Modernismo Latino Americano Através Da Pintura

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Resumo Abstract Palavras-Chave Keywords MODERNISMO LATINO-AMERICANO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ATRAVÉS DA PINTURA Maria Helena Rolim Capelato Depto. de História – FFLCH/USP O texto tem como objetivo refletir sobre as representações visuais expres- sas em algumas obras de artistas plásticos latino-americanos, vinculados aos movimentos modernistas dos anos 1920 que, através da pintura, pro- curaram traduzir suas preocupações com a busca de identidades nacio- nais ou regionais. Modernismo Latino-americano • Identidade Nacional • Pintura The text has as its goal to reflect about express visual representations in some of the Latin American plastic artists arts, linked to the modern movements from 1920, which through painting, looked into translating its concerns by the search of national on regional identity. Modernism • National Identity • Painting

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Estudo sobre a pintura modernista latino americana, século XX

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ResumoAbstractPalavras-ChaveKeywordsMODERNISMO LATINO-AMERICANO ECONSTRUO DE IDENTIDADESATRAVS DA PINTURA Maria Helena Rolim CapelatoDept o.deHi st r i a FFLCH/ USPO texto tem como objetivo refletir sobre as representaes visuais expres-sas em algumas obras de artistas plsticos latino-americanos, vinculadosaos movimentos modernistas dos anos 1920 que, atravs da pintura, pro-curaramtraduzirsuaspreocupaescomabuscadeidentidadesnacio-naisouregionais.ModernismoLatino-americanoIdentidadeNacional PinturaThe text has as its goal to reflect about express visual representations insomeoftheLatin Americanplasticartistsarts,linkedtothemodernmovementsfrom1920,whichthroughpainting,lookedintotranslatingits concerns by the search of national on regional identity.Modernism National Identity PaintingMa r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282252A maioria dos intelectuais e artistas, representantes do modernismo lati-no-americano dos anos 1920, viveu na Europa num momento de efervescnciacultural que se intensificou no ps Primeira Guerra. Eles incorporaram novasidias e tcnicas a partir do contato com representantes das vanguardas euro-pias de diferentes tendncias.Otemadaidentidadenacionalouregionalestimplcitonasobrasdegrande parte dos pintores modernistas da Amrica Latina desse perodo. Pre-tendo analisar algumas de suas obras que expressam a preocupao com abusca de razes. A historiografia contempornea tem registrado um forte interesse no quese refere compreenso de construes de identidades em diferentes pocas.Os autores que se debruam sobre o assunto reconhecem a dificuldade de apre-ender o que seja identidade, traar suas fronteiras, determinando os mecanis-mos de sua criao e contnua elaborao, partindo do pressuposto de que,assim como as culturas no so estanques, nem homogneas, as representa-es identitrias so, na sua essncia, hbridas, heterogneas e mutveis.Meu interesse neste estudo no se restringe caracterizao de identida-des nacionais. Se por um lado me refiro a situaes especficas no mbito dasnaes de origem dos pintores que explicam as suas preocupaes identitrias,por outro, me interesso, especialmente, pela atuao desses intermedirios cul-turais nos processos dinmicos de circulao internacional que lhes permitiuapropriar-se de idias e imagens produzidas em outros espaos, reelaborando-as de forma particular. Esse produto novo, por sua vez, se integra ao circuitointernacional onde reproduzido de diferentes maneiras por diferentes agen-tes. Arecepo de um imaginrio que representa uma identidade especficaextrapola, portanto, os quadros nacionais.A escolha da pintura como objeto desta anlise se deveu percepo daimportncia que certas obras tiveram no que se refere representao de identi-dades nacionais ou regionais nessa poca. Dawn Ades, autora de Arte na Am-rica Latina, dedica um captulo do livro ao Modernismo e a busca de razes,no qual expe e comenta a pintura de diversos artistas da regio. A autora afir-ma que as transformaes radicais por que passaram as artes visuais na Europadurante as primeiras dcadas do sculo XX entraram na Amrica Latina comoparte de uma vigorosa corrente de renovao, comeada nos anos 1920. Essesmovimentos europeus, no entanto, no entraram como estilos j prontos e indi-vidualizados, mas foram, em geral, adaptados segundo as idiossincrasias, o es-prito inovador de cada artista. Quase todos os que abraaram o modernismo oMa r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282253fizeram no estrangeiro. O fato de ser americano, porm, marcou a obra atmesmo daqueles que eram internacionalistas dos mais convictos1.A reflexo em torno de certas obras pictricas me obrigou a pensar narelao do historiador com esse tipo de documento. Alguns autores me ajuda-ram nesse percurso: Manuel Antonio Castieras Gonzlez no seu livro, Intro-duccin al mtodo iconogrfico, afirma que a anlise das imagens no maispatrimnio da Histria da arte e que os intercmbios interdisciplinares tm semostrado muito positivos porque permitem um dilogo produtivo entre a pala-vra e a imagem2.Aimagemrepresentapersonagens,natureza,objetosetambmmitos,acontecimentos histricos, alm de representaes da sociedade, da polticae da cultura em diferentes contextos.A iconografia refere-se ao conhecimento e descrio das imagens. A re-lao entre o texto/imagem e o contexto permite captar a variao dos signifi-cados das imagens.O mtodo de anlise desses documentos reporta-se perspectiva intrn-seca da obra, o que pressupe anlise do contedo, e perspectiva extrnseca,que leva em conta as circunstncias de tempo, lugar, biografia do artista, deter-minaes sociais, culturais, intelectuais da poca.A obra deste autor se revelou especialmente importante para a reflexo aser apresentada neste texto porque, alm apresentar instrumentos necessriospara a compreenso de termos e conceitos prprios da linguagem iconogrfica,Castiera Gonzles se preocupa em refletir sobre o papel da arte como meiode transmisso de formas e idias.Mas h diferentes maneiras de se olhar um quadro, como mostra SusanWoodford. Alguns ilustram uma histria com clareza, outros representam umaalegoria e h tambm os que expressam algo que no reconhecvel, apresen-tando uma estrutura abstrata3. O leitor poder notar que, nas pinturas a seremapresentadas mais frente, nos deparamos com imagens bem distintas: algu-masretratamclaramenteumacena,enquantooutrasapresentamestruturas1 ADES, Dawn. Arte na Amrica Latina. So Paulo: Cosac & Naify Edies, 1997, p. 135.2 CASTIEIRAS GONZLEZ, Manuel Antonio.Introduccin al mtodo iconogrfico.Barcelona: Ariel,1998,pp.9-10.3 WOODFORD, Susan. Como mirar um quadro.Barcelona: Gustavo Gilli, 1983.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282254mais complexas, o que no significa a impossibilidade de compreenso do re-lato contido na obra. Alberto Manguel comenta que as imagens encerram um texto a ser lidode muitas maneiras. Para o autor, as imagens, tanto quanto os relatos escritos,nos brindam com informaes necessrias a qualquer processo de pensamen-to. Ao citar Aristteles afirmando que a alma nunca pensa sem uma imagem,conclui que as imagens captadas pela vista tem significados variados: tantose constri uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras, como depalavras traduzidas em imagens, atravs das quais procuramos captar e com-preender nossa prpria existncia. As imagens que compem nosso mundoso smbolos, signos, mensagens e alegorias.A imagem de uma obra de arte existe entre percepes: entre o que o pin-tor imaginou e o que ps na tela; entre o que podemos nomear e o que os con-temporneos do pintor podiam nomear; entre o que recordamos e o que apren-demos, ou seja, as interpretaes so mltiplas. Cada obra de arte se desenvolveatravessando incontveis camadas de leituras e cada leitor tem que retirar essascamadas para chegar obra a partir de suas prprias condies4.A partir desta constatao de que uma obra de arte comporta mltiplasleituras, pretendo analisar o contedo das obras pictricas escolhidas, enten-dendo-as como documentos de cultura, produzidos nesse contexto histricoque se caracterizou por uma renovao artstica muito significativa.O movimento denominado genericamente de modernismo foi lideradopor um conjunto de artistas intelectuais que se dispuseram a propor inovaesem relao arte em vrios pases da Amrica Latina.Modernismo na Europa e na Amrica LatinaCabe inicialmente caracterizar os significados mais genricos dos movimen-tos de vanguarda europeus relacionados ao modernismo latino-americano. O modernismo europeu data de uma poca anterior ltimas dcadas dosculo XIX. Segundo alguns autores que se propuseram a definir o termo mo-dernismo, ele se refere arte da modernizao que est relacionada ao progres-so material, econmico, tecnolgico dessa poca.4 MANGUEL, Alberto. Leyendo imgenes. Uma histria privada del arte. Bogot: Edi-torial Norma, 2002, pp. 17-31.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282255O artista do final do sculo expressava uma tenso e uma incerteza frente amudanas que redefiniram as relaes sociais e produziram novas concepesde mundo. O perodo se caracterizou por uma mescla de euforia e desespero,esperana no futuro e niilismo, revolucionarismo e conservadorismo, louvor edesprezo tecnologia. Ou seja, as reaes frente s mudanas no eram as mes-mas e variavam do extremo otimismo ao extremo pessimismo nostlgico5. Tal processo deu ensejo a transformaes importantes no campo das ar-tes e a circulao de imagens produzidas pelo espetculo do progresso aproxi-mou artistas num plano internacional.Na literatura, o primeiro modernismo correspondeu ao momento em queos artistas procuraram superar o realismo/naturalismo, o romantismo e as repre-sentaes humanistas, incorporando um estilo, uma tcnica e uma forma ca-paz de expressar uma busca interior profunda.O primeiro movimento modernista latino-americano, ou mais especificamentehispano-americano, acompanhou as mudanas artsticas europias, fazendo de-las uma leitura particular. Como os europeus, os literatos desta regio, se posicio-naram de forma crtica em relao aos valores e cdigos do mundo burgus, maspropuseram renovaes literrias especficas: eles defenderam a criao de umalinguagem diferenciada da ex-Metrpole. A busca de uma identidade prpria assu-miu a lngua como trao fundamental de ruptura com os padres culturais daEspanha, que permaneceram mesmo aps a independncia das colnias.O movimento data da dcada de 1880, mas antes j existia uma procurade formas para expressar a experincia americana. Essa busca, no entanto, fi-cou restrita a algumas experincias isoladas, segundo Jean Franco6. A partirdessa poca, houve um renascimento literrio hispano-americano que resul-tou em transformaes na forma e no contedo, tanto da poesia como da pro-sa. A recusa da cultura espanhola aproximou os modernistas da Frana, oumelhor, de Paris, centro cultural do mundo ocidental.O segundo movimento modernista da Amrica Latina (a presena dos bra-sileiros, neste caso, foi significativa), diferentemente do anterior, contou coma participao de artistas plsticos que mantiveram contato com artistas euro-5 BRADBURY, Malcolm e MCFARLANE, James. Modernismo. Guia geral. So Paulo:Companhia das Letras, 1989.6 FRANCO, Jean. Cultura moderna en Amrica Latina. Mxico/Barcelona/Buenos Aires:EditorialGrijalbo,1985.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282256peus de diferentes nacionalidades: a pintura, sobretudo, assumiu importnciato relevante quanto a literatura. Caracterizou-se por uma busca de constru-o da identidade nacional que levou os artistas intelectuais ao encontro dastradies e razes nacionais.Refiro-me aos artistas intelectuais porque os modernistas dos anos 1920abriram um amplo debate de idias sobre a natureza da arte e sua relao coma nacionalidade. Alm da produo artstica, escreveram manifestos, criaramrevistas, tiveram ampla participao na grande imprensa e se preocuparam emrefletir sobre a sua sociedade, os impasses e possibilidades de mudana comnfase no campo cultural.Os movimentos modernistas latino-americanos dessa poca foram tribut-rios das experincias artsticas europias que, a partir da Primeira Guerra, intro-duziram elementos novos no campo das artes. O conflito mundial provocouuma crise de conscincia entre intelectuais e artistas europeus que sentiramnecessidade de expressar suas idias e sentimentos. Os movimentos denomina-dos vanguarda se ampliaram e se fizeram acompanhar de uma profuso deescritos sobre a natureza da arte, sua finalidade e funo social do artista.Esse debate tambm ocorreu na Amrica Latina. Segundo Jorge Schwartz,a crescente politizao da cultura latino-americana no final dos anos 1920,reintroduziu a discusso sobre o uso da palavra vanguarda, atravs da clssi-ca oposio entre arte pela arte e arte engajada, relacionada a uma contro-vrsia em torno do prprio estatuto da arte. Como mostra o autor, inicialmen-te restrito ao vocabulrio militar do sculo XIX, o termo vanguarda acabouadquirindo na Frana um sentido figurado na rea poltica.Mas ao mesmo tempo em que as faces anarquistas e comunistas se apro-priaram do termo como sinnimo de atitude partidria capaz de transformar asociedade, o surgimento dos ismos europeus deu grande margem experimen-tao artstica desvinculada, em maior ou menor grau, de pragmatismos soci-ais. E embora as vanguardas artsticas tivessem por denominador comum aoposio aos valores do passado e aos cnones artsticos estabelecidos pelaburguesia do sculo XIX e incio do XX, elas se distinguiam entre si, no ape-nas pelas diferenas formais e pelas regras de composio, mas por seu posi-cionamento frente s questes sociais7. Esta observao geral do autor intei-7SCHWARTZ,Jorge.Vanguardaslatino-americanas.Polmicas,manifestosetextoscrticos. So Paulo: Iluminuras/EDUSP/FAPESP, 1995, pp.34-5.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282257ramente vlida para caracterizar os pintores que se preocuparam com a buscade razes: eles tinham essa preocupao comum, mas diferiam entre si, tantonas posies assumidas frente ao tema da funo social da arte, como no sen-tido esttico. Alm disso, alguns deles reviram suas idias polticas ou artsti-cas ao longo de suas trajetrias.Os grupos tornavam-se conhecidos a partir de revistas, exposies, con-ferncias e manifestos. O debate acalorado que surgiu em torno do significa-do da arte pode ser recuperado nesses documentos que, em muitos casos, tra-duziam a natureza militante e polmica desses movimentos.Paulo Menezes se refere Era dos Manifestos ao analisar a profuso demovimentos, tendncias artsticas e disseminao de escritos sobre a arte na Eu-ropa.8 Os artistas plsticos integrantes das vanguardas tinham uma caractersticacomum: a crtica pintura naturalista e realista e a recusa imitao das frmulasherdadas do passado, sobretudo da herana grega e seu conceito de beleza quetoma o homem como modelo de perfeio. Alguns se insurgiram contra os velhostemas, contra os mtodos de expresso pictrica (inclusive a noo de perspecti-va) e os materiais utilizados pelos artistas. Franz Marc afirmou: As tradies socoisas belas, mas preciso apenas criar tradies, no viver delas. Kandisky eracontra a existncia de regras para a criao e Malevich defendeu a idia de que aarte no deveria servir ao Estado, nem religio, nem histria dos costumes,nem representao dos objetos. Deveria viver por si e para si. Naum Gabo, paido construtivismo, tambm se ops a esses usos da arte e ao seu carter descriti-vo. Mas nem todos os vanguardistas se preocuparam apenas com o aspecto for-mal da arte. O expressionismo alemo, o surrealismo francs, embora diferentesem vrios aspectos, tinham como denominador comum a preocupao social. Osexpressionistas reagiram contra os horrores da Primeira Guerra e o mesmo fize-ram os dadastas, ainda que de forma diversa; os surrealistas pregaram a trans-formao do homem atravs da libertao das formas do inconsciente e o futuris-mo reagiu fortemente contra a burguesia da poca e contra a arte passadista; ocubismo o acompanhou em vrios aspectos.9Os artistas latino-americanos se inspiraram em vrias dessas correntes,mas pretendo mostrar que mesmo os discpulos dos defensores da arte pela8 MENEZES, Paulo. A trama das imagens. So Paulo: EDUSP, 1997.9 SCHWARTZ, Jorge.Op. cit., p. 35.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282258arte, no se identificaram com essa perspectiva. A maioria deles revelou pre-ocupao com os problemas da sociedade a que pertenciam. Procuraram rom-per com o passado, mas a produo nova, geralmente, representou respostasa suas inquietaes sociais e/ou polticas.As propostas inovadoras se expressavam, particularmente, nos Manifes-tos que tinham um sentido panfletrio e apresentavam uma estrutura literriatelegrfica, contundente e sonora. Tendia mais a sacudir, provocar do que asuscitar reflexo. Como observa Jorge Schwartz, a retrica contida nesses do-cumentos agressiva e se volta para a promoo de uma nova esttica. Vriosforam produzidos por ocasio do lanamento de revistas e explicitavam o pro-jeto cultural ou poltico-cultural que orientaria a trajetria dessas publicaes10.O auge da produo de Manifestos, tanto na Europa como na AmricaLatina, se deu a partir dos anos 1920. Nesse perodo, houve uma efervescnciapoltica e social que se fez acompanhar de intensa produo artstica. No sa Primeira Guerra e suas conseqncias devastadoras, mas tambm a Revolu-o Russa e o incio dos movimentos de esquerda e de extrema direita provoca-ram uma reavaliao dos valores estabelecidos a partir de novos parmetros:a guerra revelou o absurdo da condio humana e a Europa passou a ser vistacomo o velho mundo em decadncia enquanto a imagem do novo mun-do, lugar do futuro se fortaleceu. Houve febril intercmbio de idias e ima-gens entre esses dois continentes.Na Amrica Latina, alguns movimentos tiveram maior repercusso do queoutros. Antes mesmo da ecloso da Primeira Guerra, o Manifesto Futurista deMarinetti (1909) tivera grande impacto na regio. Ali se encontrava a negaomais radical ao passado, antigo e recente, e a apologia do futuro, da tecnologiae do movimento. A exaltao do novo por parte dos futuristas correspondia imagem, que seria reforada posteriormente, da Amrica como lugar do futuro.Alguns autores consideram que a repercusso desse Manifesto na AmricaLatina pode ser tomada como o marco inicial do Movimento Modernista. JorgeSchwartz se refere a vrias interpretaes em torno dessa periodizao e mencio-na o fato de que outros autores entendem a Semana de Arte Moderna de 1922(So Paulo) como um divisor de guas na cultura e nas artes do continente lati-no-americano. O crtico uruguaio Angel Rama o definiu como um evento histri-co que marca o ingresso oficial das vanguardas na Amrica Latina.10 SCHWARTZ, Jorge. Op.cit.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282259 importante lembrar como aconteceu esse evento, no qual ocorreram ex-posies, recitais de poesia, concertos musicais e conferncias, que foram alvode crticas acerbadas na ocasio.O escritor e diplomata Graa Aranha, que morou na Europa entre 1900 e1921, foi o seu promotor. Ele convivera com a agitao intelectual e artsticado perodo e incorporara concepes estticas do esprito moderno.Quando voltou ao Brasil em 1921, trouxe a notcia do Congrs de lEspritmoderne que seria realizado, na Europa, por iniciativa dos dadastas e puristasem 1922. O evento no aconteceu, mas inspirou a organizao da Semana de ArteModerna paulista programada para comemorar o centenrio da independncia.Considerada marco do modernismo latino-americano, ela contribuiu parao desenvolvimento de pesquisas formais e de uma nova linguagem artsticaem relao a vrias artes. A partir dessa experincia, surgiram, em todos oscantos do Brasil, revistas culturais; algumas delas lanaram manifestos queexaltaram a integrao do pas no mundo da tcnica e da mecnica.Quanto ao final do Movimento, h um certo consenso em admitir que, noincio dos anos 1930, j se vislumbrava o ocaso das experincias inovadorase experimentais11.Modernismo latino-americano e a busca de razesLevando em conta a diversidade da produo cultural dessa poca, consi-dero mais apropriada a referncia a movimentos modernistas latino-america-nos, diversidade essa que se explica pelas diferenas conjunturais e histricas.Nos anos 1920, a Amrica Latina foi palco de conflitos sociais e polticosrelevantes, alguns de carter mais geral e outros mais especficos, como a Re-voluo Mexicana que teve grande impacto na Amrica. Nesse perodo deu-se, em vrios pases, a criao de partidos comunistas, ocorreram movimen-tos operrios e estudantis de grande porte, alm de movimentos nacionalistasde esquerda e de extrema direita. No plano intelectual, foram formuladas pro-postas de unidade latino-americana e houve significativo debate em torno daquesto indigenista. Todos esses acontecimentos tiveram, cada um sua manei-ra, repercusso importante. Foi nesse contexto que ocorreram redefinies no11 SCHWARTZ, Jorge. Op. cit.,p.31-2.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282260campo cultural com propostas de novos cdigos artsticos para interpretar omundo em mudana. importante lembrar, tambm, que nas primeiras dcadas do sculo XX, fo-ram organizadas comemoraes relacionadas aos centenrios de independncia emmuitos pases. Tais comemoraes deram ensejo a reflexes em torno dos proble-mas nacionais e busca de solues para eles, o que explica, em parte, as tentativasde reviso das identidades nacionais.A busca de uma identidade nacional fundamentada em novas bases coincidiucom o surgimento dos movimentos modernistas dos anos 1920. Literatos e artis-tas plsticos se inspiraram nas vanguardas europias da poca, mas a busca derazes nacionais implicou num processo de releitura da produo externa a partirdas questes que estavam postas nos diferentes pases da Amrica Latina.A tentativa de recuperao das origens foi, geralmente, orientada por umavalorizao da cultura popular e das tradies. Com base nesses elementos,os modernistas pretendiam criar um produto novo a partir de novas lingua-gens artsticas aprendidas na Europa. A circulao de idias e formas visuaisentreosartistaslatino-americanoseeuropeuspossibilitouaexistnciadedilogos atravs de imaginrios12.A maioria dos modernistas dos anos 1920 criticava a cpia ou a imitaode padres estrangeiros, comprometendo-se a produzir uma obra totalmenteautntica e original. No entanto, como observam alguns autores como AngelRama, o novo significava, acima de tudo, uma vontade de ser diferente dosantecessores e nada dever ao passado.O decantado produto novo era, na verdade, fruto de releituras do passadoe a originalidade nacional resultava, muitas vezes, de uma inspirao euro-pia. O contato dos modernistas latino-americanos com os europeus era in-tenso e ambos demonstraram interesse pelos mitos indgenas ou pelos ritosafro-antilhanos. Cabe lembrar que, desde o final do sculo XIX, artistas eu-12 A expresso foi usada recentemente por Jorge Schwartz , que realizou um trabalho deexposiopictricaacompanhadadeumtextoexplicativo,atravsdoqualestabelecerelaes entre o pintor modernista argentino Xul Solar - um dos que escolhi para anlise- e pintores brasileiros (Ismael Nri, particularmente, Vicente do Rego Monteiro, EmilianoDi Cavalcanti, Antonio Gomide, Lasar Segall). O trabalho resultou no Catlogo Xul Solar.Imaginriosemdilogo,queacompanhaoMdulointegrantedaexposio XulSolar.Vises e revelaes, apresentada na Pinacoteca do Estado de So Paulo 24 de setembroa 30 de dezembro de 2005.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282261ropeus lanaram os olhos para fora da velha Europa com o intuito de en-contrar novos estmulos para a criatividade.O processo de circulao entre o nacional e o internacional que caracte-rizou os movimentos modernistas latino-americanos foi permeado por umatenso existente entre o prestgio dos modelos externos e a procura de umaidentidade nacional. O cubano Alejo Carpentier, autor de O sculo das luzese O recurso do mtodo, dentre outros, afirmou: Temos que tomar nossas coi-sas, nossos homens e projet-los nos acontecimentos universais para que ocenrio americano deixe de ser uma coisa extica. O modernismo tentou porem prtica essa idia e por isto se pode dizer que, muitos deles foram, ao mesmotempo, nacionalistas e cosmopolitas.Foi com os representantes das vanguardas do velho mundo que artistasdonovomundodiscutiramecompartilharamidias,aperfeioaramsuastcnicas e inventaram novas formas de expresso.O novo foi um vocbulo muito utilizado na poca. Appolinaire em LEspritnouveau e ls potes, consagrou a ideologia do novo na esfera das artes, noque foi seguido por modernistas latino-americanos. Mas, como veremos mais frente, a nostalgia da sociedade que no existia mais era visvel em algunsescritores e artistas da Amrica Latina. Na regio, o culto ao novo e ao pre-sente, traduzidos na exaltao da mquina, da tecnologia e do progresso, con-vivia, no mesmo espao, com o culto nostlgico da sociedade que a moderni-zao destrura.A pintura como expresso de identidade nacional/regionalDentreospintoreslatino-americanosqueparticiparamdemovimentosmodernistas nos anos 1920, alguns revelaram ntida preocupao com a bus-ca de razes nacionais ou regionais (sul-americana ou latino-americana). Aescolha dos artistas plsticos referidos nesta anlise se orientou por esta ca-racterstica13.Os uruguaios Joaquim Torres-Garcia e Pedro Figari, o argentino Xul So-lar, a brasileira Tarsila do Amaral e o mexicano Diego Rivera so, a meu ver,os mais representativos dessa tendncia. Todos eles tiveram importncia sin-13 Para a construo deste tpico consultei ADES, Dawn. O modernismo e a busca derazes. InArte na Amrica Latina. So Paulo: Cosac & Naify, 1997.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282262gular no desenvolvimento das artes plsticas, no s em seus pases de ori-gem; alm disso, suas obras foram reconhecidas externamente. Participaramde exposies internacionais nos principais centros de cultura da poca, repre-sentando a arte latino-americana.A atuao desses pintores junto aos movimentos modernistas se deu dediversas formas: algumas obras tinham como finalidade primeira ilustrar ca-pas ou pginas de livros de literatos de destaque; outras integravam, junta-mente com palavras, a composio de cartazes de exposies ou de Manifes-tos que definiam a trajetria de certos grupos. Dentre as inmeras revistaseditadas nesse perodo, vrias delas foram ilustradas com reprodues de pin-turas de artistas modernistas. Jorge Luis Borges, por exemplo, teve vrios deseus textos ilustrados pelo pintorXul Solar.Inicioaapresentaodaspinturas com uma obra que con-sidero extremamente significati-vanoquesereferebuscadeuma identidade regional.OpintoruruguaioJoaquimTorres-Garcia,emumadesuasobras intitulada O norte o sul,virou o mapa da Amrica do Sul deponta cabea e com relao a essaimagem, afirmou: Ns temos idiada nossa verdadeira posio, nosvemos, no como o resto do mun-do gostaria de nos ver (Fig.1).A obra expressa, no apenaso desejo de definir uma identida-de prpria, rompendo com a tra-dicional dependncia do sul emrelao ao norte, mas tambm odilema de muitos artistas latino-americanosrelacionadosse-guintequesto:comoproduziruma arte no colonizada.Figura 1Joaqun Torres Garca. O Norte o Sul, espliodo artista, Nova Iorque.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282263 importante levar em conta que o artista mudou-se para a Espanha coma famlia quando tinha 17 anos, circulou pela Europa e Estados Unidos, e svoltou para o Uruguai em 1934, quando tinha 60 anos. Pertenceu ao movi-mento construtivista, cujo fundador foi o russo Naum Gabo que se opunha aqualquer aspecto descritivo da pintura e sua relao com outros aspectos davida alm da arte.Em 1935, Torres-Garcia afirmou que o tempo do colonialismo e das im-portaes terminara no que dizia respeito cultura. Tinha f no internacio-nalismo, mas sua obra revela um forte sentido do nacional e suas relaes coma Amrica Latina. Fez trabalhos inspirados nas civilizaes pr-colombianas.Construiu um monumento csmico, provavelmente inspirado na teoriada raa csmica formulada pelo intelectual mexicano Jos Vasconcelos quepregavaaintegraodasraasnumaescalaplanetria,movimentoessejiniciado na Amrica pr-colombiana, segundo o autor. A obra de Torres-Garciase localiza num parque de Montevideo, denominado Rod.Assim como o pintor uruguaio, artistas ligados ao movimento modernistabrasileiro tiveram grande contato com representantes das vanguardas euro-pias. Este foi o caso, por exemplo, de Tarsila do Amaral, uma das mais expres-sivas representantes do modernismo no Brasil dos anos 1920. A artista noparticipou da Semana de Arte Moderna de 1922 porque estava na Europa,mas quando voltou ao Brasil, junto com o literato Oswald de Andrade, inte-grou-se no movimento modernista. O casal teve uma participao decisiva narenovao cultural brasileira.O grande evento, j mencionado anteriormente, ocorreu em So Paulo esignificou a primeira manifestao pblica das pretenses vanguardistas. Mascabe aqui abrir um breve parntese para explicar porque ele aconteceu na cida-de paulistana.O significativo desenvolvimento cafeeiro ocorrido em So Paulo, entre ofinaldosculoXIXeasprimeirasdcadasdoXXincentivouoprogressomaterial do estado que, indiretamente favoreceu o desenvolvimento industri-al e urbanizao acelerada. Nesse contexto, a cidade de So Paulo se proje-tou como grande centro urbano, no qual conviviam ex-escravos e imigrantesestrangeiros mal assimilados s novas condies da vida urbana e fabril. Oconflitourbanonotardouasemanifestarnesseespaodeidentidadesmutantes. Os polticos responsveis pela chamada velha Repblica, segun-do seus crticos, no conseguiam solucionar os problemas polticos e sociais,Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282264e eram impermeveis aos sinais dos novos tempos, estando mal integrados nocenrio da modernizao contempornea.No s So Paulo, mas o pas se modernizava nessa poca. As mudanasprovocaram novas anlises sobre o pas. Os ntrpretes do Brasil passarama fazer uma reviso em relao aos diagnsticos sobre a realidade, at ento,muito marcada pelas teses raciais.Cabe lembrar que, a partir do final do sculo XIX e incio do sculo XX, in-meros autores, literatos inclusive, haviam construdo anlises sobre os males doBrasil, imputando o atraso do pas presena de raas inferiores (ndios, negrose mestios) e, por esse motivo, defendiam a vinda de imigrantes europeus para bran-quear a sociedade. Mas as mudanas sociais ocorridas no pas e a contestao dasteses racistas e sua desmistificao como cincia, produzida pela Antropologia eoutras reas do conhecimento, no plano internacional, contriburam para que hou-vesse reinterpretaes sobre os problemas brasileiros a partir dos anos 1920.A preocupao predominante dos que se propuseram, a partir de diferentesticas, a repensar a realidade brasileira, passou a ser a falta de integrao nacional(territorial, racial, social e cultural). Foi nesse contexto que a mestiagem e seuscomponentes ndios e negros comearam a ser valorizados; o tipo nacio-nal at ento depreciado frente ao estrangeiro, tornou-se alvo de interesse esua incorporao sociedade, vinculada proposta de construo de uma novaforma de identidade nacional, se insere nos debates sobre a nacionalidade.Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral participaram deles.Ambos aderiram ao movimento modernista, mas estavam menos preocu-pados com a renovao da arte brasileira e sua insero no contexto interna-cional, embora fossem a favor dela, e mais voltados para a tentativa de mu-dana de conscincia por parte dos intelectuais e artistas, no sentido de produziruma nova cultura, expresso de uma nova forma de identidade nacional. Osdois manifestos - Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e Manifesto Antro-pfago (1928) - de autoria de Oswald de Andrade revelam a grande preocu-pao com a releitura do passado e com a reviso da cultura brasileira.O primeiro foi publicado no jornal Correio da Manh. Oswald exaltava aformao tnica do pas composta por ndios, negros e brancos. Segundo JorgeSchwartz, ele percebera, em Paris, que aquilo que os cubistas europeus procu-ravam na frica e na Polinsia como suporte esttico-extico da arte moder-na, sempre fez parte de seu cotidiano nos trpicos: o ndio e o negro. Assim,descobriu o primitivo em sua prpria terra, mas, alm disso, valorizou a natu-reza, a histria e elementos da cultura popular como o carnaval, a cozinha,Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282265figura 2mesclando referncias a smbolos da modernizao como a fotografia, a tcni-ca, a mquina. Condenou a cpia, a imitao, privilegiando a criatividade.No segundo, afirma Jorge Schwartz, a linguagem metafrica, humorsticae o uso de aforismos caracterizam o estilo do documento. Prope a descida antro-pofgica como um ato de conscincia, sendo que o dilema entre o nacional e ocosmopolitismo se resolveria pelo contato com as revolucionrias tcnicas davanguarda europia e a percepo da necessidade de reafirmar valores nacionaisem linguagem moderna. Oswald transforma o bom selvagem de Rousseau nomau selvagem devorador do europeu e capaz de assimilar o outro para in-verter a tradicional relao colonizador/colonizado. A antropofagia conside-rada um ato religioso atravs do qual o ndio incorpora atributos do inimigo,eliminando as diferenas. O Manifesto contm uma releitura da Histria do Brasilque comea com a deglutio do bispo Pero Fernandes Sardinha pelos ndiosCaets de Alagoas. A descoberta do Brasil, segundo o texto, ps fim a uma so-ciedade comunista onde prevalecia o direito natural. O autor props a Revo-luo Caraba, aps a francesa, a russa e a surrealista, como a ltima das uto-pias. Esta seria a resposta ao colonizador europeu; o aforismo tupi or not tupicriado por ele como pardia da clebre dvida hamletiana, expressa a nfasena criao de uma nova forma de identidade nacional.14O Manifesto Antropfago, que resume as contradies brasileiras entre omoderno e o primitivo, a indstria ea natureza, a Europa e a Amrica, foipublicadonoprimeironmerodaRevista de Antropofagia, e ilustradocomumdesenhodeTarsiladoAmaral, onde se via uma figura nuade ps incrivelmente largos, algunscactos e o Sol idntico motivo des-sa pintura, intitulada Abapuru(queemtupi-guaranisignificahomemaba, que come puru), seria repro-duzidanoanoseguinte,noquadroAntropofagia (Fig.2).14 SCHWARTZ, Jorge. Op. cit. pp. 135-147.Tarsila do Amaral. Antropofagia (1929), leosobretela,1,26x1,42m.FundaoJosePaulina Nemirovsky.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282266Humaoutraobradaartista, Anegra (Fig.3), realizada em 1923, queprenuncia o estilo de Abapuru. Tarsilarealizouestetrabalhoquandoaindaestava vivendo na Europa e a pinturasurgiu como ilustrao da capa de umlivro de poemas de Blaise Cendras; opoeta foi apresentado a ela por Lger,pintor que a inspirou em sua produ-o artstica, bem distinta da que de-senvolveu nestes dois trabalhos men-cionados. 15Oswald e Tarsila voltaram ao Bra-silem1924enessaocasioBlaiseCendras visitou o pas. Juntos fizeramuma excurso pelas cidades histricasmineiras e partes do nordeste. Nessaviagem, Tarsila redescobriu o passa-do colonial brasileiro e a cultura popular cultivada em pequenas cidades evilarejos. Tal experincia deixou marcas em algumas de suas pinturas.Posteriormente Tarsila e Oswald de Andrade se tornaram simpatizantesda esquerda e suas concepes sobre a sociedade e o papel da arte se modifica-ram significativamente; em 1931, ela visitou Moscou e desde ento suas pintu-ras incorporaram elementos do realismo socialista.Mas na poca anterior, ambos fizeram parte dos modernistas brasileiros,um grupo de elite que circulava pela Europa. Um crtico se referiu volta deTarsila ao Brasil, com seus vestidos do estilista Poiret e disposta a ensinar opovo a ser brasileiro.16 importante assinalar que estes modernistas brasileiros buscaram cons-truir a identidade nacional em novas bases, mas sua dvida em relao s van-guardas europias inegvel. A circulao deles entre os dois mundos contri-buiu para uma produo cultural inovadora que no pode ser considerada, nem15 As duas obras foram comentadas no texto de ADES, Dawn.Op.cit.,pp.133-4.16 ADES, Dawn. Op.cit., p. 134.figura 3Tarsila do Amaral. A negra (1923), leo sobre tela,1,00x0,80m. Museu de Arte Contempornea daUniversidade de So Paulo.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282267genuinamente nacional, nem imitao do estrangeiro. O produto novo frutode um contexto especfico que permitiu esse intercmbio entre produtores cul-turais brasileiros e europeus.Na Argentina dos anos 1920, os modernistas tambm tiveram papel reno-vador. Circularam tambm pela Europa, mas quando retornaram ao pas, sedepararam com outras questes.Os argentinos viviam, nesse perodo, uma crise de identidade produzidapela presena massiva de imigrantes europeus que, desde o final do sculoXIX, mudou a fisionomia da sociedade Argentina e transformou a capital nacidade mais importante da Amrica do Sul.Buenos Aires, segundo Beatriz Sarlo era uma cidade cosmopolita do pontode vista de sua populao. O que escandalizava ou aterrorizava muitos dosnacionalistas do centenrio (da independncia), influa na viso dos intelec-tuais dos anos 1920. Na verdade, o processo havia comeado muito antes, massua magnitude e profundidade continuavam impressionando os portenhos nesseperodo. A produo cultural traduzia, em termos ideolgicos e morais, as rea-es frente a uma populao diferenciada segundo lnguas e origens, unida experincia de um crescimento material rpido. J em 1890 havia se quebra-do a imagem homognea da cidade, mas, como afirma a autora, trinta anosso poucos para assimilar, na dimenso da subjetividade, as radicais diferen-as introduzidas pelo crescimento urbano, a imigrao e insero dos filhosde imigrantes na sociedade. Uma cidade que duplicou, em pouco menos deum quarto de sculo, a sua populao sofreu mudanas que seu habitantes,antigos e novos, tiveram que processar.17Nosanos1920,graasaumcrescimentoeducacionalconsidervel,acultura se democratizou em termos de distribuio e consumo. Nesse contex-to de modernizao urbana houve grande ampliao do pblico consumidorde cultura. A agitao cultural foi impressionante: ao longo da dcada foramcriadas 80 revistas de cultura.Os movimentos de vanguarda se impuseram e se manifestaram atravs dejornais e revistas e dentre outras se destacou a Martn Fierro. Avanguardaque circulou em torno dela tinha experincia europia, que seus representan-17 SARLO, Beatriz. Una modernidad perifrica. Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires:Ediciones Nueva Visin, 1988, pp. 17-9.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282268tes procuraram adaptar realidade do pas. O Manifesto, publicado para apre-sentao da revista, expressou o desejo de criar um ambiente artstico a partirde uma ao depuradora em relao ao passado (parnasianismo, simbolismo,etc.) e traduzir uma nova sensibilidade relacionada a uma nova compreensoda arte. O uso de vocbulos referentes a avanos tecnolgicos era expressivo.Os martinfierristas, apesar da exaltao do mundo moderno, admitiam ogacho como expresso da nacionalidade e valorizavam a cultura popular. Nopor acaso, o ttulo da revista se remete diretamente obra Martn Fierro de JosHernandes, primeiro autor a traduzir, atravs da literatura, esse universo.Segundo Jean Franco, a nica obra latino-americana que chegou a cumpriresse papel renovador, antes do movimento modernista dos anos 1920, foi MartnFierro, publicada em 1872. Seu autor criticou os governos europeizantes deBuenos Aires que tentaram destruir o modo tradicional de vida do gacho, cerneda nacionalidade e encarnao das qualidades da vida nos pampas. Conseguiuunir temas nacionais e universais e, valendo-se de imagens populares, canes,provrbios, poemas, procurou trabalhar com elementos da tradio argentinasem se basear em modelos europeus. Os escritores e o pblico culto da pocadesdenharam esse produto nativo que, posteriormente, foi valorizado pelosmodernistas. Jorge Luis Borges considerou que este livro talvez tenha sido omais importante da literatura Argentina em cento e cinqenta anos18. Participaram da revista Martin Fierro intelectuais e artistas com preocu-paes muito dspares como Jorge Luis Borges, Manuel Lugones, LeopoldoMarechal. Os pintores Pedro Figari e Xul Solar se integraram nesse grupo demodernistas argentinos.Pedro Figari era Uruguaio. Exerceu, nesse pas, a carreira de advogado edefensor pblico, foi eleito deputado em 1896 e indicado para vice-presiden-te. Fundou o jornal El Dirio e publicou artigos sobre educao, direito e est-tica. Foi diretor da Escola de Belas Artes e Ofcios onde realizou profundareforma sobre o ensino das artes, mas s comeou a pintar com idade j avan-ada. Sua pintura foi rejeitada em seu pas, fato que explica sua mudana paraBuenos Aires em 1921. Foi na Argentina que abraou definitivamente a car-reira de pintor; ai se integrou s vanguardas artsticas.18FRANCO,JeanFranco.CulturamodernaenAmricaLatina.Mxico/Barcelona/Buenos Aires: Editorial Grijalbo, 1985, pp. 22-3.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282269Xul Solar (Oscar Agustn Alejandro Schulz Solari) era filho de imigran-tes talo-germnicos; aos dezesseis anos partiu a bordo de um navio carguei-rorumoEuropaondeconheceuaItlia, Alemanha,InglaterraeFrana.Regressou Argentina em 1924, quando se associou ao grupo martinfierrista.O fato de pertencerem ao grupo martinfierrista o elo de ligao entreeles; no mais, eram muito diferentes, apesar de demonstrarem preocupaocom a busca de razes nacionais ou regionais. Suas obras, como veremos aseguir, no revelam, do ponto de vista da forma ou do contedo, qualquer tra-o comum e, alm disso, suas trajetrias de vida foram bastante distintas.Quando Figari se radicou em Buenos Aires e Xul Solar voltou para o pas,estava se firmando o movimento vanguardista argentino que tinha suas ori-gens nas correntes literrias e plsticas europias, mas expressava uma von-tade clara de independncia intelectual e artstica em relao ao estrangeiro.Figari tinha afinidade com os modernistas no que se referia preocupaoidentitria: em sua busca de razes,representou o gacho, concebido comoessncia da identidade rioplatense.Embora ligado s vanguardas, idealizou o gacho procurando imortaliz-lo como um heri que merecia um monumento. Considerava esse nativo daAmrica como um filtro de resistncia incorporao ao mundo moderno ereao europeizao desenfreada.Sua pintura apresentava um tom nostlgico que contradizia a proposta dosmodernistas de ruptura com o passado. Sua produo artstica o aproximava doescritor Ricardo Guiraldes, com quem estabeleceu contato ao chegar a Buenos Aires.O autor do romance e best-seller, Don Segundo Sombra (1926), mitificava, s lti-mas conseqncias, a figura do gacho e a vida no campo; alguns autores conside-ram a obra de Figari como o melhor exemplo pictrico desse texto literrio. Jorge Luis Borges afirmou que as figuras de Figari estavam fora do espa-o e do tempo. As lembranas de sua juventude retratadas em seus quadrosreafirmavam a histria do homem rioplatense anterior avalanche imigratria.As imagens dos cavalos nos pampas em torno do Umbu, rvore enorme eintil, mas que oferece sombra fresca ao cavalo e ao gacho cavaleiro, deno-tam a resistncia s mudanas sociais na obra de Figari (Fig.4). A nostalgia dopassado tambm se faz representar nas pinturas que retratam os costumes ru-rais e rastros da cultura africana trazidas pelos escravos; nelas aparecem casasantigas com ptios coloniais, festas de negros onde aparecem blocos de carna-val e rituais religiosos como o candombl, danas populares acompanhadas porMa r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282270guitarras, tambores, reunies sociais, funerais marcados por um ritual tradicio-nal, cenas que contrastam com as reunies frias e pomposas do criollo bran-co, com candelabros e retratos pendurados nas paredes (Figs. 5,6,7).figura 4figura 5Pedro Figari.Cavalos nospampas,(s/d),leosobremadeira, 62x82cm. Coleoparticular, Buenos Aires.Pedro Figari. Dulce demembrillo,(s/d),leosobrepapelo,60x81cm.MuseuNa-cional de Artes Plsti-cas, Montevidu.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282271figura 6figura 7Pedro Figari. Dana de crioulo, (c.1925), leo sobre papelo, 52,1x81,3cm. TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doado pelo sr. e sra. Robert Woods Bliss.Pedro Figari. Nostalgias africanas, (s/d), leo sobre papelo,80x60cm. Museu Municipal Juan Manuel Blanes, Montevidu.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282272As suas pinturas expressam o sentido de um mundo desaparecido ou emviasdedesaparecimento.Opintorpreferiaanaturezacivilizaoenomostrava interesse pelas formas mais radicais da arte. Usava figuras decora-tivas, execradas pelos modernistas, colocando-as onde de fato existiam. Em1930, publicou em Paris, Histria Kiria, onde apresentava um mundo utpicocomo crtica e stira da sociedade contempornea. O povo kiria desconheciadistines de raa, no tinha supersties, no fazia a guerra, no tinha o sen-tido trgico da vida e ria da idia de uma arte pela arte.19Figari, como disse, fazia parte do movimento martinfierrista e colabora-va na sua revista que, em 1925, promoveu uma exposio de arte moderna daqualeleparticipoujuntocomoutrosartistasargentinoscomoPetorutti,Curattela, Oliverio Girondo, Noah Borges, Xul Solar.Entre 1925 e 1934 viveu na Europa e fez grande sucesso em Paris. Suaobra foi reconhecida por Paul Valry, Jules Roman, Jean Cassou, James Joyce,Corbousier, Edouard Vuillard, Pierre Bonnard, Picasso, Lger, dentre outros.Nessa ocasio (1926), o pintor uruguaio Rafael Barradas enviou uma carta aseu conterrneo, Joaquim Torres-Garcia, onde anunciava a presena de Figari nocontinente, com o seguinte comentrio: Segue um caminho diferente do nosso,mas est indo muito bem (...). J somos trs pintores uruguaios na Europa.O autor Jorge Castillo comenta que o relacionamento de Torres- Garciacom Figari era conturbado, mas juntos fizeram, em 1930, uma exposio emParis, da qual participaram outros artistas latino-americanos como Jos Cle-mente Orozco, Diego Rivera, Rego Monteiro.Figari tinha uma viso pessimista da Europa, tida como decadente, e de-fendia a Amrica, considerada, utopicamente, como reduto de tudo a ser pre-servado. Era admirador da modernidade, mas nunca pintou uma locomotiva,nem um carro, nem uma fbrica.20Sua obra pictrica consolidou uma iconografia regional americana queexpressa, de forma especfica, um desejo de preservao das razes, ao invsda construo de uma nova identidade a ser elaborada a partir dos valores dopresente como pretendiam os modernistas em geral.O pintor argentino, Xul Solar, tambm ligado ao modernismo e integran-te do movimento martinfierrista, caracterizou-se por uma atitude frente ao19 ADES, Dawn. Op. cit.,pp.137-41.20 CASTILLO, Jorge. A formao de um estilo.In:www.mnav.gub.uy/figari.htm.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282273mundo e a arte muito particular. Era essencialmente mstico e acreditava nohorscopo. Incorporou ao seu universo interior a meditao, a cabala, o bu-dismo, o I Ching, alm de mitos pr-colombianos e latino-americanos.Em sua arte explorou, acima de tudo, temas msticos. Usava smbolos religi-osos de diferentes culturas como a judaico-crist, a chinesa, a hindu. A serpente,figura representativa em quase todas as religies e filosofias, se impe de formaobsessiva na sua obra. Nos seus quadros figuram, tambm, a estrela de Davi, cruzcrist, mandalas, cruz gamada, cabala, alquimia, arcanos do tar, alm de signosdo zodaco. Figuras humanas, misturadas com letras ou palavras de origem pr-colombianas ou criadas por ele, aparecem junto com smbolos laicos e msticos,misturados com representaes do universo e serpentes (Figs. 8 e 9). No pertenceu a nenhuma vanguarda especfica, mas incorporou aspec-to de vrias delas ao produzir uma obra considerada original. Os comentadoresfigura 8figura 9Xul Solar, Tlaloc (1923), aquarela sobre pa-pel, 26x32cm. Coleo particular.Xul Solar, Dana de Santos (1925), aqua-rela sobre papelo, 25x31cm. ColeoMarion e Jorge Helft, Buenos Aires.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 28227421SARLO,BeatrizSarlo.Op.cit.,pp.14-5.da sua produo apontam a relao delas com as pinturas de Klee e Kandinskyque tambm eram msticos.Regressou Argentina em 1924 e se associou ao grupo martinfierrista;na revista do grupo, sua obra aparecia com destaque. Esse artista, que ilus-trou livros de Borges, era considerado pelo literato como expresso do ho-mem cosmopolita, criador inigualvel, que inventava sem cessar e no imita-vajamais.Criouduaslnguas:apanlngua,eoneocriolloeinventou12religies correspondentes aos 12 signos do zodaco.Sua obra no permite uma identificao clara com as questes referentes argentinidade. No entanto, Beatriz Sarlo afirma que sempre viu seus qua-dros como um quebra-cabea de Buenos Aires, pois, mais do que sua inten-o esotrica ou sua liberdade esttica, a impressionaram sua obsessividadesemitica, sua paixo hierrquica e geometrizante, a exterioridade de seu sim-bolismo. Buenos Aires, completa a autora, nos anos 1920-30 era o enclaveurbano dessas fantasias astrais e em suas ruas tambm se falava, desde o lti-moterodosculoXIX,uma panlnguadoportoimigratrio.OqueXulmescla em seus quadros tambm se mescla na cultura dos intelectuais: moder-nidade europia e rioplatense, acelerao e angstia, tradicionalismo e espritorenovador, criolismo e vanguarda. Buenos Aires era o grande cenrio latino-americano de uma cultura de mescla, afirma a autora.21Alguns comentaristas enfatizam o esprito cosmopolita do autor expresso, porexemplo, em uma de suas pinturas onde se destacam bandeiras de diferentes na-cionalidades, incluindo as da Argentina, Brasil, Colmbia, Mxico, Paraguai jun-to com as do Reino Unido, Frana,Estados Unidos e outras mais. Estessmbolos nacionais se mesclam comoutros smbolos da cultura universal:serpente, sol, estrelas, cometa, seta,cruz e at esboos de figuras huma-nas(Fig.10).Masapreocupaocom a identidade regional sul-ame-ricana foi identificada em outroscampos de sua atuao.figura 10Xul Solar. Drago. Aquarela sobre papel, 25,5x32cm.Museu Xul Solar.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282275Jorge Schwartz, no texto Xul Brasil. Imaginrios em Dilogo, j mencio-nado anteriormente, afirma que Da assombrosa gerao latino-americana dasvanguardas histricas dos anos 1920, Xul Solar foi o nico que incorporou oBrasil em seu imaginrio de forma sistemtica. Suas pinturas, suas linguagense sua biblioteca constituram janelas abertas para a terra brasilis. Cinco dca-das de intensa produo revelam um olhar, uma reflexo intelectual e msticavoltada para o Brasil, assim como para o continente sul-americano. O autor se refere a sua criao doneocriollo como uma lngua artificial,composta basicamente do espanhol e do portugus que deveria servir ao dilo-go entre as naes latino-americanas. Refere-se, tambm, ao fato de que em umade suas viagens Alemanha, trouxe consigo o livro Brasilien, escrito pelo ale-mo Adolf Bieler. Na sua biblioteca, composta por 3.500 obras, h registros de58 ttulos brasileiros, referentes a temas diversos como religies afro-brasilei-ras, poltica e Histria brasileiras, Antropologia, Geografia, Lingstica, almde revistas de poca como O Cruzeiro, narrativas de viagem e inmeros recor-tes de jornal referentes ao Brasil. Consta ainda de sua biblioteca o livro de poe-sia dos membros do grupo da revista Verde de Cataguases (1928), com dedica-tria de Rosrio Fusco, o romance A estrela do absinto (1927) de Oswald deAndrade, dois exemplares do primeiro nmero da Revista de Antropofagia (maiode 1928) e uma carta assinada pelo diretor da revista Antonio de AlcntaraMachado convidando-o a se integrar ao grupo. Curiosamente, encontra-se,tambm, no acervo dessa Biblioteca, uma carta da Secretaria Geral da Educa-o e Cultura do Distrito Federal, informando a data e o horrio de nascimentode Heitor Villa-Lobos. Jorge Schwartz comenta que a carta poderia ser umaresposta a um pedido de Xul para fazer o horscopo do renomado msico bra-sileiro. O pintor revelou interesse, tambm, pelos integralistas Plnio Salgado eGustavo Barroso; essa ateno talvez se explique pelo fato de que Plnio Salga-do publicara, no primeiro nmero da Revista de Antropofagia, um extenso en-saio sobre A lngua tupi, advogando o retorno lngua indgena como idiomanacional. A pea mais importante de sua biblioteca, certamente Macunama,com dedicatria de Mrio de Andrade, afirma Schwartz22. Como se pode notar,Xul Solar tinha grande interesse pelo movimento modernista brasileiro.Os dois pintores da regio platina, ligados ao movimento modernista ar-gentino, apresentam caractersticas muito diferenciadas. Ambos circularam22 Idem, pp.4-5.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282276pela Europa, tiveram influncias externas e suas obras foram reconhecidaspelas vanguardas internacionais. A busca de razes caracterizou a produoartstica de Pedro Figari e Xul Solar, no entanto, as preocupaes desses pinto-res com a identidade regional rioplatensense ou sul-americana partem devises de mundo muito dspares.O caso do modernismo mexicano, que passarei a tratar, apresenta caracte-rsticas diferentes em relao aos exemplos anteriormente mencionadas. Asparticularidades mexicanas esto relacionadas, de maneira muito direta, coma conjuntura histrica da Revoluo Mexicana, um dos acontecimentos maisimportantes do pas, que teve grande repercusso na Amrica Latina.A pintura muralista a que melhor representa o modernismo mexicanonas artes plsticas. Ela constitui um exemplo a mais da diversidade que essatendncia artstica latino-americana encerra, e sua caracterstica peculiar noforte sentido social dessa arte.Segundo Octvio Paz, a pintura mural foi fruto da Revoluo mexicana,mas tambm da grande revoluo esttica europia23.A Revoluo teve incio em 1910 e conquistou sua primeira vitria com aderrubada do regime de Porfrio Diaz, que permanecera no poder por vrias d-cadas. No entanto, a consolidao do movimento foi difcil e lenta, passando porvriasfasesondesedegladiaramgruposdediferentestendncias;asuaperiodizao final controversa, dependendo do tipo de interpretao que se dao movimento. Em 1917, representantes do grupo denominado constitucionalistaassumiram o poder, aps derrotar os exrcitos camponeses comandados porEmiliano Zapata e Pancho Vila; nesse ano foi elaborada uma nova Constituio,mas os conflitos entre as lideranas polticas tiveram continuidade.Quando lvaro Obregn assumiu o cargo de Presidente em 1920, nomeouo intelectual Jos Vasconcelos como Secretrio da Educao. O Secretrioelaborou um programa de construo de murais e para a realizao dessa gran-de obra, convidou os pintores Diego Rivera e David Alfaro Siqueros, que es-tavam na Europa atuando junto com as vanguardas artsticas. O convite foiextensivo a Jos Clemente Orozco que vivia no Mxico, mas em contato in-tenso com a produo artstica das vanguardas internacionais.23 PAZ, Octvio. Pintura Mural e Revoluo Mexicana. In Mxico en la obra de OctvioPaz. III Los princpios de la vista. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1987.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282277 O objetivo principal dessa produo artstica era a representao de umanova forma de identidade nacional voltada para as razes do povo mexicano epara a cultura popular. Esses elementos culturais passaram a ser privilegiadosaps o final da Revoluo. A proposta de Jos Vasconcelos era causar impac-to visual atravs de representaes que retratassem a cultura autctone a par-tir de suas tradies, smbolos, mitos, ritos e expresses da vida cotidiana. OSecretrio entregou a eles as paredes da recm-construda Escuela NacionalPreparatria (ENP).Diego Rivera era um artista ecltico que combinou vrios estilos. Teve influn-cia do cubismo, mas afastou-se dessa corrente, passando a estudar a obra de Czanne,voltando pintura figurativa; tinha afinidades com Gauguin e Rousseau em relaos cores e representao das culturas exticas (asiticas, africanas, da Oceaniae pr-colombianas). Quando foi convidado por Vasconcelos para produzir murais,viajou para a Itlia com o objetivo de estudar as obras do Renascimento italiano,sobretudo a arte mural. Esta experincia aparece numa de suas primeiras pinturasmurais A criao produzida entre 1922-1923 e localizada no auditrio da ENP(Fig.11). Ela corresponde ao gosto de Vasconcelos que apreciava alegorias: apre-senta dois planos distintos no centro se destacam tipos humanos e outros caracte-res da cultura mexicana nas laterais e no alto, foram pintadas alegorias cvicas.figura 11Diego Rivera. A criao (1922-1923), encustica e folha de ouro. AnfiteatroBolvar, Escuela Preparatoria Nacional, Cidade do Mxico.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282278(representaes da justia, esperana) e crists, claramente inspirados nas obras dorenascimento italiano.Durante o perodo em que os pintores estiveram ligados ao projeto culturalde Jos Vasconcelos (1920-1924), a volta s origens e o culto ao nacional deve-riam ser privilegiados, mas esses temas s aparecem na obra de Diego Rivera. Na pintura dos murais que decoraram o edifcio da Secretaria de Educa-o Pblica, recm construdo, predominam as imagens do povo indgena, re-presentado atravs de cenas da vida cotidiana, incluindo festas e rituais, repre-sentaes do mundo do trabalho (Figs. 12 e 13). H, tambm, uma srie depinturas encomendadas pelo Secretrio, na qual aparecem mulheres vestidas comtrajes tpicos de cada uma das regies do pas. Todas elas so de autoria de Rivera.figura 12figura 13No final do mandato de Obregn surgiram problemas polticos: em 1924,Vasconcelos renunciou ao seu cargo e os artistas, sem sua proteo, tiveramas encomendas dos murais suprimidas. Mas Rivera conquistou as simpatiasdo novo Secretrio da Educao e pde continuar o trabalho nesse edifcio;nessa poca, tanto ele quanto Siqueros, j eram militantes de esquerda.Diego Rivera. Del ciclo "Visin poltica del pueblo mexica-no" (Patio de las fiestas). La ofrenda - Da de muertos (1923-1924), 4,15x2,37m. Planta baja, pared sur. Foto: Rafael Doniz.Diego Rivera. La molendera (1924), encustica sobrelienzo,106,7x121,9cm.Museode ArteModerno,MAM-INBA, Ciudad de Mxico. Foto: Rafael Doniz.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282279Siqueros tornou-se o mais radical, do ponto de vista ideolgico, no entanto,em termos artsticos, era o mais comprometido com o modernismo no que serefere ao emprego das tcnicas. Suas pinturas tinham forte contedo social, masas obras relacionadas aos temas da Revoluo so posteriores, ou seja, datamda dcada de 1950. Orozco produziu obras referentes a ela nos anos 1920, maso pintor no se identificava com as causas polticas, nem se preocupou em re-tratar as origens da nacionalidade. Negava-se a pintar ndios com sandlias ecalas de algodo sujas e no aceitava fazer obra de propaganda.24Rivera, quando se tornou militante de esquerda, passou a se orientar pelaideologia marxista. Em 1927 foi para Moscou e, influenciado pela iconografiada Revoluo Russa, incorporou os smbolos da cultura comunista sua pin-tura. Eles aparecem em vrios murais, inclusive na parte final de sua obra queretrata a Epopia do povo mexicano (iniciada em 1929), onde narra a hist-ria do Mxico, desde o pr-hispnico at sua atualidade (Figs. 14,15 e 16).Octvio Paz, crtico impiedoso de Rivera, definiu sua pintura como ideo-lgica, didtica, doutrinria e salientou que sua viso da histria do Mxicoexpressa nestes ltimos murais, era dualista e maniquesta.Seus comentrios a respeito da pintura de Siqueros so, ao contrrio, bas-tante elogiosos apesar de desqualificar a ideologia poltica que norteia suasaes. Conclui que ele foi um artista importante, criativo e com capacidadedeusarastcnicasnovasdemaneiraoriginal,diferentementedeRivera.Enalteceu, tambm, a obra de Orozco e comentou que ele no tentara pene-trar na realidade mexicana com as armas das ideologias.Ao comparar a ideologia dos trs pintores, referiu-se a Orozco como anrqui-co, a Siqueros como ortodoxo/dogmtico e a Rivera como marxista oportunista.25A apreciao de Octvio Paz sobre os pintores muralistas est compro-metida com a posio que ele ocupava no cenrio cultural mexicano da po-ca. O literato pertencia ao grupo de vanguarda que girava em torno da revistaContemporneos; eles defendiam a arte pura e o no compromisso do artistacom interesses de qualquer natureza. Esse grupo foi combatido pelos artistasque se organizaram em torno do Sindicato Revolucionrio de Obreros Tcni-24 A propsito dos muralistas mexicanos, consultei ADES, Dawn. Captulo 7, O movi-mentomuralistamexicano,op.cit.,pp.151-77.25 PAZ, Octvio. Op.cit.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282280figura 14figura 15figura 16Epopeya del pueblo mexicano, 1929-1935. Ciclo de frescos. Escalinata con 3 monumentales murales,superficie pintada: 410,47m2. Palacio Nacional, Ciudad de Mxico.Diego Rivera. Mxicoprehispnico - El antiguomundo indgena (1929),7,49x8,85m. Vista total dela pared norte. Foto:Rafael Doniz.Diego Rivera. Histriade Mxico: de la Con-quista a 1930 (1929-1931), 8,59x12,87m.Pared Central oeste.Mitad derecha eizquierda. Foto: RafaelDoniz.Diego Rivera. Mxico dehoy y de maana (1934-1935), 7,49x8,85m. Vistageneral de la pared sur.Foto: Rafael Doniz.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282281cos y Plsticos, devido postura descompromissada que assumiam, conside-rada expresso do decadentismo burgus.A experincia dos muralistas, apesar de orientada pelo tema da Revolu-o Mexicana, apresenta, no apenas formas, mas temticas diversas.Como procurei mostrar, os movimentos modernistas latino-americanos,embora orientados por perspectivas comuns apresentam caractersticas bemdiversas. Mesmo os intelectuais e os artistas que se orientaram pela busca derazes, expressa nas pinturas que aqui foram expostas e comentadas, apresen-tam diferenas significativas. Esta constatao permite concluir que o movi-mento foi plural e heterogneo, tanto na sua forma como na viso de mundoe ideais que inspiraram os artistas que fizeram leituras particulares da con-juntura histrica na qual atuaram.Essa diversidade, ao invs de diminuir a sua contribuio em termos soci-ais e culturais, atesta a importncia desses movimentos. O intenso intercm-bio cultural que permitiu a interlocuo entre latino-americanos e europeus,enriqueceu a produo artstica da Amrica Latina nesse perodo; ela foi pro-duto de releituras originais das propostas europias realizadas a partir de fil-tros nacionais ou regionais.As obras dos artistas mencionados conquistaram reconhecimento no ex-terior e exerceram influncia recproca entre os pases da regio. O movimento,no seu conjunto, permitiu a renovao do campo cultural.A busca de razes que significou tentativas de criao de novas formasidentitrias, que so datadas, revela, no entanto, a preocupao dos artistascom os problemas enfrentados pelas respectivas sociedades onde atuaram.Jean Franco, ao analisar a cultura moderna na Amrica Latina, afirma quea arte latino-americana do final do sculo XIX a meados do sculo XX, secaracteriza por uma intensa preocupao social: o produtor de cultura, nessecontexto, se colocava na posio de conscincia de seu pas. A idia da neu-tralidade do artista ou da pureza da arte, segundo a autora, teve poucos adep-tos na regio porque, como a integrao nacional estava ainda em processode definio e os problemas sociais e polticos eram imensos, o sentimento deresponsabilidade do artista em relao sociedade impedia que movimentosartsticosnovossurgissemcomosoluoaproblemasmeramenteformais,como acontecia na Europa26, Os produtores culturais latino-americanos, ge-26 FRANCO, Jean. Op. cit.,p.15.Ma r i aHel en aRol i mCa pel a t o /Revista de Histria 153 ( 2-2005) , 251- 282282ralmente, criavam impulsionados por suas angstias face a mudanas signifi-cativas no quadro social ou face a problemas cruciais enfrentados pelas soci-edades em que viviam. A busca de novas formas de identidade nacional/regi-onal, na Amrica Latina dos anos 1920, surgiu como tentativa de compreensodas transformaes da poca e dos desafios que elas colocavam para os quese sentiam responsveis pelos destinos do mundo em que viviam.Referncias Bibliogrficas das IlustraesADES, Dawn. Arte na Amrica Latina. So Paulo: Cosac & Naify Edies, 1997.(figuras 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9).CatlogodaExposioXulSolar- VisionesyRevelaciones.Museode ArteLatinoamericano de Buenos Aires. (figura 8).GRADOWCZYK, Mario Horacio. Alejandro Xul Solar. Buenos Aires: EdicionesAlber, Fundacin Bunge y Born, 1994.(figura 10).KETTENMANN, Andrea.Diego Rivera 1886-1957: un espritu revolucionarioen el arte moderno. Germany:Taschen, 1997. (figuras 11, 12, 13, 14, 15, 16)Recebido em 05/10/2005 eaprovado em 25/10/2005.