci6lo­go? N6s soci6logos raramente escrevemos poemas. (Alguns de n6s que o fazemos tomamos uma licen<;a, para a atividade de escrever,

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de nossos afazeres profissionais.) E no en tanto, se nao quisermos partilhar do destino dos "falsos poetas" e nao quisermos ser "fal­~os soci6logos': devemos nos aproximar tanto quanto os verdadei­ros poetas das possibilidades humanas ainda ocultas; e por essa razao devemos perfurar as muralhas do 6bvio e do evidente, da moda ideol6gica do dia cuja trivialidade e tomada como prova de seu sentido. Demolir tais muralhas e vocac;ao tanto do soci6logo quanto do poeta, e pela mesma razao: o emparedamento das pos­sibilidades desvirtua o potencial humano ao mesmo tempo em que obstrui a revela~ao de seu blefe.

Talvez o verso que o poeta procura tenha Estado "sempre Ia': Nao se pode estar tao certo, porem, sabre o potencial humano descoberto pela hist6ria. Sera que os humanos - os que fazem e os que foram feitos, os her6is e as vitimas da hist6ria - sempre carregarao consigo 0 mesmo volume de possibilidades a espera do momenta certo para serem reveladas? Ou a oposic;ao entre desco­berta e cria<;ao e nula e vazia e nao faz sentido? Como a hist6ria e o processo infindavel da cria~ao humana, nao seria ela pela mesma razao o processo infindavel do autodescobrimento humano? A propensao para revelar/ criar sempre novas possibilidades, para expandir o inventario das possibilidades ja descobertas e tornadas reais, nao e o Unico potencial humane que sempre ""esteve ra·: e sempre estara? Saber se a nova possibilidade foi criada ou "mera­mente" revelada pela hist6ria e sem duvida urn estimulo bem-vin­do para mentes escolasticas; quanto a propria hist6ria, ela nao espera pela resposta e pode seguir sem ela.

0 legado mais precioso de Niklas Luhmann a seus colegas sociologos e a no~ao de autopoiesis- autocria~ao (do grego 1Wtct11,

fazer, criar, dar forma, o oposto de na<JXEtll, sofrer, ser urn objeto e nao a fonte do a to) -,que pretende cap tare encapsular a essen­cia da condicao humana. A escolha do termo foi em si mesma uma criaciio ou descoberta da liga~ao (parentesco herdado mais que afinidade escolhida) entre a hist6ria e a poesia. A poesia e a hist6-ria sao duas correntes paralelas ("paralelas" no sentido do univer­so nao-euclidiano regulado pela geometria de Bolyai e Lobachevs­ki) dessa autopoiesis das potencialidades humanas, em que a cria-

"' c;ao e a {mica forma que pode tOill<ll' i1 dt'MI'IIhl•l'l.t ts I 1\lllldttll'll•

berta e 0 principal ato de criacao. A sociologia, sou tentado a rlizPI~ {• 1111111 lf'l'l"lllf'" t•on·c•nfl•,

paralela a essas duas. Ou pelo menos isso ,'. o qn•• Pl1t tlt 1\ll'I'IU ~•·1 para ficar dentro dessa condic;iio humana qnc• 11'11111 lllllc'JIIIc•l' ,,

tornar inteligivel; e e 0 que e}a Vern tentando HI'!' dc'llltito 0 i11Jcio. embora tenha sido repetidas vezes desviada por tt•r 1o11111do eqni vocadamente as aparentemente impenetr<lveis e aindu 1111o deco111 postas muralhas como os limites Ultimos do potenci11l l1umano, •· por ter se apressado a garantir aos comandantes e ;''" t ropas soh seu comando que as linhas que tra<;aram para marcar os limiteH jamais seriam ultrapassadas.

Alfred de Mus set sugeriu ha quase do is seculos qu•· 'IH "grandes artistas nao tern p<ltria': Hft dois seculos essas palavra~ c·ram mili­tantes, uma especie de grito de guerra. Foram escritaH C'lll meio as ensurdecedoras fanfarras do patriotismo juvenil e crc'·c l11lo, e por isso mesmo belicoso e arrogante. Muitos politicos eslav;un desco­brindo sua voca<_;ao para a constru<;ao de Estados-na~;;u1 com urn a s6 lei, uma s6 lingua, uma s6 visao de mundo, uma Hc'1 llist6ria e urn s6 futuro. Muitos poetas e pintores estavam desl'ohrindo sua missao de nutrir os tenros brotos do espirito nacional, rc· . .,suscitan­do tradi<;5es nacionais h<l muito tidas como mortas 011 nmceben­do outras novas e oferecendo a na<;iio as hist6rias, canc;oes, seme­lhan<_;as e nomes de ancestrais her6icos - algo a ('cHnpartilhaJ~ amar e guardar em comum, e assim elevar o mero vivc·r juntos ao nivel do pertencer a mesma coisa, abrindo OS olhos dwc ViVOS para a beleza e do~ura do pertencimento ao leva-los a lend or • .,· e veJH'

rar seus mortos e a alegrar-se por cultivar seu legado. ( :o11tra PSSI' clima, o rude veredicto de Musset tinha todas as man·M~ de 1111111

rebe1liio e nm cham ado 3s armas: eoncitava seus coll'p,u~t c·~crilot't'~>~. a recusar coopera<;ao ao empreendimento dos politil'o'C, proi'C'I a~ I' pregadores das fronteiras vigiadas e das trinchejras annuda."l. N1\o sei se de Mus set intuiu a capacidade fratricida dos 1ipo111 clc• f1'aH'I' nidades que os politicos nacionalistas e ide6lop;m; lauH•uclo~"~ c•MIII vam determinados a erguer, ou se suas palavras n;lo l"''ucHVUIII clc•

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express5es de seu desagrado intelectual com os estreitos horizon­tes e com a mentalidade paroquial. Qualquer que fosse o caso entao, quando lidas agora, com a vantagem do tempo, pel a lente de aumento manchada com as marcas escuras das limpezas €:tni­cas, genoddios e tllmulos coletivos, as palavras de Musset parecem nao ter perdido nada de sua urgencia e desafio, e tampouco de sua capacidade de gerar controv€:rsia. Agora como entiio, elas miram o cora~ao da mlssiio do escritor e desafiam sua conscii~ncia com a questao decisiva para a raison d'iitre de qualquer escritor.

Urn seculo e meio depois, Juan Goytisolo, provavelmente o maior entre os escritores espanh6is vivos, assume uma vez mais a questao. Em entrevista recente ("Les batailles de Juan Goytisolo': no Monde, de 12.2.1999) ele diz que quando a Espanha aceitou, em nome da piedade cat6lica e sob influencia da Inquisi~ao, uma no~ao altamente restritiva da identidade nacional. o pais se tor­non, por volta do final do seculo XVII, urn "deserto cultural': Note­se que Goytisolo escreve em espanhoL mas viveu muitos anos em Paris e nos EUA, antes de fixar-se finalmente no Marrocos. E note­se tamb€:m que nenhum outre escritor espanhol tern tantas obras traduzidas para o arabe. Por que? Goytisolo nao duvida da razao. E explica: "A intimidade e a disdincia criam uma situa<_;ao privile­giada. Ambas sao necess!rrias:' Ainda que por raz6es diferentes, ambas essas qualidades se fazem presentes nas rela~6es de Goyti­solo com seu espanhol nativo e com o irabe, o frances e o ingles adquiridos - as linguas dos paises que sucessivamente se torna­ram suas pitrias substitutas escolhidas.

Como Goytisolo passou grande parte de sua vida Ionge da Espanha, a lingua espanhola deixou de ser para ele a ferramenta familiar da comunica<;ao di:iria, mundana e ordiniria, sempre a mao e dispensando a reflexao. Sua intimidade com a lingua da infuncia nao foi - nem poderia ter sido - afetada, mas agora est:\ complementada pela disdncia. A lingua espanhola 'Se tornou o "lar autentico em seu exilio': urn territ6rio conhecido e sentido e vivi­do de dentro e no entanto - como tambem se tornou remota -cheio de surpresas e descobertas. Esse territ6rio intimo/ distante se presta ao escrutinio tranqi.iilo e distante sine ira et studio, pondo a nu as annadilhas e as possibilidades nao-testadas, invis:iveis no

Posf6cio Ill

uso vernacular, mostrando uma plastic.iclade in."'wqwiiHdu, udml· tindo e convidando a interven<_;ao criativa. Foi a ('OIIIhinuc.·!lO dro intimidade e distancia que permitiu a Goytisolo pc•r'<'t•IH•r· qw• u

imersao nao-refletida na l:ingua- exatamente a esp<':ci<~ <I<~ iJII<'I'MI\t 1

que o ex:ilio torna quase impossivel - e cheia de perigoH: "Sc• vivemos apenas no presente, arriscamo-nos a desaparecer junta­mente com o presente:' Foi o olhar "de fora" e distante de sua lingua nativa que permitiu a Goytisolo dar urn passo alem do presente que constantemente se esvai e enriquecer seu espanhol de urn modo de outra maneira improvivel, talvez de todo incon­cebivel. Trouxe de volta a sua prosa e poesia termos antigos, hit muito caidos em desuso, e ao faze-Io soprou a poeira que os co­bria, limpou a patina do tempo e ofereceu as palavras uma vitali­dade novae insuspeitada (ou hit muito esquecida).

Em Contre-al!ee, livro recentemente publicado em colabora~ao com Catherine Malabou, Jacques Derrida convida seus Ieitores a pensar em viagem- ou, mais precisamente, a "pensar via jar': 0 que quer dizer pensar a atividade unica de partir, ir embora de chez so~ ir para Ionge, para o desconhecido, arriscando todos os riscos, prazeres e perigos que o "desconhecido" oculta (ate mesmo o risco de nao voltar ).

"Estar Ionge" e uma obsessao de Derrida. Hit alguma razao para supor que a ela nasceu quando, em 1942, aos 12 anos, Jac­ques foi expulso da escola, que recebera do governo de Vichy a ordem de purificar-se dos alunos judeus. Assim come~ou o "exilio perpetuo" de Derrida. Desde entao, ele divide sua vida entre a Fran~a e os EUA. Nos EUA, era urn frances; na Fran~a, por mais que tentasse, vez por outra o sotaque argelino de sua inffincia irrompia atraves de sua refinada parole francesa, traindo o pied noir escon­dido sob a fina pele do professor da Sorbonne. (Alguns pensam que foi por is so que Derrida passou a exaltar a superioridade da escrita e compOs o mito etiol6gico da prioridade para sustentar a afirma~ao axiol6gica.) Culturalmente, Derrida continuaria "sem Estado': Isso nao significava nao ter uma terra natal cultural. Ao contririo: ser "culturalmente sem Estado" significava ter mais de uma terra natal, construir urn lar prOprio na encruzilhada das cul-

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turas. Derrida se tornou e permaneceu urn mfteque, urn hibrido cultural. Seu "lar na encruzilhada" foi feito da lingua.

Construir urn lar na encru.z;ilhada cultural foi a melhor das oportunidades para submeter a lingua a provas com que ela pou­cas vezes se depara, para ver suas qualidades nao-percebidas, des­cobrir do que ela e capaz e quais as promessas que nao pode realizar. Desse lar na encruzilhada, para abrir-nos os olhos, veio a not:lcia da inerente pluralidade e da indecidibilidade do sentido (em I:Ecriture et fa difference), da impureza das origens (em De fa

grammatofogie) e da perpetua nao-realiza~ao da comunicac;ao (em La Carte postafe) -como notou Christian Delacampagne no Monde

de 12 de marc;o de 1999. As mensagens de Goytisolo e de Derrida sao diferentes da de

Musset: nao e verdade, sugerem o romancista e o fil6sofo em unissono, que a grande arte nao tern pitria - ao contr:irio, a arte e os artistas podem ter muitas pitrias, e a maioria deles certamente tern mais de uma. Em vez de ser sem pitria, o segredo e estar a vontade ern muitas pcltrias, mas estar em cada uma ao mesmo tempo dentro e fora, combinar a intimidade com a visao critica de urn estranho, envolvimento com distanciamento - o que as pes­soas sedentarias dificilmente aprendem. Pegar o jeito e a oportu­nidade do exilio: tecnicamente urn exilio - que e no lugar, mas nao do lugar. A liberdade que resulta dessa condi~ao (que e essa con­di~ao) revela que as verdades caseiras sao feitas e desfeitas pelo homem e que a lingua materna e urn fluxo infindavel de comuni­ca~ao entre as gera~Oes e urn tesouro de mensagens sempre mais ricas que quaisquer de suas leituras e sempre a espera de serem novamente reveladas.

George Steiner considerava Samuel Beckett, Jorge Luis Bor­ges e Vladimir Nabokov os maiores escritores contemporaneos. 0 que OS une, disse, e 0 que OS fez grandes, e que OS tres Se moviam com a mesma facilidade - estavam iguahnente ""a vontade" - em vclrios universes lingiiisticos, e nilo em apenas urn. (Cabe urn lem­brete: "universo lingiiistico" e urn pleonasmo: 0 universe em que cada urn de n6s vive e lingiilstico, e nao pode ser senao lihgiilstico - e feito de palavras. As palavras iluminam as ilhas das formas visiveis no oceano escuro do invisivel e marcam os disperses pon-

Posf6cio 237

tos de relevincia na mas sa informe da insignificilnda. sao as pala­vras que dividem o mundo em classes de ohj<~los nomeclveis e fazem snrglr se11 parentesco 011 oposi<)io, proximidadt~ ou disd.n­cia, afinidade ou estranhamento - e enquanto cstivcrcm sozinhas no campo elevam todos esses artefatos ao nlvel da realidade, a {mica realidade que existe.) E preciso viver, visitar, conhecer inti­marnente mais de urn desses universos para descobrir a inven<;ilo humana por trcls da estrutura irnpositiva e aparentemente irredu­tivel de qualquer desses universos, e para descobrir quanta esfor­<;o cultural humano e necess<irio para adivinhar a ideia da natureza com suas leis e necessidades; tudo isso e precise para se reunir, ao final, a audclcia e a determinat;ilo para juntar-se, conscientemente, a esse esfor~o cultural, ciente de seus riscos e armadilhas, mas tam­bern do ilimitado de seus horizontes.

Criar (e tambem descobrir) significa sempre quebrar uma re­gra; seguir a regra e mera rotina, mais do mesmo - nilo urn ato de cria<;ilo. Para o exilado, romper regras nilo e uma questilo de livre escolha, mas uma eventualidade que nilo pode ser evitada. Os exilados nilo sabem o bastante sabre as regras que reinam ern seu pais de chegada, nem as tratam com suficiente fervor para que seus esfort;os para observ<i-las e conformar-se a elas sejam percebidos como serios e aprovados. Ern relac;ao a seu pais de origem, a par­tida para o exilio foi lit registrada como o pecado original dos exilados, a luz do qual tudo 0 que eles venham a fazer mais tarde podercl ser usado contra eles como evidencia de sua quebra das regras. Por a<;ilo ou omissilo, quebrar as regras se torna a marca registrada dos exilados. Dificilmente isso os fara queridos pelos nativos dos paises pelos quais fazem seus itinenlrios. Mas, parado­xalmente, tambem lhes permite trazer para todos os paises envol­vidos dons de que eles muito precisam e que nao poderiam rece­ber de outras fontes.

Rsclare~.o. 0 '"exllio" em discussao n::=io f._ necessariamente um

caso de mobilidade fisica, corporal. Pode envolver trocar urn pais por outro, mas nao obrigatoriamente. Como disse Christine Brooke­Rose (em seu ensaio "Exsul"), a marca distintiva de to do exilio, e particularmente do exilio do escritor (isto e, 0 exilio articulado em palavras e assim transformado em uma e:xperie'ncia comunicavel) e

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238 Modernidade Uquida

a recusa a ser integrado - a determinac;ao de situar-se fora do espa~o, de construir urn Iugar proprio, diferente do Iugar em que OS outros a volta se inserem, urn Iugar diferente dos lugares aban­donados e diferente do Iugar em que se esta. 0 exllio e definido nao em relac;ao a qualquer espa<;o fisico particular ou as oposic;5es entre v3rios espac;os flsicos, mas por uma posic;ao autOnoma assu­mida em rela~ao ao espa~o como tal. "Em ultima analise'; pergunta Brooke-Rose,

cada poeta ou romancista "'poetico" ( explorador, rigoroso) nao e uma especie de exilado, que olha de fora para dentro, com os olhos da mente, uma imagem brilhaqte e desejitvel do pequeno mundo criado, para o espa<;o do esfor<;o de escrever e do espac;o rnais curta do ler? Esse tipo de escrita, muitas vezes contra editor e pUblico, e a Ultima arte criativa solid.ria, ni'i.o-socializada.

A resoluta determina<;iio de permanecer '"nao-socializado"; o consentimento a integrar-se apenas sob a condi<;1io de n3.o-inte­gra<;Uo; a resistencia - muitas vezes penosa e agoniante, mas em ultima analise vitoriosa- a grande pressao do Iugar, tanto o antigo quanto 0 novo; a aspera defesa do direito de julgar e de escolher; a adesao a ambivalencia ou a invoca<;ao dela- essas sao, podemos dizer, as caracteristicas constitutivas do "'exilado': Todas elas -note-se- referem-se a atitudes e estrategias de vida, a mobilidade espiritual mais que a fisica.

Michel Maffesoli (em Du nomadisme: Vagabondages initiatiques,

1997) escreve sobre o mundo que todos habitamos nos dias de hoje como urn "territ6rio flutuante" em que "individuos fnlgeis" encontram uma "realidade porosa'~ A esse territ6rio s6 se adaptam coisas ou pessoas fluidas, ambiguas, num estado de permanente transformar-se, num estado constante de autotransgressao. 0 "en­raizamento': se existir, s6 pode ser dinamico: ele deve ser reafir­mado e reconstituido diariamente - precisamente pelo ato repe­tido de ''autodistanciamento': esse ato fundador, inici:ltico, de ""es­tar de viagem': na estrada. Depois de comparar a todos n6s - os habitantes do mundo de hoje - aos n6mades, Jacques Attali (em Chemins de sagesse, 1996) sugere que, alem de viajar !eves e ser

Posf6cio 239

gentis, am1gaveis e hospitaleiros em rela<;1io aos estranhus que encontram em seu caminho, os nOmades devem estar constante­mente alertas, lembrando que seus acampamcntos sao vulner:lveis e niio d~m muros ou fossos que impe<;am a entrada de intrusos. Acima de tudo, lutando para sobreviver no mundo dos n&mades, precisam acostumar-se ao estado de desorienta<;iio perpetua, a via­jar por estradas de rumo e tamanho desconhecidos, raramente olhando alem da prOxima curva ou cruzamento; eles precisam concentrar toda sua aten~ao no pequeno trecho de estrada que tern que veneer antes do escurecer.

"Individuos frageis'; destinados a conduzir suas vidas numa "realidade porosa'; sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e "ao patinar sobre gelo fino'; ohservou Ralph Waldo Emer­son em seu ensaio "Prudence: "'nossa seguran<;a est:l em nossa velocidade': Individuos, frageis ou nao, precisam de seguran~a, anseiam por seguran<;a, buscam a seguran<;a e assirn tentam, ao maximo, fazer o que fazem com a mitxima velocidade. Estando entre corredores nlpidos, diminuir a velocidade significa ser dei­xado para tras; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade tambem significa a amea~a real de afogar-se. Portanto, a velocida­de sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivencia.

A velocidade, no entanto, nao e propicia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de Iongo prazo. 0 pensamento demanda pausa e descanso, ""tomar seu tempo': recapitular os passos jcl da­dos, examinar de perto o ponto alcan~ado e a sabedoria ( ou im­prudencia, se for o caso) de o ter alcan~ado. Pensar tira nos sa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manu­ten~ao da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o ge)o fino que e uma fataJidade para todos OS individuos frageis na realidade porosa pode ser equivocadamente tornado como seu destino.

Tomar a fatalidade por destino, como insistia Max Scheler em sua Ordo amori.s, e urn erro grave: "0 destino do homem niio e uma fatalidade ... A suposi~ao de que fatalidade e destino sao a mesma coisa merece ser chamada de fatalismo?' 0 fatalismo e urn erro do juizo, pois de fato a fatalidade "tern uma origem natural e basica-

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240 Modernidade Uquida

mente compreensivel': Alf:.m disso, embora nao seja uma quesdio de livre escolha, e particularmente de livre escolha individual, a fatalidade "tem origem na vida de urn homem ou de um povo'~ Para ver tudo isso, para notar a diferen<;a e a distincia entre fata­lidade e destino, e escapar a armadilha do fatalismo, sao necessa­rios recursos dificeis de obter quando se patina sobre gelo fino: tempo para pensar, e distanciamento para uma visao de conjunto. "A imagem de nosso destino'; adverte Scheler, "s6 nos abandona quando !he damos as costas': Mas o fatalismo e uma atitude que se auto-referenda: faz com que o "voltar as costas': essa conditio

sine qua non do pensamento, pare<;a inlltil e indigno de ser tentado. Tomar dist:incia, tomar tempo - a fnn de separar destino e

fatalidade, de emancipar o destino da fatalidade, de torna-lo livre para confrontar a fatalidade e desafia-la: essa e a voca~ao da so­ciologia. E e 0 que OS soci6logos podem fazer caso se esforcem consciente, deliberada e honestamente para refundir a voca~ao a que atendem - sua fatalidade - em seu destino.

"A sociologia e a resposta. Mas qual era a pergunta?'; diz e pergun­ta Ulrich Beck em Politik in der Risikogesellschaft Algumas paginas antes, Beck parecera articular a pergunta que procura: a possibili­dade de uma democracia que va alem da "'especialistocracia': uma especie de democracia que "come<;a onde se abre o debate e a forma<;ao de decis5es sabre se queremos uma vida nas condi<;Oes que nos sao apresentadas .. .':

Essa possibilidade e marcada por urn ponto de interroga~ao nao porque alguem deliberada e maldosamente tenha fechado a porta do debate e proibido a tomada de decis6es bern embasada; a liberdade de falar e reunir-se para discutir quest6es de interesse comum jamais foi tao completa e incondicional como agora. A quesdo e que e precise mais que a simples liberdade formal de falar e aprovar decis6es para come~ar seriamente o tipo de demo­cracia que na opiniao de Beck e nosso imperativo. Tambem preci­samos saber sobre o que devemos falar e do que devem se ocupar as decisOes que devemos tamar. E isso precisa ser feito na socie­dade em que vivemos, onde a autoridade de falar e decidir e

Posf6cio 741

reservada aos especialistas que detem o direito PXI'Iwlivo d" ddi­nir a diferenc:;a entre realidade e fantasia e de SPJl:II'UI' o poMI'!iVt•l

do imposslvel. (Especialistas, podemos dizcr, s5o qn:HH' pot· ddi­ni<;iio pessoas que "sabem das coisas': que as tomam {'OIIIo sao P

pensam sobre a maneira menos arriscada de viver com das.) Por que isso nao e ficil e provavelmente nao vai ficar mais fUc.:il

a menos que se fa-;:a alguma coisa e o que Beck explica em seu Risikogesellschajt: auf dem l#g in eine andere Moderne. Escrcve: "0 que 0 alimento e para a fome, a elimina<;io dos riscos, ou a inter­

pretar;tio que OS exclu~ e para a consciencia do risco?' Numa socie­dade pressionada principalmente pela necessidade material nao havia op<;io entre ''eliminar" a misf:.ria e "interpred-la como ine­xistente': Em nossa sociedade, mais assombrada pelo risco que pela necessidade material, a op<;io existe - e e feita diariamente. A fome nao pode ser aliviada pela nega~ao; na fome, o sofrimento subjetivo e suas causas objetivas estiio indissoluvelmente ligados, e a liga<;iio C cvidcntc e niio pode ser desmentida. Mas os riscos, ao contririo da necessidade material, nao sao experimentados subjetivamente; pelo menos nao sao "vividos" diretamente a nao ser que sejam mediados pelo conhecimento. Podem nunca chegar ao dominio da experi&ncia subjetiva - podem ser trivializados ou expressamente negados antes de chegar Ia, e a possibilidade de que sejam impedidos de chegar cresce junto com a extensao dos nscos.

Segue-se que a sociologia e mair necessdria que nunca. 0 traba­lho em que os soci6logos sao especialistas, o trabalho de trazer novamente a vista o elo perdido entre a afli~ao objetiva e a expe­ri&ncia subjetiva, se tornou mais vital e indispensclvel que nunca; e isso precisara da ajuda profissional dos soci6logos, porque e cada vez menos prov:ivel que possa ser feito pelos praticantes de outros campos de especializa<;Uo. Todos os especialistas lidam com problemas praticos e todo conhecimento especializado se dedica a sua solu<;3.o, e a sociologia e urn ramo do conhecimento especia­lizado cujo problema pratico a resolver e 0 esclarecimento que tem

por objetivo a compreenstio humana. A sociologia e talvez o Unico campo de especializa~o em que (como observou Pierre Bourdieu

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242 Modernidade Liquida

em La misi:re du monde) a famosa disrin~ao de Dilthey entre expli­

ca~iio e compreensiio foi superada e cancelada.

Compreender aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso e diferente de nosso destino. E compreen­der aquilo a que estamos fadados e conhecer a rede complexa de causas que provocaram essa fatalidade e sua diferen~a daquele desrino. Para operar no mundo (por contraste a ser "operado" por ele) e preciso en tender como 0 mundo opera.

0 ripo de esclarecimento que a sociologia e capaz de dar se endere~a a individuos que escolhem livremente e tern por objerivo aperfei~oar e refor~ar sua liberdade de escolha. Sen objerivo ime­diato e reabrir 0 caso supostamente fechado da explica~ao e pro­mover a compreensao. A autoformac;ao e a auto-afirmac;ao dos homens e mulheres individuais, condi~ao prelirninar de sua capa­cidade de rlecirlir se querem o ripo de vida que lhes foi apresen­tada como uma fatalidade, e que pode ganhar em vigor, eficitcia e racionalidade como resultado do esclarecimento sociol6gico. A causa da sociedade autonoma pode ganhar junto com a causa do individuo autonomo; elas s6 podern veneer ou perder juntas.

dis, Citando deLe delabrement de !'Occident, de Cornelius Castoria-

uma sociedade autOnoma, uma sociedade verdadeiramente demo­cd.tica,_ e uma sociedade que questiona tudo 0 que e pre-determina­do e assirn Iibera a criar;iio de novos significados. Em tal sociedade, todos os individuos sao livres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem (e puderem).

A sociedade e verdadeiramente autonoma quando "sabe, tern que saber, que nao hit significados 'asscgurados: sue vive na su­perficie do caos, que ela propria e urn caos em busca de forma, mas urna forma que nunca e fixada de uma vez por todas': A falta de significados garanridos -de verdades absolutas, de normas de conduta pre-ordenadas, de fronteiras pre-tra~adas entre o certo e 0 errado, de regras de ac;ao garantidas - e a conditio sine .qua non

Posf6cio 243

de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadc•il'lllllt~nh• 1111ti"moma

e individuos verdadeiramente livres; a socil'dadc• lllllilllllllla e a liberdade de seus membros se condicionam lllllltlanu•nlt•. A scgu­ran<;a que a democracia e a individualidade pod I'll I ak:nl\'<11' dc­pende nao de lutar contra a contingencia e a incPrJ(~!f.a da ('ondi~Uo humana, mas de reconhecer e encarar de frente suas ('OIJseqiiCn­cias.

Se a sociologia ortodoxa, nascida e desenvolvida sob a egide da modernidade s6lida, se preocupava com as condi~iies da obe­diencia e conformidade humanas, a primeira ocupa~ao da socio­logia feita sob medida para a modernidade liquida deve ser a promo~ao da autonomia e da liberdade; tal sociologia deve enfo­car a autoconsciencia, a compreensao e a responsabilidade indivi­duais. Para os habitantes da sociedade moderna em sua fase s61ida e adrninistrada, a oposi~ao principal se clava entre conformidade e desvio; a oposic;ao principal da sociedade moderna em sua fase liquefeita e descentrada, a oposi~iio que precisa ser enfrentada para pavimentar o caminho para uma sociedade verdadeiramente aut&noma, se del entre assumir a responsabilidade e buscar urn abrigo onde a responsabilidade pelas pr6prias a~iies nao precisa ser assumida pelos atores.

Este outro !ado da oposi~ao, buscar abrigo, e uma op~ao se­dutora e uma perspecriva realista. Alexis de Tocqueville (no segun­do volume de sua De la democratie en Amerique) observou que se o egolsmo, fantasma que atormentou a espE:cie humana em todos os per:iodos de sua hist6ria, "seca as sementes de todas as virtu­des': o individualismo, aflic;ao nova e tipicamente moderna, seca apenas "a fonte das virtudes publicas"; os individuos afetados es­tiio ocupados "criando pequenos grupos para sen proprio desfru­te" e deixando a "sociedade maior" de !ado. Essa tenta~iio cresceu consideravelmente desde que Tocqueville fez sua observac;ao.

Viver entre uma multidao de valores, normas e estilos de vida em competic;iio, sem uma garantia firme e conficlvel de estarmos certos, e perigoso e cobra urn alto pre~o psicol6gico. Nao sur­preende que a atra~ao da segunda resposta, de fugir da escolha responsavel, ganhe for~a. Como diz Julia Kristeva (em Nar;iies sem nacionalismo), ~~e rara a pessoa que nao invoca uma protec;ao pri-

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244 Modernidade Uquida

mal para compensar a desordem pessoaC E todos n6s, em medida maior ou menor, as vezes mais e as vezes menos, nos encontramos em Estado de "desordem pessoaC Vez por outra, sonhamos com uma "grande simplifica<;ao"; sem aviso, nos envolvemos em fanta­sias regressivas cuja principal inspira<;ao sao o Utero materna e o lar protegido por muros. A busca de urn abrigo primal e o "outro" da responsabilidade, exatamente como o desvio e a rebeliao eram o "outro" da conformidade. 0 anseio por urn abrigo primal veio hoje a substituir a rebeliao, que deixou de ser uma op~ao razoitvel; como diz Pierre Rosanvallon (em novo prefitcio a seu clitssico Le capitalirme utopique), nao hit mais "uma autoridade no poder para depor e substituir. Parece nao haver mais espa~o para a revolta, como atesta o fatalismo diante do fenomeno do desemprego':

Sinais da doen<;a sao abundantes e vislveis, mas, como repetida­mente observa Pierre Bourdieu, procuram em viio uma expressao legitima no mundo da politica. Sem expressao articulada, precisam ser lidos, obliquamente, nas explosoes da furia xen6foba e racista - manifesta~oes mais comuns da nostalgia do abrigo primal. A alternativa disponivel e nao menos popular da busca de bodes-ex­piat6rios e da intolerincia militante neotribais - a retirada da arena politica e a fuga para tras dos muros fortificados do privado - nao e mais a estrategia dominante e, acima de tudo, nao e mais uma resposta adequada a fonte verdadeira da afli~ao. E e neste .ponte que a sociologia, com seu potencial de explica~ao que pro­move a compreensi.io, atinge seu Iugar mais que em qualquer outre memento em sua hist6ria.

Segundo a antiga e ainda valida tradi~iio hipocratica, como Pierre Bourdieu lembra aos leitores de La mirere du monde, a ver­dadeira medicina come~a com o reconhecimento da doen<_;a invi­sivel - "fatos de que o doente niio fala ou esquece de relatar". 0 que e precise no caso da sociologia e a "revela~ao das causas estruturais que os sinais e falas aparentes s6 evidenciam por dis­tor~ao [ ne devoilent qu 'en les voilant] ·: E preciso enxergar - explicar e compreender - os sofrimentos caracteristicos de uma ordem social que "sem duvida fez recuar a grande miseria (ainda que

Posf6cio 245

talvez menos do que se diz freqiientemente), ao uw~mo (C'IIIJHl em que multiplicava os espa<;os sociais ... que ofen~cia111 c·ondic~·Oes

favor:lveis para o crescimento sem precedente!:i dP. 1odo~ oH lipos de pequenas miserias'~

Diagnosticar uma doenc;a nao e o mesmo que cm·A-Ia - essa regra geral vale tanto para os diagn6sticos sociol6gicos como para OS medicos. Mas note-se que a doen~a da sociedade difcre das doen~as do corpo num aspecto tremendamente importante: no caso de uma ordem social doente, a falta de urn diagn6stico ade­quado (silenciado pela tendencia de "interpretar como inexisten­tes" OS riscos observada por Ulrich Beck) e parte crucial e talvez decisiva da doen~a. Como bern disse Cornelius Castoriadis, esta doente a sociedade que deixa de se questionar; e nem poderia ser diferente, considerando que - quer o saiba ou nao - a sociedade e aut6noma (suas instituic;Oes siio feitas por humanos e, portanto, pod em ser desfeitas por humanos ), e que a suspensiio do auto­questionamento impede a consciencia da autonomia ao mesmo tempo em que promove a ilusao de heteronomia com suas conse­qiiencias fatalistas inevit<iveis. Recomec;ar o questionamento signi­fica dar urn grande passo para a cura. Do mesmo modo como na hist6ria da condic;ao humana a descoberta equivale a criac;ao e no pensamento sobre a condic;ao humana explicac;iio e compreensiio siio uma s6 coisa, assim tambem, nos esforc;os de melhorar a con­di<;iio humana, diagn6stico e terapia se misturam.

Pierre Bourdieu expressou isso pe:rfeitamente na conclusiio a La misb-e du monde. "Tornar-se consciente dos mecanismos que fazem a vida penosa, mesmo imposs.ivel de ser vivida, niio significa neutraliz:l-los;. trazer a luz as contradic;6es nao significa resolve­las~· E, no entanto, por mais ceticos que possamos ser quanta a eficitcia social da mensagem sociol6gica, niio podemos negar os efeitos de permitir que aqueles que sofrem descubram a possibi­lidade de relacionar seus sofrimentos a causas sociais; nem pode­mos descartar os efeitos de tornarem-se conscientes da origem social da infelicidade "em todas as suas formas, inclusive as mais Intimas e secretas'~

Nada e menos inocente, lembra Bourdieu, que o laissez-:faire. Observar a miseria humana com equanimidade, aplacando a dor

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246 Modernidade Uquida

da consciencia com o encantamento ritual do credo "nao h3. alter­nativa': implica cumplicidade. Quem quer que, por a~ao ou ornis­siio, participe do acobertamento ou, pior ainda, da nega~iio da natureza altenlvel e contingente, humana e n:io-inevit3vel da or­dem socia1 notadamente do tipo de ordem responsavel pela infe­licidade, e culpado de imoralidade - de recusar ajuda a uma pes­soa em pengo.

Fazer sociologia e escrever sociologia tern por objetivo revelar a possibilidade de viver em conjunto de modo diferente, com menos miseria ou sem miseria: essa possibilidade diariamente subtraida, subestimada ou nao-percebida. Nao enxergar, nao pro­curare assim suprimir essa possibilidade e parte da miseria huma­na e fator importante em sua perpetua~ao. Sua revela~ao nao pre­determina sua utiliza~ao; quando conhecidas, as possibilidades tambem podem nao ser submetidas ao teste da realidade, porque talvez nao confiemos nelas o bastante. A revela<;:io e o come<;o e nffo o fim da guerra contra a miseria humana. Mas essa guerra nao pode ser empreendida seriamente, e menos ainda com uma possi­bilidade pelo menos parcial de sucesso, a menos que a escala da liberdade humana seja revelada e reconhecida, de tal modo que a liberdade possa ser plenamente uti]lzada na luta contra as fontes sociais de toda infelicidade, inclusive a mais individual e privada.

Nao hit escolha entre maneiras ""engajadas" e "neutras" de fazer sociologia. Uma sociologia descomprometida e uma impos­sibilidade. Buscar uma posi<;iio moralmente neutra entre as muitas marcas de sociologia hoje praticadas, rnarcas que vao da declara­damente libert:iria a francamente comunit:iria, e urn esforGO viio. Os soci6logos s6 pod em negar ou esquecer os efeitos de seu tra­balho sobre a "visao de mundo': e o impacto dessa visao sobre as a~iies humanas singulares ou em conjunto, ao custo de fugir a responsabilidade de escolha que todo ser humano enfrenta diana­mente. A tarefa da sociologia e assegurar que essas escolhas sejam verdadeiramente livres e que assim continuem, cada vez mais, enquanto durar a humanidade.

NOT AS

Capitulo 1 - Emancipa~fio

1. Herbert Marcuse, "Liberation from the affluent society': dtacln C'oll

forme Crz'tical Theory and Society: a Reader, Stephen Eric Br011111'l' c I )tJII

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York' St. Martin's Press, 1955, p-48. 3. Charles Murray, If/hat it Means to he a Libertarian: A 1-b:rono/ llllt'l'

pretation., Nova York: Broadway Books., 1997, p.32. Ver tamb<'~n• os pt·rt i­nentes comentarios de Jeffrey Friedman em "What's wrong with lih<"rla rianism': Critical Review, verao 1997, p.407-67.

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1~1

Page 128: Modernidade Líquida

248 Modernidode Liquido

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Capitulo 2 - lndividuolidade

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p.l41.

9, Zbyz:ko Melosik e 'JOmasr. Szkudlru·ek, Ku!tura, 7hzsamoJ·c i Demo­lr:racja: Mtgotanie Lnaczm, Crac6via: lmpuls, 1998, p.89.

10. Manna Bianchi, The Active Consumer: Novelty and Surprise in Con­sumer Choice, Londres: Houtledge, 1998, p.6.

Notos

11 llilary Radner, "Producing the body: Jane Fonda and the new public feminine': in Sulkuncn ct alii (orgs.), Constructing the New Consu­

mn· Societlj. p.ll6, 117, 122. 12. Ut~ corolirrio apropriado c perspicaz do espanw ~e 1bny Blair

aparece na carta de Dr. Spencer Fitz-Gibbon ao Guardian: "E interessmlte que Robin Cook seja nm homcm mau agora que sua pmmiscuidade cxtramatrimonial foi rcvclada. No emanto, niio faz muito tempo elc esteve envolvido na vcnda -de eqnipamento a ditadura na Indonesia, mn regime que massacrou 200 mil pessoas no Timor Leste ocupado. Sc os meios de cumuuicat;iio co pUblico brit~nicos se scntisscm tiio ultrajaclos em rda­yiio ao gcnocidio quanto ao scxo, o mundo seria urn 1u~ar muito mais segttn):'

1:-t Vcr Michael Parc11ti, /nvcming Rea!it!J: The lblitics ofthe MaMMedia, Nova Yot'k: St. Martin's Press, 1986, p.65. Nas pabvras de Parenti, a men­s<~gem subjaccnte am massivos e ttbiqtws comerdais, o que qucr que tetuern wnder, (' que "a fim de viver bem e d(' mancira apropriada, us cou~tunidore9 precisam que us proclutorcs corporativos o~ gniem': De fa to, os prod111oreo curporativos podem coutar com um e.x6rnto de con­Hdhciros, as~essores pes~oili~ e E'Scritores de livros de aulo-ajuJa para mart dar a me~wa rncnsag('m de incompet&ucia pE's.,oal.

14_ llarvie F'ergusou, The Lure ifDreanu: Siipnund Freud and the Cons­lnntirm ofModermw, Lm1drcR: Routledge, 1996, p.205.

l.S_ Harvw Fr-rguson, '·Watrhing the world go round: Atrium culture and the psycholo[')Y of shopping'; 111 Bob Shields (org.), Lifoswle Shopping: The SubjertifConsumption, Londres: Routledge, 1992, p .. 1l.

16. \'er Ivan lllich, "l]Obsession de Ia sante parfaite': Le monde diplo­

ma!ique, mar 1999, p.28. 17, Citado de Bany C lass11~~r, "Fitness and the postmodern self; Jour­

nal of Health and Social Behaviour 30, 1989. 1 H_ Ver Albert Camm, T!te Rebel trad. Anthony Bower, Londres: Pen­

guin, 1971, p 226-7 19. Gilles Ddcuze e Fdix Cualtar1, Oed1jnu Complex: Capiralism and

Schizophrenia, trad. Robert Hurley, Nova York: Viki11g Pl't:'ss, 1977, p.5. 20. !<:frat Tsodon, "Fashion, fantasy and horror': Arena 12, 1998,

p.ll?. 21. Christopher Lasch, The Culture if Narciss1:rm, Nova York: W.W. Nor­

ton and Co., 1979, p.97. 22_ Christopher Lasch, The jlfimmal Se!f. Londrcs: Pan Books, 1985,

p .. 32, 29, 34. 23. Jeremy Seabrook, Tlw Le~u.re Societr;- Oxford: Blackwell, 1988,

p,183.

Page 129: Modernidade Líquida

250 Modernidode Liquido

24 Thomas Mathiesen, "'The viewer soeicty: Midwl Foucault's 'Panop­ticon" revisited': Theoretical Criminology 1/2, 1997, p.215-34.

25. Paul Atkinson e David Silverman, "Kundera's immortality: the in­tcniow gO(·jety and tile invention of the self~ Quahtativc Inquiry 3, 1997, p.304-25.

26. H<trvie Ferguson, "'Glamour and Lhe end of irony': 17w lledgehog

Review, outono EHJ9, p.l 0-fi.

27. Jeremy Sealwook, The Race for Ricin's. The Human Costs o/ Wealth, Ba~ingstokc: Marshall Pikeriug, 1988, p.l68-~-

28. Yve~ ~'fichaud, "Drs idcntit(:~ fk:xiblcs", Le Mondc., 24.10.1997.

Capitulo 3 - Tempo/Espa<;o

l. Citado de Chris I\-1('Creal, "Fort res~ Wwn to ri:;e Oil Cape of low lmpeo ·; Cuardian, 22.l.J 9~19.

2. Vcr \Ltrah Hmt-'Jey, "W~rning or- fake 5t<Jlking claims': Guardian,

1.2.1999, l:itando n•po11ag('w a~sinada por Miehd Patlic'., Paul E. Mullen e Rosemary Purn~ll.

:3. Sltrtt'mt 'zukiu, The Cu/hm! oj'Citie;; Oxford: J3lackwdl 1995, p.39, 38.

4. Rirhard .Semte1t, Tlu' Fall oj'Puh!ic Man. On the Soda/ Pt_ydwlngy o/ Capitalim1, Nova York: Viutag<:~ Books, 197R, p.:39sR.

5. Sennett, Tl1e Fall rf f'ublic Man, p 264_ G. Liisa Uubitalo, ~Consumption in postmodemity': in Marina Bianchi

( org.), 1'he Active Crmmmer, L-ondres: Hom ledge, I 998, p.221. 7. Turo-Kimmo Lehtonen e Pa~i Mrienpaa, "Shopping in the l<;ast-Cen­

trc [\lair: i11 Pa,i Valk" Coliu Cmnpbell (orgR.), The Shopping&7Jcrience, Londres: Sage, 1997, p.161.

8. 1\tlichel Foucault, ~Of other spaces~ Diacritics 1, HISG, p.26. 9. H.ichard SertllC1(, The l/.J'N oj'Di.J·vrder: Pemmal !denfll!f and City Lifo,

Londres: Faber & Faber, 199fi, p .. )4-6. J 0. Ver Steveu Flusty, "Building pnranoia'; in Nan Elin (org.), Architec­

mre r!fFfar, Nova York: Princeton Architectural Press, 1907, p.48-!J. Tam­bE-rn Zigmunt Bauman, Globalization: The Human Con.Jequences., Cam­bri<lge: Polity Press, 1998, p.20-1, [Ed. bras.: G!ohaliza(·iio: w wnserpl[W.ciw;

humanas. Rio de ,Janeiro: .Jorge Zahar Editor, 199fl.] ll. Ver J\ilarc Aug,f:, Non"/ieux: Introduction a !'anthropolof?ie de fa .runno­

derniri, Paris: Senil, 1992. Tambf:m Georges Benko, "Tntroduclion: mo­dernity, postmodemity and social sciences~ in Georges Benko e Ulf

Nolos 251

Strohmayer (orgs.), Space and Social Theory: /nterpretingModerniFJ and Postmodemif!j, Oxford: Blackwell, 1997, p.23-4.

12 . .Jcrzy Kodatkiewicz e Monika Kostera, "Tiw anthropology of emp-·ty space'; Qualitative Sociolow;l, 1999, p.43, 48.

13. Scnnett, The Uses t!f'Disorder, p.l94. 14. Zukin, The Cu!tu:re qfCitie.>., p.263. 15. Sennett, The Fall of Publit· Man, p-.260ss. 16. Benko, "lutroduction'; p.2S. 17. V\~r Rob Shield~, "Spacial ~tres~ and resistance: social meaning~ of

~patialiution", in Benko e Strohmaycr (orgs.), SpacF a11d Social Tlwory,

p.l94. ' 1 R. Michel de CertC<lU, Tlie Pracar-e t!f L'rJerydaj! L_ife, lkrkdey: Umver­

sity of Calil"onna Pre%. 1984; Tim Ctosswdl, "lmagming the- nomad: m;lbilit y a 11d thc po~tntodrrn primitive: i 11 Space_ ami Snrial · llww:y,

j.dli2-3. ID. Ver Dauid Bell, Tl1e End o/ldeology, Camlwidg(', Muss.: 11:-tl'vanl

Univer~uy l'r('.C.S, l9HH, p-.230-S. 20. Daniel Cohen. Rid1wse du mrmde, pauvrc>tf dc>s nationt; Paris: Flam­

marion, 1997, p.84. 21. Nigc:J Thrift, ·'The risp of soft capitalism': ru!tura! J-alur.~ cthr 1997,

p.39-40. Os ens:tios de Thrift scrvcw para abrir o~ olhos, mas o conceito de "capi1:1lismo mole" utiliz<~do uo dmlo e em torlo o texto parcce um

nonw e<ptivocado - c uma caraclt>rizar,;iio que Ic_va ~o erro. ,NJ.o·l·1<l nada de '"mole" no cJpiwliHmo de J·ojiware da modennza(,·ao lcvt~. flmft obser­va qut' "ddiH:ar~ e '\url"aro' ~,:~tao catrC as nwHmrc~ mculf~ra~ para apro­xi ma 1• a natureza do l:apitalismo em :.ua ltova fOrllla. As metafora~ sao hem e~colhidas, pois sugcrcm £'alta cle pC'~O, lcveza e facilidack de movimeuto. Mas niio h<l nada de "mole" na dan<;;a ou no ~urfc di<irios. DanQ'!rinos c surfistas, e especialmcnte os que vivem na pista do saliio de bailc lotado ouna cost<~ batidn por altas Oltda~, precisam ser duros, c: niio moles. E s.iio duros- como poueos de sew; prcdccessore.•, capazcs de ticar p<mHlo~ ou mover-se em trilh:ls daramente nun·.acla~ e hem manlidct~, jamais prcci­saram ser. 0 capiwlismo siftware oiio e meuoo finnc c duro que sell aucestral hanlu;are. E: hquido n.iio quer dizcr mole. Basta p<:nsar no dilt'J­viu, numu immdac;iio ou na ruptura de tun dique-.

22. Ver G<:org Simmel, "A chapter in the philo~ophy of value~ in The Conflict in Modern Culture and Other Esmys, trad. K. Peter Etzkom, Nova York: Teachers COllege Press, 1968, p.S2-4.

2:~. Relatado em Eileen Applebaum e Rosemary Batt, The New Ameri­can Workplan:, Ithaca: Cornell Uuivcn,ity Presso 1993. Citndo de Richard

Page 130: Modernidade Líquida

252 Modernidode Uquido

Selmett, lite Corrmion of Characrer: Jlle PerJ·ona! Consequcne& o/ lffmf in tl1e New Capitalirm, Nova York: WW. Norton & Co., 1998, p.SO.

24. Sennett, The Corro;·ion ~f"Charader, p.61-2. 25. Anthony Flew, The Logic if Morta!iry. Oxford: BlackwelL 1987, p.3. 26. Ver Michael Thompson, Rubbish Theory: The Creation and Desrruc­

tion o/ Uz!ue, Oxford: Oxford University Press, 1979, especialmcntc p.ll3-9.

27 Leif Ll:'wiu, "Man, society. <llld the failure of politics~ Critical Rc­vhw, invcrno-primavcra 1998, p.lO. A pa~~agem critie.:tda e do preJ£tcio de Tullock a William C. Mitchell e Randy 'f Simmons, Be_yrmrl RJ!itic.r: MarA:eu, !#flare, and the Fallure rj"Bureautrocy, Bou1deJ~ Col .. Westview Press, 1994, p.xiii.

28. Ctty Debord, Comments on tl1e Soc1e{lj of the Spcctude, trad. Malcolm Imrie, Londrcs: Verso, 1990, p.l6, 1.1.

Capitulo 4 - Trobalho

1. No prcfJ.cio, tjlle escreve11 na condi~'i'io de Coorderwdor da Comis­sao para o Ano 2000, a seu The Year 2000, orp;s. Jknnanu Kah!t cAnt/tony J. Wiener. Aqui citado cle I. F. Clarke, Tlu:PalternifExpcctaJion, 1644-2001, Lonc\res: Jonathan Cape, 1979, p.314.

2. Pier1'e Bcmrdieu, Contrcfi'Ux: PruprM· pour J·eruir J Ia n~1:rrance wntre /'invasion neo-liberale, Paris: Libel~ 1998, p.97. [Eel. bra~: Contrqfogo.J". Td­timspam enfrentara invasdv neolibera!, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, I 998)

3. A bin Peyrd'itle, Du "miracle" en iconomie: /e~vns au College de France, Paris: Odilc Jacob, 19!18, p.90, 113.

4. Keneth Jowit1, N11w World Disordo; Berkeley: Uuivcrsny ofCahfomia Press, 1992, p.300.

5. Guy Debord, Comments on the Socie{lj t!f'the Spettade, trad. Malcolm 1mrie, Londrr-:~: Verso, 1990, p.9.

6. Peter Drucker, T/u; New Realities, Londres: Heinemann, 1989, p.IS, 10.

7. Ulrich Beck, Rish Socief!J: 10wards a New Morlemif!J, trad. M:~rk Ritter, Londres: Sage, 1992, p.8R.

8. Ver David Ruelle, Hasard et l"hao.s; Paris: Odile Jacob, 1991, p.90, 1 13. 9. Jacques Attali, Chemins de sagesse: traitrf du lahyrinthe., Paris: Fayard,

199[), p.l9, 60, 23.

10. Ver Paul Bairoch, M.!!lher et paradoxe.l' de l'histoire &:onomique, Paris: La DCcouverte, I 994.

Nolos

11. Daniel Cohen, Richesse du monde, pauvretis des nations., Paris: Flam­marion, 1998, p.31.

12. Ver Karl Polanyi, The Creal 7Tamfimnation, Boston: Beacon Press, 1957, espedalmente p.56-7 e cap. 6.

1.3. Richard Sennett, 77te Conwion oj'Ciwrader: Tke Personal Consequen­ces r:/ Worlr in the NeT.() Capitalism, Nova York: W.W Norton & Co., 1998, p.23.

14. Sennett, The Cnrrrm'on rifCharact(!r.. p.42-3. 15. Pierre Bourdicu (org.), La miR're du monde, Paris: Seuil, 1993,

p.6.)1, 628. lb. Sennett, The Corrosion rfCiwracter, p.24. 17. Robert Reich, The Jf/Orh ofNmions, Nova York: Vintage Books, I ~91. 18. Sennett., The Crmvsion '!/Character, p.SO, 82. 19. Atta/i, Gwmins de .1ageMe, p.79-HO, 109. 20. N 1gd 111ri/t, ''The ri~e of soft capitalism'; Cufturu/ Jlalucs., abr 1997,

p.52. 21. Pierre Bourdicu, Sur Ia television, Paris: Libcr, 1996, p.85. [Ed.

bras.: Sobre a rderJiriio, Rio de Janeiro: Jorge Zahar· Editor, 1997] 22. Bomdieu, Contre_--ftux, p.95-I 01. 23. Alain Peyrditte, La .roci!li dv conjiana: ir.rai sur lis or~<n·nes rlu d!v!­

/opmenl., Pari~: Odilt> ,Jacob, 1 99R, p.514-6 24. Bourdieu, Crmtre-fi'ux., p.IJ7. 25. Atti!li, Chemins de J"(tgc:ue, p.84.

Capitulo 5- Comunidade

1. Philippe Cohen, Protig~r ou diJparaitre: les elites faa d Ia montie deJ· insecudti..r, Paris: CaUimard, 1999, p.7-9.

2. £ric I Iobshawm, The Age o/ EXtremes, Lonclres: Michael Joseph, 1994, p.42R.

3. Enc Hob.,bawm, 'The cult of" identity politics': New Leji RevrerJ) 217, 1998, p.40.

4. Jock Young, Il!e Exclusive Socic{l;. LondrE's: Sage, 1999, p.J64. 5. Young, TheExclr.m"ve Societij, p.l65. 6. Lcszek Kolakow~ki, "Z lew~, z prawa'; MojeslUJzne poglady na wszyJ­

tA:o, Crac6via: Znak, 1999, p.321-7. 7. Ver Bemard Yack, "Can patrimism save us from nationalism'! Rejoin­

der to Virioli'; Critical Review 12/1-2, 1998, p.203-6. 8. Ver BernaTd Crick, ~~·Teditation on democracy, politics, and citizen­

ship'; manuscrito inedito.

Page 131: Modernidade Líquida

25< Modernidade Llquida

9. Alain Touraine, "Can we live together, equal and different?'; Euro­

pemt]ournal if Soria/llwor:y 2/1998, p.l77. 10. Richard Sennett, The Corrosion q(Character: The PerJonai ('omequen­

m if Work in the New Capita/inn, Londres: W.W. Norton, 1998, p.l38. II. Vcr Jean- Paul Besset c Pascale KrCmer, "Lc nouvel attrai! pour les

rCsidences 'sCcurisees"; Le Munde, 15.5.1999, p.lO. 12. Richard Sennett, "'llw mith of purif1cd commmuty': The Ufes o/

Divorder: Per.mrmf ldenti~y and City S~vlc, Londrcs: .Faber & Faber, 1996, p.36, 39.

13. Citado cle Anthony Giddens (org-), Emile Durldwim: Selected Wrir­ingJ; Cambridge: Cambridge Unjvt;;r~ity Press, 1972, p:94, 115.

14. Vcr Jim ~hcLau ghlin, ~Na1ion-huilding, soda[ J osure aud <lllti-tra­

vcller racism in Ireland'; Socir;loglj, Cev 1999, p.129-SI. ThmbCm para a d(a<;iio de Friedrich RabeL

IS. Vt~r Jean Clait~ "De Gttcrnica il Belgr£tdc': Le Mondc, 21.5.1999, p.16.

16 . New.rwedt, 21.6.199!.1.

17. Ver Chris Bit-d, '"Serbs flee Kosovo revenge attacks': Cuardian, 17.71999.

18. Ver Daniel Vernct, "Les Balkans face au rl~q11e d'unc tounuente ~ailS fin': Lf' Montie, 15.5.Hl99, p.18.

19. Ven1ct, ~Les Balk<uJ~ face au risque d'une tourmenle san~ lin': 20. Enc I Iobshawrn, ~The nation and globalization'; Co!Mtel!ation.J; mar

I998, p.4-5.

21 Re111! Giranl, La violenfeet k.mm!, Paris: Grassel, 1972. Aqui cit ado

na tmdu<;iio iuglesa de Patrick Gregory, Jliolenceand the Sacred, Baltimore: .Johns Hopkins University Pre~s, 1979, p.8, 12, 13.

22. Arne Juhan Vetlcsen, ~Genocide: a c:o~se for thl' responsibility of the bystander~ jul 1998 (manu~uito).

2:3. Arne .Juhan Vctlesen, "Yugoslavia, genocide and modernity'; jan

I Y99 ( manuscritu ).

Posfclcio

1 Este cu~aio foi publicado pela primeira vez em Theory, Culture and Sociei!J, 2000, l.

fNDICE REMISSIVO

adiamcnto da s<tlisfa<;iio, I80-3 Adomo, Theorlor W., 32, 36, 51-5 Agar, llerbert Sebastian, 26 aptidiio "I.J~nussaltde, 9I-4 Arendt, Hannab, 218 Arislbtdco, 65, 20:) Arnold, Manhew,26 Atkimon, Paul lO I Attali, Jacque:;, I 58-9, 176, 191, 238-

9 auscntes, scnhores, 20-I amoridade (na politira-vida), 76-7,

79-81

Bacon, Fram:is, 193 1-!airoc, Paul, 161 Bakhtin, Mikhail, 115 Barth, Fredc·rick, 202 13ateson, Gr-egory, 57, 225-6 Beattie, Melody, 77 Beck, lflriclt, 12, 31, 40, 42, 47., 155-

(i, 240-l, 245 HE>rk-Gemsheim, Elisabeth, 40 Bell, DanieL 133, I Sl Benjamin, Walter, 133, 152 Benko, George, ll9, 126-7 Bentham, Jeremy, 16, 36, 100-1 Berlin, lsaiah, 62, 199 Bi.mchi, Marina._ 75 BiE>rce, Ambrose, lSI Blair, Thny, 83 boasociedade, 74, 76, 83, I24, 191 2 Boorstin, Daniel]., 80

Bourdieu, Pi ciTe, 151, 156, 170, 1 78, 184, 1 R6, I90, 196, 220, 241-5

Brook-Rose, Cltristi.JK', 237 Bui'iuel Luis, 189 buJ"Ocracia, 33-4,70 Butlci; Samuel 78

Calvino, ltalo, 138 Camus, Albert, 96 ~ap1talismo pesado versus capllalis­

rno \eve, 33" 67"71, 7.5-6, 132-7, 146, lfiR, 191-2

Carlyle, 'I11omas, 10 C<l5toriadis, Comdius, 30, 242, 24.5 causa co mum, 44-5,228 Cerleau, Micbd de, 131 cidadania, 45-6, 49-50 civilidade, lll-3, 122 Clair, Jean, 2I7 Cohen, Daniel, 69, 135-6, 162 Cohen, Phil208 Cohen, Philippe, 196 compras, 86-8, 94-9, l 04-5 comunidadc postulada, 194-7 comunidade, 47, 108, 117-24 comunidades n&madcs venns comu-

nidadeo sedenthia~. 20, 2 14-S, 226-7

wmunismo, 69 comunitarismo, 41,46-7, I25-6, 194-

9,208 confian\;a. 152, 155, 189-90 conquista territorial, 132-4

255

Page 132: Modernidade Líquida

'" Modernidode Uquida

consumismo, 87-8, 94-5, 98-105, 181, 189

Conway, David, 26 corpo e comunidade, 208-11 Coser, Lewis, 168 Crick, Bernard, 203 Crosswell, 'fun, 131 Crozier, Michel 138, 142,173 cultura de cassino, 182

Davis, Mike, 110 Debord, Guy, 149, 154 Delacampagne, Christian, 236 Deleuze, Giles, 29, 97, 221 dependfulcia mUtua. 17, 20-1, 139-

40, 166-71 Derrida. Jacques, 235-6 desacomoda<,;ao, 41-7, 162, 194 Descartes, Rene, 131, 193 desejo versw querer, 88-91, 182-3 desencontro, Ill desengajamento, 18, 21-2, 50, 140-3,

148-89, 171,173-4,215 desregulamentar;;ilo, 11-2,37-8, 155-

6, 172 Diderot, Denis, 28-9 direitos humauos, 45 Drucker, Peter, 38, 76, 154 Durkheirn, Emile, 27, 78, 209-10

Elias, Norbert, 39-40, 220 Emerson, Ralph Waldo, 239 Engels, Friedrich, 9 espa1,;0 pUblico, 50. 62, 82-5 Estado de bem-estar, 167 Estado-ua¢o, 19-20, 199-202, 211-

3 estamentos versus classes, 13, 41-2 est6tica do consumo, 181-3 estrnngeiros, 124-6 exercito reserva de trabalho, 167 exilic, 237-8 exterritorialidade de poder, 18, 50,

171

Ferguson, Harvie, 89-90, 102 Feuchtwanger, Lion, 25 Flew, Anthony, 144 flexihilidade do trabalho, 173-5 fluidez dos lao;;os, 8-10, 14-5 Flusty, Steven, 118 fluxo de poder, 18-22, 50 Fonda, Jane, 78-80 Ford, Henry, 69, 100, 150-3, 165-6 fordismo, 33,67-75,99, 104-5, 153 Foucault, Michel, 16, 36, 100, 116 Franklin, Benjamin, 130 Freud, Sigmund, 24, 40 Fromm, Erich, 28

Gates, Bill, 144 Giddens, Anthony, 28, 31, 105, 220-

6 Girard, Rene, 221 Glassner, Barry, 95 Goytisolo, Juan, 234-6 Gramsci, Antonio, 67 Grande lrmtio, 34, 38, 63 Granowetter, Mark, 171 Grotius, Hugo, 214 Guattari, Felix. 29, 97, 221 guerra, 19-20,214-24

Habermas, Jiirgen, 82 Hazeldon, George, 107-9, 127 Hobbes, Thomas, 39, 200 Hobsbawm, Eric, 196-7,219 Hork.heimer, Max, 32, 36, 53 Huxley, Aldous, 64-5, 68, 82, 229

Ibn KhaldoWl, 19 identidade, 97-103, 105-6, 119-20,

123-6, 204, 207-8 Illich, Ivan, 94 imortalidade, 146-9 individualizac;iio, 38-48, 51, 63, 170,

195-6 indivlduo de jure e &facto. 47-51, 59-

63, 205, 229-30

lndice remissivo

Jelyazkova, Antonina. 218-9 Jowitt, Kenneth, 153

Kant, Immanuel, 129, 193 Kennedy, John Fitzgerald, 130 Kissinger, Helll'}'. 216-7 Kociatkiewicz, Jerzy, 120 Ko]he, Alexander, 55-8 Kostera, Monika, 120 Kolakowsi, Leszek, 199 Kristeva, Julia, 243-4 Kundera. Milan, 231

Lasch, Christopher, 99-100 Lenin, Vladimir, 69 Lessing, Ephraim, 36-7 Lfvi-Strauss, Claude, 118, 177,201 Lewin, Leif, 147-8 liberdade, 11-4,23-8,33,43,59-60,

62,102-3, 105,139-40, 162,195, 208

lideres ver.rusexemplos, 76-81,84-6 limpeza ftnica ver.rus Holocausto,

224-5 Lipietz, Alan, 67 Luhmann, Niklas, 232 Luttwak, Edward N., 215-6 Lyotard, Fran~is, 154

MacLaughlin, Jim, 19, 214 Maffesoli. Michel, 238 Man, Henri de, 67 Marcuse, Herbert, 23, 30 Marx, Karl, 9-10,66, 162-4 Mathiesen, Thomas, 100-l Melosik, Zbyszko, 74 Michaus, Yves, 106 Mills, John Stuart, 39 Mills, Wright C., 77 modele republicano, 204 moderniza~iio, 36-7,39-40,47-8 Murray, Charles. 27 Musset, Alfred de, 233-4

Nietzsche, Fhedrich, 37

O'Neill, John, 174 Offe, Claus, 11-2,41-2 Orwell, George, 34-6, 64-9, 82, 229

Pan6ptico, 16-9, 34, I 00-l Parenti, Michael, 87 Paterson, OrlandO: 197 patriotismo verm.f nacionalismo,

199-204 Peyrefitte, Alain, 152, 189 Platao, 54-5, 65 Polanyi, Karl, 140, 162 poHtica-vida, 7, 37-8, 49, 62-3, 77,

186-7 "precarizac;iio': 184-8 programas de entrevista, 81-2, 101 progresso, 150-2

racionalidade por refer€:ncia a valo-res, 71-3

Ratzel, Friedrich. 214 Reich, Robert, 174, 190 revolu<;io, 11-2 risco, 42,241-2 Ritzer, Geroge, 114, 115, 187 Roman, Joel, 46 Rosanvallon, Pierre, 244 rotiniza¢o, 134-5, 138-9, 164-5 Ruelle, David, 157 Rutherford, Jonathan, 12

Santo Agostinho, 201 Scheler, Max, 231 Schields, Rob, 131 Scbopenhauer, Arthur, 24 Schulze, Gerhard, 72 SchUtz, Alfred 42 Seabrook, Jeremy, 100, 103-4 segurant;;a, 196-9 Sennett, Richard, 12, 28, 47, Ill,

IIG-7, 123, 126, 143-4, 168-71, 175,205-6

Page 133: Modernidade Líquida

25B Modernidode llquido

Sidgwick, Henry, 26-7 Silvenuan, David, 101 Skacel, Jan, 231 Steiner, George, 182, 236 Strauss, Leo, 31, 44, 55-8 Szkudlarek, Tomasz, 74

Thylor, Frederic, 169 teoria critica, 30-1, 34-7, 50, 58-61 Thompson, E.P., 169 Thompson, Michae~ 145 Thrift, Nigel 66, 177, 190 Tocqueville, Alexis de. 9, 45, 164,243 Thnnies, Ferdinand, 196 totalitarismo, 33-4 Touraine., Alain, 29, 204 trabalho etioo, 181 Thllock, Gordon, 147 Thsa, John, 182

Uusitalo, Liisa, 114

Va16ry, Paul, 7 Vemet, Daniel. 217 Vetlesen, Arne Johan, 224 Viroli. Maurizio, 200

Walpole, Horace, 65 Weber, Max, 10, 34, 37, 71-2, 131,

143,180,194,220 Williliills, Raymond, I 94 Wittgenstein, Ludwig, 54, 229 Woody Allen, 46, 144

Yack, Bernard, 200 Young. Jock, 196-8

Zukin, Sharon, 110, 124

Page 134: Modernidade Líquida

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