MODOS LITÚRGICOS

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1 CEP- Escola de Música de Brasília PEM – 5 - 2º. Bimestre/2011 30 de abril de 2011 Profa. Alice Marques Modos litúrgicos Alice Marques 1 1. Os modos na Grécia Antiga “A mitologia grega atribuía à música origem divina e designava como inventores e intérpretes deuses e semideuses, como Apolo, Anfião e Orfeu” (GROUT e PALISCA, 2001, p. 17). Sendo divina, acreditava-se provocar efeitos mágicos de cura entre outras manifestações. Segundo os autores, igualmente no Antigo Testamento a música também possuía poderes extranaturais como, por exemplo, quando “David cura a loucura de Saul tocando harpa (I Samuel, 16, 14-23) ou soar das trombetas e a vozearia que derrubaram as muralhas de Jericó (Josué, 6, 12-20)” (p. 17). “Desde os tempos mais remotos a música foi um elemento indissociável das cerimônias religiosas. No culto a Apolo era a lira o instrumento característico, enquanto no de Dionísio era o aulo” (p. 17). A Grécia possuía um sistema musical próprio, que incluía um sistema peculiar de escalas. Os conceitos de nota e intervalo dependiam do tipo de sustentação da voz: contínua quando a voz se deslocava em alturas e diastemática se permanecia sustentando um determinado som fixo. A unidade escalar era constituída por quatro notas sequentes: o tetracorde. Os tetracordes faziam combinações entre si. Uma dessas combinações tornou-se “o 1 [email protected]

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Apostila de PEM V - 2011

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CEP- Escola de Música de BrasíliaPEM – 5 - 2º. Bimestre/201130 de abril de 2011Profa. Alice Marques

Modos litúrgicos

Alice Marques1

1. Os modos na Grécia Antiga

“A mitologia grega atribuía à música origem divina e designava como

inventores e intérpretes deuses e semideuses, como Apolo, Anfião e Orfeu” (GROUT e

PALISCA, 2001, p. 17). Sendo divina, acreditava-se provocar efeitos mágicos de cura

entre outras manifestações. Segundo os autores, igualmente no Antigo Testamento a

música também possuía poderes extranaturais como, por exemplo, quando “David

cura a loucura de Saul tocando harpa (I Samuel, 16, 14-23) ou soar das trombetas e a

vozearia que derrubaram as muralhas de Jericó (Josué, 6, 12-20)” (p. 17). “Desde os

tempos mais remotos a música foi um elemento indissociável das cerimônias

religiosas. No culto a Apolo era a lira o instrumento característico, enquanto no de

Dionísio era o aulo” (p. 17).

A Grécia possuía um sistema musical próprio, que incluía um sistema peculiar

de escalas. Os conceitos de nota e intervalo dependiam do tipo de sustentação da

voz: contínua quando a voz se deslocava em alturas e diastemática se permanecia

sustentando um determinado som fixo. A unidade escalar era constituída por quatro

notas sequentes: o tetracorde. Os tetracordes faziam combinações entre si. Uma

dessas combinações tornou-se “o sistema perfeito completo - uma escala de duas

oitavas composta de tetracordes alternadamente conjuntos e disjuntos” (p. 23).

Segundo Grout e Palisca (2001), Aristóteles pronunciou que:

“Os modos musicais apresentam entre si diferenças fundamentais e quem os ouve é por eles afetado de maneiras diversas. Alguns deixam os homens graves e tristes, como o chamado mixolídio; outros enfraquecem o espírito, como os mais brandos; outro suscita um humor moderado e tranquilo. E tal parece ser o efeito particular do dórico; o frígio inspira o entusiasmo” (p. 27, 28)

Os gregos tocavam seus instrumentos entusiasticamente. Dedicados à bela

arte, frutificaram músicos virtuoses. A música se complexificava intensamente, fato

que preocupou Aristóteles, o qual lamentava o “excesso de treino profissional” (p. 18).

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2. Os modos na Era Cristã

Presente amplamente na sociedade, a música integrava-se a vários hábitos

sociais, como festividades de toda ordem e ainda em variados ambientes intimistas.

Essa associação da música a tais hábitos tornou-se alvo de críticas por parte dos

cristãos, que desejavam desvincular música a prazer - qualquer que fosse. Sua

presença nos grandes encontros públicos como festivais, concursos, teatro e outros

colóquios mais intimistas determinava que fosse rejeitada nos círculos cristãos, pois

ouvi-las ou praticá-las poderia desvirtuar o coração cristão. Tal rejeição desencadeou

uma nova perspectiva musical: a música a serviço de Deus.

Elementos musicais oriundos de diversas influências (Jerusalém, Ásia Menor,

África e Europa) agregavam-se em cânticos litúrgicos. “Os tipos ou modos de melodias

tem designações diferentes nas diversas culturas musicais – rága na música hindu,

maqam na música árabe... e em hebraico são conhecidos por... modo.” (p. 37). O uso

dos modos dependia do texto e função no serviço religioso.

Toda essa confluência histórica resultou no estabelecimento ocidental dos

modos, constituído pela contribuição das várias culturas entrelaçadas pelo

cristianismo, como por exemplo, jônico (asiático), dórico (sul da Grécia) (SOLOMON

apud GROUT e PALISCA, 2001). A forma de registro musical escrito elaborado pelo

Papa Gregório (por volta de 590), a qual derivou nossa notação atual, consolidou a

perspectiva que se queria determinar musicalmente em atmosfera cristã. “O

desenvolvimento do sistema de modos medieval foi um processo gradual, de que não

é possível reconstituir claramente todas as etapas” (GROUT e PALISCA, 2001, p. 77).

Dessa maneira, vamos avançar para os modos eclesiásticos ou litúrgicos.

Os modos litúrgicos mantêm os nomes dos modos gregos, mas se diferem em

vários aspectos tais como: os modos gregos eram considerados escalas

descendentes, sua estrutura, constituída por tetracordes e combinações entre um e

outro; os modos modernos são considerados escalas diatônicas.

Para Alves (1997), “os modos tinham relação com as notas do teclado que só

possuía teclas brancas” o que limitava as possibilidades tonais (p. 18). Segundo Grout

e Palisca (2001), “os modos eram identificados por números e agrupados aos pares;

os ímpares eram designados autênticos (originais) e os pares por plagais (colaterais)”

(p. 77). O que caracteriza o modo é a final (ou tônica, a mesma nos modos autêntico e

plagal correspondentes), o tenor e a extensão da melodia.

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Os modos litúrgicos possuem desenvolvida uma teoria própria, entretanto, para

a ocasião das nossas aulas, será utilizado o ponto de vista de Bohumil Med que

retoma a perspectiva da constituição dos modos em forma de agrupamentos de

tetracordes, quais sejam:

MODOS AUTÊNTICOS (ORIGINAIS) e TETRACORDES

DÓRICO R M F S L T D R

FRÍGIO M F S L T D R M

LÍDIO F S L T D R M F

MIXOLÍDIO S L T D R M F S

No caso dos modos plagais, Med (1996) recomenda que se invertam os

tetracordes e os denominem com o mesmo nome acrescido de hipo, ou seja, o que

era segundo tetracorde assumirá a posição inicial.

MODOS PLAGAIS (COLATERAIS) e TETRACORDES

HIPODÓRICO L T D R M F S L

HIPOFRÍGIO T D R M F S L T

HIPOLÍDIO D R M F S L T D

HIPOMIXOLÍDIO R M F S L T D R

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Algumas características determinavam as diferenças entre autêntico e plagal.

Por exemplo, a plagal avançava em sua extensão causando tensões harmônicas, as

quais justamente a caracterizavam como plagal. Segundo Grout e Palisca (2001), a

final (ou tônica) é a mesma tanto nos modos originais quanto nos plagais; somente o

tenor se desloca em função da quinta dominante que não pode ser a nota si. Caso a

melodia avance em extensão para baixo, será considerada plagal.

Segundo Alves (1997):

“Em 1547, foram introduzidos os [modos] de A e C (eólio e jônico)”, “a tentativa de adoção do modo de B (Lócrio) não sobreviveu à teoria de que o intervalo de 5ª. diminuta, entre as notas si e fá, criava uma sonoridade excêntrica, inadmissível. O próprio modo jônico teve sua execução proibida, pois sua sonoridade era considerada alegre e porque era utilizado em manifestações populares” (p. 18)

EÓLIO Referente a lá m L T D R M F S L

LÓCRIO Pouco utilizada no

universo erudito

T D R M F S L T

JÔNIO Referente a dó M D R M F S L T D

No final da idade média, segundo Med (1996), os modos jônio e eólio

obtiveram a preferência dos músicos que os denominaram respectivamente, modos

maior e menor. O modo lócrio foi criado unicamente com o propósito de compor a

estrutura modal, entretanto não é utilizado. Os modos podem ser classificados em

maiores e menores, segundo a primeira terça da escala. São modos maiores o jônio,

lídio e mixolídio e menores o dórico, frígio, eólio e lócrio (este diminuto).

3. Os modos na atualidade

Na atualidade, os modos são bastante utilizados na música popular. Músicas

muitas vezes oriundas do nordeste brasileiro compõem repertórios nos quais se pode

verificar o uso de modos litúrgicos, como é o caso de Asa Branca de Luiz Gonzaga

entre outros.

Os modos determinaram muitas regras teóricas e práticas desde seu remoto

princípio antes da era cristã. Uma das formas de análise atual consiste na observação

de sua estrutura intervalar e correspondência com os padrões das escalas modernas

predominantes. São também denominados de escalas modais.

MODO ESTRUTURA NOTA DIFERENTE CORRESPONDÊNCIA COM

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INTERVALAR EM RELAÇÃO À

ESCALA MODERNA

OS PADRÕES ATUAIS DE

ESCALA

JÔNIO M - Dó M

DÓRICO M com 6M Si Ré m com 6M

FRÍGIO m com 2m Fá Mi m com 2m

LÍDIO M com 4aum Si Fá M com 4aum

MIXOLÍDIO M com 7m Fá Sol M com 7m

EÓLIO m - Lá m

LÓCRIO m com 2m e 5dim Dó e fá Si m com 2m e 5dim

Alves (1997) apresenta em seu livro sobre escalas para improvisação em

música popular além da escala maior como geradora dos modos, outras escalas

igualmente geradoras como a escala menor melódica e ainda menor harmônica.

Modos gerados na escala menor melódica

a) menor melódica; b) dórica 2 m; c) lídia aumentada; d) lídia

dominante; e) mixolídia 6 m; f) lócria 2 M; g) super lócria.

De certa maneira é fácil obter-se uma idéia geral da constituição modal,

entretanto seria necessário explorar mais as características de uso e época para que

se possa adquirir uma compreensão musical mais aproximada desse sistema musical

que vem fascinando os músicos há tantos séculos.

Referências

ALVES, Luciano. Escalas para improvisação – em todos os tons para vários instrumentos. Irmãos Vitale, 1997.

GROUT, Donald J. e PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 2ª. Edição. Revisão Técnica de Adriana Latino. Gradiva, 2001.

MED, Bohumil. Teoria da Música. 4ª. edição. Musimed, 1996.

Modos gregos. In: www.pt.wikipedia.org/wiki/modos_gregos. acesso em 29/04/11.