MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO...

38
UFRJ – CCMN – IGEO 2° SEMESTRE DE 2005 DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA DISCIPLINA: ESTÁGIO DE CAMPO II PROFESSORA: ANA LUIZA COELHO NETTO ALUNA: PALOMA SOL HERTZ CUNHA DRE: 102060366 MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO LOCAL DA MATA ATLÂNTICA. ANÁLISE DA RESILÊNCIA ECOLÓGICA E CULTURAL

Transcript of MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO...

Page 1: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

UFRJ – CCMN – IGEO 2° SEMESTRE DE 2005 DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA DISCIPLINA: ESTÁGIO DE CAMPO II PROFESSORA: ANA LUIZA COELHO NETTO ALUNA: PALOMA SOL HERTZ CUNHA DRE: 102060366

MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO LOCAL DA MATA ATLÂNTICA.

ANÁLISE DA RESILÊNCIA ECOLÓGICA E CULTURAL

Page 2: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

INTRODUÇÃO:

A Mata Atlântica, em sua extensão original, pré colombiana, é a segunda floresta neotropical em tamanho, depois da floresta amazônica. Sua existência é ligada à serra do mar, cadeia montanhosa que corre ao longo da costa brasileira de forma quase contínua. É considerada um dos hot spots ecológicos mundiais, ou seja, é uma área representativa de um ecossistema degradado e fragmentado, cuja integridade e conservação estão fragilizados, concentrando grande biodiversidade, e espécies endêmicas ameaçadas de extinção.

A floresta da Mata Atlântica é o resultado de um gradual processo evolutivo, em escala de tempo geológico. A organização espacial complexa e articulada das comunidades de organismos, fundamentadas em relações ecológicas de fluxos cíclicos de matéria e energia, interdependência, retro-alimentação, padrões de ligações em rede, diversidade, flexibilidade, cooperativismo e auto-organização, possibilita um funcionamento sustentável ao ecossistema. Sustentável no sentido que o ecossistema tem a capacidade de alimentar a si mesmo, internamente, sem gerar gastos excedentes, a partir do ciclo de nutrientes e do ciclo hídrico. E também por se conservar através de uma auto-organização, mantendo condições de estabilidade, a partir da resistência e resiliência do sistema. Cabe esclarecer sobre o caráter relativo dessa estabilidade, na medida em que ela sofre variações e constantes transformações, já que a floresta é um sistema aberto, afastado do equilíbrio. Porém a estabilidade é caracterizada pela manutenção da estrutura do sistema, que podem sofrer alterações drásticas com as perturbações freqüentes (Begossi, Capra). O sistema aberto é caracterizado por provocar ainda a emergência de novas estruturas, que por sua vez desenvolvem adaptações locais, integrando-se à co-evolução em rede, formando o que Capra denomina a teia da vida, ou seja, uma auto-organização das comunidades ecológicas.

As florestas desempenham um papel muito importante na conservação da qualidade ambiental. São reguladoras do ciclo hidrológico, mantendo grau de umidade no ambiente, e conservação dos canais de drenagem e da qualidade de suas águas; reduzem o risco de enchentes e inundações; reduzem a erosão dos solos e o assoreamento dos rios; amenizam o clima; preservam diversas espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção, assim como preservam a biodiversidade em geral; garante a reprodução de diversos recursos naturais renováveis; dentre inúmeras outras funções, como a manutenção da sustentabilidade ecológica local e global, a partir da regulação e conservação da funcionalidade de ciclos ecológicos (nutrientes, biomassa, etc.).

Infelizmente a floresta da mata atlântica sofreu grande devastação ao longo da historia, a partir da chegada dos portugueses ao novo mundo. Diversos ciclos econômicos foram progressivamente substituindo a cobertura vegetal das encostas por monoculturas e usos degradadores, como a exploração descontrolada de recursos naturais. A urbanização desenfreada gerou grandes pressões sobre as florestas, não apenas restrita ao entorno das manchas urbanas, mas também através do aumento da demanda pela produção de alimentos, e conseqüente expansão da agricultura moderna e pecuária extensiva. Os ciclos canavieiro, da cafeicultura, da pecuária extensiva, da industrialização, da exploração madeireira, da mineração, da agricultura moderna, geraram além do desmatamento, o esgotamento dos solos, diminuindo a produtividade e capacidade de regeneração florestal.

Hoje, de uma mata original pré-colombiana que ocupava 1,3 milhões de km², 93% já foi devastado (fonte: Revista Fundação SOS Mata Atlântica, outubro 2005 – n°2). Brown e Brown, extraído de Adams (2000) presume que pode ter havido uma redução de cerca de 50% nas espécies de mata atlântica, devido ao caráter fragmentado em que ela se encontra hoje. Dentro dos remanescentes, as áreas de floresta primaria, ou seja, com estrutura pré-colombiana, são muito restritas, representando ilhas isoladas no interior de matas secundarias.

No Rio de Janeiro, segundo site do IEF (Instituto estadual de Florestas) as estimativas em relação ao passado supõem que 98% do estado era recoberto pela mata atlântica, constituído pela floresta ombrófila densa, principalmente, e ainda pelos ecossistemas associados, como manguezais, restingas e campos de altitudes. Atualmente, calcula-se que menos de 17% da superfície do Estado estejam recobertos por florestas, que se acham em vários estágios de conservação.

Page 3: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Os resquícios atuais, tanto no Rio de Janeiro quanto no resto do Brasil, encontram-se em sua maioria protegidos por leis ambientais, consistindo Unidades de Conservação (UC) regidas pelo SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), documento legislativo da nação brasileira.

No entanto, a oficialização das leis, como política principal na conservação de ambientes de floresta tropical, não tem se mostrado eficiente na manutenção da integridade e diversidade ecológica das florestas e mananciais. As diversas pressões sobre os recursos naturais, tais como a pecuária extensiva, o mercado madeireiro, monoculturas agrícolas, mercado imobiliário e de terras, continuam a avançar nas bordas das áreas florestais, e penetrar em seu interior.

Além disso, a normatização destes espaços vem potencializando um processo já crescente de fragilização e degradação cultural. Nestas áreas muitas vezes residem populações humanas tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem modos de vida e produção historicamente desenvolvidos e adaptados ao ecossistema local. Os atuais habitantes tradicionais da mata atlântica possuem suas origens culturais e genéticas de uma miscigenação composta parcialmente por comunidades humanas pré-colombianas nativas da Mata Atlântica. Essas comunidades indígenas nativas são estruturas ecológicas que emergiram e se adaptaram às florestas em um processo co-evolutivo. Caracterizam-se por tradições culturais associadas aos princípios ecológicos de sustentabilidade, condicionado por limites demográficos.

O avanço das tecnologias de transporte e comunicação, aumentando o acesso entre os lugares, acaba por aumentar também o contato destas populações tradicionais com as áreas urbanas, provocando uma difusão cultural desigual à medida que os valores e padrões da sociedade ocidental capitalista penetram nestas áreas, sobrepondo-se à cultura local. Os jovens principalmente absorvem esse processo em maior intensidade, ao enxergar possibilidades de substituir as amarguras do trabalho duro na roça em baixo do sol quente, da luz de vela e do fogão alimentado por lenha diariamente coletada, pela facilidade e praticidade das tecnologias da vida urbana.

A criação das Unidades de Conservação, principalmente aquelas de categoria de proteção integral, proibindo atividades e ocupações humanas, acaba por acelerar essa crise dos sistemas tradicionais de manejo ao proibir as práticas historicamente adaptadas, como a produção agrícola em roçados, e a produção artesanal de cestos, tapetes, casas, entre outros artefatos, utilizando elementos locais como cipó e palha. A normatização do espaço, nestes casos, pode gerar duas conseqüências que ocorrem paralelas (entre outras): o êxodo rural, as famílias impossibilitadas de praticarem suas atividades de produção que garante sua existência e reprodução, alem de gerar excedentes de renda para adquirir necessidades básicas da cidade, abandonam os locais de origem, migrando para os centros urbanos contribuindo para o crescimento do processo de favelização, aumentando as pressões já saturadas destes ambientes; a “urbanização” das áreas rurais naturais, à medida que as famílias buscam formas de geração de renda, em geral nos padrões capitalistas de trabalho assalariado, acabam por importar cada vez mais elementos externos de origem urbana, como o mercado turístico, alterando de forma crescente a paisagem natural.

Como podemos observar, a criação de Unidades de Conservação e a aplicação de políticas preservacionistas possuem caráter paradoxal, à medida que a proteção às florestas e aos mananciais é apenas parcial, pois contribui, por outro lado, para a degradação e alteração deste ecossistema fragmentado.

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NAS UNIDADES DE CONSERVAÇ ÃO:

PRESERVACIONISMO X CONSERVACIONISMO

A maior parte das Unidades de Conservação presentes no mundo (isso cabe ao Brasil também) estão baseadas em um modelo de área natural protegida desenvolvida pelos Estados Unidos. Este modelo que se difundiu por diversos paises e tornou-se uma das políticas conservacionistas mais utilizadas pelos paises periféricos, reflete ideologias preservacionistas, ou seja, que acredita no isolamento da natureza, preservando-a da ação humana tratada como necessariamente depredatória. A visão preservacionista está associada ao “mito moderno da natureza intocada” (Diegues, 1998), onde o ser humano é visto como um intruso destruidor do

Page 4: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

equilíbrio natural dos ecossistemas. Uma outra visão ambientalista, o conservacionismo, considera a corrente ideológica anterior de extremo radicalismo, por fundamentar-se em relações dicotômicas entre ser humano e Natureza, abstraindo o fato de que o ser humano é integrado a Natureza, sendo um elemento constituinte do ecossistema global. O modelo norte-americano de áreas protegidas propõe a criação de “ilhas” de conservação ambiental desarticuladas entre si (umas com as outras) e com suas periferias de entorno, na tentativa de estabelecer sistemas fechados. O objetivo deste modelo era de isolar áreas de grandes belezas cênicas naturais, onde o homem urbano pudesse contemplar a natureza “intocada”. Para atingir esta finalidade, adotou-se uma política de desapropriação de populações humanas que residiam dentro das áreas, mesmo sendo estas ocupações muitas vezes seculares. Motivado inicialmente por valores estéticos, este modelo beneficia populações urbanas externas, como mais um serviço de consumo, em detrimento das populações camponesas locais. Diegues (1998) adverte que dessa forma, o próprio “turismo ecológico” se constitui em um mito da sociedade urbano-industrial.

Certas Unidades de Conservação, como os Parques Nacionais, podem associar-se a uma lógica de acumulação de capital, a partir de atividades ecoturísticas voltadas para um segmento social restrito com alta infra-estrutura (trilhas pavimentadas, hotéis de luxo, altas taxas de entrada, lojas de conveniência sofisticadas, aeroportos associados), realizando desapropriação de populações locais cujos territórios historicamente ocupados se inseriam nas áreas protegias, causando exclusão social das comunidades periféricas.

Marginalizadas do processo, as populações locais muitas vezes não tem documentação de posse, não recebendo remuneração pela remoção, sendo transferidas para áreas de condições sócio-ambientais distintas, para as quais suas praticas de subsistência, culturais e suas conhecimentos potenciais não estão adaptadas. Além do mais, muitas vezes a existência da própria comunidade funcionava como um mecanismo isolante da degradação ambiental à medida que garantiam a conservação local através de sistemas tradicionais sustentados de subsistência e apropriação de recursos naturais, desenvolvidos a partir de históricos processos adaptativos, limitando de certa forma o avanço de explorações insustentáveis.

No Brasil, podemos identificar inúmeras UCs distribuídas por todo território brasileiro, que atualmente são regidas pelos regulamentos do documento legislativo SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - edição mais recente é de 2002) cuja elaboração está baseada nas ideologias e no modelo norte-americano (portanto exógeno) de áreas protegidas, ou seja, ilhas desarticuladas de conservação, desenvolvido em contextos externos distintos das realidades sócio-ambientais locais, regionais e nacionais. A Mata Atlântica se insere neste quadro apresentando diversas unidades de conservação, de distintas categorias e, portanto, possuindo regras e normas e acesso e uso diferenciadas, desde Reservas Extrativistas (RESEX – Unidades de Uso Sustentável), onde é permitido exploração de modo sustentável, até Reservas Biológicas (REBIO), onde até mesmo a visitação publica é proibida. O regulamento de algumas permite a existência de ocupações humanas especificas, contando que sigam as normas do plano de manejo, outras porém, ao serem criadas, decretaram por lei a desapropriação (remoção) de populações tradicionais que ali viviam, realizando suas atividades de reprodução social e cultural. A criação das unidades de conservação aparece nestes contextos, como elemento de aprofundamento da crise dos sistemas tradicionais de manejo na Mata Atlântica.

ÁREA DE ESTUDO:

A área de estudo da presente pesquisa consiste na Reserva Ecológica da Juatinga, localizada no município de Paraty, no limite sul do estado do Rio de Janeiro.

Esta localidade da Serra do Mar passou por uma sucessão de ciclos econômicos de monocultura que marcaram o uso do solo das encostas de uma pretérita mata atlântica. Os ciclos de cana-de-açúcar, rizicultura e café transformaram áreas onde os processos ecológicos tinham sua estabilidade garantida pela diversidade da floresta tropical, em áreas de capim, capoeira, e encostas marcadas por cicatrizes no solo (voçorocas). Hoje o ciclo da pecuária, proliferando gados e pastos pela região torna-se mais um fator de instabilidade e insustentabilidade ecológica. A região encontra-se ainda possivelmente ameaçado por uma nova monocultura que emerge protegido pelo mercado mundial de carbono, as plantações de eucalipto para a produção de celulose e papel. Estudos sobre

Page 5: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

as conseqüências ecológicas destas plantações de eucalipto para o ambiente ainda possuem caráter inicial, porém sabe-se que qualquer monocultura é prejudicial por acabar com a biodiversidade, além de o eucalipto ter a característica de retirar água demasiadamente do ambiente. Esses e outros mercados apresentam-se como fator de ameaça aos remanescentes florestais da Mata Atlântica.

Algumas áreas porém resistiram a estes processos de ocupação ambientalmente degradadores, como a reserva estudada. Além de apresentar consideráveis fragmentos de floresta primarias, envolvidos por florestas secundarias, e capoeira nas bordas, em estados preservados, nascentes, córregos e rios diversos, a reserva singulariza-se por sua beleza excepcional, caracterizada por extensas encostas florestadas, picos rochosos e praias semi-deserta de águas límpidas e claras. Segundo acervo turístico e cultural de Paraty, A floresta dessa reserva é a única mata primária existente no município, diferenciando-se das demais pela grossura e altura das árvores e pela grande quantidade de palmito Jussara existente. A especialidade desta área é destacada no ato de criação da reserva, que intencionou preservar sua integridade não apenas ecológica, como também cênica, como evidencia o DECRETO ESTADUAL NO

17.981 – DE 30 DE

OUTUBRO DE 1992:

O Governador do Estado do Rio de Janeiro , no uso de suas atribuições legais, tendo em vista o disposto no art. 9°, VI, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentada pelo Decreto nº 99.274, de 7 de junho de 1990, bem como a Lei Estadual nº 1.859, de 1 de outubro de 1991, e considerando ser impostergável preservar o ecossistema local, composto por costões rochosos, remanescentes florestais de Mata Atlântica, restingas e mangues que, em conjunto com o mar, ao fundo, forma cenário de notável beleza, apresentando peculiaridades não encontradas em outras regiões do Estado,

DECRETA:

Art. 1º - Fica criada, no Município de Parati, a Reserva Ecológica da Juatinga, de natureza non edificandi, delimitada, de um lado, pelo Saco de Mamanguá, de outro e pela frente, pelo mar aberto e, pelos fundos, por uma linha reta imaginária que, partindo do ponto conhecido como Cachoeira do Cocal (no lado do Canto Bravo da Praia do Sono), alcança o local conhecido como Porto do Sono (ao fundo do Mamanguá), ficando, destarte, resguardada a faixa de Marinha.

O órgão governamental à qual é concedido a administração da reserva é o Instituto Estadual da Floresta (IEF), como dispõe o artigo 2 do mesmo decreto:

Art. 2º - A administração da Reserva Ecológica da Juatinga será exercida pela Fundação Instituto Estadual de Florestas I.E.F./RJ, entidade administrativa vinculada à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Projetos Especiais.

MANEJO TRADICIONAL DA MATA ATLÂNTICA

A área da reserva foi historicamente manejadas pelas comunidades tradicionais caiçaras e seus sistemas produtivos, que resultaram de processos evolutivos de reciprocidade entre a população humana nativa e seu habitat, formando uma comunidade fundamentada nos princípios ecológicos de sustentabilidade. Seus modos de vida, sistemas produtivos, rituais místicos e reprodução social seguem a ordem e o tempo da natureza e seus ciclos sazonais. Devido a essa interação com os ciclos naturais, e também ao baixo impacto das tecnologias utilizadas por essas sociedades nativas, suas relações com o ecossistema são caracterizadas como harmônicas e sustentáveis, no sentido de não interromper a reprodução dos elementos ecológicos que garantem a funcionalidade do ecossistema. Essas populações caiçaras adquiriram ao longo do lento processo adaptativo grande carga de saberes locais, como amplo conhecimento das espécies locais e suas propriedades, medicinais por exemplo, e técnicas de mecanismos adaptados às dinâmicas ambientais, produzidos a partir de elementos locais. Essas especificidades localmente

Page 6: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

desenvolvidas caracterizam-se como parte da biodiversidade do ecossistema da mata atlântica, a diversidade cultural.

Como podemos perceber, há uma relação direta entre cultura e ecologia, e a cultura também deve ser considerada como um elemento de conservação ecológica. Como os próprios caiçaras argumentam, não é por acaso que o habitat natural desta cultura se tornou uma unidade de conservação. O manejo tradicional propiciou as atuais condições de preservação das florestas e mananciais. E apesar desta cultura ter sido capaz de garantir a reprodução da biodiversidade local, a legislação ambiental proíbe as atividades tradicionais praticadas, tentando modificar o sistema de produção caiçara.

Essa questão que envolve conflitos entre políticas preservacionistas e culturas tradicionais tem sido recentemente discutido por pesquisadores em geral na área da antropologia. Este debate vem trazendo preocupações com o futura de tais culturas, e de seus habitats e ecossistemas nativos, à medida que, cada vez mais a manutenção da diversidade cultural está sendo vista como essencial para a conservação da biodiversidade. Esta percepção surge de evidencias como a preservação florestal de terras indígenas, onde o nível de desmatamento é muitas vezes menor que em áreas naturais protegidas em que a presença humana é proibida, como explicita Esterci, Lima e Léna (2002)

“Conforme já perceberam, e erigraram em regra, grande parte dos conservacionistas, as áreas protegidas correm menos riscos quando tem a zelar por elas os seus habitantes, desde que, como advertem Ayres et al. 1994, convencidos de que a conservação reverterá também em seu beneficio e não será apenas um motivo de sacrifícios ainda maiores.”.

A CULTURA CAIÇARA

Diegues (2002) entende caiçaras como as comunidades formadas pela mescla da contribuição étnico-cultural dos indígenas, dos colonizadores portugueses e, em menor grau, dos escravos africanos. São caracterizados por uma cultura específica que se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina. Suas origens se associam aos “interstícios dos grandes ciclos econômicos do período colonial, fortalecendo-se quando essas atividades voltadas para exportação entraram em declínio” (Diegues, 2002). A decadência destes ciclos econômicos incentivava maiores dedicações às atividades de produção e consumo familiar, como a agricultura, a pesca e o extrativismo vegetal. A prosperidade dos ciclos econômicos também incentivavam a produção agrícola na medida em que a maioria da população focava as atividades na produção e extração para exportação, provocando em certas situações escassez de alimentos, que as famílias de pequenos produtores supriam. As comunidades caiçaras sempre mantiveram contatos e intercâmbios econômicos e sociais, em intensidades diferentes, com as cidades próximas que emergiram no litoral, associadas aos ciclos econômicos de exportação, como Parati, Santos, Ubatuba. Dependiam delas ainda para atender as necessidades materiais não produzidas em seus sítios, como combustível, vestimentas, nylon, variando de local para local. Os caiçaras produziam também mercadorias consumidas nestas cidades, como balaios (cestos de cipó), tapetes de palha, farinha de mandioca e muito peixe, e as vezes abastecendo com gêneros alimentícios.

O modo de vida caiçara possui diversas diferenciações regionais e locais, devido a sua extensão territorial, que vai desde o sul do estado do rio de janeiro até o estado do Paraná, de acordo com Diegues (2004):

“Consideramos território caiçara o espaço litorâneo entre o sul do Rio de Janeiro e o Paraná onde se desenvolveu um modo de vida baseado na pequena produção de mercadorias que associa a pequena agricultura e a pesca, além de elementos culturais comuns, como o linguajar característico, festas e uma forma particular de ver o mundo.”

Page 7: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Sendo assim, apesar de analisar algumas pesquisas espacialmente mais abrangentes ou regiões caiçaras mais ao sul do litoral, este trabalho restringe sua analise aos caiçaras do estado do Rio de Janeiro, e mais especificamente, à área de estudo do trabalho de campo realizado, a Reserva Ecológica da Juatinga.

Em contextos gerais, as comunidades caiçaras, segundo Diegues (2002), mantiveram sua forma tradicional de vida até a década de 1950, quando as primeiras estradas de rodagem interligaram as áreas litorâneas com o planalto, ocasionando o inicio de um fluxo migratório. O aumento do fluxo porém não foi apenas migratório e nem somente unidirecional. A possibilidade de maiores acessos teve como conseqüência uma maior difusão de valores, padrões e práticas. Esta difusão porém, apesar de ser em ambos os sentidos, foi desigual, e o modo de vida urbano, com seus padrões e valores de uma sociedade industrial, penetrou na vida e nos lugares caiçaras. Tratando mais especificamente da região da reserva da juatinga, foi com a construção da estrada Rio-Santos, na década de 1970, que este processo se intensificou.

A partir da década de 1980 surgem novas pressões aos territórios caiçaras, e novas ameaças às suas tradições culturais, à medida que estes espaços de ocupação tradicional transformam-se em áreas protegidas por lei. Órgãos governamentais ambientalistas entram em conflitos com as comunidades caiçaras, criando um quadro que reflete a situação acima exposta de crise dos manejos tradicionais acelerados com práticas preservacionistas do meio ambiente. Esta ameaça estimulou pesquisadores de diversas áreas a realizarem estudos sobre estes conflitos entre preservacionistas e caiçaras.

Antônio Carlos Diegues, um dos autores que publicou diversos textos sobre o tema em questão realizou pesquisas com comunidades caiçaras da Mata Atlântica e reuniu artigos de diferentes pesquisadores em um livro denominado: Enciclopédia Caiçara, O Olhar do Pesquisador. Os artigos tratam de diversos problemas envolvendo caiçaras tradicionais, unidades de conservação, turismo e urbanização. Há diversos relatos de perdas culturais, como o fim das festas, danças e músicas locais, fato este verificado em trabalho de campo da presente pesquisa, na área de estudo. Neste livro, o organizador, Antônio Carlos Diegues, explicita o papel dos caiçaras na conservação ambiental local, e da fragilidade que se encontra a existência desta cultura:

“As comunidades caiçaras passaram a chamar a atenção de pesquisadores e de órgãos governamentais mais recentemente em virtude das ameaças cada vez maiores à sua sobrevivência material e cultural e pela contribuição histórica que essa população tem dado à conservação da biodiversidade, por meio do conhecimento sobre a fauna e flora e os sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais de que dispõem.” E ainda: “Essas iniciativas na área ambiental, caracterizadas por grande esforço de pesquisas inovadoras partiam do pressuposto que os caiçaras não eram adversários da conservação, mas seus aliados com base na constatação de um grande cabedal de conhecimento acumulado sobre a biodiversidade da floresta e do mar, e de engenhosos sistemas tradicionais de manejo.” (Diegues, 2002)

Podemos então identificar um processo de reestruturação espacial, ambiental e sócio-cultural, que afeta tanto o ecossistema local quanto a cultura tradicional caiçara. Esta reestruturação tende a causar descaracterização da cultura local, e diversas mudanças no modo de vida, nas relações de troca, nos fluxos demográfico, transformando tanto a paisagem, as formas fixas, quanto à organização espacial como um todo.

OBJETIVOS:

O presente trabalho possui como objetivo analisar os modos de vida e de produção das comunidades caiçaras a fim de avaliar a funcionalidade de seu manejo do ambiente local na sustentabilidade do ecossistema da mata atlântica. A pesquisa identifica mudanças no modo de vida das comunidades costeiras da Juatinga, provocadas pelo processo de reestruturação sócio-cultural e ambiental, no intuito de compreender dinâmicas culturais e alterações nas relações dos caiçaras com o ecossitema local, seu território. A agricultura, vista sob óticas ecológicas, sociais, culturais e

Page 8: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

da saúde nutricional, recebe um enfoque especial na medida em que essa atividade expressa uma ligação importante nas relações de identidade e manejo ambiental. Assim também é o extrativismo, analisado aqui com menor enfoque, mas que expressa em grande intensidade o conhecimento tradicional local, e sua contribuição para o manejo ambiental sustentável.

Considerando a importância da articulação local com o global, sem causar sobreposição cultural, a pesquisa avalia inovações técnicas, como a agroecologia, como uma possível forma de adaptação aos novos contextos culturais, ambientais e institucionais, e como mecanismo de melhorar a resiliencia cultural e ecológica das comunidades praianas. E ainda como forma de amenizar os atuais conflitos de sobreposição territorial, de UCs, e espaços tradicionalmente vividos.

Na medida em que este objetivo demandar uma serie de estudos aprofundados para ser alcançado, este trabalho pode ser considerado restrito devido a sua superficialidade. Intenciona, porém contribuir ao passo que reúne elementos de distintas pesquisas envolvendo tal objetivo, observações e pesquisas realizadas em trabalho de campo, sob as óticas de uma geografia integrada.

METODOLOGIA

A metodologia desenvolvida fundamentou-se em pesquisa bibliográfica envolvendo diversos focos da pesquisa, como a cultura caiçara, Unidades de Conservação, ecologia, agricultura, agroecologia, entre outros. Outra etapa de extrema importância foi a realização de um trabalho de campo na região costeira da Reserva da Juatinga, visitando comunidades caiçaras de diferentes características. Durante o trabalho de campo, foram feitas observações diversas, e aplicadas entrevistas semi-estruturadas (abertas) com caiçaras das comunidades. Na maioria das praias, foram entrevistados os moradores mais antigos, de modo a resgatar as lembranças dos tempos antigos, ou seja, de maior isolamento e autonomia alimentícia, onde as praticas agrícolas possuíam maior valor sendo realizadas de forma mais intensa. Muitas vezes, haviam outros moradores de idade jovem que também participavam da entrevista, realizada tanto de modo individual quanto coletivo (com um individuo, um casal, ou um grupo de caiçaras). Entrevistou-se também alguns jovens individualmente, a fim de compreender percepções atuais do modo de vida caiçara.

BASE TEÓRICA: CONCEITOS E TERMOS ABORDADOS

Cabe, para a compreensão do trabalho, explicitar a intenção de alguns conceitos abordados, como o de sustentabilidade, resiliência, biodiversidade, comunidades tradicionais, e o de modos de vida.

SUSTENTABILIDADE

A sustentabilidade é um termo amplamente utilizado na atualidade, tanto em meios científicos, políticos, quanto na mídia. Sua apropriação é porem amplamente diversa, e muitas vezes vaga. Há de se levar em consideração que o termo pode se associar a diversas visões. Economistas podem considerar uma situação, ou um sistema sustentável, enquanto ecologistas, ou antropólogos negam tal caráter de sustentabilidade. Esta pesquisa utiliza o conceito de sustentabilidade sob óticas principalmente ecológicas e culturais, concebendo a cultura como um elemento ecológico do sistema. Compreende-se o conceito enquanto a propriedade do sistema (neste caso, ecossistema ao se tratar da mata atlântica) de conservar a funcionalidade ecológica a partir das leis de sustentabilidade sugeridas por Capra (teia da vida) e adaptadas nesta pesquisa: diversidade (de espécies e de culturas), fluxos cíclicos de matéria e energia (nutrientes, água, biomassa..), reciclagem, cooperativismo, auto-organização, interdependência e relações em rede.

RESILIENCIA

De acordo com Begossi (????), a resiliencia é um conceito ecológico ligado à sustentabilidade, representa a habilidade do sistema para manter sua estrutura e funções de distúrbio. O termo descreve a velocidade com a qual uma comunidade retorna ao estado de referencia, ou sua capacidade de absorver as mudanças. Uma resiliencia alta significa retornos

Page 9: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

rápidos às condições normais após perturbações, e alta resistência a estas. Caracteriza-se por eventos afastados do equilíbrio, pressionando as fronteiras da estabilidade. Sendo uma idéia relacionada à sustentabilidade, apresenta alto grau de adaptação e variabilidade. Holling (1992, retirado de Begossi, 2003) Identificando ciclos organizados por quatro forças: exploração, conservação, libertação (ou desprendimento) e organização, descreve a resiliencia como sendo a seqüência do desprendimento e reorganização. Berkes e Folks (1998, retirado de Begossi, 2003), resiliencia é uma medida da magnitude de distúrbio que pode ser absorvido antes do sistema modificar suas estruturas, podendo ser uma medida da capacidade de amortecimento do sistema.

A apropriação do conceito de resiliencia nas discussões de sustentabilidade de comunidades tradicionais é relevante na medida em que, de acordo com as idéias de Begossi (????), a resiliencia do sistema ecológico é incrementado devido aos moradores locais serem manejadores de recursos naturais, diferente dos casos onde o manejo é oficial, realizado pelo estado, mas sem fronteiras e supervisões claras e efetivas. Seguindo Folk, 1998, retirado de Begossi (????), comportamentos culturais podem contribuir para a resiliência ecológica via práticas que incrementam a biodiversidade ou evitam a sobre exploração.

BIODIVERSIDADE: (bio = vida; diversidade= variedade)

Entende-se biodiversidade como a “variedade de seres que compõem a vida na terra (espécies de plantas, animais e microorganismos), seus genes e os ecossistemas dos quais eles fazem parte. As pessoas e suas diferentes raças e culturas também fazem parte da biodiversidade, e para essa variedade dá-se o nome de sociodiversidade.”(Guia do Educador, 2005)

A biodiversidade é essencial na conservação do ecossistema, garantindo sua riqueza genética. Capra (teia da vida) identifica a biodiversidade como uma importante lei da sustentabilidade ecológica, uma das essências da auto-organização dos ecossistemas. Capra descreve a diversidade como diversas ligações, muitas aproximações diferentes para o mesmo problema. Desta forma, uma comunidade diversa tem a possibilidade de se adaptar a situações de mudança, garantindo sua resiliencia. Segundo o autor, a diversidade é uma vantagem estratégica, mas é de extrema necessidade que haja uma rede de relações, e um fluxo de informação por todas as ligações da rede. Begossi, baseado em Tilman (1997), expõe que os ecossistemas mais diversos possivelmente são mais resistentes às perturbações, apresentando menores mudanças nas respostas às perturbações. À medida que as perturbações são comuns nos sistemas ecológicos e populações em estado de equilíbrio não são usuais (Rosenzweig, 1995, retirado de Begossi, 2003), é de grande importância levar em consideração a resiliencia, e portanto a biodiversidade, para a conservação de ecossistemas.

Os corredores ecológicos são uma importante estratégia ambiental na medida em que possibilitam e viabilizam esses fluxos informacionais, podendo-se incluir fluxos genéticos, de matéria, energia e espécies, garantindo a conservação da biodiversidade. Dentro de uma Unidade de Conservação, visto que esta é composta por fragmentos internos de floresta primária, isolados por florestas secundarias, e as vezes capoeiras, torna-se necessário viabilizar os fluxos informacionais entre essas áreas clímax restritas, garantindo sua resiliência.

COMUNIDADES TRADICIONAIS

Diversas são os autores que utilizam os termos comunidades tradicionais, populações tradicionais, utilizado e divulgado inclusive pelo SNUC, para destacar Antonio Carlos Diegues, Mauro Almeida, Neide Esterci. Cada autor, porém, trata o termo com visões distintas, abrangendo ou excluindo diferentes padrões culturais. Alguns, por exemplo, incluem comunidades indígenas entre as tradicionais, como os autores da perspectiva marxista que associam culturas tradicionais a modos de produção pré-capitalistas, outros excluem populações indígenas da categoria de população tradicional, como Mauro W. B. Almeida & Manuela Carneiro da Cunha. Diegues (1998) menciona que para os neomarxistas, culturas tradicionais são as que se desenvolvem dentro de um modo de produção da pequena produção mercantil. Para o autor, as comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Há o predomínio de atividades econômicas de pequena

Page 10: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

escala, como a agricultura e pesca de subsistência, coleta e artesanato. Outra característica importante é a combinação de diversas atividades econômicas, que se auto complementam, e se alternam, obedecendo aos ciclos naturais de reprodução.

Diegues (1998) aborda diversas características comuns que determinam as populações tradicionais, dentre as quais cabe destacar: Conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclo, refletindo na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais, sendo este conhecimento transferido por gerações via oral; Noção de território enquanto espaço onde o grupo social realiza reprodução social e econômica; Moradia e ocupação do território por varias gerações (historicamente); Importância das atividades de subsistência; Importância das simbologias, mitos e rituais; Tecnologia utilizada sendo relativamente simples, de impactos limitados sobre o meio ambiente, sobressaindo técnicas artesanais; Auto-identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta das demais.

Esterci, Lima & Léna (2002) advertem para a fragilidade do uso do termo a medida que envolve representação e questões políticas. Os autores aconselham que

“os critérios ambientais utilizados para definir esses segmentos devem ser interrogados pelos cientistas sociais (...) na medida em que servem tanto para legitimar quanto inibir ações políticas, financiamentos ou projetos diverso, podendo incluir ou excluir parte da população.” E ainda que “ (os conceitos) são estratégias de reconstrução de identidades, e de acesso a recursos e a políticas publicas”

A idéia preponderante que se associa ao termo de comunidade tradicional é a de identidade. O termo passa a ser apropriado a partir de uma auto/reafirmação identitária entre os membros da comunidade, e para com o seu território. A noção de território também se integra profundamente à idéia de comunidade tradicional, à medida que a existência das comunidades se associa a uma determinada porção de terras, relativamente delimitada por suas atividades e vivências, na qual os indivíduos se apropriam dos recursos naturais contidos e realizam sua reprodução social e cultural, seus rituais e suas ações cotidianas, de forma a criar forte identidade com este espaço, o território, que por sua vez auto-afirma a identidade comunitária. O termo passa então a ser manipulado politicamente, funcionando como instrumento de luta.

Para esta pesquisa então, considerando as comunidades caiçaras enquanto tradicionais, o termo será apropriado a partir da noção de identidade territorial que tal comunidade possui com o espaço que ela reside e realiza suas atividades, sendo estas atividades relacionadas aos recursos naturais locais, de baixo impacto. Leva-se ainda em consideração a ocupação histórica e predominância de valores, padrões e praticas com baixas influencias urbanas, e dos elementos da globalização enquanto homogenizadora de culturas.

MODO DE VIDA

De acordo com Begossi (2003), o conceito de livelihood, similar à concepção de modo de vida, associa-se com conceitos ecológicos, assim como diversidade, resiliencia, estabilidade, complexidade e territorialidade, de modo a analisar as interações entre as pessoas e o ambiente. Estes conceitos ecológicos aproximam modos de vida à manejo local. A autora acredita que livelihood é um conceito que tem mostrado aplicações práticas, por estabelecer ligações entre as diversas atividades humanas, incluindo o uso de recursos naturais. Baseando-se em Soussan, 1999, Begossi expõe que este conceito ajuda a compreender fatores que influenciam a vida e o bem estar das pessoas, é baseado nas dinâmicas de vivencia e nos meios para obter bens e serviços.

Modo de vida caiçara, é entendido por DIEGUES (2004), como “forma pela qual as comunidades praianas ou praieiras do sudeste organizam a produção material, as relações sociais e simbólicas dentro de um determinado contexto espacial e cultural.”

O modo de vida caiçara, e sua reprodução cultural, fundamenta-se na complementaridade de diversas atividades cotidianas praticadas coletivamente pelos membros das famílias, em sua maioria atreladas aos recursos naturais locais. O modo de produção, igualmente baseado em recursos naturais locais é de baixo impacto ambiental, se apropriando de baixa tecnologia. Os praianos

Page 11: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

utilizam basicamente ferramentas manuais, algumas adquiridas em centros urbanos e algumas fabricadas manualmente por eles mesmos. Suas atividades tradicionais são principalmente voltadas para o consumo familiar (o que muitos chamam de subsistência). Há ainda uma pequena produção de mercadorias (artesanato, farinha, alimentos da roça, peixe) a ser comercializado com fins de adquirir, em geral nos centros urbanos, necessidades básicas não atendidas localmente. A agricultura, pesca, extrativismo, caça e artesanato são elementos essenciais da cultura caiçara, e refletem heranças das origens genéticas e culturais, os indígenas litorâneos.

ARTESANATO

O artesanato serve principalmente de base para as outras atividades. Conhecimento este transmitido de formas tácitas (baseados na oralidade e na pratica, e não na escrita), os filhos aprendem a fabricar tapitis, balaios, vassouras, esteiras, cachimbos de barro, entre diversos outros artefatos a partir do aprendizado com parentes, em geral os pais, avós e tios. O tapiti é uma forma de cesto insubstituível na produção manual de farinha de mandioca pelos caiçaras. Alem de artefatos pequenos, os caiçaras tradicionalmente constroem estruturas diversas e criativas para atender as necessidades familiares, como casas de pau-a-pique, moedores de cana, ranchos beira-mar, canoas “puxadas” do mato, remos, redes de pesca, entre outros, utilizando fundamentalmente elementos naturais locais.

EXTRATIVISMO

O extrativismo é um fator de extrema importância no estudo da territorialidade dos caiçaras, das relações deles com a floresta enquanto ecossistema local, e desta cultura enquanto elemento de conservação ambiental. Grande parte do arcabouço de saberes tácitos desenvolvidos e transmitidos historicamente, acerca da flora local, de suas características e propriedades, estão associadas às atividades extrativistas. Além da identificação, localização, usos medicinais e não medicinais, os caiçaras aprendem as técnicas adequadas para a extração e utilização das plantas. A atividade envolve cuidados com a regeneração das espécies, preservando “mães” e “jovens”, como na retirada do cipó Tinopeba para a produção de Balaio. Essa forma de manejo dos elementos naturais reflete uma preocupação dos caiçaras com a conservação da floresta.

Essa consciência também se reflete na analise dos nichos ecológicos desta população. Do ponto de vista da agricultura e da habitação, o nicho ecológico dos caiçaras é mais restrito, englobando quintais, roçados e a praia, áreas em geral de floresta secundaria e capoeira. Somando a pesca, podemos incluir uma extensa área marítima, de característica relativamente variável (estudos e informações sobre pesca foram menos exploradas nesta pesquisa). O extrativismo estende a vivencia e a afetividade da população com o ambiente para áreas mais amplas, no interior da mata, penetrando florestas primárias. É através principalmente destas atividades extrativas, além da caça, que as florestas em estágios avançados de sucessão ecológica constituem espaço vivido dos caiçaras. E portanto, analisando sob óticas simbólicas e de apropriação do espaço, as florestas podem ser vistas enquanto território destas comunidades praianas. Haesbaert (2002) comenta sobre essa visão de território em seu livro territórios alternativos, “território como fruto de uma apropriação simbólica, especialmente através das identidades territoriais, ou seja, da identificação que determinados grupos sociais desenvolvem com seus espaços vividos.” Diegues (2004), ao comentar sobre o território caiçara, porem de forma mais ampla, englobando todo o litoral de sudeste à sul do país, destaca a concepção de território por Godelier, expressando uma concepção apropriada às idéias aqui defendidas:

“O território pode ser definido como uma porção da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou a uma parte de seus membros, direitos estáveis de acesso, controle ou uso sobre a totalidade ou parte dos recursos naturais aí existentes que ela deseja ou é capaz de utilizar (Godelier, 1984) essa porção da natureza fornece, em primeiro lugar, a natureza do homem como espécie, mas também os meios de subsistência, os meios de trabalho e produção e os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aos que compões a estrutura determinada de uma sociedade (relações de parentesco, etc)(Godelier, 1984)”

Page 12: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Os caiçaras desenvolveram uma identidade com a floresta que reflete esta territorialidade. As relações existentes entre os caiçaras com áreas de uso restrito e mais intensivo do solo (roçado, capoeiras e florestas secundarias) se distingue das relações estabelecidas com áreas de floresta primaria. Áreas estas onde a amplitude e o caráter esporádico de uso reflete cuidados e consciência com a conservação das florestas primarias, tratadas como fontes de produção (elementos extraídos), fontes de reprodução (por conter alta variedade de espécies e sementes), e essenciais a manutenção dos ciclos ecológicos, como de nutrientes, mantendo fertilidade do solo, e ciclos hídricos, mantendo a abundancia de água nos canais de drenagem.

AGRICULTURA – A ROÇA CAIÇARA

A agricultura é historicamente um elemento essencial da tradicional cultura caiçara, incorporando todos os membros da família, crianças, jovens, adultos, idosos, homens e mulheres, envolvendo quase todo o calendário anual (apesar da dedicação variar com a sazonalidade, assim como as etapas). Como herança indígena, os caiçaras praticam a agricultura itinerante (chamada também de roça de toco ou coivara), que consiste em ciclos de cultivo e pousio, onde as áreas de roçado mudam geralmente em períodos de 2 a 3 anos. Seguindo Adams (2000) o sistema da lavoura agrícola tradicional brasileira, onde se insere a lavoura caiçara, enquadra-se na definição de pousio florestal, de acordo com a classificação dos estágios agrícolas de E.Boserup (1987)

O processo se inicia com a escolha de local de mata para abertura de novo roçado, de preferência em áreas de baixa declividade (as vezes porem nem sempre possível). Em geral as áreas utilizadas são de capoeira, ou, em menos casos, de floresta secundaria, pois a sua “limpeza” (retirada da cobertura vegetal) é mais fácil que em áreas de floresta primaria. O tamanho da área é variável, devido a diversos fatores como numero de indivíduos por núcleo familiar, produtos desejados, fertilidade do solo, etc...

Primeiramente é realizada a retirada de madeiras utilizadas, e posterior ocorre a derrubada de arvores em geral (desmatamento). A área é deixada para secar, ate que esteja em estado ideal para ser queimada. A queima é uma técnica utilizada para facilitar a “limpeza” da roça nova, e ao mesmo tempo incorporar ao solo de forma rápida os nutrientes contidos nas plantas, que se disponibilizam sob a forma de cinzas. Este processo permite a safra resultante do cultivo de um ou dois ciclos curtos de produção alimentícia, nos padrões caiçaras, onde a mandioca tem destaque acentuado.

Os roças caiçaras apresentam variações em cada família, mas também semelhanças. O cultivo principal é a mandioca, para a produção de farinha. Em menores quantidades, ocorre geralmente a produção de outros alimentos, como a batata doce, feijão, melancia, aipim, banana, abacaxi, taioba, jerimum (abóbora), cana de açúcar, entre outros. A variedade de produção muda para cada família, assim como as estruturas de produção. Em algumas roças cada cultura possui seu espaço delimitado, as plantações são separadas. Em outros porém, ocorre o que alguns chamam de “plantar em consórcio, tudo junto”, as culturas as vezes se misturam, as plantações não tem limites definidos e as vezes se intercalam. Esta mistura porém é parcial, devido ao fato da mandioca necessitar alta intensidade de luz solar. A plantação de mandioca geralmente é exclusiva, mas pode ocorrer de haver uma fileira de abacaxi nas bordas, e um pé de jerimum no meio. Ou ainda áreas onde se planta feijão, melancia e abóbora, sem limites definidos entre as plantações.

Após dois ou três anos de cultivo, há uma queda de produtividade do solo, devido à exaustão dos usos exclusivos (não foi verificada a ocorrência de rotação de culturas). Ocorre a interrupção momentânea dos ciclos de nutrientes, estes são por um período de tempo apenas retirados do solo, sem ocorrer uma reposição para manutenção dos balanços normais. A cultura exclusiva acentua a queda da fertilidade, na medida em que ela retira os nutrientes de uma mesma e única camada de solo, pois as raízes possuem profundidades homogêneas.

Estas áreas são então abandonadas e entram no período de pousio, cuja duração é muito variável, em geral de 5 a 50 anos. Através da sucessão ecológica natural, as clareiras são ocupadas por espécies pioneiras, como as samambaias, e tendem a se tornar áreas de capoeira. Após um período de tempo, e dependendo também de uma diversidade de fatores como proximidade de áreas fontes de sementes (e variedade de espécies dessas áreas), declividade, entre outros, as

Page 13: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

áreas de capoeira tendem a se transformar em áreas de mata secundaria, com presença predominante de espécies secundarias.

Rogério Ribeiro de Oliveira (1999) realizou uma tese de doutorado onde analise a sustentabilidade e funcionalidade da mata atlântica sob o manejo caiçara, a partir de estudos sobre a sucessão ecológica desenvolvida em roças abandonadas. Utilizando a Ilha Grande, localizada no município de angra dos reis, litoral sul do estado do Rio de Janeiro, como área de estudo, o autor teve como objetivo verificar como os caiçaras vem manejando o meio ambiente através de suas praticas agrícolas seculares. Sua conclusão foi de que a população caiçara promove conservação dos mecanismos de sustentabilidade da mata atlântica. O autor destaca para a importância de desmitificar a idéia de floresta virgem, pois esta consiste num resultado de manejo histórico dos povos primitivos, e não em matas intocadas. Para ele, a paisagem atual da Ilha Grande, assim como as características físicas e químicas dos solos e florestas, é provavelmente o resultado de usos e manejos seculares de pretéritos habitantes indígenas cuja ocupação é evidenciada. É possível que estes povos praticassem atividades agrícolas semelhantes às tradicionais agriculturas itinerantes atuais, a medida que são, em parte, antepassados culturais. O autor levanta a hipótese do estabelecimento de um processo de co-evolução sistêmica entre os sistemas florestais e antrópicas:

“A atual estrutura e composição da floresta/vegetação, bem como a funcionalidade do ecossistema estão relacionadas com eventos ocorridos no passado, ligados às intervenções antrópicas, que provocaram uma forte conexão de fluxos entre floresta e a agricultura. Os grupamentos humanos (...) também podem ter tido aspectos de sua cultura e estrutura moldados pelos condicionantes do ambiente, sendo a densidade das roças nas encostas e das moradias em tempos passados um exemplo disto” (Oliveira, 1999)

Oliveira analisou áreas de antigas roças caiçaras, com distintas idades sucessionais (anos contados a partir do abandono da roça). A área de 5 anos é identificada como capoeira, com predominância de espécies pioneiras, e baixas diversidades (26 espécies em 5,6 m²/ha). As áreas de 25 e 50 anos possuem dominância de espécies secundarias iniciais e tardias, com diversidade media (respectivamente: 70 espécies em 26,3 m²/há e 63 espécies em 32,3 m²/há). Foi analisada ainda uma área de floresta clímax, onde havia a predominância de espécies climácicas (143 espécies em 57,9 m²/há).

Oliveira utilizou como metodologia para verificar a conservação dos mecanismos de sustentabilidade das florestas pelo manejo caiçara (entre outras metodologias), a avaliação da eficácia de alguns mecanismos de conservação e captura de nutrientes, por meio do estudo da água de chuva interceptada pelas copas em cada estádio, e também a dinâmica de produção e de estoque da serrapilheira. A partir da analise do ciclo de nutrientes, que determinam a fertilidade do solo, e da presença de espécies pioneiras, secundarias e climacicas pode-se verificar o desenvolvimento dos ciclos de regeneração florestal e sucessão ecológica. A analise do ciclo de nutrientes é importante na medida em que o autor adverte que a disponibilidade de nutrientes é um fator de natureza crítica para o funcionamento do ecossistema de floresta tropical: “a maioria dos solos das regiões tropicais encontra-se sob elevada intemperização, o que leva à dominância de colóides de muito baixa capacidade de troca de cátions, acarretando uma baixa fertilidade natural, acentuada pela perda constante de bases durante o seu processo de formação (RAMOS, 1991)” segundo Oliveira, a entrada de nutrientes nas florestas tropicais pode ser feito por 3 vias:

1) atmosférica – chuvas, orvalho, neblina..

2) biológica – ganhos e perdas de matéria viva

3) geológica – decomposição de rocha matriz

Em relação à perda de nutrientes, a água constitui o principal agente transportador de massa do sistema e os rios representam sua saída. No cultivo de produtos agrícolas, ocorre a perda de nutrientes através da incorporação nos alimentos cultivados, que não retornam aos solos pois são retirados para consumo em ambiente externo. A ausência da serrapilheira na roça contribui para a

Page 14: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

perda de fertilidade do solo. Segundo Oliveira, a serrapilheira possui um comportamento acumulador, onde todos os elementos bióticos e abióticos do ecossistema estão potencialmente representados, sendo sua composição química reflexo do sistema. O autor destaca a importância da serrapilheira nos ciclos nutricionais

“muitos autores consideram-na como o mais importante mecanismo para a ciclagem direta e para a captura de nutrientes. A maioria dos nutrientes não é lixiviado para o solo, mas transferido diretamente para as raízes localizadas no topo do solo e na camada da serrapilheira chamada “ciclagem direta”. Neste processo, as micorrizas (fungos que crescem entre as raízes e a serrapilheira) representam um papel destacado na transferência de nutrientes” Oliveira (1999)

Outro papel de destaque da serrapilheira é em relação à drenagem, ao estocar água da chuva, ela diminui a lixiviação dos nutrientes do solo (alem de estocar consequentemente os nutrientes da própria água da chuva). Contribui ainda para diminuir o escoamento superficial do tipo hortoniano (quando a água da chuva excede a capacidade de infiltração) por favorecer uma infiltração mais controlada. Alem de evitar a compactação e selagem (salpicar do solo com gotas, selando os poros) do solo, processos estes que diminuem a capacidade de infiltração da água. Sendo assim, a serrapilheira tem uma importante função de evitar, ou diminuir, processos erosivos, minimizando a perda de nutrientes.

Adams (2000) e Oliveira (1999) enxergam no ciclo de nutrientes a base da sustentabilidade da agricultura itinerante caiçara. No estudo de Oliveira, podemos encontrar resultados de analise cientifica comprovando a conservação dos nutrientes no sistema de manejo caiçara:

“Nas 3 áreas verificou-se a presença e atuação dos seguintes mecanismos de captura e conservação de nutrientes: a) rápida decomposição e liberação de nutrientes da serrapilheira; b) retranslocação de fósforo antes da abscisão das folhas; c) grande biomassa de raízes associadas à serrapilheira e ao topo do solo e d) eficiência na retirada de nutrientes da chuva pela copa das arvores.”

Adams explica as alterações químicas no ciclo de nutrientes com a queimada e o roçado, e sua posterior reorganização, com a sucessão ecológica resultante do pousio:

“A biomassa presente na floresta contem nutrientes minerais que são mobilizados durante a queima. O nitrogênio e o enxofre são voláteis e se perdem na fumaça, mas outros nutrientes permanecem disponíveis às plantas nas cinzas que se formam. A matéria orgânica do dolo é reduzida em aproximadamente 25%. As espécies herbáceas utilizadas nas culturas agrícolas possuem raízes curtas, que capturam os nutrientes das camadas superficiais. A queda na produção ocorre quando estes nutrientes são incorporados à biomassa (cultura) em formação, ou são lixiviados, perdidos por erosão superficial ou simplesmente tornam-se inacessíveis. O solo torna-se mais acido, conforme há um decréscimo nos nutrientes sob a forma de cátions e o alumínio torna-se solúvel na forma AL+3. Este íon é tóxico para as plantas, especialmente para aquelas utilizadas nos cultivos. Alem disso o fósforo, nutriente primordial, combina-se rapidamente com o alumínio em composto insolúveis, tornando-se indisponível às plantas cultivadas.” (Adams, 2000)

A autora comenta ainda que as espécies arbóreas nativas secundárias que vão se instalar após o abandono e formação de capoeira são menos sensíveis aos solos ácidos e ao alumínio solúvel, na medida em que as micorrizas de suas raízes possivelmente aproveita melhor os nutrientes desmobilizando o fósforo. Possibilitam ainda uma retirada de nutrientes de camadas mais profundas do solo devido suas raízes serem mais profundas. Concomitante ao restabelecimento da floresta, a biomassa incorpora progressivamente os nutrientes, de forma mais acelerada no inicio do processo. Oliveira observa que o desenvolvimento da estrutura de ciclagem formada por raízes finas e pela serrapilheira é extremamente rápida nas etapas iniciais do pousio, onde a massa de

Page 15: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

serrapilheira de uma capoeira de 3 ano equivale a da floresta de 150 anos. E ainda identifica a semelhança nas composições químicas, de fósforo, magnésio, potássio e sódio.y

O caráter migratório da agricultura caiçara é de extrema importância na conservação das propriedades de fertilidade do solo a longo prazo. O autor cita vantagens do sistema de pousio, base do manejo tradicional dos praianos dentre as quais destaco aquela relacionada ao ciclo de nutrientes: o sistema de pousio possibilita a formação da capoeira e a translocação dos nutrientes do solo à superfície, através da formação e decomposição da serrapilheira.

Seguindo Oliveira é a estrutura de ciclagem formada por raízes e serrapilheira que permite a recomposição do solo exaurido sem a adição de adubo. Adiciona ainda que é durante o período de pousio que a fauna edáfica se recompõe.

Através dos métodos de produção baseado no pousio, os caiçaras desenvolveram um sistema agrícola cuja sustentabilidade ecológica é evidenciada pela manutenção da produtividade ao longo do tempo e pela não utilização de insumos externos (Oliveira, 1999). Muitas vezes este pousio é acompanhado pelos agricultores, como retrata Adams (2000) “a observação do processo sucessional e das espécies que aí se instalam permite aos agricultores avaliar a fertilidade do solo da área abandonada e o numero de anos necessários de pousio.”, e em alguns casos, ainda há um aproveito alimentício de algumas espécies cultivadas que permanecem na capoeira, como a mandioca, o feijão guandu. Este método pode ser então avaliado não apenas como abandono de antigas roças, mas sim como formas de manejo ambiental.

De acordo com Oliveira, a entrada de espécies nos estágios iniciais, primeiros anos de pousio, é tipicamente por rebrota de tocos, já que durante o período de implementação da roça caiçara, estes são mantidos vivos e fisiologicamente atuantes, constituindo a fonte inicial de colonização do sítio. Ulh et al. (1988), lido em Oliveira (1999), verificaram que a rebrota a partir de tocos e estolões, em áreas de uso leve, é a principal fonte de entrada de espécies no processo de regeneração da área. Fato este não verificado no uso do solo associado à pastagem, e presença de gado, atividade esta que tem efeitos muito maiores e mais prolongados, dificultando o processo de sucessão. Cerca de 90% das espécies da área de 5 anos surgiram da rebrota, e não por recrutamento do banco de sementes do solo, levando o autor a concluir que este fator inicial interfere diretamente na composição da guilde das espécies pioneiras e colonizadoras. Sendo assim, a estrutura da vegetação que se desenvolve a partir da sucessão ecológica durante pousio reflete o manejo caiçara, na medida em que:

“Em um recorte temporal e espacial mais amplo, pode-se considerar a cultura caiçara responsável pela seleção de espécies e tipos ecológicos especializados na ocupação de espaços abertos, ou seja, pool de espécies pioneiras e secundarias iniciais disponíveis” Oliveira (1999)

Em relação à presença de espécies de grupos funcionais, pioneiras, secundarias iniciais e tardias e climáxicas, podemos verificar a partir da analise do Gráfico 1 , retirado de Oliveira (1999), que o retorno funcional e estrutural da floresta secundária à floresta climácica parece ser lento. Sob óticas do próprio autor, o incremento de espécies climácicas da área de 25 para a de 50 anos é baixo (de 4,2% para 6,3%, respectivamente), dando a impressão de que estas duas áreas permanecerão com a presente composição de grupos ecológicos por muito tempo.

Page 16: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Gráfico 1 ..........................................................................FONTE: Oliveira, 1999

Oliveira observou que o recrutamento de espécies climacicas nas áreas secundarias é baixo, devido em parte a estas áreas encontrarem-se afastadas de fontes de propágulos de mata climácica. Ocorre ao longo da historia ambiental uma transformação de áreas climácicas em secundarias, o que, para o autor, pode ter provocado a extinção de numerosas espécies endêmicas. Isso pode ter uma tendência de aumentar o tempo de permanência das florestas na situação de clímax antrópico, ou seja, florestas resultantes da co-evolução sistêmica. Os reduzidos enclaves de floresta primaria aparentemente não lograram direcionar a sucessão das áreas alteradas e podem ser descaracterizados de sua condição prístima (Oliveira, 1999).

Além de Oliveira, muitos autores, como Cristina Adams ressaltam o caráter sustentável e produtivo da forma de manejo baseado em pousio:

“Sabe-se, hoje em dia, que a agricultura itinerante praticada da forma tradicional é uma forma sustentável, que pode continuar indefinidamente nos solos pouco férteis encontrados sob a maioria das florestas úmidas, contanto que a capacidade de suporte da terra não seja excedida” e ainda “A rotação das terras ao invés das culturas impede, por exemplo, a propagação de pragas, doenças e plantas invasoras, características de um ambiente sempre úmido em que não há uma estação fria ou seca.” (ADAMS, 2000)

A autora adverte, no entanto, para os limites da agricultura itinerante, onde a capacidade de suporte do ambiente não tolera “mais do que 10 a 20 pessoas por Km². A sustentabilidade da agricultura itinerante se restringe a contextos de baixa densidade populacional e organização espacial das famílias baseadas na dispersão.

“Qualquer excesso na redução do período de pousio ou no aumento do tempo de plantio, situações de ocorrência provável quando há aumento populacional e, portanto, na demanda por terras, pode colocar este equilíbrio a perder (Altieri, 1989; Whitmore, 1990)” (ADAMS, 2000)

Outra característica de sustentabilidade da agricultura itinerante, e de pousio praticada pelos caiçaras é que eles poupam matas clímax, como retrata Adams (2000)“Agricultores itinerantes normalmente deixam trechos de floresta primaria intactos, de forma a manter espécies úteis e como habitat para os animais que utilizam para caça”. Outra constatação importante do estudo de Oliveira é que não foram identificadas voçorocas e outros processos erosivos nas áreas de estudo, o que evidencia que a cultura caiçara e suas atividades econômicas não deixam cicatrizes no solo.

Page 17: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Em suas conclusões, Oliveira pensa na roça caiçara como um sistema agrícola produtor de um tipo particular de paisagem florestal que mantêm:

a) sustentabilidade ecológica da exploração agrícola ao longo do tempo

b) processos erosivos minimizados tanto na fase de plantio como de pousio

c) mecanismos de captura e conservação de nutrientes ativos em estágios iniciais da sucessão ecológica

d) tratos de floresta em diferentes idades de regeneração e com numero mais reduzido de espécies

Retrata ainda o fator de resiliência deste sistema agrícola :

“Em uma escala de paisagem há de se destacar que o manejo feito pelos caiçaras parece ser responsável pelo grau de resiliência das formações recentes de capoeira, que apresentam como visto, capacidade de captura de nutrientes atmosféricos semelhantes à de formações climácicas.” Oliveira (1999)

CONTEXTUALIZAÇÃO ATUAL

As características culturais das comunidades caiçaras acima exposto dizem respeito aos seus modos de vida e manejo tradicionais. No entanto, o processo de reestruturação espacial e sócio-cultural pela qual a região da Juatinga passou, assim como a maioria das localidade caiçaras, fez com que grande parte desta cultura exista hoje apenas na memória, no que diz respeito aos seus elementos característicos e representantes. Lembrando que este processo se associa aos diversos fatores comentados no inicio desta exposição, como o aumento do acesso com a abertura de estradas, desencadeando processos de difusão cultural desigual, e substituição de valores e praticas tradicionais caiçaras, pelos padrões urbanos, associados a um modo de vida da sociedade branca ocidental industrial. Complementando a crise dos sistemas de manejo tradicional, surgem as políticas ambientais preservacionistas associadas aos órgãos governamentais ambientalistas.

Durante o trabalho de campo, foi percorrido à pé, através de trilhas, acompanhando a costa litorânea a maioria das praias ocupadas por comunidades caiçaras de toda a Reserva Ecológica da Juatinga. Cada uma apresenta características e graus de conservação ecológica e cultural distintas. Realizamos entrevistas e conversas com alguns dos moradores mais antigos de cada praia, envolvendo na conversa suas famílias, amigos vizinhos, moradores locais de todas as idades. As conversas envolviam questões diversas, em geral sobre costumes e modos de vida anteriores aos processos de reestruturação; as principais mudanças ocorridas e sentidas; atividades e costumes atuais, e as relações com as florestas e rios. As perguntas e a direção das conversas variavam para cada individuo, família ou grupo de moradores entrevistados, de modo a absorver as especificidades de cada situação. Cruzamos no caminho diversas praias pequenas inabitadas, ou com um morador apenas, as vezes caseiros de fazendas de veraneio, as vezes caiçaras tradicionais.

Algumas praias são acessíveis por barco na maior parte do tempo, outras, é preciso esperar o mar amansar totalmente, ficando quase sempre isoladas. A maioria não possui cais para o desembarque direto. Todas se conectam por trilhas de pedestres, ora acompanhando a costeira, ora cruzando vales por entre as matas. As trilhas são em geral intensamente utilizadas pelos moradores locais, onde os fluxos em geral se restringem Às praias vizinhas. Abaixo será exposto as observações gerais realizadas sobre as praias mais habitadas (dentre as visitadas) algumas de forma breve, outras mais aprofundadas, envolvendo tanto questões similares quanto distintas.

Page 18: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

SACO DE MAMANGUÁ

O saco de mamanguá, localizado próximo à vila de Paraty Mirim. Famoso por sua singularidade, é conhecido como um “fiorde tropical”, por ser um braço de mar cercado por morros florestados e escarpas rochosas, e também como reduto tradicional caiçara. Suas águas mansas caracterizam-no enquanto berço marinho, sendo local de alta visita de fauna aquática, e ambiente de reprodução. Em seu fundo desembocam diversos rios, formando ambiente de manguezal. Apesar de ambas as costas possuírem diversas praias habitadas por comunidades caiçaras distintas, ele será analisado de forma unificada. Foram visitadas 4 praias do saco, uma na margem direita, a praia grande do mamanguá, outra no fundo, a praia da escola, e duas na margem esquerda, a praia do cruzeiro, onde há muitos moradores e uma associação de moradores, e a praia do engenho.

O Saco de Mamanguá era conhecido pela sua produção de aguardente, farinha de mandioca e pequenas criações de animais domésticos. Essa produção era embarcada em canoas e vendida em Angra dos Reis, Mangaratiba, e destes locais eram trazidas mercadorias (café, banha, carne seca) para vender na região. As relações de troca muitas vezes não envolviam dinheiro. Haviam muitas festas, de santos, onde haviam uma diversidade de canções e danças, como a do tamanco, do caranguejo, a ciranda, todas tradicionais da cultura caiçara.

Processos paralelos, das ultimas décadas, descaracterizou Mamanguá enquanto reduto tradicional caiçara e berço marinho. O Saco passou, cada vez mais a ser visitado por grandes embarcações de pesca artesanal, que realizavam o arrastão, técnica que arrasta toda a fauna marinha com redes, causando fortes impactos ambientais. Ao diminuir drasticamente a os recursos pesqueiros locais, degradando o Saco enquanto habitat, inviabilizando ainda a regeneração da vida, a pesca industrial insustentável acabou com a pesca tradicional, realizada pelos caiçaras por meio de canoas, de forma controlada.

A institucionalização do espaço, com a chegada da Reserva Ecológica, em 1992, criou uma serie de leis e restrições, como a proibição de usos de recursos naturais locais, e das atividades agrícolas. As roças se extinguiram, e atualmente não há mais produção agrícola, salva raras exceções, e pequenos cultivos de hortaliças e frutíferas no quintal. Os moradores entrevistados relatavam a repressão atual do IEF (Instituto Estadual da Floresta), órgão governamental ambiental de maior atuação na Reserva, impossibilitando-os de plantarem e roçarem. A alimentação que era baseada em aipim, batata doce,melancia, laranja, pamonha, produtos da terra em geral, atualmente é suprida através da compra de produtos industrializados em Paraty, pão, biscoito, maçarão, enlatados. A produção de lixo aumentou, e este tende a se acumular pelas dificuldades de transporte do local. Os moradores confessam a preferência pela alimentação do passado:

“Antes tinha de tudo aqui, nas matas, no mar, hoje não tem nada. Hoje agente come comida congelada que faz mal, antes não era assim não, a comida era feita na panela de barro e era muito mais gostosa.” (entrevista com a professora da escola do Saco de Mamanguá, outubro de 2005)

Alguns moradores relataram que o IEF permite exceções nas áreas desmatadas, podendo aí implementarem suas roças. Porém falavam também que estas terras já estavam gastas e inférteis, sendo necessário roçar em áreas de floresta mais desenvolvidas a fim de obter bons resultados. Estas informações são apenas relatos, e associam-se apenas à parte dos moradores, pois outros dizem que tudo que se planta nasce, mas é preciso dedicação. Há grande discordância nas opiniões sobre a produtividade das terras, assunto que será mais trabalhado adiante.

Esses dois fatores contribuíram para mudar intensamente as relações de produção no Saco de Mamanguá. O modo de produção caiçara sustentável baseado na agricultura familiar para consumo e auto-suficiência, foi substituído pela valorização e busca do trabalho assalariado. Com a falta de peixe os moradores abandonaram as atividades de pesca autônoma, buscando empregos relacionados com a vida ou os fluxos urbanos. As maiores possibilidades de acesso possibilitaram o aumento do turismo, desencadeando um processo de

Page 19: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

construção de casas de veraneios. Muitos caiçaras venderam suas terras à beira-mar para Indivíduos e famílias de alto poder aquisitivo, na maioria dos casos tornando-se caseiros de seus novos patrões, que ali construíram grandes mansões de férias. Muitos moradores são À favor do turismo, a medida que este proporciona dinheiro e emprego local, apesar de confessarem preferirem seus modos de vida antigos, baseados na pesca e agricultura autônomos.

Podemos verificar dois movimentos, as antigas residências caiçaras na praia à beira do mar foram substituídas por casas de veraneio, e transferidas para cima das encostas, como periferia das mansões. Outro movimento foi o Êxodo rural, ao vender suas terras as famílias caiçaras migravam para Paraty, devido às dificuldades de transporte com as novas necessidades não supridas localmente, sentida principalmente pelas famílias de baixa renda.

De acordo com alguns moradores, um dos principais problemas enfrentado é relacionada ao transporte. O acesso se restringe a viagens de barco, e em alguns casos, trilhas demoradas. O isolamento, apesar de ter diminuído parcialmente, piorou com os novos modos de vida, relacionados com o aumento de relações e dependência com a cidade, proporcionando maiores necessidades de condução. Antigamente, com a produção alimentícia e autosustentabilidade, os problemas de isolamento eram outros, que atualmente já estão amenizados, como saúde e educação, com o auxilio das conduções barqueiras disponibilizadas pela prefeitura, para a escola por exemplo.

Na praia visitada no fundo do Saco há uma escola pólo, multiseriada que vai da 1ª à 4ª série. As crianças das diversas praias do “fiorde” estudam cotidianamente, através de transporte de barco financiado pela prefeitura. Há uma horta na escola, que na época da visita estava parcialmente abandonada por falta de adubo. Alem da horta, que possuía pimenta, boldo, abacaxi, abóbora, haviam frutíferas no quintal da escola, como jaca e banana. As crianças porém não participam do trabalho com a horta.

O artesanato, das antiguidades até os dias de hoje é praticado no Saco de Mamanguá. Uma das especialidades, famosas localmente, são os barquinhos de madeira, produzidos manualmente a partir da Caxieta, uma árvore de mangue. O uso da caxieta é permitido pelo IBAMA, apesar de ser retirado dos mangues do fundo do Saco, pois a regeneração é rápida, ao cortar um individuo nascem 5 ou 6 novos.

Alguns moradores idosos relataram que as matas locais, apesar de bem conhecidas pelos antigos, são cada vez menos visitadas, pois o IEF não permite que se utilize nenhum recurso natural local. Os jovens assim, vão perdendo afetividade com a floresta, a medida que as relações vão diminuindo de intensidade e variedade. Com a extinção das roças, os jovens não aprendem a plantar. Os saberes tácitos relacionados à cultura caiçara não estão contidos nos ensinamentos escolares, baseados em padrões de ensino urbanos. Com isso, a circulação dos conhecimentos tradicionais é parcialmente interrompido, os fluxos de informação caiçara diminuem, elementos e saberes culturais podem estar ameaçados de extinção.

Adentrando de barco o Saco do Mamanguá podemos perceber da base de suas encostas, até o meio mais ou menos (variando bastante) dominadas por clareiras, antigos roçados tomados por samambaias e outras plantas pioneiras, e muitas áreas de capoeira. Há presença de muitas palmeiras. Nas praias, os casebres caiçaras se anulam diante dos chamativos resorts de luxo, com seus jardins de grama e paisagismo urbano.

PRAIA GRANDE DA CAJAÍBA

A Praia Grande possui uma beleza notório, com suas águas calmas azul cristalina. Cortada no meio pela desembocadura de um rio, que forma um lago de água espelhada , a praia é rodada por montanhas, que resguardam cachoeiras e florestas preservadas. Enfrenta há algumas décadas um problema intenso de grilagem de terras, associado à um movimento de grilagem que abrange diversas praias da Reserva da Juatinga. Ouvimos, de diversos moradores antigos a historia que envolve a grilagem.

O primeiro grileiro foi o Gibrail, que após atuar na praia do Sono, foi grilando e comprando praia em praia na região, arrumando conflito com os moradores caiçaras locais: Antigos,

Page 20: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Antiguinhos, Jaguaíba, Mamanguá, Ilha do Algodão, Praia Vermelha, Boa Vista e Olaria. Ele levava policiais aos locais ameaçando fisicamente e verbalmente os moradores.Através de promessas e mentiras pediam assinaturas em documentos, dos caiçaras que eram em sua maioria analfabetos. Na praia Grande a situação envolveu muitos conflitos entre o grileiro, que chegou a tentar criar búfalos a fim de marcar propriedade, e os caiçaras que relatam já terem suas roças destruídas. Após diversos fatos ocorridos, a tensão foi acalmada, e por fim o Gibrail morreu, deixando porém herdeiros, o Cristiano, grileiro igual o avô.

Ao longo dos conflitos os moradores relataram casos de destruição de roças, falsificação de documentos, e arrecadação desleal de assinaturas. De 23 famílias moradoras, a alguns anos atrás, restaram apenas 3, todas ameaçadas pelo Grileiro neto Cristiano Gibrail. Estes problemas ainda são enfrentados pelos remanescentes. Neste ano tiveram seus ranchos beira-mar derrubados por funcionários do IEF, uniformizados, à ordens de superiores. As praticas de grilagem envolvem ações do órgão governamental, e são protegidas pelo uniforme, autoritarismo e ideologias preservacionistas do IEF. Com a repressão do IEF quanto À construção de casas pau-a-pique, roças e utilização dos recursos naturais da floresta, junto com as ameaças dos grileiros, muitos caiçaras aceitaram vender suas terras e migrarem para a cidade de Paraty, contribuindo com as parcelas regionais de êxodo rural. Na cidade sofrem porem com a falta de adaptação, modos de vida, dinâmicas e relações totalmente distintas das de costume, e tentam voltar para a praia grande. Suas casas foram porem destruídas pelo IEF e pelo grileiro, para evitar o movimento de retorno, englobando-se à pobreza urbana e suas dificuldades.

Alem das casas dos três complexos familiares, estas por sua vez escondidas no interior da vegetação, há uma fazenda gramada, com uma casa grande na beira da praia, visível do mar, pertencente à Cristiano, com placas alertando sobre a PROPRIEDADE PRIVADA. Há esforços constantes em evitar o turismo na praia, por parte de Cristiano, que tenta impedir barcos de desembarcarem turistas na areia. Há placas locais do IEF advertendo para a proibição de acampar na Praia Grande. Estas ações prejudicam os caiçaras, que geram renda a partir de serviços aos turistas como camping e venda de alimentos (bolinho de aipim, peixe preparado, bebidas) e artesanato, como tapetes e cestos. Essas atividades econômicas são de grande relevância na medida em que o isolamento dificulta ganhos financeiros, necessários para suprir bens básicos não produzidos localmente, como combustível, vestimentas, rádios, pilhas.

Todas as 3 famílias que permaneceram na praia praticam agricultura, produzem farinha de mandioca e pescam ou seja, fundamentam suas produções em atividades agrícolas para consumo familiar, mantendo modos de vida tradicional caiçara. Os caiçaras relatam a diferença entre a pesca artesanal praticada por eles e a de barco de pesca comercial. As malhas da rede dos moradores possuem aberturas grandes “para miúdo fugir”, a fim de permitir a passagem de peixes pequenos e filhotes, garantindo regeneração e alimentação, portanto preservação dos peixes maiores. Os barcos maiores possuem redes de aberturas pequenas, capturando estrela do mar, peixe “miúdo”, camarão, e diversos outros elementos da fauna aquática, fundamental para a regeneração do ecossistema. Muitos destes elementos nem chegam a ser aproveitados ou de interesse comercial, sendo desperdiçados, contribuindo ainda mais para a insustentabilidade deste tipo de pesca.

Todas desejam continuar no local. A escola, foi desativada com a diminuição considerável do numero de crianças. Jovens e crianças que permaneceram tornaram-se importantes elementos de reprodução cultural, na medida em que seus aprendizados envolvem técnicas, manejo e conhecimentos tradicionais, transmitidos tacitamente pelos antigos.

CALHÉUS

Olhando a praia do alto, a ocupação humana é bem grande comparada com sua pequena extensão. A pesca é a principal atividade econômica atual, havendo ainda outras como na área de construção, e empregos assalariados relacionados à Paraty. Antigamente os moradores praticavam as tradicionais atividades de produção caiçara, múltipla, complementadoras e sustentáveis. Hoje porem, uma parcela muito pequena de famílias ainda realizam plantações, provavelmente menos de 10%, segundo relatos. O numero total de moradores não é preciso, mas gira em torno de 50 famílias. Os motivos para o abandono da agricultura são os diversos citados anteriormente. A comida é em sua grande maioria comprada

Page 21: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

em Paraty. O consumo de legumes diminuiu consideravelmente devido à impossibilidade de conservá-los. O de frutas se restringe às poucas arvores frutíferas no quintal.

Alguns moradores diziam que as terras mais próximas “não davam mais”, possuíam pouca produtividade devido ao uso intensivo. Seria, segundo estes, preciso roçar em matas mais desenvolvidas para obter bons resultados. Levando em consideração que a população tem crescido de forma intensa nos últimos anos, talvez podemos relacionar esta insustentabilidade com limites de capacidade de carga locais do ambiente. Como foi proposto nos estudos teóricos, a agricultura itinerante possui limites demográficos, e sua eficácia se restringe à capacidade de resiliência do (eco)sistema, que por sua vez está condicionado à intensidade de perturbações.

POUSO

A situação na praia do pouso se assemelha à de Calhéus. O crescimento populacional nesta praia é porém maior, e mais perigoso. Há cerca de 100 famílias, dentre as quais um numero aproximado de 10 ainda praticam as tradicionais atividades agrícolas. Destes, menos ainda produzem farinha de mandioca manual. Entre os diversos motivos das mudanças, um fator que parece ter sido bem determinante, pelo menos ativando (iniciando) e intensificando o processo, é a repressão do IEF, assim como em Calhéus. As principais atividades comerciais estão ligadas à trabalho assalariado, sendo a área de construção bem significativa. A maioria dos jovens estão se engajando na pesca, e trabalhando “de bico”, como ajudante de pedreiro, carregando material, como caseiros e ajudantes de moradores de Paraty e São Paulo (este último principalmente). A construção se sustenta com as taxas de crescimento populacional da praia. Novas residências são construídas não apenas para novas famílias que se formam internamente, a partir de jovens caiçaras, mas principalmente com novos habitantes externos, muitos de alto poder aquisitivo provindos do meio urbano. Casas de veraneio preenchem cada vez mais a paisagem, descaracterizando de certa forma a tradicional ocupação caiçara, alterando elementos da organização espacial, como as relações de trabalho acima mencionadas.

Apesar de poucos praticarem a tradicional agricultura para consumo familiar auto-sustentável, muitas residências possuem hortas ou pequenas roças de quintal, além de frutíferas, a fim de suprir parcialmente as necessidades alimentícias.

MARTINS DE SÁ

A praia de Martins de Sá possui apenas uma família morando atualmente. Apesar de ainda praticar agricultura a principal fonte de renda da família é o turismo. A praia é amplamente conhecida pelo meio urbano, principalmente entre jovens que realizam visitas em feriados e férias. Quando o mar está bem manso, a praia é acessível por barco, não possuindo cais. Mas basta o mar crescer um pouco que o acesso se restringe à uma trilha de 1 hora e meia a partir da praia do pouso. Reportagens em jornais e revistas tem sido constantes, incentivando ainda mais a vinda de turistas ao local. Apesar de manter sua calma habitual na maior parte do ano, nas datas relacionadas à feriados (principalmente no carnaval) a praia as vezes sofre problemas com a presença massiva se turistas, excedendo a capacidade de carga da praia (que foi calculada pelo IEF como sendo de 100 campistas – barracas). Muitos visitantes não possuem uma consciência ecológica adequada, causando danos, apesar de leves até agora, como a poluição.

O IEF e o IBAMA não são motivos de conflitos e desentendimento com o Manoel, conhecido como Seu Maneco, o dono do camping e morador mais antigo da Praia, junto com sua mãe, Dona Capita, de 100 anos. Segundo Seu Maneco, estes órgão auxiliam em feriados, ajudando a manter a conservação da paisagem e da tranqüilidade na presença dos turistas. Houveram intensos problemas de grilagem de terras no passado, porem estes já foram resolvidos e Seu Maneco conta com a ajuda de jovens advogados que se sensibilizaram com o caso, a fim de tentar conquistar documentos de posse de suas terras, garantindo a segurança da fixação de seus filhos que já constroem famílias próprias.

Page 22: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Seu Maneco acredita que a grilagem de terras está dominando as praias por que os caiçaras se deslumbraram com o dinheiro oferecido por grileiros, e não são alertados das dificuldades e da vida na cidade, totalmente diferente das dinâmicas rurais com as quais eles estão acostumados. Diz que os grileiros através de mentiras e fofocas colocaram os caiçaras contra os próprios caiçaras, criando ambiente de intriga e desunião, manipulando-os de forma mais fácil.

Seu Maneco acha que houveram melhoras e pioras com a criação da Reserva, mas para Martins de Sá especificamente trouxe benefícios, pois as florestas estão mais preservadas de agentes externos, como caçadores de fora, monocultores, entre outros. Diz que os caiçaras não sabem se devem ou não trabalhar na roça, por causa do IEF. Acredita que os jovens não gostam de trabalho na roça e ferramentas, são preguiçosos e só querem saber de pescar agora, apesar do “peixe ter acabado”. Os netos não freqüentam escola com a dificuldade de acesso, e também não estão aprendendo a plantar e fazer artesanato (tapetes, balaios, tapitis), apenas a pescar. Elas aprendem ainda os segredos das matas, caminhando nelas com os mais velhos, que ensinam seus saberes tradicionais através da oralidade e experiência.

A família possui uma roça com mandioca misturado com feijão e abóbora, muitas culturas no quintal, com predominância de abacaxi e arvores frutíferas, além de plantar bananeiras dentro da mata. Suas atividades agrícolas seguem princípios agroecológicos.

Ele relata que a roça dos caiçaras é sustentável por ser “miúda”, diz que “quando dá bem (as plantações), fazemos roça de novo, na mesma clareira, quando não dá, deixamos a natureza recuperar e abrimos outra roça na capoeira”. Ele diz conhecer bem as matas e suas estruturas: “do pé da serra para cima tem mata virgem, daqui para baixo é mata de 200 anos, que já foi retirada e está se renovando”.

Manoel relatou a diminuição das árvores frutíferas de alguns anos para cá. Diz que tem encontrado muita caça morta, por falta de alimento. Ele acredita que a poluição dos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo chega a afetar as florestas da Reserva, através da atmosfera e das águas. Diz que “a natureza é muito frágil”.

CAIRUÇU DAS PEDRAS

Cairuçu das Pedras é o lugar mais isolado da Reserva da Juatinga, possui uma praia bem pequena e cheia de pedras entre a areia. O acesso à barco é dependente das condições marítimas, e é por segurança restrita. O acesso às praias vizinhas é uma caminhada de 2 a 3 horas para Ponta Negra, e de lá mais 2 ou 3 horas até laranjeiras, de onde sai ônibus regularmente para Paraty, ou então uma caminhada de 2 a 3 horas para o Pouso, onde o transporte de barco é mais facilitado pelas condições calmas da praia. As 4 famílias que moram em Cairuçu possuem suas casas e roças nas encostas de um vale inclinado, coberto por florestas secundárias e em alguns trechos restritos e distantes, primárias. Há 40 anos atrás haviam muitas famílias residentes, por volta de 20, porém a grande dificuldade de acesso fez com que os jovens desejassem migrarem À outros locais, a cidade de Paraty por exemplo, e os idosos que permaneceram morreram a maioria. Nestes tempos, as únicas necessidades compradas na cidade eram: querosene, sal, sabão e roupa. O resto era produzido na roça, e através de recursos locais da floresta e do mar. Atualmente, todas as famílias fazem roça, porém compram parte dos alimentos consumidos.

As pessoas de Cairuçu visitam muito as matas, não apenas as trilhas mas como também o interior, estabelecendo relações de vivencia e consumo material com florestas primarias e secundarias. Usam plantas medicinais das matas, e os filhos ao crescerem, adquiram estes saberes tradicionais.

Entrevistamos a família do Seu Aplígio, que faz uma roça exclusiva de mandioca, para a produção semanal de farinha, plantando outras culturas “consorciadas”, intercaladas, como feijão, milho, abóbora.planta ainda café em áreas de sombra, dentro da mata, e arvores frutíferas no quintal, que contêm ainda uma horta com temperos, verduras e plantas medicinais.

Seu Aplígio acredita que antigamente os caiçaras eram tanto pescadores quanto agricultores e artesões, mas hoje em dia são cada vez mais pescadores, abandonando gradativamente as atividades de agricultura e artesanato. Em acredita que isto se deve em parte à postura preservacionista dos órgãos ambientais do governo, como também por outros fatores, como as

Page 23: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

dificuldades de transporte e as durezas do trabalho árduo debaixo do sol. Os filhos não estão se engajando na roça como de costume antigo, seus interesses se voltam para a pesca, que está comprometida na região com a falta de peixe. Ele lamenta o abandono da roça pela comida industrial: “Acho que plantar para comer é mais gostoso do que viver do comprado, a comida da cidade tem químicas e faz mal.”. o artesanato, alguns ainda fazem, mas diz ele que não compensa fazer para vender. A família do Seu Aplígio gera rendas financeiras apenas a partir da pesca, vendida em Paraty.

Um outro morador entrevistado, Giovano, de idade avançada, relatou ocasionalmente jogar sementes nas roças abandonadas para incentivar a transformação em capoeira, aproveitando ainda alguns recursos alimentares. Ele utiliza muito esse procedimento com feijão guandu, para recuperar o solo. Mostrou uma área que ele usa há 15 anos como roçado, aplicando sistema de pousio de 2 anos, intercalados com 1 ano de roça. Os muitos anos de roça lhe trouxeram ampla experiência de manejo do ambiente local. As longas caminhadas nas matas lhe proporcionaram muito conhecimento sobre arvores e outras plantas do ecossistema local. Falou de elementos da fauna e da flora presentes no lugar, e da diminuição dos indivíduos de certas espécies percebidos nos últimos anos. Segundo Giovano, a mata sempre foi muito rica em frutas nativas, como coquinhos, batinga, bacubiça, mas a quantidade de frutos que nascem nos pés vem diminuindo gradativamente, acreditando que antigamente a fartura natural de frutas era maior. Ele diz que apesar do forte sentimento de pertencimento ao lugar, “esse lugar não é meu, é do governo, pelo menos é o que nos dizem”.

Em relação ao IEF e o IBAMA há controversa de opiniões, alguns moradores falam que eles “imprensam os caiçaras”, não permite a produção de roças, o uso de palha, cipó e madeira, e outros relatam que estes órgão não incomodam os moradores de Cairuçu. Giovani relatou que o IEF e o IBAMA não reclamam dos usos de madeira para fabricar canoas e outros utensílios contanto que não seja para vender, apenas para uso pessoal, diz que o IBAMA considera “vender contrabando”.

Um outro morador entrevistado, Francino, é especialista em produção manual de balaios (cestas). A exclusividade de sua profissão, sendo o único à vender esses cestos tradicionais na região, cujos modelos ele mesmo criou, possibilita uma ampla procura pelas praias da reserva, e ainda pela cidade de Paraty por seus famosos balaios. A demanda alta o mantém constantemente ocupado, com pouco tempo para a roça que complementa sua alimentação, junto com produtos comprados. A dificuldade de transporte porém prejudica suas vendas, ele carrega por trilhas de 2 ou mais horas um único balaio na mão ou nas costas. Ele aprendeu com os pais a construir os balaios, porém não possuindo filhos, nunca ensinou à ninguém. Antigamente muito faziam balaios, hoje só sobrou um.

Francino explicou a importância do conhecimento da técnica associada à retirada dos cipós, matéria prima dos cestos, da floresta. Ele utiliza um cipó conhecido localmente como Tinopeba. As vezes é preciso procurar em matas distantes, havendo locais específicos de coleta, amplamente conhecido por Francino. Relatou que o cipó se regenera em curtos períodos de tempo, porém adverte que se a pessoa não souber retirar, ele pode entrar em extinção. Ele diz que nunca se pode cortar todos os cipós, se houver 10 unidades, ele corta 8, para que os 2 que sobrarem “procriarem”, serão os responsáveis pela regeneração da população local. É preciso ainda identificar o cipó “mãe”, ou seja, aquele que será preservado, a partir do qual outros nascem. Relatou que o cipó Tinopeba é encontrado nas florestas de toda a região, porem em concentrações e quantidades diferentes. Ele expôs seu sentimento pela floresta, e sua consciência de que se a floresta acabar, irá acabar também com seu artesanato, e fonte de vida. Mostrou ainda conhecimento sobre dinâmicas da auto-organização, interdependência e companheirismo do ecossistema, ao explicar como a Paca é importante na reprodução do Inaiá, pois enterra seus cocos, espalhando indivíduos pelas matas, contribuindo na regeneração da floresta. Sua visão sistêmica reflete compreensão do padrão de ligações em rede dos elementos da floresta, e da necessidade de se preservar os distintos elementos e suas relações.

O lugar é visitado por turistas todo feriado, e as vezes em outras datas. Em geral cruzam Cairuçu de passagem, ao realizarem a travessia por trilha da praia do Sono até Martin de Sá. Mas muitos passam uma noite ou mais no local. Os visitantes são em geral Estrangeiros e Paulistas, com alto poder aquisitivo.

Page 24: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

PONTA NEGRA

Ponta Negra possui cerca de 40 famílias morando atualmente, as ocupações acompanham, a partir da praia, o rio que se encaixa no vale e sobe as encostas pouco inclinadas. O acesso ocorre por barco de maneira relativamente fácil, ou então por trilha de mais ou menos uma hora e meia até a praia do sono, e de lá mais 40 minutos até laranjeiras.poucas famílias ainda praticam agricultura. Enquanto às residências se encontram à jusante das encostas, no fundo do vale, as roças localizam-se mais à montante, dentro da mata.

Ponta Negra sofreu intensas mudanças nas últimas décadas. Somado às causas gerais descritas ao longo do trabalho, o turismo teve um importante papel nas transformações que ocorreram nesta praia especificamente. Enxergando possibilidades de obtenção rápida de recursos financeiros, com o aumento de visitantes com alto poder aquisitivo, estrangeiros principalmente, a população focalizou na atividade turística deixando outras atividades em planos secundários. Criou-se uma associação de moradores à fim de viabilizar infra-estrutura para a recepção dos turistas, como trilhas e pontes de concreto, apenas nos locais de interesse turístico, e não para atender às dificuldades da população local. Com isso, um ambiente de conflitos se estabeleceu na praia, à medida que a associação de moradores não reflete interesses coletivos e não proporciona benefícios para a comunidade como um todo, apenas para moradores ligados ao turismo, que por sua vez manipulam a associação. A alteração da paisagem é perceptível, assim como a descaracterização de um lugar caiçara, que absorve padrões estéticos e estruturais externos, para receber os turistas, que segundo alguns próprios moradores, visitam a praia para entrar em contato com cultura e ecologia local, e não para observar padrões externos.

Antigamente todos os moradores praticavam agricultura, a diversidade nas roças de cada um era grande. Atualmente, são poucas famílias que ainda mantêm seus roçados. Segundo moradores locais, o povo não quer mais saber de roçar, apenas de pescar, e a fartura antiga de peixes se acabou.

Seu Domingos, um morador antigo e idosos da Ponta Negra acredita que a criação da reserva trouxe problemas mas foi benéfico pois proíbe o desmatamento. Muitos moradores relataram a diminuição do volume hídrico dos rios, havendo dois principais que cortam a comunidade. Suas margens na área residencial são ocupadas por construções. Diversos moradores relataram que muitos indivíduos locais abrem clareira para roçado perto das margens dos canais hídricos e de áreas de cabeceiras de drenagem. A associação entre preservação da cobertura vegetal em áreas de convergência de drenagem e o potencial hídrico dos rios mostra uma consciência ecológica entre alguns caiçaras da Praia Grande: “É preciso saber fazer roça e saber desmatar, de forma a não afetar a nascente do rio”. Porém são contra a proibição dos roçados, argumentando que a população tem que se alimentar, e produzir seu sustento: “se plantar, o camarada vai ter o que comer, mas é preciso roçar de forma consciente da mata e das águas, pois o rio secou de uns anos pra cá.”

Apesar de haverem muitos moradores conscientes ecologicamente, há muitos outros que praticam atividades degradantes ao meio ambiente. Foram relatados casos onde moradores provocam incêndios nas encostas para “limpar a área” sem objetivos agrícolas, produtivos ou estruturais: “o cara não planta nada e todo ano ta botando fogo”. Segundo relatos de um caiçara que já trabalhou para o IEF, o órgão reclamou de indivíduos que utilizavam recursos naturais, como o açaí, para alimentação própria, enquanto os fiscais ambientais nada fazem a respeito de pessoas que sobem todo dia as matas com machado no ombro. Muitos relataram a grande quantidade de madeira que está sendo retirada da floresta, e associam o desmatamento com o turismo, pois as madeiras esteticamente apreciadas são retiradas demasiadamente para construções visando lucros com turismo. Apesar da população não estar aumentando significativamente, a pressão sobre os recursos naturais estão excedendo os limites do ecossistema com a busca de maiores lucros com o turismo, através de construções de “luxo”, descaracterizando residências caiçaras localmente adaptadas à sustentabilidade ecológica e cultural local.

Os moradores reclamam que os órgãos governamentais, após criarem a reserva não visitaram a praia da Ponta Negra para esclarecer a institucionalização do espaço, suas causas e conseqüências, explicar as novas normas estabelecidas, e a importância do respeito às leis ambientais. Os representantes ambientais apenas reprimem aqueles que não cumprem a legislação,

Page 25: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

dizendo apenas que não pode desmatar, sem esclarecer o conteúdo das normas, e as dinâmicas das restrições ambientais.

PRAIA DO SONO

A praia do Sono é a praia de mais fácil acesso por vias terrestres, pois está localizada à 40 minutos por trilha de Laranjeiras, onde há ônibus circulando constantemente à Paraty. A praia possui cerca de 80 famílias, e 450 moradores. Com exceção do Saco de Mamanguá, cujas praias já estão ocupadas por resorts, a Praia do Sono é a praia mais afetada pelas atividades turísticas, inclusive mais que a Ponta Negra. O turismo incentivou o desenvolvimento de um comercio local, praticamente não encontrado em outras praias. Pequenos mercearias locais, com produtos de necessidades básicas e alimentos não perecíveis, restaurantes, bares, campings e novas pousadas tornaram-se o ideal de geração de renda dos caiçaras, associado com o sonho de prosperidade a partir do aumento da visitação turística. A minoria que trabalha na roça parece ser proporcionalmente menor que nas outras praias. As pessoas relatam que a roça acabou devido ao IBAMA e IEF. Dizem que o IBAMA prende quem roçar, e sentem falta da comida plantada. Podemos identificar diversas causas paralelas do abandono da roça, citadas nos casos das praias anteriores e na primeira parte do trabalho, estando o turismo provavelmente entre uma das mais determinantes. Quase todo mundo trabalha direta ou indiretamente com o turismo atualmente. Muitos trabalham ainda como empregados de obras em laranjeiras.

Os moradores relatam que antigamente toda a região da costeira era lavoura. Contam inclusive que os moradores do município de Paraty eram dispensados do exército, pois eram “o povo da lavoura”, garantindo o abastecimento agrícola. A praia sofreu intensos conflitos de grilagem de terras com o Gibrail no passado, mas atualmente nenhum morador teme a remoção. A briga parece ter chegado ao fim, ao ser transferida para o meio jurídico, através de advogado. O Juiz, relatam, proclamou que as terras são do estado, por estarem inseridas dentro de uma Área de Proteção Ambiental, a APA Cairuçu.

Observações e entrevistas no trabalho de campo, sugeriram que os jovens, em sua grande maioria, não possuíam pretensões nenhumas de aprender agricultura, intencionavam trabalhar com pesca e turismo. Muitos que já haviam terminado os estudos localmente oferecidos (a escola vai até 4ª série) e passavam o dia praticando atividades de lazer, ou sem nada fazer, eventualmente ajudando os pais com suas atividades de turismo e pesca, a ultima muitas vezes voltada para demandas da primeira. Por toda a costeira a grande maioria dos jovens não aprendem o conhecimento dos avôs e pais de fabricarem balaios, cestos e tapitis, dentre outros artesanatos caiçaras, porém é somente na Praia do Sono que estes não adquirem sequer o conhecimento da produção de redes de pesca, apesar de muitos visarem a profissão de pescador. È unânime, por sua vez, que a pesca está ficando cada ano mais fraca.

A comida consumida na praia é quase toda comprada, tanto localmente, quanto em laranjeiras quanto em Paraty, sendo a preferência pelo centro urbano pelos preços menores. Nestes pequenos mercados, os raros legumes vendidos possuem origem externas e de variedade e qualidade muito baixa. Árvores frutíferas são comuns em toda a praia e muitas residências. Hortas de quintais são menos raras que roças. Edson, um jovem de uma família onde todos trabalham na roça, além de possuírem um camping, relata que o IBAMA implica apenas com quem desmata florestas virgens e secundarias para plantar, permitindo o cultivo em capoeiras, que dominam as áreas planas. Ele incentiva a agricultura local “tanta terra pra plantar, e vamos comprar comida?”

Há diversos moradores que apesar de trabalharem com o turismo, condenam a atitude de alguns visitantes: “a praia é para caiçara morar, mas o turista tá chegando nas praias e quer levantar prédio para morar, compra terra de pobre por mixaria e caiçara vai embora e sobe hotel 5 estrelas para turista”, opina Seu Antônio, caiçara antigo do Sono, temendo que ocorra com sua praia o mesmo processo que transformou Trindade. A praia de Trindade, próxima à laranjeiras, porém fora da reserva da Juatinga, sofreu uma forte descaracterização com a chegada da estrada, do turismo e da grilagem de terras. Atualmente os caiçaras trabalham como serventes de bares e pousadas onde os donos e clientes são externos, provindos em geral da cidade de centros urbanos como São Paulo, com alto poder aquisitivo. Suas antigas residências beira-mar foram substituídas por comércios e transferidas encosta acima.

Page 26: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

Há atualmente uma proposta, que provavelmente será concretizada, de abrir uma estrada até a praia do Sono, permitindo acesso de luz e automóveis. A opinião dos moradores é diversa, sendo a maioria à favor. A professora por exemplo acha imprescindível haver luz e estrada, para melhorar a condição do ensino, a circulação de informação e o atendimento às questões de saúde. Sua tia porém, de idade próxima, é contra, pois acha que as mudanças irão trazer conseqüências negativas ao local, sofrendo processo de transformação parecido ao caso de Trindade, onde as residências caiçaras são substituídas por casas de veraneio e pousadas. Ela teme a superlotação de visitante e moradores, excedendo a capacidade do local de manter uma qualidade ambiental. Já se observam casas de veraneios e pequenas pousadas associadas à indivíduos externos de alto poder aquisitivo, que continuam a morar nos centros urbanos. No entanto, ambas concordam que a questão das mudanças irá depender das atitudes, ações e mobilizações dos próprios moradores, de conduzirem uma transformação consciente, ecológica e socialmente sustentáveis.

Há uma associação de moradores, onde a participação é ampla. São discutidos diversas questões, e a venda de terras, além de ser ilegal é condenada, apesar de atualmente haverem caiçaras vendendo suas terras e migrando para a cidade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE AS MUDANÇAS NOS MODOS DE VIDA DAS COMUNIDADES DA RESERVA DA JUATINGA

Todas as famílias que trabalhavam na roça praticavam agricultura de coivara (itinerante) para a produção de mandioca (para a farinha em geral), utilizando o sistema de queima, roçado e posterior pousio, deixando a capoeira recuperar naturalmente o solo. Algumas famílias utilizavam porém áreas permanentes de plantio, fixas no espaço, para cultivos diferentes da mandioca, como abacaxi, abóbora, frutíferas, feijão, taioba, e outras diversas. Nestas áreas em geral a plantação era consorciada, ou seja, as diferentes plantas de intercalavam, apenas nos limites ou por completo. Estas áreas eram em geral planas, e contavam com adubos orgânicos, como esterco animal ou restos de plantas e frutas.

Há alimentos plantados pela maioria dos agricultores, sendo a mandioca (brava e mansa) a única cultura unânime. No entanto, cada família escolhe combinações diferentes em sua roça, e ainda variedades distintas nos quintais, tanto em relação às hortas quanto às plantas frutíferas. Dentre as produções citadas estão: Banana, cana, batata, cará, inhame, melancia, abóbora, pepino, café, batata doce, arroz, feijão (de diferentes variedades), milho, tomate, jaca, goiaba, banana, manga, pitanga, mamão, jabuticaba, taioba, abacaxi. As maiores diversidades de produção se encontram nas áreas mais isoladas, onde a agricultura ocupa papel mais importante como em Cairuçu da Pedras.

A opinião sobre as mudanças dos tempos antigos (tradicionais) aos atuais (maiores acessos) variam muito de individuo para individuo, mas em geral há concordância de que houveram tanto benefícios quanto malefícios. De modo geral, relatam que a amenização do isolamento trouxe muitos aspectos positivos, principalmente em relação à saúde, educação, energia, infra-estrutura básicas. Porém percebe-se um sentimento de saudade dos tempos antigos quando a comida era fresca, da terra, preparada em panelas de barro, a comunidade era mais integrada e haviam muitas festas. Apesar da diminuição do trabalho duro (na roça, construindo estruturas..), os tempos de fartura ficam na lembrança, como algo bom que passou: “Hoje as coisas são mais fáceis, mas sei lá, antes era melhor” (entrevista com Dona Tetéia, merendeira da escola do Pouso)

As causas do abandono da roça é bem polemico. Muitos relatam não plantarem devido às repressões do IEF, mas outros dizem que atualmente eles não chegam a impedir a agricultura. Há muitos que acham que se o IEF não implicasse as famílias voltariam a plantar. No entanto, resgatar modos de produção tradicional não é simples após valores de a sociedade mundializada substituir os locais, como a busca pela renda fixa com trabalho assalariado, que não deixa de representar uma segurança importante para as famílias. Conclusões adquiridas com o trabalho de campo são de que o IEF condena atualmente o desmatamento de florestas primarias e secundárias tardias, permitindo atividades agrícolas em áreas de capoeira novas e avançadas, e áreas clareiras abandonadas. A repressão do IEF em períodos logo após a criação da reserva parece ter sido bem maior, quando as

Page 27: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

ideologias preservacionistas de “natureza intocável” ainda predominavam entre os órgão governamentais ambientalistas, impedindo atividades agrícolas em qualquer área da UC. Essa postura do IEF e IBAMA marcou intensamente as comunidades caiçaras, construindo entre estas a imagem de repressão, e criando repulsão e medo pela roça, até os dias atuais.

Outra polêmica é a improdutividade de áreas ocupadas por capoeira, alguns caiçaras dizem não praticar roçado nestas terras pois já estão muito gastas. No entanto, muitos relatam fazer roça há muito tempo nas mesmas encostas e a produtividade da terra se mantêm, no mesmo local que outros relatam não plantarem pois essa terra não garante mais bons resultados. Essa questão exige estudos sistematizados sobre qualidade e produtividade do solo, porem, como será exposto mais adiante, há técnicas simples, de baixo custo e eficazes de recuperação de solo a partir do uso de certas espécies, como o feijão guandu, que já é utilizado por alguns caiçaras locais com tais objetivos. Essa recuperação exige conhecimento, muitas vezes não difundido pela sociedade rural. Uma falta de intercambio de experiências e troca de conhecimento e informação é perceptível entre as praias, principalmente com a diminuição das interações sócio-culturais. A difusão do protestantismo acabou com as festas e bailes locais, deixando um espaço vazio para a integração das comunidades costeiras.

Alguns moradores idosos relataram que as matas locais, apesar de bem conhecidas pelos antigos, são cada vez menos visitadas, pois o IEF não permite que se utilize nenhum recurso natural local. Os jovens assim, vão perdendo afetividade com a floresta, a medida que as relações vão diminuindo de intensidade e variedade. Com a extinção das roças, os jovens não aprendem a plantar. Os saberes tácitos relacionados à cultura caiçara não estão contidos nos ensinamentos escolares, baseados em padrões de ensino urbanos. Com isso, a circulação dos conhecimentos tradicionais é parcialmente interrompido, os fluxos de informação caiçara diminuem, elementos e saberes culturais podem estar ameaçados de extinção. O ciclo de transmissão de conhecimento da produção artesanal também parece estar com perigos de ser interrompido, na medida em que os jovens não aprendem as técnicas artesanais com os antigos.

A grilagem de terras, além de provocar diminuição e possível desaparecimento dos territórios caiçaras, provoca a privatização destes espaços de alta beleza cênica. Os grileiros restringem o acesso de indivíduos que desejam desfrutar a natureza de forma harmônica. Perigos de privatização de praias provocam a elitização do espaço, como no caso de Laranjeiras, onde o condomínio de luxo ali presente restringe o acesso à praia das laranjeiras, impedindo até mesmo, em algumas ocasiões, o desembarque por parte de caiçaras da costeira, vindos de Ponta Negra e do Sono.

Outro elemento de mudança no modo de vida caiçara, proporcionando dinâmicas de transformação diferentes em cada praia é o turismo. O turismo é uma atividade econômica muito delicada. Tem que se tomar bastante cuidado para não provocar uma descaracterização local com o aumento e sobrevalorização do turismo. Os turistas trazem ganhos financeiros para os locais, que podem tanto contribuir para melhoras, se bem recebido e manejado, como causar degradação, conflitos e transformações da paisagem e dos modos de vida. No caso da praia grande, tem se mostrado benéfico, porem em outros casos, como a ponta negra, gera aspectos negativos. As praias mais afetadas por turismo, que consequentemente consumem mais produtos urbanos, com o incentivo de comércios locais, apresentam problemas de lixo e sujeira espalhadas pelo chão, não apenas por parte dos visitantes como também dos próprios moradores. Mudanças em geral devem ser acompanhadas de programas de educação ambiental nas escolas, não verificado nas praias visitadas, apenas a partir da iniciativa pessoal de algumas professoras. O turismo tende a potencializar um processo de “mundialização” cultural, ou seja, insere valores urbanos da civilização branca ocidental nas praias caiçaras, substituindo valores e padrões de vida. Essa homogeneização cultural, “mundializando” paisagens provoca ainda uma perda de diversidade ambiental, como evidencia Araújo:

Page 28: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

“A diversidade étnica e cultural teve suas bases abaladas pelo processo de mundialização e o grande desenvolvimento do turismo de massa, que por sua vez, estimulou a tentativa de preservar a diversidade étnica e cultural. Muitos conflitos e guerras emergiram a partir desses acontecimentos. Uma das principais razões para a conservação da diversidade cultural é a sua relação com a diversidade biológica. A existência de diferentes ecossistemas possibilita a existência de diferentes culturas. O que aparece codificado como uma tradição única é o resultado de um aprendizado gradual de muitas gerações vivendo em um dado ecossistema. Dessa forma, não é por acaso que os locais onde a cultura é mais diversa são os locais onde a diversidade biológica é mais variada.” (Carolina Araújo, ???? tese ilha grande e turismo)

É preciso porém salientar que nunca as conseqüências são totalmente benéficas, ou o contrario, maléficas, sempre há prós e contras, porem em intensidades diferentes. O turismo pode ser uma importante fonte de renda local, porem ele tende a diminuir a diversidade de atividades econômicas, como verificado na praia do Sono, criando dependência, concorrência entre os moradores e fragilidade por não propiciar diversidade de arranjos produtivos. A própria historia de Paraty ensina que a focalização em uma única atividade econômica propicia riscos de decadência coletiva, à medida que a economia é cíclica, e a prosperidade de uma única atividade raramente tem crescimento linear constante.

O mesmo decorre com a facilidade de acesso, ao aumentar as possibilidades de transporte, com a abertura de estradas por exemplo, que pode trazer tanto aspectos positivos quanto negativos. Na praia do Sono há um debate atual sobre a abertura de uma estrada, permitindo acesso à automóveis na praia. Há moradores contras, e moradores à favor. A divergência de opiniões reflete a multiplicidade de conseqüências, tanto positivas quanto negativas. Leva-se em conta ainda que o que pode ser bom para um individuo, é ruim para outro. Mas muito importante para determinar transformações bem sucedidas é como os processos vão ocorrer, quem participará da condução destes. Uma participação ampla de diversos autores, como moradores locais, associações, secretarias de turismo, meio ambiente, educação, entre outras, órgãos ambientalistas governamentais, ONGs, acadêmicos, é de extrema importância para a democratização das tomadas de decisão, implementação de projetos e manejo local do ambiente. Segundo os princípios ecológicos, que também envolvem questões sociais, a multiplicidade de relações, a auto-organização e a circulação de informação é essencial para a sustentabilidade dos sistemas.

DINÂMICAS ECOCULTURAIS DOS CAIÇARA:

A CULTURA ENQUANTO SISTEMA DINÂMICO E O DESENVOLVIMENTO DE TÉCNI CAS ALTERNATIVAS ENQUANTO ADAPTAÇÃO ÀS MUDANÇAS.

Assim como diversas populações biológicas da Mata Atlântica, a cultura caiçara tradicional sofre perigos de extinção. Diversos de seus elementos da cultura caiçara local, como os bailes e festas, que possuíam um importante papel de integração das comunidades costeiras, propiciando trocas culturais, de saberes e técnicas, existem apenas em memória dos antigos. Não se trata de considerar a cultura caiçara como algo estático, e defender sua preservação de forma intocável, até mesmo porque ela é caracterizada como uma cultura em constante mudança, como verificamos em Diegues, discursando sobre argumentos de Emílio Willems “a argumentação central do autor é de que a mudança social tem sido uma constante ao longo da história caiçara". No entanto, as mudanças atuais não se tratam de iniciativas internas em resposta à ciclicidade da economia das cidades litorâneas, mas sim de pressões externas sobre o território caiçara. O próprio autor diferencia as mudanças antigas dos processos recentes de desterritorialização:

“Após a década de 1970, notadamente, como vimos, esse padrão de mudanças foi alterado profundamente quando os caiçaras começaram a perder seus território e suas terras, seja pela expropriação realizada pela especulação imobiliária e pela urbanização, seja pela transformação de suas propriedades em áreas de unidades de conservação, das quais, até hoje, eles são

Page 29: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

sistematicamente expulsos.” (Diegues, 2004) e ainda “A transformação de parte considerável do território caiçara em unidades de conservação de proteção total, onde, por lei, não é permitida a presença humana, tem tido conseqüências negativas graves sobre o modo de vida das populações caiçaras. No inicio, algumas dessas áreas conseguiram frear, até certo ponto, a especulação imobiliária, mas depois, com a proibição de fazer roça, tirar madeira para canoas, moradias, instrumentos de trabalho, reformar moradias e escolas, os caiçaras tiveram seus direitos civis seriamente ameaçados e em vários casos violados.”

Discorre hoje um amplo debate sobre o “conservacionismo caiçara”, assim como a propriedade de diversas outras populações tradicionais, como indígenas, quilombolas, seringueiros, de garantir a conservação de ecossistemas naturais. Essa discussão reflete as ideologias preservacionistas e conservacionistas, havendo ainda, diversas posições políticas que evidenciam os limites difusos de ambas as ideologias. Muitos pesquisadores e políticos, dentre outros compartilham da visão romântica das sociedades tradicionais enquanto “bons selvagens”, considerando–os como protetores da natureza e preservacionistas impecáveis. Essa visão desconsidera porem o caráter dinâmico e aberto do sistema cultural, e as constantes transformações que este sofre. Não levam em consideração que os contextos sócio-ambientais contemporâneos se diferem substancialmente daquele em que estas sociedades desenvolveram as adaptações locais. As sociedades tradicionais possuem sua propriedade conservacionista, ou seja, seu caráter sustentável, associado à determinados limites demográficos e organização espacial desconcentrada, entre outros fatores. O sucesso ecológico de suas técnicas agrícolas tradicionais, baseados na agricultura de queima e pousio, ocorre apenas associado ao caráter semi-nômade que a cultura possui, ou possuía no passado.

“O que se sucede é que, pela baixa densidade demográfica, pelo uso extensivo dos recursos naturais, pelo conhecimento e práticas culturais no uso dos recursos naturais, o modo de vida caiçara teve, e em muitos lugares onde ele é predominante ainda tem, baixo impacto sobre a natureza, particularmente se comparado com o causado pela sociedade urbano-industrial.” (Diegues, 2004)

Esse caráter conservacionista da cultura caiçara tradicional difere da ideologia conservacionista contemporânea, além de não ser imune aos processos de mundialização e difusão cultural, que altera valores e costumes, mudando as relações do individuo com o meio ambiente.

Os cuidados de manejo de diversos caiçaras refletem conhecimento ecológico local, e consciência dos princípios de sustentabilidade. Francino, o morador de Cairuçu da Pedras, compreende, por exemplo, a necessidade de garantir a regeneração, e não perturbar os ciclos da vida e da matéria, ao explicar os cuidados do manejo do cipó utilizado como matéria prima de seus cestos. É preciso conhecimento e consciência para manejar elementos florestais. Retirar uma canoa do mato pode ser degradante, se não houver cuidados para não derrubar arvores vizinhas, e não aproveitar toda a madeira. Os antigos, e alguns jovens, evidenciaram atitudes e consciência conservacionistas a partir do conhecimento e manejo tradicional.

Sendo assim, a partir das questões desenvolvidas, a pesquisa considera que a cultura caiçara, em parte por constituir um próprio elemento ecológico do ecossistema da Mata Atlântica, e ter se adaptado em processo co-evolutivo com a floresta, é nos contextos atuais essencial para a conservação deste tão importante Hot Spot. A degradação dos territórios caiçaras podem possivelmente causar maiores perturbações ao ecossistema, e aumentar sua atual condição de instabilidade regional, além de alterar as condições locais de estabilidade, como no interior das florestas primárias. Begossi (2003) descreve que alguns mecanismos, como aqueles denominados ‘extinction dept’ ou ‘Moran effect’ explicam como uma pequena mudança pode causar o colapso de um ecossistema. As hipóteses sugerem que pequenas mudanças afetam o balanço presente das interações bióticas, levando à largas mudanças no ecossistema.

O manejo caiçara proporcionou, nos contextos de ocupação histórica e tradicional, a preservação das áreas verdes, essas comunidades devem então ser incorporadas ao manejo das

Page 30: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

UC. As leis são criadas de forma arbitrária pelo governo e os mecanismos de adaptação às leis pela cultura não foram criados nem implementados.

O que é defendido nesta pesquisa é a conservação da cultura, levando em consideração seu caráter mutável, e não sua preservação estática e romântica. Frente aos novos contextos sócio ambientais e espaciais contemporâneos, é preciso refletir sobre as adaptações culturais e evolução sistêmica. As técnicas de agricultura baseadas em sistemas de queimadas e pousio são sustentáveis, como a pesquisa de Oliveira (1999) demonstrou, em determinadas situações e limites demográficos. No entanto, os contextos sócioambientais atuais, por se diferirem de tempos antigos, exigem novas adaptações, ajustando-se ao crescimento populacional por exemplo, considerando ainda as novas pressões sobre a floresta e à maior fragilidade em que o ecossistema da Mata Atlântica se encontra. Sendo assim, para manter o caráter sustentável, a agricultura tradicional pode exigir nova evolução de técnicas, que pode se associar à inovações adaptadas às condições ambientais e culturais locais. Muitos moradores, apesar de praticarem a agricultura itinerante tradicional se mostram receptivos a técnicas que potencializariam a produtividade, diminuiriam esforços e o tempo de resiliência do ambiente. Esta receptividade surge com um desejo de amenizar conflitos com órgãos ambientais, além da própria consciência inerente aos indivíduos, pelo menos dos que ainda praticam agricultura, e de diversos que não praticam mais, de conservarem recursos naturais e qualidade ambiental, entendida por eles como preservação de florestas desenvolvidas.

Diversas instituições, pesquisadores e indivíduos “ambientalistas” concentram esforços em desenvolver técnicas alternativas capazes de conciliar produção agrícola com conservação ecológica e manutenção da biodiversidade, o que muitos denominam de “desenvolvimento sustentável”. Neste ambiente de debate, estudo e experimentação emergem conceitos de alta circulação, entre os quais o de permacultura, agroecologia, agrofloresta e agricultura orgânica. Dentre estes, escolheu-se abordar as discussões agroecológicas, sendo as agroflorestas uma de suas iniciativas. Como a própria composição da palavra induz a perceber, o termo surge da intenção de praticar agricultura a partir dos princípios ecológicos de sustentabilidade. Não está associado à um modelo estático de aplicação, e nem à regras rígidas de métodos, e sim à mudanças na forma dos agricultores liderem com o meio ambiente, observando dinâmicas do ecossistema local e revertendo processos de modernização antiecológica e homogeneização agrícola. Uma característica forte da agroecologia é que alem de ela considerar a sustentabilidade ecológica, ela busca também a sustentabilidade cultural e social, e para isso, consequentemente econômica.

A agroecologia, tem se mostrado em diversos casos como técnica eficiente e sustentável de agricultura familiar em diferentes ecossistemas. Suas raízes remontam técnicas seculares tradicionalmente desenvolvidas. O termo contemporâneo reflete métodos aboríginas de manejo do meio ambiente, associado à pesquisas cientificas atuais. Pesquisadores da década de 1960, como Bill Mollison viajaram por diversos países buscando nas culturas indígenas e nativas técnicas agrícolas e extrativas que eram usados a períodos de tempo imemoriais, e não provocavam alterações drásticas ao ecossistema, capazes de gerar uma autosustentabilidade desses povos. Essas técnicas eram em sua maioria baseadas no cultivo de variedades de uma mesma espécies (milho amarelo, vermelho, azul, marrom), além da produção “consorciada” (intercalada) de diversos cultivos (mandioca, feijão, melancia, abóbora) em uma mesma roça. Esses métodos garantiam a fertilidade do solo e o controle erosivo sendo baseados ainda no aproveitamento máximo de matéria e energia local. A expansão e incentivo da agroecologia atualmente atinge todos os biomas naturais brasileiros, a partir de projetos científicos (muitos dos quais universitários), políticos, de ONGs, ou mesmo por iniciativas locais. A difusão das técnicas, de fácil aplicação, sofre adaptações locais, tanto devido às especificidades ambientais quanto culturais, como a escolha de espécies a serem cultivadas, que produzem recursos localmente usados. Desta forma, sua utilização tem se mostrado eficiente na recuperação de solos e florestas degradadas no semi-árido, na Amazônia, na Mata Atlântica, fixando agricultores familiares sertanejos, caboclos, indígenas, nas áreas rurais.

Dois dos maiores conflitos entre os órgãos governamentais e os praticantes de agricultura itinerante é o desmatamento de floresta primária e secundária tardia, e o uso do fogo, que apesar de ser controlado pode eventualmente provocar impactos ambientais. A agroecologia é baseada na agricultura fixa, roças permanentes, onde a diversidade e os métodos aplicados tendem a manter a fertilidade e alta produtividade do solo por tempo indeterminado, ao se inspirar nos ciclos ecológicos.

Page 31: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

As técnicas agroecológicas surgem da combinação entre a observação do ecossistema local, a sabedoria ancestral e o conhecimento científico, aproveitando qualidades inerentes de plantas e animais, ou seja, evitando-se ao máximo o uso de insumos externos como pesticidas e adubo químico. Estes últimos foram amplamente incentivados com a revolução verde, e compõe grande parte da agricultura moderna, baseada na mecanização do campo, penetrando ainda nos modos de produção camponês. O incentivo ao uso de fertilizantes químicos e pesticidas (conhecido também como “veneno”) tende a causar uma dependência dos agricultores familiares ao sistema de produção capitalista, a agroindústria, alem de provocar danos ao meio ambiente local, como contaminação de solos e da drenagem. A ideologia da agroecologia fundamenta-se na conservação de águas e solos, promoção da biodiversidade e estratégias de observação aguçada da natureza local, além do ajuste constante à fim de harmonizar as relações entre a agricultura e o ecossistema.

“Entendendo que a agricultura, para ser sustentável, deverá estar fundamentada em fortes bases ecológicas, partiremos da premissa de que mais sustentável será um agroecossistema quanto mais semelhante for, em estrutura e função, ao ecossistema original do lugar (Götsch, 1995), pois replicará os mesmos mecanismos ecológicos existentes, adaptados evolutivamente para que a vida seja perpetuada sob aquelas condições. Portanto, o primeiro passo para a construção de agroecossistemas mais sustentáveis é buscar no ecossistema do lugar, os fundamentos para a construção dos agroecossistemas.” (Gotsch, 1995, em Peneireiro, 2005).

Para a agroecologia, a agricultura é sustentável quando a soma das atividades resulta em um superávit de balanço energético, de vida e de recursos naturais, tanto no local da intervenção quanto no nível global, considerando, na contabilidade, por inteiro, as conseqüências ecológicas, econômicas e sociais associadas ao uso de inputs externos (Ernst, 2003, em Peneireiro, 2005). Ernst Gotsch é considerado o pai das agroflorestas no Brasil, que por sua vez se fundamentam em princípios agroecológicos. A agrofloresta baseia-se em uma filosofia que incorpora a árvore no processo produtivo agrícola. A agrofloresta é um sistema produtivo, conhecido também como floresta de alimentos ou produção, que se fundamenta na sucessão ecológica natural. É baseada no consorcio de plantas, combinações encontradas nas florestas nativas locais, e não nos princípios de competição ecológico. A partir da observação e experimentação, alem da transmissão de conhecimento, produtores agroecológicos perceberam que combinar certas culturas, como a banana com a laranja, tende a aumentar a produtividade e resistência das plantações, à curto e longo prazo, aumentando a eficiência sem maiores gastos energéticos e materiais.

Ernst descreve sobre a importância dos SAFs (sistemas agroflorestais) na recuperação de áreas degradadas, a medida que essa recuperação é associada ao aumento da produtividade de agricultores familiares. No manejo agroflorestal, os instrumentos utilizados na recuperação de áreas degradadas são as estratégias que as próprias matas seguem na re-ocupação de clareiras, incorporando ainda produtividade alimentícia e financeira. Diversas são as experiências onde à partir das agroflorestas, as áreas degradadas são recuperadas, apresentando sensível melhora na fertilidade do solo, restabelecendo-se a atividade da fauna nativa bem como o ciclo hidrológico (Peneireiro, 2005). Peneireiro cita uma serie de experiências no mundo sobre sistemas agroflorestais sucessionais:

“Conhecem-se, na literatura, vários exemplos de sistemas agroflorestais que apresentam a característica que nos remetem a identificá-los como que análogos aos ecossistemas locais, às florestas tropicais, e que a sucessão ou os princípios da sucessão ecológica estão presentes. Podemos citar como exemplo os diversos quintais agroflorestais, de comunidades tradicionais de ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, dentre tantos outros; os sistemas de produção de algumas etnias indígenas da Amazônia (os Bora, por exemplo, no Peru, apresentados por Denevan & Padoch, 1987; os Kayapó, da bacia do rio Xingu, por Posey, 1984 e 1987); e também as experiências com as chamadas florestas análogas (“Analog Forest”), desenvolvidas por NSRC (NeoSynthesis Research Centre) – Sri Lanka, pela rede coordenada pela Environment Liaison Centre International em Nairobi – Kenya, e formada por algumas ONGs na Costa Rica, e pelo UNOCYPP – Equador. Esses sistemas agroflorestais buscam reproduzir a arquitetura e ecologia dos sistemas naturais, tendo como foco a identificação e incorporação de biodiversidade (Senayake & Mallet, 1997; Senayake & Jack, 1998; Senayake, 2001). Os sistemas agroflorestais

Page 32: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

biodiversos, desenvolvidos com base nas experiências de Ernst Götsch, são chamados por alguns pesquisadores de Sistemas Agroflorestais Regenerativos Análogos (SAFRA) (Vaz, 2001).”

A autora escreve que nas regiões da Mata Atlântica, a agricultura deve se inspirar nos ecossistemas de floresta tropical, ou seja, incorporando à produção a alta biodiversidade com plantas ocupando diferentes extratos, e grande quantidade de biomassa. Ela diz então que nesta região, os sistemas produtivos para serem sustentáveis deverão ter caráter agroflorestais, biodiversos e multiestratificados.

Levando em consideração que uma das características universais de todo o ecossistema é seu caráter dinâmico, submetido à mudanças constantes. Assim, o processo de sucessão ecológica envolve a substituição de grupos de espécies ao longo do tempo, na medida em que as condições favoreçam o desenvolvimento das espécies secundarias já presentes no local. Por fim, se estabelecem espécies mais tardias, recompondo a caracterização de floresta primaria na paisagem. O banco de sementes se associa à oferta das próprias matas envolventes.

De acordo com Peneireiro (2005):

“ diversas tendências estruturais são esperadas ao longo do processo sucessional, como o aumento da diversidade, da eqüabilidade, do número de estratos, à medida que a comunidade atinge um nível estrutural mais complexo (Odum, 1969 em Peneireiro 2005). Além do aumento da biodiversidade, são notáveis as transformações ambientais no decorrer da sucessão, como a transferência de nutrientes livres do solo para a comunidade biótica ao longo do processo, reduzindo sua perda; a melhoria da estrutura edáfica pela produção de matéria orgânica, além de modificações do microclima (Gómez-Pompa & Vazquez Yanes, 1985)”

A autora discorre ainda sobre a importância da presença da fauna florestal e microfauna do solo no sistema florestal, cuja presença se insere no agroecossistema na medida em que a sucessão ecológica propicia condições favoráveis, desenvolvendo habitats da fauna.

“ Sabe-se, que à sucessão das espécies vegetais acompanha a sucessão animal e também da fauna do solo. Lal, 1992, estudando a sucessão da fauna do solo em área degradada, em processo de recuperação, identificou diferentes estágios, sendo que, em áreas degradas, com micro-clima quente, seco, com pouca cobertura vegetal, há predomínio de colêmbolas; havendo o aumento de serrapilheira há presença, em alta densidade de larvas de dípteros, colêmbolas, carabídeos predadores e aranhas, podendo haver uma população mínima de minhocas; quando vai se avançando na sucessão, com crescente produção de matéria orgânica, há predomínio de minhocas epigeicas, seguido das anécicas, culminando com um notável aumento da atividade da fauna saprófaga.” (Peneireiro, 2005)

Peneireiro cita ainda estudos de Ernst, que comparam sistemas agroflorestais com capoeiras de mesma idade, demonstrando que as intervenções humanas tendem a acelerar o processo sucessional, recuperando a área em prazos de tempo mais curtos. Ele realizou este estudo comparativo em duas áreas muito próximas, com características de solo, relevo, histórico e perturbação bastante semelhantes. Há doze anos atrás, as áreas eram fisionomicamente muito parecidas, com mesmo tipo de vegetação (decorrente de uma pastagem degradada). Em uma delas foi instalado um SAF enquanto a outra foi deixada abandonada, tendo, naturalmente, ocorrido regeneração natural, apresentando hoje uma vegetação que chamamos de Capoeira. Para analisar as conseqüências da implantação e do manejo de um SAF dirigido pela sucessão natural sobre a vegetação e a fertilidade do solo, Ernst levantou dados sobre quatro compartimentos do ecossistema: vegetação, solo, serrapilheira e fauna do solo, procurando-se, numa abordagem sistêmica, compreender as inter-relações entre esses compartimentos. (Peneireiro, 1999). As duas áreas mostraram evolução bem distintas, tendo o SAF se apresentado como um sistema comprovadamente capaz de recuperar áreas degradadas e manter-se produtivo. Observando a fauna do solo, havia predominância de espécies predadoras na mesofauna do solo da área de

Page 33: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

capoeira enquanto que na área de agrofloresta as espécies saprófitas eram as mais abundantes, tendo sido encontrado inclusive minhocuçu (Rinodrillus sp.). A dinâmica da matéria orgânica, conferida pelo manejo, aumenta a atividade da biota do solo, sendo a principal responsável pela ciclagem bio-geoquímica eficiente na área de SAF. Suas análises de sucessão foram sistemáticas, considerando árvores, arbustos, herbáceas, epífitas, lianas, incluindo espécies nativas e exóticas, correlacionando suas características ecofisiológicas com os recursos locais como condição de solo, disponibilidade de matéria orgânica e umidade (Peneireiro, 1999). O estudo de Ernst resultou na produção de tabelas (1 e 2) comparando a qualidade nutricional dos solos de ambas as áreas:

Tabela1 . Caracterização da fertilidade do solo (exceto micronutrientes) para as duas áreas comparadas (SAF e Capoeira)

mEq/100g

Profund. PH H2O PH KCI PH CaCI2 M.0% P2O5 ppm K2O Ca Mg Al H+AI SB T V% m% Alx100/T

SAF

0-5 5,59 5,49 5,42 17,09 29 0,16 11 8,2 0 3,86 19,48 23,22 83,4 0

** ** ** ns ** ns ** ** ** ** * ** **

5-20 5,39* 4,96* 4,82 4,27 12,9 0,08 4,53 2,71 0,15 5,86 7,32 13,18 54,7 2,8

* * ** ns ** ns ** ** ** ** ** ns ** **

40-60 5,10 4,50 4,29 2,2 2,7 0,03 0,99 0,58 0,52 5,38 1,6 6,98 22,9 27,2

ns ns ns ns ns ns ** ** * * ** ns ** **

Capoeira

0-5 5,28 4,57 4,57 19,04 4 0,17 5,46 1,7 0,37 10,94 7,34 18,27 41,1 5,8

5-20 5,05 4,09 4,09 4,48 2,96 0,09 1,31 0,63 0,93 9,96 2,03 12 17,5 33,76

40-60 5,07 4,2 4,2 2,34 2,24 0,03 0,37 0,15 0,7 6,71 0,55 7,25 7,9 56,4

FONTE: (Peneireiro, 1999).

Obs .: Os dados relativos a S-SO4 tem como unidade mg/dm3 e cada profundidade amostrada (para este nutriente) é proveniente de uma amostra composta de cinco sub-amostras por área (0,5ha), por isso não foi submetido a teste estatístico. Para os outros atributos da fertilidade do solo, os dados são provenientes da média de 25 amostras compostas de 3 sub-amostras. Neste caso, os dados fora analisados pelo teste t - de student pareado e observou-se diferença significativa ou não entre as áreas comparadas para cada profundidade de solo indicada, de acordo com a simbologia: ** significância a 0,01 ou 1% (há maior diferença estatística entre as áreas comparadas), * significância a 0,5 ou 5% (há diferença estatística significativa entre as áreas comparadas), ns - não significante (não há diferença estatisticamente significativa entre as áreas comparadas).

Tabela 2 . Teores de fósforo total nas três profundidades amostradas, para as duas áreas estudadas (SAF e Capoeira)

P2O5 total %

Profundidade Capoeira SAF

0-5 0,06 0,13

5-20 0,03 0,08

40-60 0,12 0,05

FONTE: (Peneireiro, 1999).

Peneireiro explica o processo de sucessão ecológica na qual se baseia o manejo agroflorestal. Consórcios sucessivos dominam a área até que o ambiente é transformado e propiciado para o próximo consorcio de espécies, cujas sementes e mudas já convivem com o sistema. Os consórcios

Page 34: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

vão progredindo de pioneiros para secundários inicias, e depois tardios, e assim segue, sucessivamente, com espécies cada vez com ciclo de vida maior, caracterizando a fisionomia de cada estádio, até que uma nova pertubação reinicie o ciclo, à partir de espécies primárias. Desta vez porem em ambientes mais favoráveis, de maior qualidade, pois o acumulo de matéria orgânica e nutrientes, e as interações bióticas proporcionaram solos produtivos e bem habitados, e que retêm maior umidade. Ernst adverte que é de extrema importância analisar os estratos das espécies (identificando espécies de estratos baixo, médio, alto e emergentes em cada consorcio), de modo a ocupar o espaço vertical favorecendo a sucessão natural.

O método agroflorestal pode ser aplicado em solos degradados, utilizando espécies propicias de recuperação para as condições locais. O feijão Guandu por exemplo conhecido localmente e amplamente (em diversos locais do pais) por suas propriedades recuperadoras de solo. Localmente, pois os caiçaras da Juatinga utilizam amplamente o cultivo deste feijão, inclusive consciente de suas propriedades benéficas ao solos. Alem de nitrogenar o solo, suas raízes propiciam a descompactação, problema freqüente de solos sofridos com usos ligados à pecuária extensiva. De acordo com Ernst, que “o fator crítico e determinante da saúde e das taxas de crescimento, bem como da produtividade do sistema não era a qualidade inicial do solo, mas sim a composição e a densidade dos indivíduos da comunidade de plantas” (Götsch, 1995 em Peneireiro, 2005). ele adverte ainda para a importância de se introduzir espécies em alta densidade e alta biodiversidade. A introdução de árvores em alta densidade, em conjunto com as espécies de ciclo de vida curto e médio, reduz inclusive a mão de obra e viabiliza o bom desenvolvimento das plantas, caso contrário, poderá se desenvolver “ervas daninhas”, que provavelmente surgirão para ocupar o espaço desocupado. (Peneireiro, 2005).

Os SAFs, ao buscar a diversidade de estratificação presente nas florestas, também condiciona uma diversidade de profundidade e largura de raízes que garante a cobertura do solo, protegendo-o, desfavorecendo processos de erosão. Alem dessa vantagem, essa diversidade representa plantas com exigências alimentícias diferentes, que contribuem com matéria orgânica rica em nutrientes e retiram nutrientes distintos do solo, de maneira a não comprometer a disponibilidade de nutrientes, a vida no solo e a fertilidade. Outra vantagem do sistema agroflorestal é que ele provoca a produção e manutenção da serrapilheira, cujas propriedades benéficas ao ecossistemas foram descritas anteriormente. A serrapilheira é favorável ainda para o desenvolvimento de uma fauna do solo, cuja presença é de extrema importância, na medida em que , ao se alimentarem da matéria orgânica, vão liberando os nutrientes para as plantas. Esses organismos trabalham ainda a terra aumentando sua porosidade, essencial para o crescimento e a respiração das raízes.

Estudos, experiências e observações agroflorestais identificaram diversas espécies frutíferas tanto arbóreas quanto arbustos que se desenvolvem em ambientes de sub-bosque, e no interior de capoeiras e matas secundarias, em diversos ecossistemas florestais. Espécies de interesse econômico são ainda consorciadas com espécies alimentícias e espécies sem usos diretos, mas essenciais na manutenção do sistema sucessional de florestas tropicais.

Projetos da Embrapa, coordenados por Marcio Silveira Armando do setor de Transferência de tecnologia, citam vantagens de SAFs desenvolvidas em assentamentos rurais: Maior estabilidade econômica com a redução do risco de entressafras e anos ruins, devido à colheitas diferentes desde o primeiro ano e ao longo do tempo; Ampliação da capacidade produtiva da pequena propriedade; Melhoria da renda e da auto-estima de agricultores familiares com a diversificação, aumento da produção e consciência do seu papel benéfico como agente ambiental; Aumento da oferta de produtos sem agrotóxicos nos mercados locais, estimulando o comércio e contribuindo para a segurança alimentar da população; Tecnologia sofisticada, de baixo custo, mas intensiva em mão-de-obra, criando postos de trabalho na área rural; Ambiente de produção agradável (devido à sombra e ambiente mais refrescado, sendo esse fator relevante na medida em que uma das maiores reclamações dos jovens caiçaras, entrevistados na Juatinga, é o trabalho árduo na roça debaixo do sol e calor intenso, criando repulsão pela agricultura), com redução gradativa das horas de trabalho por hectare, à medida que a agrofloresta entra em produção; enriquecimento da vida do solo, aumentando a oferta de nutrientes aos cultivos, em razão das associações das plantas com microorganismos benéficos; Produção de alimentos mais ricos em nutrientes, vitaminas e com melhor aspecto visual, cheiro e sabor (características organolépticas superiores), em virtude da melhor qualidade do solo e do conseqüente equilíbrio nutricional das plantas no sistema; Colheitas

Page 35: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

variadas, desde o primeiro ano, oferecendo uma alimentação mais rica e diversificada à família rural, aumentando a qualidade nutricional, com custo menor; além de controlar e manter a biodiversidade local. No entanto, cabe adverter que estes SAFs não foram visitados pela pesquisa, e a opinião direta dos produtores não foi consultada, a fim de verificar as proporções das vantagens expostas.

Segundo estes estudos teóricos, a implementação de SAFs em agriculturas familiares se apresentam como alternativas viáveis de conciliar conservação com produção alimentícia. No entanto, há de se adverter que as pesquisas relacionadas à SAFs são muito recentes, remetendo a pelo menos no Brasil, 30 a 20 anos. Na medida em que envolve tempos naturais de crescimento florestal, este período de tempo se mostra muito curto para analisar as reais potencialidades, ou inviabilidades, de SAFs enquanto sistema produtivo ecologicamente e socialmente sustentável. As agroflorestas implementadas são igualmente recentes, e pode-se considerar este método como em processo de desenvolvimento. As SAFs implementadas em geral refletem caráter de pesquisa experimental, na medida em que se sugere a preservação de uma parcela da área total a ser trabalhada, onde esta parcela não será manejada, deixando-se a sucessão natural atuar sem interferência humana. Esta parcela, denominada área testemunho, é utilizada para comparar a funcionalidade das técnicas agroflorestais, e estudar a transformação diferencial das áreas.

Mesmo frente ao seu caráter juvenil, a difusão de técnicas agroflorestais está ganhando espaço entre muitos agricultores familiares de diversos biomas brasileiros, e é grande o numero de pesquisas universitárias, por parte de instituições ligadas ao governo como a Embrapa, o IPAM (Instituto de pesquisas Amazônicas), ONGs e outros que focalizam sua atenção nos SAFs, associando teoria e prática. O GAE (Grupo de pesquisa AgroEcológico) da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) desenvolve à mais de 10 anos pesquisas e experimentos ligados à agroflorestas, com princípios de estudar, implementar e difundir. Alem de possuírem uma área de implementação dentro do campus universitário, com áreas testemunhas e parcelas de diferentes manejos, os estudantes realizam projetos de extensão com pequenos produtores agrícolas do município de Seropédica, sede da UFRRJ.

Difundir e implementar técnicas em fase de desenvolvimento cientifico juvenil pode ser perigoso na medida em que conseqüências que se evidenciam apenas à longo prazo não são identificadas, podendo causar maiores perturbações. Como exemplo, citamos o caso dos trangênicos, onde a grande questão de discussão é o perigo das conseqüências futuras. As SAFs no entanto não envolvem alterações de padrões ecológicos naturais, sendo sua implementação ecologicamente segura.

Felizmente, para o bom desenvolvimento de técnicas e da ciência, há críticos da difusão de SAFs enquanto sistema produtivo. Os críticos do manejo Agroflorestal dizem que as SAFs enquanto sistema produtivo tende à gerar renda em prazos de tempo demasiadamente longos. Outra crítica é a possível baixa produtividade, na medida em que no espaço onde se plantaria uma única cultura, há diversas espécies, de períodos de safra distintos.

A questão é que não existe modelo único para a implementação de SAFs. Há situações onde a produção é mais valorizada, de forma que a área é composta de fileiras de poucas espécies (3, 4 ou 5 por exemplo) intercaladas. Situações onde a conservação é priorizada, com intenções de efetivar um possível corredor ecológico, e gradual diminuição do manejo, na medida em que a floresta evolui, a diversidade de espécies é maior, havendo presença de arvores sem fins de utilização, e ordenamento espacial heterogêneo dos cultivos. Há muitas SAFs onde se escolhe uma cultura principal que será comercializada, e espécies diversas voltadas para consumo alimentar da família e composição arbórea do sistema, sem fins lucrativos. A escolha do agricultor, e os contextos locais irão situar o SAF entre estes dois objetivos, de produção e conservação, que podem se desenvolver paralelos, de forma recíproca. As técnicas agroflorestais se baseiam na observação e experimentação. Se a produtividade não está atendendo às demandas da família, o manejo pode tomar outros rumos e se adaptar às barreiras impostas. Trata-se de um sistema dinâmico cuja evolução integra o agricultor e o ambiente trabalhado, exige retroalimentação, ou seja, observar as repostas das ações desenvolvidas, de forma a compreender as dinâmicas agroecológicas.

A questão da produtividade irá depender das escolhas dos consórcios de espécies adotados pelos agricultores. Partindo do principio da sucessão ecológica, podem ser escolhidas espécies pioneiras produtivas, como a mandioca, o milho, o feijão, plantados em conjunto com espécies de

Page 36: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

safras mais longas como mamão, banana prata, abacaxi, balsa, seguidas de espécies secundarias igualmente produtivas como pupunha, manga, alcançando por fins espécies primarias como castanheiras, figueiras, copaíba. A idéia é plantar espécies com períodos de safra distintos de modo à garantir alta produtividade ao longo de todas as estações, e ainda não sofrer com possíveis prejuízos com perda de determinadas safras.

A baixa produtividade de um cultivo com a ampla diversidade também pode se apresentar como uma dificuldade de geração de renda para o produtor. Na medida em que produção se diversifica, a quantidade por produto diminui, o que pode vir a dificultar a comercialização. A comercialização já é um problema atual em diversas comunidades rurais devido a um complexo de fatores como falta de incentivos por parte do governo, isolamento e baixa articulação comunitária. Uma possibilidade de fomentar a comercialização é através da organização comunitária. A comercialização sendo feita a partir de cooperativas diminui as dificuldades impostas pelo mercado e pelo isolamento, como o transporte, a divulgação (publicidade), a certificação e possíveis beneficiamentos que possam agregar valor aos produtos.

A agricultura familiar praticada atualmente pelos caiçaras não possui em sua maioria fins lucrativos, e sim de alimentação. Apesar de haver um mercado consumidor em potencial para os agricultores, a maioria planta apenas para consumo familiar, talvez por medo da repressão dos órgãos governamentais ambientalistas, somado à falta de incentivos. Portanto, a possível baixa produtividade para comercialização não se apresenta como um entrave para a experimentação de SAFs nos territórios caiçaras.

Os SAFs tendem a propiciar uma diversificação alimentar, que tem se mostrado na área da nutrição como de grande importância para a saúde dos indivíduos, assim como para seu desenvolvimento físico e mental. Como foi verificado no trabalho de campo os caiçaras mudaram substancialmente sua alimentação com a drástica diminuição das atividades agrícolas. A antiga alta diversidade produtiva, relatada pelos antigos em todas as praias garantia uma alimentação diversa e completa aos praianos. Cará, batata doce, arroz, feijão, inhame, milho, tomate, jaca, goiaba, banana, manga, pitanga, mamão, jabuticaba, entre outros alimentos “da terra” compunha a dieta cotidiana, propiciando alta qualidade de vida. Todos os antigos dizem que a comida plantada dá mais saúde além de ser muito mais saborosa: “o pessoal da roça tem mais saúde que na cidade pois a comida é mais natural”, relata moradora local da praia Grande, Dona Maria. Nas praias, mesmo sem nunca ter consultado um médico, muitos antigos ultrapassam os 100 anos de idade, com total lucidez, praticando atividades agrícolas, fazendo trilha, e com boa memória. “A vida na roça é sadia, liberta, na cidade é presa, ninguém faz exercício, ninguém anda” comenta morador de Cairuçu, seu Aplígio.

Desta forma, a implementação de SAFs pode se apresentar como uma alternativa viável para recuperar a agricultura familiar que está diminuindo drasticamente entre as comunidades caiçaras da costeira da Juatinga. Até mesmo associado ao desenvolvimento de pesquisas cientificas, ou projetos governamentais. Já em 2001 podemos observar iniciativas do governo em financiar pesquisas e implementação de agroflorestas na agricultura nacional. Consultando o Orçamento Fiscal da União, em favor do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Brasília, de dezembro de 2001, foi direcionado recursos financeiros da carga de 160.000 reais para a “pesquisa e desenvolvimento em conservação, manejo, transformação e utilização de florestas e agroflorestas”. Essa preocupação com SAFs por parte do governo é importante na medida em que abre possibilidades de incentivos à experiências a serem desenvolvidas.

Uma vantagem da aplicação de SAFs como forma de adaptação da agricultura caiçara às atuais perturbações do sistema, sendo estas mais sociais e institucionais do que ecológicas, é que seus insumos são simples e inerentes ao sistema em conteúdo de matéria e energia: sementes e conhecimento ecológico. Este sistema garante autonomia e sustentabilidade de agricultores familiares, alem de apresentar custo reduzido e recuperar áreas degradadas. Sendo assim, o isolamento das comunidades caiçaras da costeira da Juatinga não seria um fator de dificuldade para a aplicação

Page 37: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Em questões de resiliencia do ecossistema, os caiçaras tradicionalmente tem mostrado altos valores de resiliencia ecológica, verificada inclusive por pesquisadores como Begossi (2003). No entanto, como a própria autora adverte, existem diversas análises do sistema, sendo necessário considerar o caráter social, cultural e ainda institucional da resiliencia, além das características ecológicas. O que foi verificado a partir das observações de campo e leituras realizadas está de acordo com a posição de Begossi, que considera os territórios caiçaras associados à alta resiliencia ecológica, porém baixas resiliência sócio-culturais e resistência. A autora associa essa baixa resiliencia social à ausência de arranjos institucionais locais, fragilizando a sociedade, e diminuindo sua capacidade de resistência frente às perturbações, e resiliencia frente às mudanças originadas.

Apesar da separação analítica dos vetores de resiliencia, uma abordagem sistêmica possibilita enxergar a conectividade das questões sociais, culturais, ecológicas, institucionais e econômicas. Com baixa resiliencia social e cultural, a sustentabilidade ecológica se fragiliza. Frente a esse quadro, surge a necessidade de incentivar mecanismos de adaptação às perturbações e ao contexto sócio-politico-ambiental atual, tanto global quanto local. A agroecologia pode se mostrar como uma alternativa viável à degeneração cultural dos caiçaras, e uma possível instabilidade ambiental conseqüente, na região da Juatinga. Concomitante, é de extrema importância fortalecer a articulação e organização comunitária. Essa iniciativa pode se associar à outra importante demanda, que é o resgate cultural dos caiçaras, principalmente entre a nova geração de jovens e crianças. A escola, presente na maioria das praias visitadas, surge como uma estrutura com alto potencial para a valorização das tradições caiçaras, a partir de uma educação integrando a historia cultural e ambiental local, expondo o atual processo de transformação pela qual as comunidades passam atualmente, e suas causas e conseqüências.

É realizado na cidade de Paraty reuniões periódicas com todos os professores das comunidades, organizadas pela secretaria de educação. Todos da zona costeira participam. Ocorre em media de 15 em 15 dias. Há reuniões periódicas com as associações de moradores da costeira também. Os participantes são os presidentes e vice presidentes. Estes encontros já são formas iniciais de articulação, que podem se desenvolver e aprofundar, com fins de instituir lutas e conquistas sócio-políticas, alem de fortalecer a organização das comunidades, que por sua vez lidarão com as perturbações, pressões e mudanças de forma mais autônoma.

Page 38: MODOS DE VIDA E DE PRODUÇÃO CAIÇARA E MANEJO …arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/pesquisas/RE... · tradicionais (entre outras de ocupação recente) que possuem

BIBLIOGRAFIA:

ADAMS, Cristina, Caiçaras na Mata Atlântica : pesquisa científica versus planejamento territorial e gestão ambiental, São Paulo : Annablume: FAPESP, 2000. 336p

ARAÚJO, Carolina D. de, Turismo na Ilha Grande: comparando a percepção dos moradores da vila do Abraão e da Vila Dois Rios em função do impacto ambiental.

Armando, Marcio s, 2005, Agrofloresta: Potencialidades e Oportunidades para o Semi-Árido, www.agroecologica.com.br

COSGOVE, D. 1998, “A Geografia está por tida a parte: Cultura e Simbolismo nas Paisagens Humanas”, In: CORRÊA, R. L. & ROSENDAHL, Z. (orgs) Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro, EDUERJ, 123p (p91-123)

DIEGUES, Antônio, C, 2004, “A mudança como modelo cultural: o caso da cultura caiçara e a urbanização”, in: Enciclopédia Caiçara, v.1, Antonio Carlos SantÁnna Diegues (org) – São Paulo : HUCITEC : NUPAUB : CEC/USP, (pgs 21 – 48)

DIEGUES, A. C., 1998, O mito moderno da natureza intocada, Editora HUCITEC, São Paulo, 169p

ESTERCI, N.; LIMA, D.; LÉNA P. (2002) Diversidade sociocultural e políticas ambientais na Amazônia: o cenário contemporâneo. In: ESTERCI, N.; LIMA, D.; LÉNA P.(Orgs) Boletim Rede Amazônia: Diversidade Sociocultural e Políticas Ambientais, Ano 1, n.1 [S.n]

GALLAIS, J. 1976, “Alguns aspectos do espaço vivido nas civilizações do mundo tropical”. L´Éspace Géographique, 5 (1).

Guia do Educador da Oficina de Capacitação em Educação Ambiental, Parque Nacional da Amazônia, 2005, p 1-76

HAESBAERT, R. (2002). Territórios Alternativos. Rio de Janeiro: Editora Contexto e EdUFF.

LEITE, M. A. F. 1994, “A paisagem, uma relação cultural com o entorno.” In: Destruição ou Desconstrução? São Paulo, HUCITEC, 177p (p.28-48)

PENEIREIRO, F. M., 2005, Fundamentos da Agrofloresta Sucessional, IN: http://www.agrofloresta.net/artigos/agrofloresta_sucessional_sergipe_peneireiro.pdf

PENEIREIRO, F. M., 1999 Os Sistemas Agroflorestais (SAFs) dirigidos pela sucessão natural, IN: Boletim AgroEcológico no. 10 – Fev/99 - p.15-16 www.agroecologica.com.br