Modulo Cim 8 - Completo

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LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXSITAS

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LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXSITAS

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CALENDÁRIO DO CURSO

16 DE FEVEREIRO A 13 DE ABRIL DE 2013

BLOCO TEMÁTICO DATA TEMA REFERÊNCIA

ABERTURA 16/02 A vigência do marxismo na

atualidade

INTRODUÇÃO AO MARXISMO

23/02 MARX E ENGELS: Vida e obra

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ENGELS, F. ENGELS, F.Sobre Karl Marx. Discurso no funeral

de Karl Marx

02/03

A concepção materialista da

história

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ENGELS, F. O papel do

trabalho na transformação do

macaco em homem.

MARX, Karl. Prefácio. Para a Crítica da Economia Política

ECONOMIA 09/03

A crítica do capital e as

contradições da sociedade

burguesa

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MARX. Karl. Trabalho

assalariado e capital.

ORGANIZAÇÃO

POLÍTICA 16/03

Estado, luta de classes e a

estratégia socialista

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ENGELS, F; MARX.

Karl.Mensagem a liga dos

comunistas.

HISTÓRIA 23/03

O lugar do marxismo na

história

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ENGELS. F. Do socialismo

utópico ao socialismo

científico

LUTA DE CLASSES

E MOV. SOCIAIS 06/04

Luta de classes e movimentos

sociais

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PEREIRA, F; MARINHO, S.

Condições materiais, Luta de

Classes e Socialismo.

MARXISMO NO

BRASIL 13/04

Marxismo e lutas sociais no

Brasil ver apresentação

PEREIRA, F; MARINHO, S.

Marxismo e Lutas Sociais no Brasil.

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ENGELS

KARL MARX

Karl Marx, o homem que deu pela primeira vez uma base científica ao socialismo, e, portanto, a todo o movimento operário de nossos dias, nasceu em Tréveris, em 1818. Começou a estudar direito em Bonn e em Berlim, mas logo se entregou exclusivamente ao estudo da história e da filosofia e se preparava para concorrer, em 1842, a uma cátedra de filosofia quando o movimento político ocorrido após a morte de Frederico Guilherme III orientou a sua vida para outro caminho.

A Gazeta Renana

Os caudilhos da burguesia liberal renana, os Camphausen, Hansemann etc., haviam fundado em Colônia, com sua cooperação, a Gazeta Renana; e no outono de 1842 Marx, cuja crítica dos debates da Dieta provincial renana tinha produzido enorme sensação, foi colocado à frente daquela publicação. A Gazeta Renana foi publicada naturalmente, sob censura, que, entretanto era impotente diante dela1. O jornal deixava para o fim quase sempre os artigos que lhe interessava publicar: começava-se entregando ao censor coisas sem importância para que as vetasse, até que ou cedia por si mesmo ou se via obrigado a ceder sob a ameaça de que o jornal não sairia no dia seguinte. Com dez periódicos com a mesma valentia d a Gazeta Renana e cujos editores houvesse gasto algumas centenas mais de táleres em composição, teria sido impossível a censura na Alemanha já em 1843. Mas os proprietários dos jornais alemães eram filisteus mesquinhos e covardes, e a Gazeta Renana lutava sozinha. Consumia um censor após outro até que, por fim, foi submetida à dupla censura, devendo passar, depois da primeira, por nova e definitiva revisão do Regierungspräsident 22. Mas isto tampouco bastava. E no início de 1843, o governo declarou que não era mais possível suportar este jornal e, sem mais explicações, proibiu-o partir dessa data.

Marx, que se casara com a irmã de von Westphalen, que mais tarde seria ministro da reação, mudou-se para Paris, onde editou com Arnold Ruge os Anais Franco-Alemães nos quais iniciou a série de seus escritos socialistas com a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Depois, em colaboração com F. Engels, publicou A Sagrada Família/Contra Bruno Bauer e Consortes, crítica satírica de uma das últimas formas em que se havia extraviado o idealismo filosófico alemão da época.

A Liga dos Comunistas e o Manifesto Comunista

O estudo da economia política e da história da grande Revolução Francesa deixava ainda tempo a Marx para atacar, de vez em quando, o governo prussiano; este se vingou conseguindo do ministério Guizot, na primavera de 1845 e parece que o mediador foi o senhor Alexandre de Humboldt, que ele fosse expulso da França. Marx transferiu sua residência para Bruxelas onde, em 1847, publicou em língua francesa A Miséria da Filosofia, crítica da Filosofia da Miséria, de Proudhon, e, em 1848, seu Discurso Sobre o Livre-Câmbio. Ao mesmo tempo teve oportunidade de fundar em Bruxelas uma associação de operários alemães, como que entrou no terreno da agitação política. Essa agitação adquiriu ainda maior importância para ele ao ingressar, em 1847, juntamente com seus amigos políticos, na Liga dos Comunistas, liga secreta que tinha já vários anos de existência. Toda a estrutura dessa organização foi radicalmente transformada; o que havia sido, até então, uma sociedade mais ou menos conspirativa, converteu-se numa simples organização de propaganda comunista secreta tão somente porque as circunstâncias assim o exigiam e foi a primeira organização do Par tido Social Democrata Alemão. A Liga existia onde

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quer que existissem associações de operários alemães; em quase todas essas associações, na Inglaterra, na Bélgica, na França, em Suíça e numerosas associações da Alemanha, os membros filiados à Liga que tinha uma considerável participação no nascente movimento operário alemão. Além disso, nossa Liga foi a primeira a ressaltar, pondo-o em prática, o caráter internacional de todo movimento operário; entre seus membros figuravam ingleses, belgas, húngaros, poloneses etc.; e organizava, principalmente em Londres, assembléias operárias de caráter internacional.

A transformação da Liga teve lugar em dois congressos realizados em 1847, o segundo dos quais aprovou a redação e publicação dos princípios do Partido, através de um manifesto que deveria ser redigido por Marx e Engels. Assim surgiu o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, pouco antes da Revolução de Fevereiro, e que foi depois traduzido a quase todos os idiomas europeus.

1848 e A Nova Gazeta Renana

A Deutsche Brüsseler Zeitung3, em que Marx colaborava e onde eram postas a nu, implacavelmente, as venturas policiais da pátria, levou novamente o governo prussiano a tudo fazer para conseguir a expulsão de Marx, mas em vão. Quando, porém, a Revolução de Fevereiro provocou também em Bruxelas movimentos populares e parecia ser iminente na Bélgica uma mudança radical, o governo belga deteve Marx sem contemplações e o expulsou do país. Entretanto, o governo provisório da França, por mediação de Flocon, convidara-o a voltar a Paris, convite que foi aceito.

Em Paris, defrontou-se antes de tudo com o alarde criado entre os alemães ali residentes em torno do plano de organizar os operários alemães da França em legiões armadas para, com elas, introduzir na Alemanha a revolução e a república. De um lado, era a Alemanha que tinha de fazer por si mesma a revolução e, de outro, toda a legião revolucionária estrangeira que se formasse na França nascia já delatada pelos Lamartines do governo provisório ao governo que se queria derrubar, como ocorreu na Bélgica e em Baden.

Após a Revolução de Março, Marx mudou-se para Colônia e aí fundou a Nova Gazeta Renana, que viveu de 1 de junho de 1848 até 19 de maio de 1849. Foi o único periódico que defendeu, dentro do movimento democrático da época, a posição do proletariado, atitude que já tinha adotado, na verdade, ao abraçar sem reservas o partido dos insurretos de Junho de 1848 em Paris, o que lhe valeu a deserção de quase todos os acionistas. Em vão a Kreuzzeitung4 assinalava o "Chimborazo de insolências” com que a Nova Gazeta Renana atacava tudo o que era sagrado, desde o rei e o regente do Império até os gerdames, que eram numa fortaleza prussiana, que dispunha então de uma guarnição de oito mil homens; em vão clamava o coro de filisteus liberais renanos, subitamente convertido a reação; em vão o estado de sítio decretado em Colônia no outono de 1848, suspendeu por muito tempo o jornal; em vão o Ministério da Justiça do Império denunciava, de Frankfurt, ao fiscal de Colônia artigo após artigo a fim de que se instaurasse processo judicial; o jornal continuava a ser escrito e impresso tranqüilamente, às vistas do corpo principal de guarda e sua difusão e sua notoriedade cresciam com a violência dos ataques do governo e da burguesia. Ao verificar-se, em novembro de 1848 o golpe de estado da Prússia, a Nova Gazeta Renana incitava o povo, em suas primeiras páginas, para que se negasse a pagar os impostos e respondesse à violência com a violência. Levado ao tribunal, na primavera de 1849, por esse e por outro artigo, o jornal foi absolvido duas vezes. Por fim, após o esmagamento das insurreições de maio de 1849, em Dresden e na província do Reno, e ao iniciar-se a campanha prussiana contra a insurreição de Baden-Palatinado, através da concentração e mobilização de grandes contingentes de tropas, o governo julgou-se bastante forte para suprimir pela violência a Nova Gazeta Renana. O último número - impresso em vermelho - apareceu em 19 de maio.

Marx transferiu-se novamente para Paris, mas poucas semanas após a manifestação de 13 de junho de 1849, o governo francês colocou-o diante da alternativa de mudar sua residência

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para Bretanha ou sair da França. Preferiu a última solução e foi para Londres, onde permaneceu desde então ininterruptamente.

A tentativa de continuar publicando a Nova Gazeta Renana em forma de revista (em Hamburgo, 1850) teve de ser abandonada algum tempo depois, em face da crescente violência da reação. Imediatamente depois do golpe de Estado de dezembro de 1851 na França, Marx publicou O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (Boston, 1852, 2 ed., Hamburgo, 1869, pouco antes da guerra). Em 1853, escreveu as Revelações Sobre o Processo dos Comunistas em Colônia (obra impressa primeiramente em Basiléia, mais tarde em Boston e reeditada recentemente em Leipzig).

O Capital

Após a condenação dos membros da Liga dos Comunistas s em Colônia, Marx retirou-se da agitação política e se consagrou, de um lado, pelo espaço de dez anos, a estudar a fundo os ricos tesouros encerrados na biblioteca do Museu Britânico em matéria de economia política e, de outro lado, a colaborar no New York Tribune5, jornal que, até estourar a guerra norte-americana de secessão, não só publicou as correspondências assinadas por ele, mas também numerosos artigos editoriais sobre temas europeus e asiáticos saídos de sua pena. Seus ataques contra Lord Palmerston, baseados em minuciosos estudos de documentos oficiais ingleses, foram editados em Londres como folhetos de agitação.

Como primeiro fruto de seus largos anos de estudos econômicos apareceu em 1859 a Contribuição a Critica da Economia Política, cujo primeiro caderno foi publicado em Berlim. Essa obra contém a primeira exposição sistemática da teoria do valor de Marx, incluindo a teoria do dinheiro. Durante a guerra italiana, Marx, através das colunas do Das Volk66, jornal alemão que se publicava em Londres, combateu o bonapartismo, que então posava de libera l e libertador das nacionalidades oprimidas, e a política prussiana da época que, sob o manto da neutralidade, procurava pescar em águas turvas. A propósito disso, foi obrigado a atacar também o senhor Karl Vogt, que fazia então agitação a favor da neutralidade e, mais ainda a, denotava grande simpatia pela Alemanha, por incumbência do Príncipe Napoleão (Plon-Plon) e a soldo de Luís Napoleão. Como Vogt lançasse contra ele as calunias mais infames, evidentemente infundadas, Marx respondeu-lhe com o livro O Senhor Vogt (Londres, 1860), onde desmascara Vogt e os demais senhores do bando bonapartista de pseudodemocratas, demonstrando com provas de caráter externo e interno que Vogt estava subornado pelo Império decembrino. Exatamente dez anos depois isso era confirmado: na lista das pessoas a soldo do bonapartismo, descoberta nas Tulherias em 1870 e publicada pelo governo de Setembro, aparecia na letra "V" a seguinte referência: “Vogt: foram-lhe entregues em agosto de 1859... 40.000 francos".

Por fim, em 1867 apareceu em Hamburgo o primeiro tomo de O Capital - Crítica da Economia Política, a principal obra de Marx, em que são expostas as bases de suas idéias econômicas- socialistas e os aspectos fundamentais de sua crítica da sociedade existente, do modo de produção capitalista e de suas conseqüências. A segunda edição dessa obra que faz época foi publicada em 1872 e o autor dedica-se atualmente à preparação do segundo tomo.

A internacional e a Comuna

Entretanto, o movimento operário em diversos países da Europa voltara a fortalecer-se em tal medida que Marx pôde pensar em pôr em prática um desejo há muito tempo acariciado: fundar uma associação operária que abrangesse os países mais adiantados da Europa e da América que devia personificar, por assim dizer, o caráter internacional do movimento socialista, tanto ante os próprios operários, como ante os burgueses e os governos, para animar e fortalecer o proletariado e atemorizar seus inimigos. A oportunidade para expor a idéia, que foi acolhida com entusiasmo, surgiu em um comício popular realizado no Saint Martin's Hall de Londres, a 28 de setembro de

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1864, a favor da Polônia, que voltava a ser esmagada pela Rússia. Fundava-se assim a Associação Internacional dos trabalhadores. Na assembléia foi eleito um Conselho Geral provisório sediado em Londres. A alma desse Conselho Geral, como dos que se seguiram até o Congresso de Haia, foi Marx. Ele redigiu quase todos os documentos lançados pelo Conselho Geral da Internacional, desde o Manifesto Inaugural de 1864, até o manifesto sobre a guerra civil da França em 1871. Pormenorizar a atuação de Marx na Internacional equivaleria a escrever a história dessa mesma associação que, de resto, vive na memória dos operários da Europa.

A queda da Comuna de Paris colocou a Internacional uma situação impossível. Viu se impelida para o primeiro plano da história européia, num momento em que, por toda a parte, estava afastada a possibilidade de uma ação prática eficaz. Os acontecimentos que a erigiram como sétima grande potência impediam-na, ao mesmo tempo, de mobilizar e pôr em ação as suas forças combativas, sob pena de levar a uma derrota infalível o movimento operário e de contê-lo por vários decênios. Além disso, lutavam toda parte, para se colocarem nas primeiras filas, elementos que tentavam explorar, por razões de vaidade ou de ambição pessoal, a reputação da Associação, que tão subitamente crescera, sem compreenderem a verdadeira situação da Internacional ou se preocuparem com ela. Era necessário adotar uma decisão heróica e foi Marx, como sempre, quem a tomou e assegurou a sua vitória no Congresso de Haia. Numa decisão solene, a Internacional desvinculou-se de qualquer responsabilidade pelas manobras dos bakuninistas, que eram o núcleo daqueles elementos insensatos e pouco honrados; em seguida, diante da impossibilidade de cumprir também, frente à reação geral, as exigências redobradas que lhe eram feitas e de manter de pé sua plena atividade, a não ser através de muitos sacrifícios, que necessariamente iriam sangrar o movimento operário, a Internacional retirou-se provisoriamente de cena, transferindo para a América do Norte o Conselho Geral. Os acontecimentos posteriores vieram comprovar o acerto dessa decisão, tantas vezes criticada na época e mesmo depois. De um lado, foram cortadas pela raiz, e continuaram a serem cortadas no futuro, as possibilidades de organizar em nome da Internacional vãs intentonas; de outro lado, as constantes e estreitas relações entre os partidos operários socialistas dos diferentes países demonstravam que a consciência da identidade de interesses e da solidariedade do proletariado de todos os países, despertada pela Internacional, chega a impor-se mesmo sem a vinculação de uma entidade internacional formal que, no momento, se convertera em um entrave.

Depois do Congresso de Haia, Marx voltou a encontrar, por fim, tempo e sossego para reiniciar seus trabalhos teóricos, e é de esperar-se que num espaço de tempo não muito longo possa entregar à publicação o segundo tomo de O Capital.

A revolução teórica de Marx: a luta de classes

Entre as numerosas e importantes descobertas com que Marx inscreveu o seu nome na história da ciência, só duas queremos destacar aqui.

A primeira é a revolução que realizou em toda a concepção da história universal. Até aqui, toda concepção da história baseava-se no pressuposto de que as causas últimas de todas as transformações históricas deviam ser procuradas nas transformações que se operam nas idéias dos homens, e de que entre todas as transformações, as mais importantes, as que regiam toda a história, eram as políticas. Não se perguntava de onde vinham aos homens às idéias nem quais as causas motrizes das transformações políticas. Só na escola moderna dos historiadores franceses, e em parte também dos ingleses, se impusera a convicção de que, pelo menos desde a Idade Média, a causa motriz da história européia era a luta da burguesia em desenvolvimento contra a nobreza feudal pelo poder social e político. Pois bem: Marx demonstrou que toda a história da humanidade, até hoje, é uma história das lutas de classes, que todas as lutas políticas, tão variadas e complexas, giram unicamente em torno do poder social e político de umas e outras classes sociais; por parte das velhas classes, para conservar o poder e, por parte das novas classes, para conquistá-lo. E o que dá origem e existência a essas classes? As condições materiais, tangíveis, em que a sociedade de uma determinada época produz e troca o necessário

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para o seu sustento. A dominação feudal da Idade Média apoiava-se na economia fechada das pequenas comunidades camponesas, que cobriam por si mesmas quase todas as necessidades, menos a troca, e às quais a nobreza guerreira prestava apoio contra o exterior e dava coesão nacional ou, pelo menos, política. Com o surgimento das cidades e, assim, de uma indústria artesanal e dissociada e um tráfico comercial, primeiro interno e em seguida internacional, desenvolveu-se a burguesia urbana e conquistou, lutando contra a nobreza, ainda na Idade Média, sua incorporação à ordem feudal, como estrato também privilegiado. Mas com a descoberta dos territórios não europeus, a partir d e meados do século XV, a burguesia obteve uma zona comercial muito mais extensa e, portanto, um novo estímulo para a sua indústria. A indústria artesanal foi deslocada nos ramos mais importantes pela manufatura de tipo já fabril e esta, por sua vez, pela grande indústria, que havia tornado possíveis as invenções do século passado, principal mente a máquina a vapor e que, por sua vez, repercutiu sobre o comércio desalojando, nos países atrasados, o antigo trabalho manual e criando, nos mais adiantados, os modernos meios de comunicação, os barcos a vapor, as ferrovias, o telégrafo. Desse modo, ia à burguesia concentrando em suas mãos, cada vez mais, a riqueza e o poder social, embora tardasse bastante a conquistar o poder político, que se achava nas mãos da nobreza e da monarquia, apoiada naquela. Mas ao atingir certa fase – na França, desde a grande Revolução - conquistou também o poder político e se converteu, por sua vez, em classe dominante frente ao proletariado e aos pequenos camponeses. Situando-se nesse ponto de vista - sempre e quando se conheça suficientemente a situação econômica da sociedade em cada época; conhecimentos de que, certamente, carecem por completo nossos historiadores profissionais -, são explicados de modo mais simples todos os fenômenos históricos, assim como são explicados com a maior simplicidade todos os conceitos e as idéias de cada período histórico, partindo das condições econômicas de vida e das relações sociais e políticas desse período que, por sua vez, se subordinam àquelas. Pela prime ira vez erigia-se a história sobre sua verdadeira base; o fato palpável, mas totalmente despercebido até então, de que o homem precisa em primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestir-se e, portanto, trabalhar antes de poder lutar pelo poder, de fazer política, religião, filosofia etc.; esse fato palpável passava a ocupar, enfim, o lugar histórico que naturalmente lhe cabia.

Para a idéia socialista, essa nova concepção da história possuía uma importância culminante. Demonstrava que toda história, até hoje, se havia desenvolvido sobre a base de antagonismos e lutas de classe, que houve sempre classes dominantes e dominadas, exploradoras e exploradas, e que a grande maioria dos homens esteve sempre condenada a trabalhar muito e a aproveitar pouco. Por quê? Simplesmente porque em todas as fases anteriores do desenvolvimento da humanidade, a produção se encontrava ainda num estado tão incipiente que o desenvolvimento histórico só podia transcorrer nessa forma antagônica e o progresso histórico achava-se, em linhas gerais, nas mãos de uma pequena minoria privilegiada, enquanto a grande massa se encontrava condenada a produzir, trabalhando, o seu mísero sustento e a aumentar cada vez mais a riqueza dos privilegiados. Mas essa mesma concepção da história, que explica de modo tão natural e racional o regime de dominação de classe vigente até nossos dias - que só poderia ser explicado de outro modo através da maldade dos homens -, leva também à convicção de que com as forças produtivas tão gigantescamente incrementadas dos tempos modernos, desaparece, pelo menos nos países mais adiantados, até o último pretexto para a divisão dos homens em dominantes e dominados, exploradores e explorados; de que a grande burguesia dominante já cumpriu sua missão histórica, de que já não é capaz de dirigir a sociedade e se converteu mesmo num obstáculo para o desenvolvimento da produção, como demonstram as crises comerciais, e, sobretudo o último grande crack e depressão da indústria em todos os países; de que a direção histórica passou para as mãos do proletariado, uma classe que, por toda a sua a situação dentro da sociedade, só pode emancipar-se pondo fim por completo a toda dominação de classe, toda sujeição e exploração; e de que as forças produtivas da sociedade, que crescem até escapar das mãos da burguesia, só estão esperando que o proletariado organizado tome-as sob seu poder para que se crie um estado de coisas que permita a cada membro da sociedade participar não só na produção, mas também na distribuição e na administração das riquezas sociais e que, mediante a direção planificada de toda a produção, incremente de tal modo as forças produtivas da sociedade e seu rendimento, que se assegure a cada qual, em proporções cada vez maiores, a satisfação de todas as suas necessidades razoáveis.

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A revolução teórica de Marx: capitalismo e classe operária

A segunda descoberta importante de Marx consiste em haver esclarecido definitivamente a relação entre capital e trabalho; em outros termos, em haver demonstrado como se opera dentro da sociedade atual, com o modo de produção capitalista, a exploração do operário pelo capitalista. Desde que a economia política assentou a tese de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e todo o valor, era inevitável essa pergunta: como se concilia isso como fato de que o operário não recebe a soma total do valor criado por seu trabalho, mas tenha que ceder uma parte dele ao capitalista? Tanto os economistas burgueses como os socialistas esforçam-se para dar a essa pergunta uma resposta científica sólida; mas, sempre em vão, até que por fim apareceu Marx com a solução. Essa solução é a seguinte: o atual modo de produção capitalista tem como premissa a existência de duas classes sociais: de um lado, os capitalistas, que se acham na posse dos meios de produção e subsistência e, de outro lado, os proletários que, excluídos dessa posse, tenham apenas uma única mercadoria a vender: sua força de trabalho, mercadoria que, portanto, não têm outro remédio senão vender, para entrar na posse dos meios de subsistência mais indispensáveis. Mas o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário invertido em sua produção e, também, portanto, em sua reprodução; por conseguinte, o valor da força de trabalho de um homem durante um d ia, um mês, um ano é determinado pela quantidade de trabalho plasmada na quantidade de meios de vida necessários para o sustento dessa força de trabalho durante um dia, um mês, um ano. Suponhamos que os meios de subsistência para um dia exijam seis horas de trabalho para a sua produção ou, o que vem dar no mesmo, que o trabalho contido nele represente uma quantidade de trabalho de seis horas; nesse caso, o valor da força de trabalho durante um dia se expressará numa soma de dinheiro na qual se plasme também seis horas de trabalho. Suponhamos, além disso, que o capitalista para quem nosso operário trabalhe pague essa soma, isto é, o valor integral de sua força de trabalho. Pois bem: se o operário trabalha seis horas do dia para o capitalista, terá reembolsado a ele integralmente o seu desembolso: seis horas de trabalho por seis horas de trabalho. Claro está que desse modo nada restaria para o capitalista; por isso, ele concebe a questão de um modo completamente diferente. Diz ele: não comprei a força de trabalho desse operário por seis horas, mas por um dia completo. Portanto, faz com que o operário trabalhe, segundo as circunstâncias, oito, dez, doze, quatorze ou mais horas de tal sorte que o produto da sétima, da oitava e das horas seguintes é um produto de um trabalho não pago, no momento embolsado pelo capitalista. Por onde se conclui que o operário a serviço do capitalista não se limita a repor o valor de sua força de trabalho, que lhe é pago, mas que, além disso, cria uma mis-valia que, no momento, é apropriada pelo capitalista e que, em seguida, é repartida segundo determinadas leis econômicas entre toda a classe capitalista. Essa mais-valia constitui o fundo básico de onde derivam a renda da terra, o lucro, a acumulação do capital; numa palavra, todas as riquezas consumidas ou acumuladas pelas classes que não trabalham. Comprovou se, desse modo, que o enriquecimento dos atuais capitalistas consiste na apropriação de trabalho alheio não pago, nem mais nem menos que o dos escravocratas ou dos senhores feudais, que exploravam o trabalho dos servos, e que todas essas formas de exploração só s e distinguem pelo modo diverso de apropriar-se do trabalho não pago. E com isso caiu por terra todas essas retóricas hipócritas das classes possuidoras de que, sob a ordem social vigente, reinam o direito e a justiça, a igualdade de direitos e deveres e a harmonia geral de interesses. E a sociedade burguesa atual se desmascarava, não menos do que as que a antecederam, pela sua forma bem montada para a exploração da imensa maioria do povo por uma minoria insignificante e cada vez mais reduzida.

Esses dois importantes fatos servem de base ao socialismo moderno, ao socialismo científico. No segundo tomo de O Capital são desenvolvidas essas e outras descobertas científicas não menos importantes relativas ao sistema social capitalista, com o que se revolucionam os aspectos da economia política que não haviam sido abordados ainda no primeiro tomo. O que se deve desejar é que Marx possa logo entregá-los à publicação.

Escrito por F. Engels, em junho de 1877. Publicado no almanaque Volkskalender, Brunswick, 1878. Publica-se segundo a edição soviética de 1952, de acordo com o texto do

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almanaque. Traduzido do espanhol.

1 O primeiro censor da Gazeta Renana foi o conselheiro de polícia Dolleschall, o mesmo que em certa ocasião vetara na Kolnische Zeitung (Gazeta de Colônia) um anúncio da tradução da Divina Comédia, de Dante, por Philalethes (que seria mais tarde rei João da Saxônia), com esta observação: “com as coisas divinas não se deve fazer comédias.” (Nota de Engels).

2 Na Prússia, representante do poder central na província (N. da R.)

3 A Deutsche Brüsseler Zeitung (Gazeta Alemã de Bruxelas) era o órgão de imprensa dos emigrados alemães em Bruxelas; foi publicada de 1847 até fevereiro de 1848. Em setembro de 1847, Marx e Engels assumiram a direção do periódico. (N. da R.).

4 Kreuzzeitung (Gazeta da Cruz): nome com que era conhecido o reacionário diário monárquico Neue Preussische Zeitung (Nova Gazeta Prussiana), que se publicava em Berlim em 1848. Trazia impressa uma cruz ao lado do título. (N. da R.).

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DISCURSO NO FUNERAL DE KARL MARX

FRIEDRICH ENGELS

17 de Março de 1883

Primeira Edição: Discurso pronunciado em inglês por Engels no cemitério de Highgate em Londres, em 17 de Março de 1883. Publicado em alemão, integrado num artigo de Engels sobre o enterro de Marx — Das Begräbnis von Karl Marx — no jornal Der Sozialdemokrat, n.° 13, de 22 de Março de 1883. Publicado segundo o texto do jornal. Traduzido do alemão.

Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um coletivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 179-181.

A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar.

Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontramo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre.

O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perdeu com [a

morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu

Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc.; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, das têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente.

Mas isto não chega. Marx descobriu também a lei específica do movimento do modo de

produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva.

Duas descobertas destas deviam ser suficientes para uma vida. Já é feliz aquele a quem é

dado fazer apenas uma de tais [descobertas]. Mas, em todos os domínios singulares em que Marx empreendeu uma investigação — e estes domínios foram muitos e de nenhum deles ele se ocupou de um modo meramente superficial —, em todos, mesmo no da matemática, ele fez descobertas autônomas.

Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era

para Marx uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar — sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da electricidade e, por último, ainda as de Mare Deprez. (1*)

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Pois, Marx era, antes do mais, revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação — esta era a sua real vocação de vida. A luta era o seu elemento. E lutaram com uma paixão, uma tenacidade, um êxito, como poucos. A primeira Rheinische Zeitung[N47] em 1842, o Vorwärts![N126] de Paris em 1844, a Brüsseler Deutsche Zeitung[N53] em 1847, a Neue Rheinische Zeitung em 1848-1849(2*), o New-York Tribune[N62] em 1852-1861 — além disto, um conjunto de brochuras de combate, o trabalho em associações em Paris, Bruxelas e Londres, até que finalmente a grande Associação Internacional dos Trabalhadores surgiu como coroamento de tudo — verdadeiramente, isto era um resultado de que o seu autor podia estar orgulhoso, mesmo que não tivesse realizado mais nada.

E, por isso, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos, tanto

absolutos como republicanos, expulsaram-no; burgueses, tanto conservadores como democratas extremos, inventaram ao desafio difamações acerca dele. Ele punha tudo isso de lado, como teias de aranha, sem lhes prestar atenção, e só respondia se houvesse extrema necessidade. E morreu honrado, amado, chorado, por milhões de companheiros operários revolucionários, que vivem desde as minas da Sibéria, ao longo de toda a Europa e América, até a Califórnia; e posso atrever-me a dizê-lo: muitos adversários ainda poderiam ter, mas não tinha um só inimigo pessoal.

O seu nome continuará a viver pelos séculos, e a sua obra também!

Notas de fim de tomo:

[N47] Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana para Política, Comércio e Ofícios): diário publicado em Colônia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Em Abril de 1842 Marx começou a colaborar nele, e em Outubro desse mesmo ano passou a ser um dos seus redactores; Engels colaborava também no jornal.

[N53] Deutsche-Brüsseler-Zeitung (Gazeta Alemã de Bruxelas): jornal fundado pelos emigrados políticos alemães em Bruxelas; publicou-se de Janeiro de 1847 até Fevereiro de 1848. A partir de Setembro de 1847, Marx e Engels colaboraram permanentemente nele e exerceram uma influência directa na sua orientação. Sob a direcção de Marx e Engels, o jornal tornou-se órgão da Liga dos Comunistas.

[N62] New-York Daily Tribune (Tribuna Diária de Nova Iorque): diário progressista burguês que se publicou de 1841 a 1924. Marx e Engels colaboraram nele desde Agosto de 1851 até Março de 1862.

[N126] Vowärts! (Avante!): jornal alemão que se publicou em Paris de Janeiro a Dezembro de 1844, duas vezes por semana. Marx e Engels colaboraram nele.

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O PAPEL DO TRABALHO NA TRANSFORMAÇÃO DO MACACO EM HOMEM

FRIEDERICH ENGELS

1876

Escrito em: 1876

1ª Edição: Neue Zeit, 1896.

Origem da presente transcrição: edição soviética de 1952, de acordo com o manuscrito, em alemão. Traduzido do espanhol.

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.

Há muitas centenas de milhares de anos, numa época, ainda não estabelecida em definitivo, daquele período do desenvolvimento da Terra que os geólogos denominam terciário, provavelmente em fins desse período, vivia em algum lugar da zona tropical — talvez em um extenso continente hoje desaparecido nas profundezas do Oceano Indico — uma raça de macacos antropomorfos extraordinariamente desenvolvida. Darwin nos deu uma descrição aproximada desses nossos antepassados. Eram totalmente cobertos de pelo, tinham barba, orelhas pontiagudas, viviam nas árvores e formavam manadas.

É de supor que, como conseqüência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses macacos foram-se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e começaram a adotar cada vez mais uma posição ereta. Foi o passo decisivo para a transição do macaco ao homem.

Todos os macacos antropomorfos que existem hoje podem permanecer em posição erecta e caminhar apoiando-se unicamente sobre seus pés; mas o fazem só em casos de extrema necessidade e, além disso, com enorme lentidão. Caminham habitualmente em atitude semi-erecta, e sua marcha inclui o uso das mãos. A maioria desses macacos apóiam no solo os dedos e, encolhendo as pernas, fazem avançar o corpo por entre os seus largos braços, como um paralítico que caminha com muletas. Em geral, podemos ainda hoje observar entre os macacos todas as formas de transição entre a marcha a quatro patas e a marcha em posição erecta. Mas para nenhum deles a posição erecta vai além de um recurso circunstancial.

E posto que a posição erecta havia de ser para os nossos peludos antepassados primeiro uma norma, e logo uma necessidade, dai se depreende que naquele período as mãos tinham que executar funções cada vez mais variadas. Mesmo entre os macacos existe já certa divisão de funções entre os pés e as mãos. Como assinalamos acima, enquanto trepavam as mãos eram utilizadas de maneira diferente que os pés. As mãos servem fundamentalmente para recolher e sustentar os alimentos, como o fazem já alguns mamíferos inferiores com suas patas dianteiras. Certos macacos recorrem às mãos para construir ninhos nas árvores; e alguns, como o chimpanzé, chegam a construir telhados entre os ramos, para defender-se das inclemências do tempo. A mão lhes serve para empunhar garrotes, com os quais se defendem de seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e pedras. Quando se encontram prisioneiros realizam com as mãos várias operações que copiam dos homens. Mas aqui precisamente é que se percebe quanto é grande a distância que separa a mão primitiva dos macacos, inclusive os antropóides mais superiores, da mão do homem, aperfeiçoada pelo trabalho durante centenas de milhares de anos. O número e a disposição geral dos ossos e dos músculos são os mesmos no macaco e no

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homem, mas a mão do selvagem mais primitivo é capaz de executar centenas de operações que não podem ser realizadas pela mão de nenhum macaco. Nenhuma mão simiesa construiu jamais um machado de pedra, por mais tosco que fosse.

Por isso, as funções, para as quais nossos antepassados foram adaptando pouco a pouco suas mãos durante os muitos milhares de anos em que se prolongam o período de transição do macaco ao homem, só puderam ser, a princípio, funções sumamente simples. Os selvagens mais primitivos, inclusive aqueles nos quais se pode presumir o retorno a um estado mais próximo da animalidade, com uma degeneração física simultânea, são muito superiores àqueles seres do período de transição. Antes de a primeira lasca de sílex ter sido transformada em machado pela mão do homem, deve ter sido transcorrido um período de tempo tão largo que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se insignificante. Mas já havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração.

Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini.

Mas a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava à mão beneficiava também a todo o corpo servido por ela; e o beneficiava em dois aspectos.

Primeiramente, em virtude da lei que Darwin chamou de correlação do crescimento. Segundo essa lei, certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não têm nenhuma relação com as primeiras. Assim, todos os animais que possuem glóbulos vermelhos sem núcleo e cujo occipital está articulado com a primeira vértebra por meio de dois côndilos, possuem, sem exceção, glândulas mamárias para a alimentação de suas crias. Assim também, a úngula fendida de alguns mamíferos está ligada de modo geral à presença de um estômago multilocular adaptado à ruminação. As modificações experimentadas por certas formas provocam mudanças na forma de outras partes do organismo, sem que estejamos em condições de explicar tal conexão. Os gatos totalmente brancos e de olhos azuis são sempre ou quase sempre surdos. O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição erecta exerceram indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certa influência sobre outras partes do organismo. Contudo, essa ação se acha ainda tão pouco estudada que aqui não podemos senão assinalá-la em termos gerais.

Muito mais importante é a ação direta — possível de ser demonstrada — exercida pelo desenvolvimento da mão sobre o resto do organismo. Como já dissemos, nossos antepassados simiescos eram animais que viviam em manadas; evidentemente, não é possível buscar a origem do homem, o mais social dos animais, em antepassados imediatos que não vivessem congregados. Em face de cada novo progresso, o domínio sobre a natureza, que tivera início com o desenvolvimento da mão, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades até então desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formação chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta, mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após outro.

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A comparação com os animais mostra-nos que essa explicação da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada. O pouco que os animais, inclusive os mais desenvolvidos, têm que comunicar uns aos outros pode ser transmitido sem o concurso da palavra articulada. Nenhum animal em estado selvagem sente-se prejudicado por sua incapacidade de falar ou de compreender a linguagem humana. Mas a situação muda por completo quando o animal foi domesticado pelo homem. O contato com o homem desenvolveu no cão e no cavalo um ouvido tão sensível à linguagem articulada que esses animais podem, dentro dos limites de suas representações, chegar a compreender qualquer idioma. Além disso, podem chegar a adquirir sentimentos antes desconhecidos por eles, como o apego ao homem, o sentimento de gratidão, etc. Quem conheça bem esses animais dificilmente poderá escapar à convicção de que, em muitos casos, essa incapacidade de falar é experimentada agora por eles como um defeito. Desgraçadamente, esse defeito não tem remédio, pois os seus órgãos vocais se acham demasiado especializados em determinada direção. Contudo, quando existe um órgão apropriado, essa incapacidade pode ser superada dentro de certos limites. Os órgãos vocais das aves distinguem-se em forma radical dos do homem e, no entanto, as aves são os únicos animais que podem aprender a falar; e o animal de voz mais repulsiva, o papagaio, é o que melhor fala. E não importa que se nos objete dizendo-nos que o papagaio não sabe o que fala. Claro está que por gosto apenas de falar e por sociabilidade o papagaio pode estar horas e horas repetindo todo o seu vocabulário. Mas, dentro do marco de suas representações, pode chegar também a compreender o que diz. Ensinai a um papagaio dizer palavrões (uma das distrações favoritas dos marinheiros que regressam das zonas quentes) e vereis logo que se o irritardes ele fará uso desses palavrões com a mesma correção de qualquer verdureira de Berlim. E o mesmo ocorre com o pedido de gulodices.

Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfato muito mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do tato, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através do trabalho.

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.

Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos — que na história da Terra têm uma importância menor que um segundo na vida de um homem(1) — antes que a sociedade humana surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores. Mas, afinal, surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições geográficas ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhe oferecia, se excetuarmos a ação inconsciente da

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manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da população simiesca tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de seus animais mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de alimentos; além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra montês que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se, deixaram nuas todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos animais desempenha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos registrados pela história, assim como pelo dos selvagens atuais mais primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que pudesse manifestar-se ativamente a vida propriamente animal. E quanto mais o homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os animais. Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física e independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência da dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração. Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o fato de que, em uma ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma questão que não tem hoje para nós a menor importância.

O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se diretamente para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em examinar minuciosamente suas conseqüências.

O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a superfície habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por iniciativa própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais domésticos e os insetos parasitas —não o conseguiram por si, mas unicamente acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou novas exigências,

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ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo para proteger-se do frio e da umidade. Surgiram assim novas esferas de trabalho, e com elas novas atividades, que afastaram ainda mais o homem dos animais.

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. A caça e à pesca veio juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião. Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o trabalho projetado por ela. O rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens, sobretudo a partir do desaparecimento do mundo antigo, e continua ainda a dominá-lo, a tal ponto que mesmo os naturalistas da escola darwiniana mais chegados ao materialismo são ainda incapazes de formar uma idéia clara acerca da origem do homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede de ver o papel desempenhado aqui pelo trabalho.

Os animais, como já indicamos de passagem, também modificam com sua atividade a natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; e essas modificações provocadas por eles no meio ambiente repercutem, como vimos, em seus causadores, modificando-os por sua vez. Nada ocorre na natureza em forma isolada. Cada fenômeno afeta a outro, e é por seu turno influenciado por este; e é em geral o esquecimento desse movimento e dessa interação universal o que impede a nossos naturalistas perceber com clareza as coisas mais simples. Já vimos como as cabras impediram o reflorestamento dos bosques na Grécia; em Santa Helena, as cabras e os porcos desembarcados pelos primeiros navegantes chegados à ilha exterminaram quase por completo a vegetação ali existente, com o que prepararam o terreno para que pudessem multiplicar-se as plantas levadas mais tarde por outros navegantes e colonizadores. Mas a influência duradoura dos animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e constitui, no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os homens se afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um caráter de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos projetados de antemão. Os animais destroçam a vegetação do lugar sem dar-se conta do que fazem. Os homens, em troca, quando destroem a vegetação o fazem com o fim de utilizar a superfície que fica livre para semear trigo, plantar árvores ou cultivar a videira, conscientes de que a colheita que irão obter superará várias vezes o semeado por eles. O homem traslada de um pais para outro plantas úteis e animais domésticos, modificando assim a flora e a fauna de continentes inteiros. Mais ainda: as plantas e os animais, cultivadas aquelas e criados estes em condições artificiais, sofrem tal influência da mão do homem que se tornam irreconhecíveis.

Não foram até hoje encontrados os antepassados silvestres de nossos cultivos cerealistas. Ainda não foi resolvida a questão de saber qual o animal que deu origem aos nossos cães atuais, tão diferentes uns de outros, ou às atuais raças de cavalos, também tão numerosos. Ademais, compreende-se de logo que não temos a intenção de negar aos animais a faculdade de atuar em forma planificada, de um modo premeditado. Ao contrário, a ação planificada existe em germe onde quer que o protoplasma — a albumina viva — exista e reaja, isto é, realize determinados movimentos, embora sejam os mais simples, em resposta a determinados estímulos do exterior. Essa reação se produz, não digamos já na célula nervosa, mas inclusive quando ainda não há

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célula de nenhuma espécie. O ato pelo qual as plantas insetívoras se apoderam de sua presa aparece também, até certo ponto, como um ato planejado, embora se realize de um modo totalmente inconsciente. A possibilidade de realizar atos conscientes e premeditados desenvolve-se nos animais em correspondência com o desenvolvimento do sistema nervoso e adquire já nos mamíferos um nível bastante elevado. Durante as caçadas organizadas na Inglaterra pode-se observar sempre a infalibilidade com que a raposa utiliza seu perfeito conhecimento do lugar para ocultar-se aos seus perseguidores, e como conhece e sabe aproveitar muito bem todas as vantagens do terreno para despistá-los. Entre nossos animais domésticos, que chegaram a um grau mais alto de desenvolvimento graças à sua convivência com o homem podem ser observados diariamente atos de astúcia, equiparáveis aos das crianças, pois do mesmo modo que o desenvolvimento do embrião humano no ventre materno é uma réplica abreviada de toda a história do desenvolvimento físico seguido através de milhões de anos pelos nossos antepassados do reino animal, a partir do estado larval, assim também o desenvolvimento espiritual da criança representa uma réplica, ainda mais abreviada, do desenvolvimento intelctual desses mesmos antepassados, pelo menos dos mais próximos. Mas nem um só ato planificado de nenhum animal pôde imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde fazê-lo.

Resumindo: só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma vez, resulta do trabalho.

Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias sobre a natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adota sua vingança. É verdade que as primeiras conseqüências dessas vitórias são as previstas por nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem conseqüências muito diversas, totalmente imprevistas e que, com freqüência, anulam as primeiras. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões devastavam os bosques para obter terra de cultivo nem sequer podiam imaginar que, eliminando com os bosques os centros de acumulação e reserva de umidade, estavam assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, que destruíram nas encostas meridionais os bosques de pinheiros, conservados com tanto carinho nas encostas setentrionais, não tinham idéia de que com isso destruíam as raízes da indústria de laticínios em sua região; e muito menos podiam prever que, procedendo desse modo, deixavam a maior parte do ano secas as suas fontes de montanha, com o que lhes permitiam, chegado o período das chuvas, despejar com maior fúria suas torrentes sobre a planície. Os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo farináceo difundiam por sua vez a escrofulose. Assim, a cada passo, os fatos recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém situado fora da natureza, mas que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.

Com efeito, aprendemos cada dia a compreender melhor as leis da natureza e a conhecer tanto os efeitos imediatos como as conseqüências remotas de nossa intromissão no curso natural de seu desenvolvimento. Sobretudo depois dos grandes progressos alcançados neste século pelas ciências naturais, estamos em condições de prever e, portanto, de controlar cada vez melhor as remotas conseqüências naturais de nossos atos na produção, pelo menos dos mais correntes. E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa idéia absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, idéia que começa a difundir-se pela Europa sobre a base da decadência da antigüidade clássica e que adquire seu máximo desenvolvimento no cristianismo.

Mas, se foram necessários milhares de anos para que o homem aprendesse, em certo grau, a prever as remotas conseqüências naturais no sentido da produção, muito mais lhe custou aprender a calcular as remotas conseqüências sociais desses mesmos atos. Falamos acima da batata e de seus efeitos quanto à difusão da escrofulose. Mas que importância pode ter a

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escrofulose, comparada com os resultados que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas puramente sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma doença provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão de irlandeses que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, de batatas e obrigou a que emigrassem para além-mar outros dois milhões? Quando os árabes aprenderam a distilar o álcool, nem sequer ocorreu-lhes pensar que haviam criado uma das armas principais com que iria ser exterminada a população indígena do continente americano, então ainda desconhecido. E quando mais tarde Colombo descobriu a América não sabia que ao mesmo tempo dava nova vida à escravidão, há muito tempo desaparecida na Europa, e assentado as bases do tráfico dos negros. Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado para criar a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um instrumento que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as condições sociais em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao concentrar a riqueza nas mãos de uma minoria e ao privar de toda propriedade a imensa maioria da população, haveria de proporcionar primeiro o domínio social e político à burguesia, e provocar depois a luta de classe entre a burguesia e o proletariado, luta que só pode terminar com a liquidação da burguesia e a abolição de todos os antagonismos de classe. Mas também aqui, aproveitando uma experiência ampla, e às vezes cruel, confrontando e analisando os materiais proporcionados pela história, vamos aprendendo pouco a pouco a conhecer as conseqüências sociais indiretas e mais remotas de nossos atos na produção, o que nos permite estender também a essas conseqüências o nosso domínio e o nosso controle.

Contudo, para levar a termo esse controle é necessário algo mais do que o simples conhecimento. É necessária uma revolução que transforme por completo o modo de produção existente até hoje e, com ele, a ordem social vigente.

Todos os modos de produção que existiram até o presente só procuravam o efeito útil do trabalho em sua forma mais direta e Imediata. Não faziam o menor caso das conseqüências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestam unicamente graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e as classes oprimidas. Em conseqüência, os interesses das classes dominantes converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos.

Isso encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que prevalece hoje na Europa ocidental. Os capitalistas individuais, que dominam a produção e a troca, só podem ocupar-se da utilidade mais imediata de seus atos. Mais ainda: mesmo essa utilidade — porquanto se trata da utilidade da mercadoria produzida ou trocada — passa inteiramente ao segundo plano, aparecendo como único incentivo o lucro obtido na venda.

* * *

A ciência social da burguesia, a economia política clássica, só se ocupa preferentemente daquelas conseqüências sociais que constituem o objetivo imediato dos atos realizados pelos homens na produção e na troca. Isso corresponde plenamente ao regime social cuja expressão teórica é essa ciência. Porquanto os capitalistas isolados produzem ou trocam com o único fim de obter lucros imediatos, só podem ser levados em conta, primeiramente, os resultados mais próximos e mais imediatos. Quando um industrial ou um comerciante vende a mercadoria produzida ou comprada por ele e obtém o lucro habitual, dá-se por satisfeito e não lhe interessa de maneira alguma o que possa ocorrer depois com essa mercadoria e seu comprador. O mesmo se verifica com as conseqüências naturais dessas mesmas ações. Quando, em Cuba, os plantadores

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espanhóis queimavam os bosques nas encostas das montanhas para obter com a cinza um adubo que só lhes permitia fertilizar uma geração de cafeeiros de alto rendimento pouco lhes importava que as chuvas torrenciais dos trópicos varressem a camada vegetal do solo, privada da proteção das arvores, e não deixassem depois de si senão rochas desnudas! Com o atual modo de produção, e no que se refere tanto às conseqüências naturais como as conseqüência sociais dos atos realizados pelos homens, o que interessa prioritariamente são apenas os primeiros resultados, os mais palpáveis. E logo até se manifesta estranheza pelo fato de as conseqüências remotas das ações que perseguiam esses fins serem multo diferentes e, na maioria dos casos, até diametralmente opostas; de a harmonia entre a oferta e a procura converter-se em seu antípoda, como nos demonstra o curso de cada um desses ciclos industriais de dez anos, e como puderam convencer-se disso os que com o “crack” viveram na Alemanha um pequeno prelúdio; de a propriedade privada baseada no trabalho próprio converter-se necessariamente, ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda propriedade pelos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos que não trabalham; de [...](2)

Notas:

(1) Notas Sir William Thomson, grande autoridade na matéria, calculou em pouco mais de cem milhões de anos o tempo transcorrido desde o momento em que a Terra se esfriou o suficiente para que nela pudessem viver as plantas e os animais.

(Nota de Engels) Engels refere-se à crise econômica de 1873/1874. (N. da R)

(2) Aqui se interrompe o manuscrito. (N. da R.)

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PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA[N271]

KARL MARX

Janeiro de 1859

Primeira Edição: No livro: Zur Kritik der Politischen Oekonomie von Karl Marx. Erstes Heft, Berlin 1859.

Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!"

Prefácio

Considero o sistema da economia burguesa por esta ordem: capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio externo, mercado mundial. Sob as três primeiras rubricas investigo as condições econômicas de vida das três grandes classes em que se decompõe a sociedade burguesa moderna; a conexão das três outras rubricas salta à vista. A primeira secção do livro primeiro, que trata do capital, consiste dos seguintes capítulos:

1. a mercadoria;

2. o dinheiro ou a circulação simples;

3. o capital em geral.

Os dois primeiros capítulos formam o conteúdo do presente fascículo. Tenho diante de mim todo o material sob a forma de monografias, as quais foram redigidas, em períodos que distam largamente uns dos outros, para minha própria compreensão, não para o prelo, e cuja elaboração conexa segundo o plano indicado dependerá de circunstâncias exteriores.

Suprimo uma introdução geral[N272] que tinha esboçado porque, reflectindo mais a fundo, me parece prejudicial toda a antecipação de resultados ainda a comprovar, e o leitor que me quiser de facto seguir terá de se decidir a ascender do singular para o geral. Algumas alusões ao curso dos meus próprios estudos político-econômicos poderão, pelo contrário, ter aqui lugar.

O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual, no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redactor da Rheinische Zeitung[N174], vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Landtag Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que Herr von Schaper, então Oberprásident da província renana, abriu com a Rheinische Zeitung sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias proteccionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de "ir por diante" repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na Rheinische Zeitung um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma tênue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung273, que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos ambas a ilusão dos directores da Rheinische Zeitung, que acreditavam poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo.

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O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito que Hegel, um trabalho cuja introdução apareceu nos Deutsch-Französische Jahrbücher[N13]publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no resultado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de "sociedade civil", e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia política. A investigação desta última, que comecei em Paris, continuei em Bruxelas, para onde me mudara em conseqüência duma ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento econômico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições econômicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção, antagônica não no sentido de antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.

Friedrich Engels, com quem mantive por escrito uma constante troca de idéias desde o aparecimento do seu genial esboço para a crítica das categorias econômicas (nos Deutsch-Französi-sche Jahrbücher), tinha chegado comigo, por uma outra via (comp. a sua Situação da Classe Operária em Inglaterra), ao mesmo resultado, e quando, na Primavera de 1845, ele se radicou igualmente em Bruxelas, decidimos esclarecer em conjunto a oposição da nossa maneira de ver contra a [maneira de ver] ideológica da filosofia alemã, de facto ajustar contas com a nossa consciência [Gewissen] filosófica anterior. Este propósito foi executado na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito(1*), dois grossos volumes em oitavo, chegara havia muito ao seu lugar de publicação na Vestefália quando recebemos a notícia de que a alteração das circunstâncias não permitia a impressão do livro. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos

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ratos de tanto melhor vontade quanto havíamos alcançado o nosso objectivo principal — autocompreensão. Dos trabalhos dispersos em que apresentamos então ao público as nossas opiniões, focando ora um aspecto ora outro, menciono apenas o Manifesto do Partido Comunista, redigido conjuntamente por Engels e por mim, e um Discours sur le libre échange publicado por mim. Os pontos decisivos da nossa maneira de ver foram primeiro referidos cientificamente, se bem que polemicamente, no meu escrito editado em 1847, e dirigido contra Proudhon, Misere de la philosophie, etc. Um estudo escrito em alemão sobre o Trabalho Assalariado, em que juntei as minhas conferências sobre este assunto proferidas na Associação dos Operários Alemães em Bruxelas[N72], foi interrompido no prelo pela revolução de Fevereiro e pelo meu afastamento forçado da Bélgica ocorrido em conseqüência da mesma.

A publicação da Neue Rheinische Zeitung[N71] em 1848 e 1849, e os acontecimentos que posteriormente se seguiram interromperam os meus estudos econômicos, os quais só puderam ser retomados em Londres no ano de 1850. O material imenso para a história da economia política que está acumulado no British Museum, o ponto de vista favorável que Londres oferece para a observação da sociedade burguesa, [e] finalmente o novo estádio de desenvolvimento em que esta última pareceu entrar com a descoberta do ouro da Califórnia e da Austrália determinaram-me a começar de novo tudo de princípio e a trabalhar criticamente o novo material. Estes estudos conduziram, em parte por si mesmos, a disciplinas aparentemente muito distanciadas em que eu tinha de permanecer menos ou mais tempo. Mas o tempo ao meu dispor era nomeadamente reduzido pela necessidade imperiosa de uma actividade remunerada. A minha colaboração, agora de oito anos, no primeiro jornal anglo-americano, o New-York Tribune[N163], tornou necessária, como só excepcionalmente me ocupo com correspondência jornalística propriamente dita, uma extraordinária dispersão dos estudos. Entretanto, [os] artigos sobre acontecimentos econômicos notórios em Inglaterra e no Continente constituíam uma parte tão significativa da minha colaboração que fui obrigado a familiarizar-me com pormenores práticos que ficam fora do âmbito da ciência da economia política propriamente dita.

Este esboço sobre o curso dos meus estudos na área da economia política serve apenas para demonstrar que as minhas opiniões, sejam elas julgadas como forem e por menos que coincidam com os preconceitos interesseiros das classes dominantes, são o resultado duma investigação conscienciosa e de muitos anos. À entrada para a ciência, porém, como à entrada para o inferno, tem de ser posta a exigência:

Qui si convien lasciare ogni sospetto Ogni viltà convien che qui sia morta. (2*)

Karl Marx Londres, em Janeiro de 1859

Notas de Rodapé:

(1*) Referência a A Ideologia Alemã.

(2*) Aqui tem de se banir toda a desconfiança. Toda a cobardia tem aqui de ser morta. (Dante Alighieri, A Divina Comédia.)

Notas de Fim de Tomo:

[N13] Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães) foram publicados em Paris sob a direcção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um número, duplo, em Fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx Sobre a Questão Judaica e Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução, assim como as obras de F. Engels Esboços para Uma Crítica da Economia Política e A Situação em Inglaterra: “O Passado e o Presente”, de Thomas Carlyle. Estes trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para o materialismo e o

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comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram às divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge.

[N71] Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção.

[N72] A Associação dos Operários Alemães de Bruxelas foi fundada por Marx e Engels no final de Agosto de 1847 com vista a dar uma formação política aos operários alemães residentes na Bélgica e a fazer propaganda entre eles das idéias do comunismo científico. Sob a direcção de Marx e Engels e dos seus colaboradores, a Associação tornou-se um centro legal de agrupamento dos proletários revolucionários alemães na Bélgica. Os melhores elementos da Associação faziam parte da organização de Bruxelas da Liga dos Comunistas. A actividade da Associação dos Operários Alemães de Bruxelas terminou pouco depois da revolução burguesa de Fevereiro de 1848 em França, em virtude da prisão e da expulsão dos seus membros pela polícia belga.

[N163] Tribune: título abreviado do jornal burguês progressista The New- York Daily Tribune (A Tribuna Diária de Nova Iorque), que se publicou entre 1841 e 1924. Entre Agosto de 1851 e Março de 1862 Marx e Engels colaboraram no jornal.

[N174] Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana sobre Política, Comércio e Indústria): jornal publicado em Colónia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842, e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redactor.

[N271] A obra de Marx Para a Crítica da Economia Política constitui uma etapa importante na criação da Economia Política marxista. A redacção deste livro foi precedida de quinze anos de investigação científica, no decurso dos quais Marx estudou uma enorme quantidade de publicações e elaborou as bases da sua teoria econômica. Marx tencionava expor os resultados do seu trabalho numa grande obra econômica. Em Agosto-Setembro de 1857 iniciou a sistematização do material recolhido e elaborou um primeiro esboço do plano dessa obra. Nos meses seguintes elaborou em pormenor o seu plano e decidiu publicar a obra por partes, em fascículos separados. Depois de ter assinado um contrato com o editor de Berlim F. Duncker, começou a trabalhar no primeiro fascículo, que foi publicado em Junho de 1859. Imediatamente a seguir à publicação do primeiro fascículo Marx dispôs-se a publicar o segundo, no qual deviam ser tratados os problemas do capital. No entanto, investigações suplementares obrigaram Marx a modificar o plano inicial da sua grande obra. Em vez do segundo fascículo e dos seguintes, Marx preparou O Capital, no qual incluiu, depois de as redigir de novo, as teses fundamentais do livro Para a Crítica da Economia Política.

[N272] Trata-se da “Introdução” inacabada que Marx escreveu para a grande obra econômica que tinha projetado.

[N273] Allgemeine Augsburger Zeitung (Jornal Geral de Augsburg): jornal reaccionário alemão fundado em 1798; entre 1810 e 1882 publicou-se em Augsburg. Em 1842 publicou uma falsificação das idéias do comunismo e do socialismo utópicos, que Marx desmascarou no seu artigo “O Comunismo e o Allgemeine Zeitung de Augsburg”.

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TRABALHO ASSALARIADO E CAPITAL[N70]

KARL MARX

5 de abril 1849

Primeira Edição: Escrito de fins de Março a princípios de Abril de 1849 a partir de notas da segunda quinzena de Dezembro de 1847.

Fonte: Publicado segundo o texto de: Karl Marx, Lohnarbeit und Kapital. Separata da Neue Rheinische Zeitung de 1849. Com uma introdução de Friedrich Engels, Berlim, 1891. Traduzido do alemão. Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.

Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891

O trabalho que se segue apareceu sob a forma de uma série de artigos de fundo na Neue Rheinische Zeitung[N71], a partir de 5 de Abril de 1849. Serviram-lhe de base as conferências proferidas por Marx na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas, em 1847[N72]. A publicação destes artigos ficou incompleta. O “continua” que se encontra no fim do nº 269 ficou por cumprir em conseqüência dos acontecimentos que se precipitaram por essa altura: a invasão da Hungria pelos russos[N73], as insurreições em Dresden, Iserlohn, Elberfeld, no Palatinado e em Baden[N74], que levaram à suspensão compulsiva do próprio jornal (19 de Maio de 1849). O manuscrito desta continuação nunca se chegou a encontrar nos papéis deixados por Marx.

Trabalho Assalariado e Capital apareceu em várias edições, como separata sob a forma de brochura, a última das quais em 1884, editada pela Tipografia Cooperativa Suíça, Hottingen-Zürich. Estas edições anteriores continham a versão exacta do original. A presente nova edição deve ser difundida como folheto de propaganda numa tiragem não inferior a 10 000 exemplares, e logo eu não poderia deixar de perguntar a mim mesmo se, nestas condições, o próprio Marx teria consentido numa reprodução dessa versão sem alterações.

Nos anos 40, Marx ainda não tinha terminado a sua crítica da Economia Política. Isso só aconteceu nos finais dos anos 50. Por isso, os escritos que apareceram antes do primeiro fascículo de Para a Crítica da Economia Política (1859) diferem aqui e ali dos redigidos a partir de 1859; contêm expressões e frases inteiras que, do ponto de vista dos escritos posteriores, parecem tortuosas e até incorrectas. Ora é evidente que em edições vulgares, destinadas ao público em geral, este ponto de vista anterior que faz parte da evolução espiritual do autor tem o seu lugar, e tanto ele como o público têm indiscutível direito a uma reprodução sem alterações desses escritos mais antigos. E não me passaria pela cabeça modificar uma só palavra que fosse.

Mas o caso muda quando a nova edição se destina quase exclusivamente à propaganda entre os operários. Neste caso, Marx teria incondicionalmente posto de acordo a antiga exposição, que data de 1849, com o seu novo ponto de vista. E eu estou certo de proceder nesse mesmo sentido, se operar para esta edição as poucas modificações e acrescentamentos necessários para atingir esse objectivo, em todos os pontos essenciais. Por isso, previno já o leitor: esta é a brochura não como Marx a redigiu em 1849, mas aproximadamente, como ele a teria escrito em 1891. Além disso, o texto real encontra-se difundido em tão grande número de exemplares que isto é suficiente até que eu o possa reimprimir sem alterações numa ulterior edição das obras completas.

As minhas alterações giram todas em torno de um ponto. Segundo o original, o operário vende ao capitalista o seu trabalho em troca do salário; segundo o texto actual, ele vende a sua força de trabalho. E por esta alteração devo uma explicação. Uma explicação aos operários

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para que vejam que não estão perante uma simples questão de palavras, mas, pelo contrário, perante um dos mais importantes pontos de toda a Economia Política. Explicação aos burgueses para que se possam convencer de como os operários sem instrução, para quem com facilidade se podem tornar inteligíveis os mais difíceis desenvolvimentos econômicos, estão imensamente acima dos nossos arrogantes homens “instruídos” para quem questões tão complexas permanecem insolúveis durante toda a vida.

A Economia Política clássica[N75] reteve da prática industrial a representação corrente do fabricante de que compra e paga o trabalho dos seus operários. Esta representação chegava perfeitamente para uso nos negócios, a contabilidade e o cálculo do preço do fabricante. Transposta, de um modo ingênuo, para a Economia Política causou a esta mal-entendidos e confusões prodigiosos.

A Economia depara com o facto de que os preços de toda a mercadoria, e, portanto, o preço da mercadoria a que ela chama “trabalho”, variam continuamente; que eles sobem e descem em conseqüência de circunstâncias muito diferenciadas que, freqüentemente, não têm conexão alguma com a produção da própria mercadoria, de tal modo que, em regra, os preços parecem ser determinados pelo puro acaso. Ora, logo que a Economia se tornou uma ciência[N76], uma das suas primeiras tarefas foi a de procurar a lei que se ocultava por detrás desse acaso, que aparentemente comandava o preço das mercadorias e que, na realidade, comandava esse mesmo acaso. Ela procurou nos preços das mercadorias que continuamente flutuam e oscilam, ora para cima, ora para baixo, o ponto central fixo em torno do qual se efectuam essas flutuações e oscilações. Numa palavra, ela partiu dos preços das mercadorias para procurar como sua lei reguladora o valor das mercadorias, a partir do qual deveriam explicar-se todas as flutuações de preços e ao qual finalmente todas se deveriam de novo reconduzir.

A Economia clássica achou, então, que o valor de uma mercadoria seria determinado pelo trabalho incorporado nela, o trabalho necessário para a sua produção; e contentou-se com esta explicação. Também nós podemos debruçar-nos, por um momento, sobre este problema. Só para prevenir equívocos, quero lembrar que esta explicação se tornou hoje completamente insuficiente. Marx, pela primeira vez, investigou fundamentalmente a propriedade que o trabalho tem de criar valor, e descobriu assim que nem todo o trabalho, aparente ou mesmo realmente necessário à produção de uma mercadoria, lhe acrescenta, em todas as circunstâncias, uma grandeza de valor que corresponde ao volume de trabalho empregue. Portanto, quando hoje nos limitamos a dizer, com economistas como Ricardo, que o valor de uma mercadoria se determina pelo trabalho necessário à sua produção, damos sempre como subentendidas as reservas feitas por Marx. Aqui basta-nos isto; o mais encontra-se exposto por Marx em Para a Crítica da Economia Política (1859) e no primeiro tomo de O Capital.

Mas logo que os economistas aplicaram esta determinação de valor pelo trabalho à mercadoria “trabalho” caíram de contradição em contradição. Como se determina o valor do “trabalho”? Pelo trabalho necessário que neste se encontra. Mas quanto trabalho se encontra no trabalho de um operário, durante um dia, uma semana, um mês, um ano? O trabalho de um dia, de uma semana, de um mês, de um ano. Se o trabalho é a medida de todos os valores só podemos expressar o “valor do trabalho” precisamente em trabalho. Mas nós não sabemos absolutamente nada acerca do valor de uma hora de trabalho se apenas soubermos que aquele é igual à uma hora de trabalho. Deste modo não avançamos um milímetro, e limitamo-nos a andar a volta da questão.

Por isso a Economia clássica procurou dar uma outra formulação, e disse: o valor de uma mercadoria é igual aos seus custos de produção. Mas quais são os custos de produção do trabalho? Para responder a esta pergunta, os economistas viram-se obrigados a torcer um pouco a lógica. Em vez dos custos de produção do próprio trabalho, que infelizmente não podem ser descobertos, eles investigam então os custos de produção do operário. E estes, sim, podem ser descobertos. Eles variam consoante o tempo e as circunstâncias, mas em dadas condições sociais, numa dada localidade, num dado ramo de produção eles estão igualmente dados, pelo menos dentro de limites bastante estreitos. Vivemos hoje sob o domínio da produção capitalista

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em que uma grande e sempre crescente classe da população só pode viver se trabalhar, a troco de um salário, para os proprietários dos meios de produção — das ferramentas, máquinas, matérias-primas, e meios de subsistência. Na base deste modo de produção, os custos de produção do operário consistem naquela soma de meios de subsistência ou do seu preço em dinheiro — que são, em média, necessários para o tornarem capaz de trabalhar, para o manterem capaz de trabalhar e para o substituírem por outro operário quando do seu afastamento por doença, velhice ou morte, para reproduzir, portanto, a classe operária na força necessária. Suponhamos que o preço em dinheiro desses meios de subsistência é, em média, 3 marcos por dia.

O nosso operário receberá, portanto, do capitalista que o empregou, um salário de três marcos por dia. Por este salário, o capitalista fá-lo trabalhar, digamos doze horas por dia. E esse capitalista faz os seus cálculos mais ou menos da seguinte maneira: Suponhamos que o nosso operário — um ajustador — tem que fazer, num dia de trabalho, uma peça de máquina. A matéria-prima ferro e latão, já convenientemente trabalhados — custa vinte marcos. O consumo de carvão da máquina a vapor, o desgaste dessa mesma máquina a vapor, do torno e das outras ferramentas com que o nosso operário trabalha — calculados em relação a um dia e a um operário — representam, digamos, o valor de um marco. O salário de um dia é, segundo a nossa hipótese, de três marcos. No total, a nossa peça de máquina ficou por 24 marcos. Mas o capitalista espera receber em média 27 marcos dos clientes, isto é, três marcos a mais do que os custos que teve.

De onde vêm esses três marcos que o capitalista mete ao bolso? Segundo a afirmação da Economia clássica as mercadorias são vendidas, em média, pelo seu valor, isto é, a preços que correspondem à quantidade de trabalho necessário, contido nessas mercadorias. O preço médio da nossa peça de máquina — 27 marcos — seria portanto igual ao seu valor, igual ao trabalho que incorporado nela se encontra. Mas desses 27 marcos, 21 eram já valores existentes antes do nosso ajustador começar a trabalhar. Vinte marcos encontravam-se na matéria-prima, um marco no carvão consumido durante o fabrico, ou nas máquinas e ferramentas que nele foram utilizadas e diminuídas na sua capacidade de produção até ao valor desta soma. Ficam 6 marcos que se acrescentaram ao valor da matéria-prima. Mas esses 6 marcos, segundo a hipótese dos nossos economistas, só podem provir do trabalho acrescentado pelo nosso operário à matéria-prima. O seu trabalho de doze horas criou, portanto, um novo valor de 6 marcos. O valor do seu trabalho de doze horas seria, portanto, igual a seis marcos. Deste modo, teríamos finalmente descoberto o que é o “valor do trabalho”.

— Alto lá! — grita o nosso ajustador. — Seis marcos? Mas eu só recebi três! O meu capitalista jura a pés juntos que o valor do meu trabalho de doze horas é só de três marcos, e se eu lhe exigir seis, ele vai rir-se de mim. Como é isto arranjado?

Se anteriormente, com o nosso valor do trabalho, caíamos num círculo sem saída, agora é que estamos mesmo metidos numa contradição insolúvel. Procuramos o valor do trabalho e acabamos por encontrar mais do que precisávamos. Para o operário, o valor do seu trabalho de doze horas é de três marcos; para o capitalista, é de seis marcos, dos quais ele paga ao operário três como salário — e mete ele próprio os outros três no bolso. O trabalho teria portanto não um, mas dois valores, e ainda por cima bastante diferentes!

A contradição torna-se ainda mais absurda quando reduzimos a tempo de trabalho os valores expressos em dinheiro. Nas doze horas de trabalho é criado um novo valor de seis marcos. Portanto, em seis horas, três marcos — a soma que o operário recebe pelo trabalho de doze horas. Pelo trabalho de doze horas, o operário recebe o equivalente ao produto de seis horas de trabalho. Assim sendo, ou o trabalho tem dois valores em que um é o dobro do outro, ou então doze é igual a seis! Em qualquer dos casos revela-se um puro contra-senso.

E por mais voltas que lhe demos, não conseguimos sair desta contradição, enquanto falarmos da compra e da venda do trabalho, e do valor do trabalho. Foi o que aconteceu aos nossos economistas. O último rebento da Economia clássica, a escola de Ricardo, fracassou em

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grande parte na insolubilidade desta contradição. A Economia clássica metera-se num beco sem saída. O homem que encontrou a maneira de sair desse beco foi Karl Marx.

O que os economistas tinham considerado como custos de produção “do trabalho”, eram os custos de produção, não do trabalho, mas do próprio operário vivo. E o que o operário vendia ao capitalista não era o seu trabalho. “No momento em que começa realmente o seu trabalho — disse Marx — este deixa logo de lhe pertencer e o operário não poderá portanto vendê-lo.” Poderia, quando muito, vender o seu trabalho futuro, isto é, comprometer-se a executar um dado trabalho num tempo determinado. Mas então o operário não vende trabalho (que ainda teria de ter lugar); põe sim à disposição do capitalista a sua força de trabalho, a troco de um salário determinado, por um determinado tempo (se trabalha à jorna) ou para determinada tarefa (se trabalha à peça): ele aluga ou vende a sua força de trabalho. Mas essa força de trabalho faz um com a sua própria pessoa e é inseparável dela. Por conseguinte, os seus custos de produção coincidem com os custos de produção [do operário]; o que os economistas chamavam custos de produção do trabalho são precisamente os custos de produção do operário e, por isso, os da força de trabalho. E assim já podemos regressar dos custos de produção da força de trabalho ao valor da força de trabalho, e determinar a quantidade de trabalho socialmente necessário que é requerido para a produção de uma força de trabalho de determinada qualidade — como o fez Marx no capítulo da compra e venda da força de trabalho (O Capital, tomo 1, capítulo 4, secção 3).

Mas que se passa depois do operário ter vendido a sua força de trabalho ao capitalista, isto é, de a ter posto à sua disposição, a troco de um salário previamente combinado, salário à jorna ou à peça? O capitalista leva o operário para a sua oficina ou fábrica, onde já se encontram todos os objectos necessários ao trabalho: matérias-primas, matérias auxiliares (carvão, corantes, etc.), ferramentas, máquinas. Aí começa o labutar do operário. Seja o seu salário diário de três marcos como no caso acima — pouco importando que ele os ganhe à jorna ou à peça. Suponhamos novamente que o operário, em doze horas acrescenta às matérias-primas utilizadas com o seu trabalho um novo valor de seis marcos, novo valor que o capitalista realiza vendendo a peça uma vez pronta. Deste novo valor paga três marcos ao operário, mas guarda para si os outros três marcos. Ora, se o operário cria um valor de seis marcos em doze horas, em seis horas [criará] um valor de três. Portanto, ele já reembolsou o capitalista com o valor equivalente aos três marcos contidos no salário depois de trabalhar seis horas para ele. Ao fim de seis horas de trabalho ambos estão quites, não devem um centavo um ao outro.

— Alto lá! — grita agora o capitalista. — Aluguei o operário por um dia inteiro, por doze horas. Seis horas são só meio dia. Portanto, vamos lá continuar a trabalhar até fazer as outras seis horas — só nessa altura é que ficaremos quites. E com efeito, o operário tem que se submeter ao contrato aceite “de livre vontade”, segundo o qual se compromete a trabalhar doze horas inteiras por um produto de trabalho que custa seis horas de trabalho.

Com o trabalho à peça é exactamente a mesma coisa. Suponhamos que o nosso operário cria doze peças de mercadoria em doze horas, e que cada uma delas custa 2 marcos de carvão e de desgaste das máquinas, sendo vendida depois a 2 marcos e meio. Mantendo-se a mesma suposição que no caso anterior, o capitalista dará ao operário 25 pfennigs por peça, o que perfaz, pelas doze peças, três marcos para ganhar os quais o operário precisa de doze horas. O capitalista obtém 30 marcos pela venda das doze peças; descontando 24 marcos pela matéria-prima e pelo desgaste, sobram seis marcos, dos quais paga três de salário e guarda três. Exactamente como no caso anterior. Também aqui o operário trabalha seis horas para si, isto é, para repor o seu salário (meia hora em cada uma das doze horas) e seis horas para o capitalista.

A dificuldade em que fracassavam os melhores economistas, enquanto partiram do valor do “trabalho”, desaparece logo que, em vez disso, partimos do valor da “força de trabalho”. A força de trabalho é, na sociedade capitalista dos nossos dias, uma mercadoria como qualquer outra, mas, certamente, uma mercadoria muito especial. Com efeito, ela tem a propriedade especial de ser uma força criadora de valor, uma fonte de valor e, principalmente com um tratamento adequado, uma fonte de mais valor do que ela própria possui. No estado actual da produção, a força de trabalho humana não produz só num dia um valor maior do que ela própria possui e custa; com

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cada nova descoberta científica, com cada nova invenção técnica, este excedente do seu produto diário sobe acima dos seus custos diários, reduz-se portanto aquela parte do dia de trabalho em que o operário retira do seu trabalho o equivalente ao seu salário diário e alonga-se portanto, por outro lado, aquela parte do dia de trabalho em que ele tem de oferecer o seu trabalho ao capitalista sem ser pago por isso.

Tal é a constituição econômica da nossa actual sociedade: é somente a classe trabalhadora que produz todos os valores. Pois o valor é apenas uma outra expressão para trabalho, aquela expressão pela qual se designa, na sociedade capitalista dos nossos dias, a quantidade de trabalho socialmente necessário incorporada a uma determinada mercadoria. Estes valores produzidos pelos operários não pertencem, porém, aos operários. Pertencem aos proprietários das matérias-primas, das máquinas e ferramentas e dos meios financeiros que permitem a estes proprietários comprar a força de trabalho da classe operária. De toda a massa de produtos criados pela classe operária, ela só recebe portanto uma parte. E, como acabamos de ver, a outra parte, que a classe capitalista conserva para si e que divide, quando muito, ainda com a classe dos proprietários fundiários, torna-se com cada nova descoberta ou invenção maior ainda, enquanto a parte que reverte para a classe operária (parte calculada por cabeça) ora aumenta, mas muito lentamente e de maneira insignificante, ora não sobe e, em certas circunstâncias, pode mesmo diminuir.

Mas essas invenções e descobertas que se sucedem e substituem cada vez mais rapidamente, esse rendimento do trabalho humano que aumenta diariamente em proporções nunca vistas, acabam por criar um conflito no qual a actual economia capitalista tem de soçobrar. De um lado, imensas riquezas e um excedente de produtos que os compradores não podem absorver. Do outro, a grande massa proletarizada da sociedade, transformada em operários assalariados e precisamente por esta razão incapacitada de se apropriar desse excedente de produtos. A cisão da sociedade numa pequena classe excessivamente rica e numa grande classe de operários assalariados não proprietários faz com que essa sociedade se asfixie no próprio excedente, enquanto a grande maioria dos seus membros dificilmente ou nunca está protegida da mais extrema miséria. Este estado de coisas torna-se dia a dia mais absurdo e mais desnecessário. Ele tem de ser eliminado, ele pode ser eliminado. É possível uma nova ordem social em que desaparecerão as actuais diferenças entre as classes e em que — após um período de transição, talvez curto e com certas privações, mas, em todo o caso, moralmente muito útil — por uma utilização e um crescimento planificados das imensas forças produtivas já existentes de todos os membros da sociedade, com trabalho obrigatório para todos, os meios de vida, do prazer de viver, de formação e exercício de todas as capacidades do corpo e do espírito estarão igualmente à disposição de todos e numa abundância sempre crescente. E que os operários estão cada vez mais decididos a conquistar esta nova ordem social, testemunhá-lo-á dos dois lados do Oceano o 1.o de Maio que amanhece e o Domingo, 3 de Maio[N77].

Friedrich Engels Londres, 30 de Abril de 1891.

Publicado em suplemento ao n.º 109 do quotidiano Vorwärts, de 13 de Maio de 1891, e na edição em opúsculo de Lohnarbeit und Kapital, de Karl Marx, Berlim, 1891.

Publicado segundo o texto do opúsculo. Traduzido do alemão.

TRABALHO ASSALARIADO E CAPITAL

De vários lados nos censuraram por não termos exposto as relações econômicas que formam a base material das lutas de classes e das lutas nacionais nos nossos dias. De acordo com o nosso plano, tocamos nestas relações apenas quando elas vêm directamente ao de cima nas colisões políticas.

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Tratava-se, antes de mais, de seguir a luta de classes na história do dia-a-dia e de provar, de maneira empírica, com o material histórico existente e diariamente renovado, que, com a subjugação da classe operária, que fizera Fevereiro e Março, foram ao mesmo tempo vencidos os seus adversários: em França os republicanos burgueses, e em todo o continente europeu as classes burguesas e camponesas em luta contra o absolutismo feudal; que a vitória da “República honesta” em França foi ao mesmo tempo à queda das nações que tinham respondido à revolução de Fevereiro com heróicas guerras de independência; que por fim a Europa, com a derrota dos operários revolucionários, voltou a cair na sua antiga dupla escravatura, a escravatura anglo-russa. A luta de Junho em Paris, a queda de Viena, a tragicomédia do Novembro berlinense de 1848, os esforços desesperados da Polônia, da Itália e da Hungria, a submissão da Irlanda pela fome — tais foram os principais momentos em que se resumiu a luta de classes européia entre burguesia e classe operária, com os quais nós demonstramos que todos os levantamentos revolucionários, por mais afastado que o seu objectivo possa parecer da luta de classes, têm de fracassar até que a classe operária revolucionária vença; que todas as reformas sociais permanecerão utopia até que a revolução proletária e a contra-revolução feudal se meçam pelas armas numa guerra mundial. Na nossa exposição, como na realidade, a Bélgica e a Suíça eram pinturas de gênero caricaturais, tragicômicas, no grande quadro da história, uma apresentando-se como o Estado modelo da monarquia burguesa, a outra como o Estado modelo da república burguesa, e ambas como Estados que se imaginam estar tão independentes da luta de classes como da revolução européia.

Agora, depois de os nossos leitores verem desenvolver-se a luta de classes no ano de 1848 em formas políticas colossais, é tempo de entrar mais a fundo nessas mesmas relações econômicas em que se baseiam tanto a existência da burguesia e o seu domínio de classe, como a escravidão dos operários.

Exporemos em três grandes secções: 1.o — a relação do trabalho assalariado com o capital, a escravidão do operário, o domínio do capitalista; 2.o — o declínio inevitável das classes médias burguesas e do chamado estado burguês [Bürgerstand](1)no actual sistema; 3.o — a subjugação e exploração comercial das classes burguesas das diversas nações européias pelo déspota do mercado mundial, a Inglaterra.

Procuraremos que a nossa exposição seja o mais simples e popular possível, e nem mesmo pressuporemos os conceitos mais elementares da Economia Política. Queremos que os operários nos compreendam. E até porque na Alemanha reina a mais notável ignorância e confusão de conceitos sobre as relações econômicas mais simples, desde os defensores encartados do actual estado de coisas, até aos milagreiros socialistas e aos gênios políticos incompreendidos, que na Alemanha fragmentada são mais numerosos ainda do que os príncipes.

Comecemos portanto com a primeira questão:

Que é o salário?

Como se determina?

Se perguntássemos aos operários: — Que salário recebem?, responderiam: — Eu recebo do burguês um marco pelo dia de trabalho; outro dirá: — Recebo dois marcos; etc. Conforme os diferentes ramos de trabalho a que pertencem, assim nos indicariam diversas quantias que recebem dos burgueses respectivos, pela execução de um determinado trabalho, como, por exemplo, tecer uma vara de pano ou compor uma página tipográfica. Apesar da diversidade das suas indicações, todos concordarão neste ponto: o salário é a soma em dinheiro que o capitalista paga por um determinado tempo de trabalho ou pela prestação de determinado trabalho.

Parece portanto que o capitalista compra trabalho deles com dinheiro. Estes vendem-lhe o seu trabalho a troco de dinheiro. Mas só na aparência é que isto se passa. Na realidade, o que os operários vendem ao capitalista em troca de dinheiro é a sua força de trabalho. O capitalista compra essa força de trabalho por um dia, uma semana, um mês, etc. E depois de a ter comprado, utiliza-a fazendo trabalhar os operários durante o tempo estipulado. Com essa mesma quantia com

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que o capitalista lhes comprou a força de trabalho, os dois marcos, por exemplo, poderia ele ter comprado duas libras de açúcar ou uma certa quantidade de qualquer outra mercadoria. Os dois marcos com que ele compraria as duas libras de açúcar são o preço dessas duas libras de açúcar. Os dois marcos com que comprou doze horas de utilização da força de trabalho são o preço do trabalho de doze horas de trabalho. A força de trabalho é portanto uma mercadoria, nem mais nem menos como o açúcar. A primeira mede-se com o relógio, a segunda com a balança.

Os operários trocam a sua mercadoria, a força de trabalho, pela mercadoria do capitalista, pelo dinheiro, e essa troca tem lugar na verdade numa determinada proporção: tanto dinheiro por tantas horas de utilização da força de trabalho. Por trabalhar ao tear durante doze horas, dois marcos. E os dois marcos — não representarão eles todas as outras mercadorias que posso comprar por dois marcos? De facto, o operário trocou portanto a sua mercadoria, a força de trabalho, por toda a espécie de mercadorias, e isto numa determinada proporção. Ao dar-lhe dois marcos o capitalista deu-lhe uma certa quantidade de carne, de roupa, de lenha, de luz, etc., em troca do seu dia de trabalho. Os dois marcos exprimem portanto a proporção em que a força de trabalho é trocada por outras mercadorias, o valor de troca da força de trabalho. Ao valor de troca de uma mercadoria, avaliado em dinheiro, chama-se precisamente o seu preço. Portanto, o salário é apenas um nome especial dado ao preço da força de trabalho, a que se costuma chamar preço do trabalho; é apenas o nome dado ao preço dessa mercadoria peculiar que só existe na carne e no sangue do homem.

Suponhamos um operário qualquer, por exemplo, um tecelão. O capitalista fornece-lhe o tear e o fio. O tecelão põe-se ao trabalho e o fio transforma-se em pano. O capitalista apodera-se do pano e vende-o por vinte marcos, por exemplo. Acaso o salário do tecelão é uma quota-parte no pano, nos vinte marcos, no produto do seu trabalho? De modo algum. O tecelão recebeu o salário muito antes de o pano ter sido vendido e talvez muito antes de o ter acabado de tecer. Portanto, o capitalista não paga o salário com o dinheiro que vai receber pelo pano, mas com dinheiro que já tinha de reserva. Assim como o tear e o fio não são produto do tecelão, ao qual foram fornecidos pelo burguês, tão-pouco o são as mercadorias que ele recebe em troca da sua mercadoria, a força de trabalho. Poderá acontecer que o capitalista não consiga encontrar um comprador para o pano. Poderá acontecer que nem sequer reembolse com a venda o salário que pagou. Poderá acontecer que a venda do pano se realize em condições muito vantajosas, relativamente ao salário do tecelão. Nada disto diz respeito ao tecelão. O capitalista compra, com uma parte da fortuna que tem, do seu capital, a força de trabalho do tecelão, exactamente como comprou com outra parte da sua fortuna a matéria-prima — o fio — e o instrumento de trabalho — o tear. Depois de fazer estas compras, e entre as coisas compradas está à força de trabalho necessária para a produção do pano, o capitalista produz agora só com matérias-primas e instrumentos de trabalho que lhe pertencem. E entre estes últimos conta-se naturalmente também o bom do tecelão que participa tão pouco no produto, ou no preço do produto, como o tear.

O salário não é portanto uma quota-parte do operário na mercadoria por ele produzida. O salário é a parte de mercadoria já existente, com que o capitalista compra para si uma determinada quantidade de força de trabalho produtiva.

A força de trabalho é pois uma mercadoria que o seu proprietário, o operário assalariado, vende ao capital. Porque a vende ele? Para viver.

Mas a força de trabalho em acção, o trabalho, é a própria actividade vital do operário, a própria manifestação da sua vida. E é essa actividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua actividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele, nem sequer considera o trabalho como parte da sua vida, é antes um sacrifício da sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Por isso, o produto da sua actividade tão-pouco é o objectivo da sua actividade. O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz para si próprio é o salário; e a seda, o ouro, o palácio, reduzem-se para ele a uma determinada quantidade de meios de vida, talvez a uma camisola de algodão, a uns cobres, a um quarto numa cave. E o operário, que, durante doze horas, tece, fia, perfura,

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torneia, constrói, cava, talha a pedra e a transporta, etc., — valerão para ele essas doze horas de tecelagem, de fiação, de trabalho com o berbequim ou com o torno, de pedreiro, cavador ou canteiro, como manifestação da sua vida, como vida? Bem pelo contrário. Para ele, quando termina essa actividade é que começa a sua vida, à mesa, na taberna, na cama. Às doze horas de trabalho não têm de modo algum para ele o sentido de tecer, de fiar, de perfurar, etc., mas representam unicamente o meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir à taberna, deitar-se na cama. Se o bicho-da-seda fiasse para manter a sua existência de lagarta, seria então um autêntico operário assalariado. A força de trabalho nem sempre foi uma mercadoria. O trabalho nem sempre foi trabalho assalariado, isto é, trabalho livre. O escravo não vendia a sua força de trabalho ao proprietário de escravos, assim como o boi não vende os seus esforços ao camponês. O escravo é vendido, com a sua força de trabalho, duma vez para sempre, ao seu proprietário. É uma mercadoria que pode passar das mãos de um proprietário para as mãos de um outro. Ele próprio é uma mercadoria, mas a força de trabalho não é uma mercadoria sua. O servo só vende uma parte da sua força de trabalho. Não é ele quem recebe um salário do proprietário da terra: pelo contrário, o proprietário da terra é que recebe dele um tributo.

O servo pertence à terra e rende frutos ao dono da terra. O operário livre, pelo contrário, vende-se a si mesmo, e além disso por partes. Vende em leilão oito, dez, doze, quinze horas da sua vida, dia após dia, a quem melhor pagar, ao proprietário das matérias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos meios de vida, isto é, ao capitalista. O operário não pertence nem a um proprietário nem à terra, mas oito, dez, doze, quinze horas da sua vida diária pertencem a quem as compra. O operário, quando quer, deixa o capitalista ao qual se alugou, e o capitalista despede-o quando acha conveniente, quando já não tira dele proveito ou o proveito que esperava. Mas o operário, cuja única fonte de rendimentos é a venda da força de trabalho, não pode deixar toda a classe dos compradores, isto é, a classe dos capitalistas, sem renunciar à existência. Ele não pertence a este ou àquele capitalista, mas à classe dos capitalistas, e compete-lhe a ele encontrar quem o queira, isto é, encontrar um comprador dentro dessa classe dos capitalistas.

Antes de entrarmos mais a fundo na relação entre capital e trabalho assalariado, exporemos sumariamente as condições mais gerais a ter em conta na determinação do salário.

O salário é, como vimos, o preço de uma determinada mercadoria, a força de trabalho. O salário é pois determinado pelas mesmas leis que determinam o preço de qualquer outra mercadoria.

A questão que se põe portanto é a seguinte: como se determina o preço de uma mercadoria?

Que é que determina o preço de uma mercadoria?

É a concorrência entre compradores e vendedores, a relação da procura com aquilo que se fornece [Nachfrage zur Zufuhr], da apetência com a oferta. A concorrência, que determina o preço de uma mercadoria, apresenta três aspectos.

A mesma mercadoria é oferecida por vários vendedores. Aquele que vender mercadorias de qualidade igual a preço mais barato, está seguro de vencer os restantes vendedores e de assegurar para si a maior venda. Por isso os vendedores disputam entre si a venda, o mercado. Cada um deles quer vender, vender o mais que puder e, se possível, ser só ele a vender com exclusão dos restantes vendedores. Por isso, uns vendem mais barato que outros. Temos, assim, uma concorrência entre os vendedores, que faz baixar o preço das mercadorias oferecidas por eles.

Mas há também uma concorrência entre os compradores que, por seu lado, faz subir o preço das mercadorias oferecidas.

E há, finalmente, uma concorrência entre os compradores e vendedores, uns a querer comprar o mais barato possível, os outros a querer vender o mais caro que podem. O resultado

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desta concorrência entre compradores e vendedores dependerá da relação existente entre os dois lados da concorrência de que falamos antes, isto é, dependerá de a concorrência ser mais forte no exército dos compradores ou no exército dos vendedores. A indústria atira para o campo de batalha dois exércitos que se defrontam, nas fileiras de cada um dos quais se trava por sua vez uma luta intestina. O exército entre cujas tropas há menos pancadaria é o que triunfa sobre o adversário.

Suponhamos que no mercado há 100 fardos de algodão e que existem compradores para 1000 fardos de algodão. Neste caso, a procura é dez vezes maior do que aquilo que é fornecido. A concorrência entre os compradores será portanto muito forte, pois todos querem apanhar um fardo e, até mesmo, se possível, os 100 fardos. Este exemplo não é uma suposição arbitrária. Na história do comércio temos vivido períodos de má colheita algodoeira em que uns tantos capitalistas, aliados entre si, procuraram comprar não 100 fardos mas todas as reservas de algodão da Terra. No caso que citamos, cada comprador procurará portanto vencer o outro, oferecendo um preço relativamente mais elevado por cada fardo de algodão. Os vendedores de algodão que vêem as tropas do exército inimigo empenhadas numa luta violentíssima entre si, e que têm a certeza absoluta de vender por completo os 100 fardos, evitarão atirar-se uns aos outros para fazer baixar os preços do algodão, num momento em que os adversários se esfarrapam por fazê-los subir. Estabelece-se de súbito, por isso, a paz nas hostes dos vendedores. Ficam como um só homem frente aos compradores, como um só homem cruzam filosoficamente os braços, e as suas exigências não teriam limite se não fossem os limites bem determinados das próprias ofertas dos compradores mais insistentes.

Assim, quando o fornecimento de uma mercadoria é inferior à procura dessa mercadoria, a concorrência entre os vendedores reduz-se ao mínimo ou é nula. Na medida em que esta concorrência diminui, aumenta a concorrência entre os compradores. Resultado: subida mais ou menos considerável dos preços das mercadorias.

Como se sabe, é mais freqüente o caso inverso, e com resultados inversos. Excesso considerável daquilo que é fornecido sobre a procura: concorrência desesperada entre os vendedores; falta de compradores: venda das mercadorias ao desbarato.

Mas que é isso de subida e descida dos preços, que é isso de um preço elevado e de um preço baixo? Um grão de areia é grande visto ao microscópio e uma torre é pequena se a compararmos com uma montanha. E se o preço é determinado pela relação entre a procura e aquilo que é fornecido — que é que determina a relação de procura e aquilo que é fornecido?

Dirijamo-nos ao primeiro burguês que nos apareça. Não se deterá um momento a pensar e cortará, qual novo Alexandre Magno, este nó[N78] metafísico com a tábua de multiplicar. Dirá: se a produção da mercadoria que vendo me custou 100 marcos e se faço 110 marcos com a venda desta mercadoria — ao prazo de um ano, entenda-se — este lucro é um lucro civil, honesto e decente. Mas se receber na troca 120, 130 marcos, é um lucro elevado; se eu fizer 200 marcos, será então um lucro extraordinário, enorme. Que é que serve então ao burguês como medida do lucro? Os custos de produção da sua mercadoria. Se na troca dessa mercadoria recebe uma quantidade de outras mercadorias cuja produção custou menos, ele perdeu. Se na troca da mercadoria recebe uma quantidade de outras mercadorias cuja produção custou mais, então ganhou. E a baixa ou a alta do lucro, calcula-as ele segundo os graus em que se encontra o valor de troca da sua mercadoria, abaixo ou acima de zero, dos custos de produção.

Assim, vimos agora como a relação variável de procura e fornecimento provoca ora a alta, ora a baixa dos preços, ora preços elevados, ora preços baixos. Se o preço duma mercadoria sobe consideravelmente devido à falta de fornecimento ou a uma procura que cresce desproporcionadamente, então o preço de qualquer outra mercadoria cai necessariamente em proporção; pois o preço de uma mercadoria apenas exprime em dinheiro a proporção em que outras mercadorias são entregues em troca dela. Se, por exemplo, o preço de uma vara de seda sobe de 5 para 6 marcos, então o preço da prata cai em relação à seda, e do mesmo modo cai em relação à seda o preço de todas as outras mercadorias que permaneceram aos seus antigos

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preços. Há que dar uma maior quantidade delas em troca para receber a mesma quantidade de mercadoria de seda. Qual será a conseqüência do aumento do preço duma mercadoria? Uma massa de capitais afluirá ao ramo florescente da indústria, e esta imigração de capitais para a área da indústria preferida durará até que ela deixe de dar os lucros habituais, ou melhor, até que o preço dos seus produtos, devido à sobreprodução, desça abaixo dos custos de produção.

E inversamente. Se o preço duma mercadoria desce abaixo dos seus custos de produção, então os capitais retrair-se-ão da produção dessa mercadoria. Exceptuado o caso em que um ramo da indústria tenha passado de época, e, portanto tenha de soçobrar, a produção duma tal mercadoria, isto é, o seu fornecimento, diminuirá devido a esta fuga dos capitais até que corresponda à procura, ou seja, até que o seu preço volte a elevar-se ao nível dos seus custos de produção, ou melhor, até que o fornecimento desça abaixo da procura, isto é, até que o seu preço suba de novo acima dos seus custos de produção, pois o preço corrente duma mercadoria está sempre acima ou abaixo dos seus custos de produção.

Vemos como os capitais emigram ou imigram continuamente, da área duma indústria para a de outra. O preço elevado provoca uma imigração demasiado forte e o preço baixo uma emigração demasiado forte.

Poderíamos também, dum outro ponto de vista, mostrar como não só o fornecimento mas também a procura são determinados pelos custos de produção. Mas isto afastar-nos-ia demasiado do nosso objecto.

Acabamos de ver como as oscilações do fornecimento e da procura reconduzem sempre o preço de uma mercadoria aos seus custos de produção. É facto que o preço real duma mercadoria está sempre acima ou abaixo dos custos de produção; mas a alta e a baixa dos preços completam-se mutuamente, pelo que, num determinado período de tempo, calculados conjuntamente o fluxo e o refluxo da indústria, as mercadorias são trocadas umas pelas outras de acordo com os seus custos de produção, o preço delas é portanto determinado pelos seus custos de produção.

Esta determinação dos preços pelos custos de produção não deve ser entendida no sentido dos economistas. Os economistas dizem que o preço médio das mercadorias é igual aos custos de produção; que isto é a lei. Consideram como obra do acaso o movimento anárquico em que a alta é compensada pela baixa e a baixa pela alta. Com o mesmo direito, poderíamos considerar, tal como aconteceu também com outros economistas, as oscilações como lei e a determinação pelos custos de produção como obra do acaso. Mas só estas oscilações, que, consideradas mais de perto, trazem consigo as mais terríveis devastações e, como um terremoto, fazem tremer a sociedade burguesa nos seus alicerces, só estas oscilações é que no seu curso determinam o preço pelos custos de produção. O movimento global desta desordem é a sua ordem. No curso desta anarquia industrial, neste movimento circular, a concorrência compensa, por assim dizer, uma extravagância com outra.

Vemos, portanto: o preço de uma mercadoria é determinado pelos seus custos de produção de tal modo que os tempos em que o preço dessa mercadoria sobe acima dos custos de produção são compensados pelos tempos em que ele desce abaixo dos custos de produção, e inversamente. Isto não é válido, naturalmente, para um único dado produto da indústria, mas apenas para o ramo inteiro da indústria. Isto também não é válido, portanto, para o industrial individual, mas apenas para a classe inteira dos industriais.

A determinação do preço pelos custos de produção é igual à determinação do preço pelo tempo de trabalho exigido para a produção duma mercadoria, pois os custos de produção compõem-se de 1. — matérias-primas e desgaste de instrumentos, isto é, de produtos industriais cuja produção custou uma certa quantidade de dias de trabalho, que portanto representam uma certa quantidade de tempo de trabalho, e 2. — trabalho directo, cuja medida é precisamente o tempo.

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Ora, as mesmas leis gerais que regulam o preço das mercadorias em geral, regulam naturalmente também o salário, o preço do trabalho.

O salário do trabalho subirá ou baixará consoante a relação de procura e fornecimento, consoante a forma que tomar a concorrência entre os compradores da força de trabalho, os capitalistas, e os vendedores da força de trabalho, os operários. Às oscilações dos preços das mercadorias em geral correspondem as oscilações do salário. Mas dentro dessas oscilações o preço do trabalho será determinado pelos custos de produção, pelo tempo de trabalho exigido para produzir esta mercadoria, a força de trabalho.

Ora, quais são os custos de produção da força de trabalho?

São os custos que são exigidos para manter o operário como operário e para fazer dele um operário.

Por isso, quanto menos tempo de formação um trabalho exige, menores serão os custos de produção do operário, mais baixo será o preço do seu trabalho, o seu salário. Nos ramos da indústria em que quase não se exige tempo de aprendizagem e a mera existência física do operário basta, os custos exigidos para a produção desse reduzem-se quase só às mercadorias exigidas para o manter vivo em condições de trabalhar. O preço do seu trabalho será portanto determinado pelo preço dos meios de existência necessários.

Entretanto, ainda se junta a isto uma outra consideração. O fabricante, que calcula os seus custos de produção e por eles o preço dos produtos, toma em linha de conta a deterioração dos instrumentos de trabalho. Se uma máquina lhe custa, por exemplo, 1000 marcos e se esta se deteriora em dez anos, ele adiciona 100 marcos por ano ao preço da mercadoria, para ao cabo de dez anos poder substituir a máquina deteriorada por uma nova. Do mesmo modo, têm de ser incluídos nos custos de produção da força de trabalho simples os custos de reprodução pelos quais a raça operária é posta em condições de se multiplicar e de substituir por novos os operários deteriorados. O desgaste do operário é portanto tomado em conta do mesmo modo que o desgaste da máquina. Os custos de produção da força de trabalho simples cifram-se portanto nos custos de existência e de reprodução do operário.O preço destes custos de existência e de reprodução constitui salário. O salário assim determinado chama-se o mínimo do salário. Este mínimo do salário vale, tal como a determinação do preço das mercadorias pelos custos de produção em geral, não para o indivíduo isolado, mas para a espécie. Operários individuais, milhões de operários, não recebem o suficiente para poderem existir e reproduzir-se; mas o salário de toda a classe operária nivela-se a este mínimo nas oscilações daquele.

Agora que nos entendemos sobre as leis mais gerais que regulam tanto o salário como o preço de qualquer outra mercadoria, já podemos entrar no nosso objecto de uma maneira mais especial.

O capital consiste de matérias-primas, instrumentos de trabalho e meios de subsistência de toda a espécie que são empregues para produzir novas matérias-primas, novos instrumentos de trabalho e novos meios de subsistência. Todas estas suas partes constitutivas são criações do trabalho, produtos do trabalho, trabalho acumulado. Trabalho acumulado que serve de meio para nova produção é capital.

É o que dizem os economistas.

Que é um escravo negro? Um homem da raça negra. Uma explicação vale tanto como a outra.

Um negro é um negro. Só em determinadas relações é que se torna escravo. Uma máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar algodão. Apenas em determinadas relações ela se torna capital. Arrancada a estas relações, ela é tão pouco capital como o ouro em si e para si é dinheiro, ou como o açúcar é o preço do açúcar.

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Na produção os homens não actuam só sobre a natureza mas também uns sobre os outros. Produzem apenas actuando conjuntamente dum modo determinado e trocando as suas atividades umas pelas outras. Para produzirem entram em determinadas ligações e relações uns com os outros, e só no seio destas ligações e relações sociais se efectua a sua acção sobre a natureza, se efectua a produção.

Estas relações sociais em que os produtores entram uns com os outros, as condições em que trocam as suas atividades e participam no acto global da produção, serão naturalmente diferentes consoante o carácter dos meios de produção. Com a invenção de um novo instrumento de guerra, a arma de fogo, alterou-se necessariamente toda a organização interna do exército, transformaram-se as relações no seio das quais os indivíduos formam um exército e podem actuar como exército, alterou-se também a relação dos diversos exércitos uns com os outros.

As relações sociais em que os indivíduos produzem, as relações sociais de produção alteram-se portanto, transformam-se com a alteração e desenvolvimento dos meios materiais de produção, as forças de produção. As relações de produção na sua totalidade formam aquilo a que se dá o nome de relações sociais, a sociedade, e na verdade uma sociedade num estádio determinado, histórico, de desenvolvimento, uma sociedade com carácter peculiar, diferenciado. A sociedade antiga, a sociedade feudal, a sociedade burguesa são outras tantas totalidades de relações de produção, cada uma das quais designa ao mesmo tempo um estádio particular de desenvolvimento na história da humanidade.

Também o capital é uma relação social de produção. É uma relação burguesa de produção, uma relação de produção da sociedade burguesa. Os meios de subsistência, os instrumentos de trabalho, as matérias-primas de que se compõe o capital — não foram eles produzidos e acumulados em dadas condições sociais, em determinadas relações sociais? Não são eles empregues para uma nova produção em dadas condições sociais, em determinadas relações sociais? E não é precisamente este carácter social determinado que transforma em capital os produtos que servem para a nova produção?

O capital não consiste só de meios de subsistência, instrumentos de trabalho e matérias-primas, não consiste só de produtos materiais; consiste em igual medida de valores de troca. Todos os produtos de que consiste são mercadorias. O capital não é só, portanto, uma soma de produtos materiais, é uma soma de mercadorias, de valores de troca, de grandezas sociais.

O capital permanece o mesmo quer nós coloquemos algodão no lugar da lã, arroz no lugar de trigo, barcos a vapor no lugar de caminhos-de-ferro, apenas com a condição de o algodão, o arroz, os barcos a vapor — o corpo do capital — terem o mesmo valor de troca, o mesmo preço que a lã, o trigo, os caminhos-de-ferro, em que anteriormente se encarnava. O corpo do capital pode transformar-se continuamente sem que o capital sofra a mais pequena alteração.

Mas se todo o capital é uma soma de mercadorias, isto é, de valores de troca, nem toda a soma de mercadorias, de valores de troca é ainda capital.

Toda a soma de valores de troca é um valor de troca. Cada valor de troca é uma soma de valores de troca. Por exemplo, uma casa no valor de 1000 marcos é um valor de troca de 1000 marcos. Um pedaço de papel no valor de 1 pfennig é uma soma de valores de troca de 100/100 pfennig. Produtos trocáveis uns pelos outros são mercadorias. A relação determinada em que são trocáveis constitui o seu valor de troca ou, expresso em dinheiro, o seu preço. A massa destes produtos nada pode alterar na sua determinação como mercadoria ou como representando um valor de troca, ou como tendo um preço determinado. Seja grande ou pequena, uma árvore é sempre uma árvore. Trocando em onças ou em quintais, o ferro por outros produtos, alterará isso o seu carácter: ser mercadoria, valor de troca? Conforme a massa, ele será uma mercadoria de mais ou menos valor, de preço mais alto ou mais baixo.

Ora, como é que uma soma de mercadorias, de valores de troca, se torna capital?

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Pelo facto de, como poder social autônomo, isto é, como o poder de uma parte da sociedade, se manter e aumentar por meio da troca com a força de trabalho viva, imediata. A existência de uma classe que nada possui senão a capacidade de trabalho é uma condição prévia necessária do capital.

Só quando o trabalho objectivado, passado, acumulado, domina sobre o trabalho vivo, imediato, é que o trabalho acumulado se converte em capital.

O capital não consiste no facto de o trabalho acumulado servir ao trabalho vivo como meio para nova produção. Consiste no facto de o trabalho vivo servir ao trabalho acumulado como meio para manter e aumentar o seu valor de troca.

Mas que se passa na troca entre capitalista e operário assalariado?

O operário recebe meios de subsistência em troca da sua força de trabalho, mas o capitalista, em troca dos seus meios de subsistência, recebe trabalho, a atividade produtiva do operário, a força criadora por meio da qual o operário não só substitui o que consome como dá ao trabalho acumulado um valor superior ao que anteriormente possuía. O operário recebe do capitalista uma parte dos meios de subsistência existentes. Para que lhe servem estes meios de subsistência? Para o consumo imediato. Mas logo que eu consumo meios de subsistência, eles ficam irremediavelmente perdidos para mim, a menos que eu aproveite o tempo durante o qual esses meios me conservam vivo para produzir novos meios de subsistência, para durante o consumo substituir com o meu trabalho por novos valores os valores que desaparecem ao ser consumidos. Mas mesmo esta nobre força reprodutiva o operário cede ao capital em troca de meios de subsistência recebidos. Ele próprio a perdeu, portanto.

Vejamos um exemplo: um rendeiro dá ao seu jornaleiro cinco Groschen(2) de prata por dia. Pelos cinco Groschen de prata este trabalha o dia inteiro no campo do rendeiro e assegura-lhe uma receita de dez Groschen de prata. O rendeiro não recupera apenas os valores que tem de entregar ao jornaleiro; duplica-os. Ele aplicou, consumiu, portanto, de um modo frutuoso, produtivo, os cinco Groschen de prata que deu ao jornaleiro. Pelos cinco Groschen de prata ele comprou precisamente o trabalho e a força do jornaleiro, os quais criam produtos da terra com o dobro do valor, e de cinco Groschen de prata fazem dez Groschen de prata. O jornaleiro, pelo contrário, recebe, em substituição da sua força produtiva — cujos efeitos ele entregou precisamente ao rendeiro —, cinco Groschen de prata, que troca por meios de subsistência, meios de subsistência estes que consome mais depressa ou mais devagar. Os cinco Groschen de prata foram, portanto, consumidos de um modo duplo, reprodutivamente para o capital, pois foram trocados por uma força de trabalho(3) que deu origem a dez Groschen de prata improdutivamente para o operário, pois foram trocados por meios de subsistência que desapareceram para sempre e cujo valor ele só pode obter de novo repetindo a mesma troca com o rendeiro. O capital pressupõe, portanto, o trabalho assalariado, o trabalho assalariado pressupõe o capital. Eles condicionam-se reciprocamente; eles dão-se origem reciprocamente.

Um operário numa fábrica de algodão só produz tecidos de algodão? Não, produz capital. Produz valores que de novo servem para comandar o seu trabalho e, por meio deste, para criar novos valores.

O capital só se pode multiplicar trocando-se por força de trabalho, trazendo à vida o trabalho assalariado. A força de trabalho do operário assalariado só se pode trocar por capital multiplicando o capital, fortalecendo o poder de que é escrava. Multiplicação do capital é, por isso, multiplicação do proletariado, isto é, da classe operária.

O interesse do capitalista e do operário é, portanto, o mesmo, afirmam os burgueses e os seus economistas. E de facto! O operário soçobra se o capital não o emprega. O capital soçobra se não explora a força de trabalho, e para a explorar tem de a comprar. Quanto mais depressa se multiplicar o capital destinado à produção, o capital produtivo, quanto mais florescente é por isso a indústria, quanto mais se enriquece a burguesia, quanto melhor vão os negócios, de tanto mais operários precisa o capitalista, tanto mais caro se vende o operário.

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A condição imprescindível para uma situação aceitável do operário é, portanto, o crescimento mais rápido possível do capital produtivo.

Que é, porém, crescimento do capital produtivo? Crescimento do poder do trabalho acumulado sobre o trabalho vivo. Crescimento do domínio da burguesia sobre a classe que trabalha. Se o trabalho assalariado produz a riqueza alheia que o domina, o poder que lhe é hostil, o capital, para o primeiro retorna os meios de ocupação, isto é, de subsistência do mesmo, sobre a condição de que ele se faça de novo uma parte do capital, a alavanca que de novo lança este mesmo num movimento acelerado de crescimento.

Os interesses do capital e os interesses dos operários são os mesmos — significa apenas: capital e trabalho assalariado são duas facetas duma mesma relação. Uma condiciona a outra como o usurário e o dissipador se condicionam reciprocamente. Enquanto o operário assalariado é operário assalariado, a sua sorte depende do capital. É esta a tão enaltecida comunhão de interesses do operário e do capitalista.

Cresce o capital, então cresce a massa do trabalho assalariado, então cresce o número dos operários assalariados, numa palavra: o domínio do capital estende-se sobre uma massa maior de indivíduos. E suponhamos o caso mais favorável: quando o capital produtivo cresce, cresce a procura do trabalho. Sobe, portanto, o preço do trabalho, o salário.

Uma casa pode ser grande ou pequena, e enquanto as casas que a rodeiam são igualmente pequenas ela satisfaz todas as exigências sociais de uma habitação. Erga-se, porém, um palácio ao lado da casa pequena, e eis a casa pequena reduzida a uma choupana. A casa pequena prova agora que o seu dono não tem, ou tem apenas as mais modestas, exigências a pôr; e por mais alto que suba no curso da civilização, se o palácio vizinho subir na mesma ou em maior medida, o habitante da casa relativamente pequena sentir-se-á cada vez mais desconfortado, mais insatisfeito, mais oprimido, entre as suas quatro paredes.

Um aumento perceptível do salário pressupõe um rápido crescimento do capital produtivo. O rápido crescimento do capital produtivo provoca crescimento igualmente rápido da riqueza, do luxo, das necessidades sociais e dos prazeres sociais. Embora, portanto, os prazeres do operário tenham subido, a satisfação social que concedem baixou em comparação com os prazeres multiplicados do capitalista que são inacessíveis ao operário, em comparação com o nível de desenvolvimento da sociedade em geral. As nossas necessidades e prazeres derivam da sociedade; medimo-los, assim, pela sociedade; não os medimos pelos objectos da sua satisfação. Porque são de natureza social, são de natureza relativa.

O salário não é, em geral, determinado pela massa de mercadorias que por ele posso trocar. Ele contém várias relações.

O que os operários recebem primeiro pela sua força de trabalho é uma determinada soma em dinheiro. O salário é determinado apenas por este preço em dinheiro?

No século XVI multiplicaram-se o ouro e a prata em circulação na Europa, em conseqüência da descoberta de minas mais ricas e mais fáceis de trabalhar na América. O valor do ouro e da prata baixou, por isso, em relação às restantes mercadorias. Os operários recebiam, tal como antes, a mesma massa de prata cunhada em troca da sua força de trabalho. O preço em dinheiro do seu trabalho continuou o mesmo, e contudo o seu salário baixara, pois em troca da mesma quantidade de prata recebiam uma soma menor de outras mercadorias. Foi esta uma das circunstâncias que fomentaram o crescimento do capital, o ascenso da burguesia no século XVI.

Vejamos um outro caso. No Inverno de 1847, em conseqüência duma má colheita, os meios de subsistência mais indispensáveis, cereais, carne, manteiga, queijo, etc., tinham subido significativamente de preço. Admitamos que os operários tivessem recebido, tal como antes, a mesma soma em dinheiro pela sua força de trabalho. Não baixara o seu salário? Certamente. Pelo mesmo dinheiro recebiam em troca menos pão, carne, etc. O seu salário baixara, não porque o valor da prata tivesse diminuído, mas porque o valor dos meios de subsistência tinha aumentado.

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Admitamos, finalmente, que o preço em dinheiro do trabalho permanecia o mesmo, ao passo que todas as mercadorias da agricultura e da manufactura teriam baixado de preço em conseqüência da aplicação de novas máquinas, duma estação favorável, etc. Pelo mesmo dinheiro podem agora os operários comprar mais mercadorias de toda a espécie. O seu salário, portanto, subiu, precisamente porque o valor em dinheiro do mesmo não se alterou.

O preço em dinheiro do trabalho, o salário nominal, não coincide, portanto, com o salário real, isto é, com a soma de mercadorias que é realmente dada em troca do salário. Ao falarmos, portanto, da subida ou descida do salário, não temos de considerar apenas o preço em dinheiro do trabalho, o salário nominal.

Mas nem o salário nominal, isto é, a soma em dinheiro por que o operário se vende ao capitalista, nem o salário real, isto é, a soma de mercadorias que pode comprar com esse dinheiro, esgotam as relações contidas no salário.

O salário é, sobretudo determinado ainda pela sua relação com o ganho, com o lucro do capitalista — salário comparativo, relativo.

O salário real exprime o preço do trabalho em relação com o preço das restantes mercadorias, o salário relativo, pelo contrário [exprime] a quota-parte do trabalho directo no valor por ele criado de novo em relação com a quota-parte dele que cabe ao trabalho acumulado, ao capital.

Dissemos atrás, p. 14(4): “O salário não é uma quota-parte do operário na mercadoria por ele produzida. O salário é a parte de mercadoria já existente, com que o capitalista compra para si uma determinada quantidade de força de trabalho produtiva.” Mas este salário tem o capitalista de o substituir novamente com parte do preço a que vendeu o produto criado pelo operário; tem de substituí-lo de modo que, ao fazê-lo, lhe reste ainda em regra um excedente sobre os custos de produção despendidos, um lucro. O preço de venda da mercadoria criada pelo operário divide-se, para o capitalista, em três partes: primeiro, a reposição do preço das matérias-primas por ele adiantadas, a par da reposição do que se desgastou nas ferramentas, máquinas e outros meios de trabalho igualmente adiantados por ele; segundo, na reposição do salário adiantado por ele, e terceiro, no excedente sobre isso, o lucro do capitalista. Ao passo que a primeira parte apenas repõe valores anteriormente existentes, é óbvio que tanto a reposição do salário como o lucro do capitalista no excedente são, no seu todo, retirados do novo valor criado pelo trabalho do operário e acrescentado às matérias-primas. E neste sentido podemos tomar tanto o salário como o lucro, para os compararmos um com o outro, como quotas-partes no produto do operário.

O salário real pode permanecer o mesmo, pode até subir, e não obstante o salário relativo pode baixar. Suponhamos, por exemplo, que todos os meios de subsistência tinham descido 2/3 de preço, ao passo que a jorna descera apenas 1/3, portanto, por exemplo, de três marcos para dois marcos. Embora o operário, com estes dois marcos, disponha duma soma maior de mercadorias do que antes com três marcos, o seu salário contudo, diminuiu em relação com o ganho do capitalista. O lucro do capitalista (por exemplo, do fabricante) aumentou de um marco, isto é, por uma soma menor de valores de troca que paga ao operário o operário tem de produzir uma soma maior de valores de troca do que anteriormente. A quota-parte do capital subiu em relação à quota-parte do trabalho. A repartição da riqueza social entre capital e trabalho tornou-se ainda mais desigual. O capitalista comanda com o mesmo capital uma quantidade maior de trabalho. O poder da classe dos capitalistas sobre a classe operária cresceu, a posição social do operário piorou, foi empurrada um degrau mais para baixo da do capitalista.

Ora, qual é a lei geral que determina a queda e a subida do salário e do lucro na sua relação recíproca?

Estão na razão inversa um do outro. A quota-parte do capital, o lucro, sobe na mesma proporção em que a quota-parte do trabalho, a jorna, desce, e inversamente. O lucro sobe na medida em que o salário desce, e desce na medida em que o salário sobe.

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Objectar-se-á, talvez, que o capitalista pode ganhar pela troca vantajosa dos seus produtos com outros capitalistas, pela subida da procura da sua mercadoria, seja em conseqüência da abertura de novos mercados, seja em conseqüência de necessidades momentaneamente aumentadas nos velhos mercados, etc.; que o lucro do capitalista pode, portanto, aumentar por meio do prejuízo causado a terceiros capitalistas, independentemente da subida e descida do salário, do valor de troca da força de trabalho; ou que o lucro do capitalista podia também subir graças ao aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho, da nova aplicação de forças da natureza, etc.

Em primeiro lugar, terá de se admitir que o resultado permaneça o mesmo, ainda que tenha sido provocado pela via inversa. O lucro não subiu, de facto, porque o salário desceu, mas o salário desceu porque o lucro subiu. O capitalista adquiriu, com a mesma soma de trabalho alheio, uma soma maior de valores de troca sem ter por isso pago mais o trabalho; ou seja, portanto, o trabalho é pago mais baixo em relação com a receita líquida que rendeu ao capitalista.

Além disso, lembremos que, apesar das flutuações dos preços das mercadorias, o preço médio de cada mercadoria, a relação em que se troca por outras mercadorias é determinado pelos seus custos de produção.No seio da classe dos capitalistas, as vantagens conseguidas por uns à custa de outros equilibram-se, por isso, necessariamente. O aperfeiçoamento da maquinaria, a nova aplicação de forças da natureza ao serviço da produção capacita, num dado tempo de trabalho, a criar com a mesma soma de trabalho e capital uma massa maior de produtos, mas de modo nenhum uma massa maior de valores de troca. Se, pela aplicação da máquina de fiar, posso fornecer numa hora o dobro do fio que fornecia antes da sua invenção, por exemplo, cinqüenta quilos em vez de vinte e cinco, eu não recebo a longo prazo, por estes cinqüenta quilos mais mercadorias em troca do que antes por vinte e cinco, porque os custos de produção desceram para metade ou porque eu, com os mesmos custos, posso fornecer o dobro do produto.

Finalmente, seja qual for a proporção em que a classe dos capitalistas, a burguesia, seja dum país seja de todo o mercado mundial, reparte entre si a receita líquida da produção, a soma total desta receita líquida é sempre apenas a soma com que o trabalho acumulado, no seu todo, foi aumentado pelo trabalho directo. Esta soma global cresce, portanto, na proporção em que o trabalho aumenta o capital, ou seja, na proporção em que o lucro sobe contra o salário.

Vemos, portanto, que mesmo quando ficamos no seio da relação de capital e trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado estão directamente contrapostos.

Um rápido aumento do capital é igual a um rápido aumento do lucro. O lucro só pode aumentar rapidamente se o preço do trabalho, se o salário relativo diminuir com a mesma rapidez. O salário relativo pode descer, embora o salário real suba simultaneamente com o salário nominal, com o valor em dinheiro do trabalho, desde que, porém, não suba na mesma proporção que o lucro. Se, por exemplo, o salário subir 5% num bom período de negócios, e o lucro, pelo contrário, subir 30%, então o salário comparativo, o salário relativo não aumentou, mas diminuiu.

Se aumenta, portanto, a receita do operário com o rápido crescimento do capital, a verdade é que ao mesmo tempo aumenta o abismo social que afasta o operário do capitalista, aumenta ao mesmo tempo o poder do capital sobre o trabalho, a dependência do trabalho relativamente ao capital.

O operário tem interesse no rápido crescimento do capital — significa apenas: quanto mais depressa o operário aumentar a riqueza alheia tanto mais gordos serão os bocados que caem para ele, tanto mais operários podem ser empregados e chamados à vida, tanto mais pode ser aumentada a massa dos escravos dependentes do capital.

Vimos, portanto, que:

Mesmo a situação mais favorável para a classe operária, o crescimento mais rápido possível do capital, por muito que melhore a vida material do operário, não suprime a oposição entre os

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seus interesses e os interesses burgueses, os interesses do capitalista. Lucro e salário ficam, tal como antes, na razão inversa um do outro.

Está o capital a crescer rapidamente, então o salário pode subir; incomparavelmente mais depressa sobe o lucro do capital. A situação material do operário melhorou, mas à custa da sua situação social. O abismo social que o separa do capitalista alargou-se.

Por fim:

A condição mais favorável para o trabalho assalariado é o crescimento mais rápido possível do capital produtivo — significa apenas: quanto mais depressa a classe operária aumentar e ampliar o poder que lhe é hostil, a riqueza alheia que lhe dá ordens, em tanto mais favoráveis condições lhe é permitido trabalhar de novo para o aumento da riqueza burguesa, para a ampliação do poder do capital, contente por forjar para si própria as cadeias douradas com que a burguesia a arrasta atrás de si.

Crescimento do capital produtivo e subida do salário — estarão tão inseparavelmente ligados como afirmam os economistas burgueses? Não podemos acreditar na sua palavra. Não podemos acreditar que, segundo eles próprios dizem, quanto mais gordo o capital, melhor cevado será o seu escravo. A burguesia é lúcida de mais, calcula bem de mais, para partilhar os preconceitos do feudal que ostenta o brilho dos seus servos. As condições de existência da burguesia obrigam-na a calcular.

Teremos, por conseguinte, de investigar mais de perto:

Como age o crescimento do capital produtivo sobre o salário?

Se o capital produtivo da sociedade burguesa cresce no seu todo, então ocorre uma acumulação mais ampla de trabalho. Os capitais aumentam em número e volume. O aumento dos capitais aumenta a concorrência entre os capitalistas. O volume crescente dos capitais fornece os meios para levar para o campo de batalha industrial exércitos mais poderosos de operários com ferramentas de guerra mais gigantescas.

Um capitalista só pode pôr outro em debandada e conquistar-lhe o capital vendendo mais barato. Para poder vender mais barato sem se arruinar tem de produzir mais barato, isto é, aumentar tanto quanto possível a força de produção do trabalho. Mas a força de produção do trabalho é sobretudo aumentada por meio duma maior divisão do trabalho, por meio duma introdução generalizada e dum aperfeiçoamento constante da maquinaria. Quanto maior é o exército de operários entre os quais o trabalho se divide, quanto mais gigantesca a escala em que se introduz a maquinaria, tanto mais diminuem proporcionalmente os custos de produção, tanto mais frutuoso se torna o trabalho. Nasce daqui uma competição generalizada entre os capitalistas para aumentarem a divisão do trabalho e a maquinaria e as explorarem à maior escala possível.

Ora, se um capitalista achou, graças à maior divisão do trabalho, graças à aplicação e aperfeiçoamento de novas máquinas, graças à exploração mais vantajosa e maciça das forças da natureza, o meio para criar, com a mesma soma de trabalho ou de trabalho acumulado, uma soma maior de produtos, de mercadorias, do que os seus concorrentes; se ele puder, por exemplo, produzir uma vara de pano no mesmo tempo de trabalho em que os seus concorrentes tecem meia vara de pano — como irá operar este capitalista?

Ele poderia continuar a vender meia vara de pano ao preço até aí vigente no mercado; isto, contudo, não seria um meio para pôr em debandada os seus adversários e aumentar as suas próprias vendas. Mas na mesma medida em que a sua produção se expandiu, expandiu-se para ele a necessidade das vendas. Os meios de produção mais poderosos e caros que pôs em acção capacitam-no de facto para vender mais barata a sua mercadoria, mas ao mesmo tempo obrigam-no a vender mais mercadorias, a conquistar para as suas mercadorias um mercado muito maior; o nosso capitalista venderá, portanto, a sua meia vara de pano mais barata do que os seus concorrentes.

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O capitalista, porém, não vai vender a vara inteira ao preço a que os seus concorrentes vendem a meia vara, embora a produção da vara inteira não lhe custe mais do que aos outros a de meia vara. Se o fizesse, não ganharia nada extra, pois recuperaria apenas na troca os custos de produção. A sua receita eventualmente maior proviria do facto de ter posto em movimento um capital mais elevado, mas não do facto de ter valorizado o seu capital mais do que os outros. Além disso, ele atinge o objectivo que quer atingir se fixar o preço da sua mercadoria alguns por cento abaixo do dos seus concorrentes. Põe-nos em debandada, rouba-lhes pelo menos uma parte do mercado, vendendo mais barato. E nós, por fim, recordamos que o preço corrente está sempre acima ou abaixo dos custos de produção, consoante a venda duma mercadoria coincide com a temporada favorável ou desfavorável da indústria. Consoante o preço de mercado da vara de pano está abaixo ou acima dos seus custos de produção até aí usuais, variarão as percentagens a que o capitalista que empregou meios de produção novos e mais frutuosos vende acima dos seus custos de produção reais.

Contudo o privilégio do nosso capitalista não é de longa duração; outros capitalistas concorrentes introduzem as mesmas máquinas, a mesma divisão do trabalho, introduzem-nas à mesma escala ou a uma escala superior, e esta introdução torna-se tão generalizada até que o preço do pano é feito descer não só abaixo dos seus velhos custos de produção, mas abaixo dos novos. Os capitalistas encontram-se, portanto, na mesma situação entre si em que se encontravam antes da introdução dos novos meios de produção, e se com estes meios podem fornecer o dobro do produto ao mesmo preço, agora são obrigados a fornecer o dobro do produto abaixo do preço velho. Ao nível destes novos custos de produção começa outra vez o mesmo jogo. Mais divisão do trabalho, mais maquinaria, maior escala a que divisão do trabalho e maquinaria são exploradas. E a concorrência traz de novo contra este resultado o mesmo efeito contrário.

Vemos como o modo de produção, os meios de produção, são assim continuamente transformados, revolucionados, como a divisão do trabalho traz necessariamente consigo uma maior divisão do trabalho, a aplicação de maquinaria uma maior aplicação de maquinaria, o trabalhar em grande escala um trabalhar em maior escala.

É esta a lei que faz a produção burguesa sair constantemente dos seus velhos carris e obriga o capital a intensificar as forças de produção do trabalho porque as intensificou, a lei que nenhum descanso lhe concede e permanentemente lhe sussurra:

Em frente! Em frente!

Não é esta lei senão a lei que, dentro dos limites das flutuações das épocas do comércio, necessariamente equilibra o preço duma mercadoria com os seus custos de produção.

Quaisquer que sejam os meios de produção poderosos que um capitalista põe em campo, a concorrência generalizará esses meios de produção, e a partir do momento em que aquela os generalizou o único êxito da maior frutificação do seu capital é o ter de fornecer ao mesmo preço dez, vinte, cem vezes mais do que anteriormente. Mas como ele tem de vender talvez mil vezes mais para compensar, pela massa maior do produto vendido, o preço de venda mais baixo, porque agora é necessária uma venda mais maciça não só para ganhar mais, mas para repor os custos de produção — o próprio instrumento de produção, como vimos, torna-se cada vez mais caro —, porque esta venda maciça, porém, não se tornou uma questão vital apenas para ele, mas também para os seus rivais, a velha luta começa com tanta maior violência quanto mais frutuosos são os meios de produção já inventados. A divisão do trabalho e a aplicação da maquinaria voltarão, portanto, a processar-se numa medida incomparavelmente maior.

Qualquer que seja o poder dos meios de produção aplicados, a concorrência procura roubar ao capital os frutos de ouro deste poder reconduzido o preço da mercadoria aos custos de produção, tornando, por conseguinte, na medida em que se pode produzir mais barato, isto é, em que com a mesma soma de trabalho se pode produzir mais, a produção mais barata, o

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fornecimento de massas cada vez maiores do produto pela mesma soma de preço uma lei imperativa. Deste modo, o capitalista nada teria ganho com os seus próprios esforços a não ser a obrigação de fornecer mais no mesmo tempo de trabalho, numa palavra, condições mais difíceis de valorização do seu capital. Assim, enquanto a concorrência o persegue permanentemente com a sua lei dos custos de produção, e todas as armas que ele forja contra os seus rivais se viram como armas contra ele próprio, o capitalista procura permanentemente levar a melhor sobre a concorrência introduzindo incansavelmente novas máquinas — de facto mais caras mas que produzem mais barato — e divisões do trabalho em substituição das velhas e sem esperar que a concorrência tenha envelhecido as novas.

Imaginemos agora esta agitação febril ao mesmo tempo em todo o mercado mundial, e compreende-se como o crescimento, a acumulação e concentração do capital têm por conseqüência uma divisão do trabalho, uma aplicação de nova e um aperfeiçoamento de velha maquinaria ininterruptos que se precipitam uns sobre os outros e executados a uma escala cada vez mais gigantesca.

Mas como actuam estas circunstâncias, que são inseparáveis do crescimento do capital produtivo, sobre a determinação do salário?

A maior divisão do trabalho capacita um operário a fazer o trabalho de cinco, dez, vinte: ela aumenta, portanto, cinco, dez, vinte vezes a concorrência entre os operários. Os operários não fazem concorrência uns aos outros apenas quando um se vende mais barato do que o outro; fazem concorrência uns aos outros quando um executa o trabalho de cinco, dez, vinte; e a divisão do trabalho introduzida e constantemente aumentada pelo capital obriga os operários a fazer uns aos outros esta espécie de concorrência.

Mais ainda: na medida em que aumenta a divisão do trabalho simplifica-se o trabalho. A habilidade especial do operário torna-se sem valor. Ele é transformado numa força produtiva simples, monótona, que não tem de pôr em jogo energias físicas nem intelectuais. O seu trabalho torna-se trabalho acessível a todos. Por isso, de todos os lados o acossam concorrentes, e além disso lembramos que quanto mais simples, mais fácil de aprender é o trabalho, quanto menos custos de produção são precisos para se apropriar do mesmo, tanto mais baixo desce o salário, pois que tal como o preço de todas as outras mercadorias ele é determinado pelos custos de produção.

Na medida, portanto, em que o trabalho dá menos satisfação e se torna mais repugnante, nessa mesma medida aumenta a concorrência e diminui o salário. O operário procura manter a massa do seu salário trabalhando mais seja trabalhando mais horas seja fornecendo mais na mesma hora. Pressionado pelas privações, aumenta ainda mais os efeitos funestos da divisão do trabalho. O resultado é: quanto mais trabalha tanto menos salário recebe, e precisamente pela simples razão de que na medida em que faz concorrência aos seus companheiros operários faz, portanto, dos seus companheiros operários outros tantos concorrentes, os quais se oferecem em condições tão más como ele próprio, porque ele, por conseguinte, em última instância faz concorrência a si mesmo, a si mesmo como membro da classe operária.

A maquinaria produz os mesmos efeitos numa escala muito maior, ao impor a substituição de operários habilitados por operários sem habilitação, de homens por mulheres, de adultos por crianças, pois que a maquinaria, onde é introduzida de novo, lança os operários manuais em massa para a rua, e onde é desenvolvida, aperfeiçoada, substituída por máquinas mais frutuosas, despede operários em grupos mais pequenos. Retratamos atrás, a traços rápidos, a guerra industrial dos capitalistas entre si; esta guerra tem a peculiaridade de nela as batalhas serem ganhas menos pela contratação do que pelo despedimento do exército operário. Os generais, os capitalistas, disputam entre si quem pode mandar embora mais soldados da indústria.

Os economistas contam-nos, por certo, que os operários tornados supérfluos pelas máquinas encontram novos ramos de ocupação.

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Não se atrevem a afirmar directamente que aqueles mesmos operários que foram despedidos arranjam lugar em novos ramos do trabalho. Os factos contra esta mentira são demasiado gritantes. Eles de facto só afirmam que para outras partes constitutivas da classe operária, por exemplo, para a parte da jovem geração operária que já estava pronta para entrar no ramo da indústria decaído, novos meios de ocupação se abrirão. Esta é, naturalmente, uma grande satisfação para os operários caídos. Não faltarão aos senhores capitalistas carne e sangue frescos para explorarem, e mandar-se-á os mortos enterrar os seus mortos. É mais uma consolação que os burgueses oferecem a si mesmos do que uma que dão aos operários. Se a classe inteira dos operários assalariados fosse aniquilada pela maquinaria, que horror para o capital, o qual sem trabalho assalariado deixa de ser capital!

Admita-se, porém, que os que foram directamente desalojados pela maquinaria e a parte inteira da nova geração, que já espreitava este serviço, encontram uma nova ocupação. Acreditar-se-á que a mesma será paga tão alto como a que se perdeu? Isto contradiria todas as leis da economia. Vimos como a indústria moderna traz sempre consigo a substituição de uma ocupação complexa, mais elevada, por outra mais simples, mais subordinada.

Como poderia, pois, uma massa de operários lançada fora dum ramo da indústria pela maquinaria encontrar um refúgio num outro, a não ser que este seja pago mais baixo e pior?

Aduziu-se como excepção os operários que trabalham na fabricação da própria maquinaria. Logo que se requer e consome mais maquinaria na indústria, as máquinas terão necessariamente de aumentar, e portanto a fabricação de máquinas, e portanto a ocupação de operários na fabricação de máquinas, e os operários empregados neste ramo da indústria seriam operários habilitados, seriam mesmo operários instruídos.

Desde o ano de 1840 esta afirmação, já antes apenas meio verdadeira, perdeu toda a aparência, porquanto máquinas cada vez mais complexas são aplicadas para a fabricação de máquinas tal como para a fabricação de fio de algodão, e os operários empregados nas fábricas de máquinas só podem desempenhar, face a máquinas altamente engenhosas, a posição de máquinas altamente desengenhosas.

Mas em lugar do homem despedido pela máquina a fábrica emprega talvez três crianças e uma mulher! E o salário do homem não tinha de chegar para as três crianças e uma mulher? Não tinha o mínimo de salário de chegar para manter e multiplicar a raça? Que prova, portanto, esta apreciada expressão burguesa? Nada mais do que agora são consumidas quatro vezes mais vidas operárias do que anteriormente para ganhar o sustento de uma família operária.

Resumamos: quanto mais cresce o capital produtivo, tanto mais se expandem a divisão do trabalho e o emprego da maquinaria. Quanto mais se expandem a divisão do trabalho e o emprego da maquinaria, tanto mais se expande a concorrência entre os operários, tanto mais se contrai o seu salário.

E, para além disto, a classe operária recruta-se ainda das camadas superiores da sociedade; afunda-se nela uma massa de pequenos industriais e rentiers(5) que não têm nada de mais urgente a fazer do que erguer os braços a par dos braços dos operários. Deste modo, a floresta dos braços levantados ao ar e a pedir trabalho torna-se cada vez mais densa, e os próprios braços tornam-se cada vez mais magros.

Que o pequeno industrial não pode agüentar a luta, na qual uma das primeiras condições é produzir sempre em maior escala, ou seja, ser precisamente um grande industrial e não um pequeno, compreende-se por si.

Que o juro do capital diminui na medida em que aumentam a massa e o número do capital, em que o capital cresce, que por isso o pequeno rentier já não pode viver do seu rendimento, e portanto tem de se lançar sobre a indústria, e portanto ajuda a aumentar as fileiras dos pequenos industriais e, assim, os candidatos ao proletariado, tudo isto não carecerá de mais explicações. Na medida, finalmente, em que os capitalistas são obrigados pelo movimento atrás retratado a

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explorar em maior escala meios de produção gigantescos já existentes e a pôr em movimento, para este fim, todas as molas do crédito, nessa mesma medida aumentam os terramotos industriais, nos quais o mundo do comércio só se mantém sacrificando uma parte da riqueza, dos produtos e mesmo das forças de produção aos deuses das profundezas — aumentam, numa palavra, as crises. Elas tornam-se mais freqüentes e mais violentas pelo próprio facto de que na medida em que cresce a massa de produtos, portanto a necessidade de mercados mais extensos, o mercado mundial se contrai cada vez mais, restam para exploração cada vez menos mercados novos, porque todas as crises anteriores sujeitaram ao comércio mundial mercados até então inconquistados ou apenas superficialmente explorados pelo comércio. O capital, porém, não vive só do trabalho. Senhor a um tempo elegante e bárbaro, arrasta consigo para a cova os cadáveres dos seus escravos, hecatombes inteiras de operários que soçobram nas crises. Vemos assim que: se o capital cresce rapidamente, incomparavelmente mais depressa cresce a concorrência entre os operários, isto é, tanto mais diminuem, proporcionalmente, os meios de ocupação, os meios de subsistência, para a classe operária, e, não obstante, o rápido crescimento do capital é a condição mais favorável para o trabalho assalariado.

Notas de rodapé:

(1) Na Neue Rheinische Zeitung: e do campesinato. (Nota da edição portuguesa).

(2) Groschen: pequena moeda de 10 pfennig, ou seja 1/10 de marco. (Nota da edição portuguesa.)

(3) No original: Arbeitskraft. Não se trata duma emenda de Engels, para a edição de 1891, mas da palavra usada por Marx para o texto da Neue Rheinische Zeitung.

(4) ver o presente tomo, p. 154. (Nota da edição portuguesa.)

(5) Em francês no texto: os que possuem ou vivem de rendimentos. (Nota da edição portuguesa.)

Notas de fim de Tomo:

[N70] Ao publicar a obra Trabalho Assalariado e Capital, Marx propunha-se descrever de forma popular as relações econômicas que constituem a base material da luta de classes na sociedade capitalista. Pretendia dar ao proletariado a arma teórica do conhecimento científico profundo da base sobre a qual repousam na sociedade capitalista o domínio de classe da burguesia e a escravidão assalariada dos operários. Ao desenvolver os pontos de partida da sua teoria da mais-valia, Marx formula em termos gerais a tese do empobrecimento relativo e absoluto da classe operária sob o capitalismo. - 142, 151.

[N71] Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia): jornal que se publicou em Colónia sob a direcção de Marx de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849; Engels fazia parte da redacção. - 142, 189, 230, 371, 532.

[N72] A Associação dos Operários Alemães de Bruxelas foi fundada por Marx e Engels no final de Agosto de 1847 com vista a dar uma formação política aos operários alemães residentes na Bélgica e a fazer propaganda entre eles das idéias do comunismo científico. Sob a direcção de Marx e Engels e dos seus colaboradores, a Associação tornou-se um centro legal de agrupamento dos proletários revolucionários alemães na Bélgica. Os melhores elementos da Associação faziam parte da organização de Bruxelas da Liga dos Comunistas. A atividade da Associação dos Operários Alemães de Bruxelas terminou pouco depois da revolução burguesa de Fevereiro de 1848 em França, em virtude da prisão e da expulsão dos seus membros pela polícia belga. - 142, 532.

[N73] Trata-se da intervenção das tropas tsaristas na Hungria em 1849 com o objectivo de esmagar a revolução burguesa húngara e restabelecer o poder dos Habsburgos austríacos. - 142.

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[N74] Trata-se das insurreições das massas populares na Alemanha em Maio-Julho de 1849 em defesa da Constituição imperial (adoptada pela Assembléia Nacional de Frankfurt em 28 de Março de 1849, mas rejeitada por uma série de Estados alemães). Estas insurreições tinham um carácter espontâneo e disperso e foram esmagadas em meados de Julho de 1849. - 142, 179.

[N75] Marx escreve em O Capital: “Por Economia Política clássica entendo toda a economia política que, desde o tempo de W. Petty, tem investigado as relações reais de produção na sociedade burguesa.” Os principais representantes da Economia Política clássica na Inglaterra foram A. Smith e D. Ricardo. - 143.

[N76] Engels escreveu no Anti-Dühring: “Embora tendo começado por tomar forma na mente de alguns homens de gênio em finais do século XVII, a Economia Política em sentido mais restrito, na sua formulação positiva pelos fisiocratas e por Adam Smith, é, contudo, essencialmente filha do século XVIII.” - 144.

[N77] Engels refere-se às comemorações do 1º de Maio de 1891. Em alguns países (Inglaterra, Alemanha) a festa do 1º de Maio era realizada no primeiro domingo posterior a esta data, que em 1891 calhou em 3 de Maio. - 150.

[N78] Alusão à lenda do nó extremamente complicado com que Górdio, rei da Frígia, atou o jugo ao timão do seu carro; segundo a previsão de um oráculo, quem desatasse este nó tornar-se-ia senhor da Ásia. Alexandre da Macedônia, em vez de tentar desenredar o nó, cortou-o com a espada. - 157.

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MENSAGEM DA DIRECÇÃO CENTRAL À LIGA DOS COMUNISTAS[N79]

KARL MARX/FRIEDRICH ENGELS

Março de 1850

Primeira Edição: Distribuído sob forma de panfleto em 1850. Publicado pela primeira vez por F. Engels na 3.a edição de: K. Marx, Enthüllungen über den Kommunisten-Prozess zu Köln, Hottingen-Zürich, 1885.

Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um coletivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.

A Direção Central à Liga

Irmãos:

Nos dois anos de revolução 1848-49, a Liga afirmou-se duplamente; por um lado, porque os seus membros intervieram energicamente no movimento por toda a parte, na imprensa, nas barricadas e campos de batalha, à frente nas fileiras do proletariado, da única classe decididamente revolucionária. A Liga afirmou-se, além disso, pelo facto de a sua concepção do movimento, tal como foi exposta nas circulares dos congressos e da Direcção Central de 1847, assim como no Manifesto Comunista, se ter mostrado a única correcta; pelo facto de as expectativas formuladas nesses documentos se terem plenamente realizado e a concepção das condições sociais do momento, antes só em segredo propagada pela Liga, estar agora na boca dos povos, abertamente apregoada nas praças públicas. Ao mesmo tempo, a sólida organização inicial da Liga enfraqueceu significativamente. Uma grande parte dos membros, que participou directamente no movimento revolucionário, acreditou que passara o tempo das sociedades secretas e que bastava a acção pública. Alguns círculos e comunidades deixaram afrouxar e adormecer pouco a pouco as suas ligações com a Direcção Central. Assim, enquanto o partido democrático, o partido da pequena burguesia, se organizava cada vez mais na Alemanha, o partido operário perdia o seu único apoio sólido, quando muito permanecia organizado nalgumas localidades para objectivos locais e, por isso, no movimento geral, caiu inteiramente sob o domínio e a direcção dos democratas pequeno-burgueses. Tem de se pôr termo a este estado de coisas, tem de se estabelecer a autonomia dos operários. A Direcção Central compreendeu esta necessidade e, por isso, logo no Inverno de 1848-49, enviou à Alemanha um emissário, Joseph Moll, para a reorganização da Liga. A missão de Moll não teve entretanto efeito duradouro, em parte porque os operários alemães não tinham, então, colhido ainda experiências suficientes, em parte porque a interrompeu a insurreição de Maio passado[N74]. O próprio Mollpegou em armas, entrou no exército de Baden-Palatinado e tombou, em 29 de Junho(1), no recontro de Murg. Nele, perdeu a Liga um dos seus mais antigos, mais activos e mais seguros membros, que estivera em atividade em todos os congressos e Direcções Centrais e já antes realizara com grande êxito uma série de viagens em missão. Após a derrota dos partidos revolucionários da Alemanha e da França, em Julho de 1849, quase todos os membros da Direcção Central voltaram a encontrar-se em Londres, completaram as suas fileiras com novas forças revolucionárias e empreenderam com renovada energia a reorganização da Liga.

A reorganização da Liga só pode ser conseguida através de um emissário e a Direcção Central considera da maior importância que o emissário parta neste preciso momento, em que está iminente uma nova revolução, em que o partido operário deve, portanto, apresentar-se o mais organizado, o mais unânime e o mais autônomo possível, para não ser outra vez, como em 1848, explorado e posto a reboque pela burguesia.

Dissemos-vos, irmãos, logo em 1848, que os burgueses liberais alemães em breve iam aceder à dominação e que imediatamente virariam o seu recém-conquistado poder contra os

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operários. Vistes como isto se consumou. De facto, foram os burgueses que logo após o movimento de Março de 1848 tomaram conta do poder de Estado e se serviram desse poder para empurrar imediatamente os operários, seus aliados na luta, para a anterior posição de oprimidos. Se a burguesia não pôde conseguir isto sem se ligar com o partido feudal afastado em Março e até, finalmente, sem ceder de novo a dominação a este partido feudal absolutista, pelo menos assegurou para si condições que, pelos apuros financeiros do governo, lhe poriam a dominação nas mãos a longo prazo e lhe assegurariam todos os seus interesses, caso fosse possível que o movimento revolucionário enveredasse desde então por um desenvolvimento dito pacifico. A burguesia nem sequer teria necessidade, para assegurar a sua dominação, de se tornar odiosa por medidas violentas contra o povo, uma vez que todos esses passos violentos foram já executados pela contra-revolução feudal. Mas o desenvolvimento não tomará esta via pacífica. Pelo contrário, está próxima a revolução que o há-de acelerar, seja ela provocada por um levantamento autônomo do proletariado francês, seja pela invasão da Santa Aliança[N80] contra a Babel revolucionária[N81].

E o papel que os burgueses liberais alemães desempenharam perante o povo em 1848, esse papel tão traiçoeiro, será assumido, na revolução que se avizinha, pelos pequeno-burgueses democratas, que ocupam agora na oposição o mesmo lugar que os burgueses liberais antes de 1848. Este partido, o partido democrático, mais perigoso para os operários do que o anterior partido liberal consiste em três elementos:

I. As partes mais avançadas da grande burguesia, que têm por objectivo a queda imediata e completa do feudalismo e do absolutismo. Esta fracção está representada pelos antigos conciliadores de Berlim, que propunham a recusa dos impostos.

II. Os pequeno-burgueses democrático-constitucionais, cuja finalidade principal durante o movimento precedente foi a fundação de um Estado federal mais ou menos democrático, como o ambicionavam os seus representantes, a Esquerda da Assembléia de Frankfurt e, mais tarde, o Parlamento de Stuttgart, e como eles próprios o ambicionavam na campanha pela Constituição Imperial[N82]

III. Os pequeno-burgueses republicanos, cujo ideal é uma República federativa alemã, à maneira da Suíça, e que se dão agora o nome de vermelhos e de sociais-democratas porque alimentam o piedoso desejo de abolir a pressão do grande capital sobre o pequeno, do grande-burguês sobre o pequeno. Os representantes desta fracção eram os membros dos congressos e comitês democráticos, os dirigentes das associações democráticas, os redactores dos jornais democráticos.

Todas estas fracções se intitulam, agora, depois da sua derrota, republicanas ou vermelhas, precisamente como em França os pequeno-burgueses republicanos se intitulam agora socialistas. Onde quer que ainda encontrem, como em Württemberg, na Baviera, etc., a oportunidade de perseguir os seus fins por via constitucional, aproveita a ocasião para manter as suas velhas frases e para mostrar, na acção, que em nada mudaram. Compreende-se, de resto, que a mudança de nome deste partido nada modifica perante os operários, mas demonstra simplesmente que é agora obrigado a fazer frente à burguesia aliada ao absolutismo e a apoiar-se no proletariado.

O partido democrático pequeno-burguês é muito poderoso na Alemanha. Abrange não somente a grande maioria dos habitantes burgueses das cidades, os pequenos negociantes industriais e os mestres artesãos: conta entre os seus seguidores os camponeses e o proletariado rural enquanto este último não tiver encontrado um suporte no proletariado autônomo das cidades. É esta a relação do partido operário revolucionário com a democracia pequeno-burguesa: está com ela contra a fracção cuja queda ele tem em vista: opõe-se-lhe em tudo o que ela pretende para se consolidar a si mesma.

Os pequeno-burgueses democratas, muito longe de pretenderem revolver toda a sociedade em benefício dos proletários revolucionários, aspiram a uma alteração das condições sociais que

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lhes torne tão suportável e cômoda quanto possível a sociedade existente. Por isso reclamam, antes de tudo, a diminuição das despesas públicas mediante a limitação da burocracia e a transferência dos principais impostos para os grandes proprietários fundiários e grandes burgueses. Reclamam, além disso, a abolição da pressão do grande capital sobre o pequeno, por meio de instituições públicas de crédito e de leis contra a usura que lhes tornassem possível, a eles e aos camponeses, obter em condições favoráveis adiantamentos do Estado em vez de os obterem dos capitalistas; e ainda o estabelecimento das relações de propriedade burguesas no campo, pela completa eliminação do feudalismo. Para realizarem tudo isto necessita de uma Constituição democrática, seja ela [monárquica] constitucional ou republicana, que lhes dê a maioria, a eles e aos seus aliados, os camponeses, e de uma organização comunal democrática que ponha em suas mãos o controlo directo da propriedade comunal e uma série de funções actualmente exercidas pelos burocratas.

Além disso, a dominação e o rápido aumento do capital devem ser contrariados, em parte pela limitação do direito sucessório, em parte pela entrega ao Estado do maior número possível de trabalhos. No que se refere aos operários, antes de mais está assente que devem, como até agora, permanecerem operários assalariados, apenas desejando os pequeno-burgueses democratas que os operários tenham melhor salário e uma existência mais assegurada; esperam eles conseguir isto [confiando], em parte, ao Estado a ocupação dos operários e através de medidas de beneficência; numa palavra, esperam subornar os operários com esmolas mais ou menos disfarçadas e quebrar a sua força revolucionária tornando-lhes momentaneamente suportável a sua situação. As reivindicações da democracia pequeno-burguesa, aqui resumidas, não são defendidas por todas as fracções ao mesmo tempo e muito poucos são aqueles que se apercebem delas na sua totalidade, como objectivo definido. Quanto mais longe forem indivíduos isolados ou fracções de entre eles, tantas mais destas reivindicações eles farão suas; e os poucos que vêem no atrás mencionado o seu próprio programa hão-de julgar ter-se com isto estabelecido, porém, o máximo a esperar da revolução. Mas estas reivindicações não podem bastar de modo algum ao partido do proletariado. Ao passo que os pequeno-burgueses democratas querem pôr fim à revolução o mais depressa possível, realizando, quando muito, as exigências atrás referidas, o nosso interesse e a nossa tarefa são tornar permanente a revolução até que todas as classes mais ou menos possidentes estejam afastadas da dominação, até que o poder de Estado tenha sido conquistado pelo proletariado, que a associação dos proletários, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro, tenha avançado a tal ponto que tenha cessado a concorrência dos proletários nesses países e que, pelo menos, estejam concentradas nas mãos dos proletários as forças produtivas decisivas. Para nós não pode tratar-se da transformação da propriedade privada, mas apenas do seu aniquilamento, não pode tratar-se de encobrir oposições de classes mas de suprimir as classes, nem de aperfeiçoar a sociedade existente, mas de fundar uma nova. Não resta dúvida alguma que a democracia pequeno-burguesa alcançará por um momento a influência preponderante na Alemanha no curso de desenvolvimento da revolução. Pergunta-se, pois, qual vai ser perante ela, a posição do proletariado e especialmente da Liga:

1. enquanto durarem as actuais condições, em que também são oprimidos os democratas pequeno-burgueses;

2. na próxima luta revolucionária, que lhes dará a preponderância;

3. após essa luta, durante o tempo da sua preponderância sobre as classes derrubadas e o proletariado.

1. No momento presente, em que os pequeno-burgueses democratas são oprimidos por toda a parte, eles pregam ao proletariado em geral a união e a conciliação, estendem-lhe a mão e aspiram à formação de um grande partido de oposição que abarquem todos os matizes no partido democrático; isto é, anseiam por envolver os operários numa organização partidária onde predominem as frases sociais-democratas gerais, atrás das quais se escondem os seus interesses particulares e onde as reivindicações bem determinadas do proletariado não possam ser apresentadas por mor da querida paz. Uma tal união resultaria apenas em proveito deles e em completo desproveito do proletariado. O proletariado perderia toda a sua posição autônoma

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arduamente conseguida e afundar-se-ia outra vez, tornando-se apêndice da democracia burguesa oficial. Essa união tem de ser recusada, por conseguinte, da maneira mais decidida. Em vez de condescender uma vez mais em servir de claque dos democratas burgueses, os operários, principalmente a Liga, têm de trabalhar para constituir, ao lado dos democratas oficiais, uma organização do partido operário, autônoma, secreta e pública, e para fazer de cada comunidade o centro e o núcleo de agrupamentos operários, nos quais a posição e os interesses do proletariado sejam discutidos independentemente das influências burguesas. Quão pouco séria é, para os democratas burgueses, uma aliança em que os proletários estejam lado a lado com eles, com o mesmo poder e os mesmos direitos, mostram-no, por exemplo, os democratas de Breslau, os quais no seu órgão, a Neue Oder-Zeizung[N83], atacam furiosamente os operários organizados autonomamente, a quem intitulam de socialistas. Para o caso de uma luta contra um adversário comum não é preciso qualquer união particular. Assim que se trate de combater directamente um adversário, os interesses dos dois partidos coincidem momentaneamente e, como até agora, também no futuro esta ligação, só prevista para o momento, se estabelecerá por si mesma. Compreende-se que nos conflitos sangrentos que estão iminentes, como em todos os anteriores, são principalmente os operários que, pela sua coragem, a sua decisão e abnegação, terão de conquistar a vitória. Como até agora, os pequeno-burgueses em massa estarão enquanto possível hesitantes, indecisos e inactivos nesta luta, para, uma vez assegurada a vitória, a confiscarem para si, exortarem os operários à calma e ao regresso ao seu trabalho [a fim de] evitar os chamados excessos e excluir o proletariado dos frutos da vitória. Não está no poder dos operários impedirem disto os democratas pequeno-burgueses, mas está no seu poder dificultar-lhes o ascendente perante o proletariado em armas e ditar-lhes condições tais que a dominação dos democratas burgueses contenha em si desde o início o germe da queda e que seja significativamente facilitado o seu afastamento ulterior pela dominação do proletariado. Durante o conflito e imediatamente após o combate, os operários, antes de tudo e tanto quanto possível, têm de agir contra a pacificação burguesa e obrigar os democratas a executar as suas actuais frases terroristas. Têm de trabalhar então para que a imediata efervescência revolucionária não seja de novo logo reprimida após a vitória. Pelo contrário, têm de mantê-la viva por tanto tempo quanto possível. Longe de opor-se aos chamados excessos, aos exemplos de vingança popular sobre indivíduos odiados ou edifícios públicos aos quais só se ligam recordações odiosas, não só há que tolerar estes exemplos mas tomar em mão a sua própria direcção. Durante a luta e depois da luta, os operários têm de apresentar em todas as oportunidades as suas reivindicações próprias a par das reivindicações dos democratas burgueses. Têm de exigir garantias para os operários assim que os burgueses democratas se prepararem para tomar em mãos o governo. Se necessário, têm de obter pela força essas garantias e, principalmente, procurar que os novos governantes se obriguem a todas as concessões e promessas possíveis — o meio mais seguro de os comprometer. Têm principalmente de refrear tanto quanto possível, de toda a maneira mediante a apreciação serena, com sangue-frio, das situações, e pela desconfiança não dissimulada para com o novo governo, a embriaguês da vitória e o entusiasmo pelo novo estado de coisas que surge após todo o combate de rua vitorioso. Ao lado dos novos governos oficiais, têm de constituir imediatamente governos operários revolucionários próprios, quer sob a forma de direcções comunais, de conselhos comunais, quer através de clubes operários ou de comitês operários, de tal maneira que os governos democráticos burgueses não só percam imediatamente o suporte nos operários, mas se vejam desde logo vigiados e ameaçados por autoridades atrás das quais está toda a massa dos operários. Numa palavra: desde o primeiro momento da vitória, a desconfiança tem de dirigir-se não já contra o partido reaccionário vencido, mas contra os até agora aliados [do proletariado], contra o partido que quer explorar sozinho a vitória comum.

2. Mas, para poderem opor-se enérgica e ameaçadoramente a este partido, cuja traição aos operários começará desde a primeira hora da vitória, têm os operários de estar armados e organizados. Tem de ser conseguido de imediato o armamento de todo o proletariado com espingardas, carabinas, canhões e munições; tem de ser contrariada a reanimação da velha milícia burguesa dirigida contra os operários. Onde não se consiga este último ponto, os operários têm de procurar organizar-se autonomamente como guarda proletária, com chefes eleitos e um estado-maior próprio, eleito, e pôr-se às ordens, não do poder do Estado, mas dos conselhos comunais revolucionários formado pelos operários. Onde os operários estejam ocupados por conta do Estado, têm de conseguir o seu armamento e organização num corpo especial com chefes

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eleitos ou como parte da guarda proletária. Sob nenhum pretexto podem as armas e munições sair-lhes das mãos, qualquer tentativa de desarmamento tem de ser frustrada, se necessário, pela força. Liquidação da influência dos democratas burgueses sobre os operários; organização imediata, autônoma e armada dos operários; obtenção das condições mais dificultosas e compromissórias possível para a inevitável dominação temporária da democracia burguesa — tais são os pontos principais que o proletariado, e portanto a Liga, devem ter presentes durante e após a insurreição iminente.

3. Logo que os governos se tenham nalguma medida consolidado, começará de imediato a sua luta contra os operários. Para poder fazer frente, com força, aos pequeno-burgueses democratas, é necessário, antes de tudo, que os operários estejam autonomamente organizados e centralizados em clubes. Após a queda dos governos existentes, a Direcção Central dirigir-se-á logo que possível para a Alemanha, convocará imediatamente um congresso e nele fará as propostas necessárias para a centralização dos clubes operários sob uma direcção estabelecida no centro principal do movimento. A rápida organização, pelo menos de uma união provincial de clubes operários, é um dos pontos mais importantes para o fortalecimento e desenvolvimento do partido operário. A mais próxima conseqüência da queda dos governos existentes será a eleição de uma Representação nacional. O proletariado deve aqui cuidar de que:

I. Uma quantidade de operários não seja excluída, por quaisquer chicanas de autoridades locais e de comissários do governo, seja a que pretexto for.

II. Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se deve accionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, deve os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reaccionários na Representação. Surja a democracia, desde o princípio, decidida e terrorista contra a reacção, e a influência desta nas eleições será antecipadamente aniquilada.

O primeiro ponto em que os democratas burgueses entrarão em conflito com os operários será o da supressão do feudalismo; tal como na primeira Revolução Francesa, os pequeno-burgueses entregarão aos camponeses as terras feudais como propriedade livre, quer dizer, pretendem deixar subsistir o proletariado rural e criar uma classe camponesa pequeno-burguesa, que atravessará o mesmo ciclo do empobrecimento e endividamento em que está agora o camponês francês.

No interesse do proletariado rural e no seu próprio interesse, os operários têm de opor-se a este plano. Têm de exigir que a propriedade feudal confiscada fique propriedade do Estado e seja transformada em colônias operárias, que o proletariado rural associado explore com todas as vantagens da grande exploração agrícola; desde modo, o princípio da propriedade comum obtém logo uma base sólida, no meio das vacilantes relações de propriedade burguesas. Tal como os democratas com os camponeses, têm os operários de unir-se com o proletariado rural[N84]. Além disso, os democratas ou trabalharão directamente para uma República federativa ou, pelo menos, se não puderem evitar uma República una e indivisível, procurarão paralisar o governo central mediante o máximo possível de autonomia e independência para as comunas(2) e províncias. Frente a este plano, os operários têm não só de tentar realizar a República alemã una e indivisível, mas também a mais decidida centralização, nela, do poder nas mãos do Estado. Eles não se devem deixar induzir em erro pelo palavreado sobre a liberdade das comunas, o autogoverno, etc. Num país como a Alemanha, onde estão ainda por remover tantos restos da Idade Média, onde está por quebrar tanto particularismo local e provincial, não se pode tolerar em circunstância alguma que cada aldeia, cada cidade, cada província ponha um novo obstáculo à actividade

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revolucionária, a qual só do centro pode emanar em toda a sua força. — Não se pode tolerar que se renove o estado de coisas actual, em que os alemães, por um mesmo passo em frente, são obrigados a bater-se separadamente em cada cidade, em cada província. Menos do que tudo pode tolerar-se que, através de uma organização comunal pretensamente livre, se perpetue uma forma de propriedade —, que ainda se situa aquém da propriedade privada moderna e por toda a parte se dissolve necessariamente nesta — a propriedade comunal, e as desavenças dela decorrentes entre comunas pobres e ricas, assim como o direito de cidadania comunal, subsistente, com as suas chicanas contra os operários, ao lado do direito de cidadania estatal. Tal como na França em 1793, o estabelecimento da centralização mais rigorosa é hoje, na Alemanha, a tarefa do partido realmente revolucionário(3).

Vimos como os democratas vão chegar à dominação com o próximo movimento e como vão ser forçados a propor medidas mais ou menos socialistas. Perguntar-se-á que medidas devem os operários contrapropor. Os operários não podem, naturalmente, propor quaisquer medidas directamente comunistas no começo do movimento. Mas podem:

1. Obrigar os democratas a intervir em tantos lados quanto possível da organização social até hoje existente, a perturbar o curso regular desta, a comprometerem-se a concentrar nas mãos do Estado o mais possível de forças produtivas, de meios de transporte, de fábricas, de caminhos-de-ferro, etc.

2. Têm de levar ao extremo as propostas dos democratas, os quais não se comportarão em todo o caso como revolucionários mas como simples reformistas, e transformá-las em ataques directos contra a propriedade privada; por exemplo, se os pequeno-burgueses propuserem comprar os caminhos-de-ferro e as fábricas, têm os operários de exigir que esses caminhos-de-ferro e fábricas, como propriedade dos reaccionários, sejam confiscados simplesmente e sem indenização pelo Estado. Se os democratas propuserem o imposto proporcional, os operários exigirão o progressivo; se os próprios democratas avançarem a proposta de um [imposto] progressivo moderado, os operários insistirão num imposto cujas taxas subam tão depressa que o grande capital seja com isso arruinado; se os democratas exigirem a regularização da divida pública, os operários exigirão a bancarrota do Estado. As reivindicações dos operários terão, pois, de se orientar por toda a parte segundo as concessões e medidas dos democratas.

Se os operários alemães não podem chegar à dominação e realização dos seus interesses de classe sem passar por todo um desenvolvimento revolucionário prolongado, pelo menos desta vez têm eles a certeza de que o primeiro acto deste drama revolucionário iminente coincide com a vitória directa da sua própria classe em França e é consideravelmente acelerado por aquela.

Mas têm de ser eles próprios a fazer o máximo pela sua vitória final, esclarecendo-se sobre os seus interesses de classe, tomando quanto antes a sua posição de partido autônoma, não se deixando um só instante induzir em erro pelas frases hipócritas dos pequeno-burgueses democratas quanto à organização independente do partido do proletariado. O seu grito de batalha tem de ser: a revolução em permanência.

Londres, Março de 1850

Notas de rodapé:

(1) A edição de 1885 indica, por engano, a data de 19 de Julho.

(2) O termo “comuna” (Gemeinde) é aqui empregue em sentido amplo. Designa também os municípios.

(3) Há que lembrar hoje que esta passagem assenta num mal-entendido. Considerava-se então como certo — graças aos falsificadores bonapartistas e liberais da história — que a máquina administrativa centralizada francesa fora introduzida pela grande Revolução e manejada,

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designadamente pela Convenção (N85), como arma indispensável e decisiva para a vitória sobre a reacção monárquica e federalista e sobre o inimigo externo. Mas é actualmente um facto conhecido que durante toda a Revolução, até ao 18 de Brumário (N86), o conjunto da administração dos departamentos, distritos e comunas consistia em serviços públicos eleitos pelos próprios administrados e agia com inteira liberdade, nos limites das leis gerais do Estado; que este autogoverno provincial e local, semelhante ao americano, se tornou precisamente a mais poderosa alavanca da Revolução, e isso até ao ponto em que Napoleão, imediatamente após o seu golpe de Estado do 18 de Brumário, se apressou em substituí-la pela administração dos prefeitos ainda hoje existente, a qual, portanto, foi desde o começo um puro instrumento da reacção. Mas assim como o autogoverno local e provincial não contradiz a centralização política nacional, tão-pouco está ele necessariamente ligado a esse estreito egoísmo cantonal ou comunal que tanto nos choca na Suíça e que em 1849 todos os republicanos federalistas da Alemanha do sul queriam como regra na Alemanha. (Nota de Engels à edição de 1885.)

Notas de fim de Tomo:

[N74] Trata-se das insurreições das massas populares na Alemanha em Maio-Julho de 1849 em defesa da Constituição imperial (adoptada pela Assembléia Nacional de Frankfurt em 28 de Março de 1849, mas rejeitada por uma série de Estados alemães). Estas insurreições tinham um carácter espontâneo e disperso e foram esmagadas em meados de Julho de 1849. - 142, 179.

[N79] A Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas foi escrita por Marx e Engels em fins de Março de 1850, quando tinham ainda esperança num novo ascenso da revolução. Ao desenvolver a teoria e a táctica do proletariado na revolução iminente, Marx e Engels sublinhavam em particular na Mensagem a necessidade da criação de um partido proletário independente e da separação dos democratas pequeno-burgueses. A idéia dirigente fundamental formulada pelos fundadores do marxismo na Mensagem é a idéia da “revolução em permanência”, que deve conduzir à eliminação da propriedade privada e das classes e à criação de uma nova sociedade. A Mensagem da Direcção Central foi difundida secretamente entre os membros da Liga dos Comunistas. Em 1851, este documento, encontrado pela polícia prussiana nas mãos de vários membros da Liga dos Comunistas que foram presos, foi publicado nos jornais burgueses alemães e num livro de dois funcionários da polícia: Wermuth e Stieber. - 178.

[N80] Santa Aliança: agrupamento reaccionário dos monarcas europeus, fundada em 1815 pela Rússia tsarista, pela Áustria e pela Prússia para esmagar os movimentos revolucionários de alguns países e manter neles regimes monarco-feudais. - 180, 213, 322.

[N81] Trata-se da capital da França, Paris, considerada desde os tempos da revolução burguesa francesa dos fins do século XVIII o foco da revolução. - 180.

[N82] Esquerda da Assembléia de Frankfurt: ala esquerda pequeno-burguesa da Assembléia Nacional, convocada depois da revolução de Março na Alemanha, que começou as suas reuniões em 18 de Maio de 1848 em Frankfurt-am-Main. A principal tarefa da Assembléia consistia em pôr fim ao fraccionamento político da Alemanha e elaborar uma constituição para toda a Alemanha. No entanto, devido à cobardia e às vacilações da sua maioria liberal, à indecisão e à inconseqüência da ala esquerda, a Assembléia receou tomar nas suas mãos o poder supremo e não foi capaz de ocupar uma posição decidida sobre as questões fundamentais da revolução alemã de 1848-1849. A Assembléia foi obrigada a transferir-se para Stuttgart. Em 18 de Junho de 1849 foi dissolvida pelas tropas. - 180, 373.

[N83] Neue Oder-Zeitung (Nova Gazeta do Oder): jornal democrático-burguês alemão que, com este título, se publicou em Breslau (Wroclaw) entre 1849 e 1855. Em 1855 Marx foi correspondente deste jornal em Londres. - 183.

[N84] As opiniões aqui expostas sobre a questão agrária estão estreitamente ligadas à apreciação geral formulada por Marx e Engels nos anos 40 e 50 sobre as perspectivas de desenvolvimento da revolução. Os fundadores do marxismo consideravam então, como mostrou Lénine, que o capitalismo já estava caduco e o socialismo já se aproximava. A partir daqui, Marx e Engels

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manifestam-se na Mensagem contra a entrega aos camponeses da terra confiscada aos latifundiários, pela sua transformação em propriedade do Estado e a entrega á disposição de colônias operárias do proletariado agrícola associado. Apoiando-se na experiência da Revolução Socialista de Outubro na Rússia e na experiência do movimento revolucionário noutros países, Lénine desenvolveu as concepções marxistas sobre a questão agrária. Reconhecendo a conveniência da conservação preferencial das grandes empresas agrícolas depois da revolução proletária nos países capitalistas avançados, escreveu: “Seria, no entanto o maior erro exagerar ou estereotipar esta norma e não admitir nunca a entrega gratuita de uma parte das terras dos expropriadores expropriados ao pequeno campesinato e por vezes até ao campesinato médio da vizinhança.” (Ver Obras Escolhidas de V. I. Lénine em três tomos, Edições “Avante!” - Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1979, t. 3, p. 362). - 186.

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DO SOCIALISMO UTÓPICO AO SOCIALISMO CIENTÍFICO

FRIEDRICH ENGELS

Prefácio à edição inglesa

O pequeno trabalho que o leitor tem diante de si fazia parte, originariamente, de uma obra maior. Em 1875, o Dr. E. Dühring, docente privado da Universidade de Berlim, anunciou inopinadamente e com bastante alarido sua conversão ao socialismo e apresentou ao público alemão não só uma teoria socialista minuciosamente elaborada, como também um plano prático completo para a reorganização da sociedade.

Lançou-se, naturalmente, sobre seus predecessores, distinguindo particularmente Marx, sobre quem derramou sua transbordante cólera.

Isso ocorria num momento em que os dois setores do Partido Socialista Alemão — os eisenachianos e os lassalianos(1) — acabavam de fundir-se, adquirindo assim não só um imenso fortalecimento, mas algo ainda mais importante: a possibilidade de desenvolver toda essa força contra o inimigo comum. O Partido Socialista da Alemanha convertia-se rapidamente numa potência. Mas para que se convertesse numa potência a condição essencial residia em que não fosse posta em perigo a unidade recém-conquistada. E o Dr. Dühring dispôs-se publicamente a formar em torno de sua pessoa uma seita — núcleo do que seria, no futuro, um partido à parte. Não havia, pois, outro remédio, senão aceitar a luva que nos atirava e entrar na luta, por menos agradável que isso nos fosse.

Certamente, ainda que não fosse muito difícil, a coisa haveria de ser, evidentemente; bastante pesada. É sabido que nós, os alemães, temos uma terrível e poderosa Gründlichkeit — um radicalismo profundo ou uma radical profundidade, como se queira chamar. Quando um de nós expõe algo que reputa ser uma nova doutrina, a primeira coisa que faz é elaborá-la sob a forma de um sistema universal. Tem que demonstrar que tanto os princípios básicos da lógica como as leis fundamentais do universo não existiram, desde toda uma eternidade, senão com o propósito de levar, afinal, a essa teoria recém-descoberta, que coroa então tudo quanto existe. A esse respeito, o Dr. Dühring estava talhado perfeitamente pelo padrão nacional. Nada menos que um Sistema Completo da Filosofia — filosofia intelectual, moral, natural e da história —, um Sistema Completo de Economia Política e de Socialismo e, finalmente, uma História Crítica de Economia Política — três gordos volumes In-8°, pesados por fora e por dentro, três corpos de exército de argumentos, mobilizados contra todos os filósofos e economistas anteriores, em geral, e contra Marx em particular; em realidade, uma tentativa de completa “subversão da ciência”. Tive que defrontar-me com tudo isso; tive que tratar todos os temas possíveis, desde as idéias sobre o tempo e o espaço até o bimetalismo(2); desde a eternidade da matéria e do movimento até a natureza perecível das idéias morais; desde a seleção natural de Darwin até a educação da juventude numa sociedade futura. É certo que a sistemática universalidade de meu contendor me oferecia a oportunidade para desenvolver diante dele, numa forma mais coerente do que até então se havia feito, as idéias sustentadas por Marx e por mim acerca de tão grande variedade de matérias. E foi essa a razão principal que me leva a empreender essa tarefa, ademais tão ingrata.

Minha réplica apareceu, primeiro, numa série de artigos publicados no Vorwärts(3) de Leipzig, órgão central do Partido Socialista, e mais tarde em forma de livro, com o título Herrn Eugen Dühring Umwalzung der Wissenschaft [A Subversão da Ciência Pelo Senhor E. Dühring], do qual foi publicado em Zurique a segunda edição em 1886.

A pedido de meu amigo Paul Lafargue, atual representante de Lille na Câmara dos Deputados da França, destaquei três capítulos desse livro para um folheto, que ele traduziu e publicou em 1880 com o título de Socialisme Utopique et Socialisme Scientifique. Desse texto francês foram feitas uma versão polonesa e outra espanhola. Em 1883 nossos amigos da Alemanha publicaram o folheto em seu idioma original. Desde então se publicaram, à base do

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texto alemão, traduções para o italiano, o russo, o dinamarquês, o holandês e o romeno. Assim, incluindo a atual edição inglesa, este folheto foi difundido em dez línguas. Não sei de nenhuma outra publicação socialista, inclusive o nosso Manifesto Comunista de 1848 e O Capital de Marx, que tenha sido traduzida tantas vezes. Na Alemanha foram feitas quatro edições, com uma tiragem total de cerca de 20 mil exemplares.

O apêndice “A Marca”(4) foi escrito com o propósito de difundir entre o Partido Socialista Alemão algumas noções elementares a respeito da história e o desenvolvimento da propriedade rural na Alemanha. Naquele tempo isso era extremamente necessário, tanto mais que a incorporação dos operários urbanos ao Partido fizera já um grande progresso e já se colocava a tarefa de dedicar-se às massas de operários agrícolas e dos camponeses. Esse apêndice foi incluído na edição tendo em conta a circunstância de que as formas primitivas de posse da terra, comuns a todas as tribos teutônicas, assim como a história de sua decadência, são ainda menos conhecidas na Inglaterra do que na Alemanha. Deixei o texto na sua forma original, sem aludir à hipótese recentemente proposta por Maxim Kovalevski, segundo a qual a repartição das terras de cultivo e de pastagem entre os membros da Marca precedeu ao cultivo em comum dessas terras por uma grande comunidade familiar patriarcal, que compreendia várias gerações (pode servir de exemplo a zádruga do sul da Eslávia, até hoje existente). Logo, porém que a comunidade cresceu e se tomou demasiado numerosa para administrar em comum a economia verificou-se a repartição da terra(5). É provável que Kovalevski tenha razão, mas o assunto ainda se encontra sub judice.

Os termos de economia empregados neste trabalho coincidem, sempre que novos, com os da edição inglesa de O Capital de Marx. Designamos como “produção de mercadorias” aquela fase econômica em que os objetos não são produzidos apenas para o uso do produtor, mas também para os fins de troca, isto é, como mercadorias e não valores de uso.

Essa fase vai dos albores da produção para a troca até os tempos presentes; mas só alcança seu pleno desenvolvimento sob a produção capitalista, isto é, sob as condições em que o capitalista, proprietário dos meios de produção, emprega, em troca de um salário, operários, homens despojados de todo meio de produção, com exceção de sua própria força de trabalho, e embolsa o excedente do preço de venda dos produtos sobre o seu custo de produção. Dividimos a história da produção industrial desde a Idade Média em três períodos: 1) indústria artesanal, pequenos mestres artesãos com alguns oficiais e aprendizes, em que cada operário elabora o artigo completo; 2) manufatura, em que se congrega num amplo estabelecimento um número considerável de operários, elaborando-se o artigo completo de acordo com o princípio da divisão do trabalho, onde cada operário só executa uma operação parcial, de tal modo que o produto só está completo e acabado quando tenha passado sucessivamente pelas mãos de todos; 3) indústria moderna, em que o produto é fabricado mediante a máquina movida pela força motriz e o trabalho do operário se limita a vigiar e retificar as operações do mecanismo.

Sei muito bem que o conteúdo deste livro indignará grande parte do público britânico. Mas se nós, os continentais, houvéssemos guardado a menor consideração aos preconceitos da “respeitabilidade” britânica, isto é, ao filisteísmo britânico, pior ainda teríamos saído. Esta obra defende o que nós chamamos o “materialismo-histórico” e para os ouvidos da imensa maioria dos leitores britânicos a palavra materialismo soa muito mal. “Agnosticismo” ainda poderia passar, mas materialismo é totalmente inadmissível.

E, no entanto a pátria primitiva de todo o materialismo moderno, a partir do século XVII, é a Inglaterra.

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha. Já o escolástico britânico Duns Scot perguntava a si mesmo se a matéria não poderia pensar.

Para realizar esse milagre refugiava-se na onipotência divina, isto é, obrigava a própria teologia a pregar o materialismo. Duns Scot era, ademais, nominalista. O nominalismo(6) aparece como elemento primordial nos materialistas ingleses e é, em geral, a expressão primeira do materialismo.

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O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza. Anaxágoras, com suas homoemerias (7) e Demócrito com seus átomos são as autoridades que cita com freqüência. Segundo, sua teoria os sentidos são infalíveis e constituem a fonte de todos os conhecimentos. Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional.

Entre as propriedades inerentes à matéria, a primeira e mais importante é o movimento, concebido não só como um movimento mecânico e matemático, porém ainda mais como impulso, como espírito vital, como tensão, como “Qual”(8) — para empregar a expressão de Jakob Böhme — da matéria.

As formas primitivas deste último são forças substanciais vivas, individualizantes, a ela inerentes, forças que produzem as diferenças específicas.

Em Bacon, como seu primeiro criador, o materialismo guarda ainda, de maneira ingênua, os germes de um desenvolvimento multilateral. A matéria sorri com um fulgor poeticamente sensorial a todo homem. Em troca, a doutrina aforística é ainda, por si mesma, um manancial de inconseqüências teológicas.

Em seu desenvolvimento posterior, o materialismo torna-se unilateral. Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e se converte na sensoriedade abstrata do geômetra. O movimento físico sacrifica-se ao movimento mecânico ou matemático, a geometria é proclamada a ciência fundamental. O materialismo toma-se misantropo.

Para poder dar combate em seu próprio terreno ao espírito misantrópico e descarnado, o materialismo se vê obrigado também a flagelar a sua carne e converter-se em asceta. Apresenta-se como entidade intelectual, mas desenvolve também a lógica impiedosa do intelecto.

Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos — argumenta Hobbes partindo de Bacon —, os conceitos, as idéias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado de sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a esses fantasmas. Um nome pode ser atribuído a vários fantasmas. Pode inclusive haver nomes de nomes. Mas seria uma contradição querer, de um lado, buscar a origem de todas as idéias no mundo dos sentidos e, de outro lado, afirmar que uma palavra é algo mais que uma palavra, que além dos seres concretos que nós nos representamos, existem seres universais. Uma substância incorpórea é um contra-senso igual a um corpo incorpóreo. Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma idéia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A palavra “infinito” carece de sentido, a não ser como expressão da capacidade do nosso espírito para acrescentar sem fim. Como só o material é perceptível, susceptível de ser conhecido, nada se conhece da existência de Deus. Só a minha própria existência é certa. Toda paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem. O homem acha-se sujeito às mesmas leis que a natureza. O poder e a liberdade são coisas idênticas.

Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor de seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as idéias têm sua origem no mundo dos sentidos.

Locke, em sua obra Essay on the Human Understanding (Ensaio Sobre o Entendimento Humano) fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes.

Do mesmo modo que Hobbes destruiu os preconceitos teísticos do materialismo baconiano, Collins, Dodwell, Coward, Hartley, Priestley, etc., derrubaram a última barreira teológica do sensualismo de Locke. O deísmo(9) não é, pelo menos para os materialistas, mais do que uma maneira cômoda e indolente de desfazer-se da religião.”

[Karl Marx — A Sagrada Família N.E.(10) ]

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Assim se expressava Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno. E se aos ingleses de hoje não agrada muito essa homenagem prestada por Marx aos seus antepassados, lamentamos por eles. Mas é inegável, apesar de tudo, que Bacon, Hobbes e Locke foram os pais daquela brilhante escola de materialistas franceses que, apesar das derrotas que os alemães e ingleses infligiram à França por mar e por terra, fizeram do século XVIII um século eminentemente francês; e isso muito antes daquela revolução francesa que coroou o final do século e cujos resultados ainda hoje nos esforçamos por aclimatar na Inglaterra e na Alemanha.

Não se pode negar. Se em meados do século um estrangeiro culto se instalasse na Inglaterra, o que mais lhe causaria surpresa seria a beatice religiosa e a estupidez — assim teria ele que considerar — da “respeitável” classe média inglesa. Todos nós éramos, então, materialistas ou, pelo menos, livres-pensadores muito avançados, e nos parecia inconcebível que quase todos os homens cultos da Inglaterra acreditassem numa série de milagres impossíveis e que até geólogos como Buckland e Mantell tergiversassem os fatos de sua ciência, para não desmascarar muito frontalmente os mitos do Gênesis; inconcebível que, para encontrar pessoas que se atrevessem a servir-se de sua inteligência em matéria religiosa, tivessem que recorrer aos setores incultos, às “hordas dos que não se lavam”, como se dizia então, aos operários e, principalmente, aos socialistas owenianos.

Mas, de então para cá, a Inglaterra “civilizou-se”. A Exposição de 1851(11) foi o repique fúnebre do exclusivismo insular inglês. A Inglaterra foi, pouco a pouco, internacionalizando-se nas comidas e nas bebidas, nos costumes e nas idéias, até um ponto que me faz desejar que certos costumes ingleses encontrem no continente uma acolhida tão geral como o têm encontrado outros hábitos continentais na Inglaterra. O que se pode assegurar é que a difusão do azeite para salada (que antes de 1851 só era conhecido pela aristocracia) foi acompanhada de uma fatal difusão do ceticismo continental em matéria religiosa, chegando-se até ao extremo de que o agnosticismo, embora ainda não considerado tão elegante como a igreja anglicana, está contudo, no que se refere à respeitabilidade, quase na mesma altura da seita anabatista, ocupando mesmo posição muito mais alta que o Exército de Salvação(12). Não posso deixar de pensar que, para muitos que deploram e amaldiçoam com toda sua alma tais progressos da descrença, será um consolo saber que essas idéias flamejantes não são de origem estrangeira, não circulam com a marca “Made in Germany” (fabricado na Alemanha), como tantos outros artigos de uso diário, mas têm, ao contrário, antiga e venerável origem inglesa e que os seus autores britânicos de há duzentos anos atrás iam muito mais longe do que os seus atuais descendentes.

Com efeito, que é o agnosticismo senão um materialismo envergonhado? A concepção agnóstica da natureza é inteiramente materialista. Todo o mundo natural é regido por leis e exclui por completo toda influência exterior. Mas nós acrescenta cautelosamente o agnóstico, não estamos em condições de poder provar ou refutar a existência de um ser supremo fora do mundo por nós conhecido. Essa reserva podia ter sua razão de ser na época em que Laplace, como Napoleão lhe perguntasse por que na Mécanique Céleste(13) do grande astrônomo não se mencionava sequer o criador do mundo, respondia com estas palavras orgulhosas: “Je n’avais pas besoin de cette hypothèse”(14). Mas hoje a nossa idéia do universo em seu desenvolvimento não deixa o menor lugar nem para um criador nem para um regente do universo; e se quiséssemos admitir a existência de um ser supremo posto à margem de todo o mundo existente, incorreríamos numa contradição lógica e, além disso, parece-me, feriríamos desnecessariamente os sentimentos das pessoas religiosas.

Nosso agnóstico reconhece também que todos os nossos conhecimentos têm por base as comunicações que recebemos por intermédio dos sentidos. Mas, como sabemos — acrescenta — se nossos sentidos nos transmitem realmente a imagem exata dos objetos por eles percebidos? E continua dizendo: quando falo das coisas e das propriedades não me refiro, em verdade, a essas coisas e suas propriedades em si, acerca das quais nada posso saber de certo, mas apenas às impressões que deixam em meus sentidos. É, certamente, uma forma de conceber que parece difícil ser contestada através de simples argumentação. Mas os homens, antes de argumentar, haviam atuado.

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“Im Anfang war die Tat”(15). E a ação humana havia resolvido a dificuldade muito antes de os sofismas humanos a inventarem. “The proof of the pudding ís in the eating”(16).

Desde o momento em que aplicamos essas coisas, de acordo com as qualidades que percebemos nelas, a nosso uso próprio, submetemos as percepções de nossos sentidos a uma prova infalível no que se refere à sua exatidão ou à sua falsidade. Se essas percepções fossem falsas, falso seria também nosso juízo acerca da possibilidade de empregar a coisa de que se trata, e nossa tentativa de empregá-la teria forçosamente de fracassar. Mas se conseguimos o fim desejado, se achamos que a coisa corresponde à idéia que dela fazemos, que nos dá o que dela esperávamos ao usá-la, teremos a prova positiva de que, dentro desses limites, nossas percepções acerca dessa coisa e de suas propriedades coincidem com a realidade existente fora de nós. Em troca, se acontece termos dado um golpe em falso, geralmente não tardamos muito em descobrir as causas do nosso engano; concluímos que a percepção em que se baseava a nossa ação era incompleta e superficial, ou se achava enlaçada com os resultados de outras percepções de um modo não justificado pela realidade das coisas; quer dizer: havíamos realizado o que chamamos um raciocínio defeituoso. Enquanto adestrarmos e empregarmos bem os nossos sentidos e ajustarmos o nosso modo de proceder aos limites traçados pelas observações bem feitas e bem utilizadas, veremos que os resultados dos nossos atos fornecerão a prova da conformidade de nossas percepções com a natureza objetiva das coisas percebidas. Em nenhum caso, segundo a experiência que possuímos até hoje, nos vimos obrigados a chegar à conclusão de que as percepções sensoriais cientificamente controladas originam em nosso cérebro idéias do mundo exterior que, por sua natureza, diferem da realidade, ou de que entre o mundo exterior e as percepções que nossos sentidos, dele nos transmitem medeia uma incompatibilidade inata.

Mas, ao chegar aqui, apresenta-se o agnóstico neo-kantiano e nos diz: Sim, poderemos talvez perceber exatamente as propriedades de uma coisa, porém nunca apreender a coisa em si por meio de nenhum processo sensorial ou discursivo. Essa “coisa em si” situa-se além de nossas possibilidades de conhecimento. Já Hegel, há muito tempo, respondeu a isso: desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa, conhecemos também a própria coisa; fica somente em pé o fato de que essa coisa existe fora de nós, e enquanto os nossos sentidos nos fornecerem esse fato, apreendemos até o último resíduo da coisa em si, a famosa o incognoscível Ding an sich(17) de Kant.

Hoje, só podemos acrescentar a isso que, na época de Kant, o conhecimento que ele tinha das coisas naturais era o bastante fragmentário para se poder suspeitar, por trás de cada uma delas, uma misteriosa “coisa em si”. Mas, de então para cá, essas coisas inapreensíveis foram apreendidas, analisadas e, mais ainda, reproduzidas uma após outra pelos gigantescos progressos da ciência. E desde o instante em que podemos produzir uma coisa, não há nenhuma razão para que seja ela considerada incognoscível. Para a química da primeira metade de nosso século, as substâncias orgânicas eram coisas misteriosas. Hoje, já aprendemos a fabricá-las uma após outra, à base dos elementos químicos e sem ajuda dos processos orgânicos. A química moderna nos diz que, logo que se conheça a constituição química de qualquer corpo, esse corpo pode integrar-se a partir de seus elementos.

Estamos atualmente muito longe ainda de conhecer exatamente a constituição das substâncias orgânicas superiores, os chamados corpos albuminóides, mas não existe absolutamente nenhuma razão para que não adquiramos, ainda que tal se dê dentro de vários séculos, esse conhecimento, e com sua ajuda possamos fabricar albumina artificial. E quando o conseguirmos teremos conseguido também produzir a vida orgânica, pois a vida, desde as suas formas mais inferiores às mais elevadas, não é senão a modalidade normal de existência dos corpos albuminóides.

Mas, depois de feitas essas reservas formais, nosso agnóstico faz e atua em tudo como o materialista empedernido, que no fundo é. Poderá dizer: a julgar pelo que nós sabemos, a matéria e o movimento ou, como agora se diz, a energia, não podem criar-se nem destruir-se, mas não temos provas de que ambas não tenham sido criadas em algum tempo remoto e desconhecido. E se tentardes dirigir contra ele essa confissão, num caso determinado, chamar-vos-á

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apressadamente à ordem e vos mandará calar. Se in abstracto reconhece a possibilidade do espiritualismo, in concreto nada quer saber sobre ele. Dir-vos-á: pelo que sabemos e podemos saber, não existe criador nem regente do universo; no que a nós se refere, a matéria e a energia são tão incriáveis como indestrutíveis; para nós o pensamento é uma forma da energia, uma função do cérebro. Tudo o que sabemos nos leva à conclusão de que o mundo material se acha regido por leis imutáveis, etc. etc. Portanto, na medida em que é um homem de ciência, na medida em que sabe algo, o agnóstico é materialista; fora dos confins de sua ciência, nos campos que não domina, traduz sua ignorância para o grego, chamando-a agnosticismo.

Em todo caso, o que se pode assegurar é que, ainda que eu fosse agnóstico, não poderia dar à concepção da história esboçada neste pequeno livro o nome de “agnosticismo histórico”. As pessoas de sentimentos religiosos se ririam de mim e os agnósticos me perguntariam, indignados, se pretendia zombar deles. Assim, confio em que a “respeitabilidade” britânica, que em alemão se chama filisteísmo, não se aborrecerá demasiado porque empregue em inglês, como em tantos outros idiomas, o nome de “materialismo histórico” para designar essa concepção dos roteiros da história universal que vê a causa final e a causa propulsora decisiva de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico da sociedade, nas transformações do modo de produção e de troca, na conseqüente divisão da sociedade em diferentes classes e nas lutas dessas classes entre si.

Dispensar-me-ão talvez essa consideração, sobretudo se demonstro que o materialismo histórico pode inclusive ser útil para a respeitabilidade do filisteu britânico. Já aludi ao fato de que, há quarenta ou cinqüenta anos, o estrangeiro culto que se instalasse para viver na Inglaterra se veria desagradavelmente surpreendido pelo que necessariamente teria que considerar beatice e hipocrisia religiosa da respeitável classe média inglesa. Demonstrarei agora que a respeitável classe média inglesa, daquele tempo não era, contudo, tão estúpida como o estrangeiro inteligente imaginava. Suas tendências religiosas tinham sua explicação.

Quando a Europa saiu da Idade Média, a classe média urbana em ascensão era seu elemento revolucionário. A posição reconhecida que conquistara dentro do regime feudal da Idade Média era já demasiado estreita para sua força de expansão. O livre desenvolvimento dessa classe média, a burguesia, já não era compatível com o regime feudal; este tinha forçosamente de desmoronar.

Mas o grande centro internacional do feudalismo era a Igreja Católica Romana. Ela unia toda a Europa ocidental feudalizada, apesar de todas as suas guerras intestinas, numa grande unidade política, contraposta tanto ao mundo cismático grego como ao mundo maometano. Cercou as instituições feudais do halo da graça divina. Também ela havia levantado sua hierarquia segundo o modelo feudal e era, afinal de contas, o maior de todos os senhores feudais, pois possuía, pelo menos, a terça parte de toda a propriedade territorial do mundo católico. Antes de poder dar combate, em cada país e nos diversos terrenos, ao feudalismo secular seria necessário destruir a organização central santificada.

Passo a passo, com a ascenso da burguesia produzia-se o grande ressurgimento da ciência. Voltava-se a cultivar a astronomia, a mecânica, a física, a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava, para o desenvolvimento de sua produção industrial, de uma ciência que investigasse as propriedades dos corpos físicos e o funcionamento das forças naturais. Mas, até então, a ciência não havia sido mais que a servidora humilde da Igreja, não lhe sendo permitido transpor as fronteiras estabelecidas pela fé; numa palavra, havia sido qualquer coisa menos uma ciência. Agora, a ciência se rebelava contra a Igreja; a burguesia precisava da ciência e se lançou com ela na rebelião.

Não toquei aqui senão em dois pontos em que a burguesia em ascensão tinha necessariamente que se chocar com a religião estabelecida. Mas isso bastará para provar: primeiro, que a classe mais empenhada na luta contra o poder da Igreja Católica era precisamente a burguesia e, segundo, que então toda luta contra o feudalismo tinha que vestir-se com uma roupagem religiosa e dirigir-se em primeira instância contra a Igreja.

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Mas o grito de guerra lançado pelas universidades e os homens de negócios das cidades tinha inevitavelmente de encontrar, como com efeito encontrou, uma forte ressonância entre as massas do campo, entre os camponeses, que em toda parte estavam empenhados numa dura luta contra seus senhores feudais eclesiásticos e seculares, luta em que estava em foco a sua existência.

A grande campanha da burguesia européia contra o feudalismo culminou em três grandes batalhas decisivas.

A primeira foi a que chamamos Reforma protestante alemã. Ao grito de rebelião de Lutero contra a Igreja responderam duas insurreições políticas: primeiro, a da nobreza inferior, acaudilhada por Franz von Sickingen, em 1523, e logo a grande guerra camponesa em 1525. Ambas foram esmagadas, por causa principalmente da falta de decisão do partido mais interessado na luta: a burguesia das cidades — falta de decisão cujas causas não podemos analisar aqui. Desde esse instante a luta degenerou numa rixa entre os diversos príncipes e o poder central do Imperador, trazendo como conseqüência o afastamento da Alemanha por duzentos anos do concerto das nações politicamente ativas da Europa. É certo que a Reforma luterana conduziu a uma nova religião, aquela justamente de que a monarquia absoluta precisava. Mal abraçaram o luteranismo, viram-se os camponeses do nordeste da Alemanha rebaixados da condição de homens livres à de servos da gleba.

Mas, onde Lutero falhou, triunfou Calvino. O dogma calvinista servia aos mais intrépidos burgueses da época. Sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que no mundo comercial, no mundo da concorrência, o êxito ou a bancarrota não depende da atividade ou da aptidão do indivíduo, mas de circunstâncias independentes dele. “Ele não depende da vontade ou da fuga de ninguém, mas da misericórdia” de forças econômicas superiores, mas desconhecidas.

E isso era mais do que nunca uma verdade numa época de revolução econômica, em que todos os velhos centros e caminhos comerciais eram substituídos por outros novos, em que se abriam ao mundo a América e a Índia e em que vacilavam e vinham abaixo até os artigos econômicos de fé mais sagrados: os valores do ouro e da prata. Ademais, o regime da Igreja calvinista era absolutamente democrático e republicano; como podiam os reinos deste mundo continuar sendo súditos dos reis, dos bispos e dos senhores feudais onde o reino de Deus se havia republicanizado? Se o luteranismo alemão se converteu num instrumento submisso nas mãos dos pequenos príncipes alemães, o calvinismo fundou uma República na Holanda e fortes partidos republicanos na Inglaterra e, sobretudo, na Escócia.

No calvinismo a segunda grande insurreição da burguesia encontrou, acabada, sua teoria de luta. Essa insurreição verificou-se na Inglaterra. Foi posta em marcha pela burguesia das cidades, mas foram os camponeses médios (a yeomanry) dos distritos rurais que conseguiram o triunfo. Coisa singular: nas três grandes revoluções burguesas são os camponeses que fornecem as tropas de combate e são também eles, precisamente, a classe que, depois de alcançar o triunfo, sai arruinada infalivelmente pelas conseqüências econômicas desse triunfo. Cem anos depois de Cromwell, pode-se dizer que a yeomanry da Inglaterra quase desaparecera. Em todo caso, sem a intervenção dessa yeomanry e do elemento plebeu das cidades, a burguesia jamais teria podido conduzir a luta ao seu final vitorioso nem levado Carlos I ao cadafalso. Para que a burguesia embolsasse embora só os frutos mais maduros do triunfo, foi necessário levar a revolução muito além de sua meta; exatamente como haveria de ocorrer na França em 1793 e na Alemanha em 1848. Parece ser essa, com efeito, uma das leis que presidem a evolução da sociedade burguesa.

Após esse excesso de atividade revolucionária seguiu-se a inevitável reação que, por sua vez, também ultrapassou o ponto em que devia ter-se mantido. Depois de uma série de vacilações, conseguiu por fim fixar-se o novo centro de gravidade, que se converteu, por sua vez, em novo ponto de partida. O período grandioso da história inglesa, ao qual os filisteus dão o nome de “a grande rebelião” e as lutas que lhe seguiram, alcançam o seu coroamento no episódio

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relativamente insignificante de 1689, que os historiadores liberais assinalam com o nome de “revolução gloriosa”(18).

O novo ponto de partida foi uma transação entre a burguesia em ascensão e os antigos grandes latifundiários feudais. Estes, embora fossem conhecidos, então como hoje, pelo nome de aristocracia, estavam desde há muito tempo em vias de converter-se no que Luís Felipe havia de ser muito depois na França: nos primeiros burgueses da nação. Para felicidade da Inglaterra, os antigos barões feudais se haviam destroçado entre si nas guerras das Duas Rosas(19). Seus sucessores, embora em sua maioria descendentes das mesmas antigas famílias procediam já de linhas colaterais tão afastadas que formavam uma corporação completamente nova; seus costumes e tendências tinham muito mais de burgueses que de feudais; conheciam perfeitamente o valor do dinheiro e se dedicaram, em seguida, a aumentar as rendas de suas terras, delas expulsando centenas de pequenos arrendatários e substituindo-os por rebanhos de ovelhas. Henrique VIII criou uma massa de novos landlords burgueses, distribuindo e dilapidando os bens da Igreja; e a idêntico resultado levaram as confiscações de grandes propriedades territoriais, levadas a efeito sem interrupção até fins do século XVII, para logo entregá-las a indivíduos meio ou inteiramente adventícios. Por isso é que a “aristocracia” inglesa, desde Henrique VII, longe de opor-se ao desenvolvimento da produção industrial, procura tirar indiretamente proveito dela. Ademais, uma parte dos grandes latifundiários mostrou-se disposta a todo momento, por motivos econômicos ou políticos, a colaborar com os caudilhos da burguesia industrial ou financeira. A transação de 1869 não foi, pois, difícil de conseguir. Os troféus políticos — os cargos, as sinecuras, os elevados ordenados — das grandes famílias da aristocracia rural foram respeitados, com a condição de que defendessem cabalmente os interesses econômicos da classe média financeira, industrial e mercantil. E esses interesses econômicos já eram, então, bastante poderosos; eram eles que traçavam, em última análise, os rumos da política nacional. Poderia haver discrepâncias em torno de detalhes, mas a oligarquia aristocrática sabia demasiado bem quanto se achava a sua própria prosperidade econômica inseparavelmente unida à da burguesia industrial e comercial.

A partir desse momento a burguesia converteu-se em parte integrante, modesta mas reconhecida, das classes dominantes da Inglaterra.

Compartilhava com todas elas do interesse em manter oprimida a grande massa trabalhadora do povo. O comerciante ou fabricante mesmo ocupava, em relação a seu subordinado, a seus operários ou a seus criados, a posição de senhor, de seu “superior natural”, como se dizia até há pouco na Inglaterra. Tinha que sugar deles a maior quantidade e a melhor qualidade possível de trabalho; para consegui-lo, tinha de educá-los numa submissão adequada. Pessoalmente, era um homem religioso; sua religião lhe havia fornecido a bandeira sob a qual combateu o rei e os senhores; descobrira também, havia pouco, os recursos que essa religião lhe oferecia para trabalhar o espírito de seus inferiores naturais e torná-los submissos às ordens dos amos, que os desígnios imprescrutáveis de Deus lhe inspiravam. Numa palavra, o burguês da Inglaterra participava agora na empresa de oprimir as “classes inferiores”, a grande massa produtora da nação, e um dos meios empregados para isso era a influência da religião.

Mas a isso vinha acrescentar-se uma nova circunstância, que reforçava as inclinações religiosas da burguesia: o aparecimento do materialismo na Inglaterra. Essa nova doutrina não só feria os sentimentos piedosos da classe média mas, além disso, se anunciava como uma filosofia destinada apenas aos sábios e aos homens cultos do grande mundo; ao contrário da religião, boa para a grande massa não ilustrada, inclusive a burguesia. Com Hobbes, essa doutrina apareceu em cena como defensora das prerrogativas e da onipotência reais e convidou a monarquia absoluta a trazer em rédea curta aquele puer robustus sed malitiosus(20) que era o povo. Também nos continuadores de Hobbes, em Bolingbroke, em Shaftesbury, etc, a nova forma deística do materialismo continuava sendo uma doutrina aristocrática, esotérica e, portanto, odiada pela burguesia, não só por ser uma heresia religiosa, mas também por suas conexões políticas antiburguesas. Por isso, frente ao materialismo e ao deísmo da aristocracia, eram principalmente as seitas protestantes, que haviam fornecido a bandeira e os homens para a luta contra os Stuarts,

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que davam o contingente principal às forças da classe média progressista e que ainda formam a medula do “grande partido liberal”.

Entretanto, o materialismo transferiu-se da Inglaterra para a França, onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo(21) e com a qual se refundiu. Também na França continua sendo, a princípio, uma doutrina exclusivamente aristocrática. Mas seu caráter revolucionário não tardou a revelar-se. Os materialistas franceses não limitavam sua crítica simplesmente aos assuntos religiosos, mas a estendiam a todas as tradições científicas e a todas as instituições políticas do seu tempo; para demonstrar a possibilidade de aplicação universal de sua teoria seguiram o caminho mais curto: aplicaram-na audazmente a todos os ramos do saber na Encyclopédie — a obra gigantesca que lhes valeu o nome de “enciclopedistas”. Desse modo o materialismo, sob uma forma ou outra — como materialismo declarado ou como deísmo —, converteu-se no credo de toda a juventude culta da França; até tal ponto que durante a Grande Revolução a teoria criada pelos realistas ingleses serviu de bandeira teórica aos republicanos e terroristas franceses, e dela saiu o texto da “Declaração dos Direitos do Homem”(22).

A grande Revolução Francesa foi a terceira insurreição da burguesia, mas a primeira que se despojou totalmente do manto religioso, travando a batalha no campo político aberto. E foi a primeira que levou realmente o combate até à destruição de um dos dois combatentes, a aristocracia, e o triunfo completo do outro, a burguesia. Na Inglaterra, a continuidade ininterrupta das instituições pré-revolucionárias e pós-revolucionárias e a transação selada entre os grandes latifundiários e os capitalistas encontravam sua expressão na continuidade dos precedentes judiciais, assim como na respeitosa conservação das formas legais do feudalismo. Na França, a revolução rompeu plenamente com as tradições do passado, varreu os últimos vestígios do feudalismo e criou, com o Code civil(23), uma magistral adaptação do antigo direito romano às relações capitalistas modernas, daquela expressão quase perfeita das relações jurídicas derivadas da fase econômica que Marx chama a “produção de mercadorias”; tão magistral que esse código francês revolucionário serve ainda hoje em todos os países — sem excetuar a Inglaterra — de modelo para as reformas do direito de propriedade. Mas, nem por isso devemos perder de vista uma coisa. Embora o direito inglês continue expressando as relações econômicas da sociedade capitalista numa linguagem feudal bárbara, que guarda com a coisa exprimida a mesma relação que a ortografia com a fonética inglesa “vous écrivez Londres et vous prononcez Constantinople”(24), dizia um francês — esse direito inglês é o único que conservou indene através dos séculos e transplantou para a América do Norte e as colônias a melhor parte daquela liberdade pessoal, aquela autonomia local e aquela salvaguarda contra toda ingerência, fora da dos tribunais; numa palavra, aquelas antigas liberdades germânicas que haviam sido perdidas no Continente sob o regime da monarquia absoluta e que não foram até agora recobradas em parte alguma.

Voltemos porém ao nosso burguês britânico. A Revolução Francesa ofereceu-lhe uma magnífica oportunidade para arruinar, com a ajuda das monarquias constitucionais, o comércio marítimo francês, anexar as colônias francesas e reprimir as últimas pretensões francesas de fazer-lhe a concorrência por mar. Foi essa uma das razões de tê-la combatido. A segunda razão consistia em que os métodos dessa revolução eram muito pouco de seu agrado. Não já o seu “execrável” terrorismo, mas também a sua tentativa de implantar o regime burguês até suas últimas conseqüências. Que faria no mundo o burguês britânico sem sua aristocracia, que lhe ensinava maneiras (e que maneiras!) e inventava modas para ele, que lhe fornecia a oficialidade para o exército, garantia da ordem dentro do país, e para a marinha, conquistadora de novos domínios coloniais e de novos mercados no exterior? É certo que havia também dentro da burguesia uma minoria progressista, formada por pessoas cujos interesses não haviam sido bem sucedidos na transação; essa minoria, integrada pela classe média de posição mais modesta, simpatizava com a revolução, mas era impotente no Parlamento.

Portanto, quanto mais se convertia o materialismo no credo da Revolução Francesa, tanto mais se aferrava o piedoso burguês britânico à sua religião. Por acaso a época de terror em Paris não demonstrara o que se dá quando o povo perde a religião? A medida que se estendia o

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materialismo da França aos países vizinhos e recebia o reforço de outras correntes teóricas afins, principalmente da filosofia alemã; — à medida que, no Continente, o fato de ser materialista e livre-pensador era, em realidade, uma qualidade indispensável para ser pessoa culta — mais tenazmente se afirmava a classe média inglesa em suas diversas confissões religiosas. Por muito que variassem umas das outras, eram todas confissões decididamente religiosas, cristãs.

Enquanto que a revolução assegurava o triunfo político da burguesia na França, na Inglaterra Watt, Arkwright, Cartwright e outros iniciaram uma revolução industrial, que deslocou completamente o centro de gravidade do poder econômico. Agora, a burguesia enriquecia muito mais rapidamente do que a aristocracia latifundiária. E, dentro da própria burguesia, a aristocracia financeira, os banqueiros, etc., iam passando cada vez mais para o segundo plano em face dos fabricantes. A transação de 1869, mesmo com as emendas que foram sendo introduzidas pouco a pouco a favor da burguesia, já não correspondia à posição recíproca das duas partes interessadas. Mudara também o caráter destas: a burguesia de 1830 diferia muito da do século anterior. O poder político que a aristocracia ainda conservava e que punha em ação contra as pretensões da nova burguesia industrial tornou-se incompatível com os novos interesses econômicos. Colocava-se a necessidade de renovar a luta contra a aristocracia; e essa luta só podia terminar com o triunfo do novo poder econômico. Sob o impulso da revolução francesa de 1830, impôs-se em primeiro lugar, apesar de todas as resistências, a lei de reforma eleitoral(25), que assegurou à burguesia uma posição forte e prestigiosa no Parlamento. Em seguida, veio a derrogação das leis dos cereais(26), que instaurou de uma vez para sempre o predomínio da burguesia, sobretudo de sua parte mais ativa, os fabricantes, sobre a aristocracia da terra. Foi esse o maior triunfo da burguesia, mas foi também o último conseguido em seu interesse próprio e exclusivo. Todos os triunfos posteriores tiveram de ser por ela divididos com um novo poder social, seu aliado a princípio, mas logo depois seu rival.

A revolução industrial criara uma classe de grandes fabricantes capitalistas, mas criara também outra, muito mais numerosa, de operários fabris, classe que crescia constantemente em número, à medida que a revolução industrial se ia apoderando de um ramo industrial após outro. E com seu número crescia também sua força, demonstrada já em 1824, quando obrigou o Parlamento, rangendo os dentes, a revogar as leis contra a liberdade de coalizão(27). Durante a campanha de agitação pela reforma da lei eleitoral, os operários formavam a ala radical do partido da reforma; e quando a lei de 1832 os privou do direito de sufrágio sintetizaram suas reivindicações na Carta do Povo (People’s Charter)(28) e, em oposição ao grande partido burguês que combatia as leis cerealistas(29), constituíram-se em partido independente, o partido cartista, que foi o primeiro partido operário do nosso tempo.

Em seguida, vieram as revoluções continentais de fevereiro e março de 1848, nas quais os operários tiveram um papel tão importante e nas quais levanta pela primeira vez, em Paris, reivindicações que eram resolutamente inadmissíveis do ponto de vista da sociedade capitalista. E logo sobreveio a reação geral. Primeiro foi a derrota dos cartistas de 10 de abril de 1848(30); depois, o esmagamento da insurreição operária de Paris, em junho do mesmo ano, mais tarde, os descalabros de 1849 na Itália, Hungria e sul da Alemanha; por último, o triunfo de Luís Bonaparte sobre Paris, em 2 de dezembro de 1851(31). Desse modo, conseguira-se afugentar, pelo menos durante algum tempo, o espantalho das reivindicações operárias — mas a que preço! Portanto, se o burguês já se achava antes convencido da necessidade de manter no povo vil o espírito religioso, com que motivos muito mais fortes tinha que sentir essa necessidade depois de todas essas experiências! Por isso, sem fazer o menor caso das chacotas de seus colegas continentais, continuava anos após anos gastando milhares e dezenas de milhares na evangelização das classes baixas. Não satisfeito com sua própria maquinaria religiosa, dirigiu-se ao Irmão Jonathan(32), o maior organizador de negócios religiosos da época, e importou dos Estados Unidos os revivalistas, Moody e Sankey, etc.; por fim, aceitou até a perigosa ajuda do Exército de Salvação, que veio restaurar os recursos de propaganda do cristianismo primitivo, que se dirige tanto aos pobres como aos eleitos, combatendo o capitalismo à sua maneira religiosa e atiçando assim um elemento de luta de classes do cristianismo primitivo, que um bom dia pode chegar a ser fatal para as pessoas ricas que hoje oferecem do seu bolso o dinheiro para essa propaganda.

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Parece ser uma lei do desenvolvimento histórico o fato de que a burguesia não possa deter em nenhum país da Europa o poder político — ao menos durante muito tempo — da mesma maneira exclusiva com que pôde fazê-lo a aristocracia feudal durante a Idade Média. Mesmo na França, onde se extirpou pela raiz o feudalismo, a burguesia, como classe global, apenas exerce o poder durante breves períodos de tempo. Sob Luís Felipe (1830/1848), só uma pequena parte da burguesia governava, pois outra parte muito mais considerável era excluída do exercício do sufrágio devido ao elevado censo de fortuna que se exigia para poder votar. Sob a Segunda República (1848/1851), governou toda a burguesia, mas só durante três anos; sua incapacidade abriu caminho ao Segundo Império. Só agora, sob a Terceira República(33), vemos a burguesia em bloco empunhar o leme por um espaço de vinte anos, mas nisso revela já graves sintomas de decadência. Até agora uma dominação mantida durante muitos anos pela burguesia só foi possível em países como a América do Norte, que jamais conheceram o feudalismo e onde a sociedade se construiu, desde o primeiro momento, sobre uma base burguesa. Mas até na França e na América do Norte já batem à porta com duros golpes os sucessores da burguesia: os operários.

Na Inglaterra, a burguesia jamais exerceu o poder indiviso. Até o triunfo de 1832 deixou a aristocracia no gozo quase exclusivo de todos os altos cargos públicos. Já não conseguia explicar a mim mesmo a submissão com que a classe média rica se resignava a tolerar essa situação, até que um dia o grande fabricante liberal senhor W. A. Forster, num discurso, suplicou aos jovens de Bradford que aprendessem francês se quisessem fazer carreira, narrando a propósito o triste papel que fizera ele quando, sendo ministro, se viu envolvido numa reunião em que o francês era pelo menos tão necessário quanto o inglês. Com efeito, os burgueses britânicos de então eram, uns mais outros menos, novos-ricos sem cultura, que tinham de ceder à aristocracia, quisessem ou não, todos aqueles altos postos de governo que exigiam outros dotes além da limitação e da fatuidade insulares, apimentadas pela astúcia para os negócios(34). Ainda hoje os debates intermináveis da imprensa sobre a middle-classe-education(35) revelam que a classe média inglesa não se considera ainda em condições suficientes para receber a melhor educação e procura algo mais modesto. Por isso, mesmo depois da revogação das leis cerealistas, considerou-se como coisa natural que os que haviam conseguido o triunfo, os Cobden, os Bright, os Forster, etc, ficassem privados de qualquer participação no governo oficial até que, por fim, vinte anos depois, uma nova lei de Reforma(36) abriu-lhes as portas do ministério. A burguesia inglesa acha-se até hoje tão imbuída de um sentimento de inferioridade social que, às suas custas e do povo, sustenta uma casta decorativa de folgazões que têm por ofício representar dignamente a nação em todos os atos solenes e se considera honradíssima quando é encontrado um burguês qualquer reconhecido como digno de ingressar nessa corporação seleta e privilegiada, que afinal foi fabricada pela própria burguesia.

Assim, a classe média industrial e comercial não havia conseguido ainda afastar por completo a aristocracia latifundiária do poder político, quando surgiu em cena o novo rival: a classe operária. A reação que adveio depois do movimento cartista e as revoluções continentais, juntamente com a expansão sem precedentes da indústria inglesa de 1848 a 1866 (expansão que se costuma atribuir apenas ao livre-câmbio, mas que resultou muito mais da gigantesca extensão das ferrovias, os transatlânticos e os meios de comunicação em geral) voltou a colocar os operários sob a dependência dos liberais, cuja ala radical formavam, como nos tempos anteriores ao cartismo. Mas, pouco a pouco, as exigências operárias quanto ao sufrágio universal foram tornando-se irresistíveis. Enquanto os “whigs”, os caudilhos dos liberais, tremiam de medo, Disraeli mostrava sua superioridade; soube aproveitar o momento propício para os “tories”, introduzindo nos distritos eleitorais urbanos o regime eleitoral do housebold suffrage(37) e, em relação com isso, uma nova distribuição dos distritos eleitorais.

Seguiu-se, pouco depois, o ballot (38), logo, em 1884, o household suffrage tomou-se extensivo a todos os distritos, inclusive aos dos condados, e se introduziu uma nova distribuição das circunscrições eleitorais, que até certo ponto as nivelava. Todas essas reformas aumentaram de tal modo a força da classe operária nas eleições, que ela representava já a maioria dos eleitores em 150 a 200 distritos. Não há, porém, melhor escola de respeito à tradição do que o sistema parlamentar! Se a classe média olha com devoção e veneração o grupo que lorde John

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Manners chama caçoando “nossa velha nobreza”, a massa dos operários olhava então com respeito e acatamento ao que na época se chamava “a classe melhor”, a burguesia. Em realidade, o operário britânico de há quinze anos era esse operário-modelo cuja consideração respeitosa pela posição de seu patrão e cuja timidez e humildade ao colocar as suas próprias reivindicações punham um pouco de bálsamo nas feridas que as incorrigíveis tendências comunistas e revolucionárias dos operários alemães provocavam entre os nossos socialistas de cátedra(39).

Contudo, os burgueses britânicos, como bons homens de negócios, viam mais que os professores alemães. Só contrafeitos é que haviam dividido o poder com os operários. Durante o período cartista haviam tido a oportunidade de aprender do que era capaz o povo, aquele puer robustus sed malitiosus. Desde então tiveram que aceitar e ver convertida em lei nacional a maior parte da Carta do Povo. Agora, mais do que nunca, era necessário manter o povo à distância mediante recursos morais; e o primeiro e mais importante recurso moral com que se podia influenciar as massas continua a ser a religião. Daí a maioria dos postos entregues aos padres nos organismos escolares e daí a burguesia impor-se a si mesma cada vez mais tributos para sustentar toda espécie de revivalismos, desde o ritualismo(40) até o Exército de Salvação.

E agora veio o triunfo da respeitabilidade britânica sobre a liberdade de pensamento e a indiferença em assuntos religiosos do burguês continental. Os operários da França e da Alemanha tornaram-se rebeldes. Estavam totalmente contaminados de socialismo e, além disso, por motivos muito fortes, não davam muita importância à legalidade dos meios empregados para conquistar o poder. Aqui, o puer robustus se tornara realmente cada dia mais malitiosus. E ao burguês francês ou alemão não restava outro recurso senão renunciar tacitamente a continuar sendo livre-pensador, como esses rapazes engraçados que, quando irremediavelmente atacados de enjôo, deixam cair o cigarro fumegante com que faziam palhaçadas a bordo. Os gracejadores foram adotando, um após outro, exteriormente, uma atitude devota e começaram a referir-se com respeito à Igreja, seus dogmas e ritos, chegando inclusive, quando não havia outra solução, a participar neles. Os burgueses franceses negavam-se a comer carne às sextas-feiras e os burgueses alemães suportavam, suando em seus genuflexórios, os intermináveis sermões protestantes. Haviam chegado com seu materialismo a uma situação embaraçosa. Die Religion muss dem Volk erhalten werden (“É preciso conservar-se a religião para o povo!”): era o último e único recurso para salvar a sociedade de sua ruína total. Por desgraça sua, não compreenderam isso senão depois de terem feito o humanamente possível para derrubar em definitivo a religião. Chegara, pois, o momento em que o burguês britânico podia rir-se deles, por sua vez, e gritar-lhes: “Ah, bobos, eu já poderia ter dito há duzentos anos!”

Entretanto, receio muito que nem a estupidez religiosa do burguês britânico nem a conversão post festum do burguês continental consigam pôr um dique à crescente maré proletária. A tradição é uma grande força frenadora; é a vis inertiæ da história. Mas é uma força meramente passiva, e por isso tem necessariamente que sucumbir. Daí não poder a religião servir por muito tempo de muralha protetora da sociedade capitalista. Se nossas idéias jurídicas, filosóficas e religiosas não são senão brotos mais próximos ou mais remotos das condições econômicas imperantes numa sociedade dada, a longo prazo essas idéias não podem manter-se havendo uma mudança fundamental daquelas condições. Das duas uma: ou acreditamos numa revelação sobrenatural, ou temos de reconhecer que não há pregação religiosa capaz de escorar uma sociedade em derrocada.

E a verdade é que também na Inglaterra começam os operários novamente a movimentar-se. Indiscutivelmente, o operário inglês está preso a uma série de tradições. Tradições burguesas, como a tão difundida crença de que não podem existir mais que dois partidos, o conservador e o liberal, e de que a classe operária tem de valer-se do grande partido liberal para trabalhar por sua emancipação. E tradições operárias, herdadas dos tempos de seus primeiros ensaios de atuação independente, como a eliminação, em numerosas e antigas trade-unions, de todos os operários que não tiveram um determinado período de aprendizagem; o que significa, a rigor, que cada um desses sindicatos cria seus próprios fura-greves. Mas, apesar de tudo isso e de muito mais, a classe operária avança, como o próprio professor Brentano se viu obrigado a comunicar, com grande pesar, a seus irmãos, os socialistas de cátedra. Avança, como tudo na Inglaterra, a passo

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lento e ritmado, vacilante aqui, e ali mediante ensaios, às vezes estéreis; avança aos poucos, com uma desconfiança excessivamente prudente, até quanto ao nome socialismo, mas assimilando gradualmente a essência. Avança, e seu avanço se vai transmitindo a uma camada operária após outra.

Sacudiu agora a apatia dos operários não qualificados do East End de Londres, e todos nós já vimos que magnífico impulso deram à classe operária, por sua vez, essas novas forças. E se o ritmo do movimento não está em consonância com a impaciência de uns e de outros, não devem esses esquecer que é a classe operária que mantém vivos os melhores traços do caráter nacional inglês e que, na Inglaterra, quando se dá um passo adiante, já não se recua mais. Se os filhos dos velhos cartistas não deram, pelos motivos indicados, tudo o que deles se podia esperar, parece que os netos serão dignos dos avós.

Ademais, o triunfo da classe operária não depende somente da Inglaterra. Esse triunfo só pode ser assegurado mediante a cooperação, pelo menos, da Inglaterra, França e Alemanha. Nos dois últimos países o movimento operário leva uma boa dianteira sobre o da Inglaterra. Os progressos alcançados aqui há vinte e cinco anos não têm precedente. O movimento operário alemão avança a uma velocidade acelerada. E se a burguesia alemã tem dado provas de sua ausência lamentável de capacidade política, de disciplina, de bravura, de energia e de perseverança, a classe operária da Alemanha demonstrou que possui em grau extraordinário todas essas qualidades. Já há quase quatrocentos anos que a Alemanha foi o ponto de partida do primeiro levante da classe média da Europa. No ponto em que se acham as coisas, será despropositado pensar que a Alemanha venha a se tornar também o cenário do primeiro grande triunfo do proletariado europeu?

20 de abril de 1892. F. Engels.

Publicado pela primeira vez na edição inglesa da obra de Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, que apareceu em Londres em 1892. Ao mesmo tempo foi publicado em alemão na revista Neue Zeit, correspondente aos anos 1892/1893. Publica-se de acordo com a edição soviética de 1952. Segundo o texto da edição inglesa de 1892, cotejado com o da revista. Traduzido do espanhol. — Fonte do texto base: www.vermelho.org.br — Versão final confrontada com as versões em espanhol, francês e inglês disponíveis no Marxists Internet Archive.

I

O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o socialismo começa apresentando-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais conseqüente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às idéias existentes. Os grandes homens que, na França, iluminaram os cérebros para a revolução que se havia de desencadear, adotaram uma atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam autoridade exterior de nenhuma espécie. A religião, a concepção da natureza, a sociedade, a ordem estatal: tudo eles submetiam à crítica mais impiedosa; tudo quanto existia devia justificar os títulos de sua existência ante o foro da razão, ou renunciar a continuar existindo. A tudo se aplicava como rasoura única a razão pensante. Era a época em que, segundo Hegel, “o mundo girava sobre a cabeça”(1), primeiro no sentido de que a cabeça humana e os princípios estabelecidos por sua especulação reclamavam o direito de ser acatados como base de todos os atos humanos e toda relação social, e logo também, no sentido mais amplo de que a realidade que não se ajustava a essas conclusões se via subvertida, de fato, desde os alicerces até à cumieira. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as leis tradicionais, foram atiradas no

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monturo como irracionais; até então o mundo se deixara governar por puros preconceitos; todo o passado não merecia senão comiseração e desprezo, Só agora despontava a aurora, o reino da razão; daqui por diante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e pelos direitos inalienáveis do homem.

Já sabemos, hoje, que esse império da razão não era mais que o império idealizado pela burguesia; que a justiça eterna tomou corpo na justiça burguesa; que a igualdade se reduziu à igualdade burguesa em face da lei; que como um dos direitos mais essenciais do homem foi proclamada a propriedade burguesa; e que o Estado da razão, o “contrato social” de Rousseau, pisou e somente podia pisar o terreno da realidade, convertido na república democrática burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, como todos os seus Predecessores, não podiam romper as fronteiras que sua própria época lhes impunha.

Mas, ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia, que se erigia em representante de todo o resto da sociedade, mantinha-se de pé o antagonismo geral entre exploradores e explorados, entre ricos gozadores e pobres que trabalhavam. E esse fato exatamente é que permitia aos representantes da burguesia arrogar-se a representação, não de uma classe determinada, mas de toda a humanidade sofredora. Mais ainda: desde o momento mesmo em que nasceu, a burguesia conduzia em suas entranhas sua própria antítese, pois os capitalistas não podem existir sem os operários assalariados, e na mesma proporção em que os mestres de ofícios das corporações medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e os jornaleiros não agremiados transformavam-se em proletários. E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha. a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer; na grande Revolução Inglesa, os “niveladores”, e na Revolução Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas correspondentes manifestações teóricas: nos séculos XVI e XVII aparecem as descrições utópicas de um regime ideal da sociedade; no século XVIII, teorias já abertamente comunistas, como as de Morelly e Mably. A reivindicação da igualdade não se limitava aos direitos políticos, mas se estendia às condições sociais de vida de cada indivíduo; já não se tratava de abolir os privilégios de classe, mas de destruir as próprias diferenças de classe. Um comunismo ascético, ao modo espartano, que renunciava a todos os gozos da vida: tal foi a primeira forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os três grandes utopistas: Saint-Simon, em que a tendência continua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à tendência proletária; Fourier e Owen, este último, num pais onde a produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão engendrada por ela, expondo em forma sistemática uma série de medidas orientadas rio sentido de abolir as diferenças de classe, em relação direta com o materialismo francês.

Traço comum aos três é que não atuavam como representantes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como um produto histórico. Da mesma maneira que os enciclopedistas, não se propõem emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade. E assim como eles, pretendem instaurar o império da razão e da justiça eterna. Mas entre o seu império e o dos enciclopedistas medeia um abismo. Também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios dos enciclopedistas, é injusto e irracional e merece, portanto, ser jogado entre os trastes inservíveis, tanto quanto o feudalismo e as formas sociais que o antecederam. Se até agora a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo é simplesmente porque ninguém soube penetrar devidamente nelas. Faltava o homem genial, que agora se ergue ante a humanidade com a verdade, por fim descoberta. O fato de que esse homem tenha aparecido agora, e não antes, o fato de que a verdade tenha sido por fim descoberta agora, e não antes, não é, segundo eles, um acontecimento inevitável, imposto pela concatenação do desenvolvimento histórico, e sim porque o simples acaso assim o quis. Poderia ter aparecido quinhentos anos antes, poupando assim à humanidade quinhentos anos de erros, de lutas e de sofrimentos.

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Vimos como os filósofos franceses do século XVIII, que abriram o caminho à revolução, apelavam para a razão como o juiz único de tudo o que existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto contradissesse a razão eterna deveria ser rechaçado sem nenhuma piedade. Vimos também que, em realidade, essa razão não era mais que o senso comum do homem idealizado da classe média que, precisamente então, se convertia em burguês. Por isso, quando a Revolução Francesa empreendeu a construção dessa sociedade e desse Estado da razão, redundou que as novas instituições, por mais racionais que fossem em comparação com as antigas, distavam bastante da razão absoluta. O Estado da razão falira completamente. O contrato social de Rousseau tomara corpo na época do terror, e a burguesia, perdida a fé em sua própria habilidade política, refugiou-se, primeiro na corrupção do Diretório e, por último, sob a égide do despotismo napoleônico. A prometida paz eterna convertera-se numa interminável guerra de conquistas. Tampouco teve melhor sorte a sociedade da razão. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de dissolver-se no bem-estar geral, aguçara-se com o desaparecimento dos privilégios das corporações e outros, que estendiam uma ponte sobre ele, e os estabelecimentos eclesiásticos de beneficência, que o atenuavam. A “liberação da propriedade” dos entraves feudais, que agora se convertia em realidade, vinha a ser para o pequeno burguês e o pequeno camponês a liberdade de vender a esses mesmos poderosos senhores sua pequena propriedade, esgotada pela esmagadora concorrência do grande capital e da grande propriedade latifundiária; com o que se transformava na “liberação” do pequeno burguês e do pequeno camponês de toda propriedade. O ascenso da indústria sobre bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de vida da sociedade. O pagamento à vista transformava-se, cada vez mais, segundo a expressão de Carlyle, no único elo que unia a sociedade. A estatística criminal crescia de ano para ano. Os vícios feudais, que até então eram exibidos impudicamente, à luz do dia, não desapareceram, mas se recolheram, por um momento, um pouco ao fundo do cenário; em troca, floresciam exuberantemente os vícios burgueses, até então superficialmente ocultos. O comércio foi degenerando, cada vez mais, em trapaça. A “fraternidade” do lema revolucionário tomou corpo nas deslealdades e na inveja da luta de concorrência. A opressão violenta cedeu lugar à corrupção, e a espada, como principal alavanca do poder social, foi substituída pelo dinheiro. O direito de pernada passou do senhor feudal ao fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções até então desconhecidas. O próprio casamento continuou sendo o que já era: a forma reconhecida pela lei, o manto com que se cobria a prostituição, completado ademais com uma abundância de adultérios. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores, as instituições sociais e políticas instauradas pelo “triunfo da razão” redundaram em tristes e decepcionantes caricaturas. Faltavam apenas os homens que pusessem em relevo o desengano, e esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, vieram à luz as Cartas de Genebra de Saint-Simon; em 1808, Fourier publicou a sua primeira obra, embora as bases de sua teoria datassem já de 1799; a 1° de janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direção da empresa de New Lanark.

No entanto, naquela época, o modo capitalista de produção, e com ele o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, achava-se ainda muito pouco desenvolvido. A grande indústria, que acabava de nascer na Inglaterra, era ainda desconhecida na França. E só a grande indústria desenvolve, de uma parte, os conflitos que transformam numa necessidade imperiosa a subversão do modo de produção e a eliminação de seu caráter capitalista — conflitos que eclodem não só entre as classes engendradas por essa grande indústria, mas também entre as forças produtivas e as formas de distribuição por ela criadas — e, de outra parte, desenvolve também nessas gigantescas forças produtivas os meios para solucionar esses conflitos. Às vésperas do século XIX, os conflitos que brotavam da nova ordem social mal começavam a desenvolver-se, e menos ainda, naturalmente, os meios que levam à sua solução. Se as massas despossuídas de Paris conseguiram dominar por um momento o poder durante o regime de terror, e assim levar ao triunfo a revolução burguesa, inclusive contra a burguesia, foi só para demonstrar até que ponto era impossível manter por muito tempo esse poder nas condições da época. O proletariado, que apenas começava a destacar-se no seio das massas que nada possuem, como tronco de uma nova classe, totalmente incapaz ainda para desenvolver uma ação política própria, não representava mais que um estrato social oprimido, castigado, incapaz de valer-se por si mesmo. A ajuda, no melhor dos casos, tinha que vir de fora, do alto.

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Essa situação histórica informa também as doutrinas dos fundadores do socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista, a incipiente condição de classe. Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar.

Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias.

Assentado isso, não há por que nos determos nem um momento mais nesse aspecto, já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literários revolvam solenemente nessas fantasias, que parecem hoje provocar o riso, para ressaltar sobre o fundo desse “cúmulo de disparates” a superioridade de seu raciocínio sereno. Quanto a nós, admiramos os germes geniais de idéias e as idéias geniais que brotam por toda parte sob essa envoltura de fantasia que os filisteus são incapazes de ver.

Saint-Simon era filho da grande Revolução Francesa, que estalou quando ele não contava ainda trinta anos. A Revolução foi o triunfo do terceiro estado, isto é, da grande massa ativa da nação, a cujo cargo corriam a produção e o comércio, sobre os estados até então ociosos e privilegiados da sociedade: a nobreza e o clero. Mas logo se viu que o triunfo do terceiro estado não era mais que o triunfo de uma parte muito pequena dele, a conquista do poder político pelo setor socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia possuidora. Essa burguesia desenvolvia-se rapidamente já no processo da revolução, especulando com as terras confiscadas e logo vendidas da aristocracia e da Igreja, e lesando a nação por meio das verbas destinadas ao exército. Foi precisamente o governo desses negocistas que, sob o Diretório, levou à França e a Revolução à beira da ruína, dando com isso a Napoleão o pretexto para o golpe de Estado. Por isso, na idéia de Saint-Simon, o antagonismo entre o terceiro estado e os estados privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre “trabalhadores” e “ociosos”. Os “ociosos” eram não só os antigos privilegiados, mas todos aqueles que viviam de suas rendas, cem intervir na produção nem no comércio. No conceito de “trabalhadores” não entravam somente os operários assalariados, mas também os fabricantes, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido a capacidade para dirigir espiritualmente e governar politicamente era um fato indisfarçável, selado em definitivo pela Revolução. E, para Saint-Simon, as experiências da época do terror haviam demonstrado, por sua vez, que os descamisados não possuíam tampouco essa capacidade. Então, quem haveria de dirigir e governar? Segundo Saint-Simon, a ciência e a indústria, unidas por um novo laço religioso, um “novo cristianismo”, forçosamente místico e rigorosamente hierárquico, chamado a restaurar a unidade das idéias religiosas, destruída desde a Reforma. Mas a ciência eram os sábios acadêmicos; e a indústria eram, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os banqueiros. E embora esses burgueses tivessem de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de homens da confiança de toda a sociedade, sempre conservariam frente aos operários uma posição autoritária e economicamente privilegiada. Os banqueiros seriam os chamados em primeiro lugar para regular toda a produção social por meio de uma regulamentação do crédito. Esse modo de conceber correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, mal começava a despontar na França. Mas Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o preocupa, sempre e em primeiro lugar, é a sorte da “classe mais numerosa e mais pobre” ela sociedade (“la classe la plus nombreuse et la plus paurre&edquo;).

Em suas Cartas de Genebra, Saint-Simon formula a tese de que “todos os homens devem trabalhar”. Na mesma obra já se expressa a idéia de que o reinado do terror era o governo das massas despossuídas. “Vede — grita-lhes — o que se passou na França quando vossos camaradas subiram ao poder: provocaram a fome”. Mas conceber a Revolução Francesa como

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uma luta de classes, e não só entre a nobreza e a burguesia, mas entre a nobreza, a burguesia e os despossuídos, era, em 1802, uma descoberta verdadeiramente genial.

Em 1816, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz já a total absorção da política pela economia. E se aqui não faz senão aparecer em germe a idéia de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama já claramente a transformação do governo político sobre os homens numa administração das coisas e na direção dos processos da produção, que não é senão a idéia da “abolição do Estado”, que tanto alarde levanta ultimamente. E, elevando-se ao mesmo plano de superioridade sobre os seus contemporâneos, declara, em 1814, imediatamente, depois da entrada das tropas coligadas em Paris, e reitera em 1815, durante a Guerra dos Cem Dias, que a aliança da França com a Inglaterra e, em segundo lugar, a destes países com a Alemanha é a única garantia do desenvolvimento próspero e da paz na Europa. A fim de aconselhar aos franceses de 1815 uma aliança com os vencedores de Waterloo era necessário possuir tanto valentia quanto capacidade para ver longe na história.

O que em Saint-Simon é amplitude genial de visão, que lhe permite conter já, em germe, quase todas as idéias não estritamente econômicas dos socialistas posteriores, em Fourier é a critica engenhosa autenticamente francesa, mas nem por isso menos profunda, das condições sociais existentes. Fourier pega a burguesia pela palavra, por seus inflamados profetas de antes e seus interesseiros aduladores de depois da revolução. Põe a nu, impiedosamente, a miséria material e moral do mundo burguês, e a compara com as fascinantes promessas dos velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razão reinaria sozinha, de uma civilização que faria felizes todos os homens e de uma ilimitada capacidade humana de perfeição. Desmascara as brilhantes frases dos ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases grandiloqüentes corresponde, por toda parte, a mais cruel das realidades e derrama sua sátira mordaz sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier não é apenas um crítico; seu espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os tempos. A especulação criminosa desencadeada com o refluxo da onda revolucionária e o espírito mesquinho do comércio francês naqueles anos aparecem pintados em suas obras com traços magistrais e encantadores. Mas é ainda mais magistral nele a crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade burguesa. É ele o primeiro a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral. Contudo, onde mais sobressai Fourier é na maneira como concebe a história da sociedade. Fourier divide toda a história anterior em quatro fases ou etapas de desenvolvimento:o selvagismo, a barbárie, o patriarcado e a civilização, esta última fase coincidindo com o que chamamos hoje sociedade burguesa, isto é, com o regime social implantado desde o século XVI, e demonstra que a “ordem civilizada eleva a uma forma complexa, ambígua, equívoca e hipócrita todos aqueles vícios que a barbárie praticava em meio à maior simplicidade”. Para ele a civilização move-se num “círculo vicioso”, num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las, conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer conseguir. E assim nos encontramos, por exemplo, com o fato de que “na civilização, a pobreza brota da própria abundância”. Como se vê, Fourier maneja a dialética com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que enchem a boca falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, põe em relevo, com igual dialética, que toda fase histórica tem sua vertente ascensional, mas também sua ladeira descendente, e projeta essa concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E assim como Kant introduziu na ciência da natureza o desaparecimento futuro da Terra, Fourier introduz em seu estudo da história a idéia do futuro desaparecimento da humanidade.

Enquanto o vendaval da revolução varria o solo da França, desenvolvia-se na Inglaterra um processo revolucionário, mais tranqüilo, porém nem por isso menos poderoso. O vapor e as máquinas-ferramenta converteram a manufatura na grande indústria moderna, revolucionando com isso todos os fundamentos da sociedade burguesa. O ritmo vagaroso do desenvolvimento do período da manufatura converteu-se num verdadeiro período de luta e embate da produção. Com uma velocidade cada vez mais acelerada, ia-se dando a divisão da sociedade em grandes capitalistas e proletários que nada possuem e, entre eles, em lugar da antiga classe média tranqüila e estável, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a parte mais

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flutuante da população, levava uma existência sem nenhuma segurança. O novo modo de produção apenas começava a galgar a vertente ascensional; era ainda o modo de produção normal, regular, o único possível, naquelas circunstâncias. E no entanto deu origem a toda uma série de graves calamidades sociais: amontoamento, nos bairros mais sórdidos das grandes cidades, de uma população arrancada do seu solo; dissolução de todos os laços tradicionais dos costumes, da submissão patriarcal e da família; prolongação abusiva do trabalho, que sobretudo entre as mulheres e as crianças assumia proporções aterradoras; desmoralização em massa da classe trabalhadora, lançada de súbito a condições de vida totalmente novas — do campo para a cidade, da agricultura para a indústria, de uma situação estável para outra constantemente variável e insegura. Em tais circunstâncias, ergue-se como reformador um fabricante de 29 anos, um homem cuja pureza quase infantil tocava às raias do sublime e que era, ao lado disso, um condutor de homens como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos filósofos materialistas do século XVIII, segundo os quais o caráter do homem é, de um lado, produto de sua organização inata e, de outro, fruto das circunstâncias que envolvem o homem durante. sua vida, sobretudo durante o período de seu desenvolvimento. A maioria dos homens de sua classe não via na revolução industrial senão caos e confusão, uma ocasião propícia para pescar no rio revolto e enriquecer depressa. Owen, porém, viu nela o terreno adequado para pôr em prática a sua tese favorita, introduzindo ordem no caos. Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de 500 operários, tentara, não sem êxito, aplicar praticamente a sua teoria. De 1800 a 1829 orientou no mesmo sentido, embora com maior liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama na Europa, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária que foi crescendo paulatinamente até 2 500 almas, recrutada a princípio entre os elementos mais heterogêneos, a maioria dos quais muito desmoralizados, converteu-se em suas mãos numa colônia-modelo, na qual não se conheciam a embriaguez, a polícia, os juízes de paz, os processos, os asilos para pobres nem a beneficência pública Para isso bastou, tão somente, colocar seus operários em condições mais humanas de vida, consagrando um cuidado especial à educação da prole. Owen foi o criador dos jardins-de-infância, que funcionaram pela primeira vez em New Lanark. As crianças eram enviadas às escolas desde os dois anos, e nelas se sentiam tão bem que só com dificuldade eram levadas para casa. Enquanto nas fábricas de seus concorrentes os operários trabalhavam treze e quatorze horas diárias, em New Lanark a jornada de trabalho era de dez horas e meia. Quando uma crise algodoeira obrigou o fechamento da fábrica por quatro meses, os operários de New Lanark, que ficaram sem trabalho, continuaram recebendo suas diárias integrais. E contudo a empresa incrementara ao dobro o seu valor e rendeu a seus proprietários, até o último dia, enormes lucros.

Owen, entretanto, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que se propusera dar a seus operários distava muito ainda de ser, a seus olhos, uma existência digna de um ser humano. “Aqueles homens eram meus escravos”. As circunstâncias relativamente favoráveis em que os colocara estavam ainda muito longe de permitir-lhes desenvolver racionalmente e em todos os aspectos o caráter e a inteligência, e muito menos desenvolver livremente suas energias. “E, contudo, a parte produtora daquela população de 2.500 almas dava à sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio século antes, teria exigido o trabalho de 600.000 homens juntos. Eu me perguntava: onde vai parar a diferença entre a riqueza consumida por essas 2.500 pessoas e a que precisaria ser consumida pelas 600.000?” A resposta era clara: essa diferença era invertida em abonar os proprietários da empresa com 5 por cento de juros sobre o capital de instalação, ao qual vinham somar-se mais de 300.000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, só que em proporções maiores, o de todas as fábricas da Inglaterra. “Sem essa nova fonte de riqueza criada pelas máquinas, teria sido impossível levar adiante as guerras travadas para derrubar Napoleão e manter de pé os princípios da sociedade aristocrática. E, no entanto, esse novo poder era obra da classe operária.”(2)A ela deviam pertencer também, portanto, os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas, que até ali só haviam servido para que alguns enriquecessem e as massas fossem escravizadas, lançavam, segundo Owen, as bases para uma reconstrução social e estavam fadadas a trabalhar somente para o bem-estar coletivo, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.

Foi assim, por esse caminho puramente prático — resultado, por dizê-lo, dos cálculos de um homem de negócios — que surgiu o comunismo oweniano, conservando sempre esse caráter

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prático Assim, em 1823, Owen propõe um sistema de colônias comunistas para combater a miséria reinante na Irlanda e apresenta, em apoio de sua proposta, um orçamento completo de despesas de instalação, desembolsos anuais e rendas prováveis. E assim também em seus planos definitivos da sociedade do futuro, os detalhes técnicos são calculados com um domínio tal da matéria, incluindo até projetos, desenhos de frente, de perfil e do alto que, uma vez aceito o método oweniano de reforma da sociedade, pouco se poderia objetar, mesmo um técnico experimentado, contra os pormenores de sua organização.

O avanço para o comunismo constitui um momento crucial na vida de Owen. Enquanto se limitara a atuar só como filantropo, não colhera senão riquezas, aplausos, honra e fama. Era o homem mais popular da Europa. Não só os homens de sua classe e posição social, mas também os governantes e os príncipes o escutavam e o aprovavam. No momento, porém, em que formulou suas teorias comunistas, virou-se a página. Eram precisamente três grandes obstáculos os que, segundo ele, se erguiam em seu caminho da reforma social: a propriedade privada, a religião e a forma atual do casamento. E não ignorava ao que se expunha atacando-os: à execração de toda a sociedade oficial e à perda de sua posição social. Mas isso não o deteve em seus ataques implacáveis contra aquelas instituições, e ocorreu o que ele previa. Desterrado pela sociedade oficial, ignorado completamente pela imprensa, arruinado por suas fracassadas experiências comunistas na América, às quais sacrificou toda a sua fortuna, dirigiu-se à classe operária, no seio da qual atuou ainda durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esforços, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da criança nas fábricas. Foi ele quem presidiu o primeiro congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra fundiram-se numa grande organização sindical única. E foi também ele quem criou, como medidas de transição, para que a sociedade pudesse organizar-se de maneira integralmente comunista, de um lado, as cooperativas de consumo e de produção — que serviram, pelo menos, para demonstrar na prática que o comerciante e o fabricante não são indispensáveis —, e de outro lado, os mercados operários, estabelecimentos de troca dos produtos do trabalho por meio de bônus de trabalho e cuja unidade é a hora de trabalho produzido; esses estabelecimentos tinham necessariamente que fracassar, mas se antecipam muito aos bancos proudhonianos de troca, diferenciando-se deles somente em que não pretendem ser a panacéia universal para todos os males sociais, mas pura e simplesmente um primeiro passo para uma transformação muito mais radical da sociedade.

As concepções dos utopistas dominaram durante muito tempo as idéias socialistas do século XIX, e em parte ainda hoje as dominam. Rendiam-lhes homenagens, até há muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e ingleses e a eles se deve também o incipiente comunismo alemão, incluindo Weitling. Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o caráter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verdades absolutas a única solução é que elas vão acomodando-se umas às outras. E, assim, era inevitável que surgisse uma espécie de socialismo eclético e medíocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeças da maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra: uma mistura extraordinariamente variegada e cheia de matizes, compostas de desabafos críticos, princípios econômicos e as imagens sociais do futuro menos discutíveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fácil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contornos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade.

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II

Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII, e por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo ponto culminante foi Hegel. O principal mérito dessa filosofia é a restauração da dialética, como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles — Aristóteles — chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialética (como por exemplo, Descartes e Spinoza) caía cada vez mais, sob a influência principalmente dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII, ao menos em suas obras especificamente filosóficas. Fora do campo estritamente filosófico, eles criaram também obras-primas de dialética; como prova, basta citar “O Sobrinho de Rameau”, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos aqui, sucintamente, os traços mais essenciais de ambos os métodos discursivos.

Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a história humana, ou sobre nossa própria atividade espiritual, deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de concatenações e influências recíprocas, em que nada permanece o que era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma, nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou menos para o segundo plano; fixamo-nos mais no movimento, nas transições, na concatenação, do que no que se move, se transforma e se concatena. Essa concepção do mundo, primitiva, ingênua, mas essencialmente exata, é a dos filósofos gregos antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascimento e caducidade. Mas essa concepção, por mais exatamente que reflita o caráter geral do quadro que nos é oferecido pelos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados que formam esse quadro total; sem conhecê-los a imagem geral não adquirirá tampouco um sentido claro. Para penetrar nesses detalhes temos de despregá-los do seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada qual por si, em seu caráter, causas e efeitos especiais, etc. Tal é a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, por motivos muito justificados, num plano puramente secundário, pois primariamente deviam dedicar-se a acumular os materiais científicos necessários. Enquanto não se reúne uma certa quantidade de materiais naturais e históricos não se pode proceder ao exame crítico, à comparação e, conseqüentemente, à divisão em classes, ordens e espécies. Por isso, os rudimentos das ciências naturais exatas não foram desenvolvidos senão a partir dos gregos do período alexandrino e, mais tarde, na Idade Média, pelos árabes; a ciência autêntica da natureza data somente da segunda metade do século XV e, desde então, não fez senão progredir a ritmo acelerado. A análise da natureza em suas diversas partes, a classificação dos diversos processos e objetos naturais em determinadas categorias, a pesquisa interna dos corpos orgânicos segundo sua diversa estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que obedeceram os gigantescos progressos realizados, durante os últimos quatrocentos anos, no conhecimento científico da natureza. Esse método de investigação, porém, nos transmitiu, ao lado disso, o hábito de enfocar as coisas e os processos da natureza isoladamente, subtraídos à concatenação do grande todo; portanto, não em sua dinâmica, mas estaticamente; não como substancialmente variáveis, mas como consistências fixas; não em sua vida, mas em sua morte. Por isso, esse método de observação, ao transplantar-se, com Bacon e Locke, das ciências naturais para a filosofia, determinou a estreiteza específica característica dos últimos séculos: o método metafísico de especulação.

Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese. À primeira vista, esse método discursivo parece-nos extremamente razoável, porque é o do chamado senso comum. Mas o próprio senso comum — personagem muito respeitável dentro de casa, entre

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quatro paredes — vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o método metafísico de pensar, por muito justificado e até necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais ou menos extensas segundo a natureza do objeto de que se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira, ultrapassada a qual converte-se num método unilateral, limitado, abstrato, e se perde em insolúveis contradições, pois, absorvido pelos objetos concretos, não consegue perceber sua concatenação; preocupado com sua existência, não atenta em sua origem nem em sua caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e podemos dizer com toda certeza se um animal existe ou não; porém, pesquisando mais detidamente, verificamos que às vezes o problema se complica consideravelmente, como sabem muito bem os juristas, que tanto e tão inutilmente têm-se atormentado por descobrir um limite racional a partir do qual deva a morte do filho no ventre materno ser considerada um assassinato; nem é fácil tampouco determinar rigidamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não é um fenômeno repentino, instantâneo, mas um processo muito longo. Do mesmo modo, todo ser orgânico é, a qualquer instante, ele mesmo e outro; a todo instante, assimila matérias absorvidas do exterior e elimina outras do seu interior; a todo instante, morrem certas células e nascem outras em seu organismo; e no transcurso de um período mais ou menos demorado a matéria de que é formado renova-se totalmente, e novos átomos de matérias vêm ocupar o lugar dos antigos, por onde todo o seu ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e outro diferente. Da mesma maneira, observando as coisas detidamente, verificamos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos que a causa e o efeito são representações que somente regem, como tais, em sua aplicação ao caso concreto, mas que, examinando o caso concreto em sua concatenação com a imagem total do universo, se juntam e se diluem na idéia de uma trama universal de ações e reações, em que as causas e os efeitos mudam constantemente de lugar e em que o que agora ou aqui é efeito adquire em seguida ou ali o caráter de causa, e vice-versa.

Nenhum desses fenômenos e métodos discursivos se encaixa no quadro das especulações metafísicas. Ao contrário, para a dialética, que focaliza as coisas e suas imagens conceituais substancialmente em suas conexões, em sua concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de nascimento e caducidade, fenômenos como os expostos não são mais que outras tantas confirmações de seu modo genuíno de proceder. A natureza é a pedra de toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos oferecem para essa prova um acervo de dados extraordinariamente copiosos e enriquecido cada dia que passa, demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história. Aqui é necessário citar Darwin, em primeiro lugar, quem, com sua prova de que toda a natureza orgânica existente, plantas e animais, e entre eles, como é lógico, o homem, é o produto de um processo de desenvolvimento de milhões de anos, assestou na concepção metafísica da natureza o mais rude golpe. Até hoje, porém, os naturalistas que souberam pensar dialeticamente podem ser contados com os dedos, e esse conflito entre os resultados descobertos e o método discursivo tradicional põe a nu a ilimitada confusão que reina presentemente na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores.

Somente seguindo o caminho da dialética, não perdendo jamais de vista as inumeráveis ações e reações gerais do devenir e do perecer, das mudanças de avanço e retrocesso, chegamos a uma concepção exata do universo, do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem projetada por esse desenvolvimento nas cabeças dos homens. E foi esse, com efeito, o sentido em que começou a trabalhar, desde o primeiro momento, a moderna filosofia alemã. Kant iniciou sua carreira de filósofo dissolvendo o sistema solar estável de Newton e sua duração eterna — depois de recebido o primeiro impulso — num processo histórico: no nascimento do Sol e de todos os planetas a partir de uma massa nebulosa em rotação. Daí, deduziu que essa origem implicava também, necessariamente, a morte futura do sistema solar. Meio século depois sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace e, ao fim de outro meio século, o espectroscópio veio demonstrar a existência no espaço daquelas massas ígneas de gás, em diferente grau de condensação.

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A filosofia alemã moderna encontrou sua culminância no sistema de Hegel, em que pela primeira vez — e aí está seu grande mérito — se concebe todo o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é, em constante movimento, mudança, transformação e desenvolvimento, tentando além disso ressaltar a íntima conexão que preside esse processo de movimento e desenvolvimento. Contemplada desse ponto de vista, a história da humanidade já não aparecia como um caos inóspito de violências absurdas, todas igualmente condenáveis diante do foro da razão filosófica hoje já madura, e boas para serem esquecidas quanto antes, mas como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que cabia agora ao pensamento acompanhar em suas etapas graduais e através de todos os desvios, e demonstrar a existência de leis internas que orientam tudo aquilo que à primeira vista poderia parecer obra do acaso cego.

Não importava que o sistema de Hegel não resolvesse o problema que se propunha. Seu mérito, que marca época. consistiu em tê-lo proposto. Não em vão, trata-se de um problema que nenhum homem sozinho pôde resolver. E embora fosse Hegel, como Saint-Simon, a cabeça mais universal. de seu tempo, seu horizonte achava-se circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar, pelos conhecimentos e concepções de sua época, limitados também em extensão e profundidade. Deve-se acrescentar a isso uma terceira circunstância. Hegel era idealista; isto é, para ele as idéias de sua cabeça não eram imagens mais ou menos abstratas dos objetos ou fenômenos da realidade, mas essas coisas e seu desenvolvimento se lhe afiguravam, ao contrário, como projeções realizadas da “idéia”, que já existia, não se sabe como, antes de existir o mundo. Assim, foi tudo posto de cabeça para baixo, e a concatenação real do universal apresentava-se completamente às avessas. E por mais exatas e mesmo geniais que fossem várias das conexões concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos motivos que acabamos de apontar, que muitos dos seus detalhes tivessem um caráter amaneirado, artificial, construído; em uma palavra, falso. O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, mas o último de seu gênero. De fato, continuava sofrendo de uma contradição interna incurável; pois, enquanto de um lado partia como pressuposto inicial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua natureza, encontrar o arremate intelectual na descoberta disso que chamam verdade absoluta, de outro lado nos é apresentado exatamente como a soma e a síntese dessa verdade absoluta. Um sistema universal e definitivamente plasmado do conhecimento da natureza e da história é incompatível com as leis fundamentais do pensamento dialético — que não exclui, mas longe disso implica que o conhecimento sistemático do mundo exterior em sua totalidade possa progredir gigantescamente de geração em geração.

A consciência da total inversão em que incorria o idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.

No entanto, enquanto que essa revolução na concepção da natureza só se pôde impor na medida em que a pesquisa fornecia à ciência os materiais positivos correspondentes, já há muito

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tempo se haviam revelado certos fatos históricos que imprimiram uma reviravolta decisiva no modo de focalizar a história. Em 1831, estala em Lyon a primeira insurreição operária, e de 1838 a 1842 atinge o auge o primeiro movimento operário nacional: o dos cartistas ingleses. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano da história dos países europeus mais avançados, ao mesmo ritmo em que se desenvolvia neles, de um lado, a grande indústria, e de outro lado, a dominação política recém-conquistada da burguesia. Os fatos refutavam cada vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da harmonia universal e o bem-estar geral das nações, como fruto da livre concorrência. Não havia como passar por alto esses fatos, nem era tampouco possível ignorar o socialismo francês e inglês, expressão teórica sua, por mais imperfeita que fosse. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido removida, não conhecia lutas de classes baseadas em interesses materiais, nem conhecia interesses materiais de qualquer espécie; para ela a produção, bem como todas as relações econômicas, só existiam acessoriamente, como um elemento secundário dentro da “história cultural”. Os novos fatos obrigaram à revisão de toda a história anterior, e então se viu que, com exceção do estado primitivo, toda a história anterior era a história das lutas de classes, e que essas classes sociais em luta entre si eram em todas as épocas fruto das relações de produção e de troca, isto é, das relações econômicas de sua época; que a estrutura econômica da sociedade em cada época da história constitui, portanto, a base real cujas propriedades explicam, em última análise, toda a superestrutura integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela ideologia religiosa, filosófica, etc., de cada período histórico. Hegel libertara da metafísica a concepção da história, tornando-a dialética; mas sua interpretação da história era essencialmente idealista. Agora, o idealismo fora despejado do seu último reduto: a concepção da história —, substituída por uma concepção materialista da história, com o que se abria o caminho para explicar a consciência do homem por sua existência, e não esta por sua consciência, que era até então o tradicional.

Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia. Sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito possível da sociedade, mas investigar o processo histórico econômico de que, forçosamente, tinham que brotar essas classes e seu conflito, descobrindo os meios para a solução desse conflito na situação econômica assim criada. Mas o socialismo tradicional era incompatível com essa nova concepção materialista da história, tanto quanto a concepção da natureza do materialismo francês não podia ajustar-se à dialética e às novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista existente e suas conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia, portanto, destrui-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura o simplesmente, como mal. Quanto mais violentamente clamava contra a exploração da classe operária, inseparável desse modo de produção, menos estava em condições de indicar claramente em que consistia e como nascia essa exploração. Mas do que se tratava era, por um lado, de expor esse modo capitalista de produção em suas conexões históricas e como necessário para uma determinada época da história, demonstrando com isso também a necessidade de sua queda e, por outro lado, pôr a nu o seu caráter interno, ainda oculto. Isso se tornou evidente com a descoberta da mais-valia. Descoberta que veio revelar que o regime capitalista de produção e a exploração do operário, que dele se deriva, tinham por forma fundamental a apropriação de trabalho não pago; que o capitalista, mesmo quando compra a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representa como mercadoria no mercado, dela retira sempre mais valor do que lhe custa e que essa mais-valia é, em última análise, a soma de valor de onde provém a massa cada vez maior do capital acumulado em mãos das classes possuidoras. O processo da produção capitalista e o da produção de capital estavam assim explicados.

Essas duas grandes descobertas — a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia — nós as devemos a Karl Marx. Graças a elas o materialismo converte-se em uma ciência, que só nos resta desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações.

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III

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se — mais ou menos desenvolvidos — os meios necessários para pôr termo aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobrí-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece.

Qual é, nesse aspecto, a posição do socialismo moderno?

A ordem social vigente — verdade reconhecida hoje por quase todo o mundo — é obra das classes dominantes dos tempos modernos, da burguesia. O modo de produção característico da burguesia, ao qual desde Marx se dá o nome de modo capitalista de produção, era incompatível com os privilégios locais e dos estados, como o era com os vínculos interpessoais da ordem feudal. A burguesia lançou por terra a ordem feudal e levantou sobre suas ruínas o regime da sociedade burguesa, o império da livre concorrência, da liberdade de domicílio, da igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias, e tantas outras maravilhas burguesas. Agora já podia desenvolver-se livremente o modo capitalista de produção. E ao chegarem o vapor e a nova maquinaria ferramental, transformando a antiga manufatura na grande indústria, as forças produtivas criadas e postas em movimento sob o comando da burguesia desenvolveram-se com uma velocidade inaudita e em proporções até então desconhecidas. Mas, do mesmo modo que em seu tempo a manufatura e o artesanato, que continuava desenvolvendo-se sob sua influência, se chocavam com os entraves feudais das corporações, a grande indústria, ao chegar a um uivei de desenvolvimento mais alto, já não cabe no estreito marco em que é contida pelo modo de produção capitalista. As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças produtivas e o modo de produção não é precisamente nascido na cabeça do homem — algo assim como o conflito entre o pecado original do homem e a Justiça divina — mas tem suas raízes nos fatos, na realidade objetiva, fora de nós, independentemente da vontade ou da atividade dos próprios homens que o provocaram. O socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, sua projeção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre diretamente suas conseqüências: a classe operária.

Em que consiste esse conflito? Antes de sobrevir a produção capitalista, isto é, na Idade Média, dominava, com caráter geral, a pequena indústria, baseada na propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção: no campo, a agricultura corria a cargo de pequenos lavradores, livres ou vassalos; nas cidades, a indústria achava-se em mãos dos artesãos. Os meios de trabalho — a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas — eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual e, portanto, forçosamente, mesquinhos, diminutos, limitados. — Mas isso mesmo levava a que pertencessem, em geral, ao próprio produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador — a burguesia — consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas produtoras dos tempos atuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo desde o século XV e que passa historicamente pelas três etapas da cooperação simples, a manufatura e a grande indústria, é minuciosamente

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exposto por Marx na seção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa obra, não podia converter aqueles primitivos meios de produção em poderosas forças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios sociais, só manejáveis por uma coletividade de homens. A roca, O tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico, pelo martelo movido a vapor; a oficina individual deu o lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. E, com os meios de produção, transformou-se a própria produção, deixando de ser uma cadeia de atos individuais para converter-se numa cadeia de atos sociais, e os produtos transformaram-se de produtos individuais em produtos sociais. O fio, as telas, os artigos de metal que agora safam da fábrica eram produto do trabalho coletivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente para sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isso foi feito por mim, esse produto é meu.

Mas onde a produção tem por forma principal um regime de divisão social do trabalho criado paulatinamente, por impulso elementar, sem sujeição a plano algum, a produção imprime aos produtos a forma de mercadoria, cuja troca, compra e venda permitem aos diferentes produtores individuais satisfazer suas diversas necessidades. E isso era o que acontecia na Idade Média. O camponês, por exemplo, vendia ao artesão os produtos da terra, comprando-lhe em troca os artigos elaborados em sua oficina. Nessa sociedade de produtores isolados, de produtores de mercadorias, veio a introduzir-se mais tarde o novo modo de produção. Em meio àquela divisão elementar do trabalho, sem plano nem sistema, que imperava no seio de toda a sociedade, o novo modo de produção implantou a divisão planificada do trabalho dentro de cada fábrica; ao lado da produção individual surgiu a produção social Os produtos de ambas eram vendidos no mesmo mercado e, portanto, a preços aproximadamente iguais. Mas a organização planificada podia mais que a divisão elementar do trabalho; as fábricas em que o trabalho estava organizado socialmente elaboravam seus produtos mais baratos que os pequenos produtores isolados. A produção individual foi pouco a pouco sucumbindo em todos os campos e a produção social revolucionou todo o antigo modo de produção. Contudo, esse caráter revolucionário passava despercebido; tão despercebido que, pelo contrário, se implantava com a única e exclusiva finalidade de aumentar e fomentar a produção de mercadorias. Nasceu diretamente ligada a certos setores de produção e troca de mercadorias que já vinham funcionando: o capital comercial, a indústria artesanal e o trabalho assalariado. E já que surgia como uma nova forma de produção de mercadorias, mantiveram-se em pleno vigor sob ela as formas de apropriação da produção de mercadorias.

Na produção de mercadorias, tal como se havia desenvolvido na Idade Média, não podia surgir o problema de a quem pertencer os produtos do trabalho. O produtor individual criava-os, geralmente, com matérias-primas de sua propriedade, produzidas não poucas vezes por ele mesmo, com seus próprios meios de trabalho e elaborados com seu próprio trabalho manual ou de sua família. Não necessitava, portanto, apropriar-se deles, pois já eram seus pelo simples fato de produzi-los. A propriedade dos produtos baseava-se, pois, no trabalho pessoal. E mesmo naqueles casos em que se empregava a ajuda alheia, esta era, em regra, acessória, e recebia freqüentemente, além do salário, outra compensação: o aprendiz e o oficial das corporações não trabalhavam menos pelo salário e pela comida do que para aprender a chegar a ser mestres algum dia. Sobrevêm a concentração dos meios de produção em grandes oficinas e manufaturas, sua transformação em meios de produção realmente sociais. Entretanto, esses meios de produção e seus produtos sociais foram considerados como se continuassem a ser o que eram antes: meios de produção e produtos individuais. E se até aqui o proprietário dos meios de trabalho se apropriara dos produtos, porque eram, geralmente, produtos seus e a ajuda constituía uma exceção, agora o proprietário dos meios de trabalho continuava apoderando-se do produto, embora já não fosse um produto seu, mas fruto exclusivo do trabalho alheio. Desse modo, os produtos, criados agora socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que haviam posto realmente em marcha os meios de produção e eram realmente seus criadores, mas do capitalista. Os meios de produção e a produção foram convertidos essencialmente em fatores sociais. E, no entanto, viam-se submetidos a uma forma do apropriação que pressupõe a produção privada individual, isto é, aquela em que cada qual é dono de seu próprio produto e, como tal, comparece com ele ao mercado. O modo de produção se vê sujeito a essa forma de apropriação apesar de destruir o pressuposto sobre o qual repousa(3). Nessa contradição, que imprime ao novo modo de

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produção o seu caráter capitalista, encerra-se em germe, todo o conflito dos tempos atuais. E quanto mais o novo modo de produção se impõe e impera em todos os campos fundamentais da produção e em todos os países economicamente importantes, afastando a produção individual, salvo vestígios insignificantes, maior é a evidência com que se revela a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista.

Os primeiros capitalistas já se encontraram, como ficou dito, com a forma do trabalho assalariado. Mas como exceção, como ocupação secundária, como simples ajuda, como ponto de transição. O lavrador que saía de quando em vez para ganhar uma diária, tinha seus dois palmos de terra própria, graças às quais, em caso extremo, podia viver. Os regulamentos das corporações velavam para que os oficiais de hoje se convertessem amanhã em mestres. Mas, logo que os meios de produção adquiriram um caráter social e se concentraram em mãos dos capitalistas, as coisas mudaram. Os meios de produção e os produtos do pequeno produtor individual foram sendo cada vez mais depreciados, até que a esse pequeno produtor não ficou outro recurso senão ganhar um salário pago pelo capitalista. O trabalho assalariado, que era antes exceção e mera ajuda, passou a ser regra e forma fundamental de toda a produção, e o que era antes ocupação acessória se converte em ocupação exclusiva do operário. O operário assalariado temporário transformou-se em operário assalariado para toda a vida. Ademais, a multidão desses para sempre assalariados vê-se engrossada em proporções gigantescas pela derrocada simultânea da ordem feudal, pela dissolução das mesnadas (NE: tropas mercenárias) dos senhores feudais, a expulsão dos camponeses de suas terras, etc. Realizara-se o completo divórcio entre os meios de produção concentrados nas mãos dos capitalistas, de um lado, e, de outro lado, os produtores que nada possuíam além de sua própria força de trabalho. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste a forma de antagonismo entre o proletariado e a burguesia.

Vimos que o modo de produção capitalista introduziu-se numa sociedade de produtores de mercadorias, de produtores individuais, cujo vinculo social era o intercâmbio de seus produtos. Mas toda sociedade baseada na produção de mercadorias apresenta a particularidade de que nela os produtores perdem o comando sobre suas próprias relações sociais. Cada qual produz para si, com os meios de produção de que consegue dispor, e para as necessidades de seu intercâmbio privado. Ninguém sabe qual a quantidade de artigos do mesmo tipo que os demais lançam no mercado, nem da quantidade que o mercado necessita; ninguém sabe se seu produto individual corresponde a uma demanda efetiva, nem se poderá cobrir os gastos, nem sequer, em geral, se poderá vendê-lo. A anarquia impera na produção social. Mas a produção de mercadorias tem, como toda forma de produção, suas leis características, próprias e inseparáveis dela; e essas leis abrem caminho apesar da anarquia, na própria anarquia e através dela. Tomam corpo na única forma de enlace social que subsiste: na troca, e se impõem aos produtores individuais sob a forma das leis imperativas da concorrência. A princípio, esses produtores as ignoram, e é preciso que uma larga experiência vá revelando-as, pouco a pouco. Impõem-se, pois, sem os produtores, e mesmo contra eles, como leis naturais cegas que presidem essa forma de produção. O produto impera sobre o produtor.

Na sociedade medieval, e sobretudo em seus primeiros séculos, a produção destinava-se principalmente ao consumo próprio, a satisfazer apenas às necessidades do produtor e sua família. E onde, como acontecia no campo, subsistiam relações pessoais de vassalagem, contribuía também para satisfazer às necessidades do senhor feudal. Não se produzia, pois, nenhuma troca, nem os produtos revestiam, portanto, o caráter de mercadorias. A família do lavrador produzia quase todos os objetos de que necessitava: utensílios, roupas e viveres. Só começou a produzir mercadorias quando começou a criar um excedente de produtos, depois de cobrir suas próprias necessidades e os tributos em espécie que devia pagar ao senhor feudal; esse excedente, lançado no intercâmbio social, no mercado, para sua venda, converteu-se em mercadoria. Os artesãos das cidades, por certo, tiveram que produzir para o mercado desde o primeiro momento. Mas também elaboravam eles próprios a maior parte dos produtos de que necessitavam para seu consumo; tinham suas hortas e seus pequenos campos, apascentavam seu gado nos campos comunais, que lhes forneciam também madeira e lenha; suas mulheres fiavam o linho e a lã, etc. A produção para a troca, a produção de mercadorias, achava-se em seu inicio. Por isso o intercâmbio era limitado, o mercado era reduzido, o modo de produção era

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estável. Em face do exterior imperava o exclusivismo local; no interior, a associação local: a Marca no campo, as corporações nas cidades.

Mas ao estender-se a produção de mercadorias e, sobretudo, ao aparecer o modo capitalista de produção, as leis da produção de mercadorias, que até aqui haviam apenas dado sinais de vida, passam a funcionar de maneira aberta e poderosa. As antigas associações começam a perder força, as antigas fronteiras vão caindo por terra, os produtores vão convertendo-se mais e mais em produtores de mercadorias independentes e isolados. A anarquia da produção social sai à luz e se aguça cada vez mais. Mas o instrumento principal com que o modo de produção capitalista fomenta essa anarquia na produção social é precisamente o inverso da anarquia: a crescente organização da produção com caráter social, dentro de cada estabelecimento de produção. Por esse meio, põe fim à velha estabilidade pacifica. Onde se implanta num ramo industrial, não tolera a seu lado nenhum dos velhos métodos. Onde se apodera da indústria artesanal, ela a destrói e aniquila. O terreno de trabalho transforma-se num campo de batalha. As grandes descobertas geográficas e as empresas de colonização que as acompanham multiplicam os mercados e aceleram o processo de transformação de oficina do artesão em manufatura. E a luta não eclode somente entre os produtores locais isolados; as contendas locais não adquirem envergadura nacional, e surgem as guerras comerciais dos séculos XVII e XVIII. Até que, por fim, a grande indústria e a implantação do mercado mundial dão caráter universal à luta, ao mesmo tempo que lhe imprimem uma inaudita violência. Tanto entre os capitalistas individuais como entre industriais e países inteiros, a primazia das condições — natural ou artificialmente criadas — da produção decide a luta pela existência. O que sucumbe é esmagado sem piedade. É a luta darwinista da existência individual transplantada, com redobrada fúria, da natureza para a sociedade. As condições naturais de vida da besta convertem-se no ponto culminante do desenvolvimento humano. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se agora como antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade.

O modo capitalista de produção move-se nessas duas formas da contradição a ele inerente por suas próprias origens, descrevendo sem apelação aquele “círculo vicioso” já revelado por Fourier. Mas o que Fourier não podia ver ainda em sua época é que esse círculo se vai reduzindo gradualmente, que o movimento se desenvolve em espiral e tem de chegar necessariamente ao seu fira, como o movimento dos planetas. chocando-se com o centro. É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a imensa maioria dos homens, cada vez mais marcadamente, em proletários, e essas massas proletárias serão, por sua vez, as que, afinal, porão fim à anarquia da produção É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano. E assim como a implantação e o aumento quantitativo da maquinaria trouxeram consigo a substituição de milhões de operários manuais por um número reduzido de operários mecânicos, seu aperfeiçoamento determina a eliminação de um número cada vez maior de operários das máquinas e, em última instância, a criação de uma massa de operários disponíveis que ultrapassa a necessidade média de ocupação do capital, de um verdadeiro exército industrial de reserva, como eu já o chamara em 1845(4), de um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que logo nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo a todo momento uma grilheta amarrada aos pés da classe trabalhadora em sua luta pela existência contra o capital e um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista. Assim, para dizê-lo com Marx, a maquinaria converteu-se na mais poderosa arma do capital contra a classe operária, um meio de trabalho que arranca constantemente os meios de vida das mãos do operário, acontecendo que o produto do próprio operário passa a ser o instrumento de sua escravização. Desse modo, a economia nos meios de trabalho leva consigo, desde o primeiro momento, o mais impiedoso desperdício da força de trabalho e a espoliação das condições normais da função mesma do trabalho. E a maquinaria, o recurso mais poderoso que se pôde criar para reduzir a jornada de trabalho, converte-se no mais infalível recurso para converter a vida inteira do operário e de sua família numa grande jornada disponível para a valorização do capital;

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ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desabalada carreira, à conquista de novos consumidores, reduz em sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso o seu próprio mercado interno. “A lei que mantém constantemente o excesso relativo de população ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a intensidade da acumulação do capital amarra o operário ao capital com ataduras mais fortes do que as cunhas com que Vulcano cravou Prometeu no rochedo. Isso dá origem a que a acumulação do capital corresponda a uma acumulação igual de miséria. A acumulação de riqueza em um dos pólos determina no pólo oposto, no pólo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de miséria, de tormentos de trabalho, de escravidão, de ignorância, de embrutecimento e de degradação moral.” (Marx, O Capital, t. 1, cap. XXIII) E esperar do modo capitalista de produção uma distribuição diferente dos produtos seria o mesmo que esperar que os dois eletrodos de uma bateria, enquanto conectados com ela, não decomponham a água nem engendrem oxigênio no pólo positivo e hidrogênio no pólo negativo.

Vimos que a capacidade de aperfeiçoamento da maquinaria moderna, levada a seu limite máximo, converte-se, em virtude da anarquia da produção dentro da sociedade num preceito imperativo que obriga os capitalistas industriais, cada qual por si, a melhorar incessantemente a sua maquinaria, a tornar sempre mais poderosa a sua força de produção. Não menos imperativo é o preceito em que se converte para ele a mera possibilidade efetiva de dilatar sua órbita de produção. A enorme força de expansão da grande indústria, a cujo lado a expansão dos gases é uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante de nossos olhos como uma necessidade qualitativa e quantitativa de expansão, que zomba de todos os obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a saída, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a leis muito diferentes e que atuam de uma maneira muito menos enérgica. A expansão dos mercados não podo desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção. A colisão torna-se inevitável, e como é impossível qualquer solução senão fazendo-se saltar o próprio modo capitalista de produção, essa colisão torna-se periódica. A produção capitalista engendra um novo “círculo vicioso”.

Com efeito, desde 1825, ano em que estalou a primeira crise geral, não se passam dez anos seguidos sem que todo o mundo industrial e comercial, a distribuição e a troca de todos os povos civilizados e de seu séquito de países mais ou menos bárbaros, saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazéns abarrotados, sem encontrar saída; o dinheiro torna-se invisível; o crédito desaparece; as fábricas param; as massas operárias carecem de meios de subsistência precisamente por tê-los produzido em excesso, as bancarrotas e falências se sucedem. O paradeiro dura anos inteiros, as forças produtivas e os produtos são malbaratados e destruídos em massa até que, por fim, os estoques de mercadorias acumuladas, mais ou menos depreciadas, encontram saída, e a produção e a troca se vão reanimando pouco a pouco. Paulatinamente, a marcha se acelera, a andadura converte-se em trote, o trote industrial em galope e, finalmente, em carreira desenfreada, numa corrida de obstáculos da indústria, do comércio, do crédito, da especulação, para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados, na fossa de um crack. E assim, sucessivamente. Cinco vezes repete-se a mesma história desde 1825, e presentemente (1877) estamos vivendo-a pela sexta vez. E o caráter dessas crises é tão nítido e tão marcante que Fourier as abrangia todas ao descrever a primeira, dizendo que era uma crise plétorique, uma crise nascida da superabundância.

Nas crises estala em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista. A circulação de mercadoria fica, por um momento, paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias viram pelo avesso. O conflito econômico atinge seu ponto culminante: o modo de produção rebela-se contra o modo de distribuição.

O fato de que a organização social da produção dentro das fábricas se tenha desenvolvido até chegar a um ponto em que passou a ser inconciliável com a anarquia — coexistente com ela e

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acima dela — da produção na sociedade é um rato que se revela palpavelmente aos próprios capitalistas pela concentração violenta dos capitais, produzida durante as crises à custa da ruína de numerosos grandes e, sobretudo, pequenos capitalistas. Todo o mecanismo do modo de produção falha, esgotado pelas forças produtivas que ele mesmo engendrou. Já não consegue transformar em capital essa massa de meios de produção, que permanecem inativos, e por isso precisamente deve permanecer também inativo o exército industrial de reserva. Meios de produção, meios de vida, operários em disponibilidade: todos os elementos da produção e da riqueza geral existem em excesso. Mas a “superabundância converte-se em fonte de miséria e de penúria” (Fourier), já que é ela, exatamente, que impede a transformação dos meios de produção e de vida em capital, pois na sociedade capitalista os meios de produção não podem pôr-se em movimento senão transformando-se previamente em capital, em meio de exploração da força humana de trabalho. Esse imprescindível caráter de capital dos meios de produção ergue-se como um espectro entre eles e a classe operária. É isso o que impede que se engrenem a alavanca material e a alavanca pessoal da produção; é o que não permite aos meios de produção funcionar nem aos operários trabalhar e viver. De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, sua própria incapacidade para continuar dirigindo suas forças produtivas. De outro lado, essas forças produtivas compelem com uma intensidade cada vez maior no sentido de que resolva a contradição, de que sejam redimidas de sua condição de capital, de que seja efetivamente reconhecido o seu caráter de forças produtivas sociais.

É essa rebelião das forças de produção, cada vez mais imponentes, contra a sua qualidade de capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça o seu caráter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que é possível dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial, com sua desmedida expansão do crédito, como o próprio crack, com o desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas diferentes categorias de sociedades anônimas. Alguns desses meios de produção e de comunicação já são por si tão gigantescos que excluem, como ocorre com as ferrovias, qualquer outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento já não basta tampouco essa forma; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um truste, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um preço de venda de antemão fixado. Como, porém, esses trustes se desmoronam ao sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios, conduzem com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial converte-se numa única grande sociedade anônima, e a concorrência interna dá lugar ao monopólio interno dessa sociedade única; assim aconteceu já em 1890 com a produção inglesa de álcalis, que na atualidade, depois da fusão de todas as quarenta e oito grandes fábricas do país, é explorada por uma só sociedade com direção única e um capital de 120 milhões de marcos.

Nos trustes, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trustes, uma exploração tão descarada da coletividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões.

De um modo ou de outro, com ou sem trustes, o representante oficial da sociedade capitalista, o Estado, tem que acabar tomando a seu cargo o comando da produção(5). A necessidade a que corresponde essa transformação de certas empresas em propriedade do Estado começa a manifestar-se nas. grandes empresas de transportes e comunicações, tais como o correio, o telégrafo e as ferrovias.

Além da incapacidade da burguesia para continuar dirigindo as forças produtivas modernas que as crises revelam, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anônimas, trustes e em propriedade do' Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções. Hoje, as funções sociais do capitalista estão

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todas a cargo de empregados assalariados, e toda a atividade social do capitalista se reduz a cobrar suas rendas, cortar seus cupões e jogar na bolsa, onde os capitalistas de toda espécie arrebatam, uns aos outro, os seus capitais. E se antes o modo capitalista de produção deslocava os operários, agora desloca também os capitalistas, lançando-os, do mesmo modo que aos operários, entre a população excedente; embora, por enquanto ainda não no exército industrial de reserva.

Mas as forças produtivas não perdem sua condição de capital ao converter-se em propriedade das sociedades anônimas e dos trustes ou em propriedade do Estado. No que se refere aos trustes e sociedades anônimas, é palpavelmente claro. Por sua parte, o Estado moderno não é tampouco mais que uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores gerais do modo capitalista de produção contra os atentados, tanto dos operários como dos capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é solução do conflito, mas abriga já em seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.

Essa solução só pode residir em ser reconhecido de um modo efetivo o caráter social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, de apropriação e de troca com o caráter social dos meios de produção. Para isso, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direção a não ser a sua. Assim procedendo, o caráter social dos meios de produção e dos produtos, que hoje se volta contra os próprios produtores, rompendo periodicamente as fronteiras do modo de produção e de troca, e só pode impor-se com uma força e eficácia tão destruidoras como o impulso cego das leis naturais, será posto em vigor com plena consciência pelos produtores e se converterá, de causa constante de perturbações e cataclismas periódicos, na alavanca mais poderosa da própria produção.

As forças ativas da sociedade atuam, enquanto não as conhecemos e contamos com elas, exatamente como as forças da natureza: de modo cego violento e destruidor. Mas, uma vez conhecidas, logo que se saiba compreender sua ação, suas tendências e seus efeitos, está em nossas mãos o sujeitá-las cada vez mais à nossa vontade e, por meio delas, alcançar os fins propostos. Tal é o que ocorre, muito especialmente, com as gigantescas forças modernas da produção. Enquanto resistirmos obstinadamente a compreender sua natureza e seu caráter — e a essa compreensão se opõem o modo capitalista de produção e seus defensores —, essas forças atuarão apesar de nós, e nos dominarão, como bem ressaltamos. Em troca, assim que penetramos em sua natureza, essas forças, postas em mãos dos produtores associados, se converterão de tiranos demoníacos em servas submissas. É a mesma diferença que há entre o poder maléfico da eletricidade nos raios da tempestade e o poder benéfico da força elétrica dominada no telégrafo e no arco voltaico; a diferença que há entre o fogo destruidor e o fogo posto a serviço do homem. O dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem ao regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção deixará o seu posto à regulamentação coletiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, a quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o caráter dos modernos meios de produção está reclamando: de um lado, apropriação diretamente social, como meio para manter e ampliar a produção; de outro lado, apropriação diretamente individual, como meio de vida e de proveito.

O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada pais, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado, já indica por si mesmo o caminho pelo qual deve produzir-se essa

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revolução. O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo ato, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese num corpo social visível; mas o era só como Estado que, em sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos escravistas, na Idade Média o da nobreza feudal; em nossos tempos, da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.

O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente como representante de toda a sociedade — a posse dos meios de produção em nome da sociedade — é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será “abolido”, extingue-se. É partindo daí que se pode julgar o valor do falado “Estado popular livre” no que diz respeito à sua justificação provisória como palavra de ordem de agitação e no que se refere à sua falta de fundamento científico. É também partindo daí que deve ser considerada a exigência dos chamados anarquistas de que o Estado seja abolido da noite para o dia.

Desde que existe historicamente o modo capitalista de produção, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se projetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apropriação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas, para que isso fosse realizável, para que se convertesse numa necessidade histórica, fazia-se preciso que se dessem antes as condições efetivas para a sua realização. A fim de que esse progresso, como todos os progressos sociais, seja viável, não basta ser compreendido pela razão que a existência de classes é incompatível com os ditames da justiça, da igualdade, etc.; não basta a simples vontade de abolir essas classes — mas são necessárias determinadas condições econômicas novas. A divisão da sociedade em uma classe exploradora e outra explorada, em uma classe dominante e outra oprimida, era uma conseqüência necessária do anterior desenvolvimento incipiente da produção. Enquanto o trabalho global da sociedade der apenas o estritamente necessário para cobrir as necessidades mais elementares de todos, e talvez um pouco mais; enquanto, por isso, o trabalho absorver todo o tempo, ou quase todo o tempo, da imensa maioria dos membros da sociedade, esta se divide, necessariamente, em classes. Junto à grande maioria constrangida a não fazer outra coisa senão suportar a carga do trabalho, forma-se uma classe que se exime do trabalho diretamente produtivo e a cujo cargo correm os assuntos gerais da sociedade: a direção dos trabalhos, os negócios públicos, a justiça, as ciências, as artes, etc., É, pois, a lei da divisão do trabalho que serve de base à divisão da sociedade em classes. O que não impede que essa divisão da sociedade em classes se realize por meio da violência e a espoliação, a astúcia e o logro; nem quer dizer que a classe dominante, uma vez entronizada, se abstenha de consolidar o seu poderio à custa da classe trabalhadora, transformando seu papel social de direção numa maior exploração das massas.

Vemos, pois, que a divisão da sociedade em classes tem sua razão histórica de ser, mas só dentro de determinados limites de tempo, sob determinadas condições sociais. Era condicionada pela insuficiência da produção, e será varrida quando se desenvolverem plenamente as modernas forças produtivas. Com efeito, a abolição das classes sociais pressupõe um grau histórico de desenvolvimento tal que a existência, já não dessa ou daquela classe dominante concreta, mas de

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uma classe dominante qualquer que seja ela, e, portanto, das próprias diferenças de classe representa um anacronismo. Pressupõe, por conseguinte, um grau culminante no deseno1vimento da produção em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos e, portanto, do poder político, do monopólio da cultura e da direção espiritual por uma determinada classe da sociedade, não só se tornou de fato supérfluo, mas constitui econômica, política e intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso. Pois bem, já se chegou a esse ponto. Hoje, a bancarrota política e intelectual da burguesia não é mais um segredo nem para ela mesma e sua bancarrota econômica é um fenômeno que se repete periodicamente de dez em dez anos. Em cada uma dessas crises a sociedade se asfixia, afogada pela massa de suas próprias forças produtivas e de seus produtos, aos quais não pode aproveitar e, impotente, vê-se diante da absurda contradição de que os seus produtores não tenham o que consumir, por falta precisamente de consumidores. A força expansiva dos meios de produção rompe as ataduras com que são submetidos pelo modo capitalista de produção, Só essa libertação dos meios de produção é que pode permitir o desenvolvimento ininterrupto e cada vez mais rápido das forças produtivas e, com isso, o crescimento praticamente ilimitado da produção. Mas não é apenas isso. A apropriação social dos meios de produção não só elimina os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das forças produtivas e dos produtos, uma das conseqüências inevitáveis da produção atual e que alcança seu ponto culminante durante as crises. Ademais, acabando-se com o parvo desperdício do luxo das classes dominantes e seus representantes políticos, será posta em circulação para a coletividade toda uma massa de meios de produção e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e surge de um modo efetivo, a possibilidade de assegurar a todos os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer plenamente e ceda dia mais abundantemente suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo desenvolvimento e exercício de suas capacidades físicas e intelectuais(6).

Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sal definitivamente do reino animal e se sobrepõe às condições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cerca o homem e até agora o dominam, colocam-se, a partir desse instante, sob seu domínio e seu comando e o homem, ao tomar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade.

***

Resumamos, brevemente, para terminar, nossa trajetória de desenvolvimento:

1. — Sociedade medieval: Pequena produção individual. Meios de produção adaptados ao uso individual e, portanto, primitivos, torpes, mesquinhos, de eficácia mínima. Produção para o consumo imediato, seja do próprio produtor, seja de seu senhor feudal. Só nos casos em que fica um excedente de produtos, depois de ser coberto aquele consumo, é posto à venda e lançado no mercado esse excedente. Portanto, a produção de mercadorias acha-se ainda em seus albores, mas já encerra, em potencial, a anarquia da produção social

2. — Revolução capitalista: Transformação da indústria, iniciada por meio da cooperação simples e da manufatura. Concentração dos meios de produção, até então dispersos, em grande

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oficinas, com o que se convertem de meios de produção do indivíduo em meios de produção sociais, metamorfose que não afeta, em geral, a forma de troca. Ficam de pé as velhas formas de apropriação, Aparece o capitalista: em sua qualidade de proprietário dos meios de produção, apropria-se também dos produtos e os converte em mercadorias. A produção transforma-se num ato social; a troca e, com ela, a apropriação continuam sendo atos individuais: o produto social é apropriado pelo capitalista individual. Contradição fundamental, da qual se derivam todas as contradições em que se move a sociedade atual e que a grande indústria evidencia claramente:

A. Divórcio do produtor com os meios de produção. Condenação do operário a ser assalariado por toda a vida. Antítese de burguesia e proletariado.

B. Relevo crescente e eficácia acentuada das leis que presidem a produção de mercadorias. Concorrência desenfreada. Contradição entre a organização social dentro de cada fábrica e a anarquia social na produção total.

C. De um lado, aperfeiçoamento da maquinaria, que a concorrência transforma num preceito imperativo para cada fabricante e que equivale a um afastamento cada dia maior de operários: exército industrial de reserva. De outro lado, extensão ilimitada da produção, que a concorrência impõe também como norma incoercível a todos os fabricantes. De ambos os lados, um desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso da oferta sobre a procura, superprodução, abarrotamento dos mercados, crise cada dez anos, círculo vicioso: superabundância, aqui, de meios de produção e de produtos e, ali, de operários sem trabalho e sem meios de vida. Mas essas duas alavancas da produção e do bem-estar social não podem combinar-se, porque a forma capitalista da produção impede que as forças produtivas atuem e os produtos circulem, a não ser que se convertam previamente em capital, o que lhes é vedado precisamente por sua própria superabundância. A contradição se aguça até converter-se em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a forma de troca. A burguesia revela-se incapaz para continuar dirigindo suas próprias forças sociais produtivas.

D. Reconhecimento parcial do caráter social das forças produtivas, arrancado aos próprios capitalistas. Apropriação dos grandes organismos de produção e de transporte, primeiro por sociedades anônimas, em seguida pelos trustes, e mais tarde pelo Estado. A burguesia revela-se uma classe supérflua; todas as suas funções sociais são executadas agora por empregados assalariados.

3. — Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para impor-se, A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.

A realização desse ato, que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse ato, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação.

Escrito por F. Engels em 1877. Publicado como folheto, em francês, em Paris (1880), em alemão, em Zurique (1882) e em Berlim (1891), e em inglês, em Londres (1892). Publica-se segundo a

edição soviética de 1952, de acordo com o texto da edição alemã de 1891. Traduzido do espanhol.

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NOTAS

Prefácio

1. No “Congresso de Gotha”, celebrado de 22 a 25 de maio de 1875, uniram-se as duas correntes do movimento operário alemão: o Partido Operário Social-democrata (os eisenachianos), dirigido por A. Bebel e W. Liebknecht, e a lassalleana Associação Geral de Operários Alemães. O partido unificado adotou a denominação de Partido Operário Socialista da Alemanha. Assim se conseguiu superar a cisão nas fileiras da classe operária alemã. O projeto de programa do partido unificado, proposto ao Congresso de Gotha, apesar da dura crítica que lhe haviam feito Marx e Engels (v.Crítica ao Programa de Gotha), foi aprovado no Congresso com modificações insignificantes.

(2) Bimetalismo: sistema monetário, no qual as funções de dinheiro são cumpridas simultaneamente pelo ouro e pela prata.

(3) “Vorwärts” (Avante): órgão central do Partido Operário Socialista Alemão, foi publicado em Leipzig de 1 de outubro de 1876 a 27 de outubro de 1878. A obra de Engels “Anti-Dühring” foi publicada nele de 3 de janeiro de 1877 a 7 de julho de 1878.

(4) Não incluído nesta edição.

(5) Engels se refere aos trabalhos de M. Kovalevski “Tableau des origines et de l’évolution de la famille et de la proprieté” (“Ensaio acerca da origem da família e da propriedade”) publicado em 1890 em Estocolmo, e “Pervobytnoye pravo” (“Direito primitivo”) fascículo 1, “La Gens”, Moscou, 1886.

(6) Nominalistas: representantes de uma tendência da filosofia medieval que considerava que os conceitos generais genéricos eram nomes, engendrados pelo pensamento e pela linguagem e só serviam para designar objetos soltos, existentes na realidade. Em oposição aos realistas medievais, os nominalistas negavam a existência de conceitos como protótipos e fontes criadoras das cosas. Deste modo reconheciam o carácter primário da realidade e secundário do conceito. Neste sentido, o nominalismo era a primeira expressão do materialismo na Idade Média.

(7) Nomoiomerias: minúsculas partículas qualitativamente determinadas e divisíveis infinitamente. Anaxágoras considerava que as homoiomerias constituíam a base inicial de todo o existente e que suas combinações davam origem à diversidade das coisas.

(8) “Qual” é um jogo filosófico de palavras. “Qual” significa, literalmente, tortura, dor que incita a realizar uma ação qualquer. Ao mesmo tempo, o místico Böhme transfere à palavra alemã algo do termo latinoqualitas (qualidade). Seu “Qual“ era, por oposição à dor produzido exteriormente, um princípio ativo, nascido do desenvolvimento espontâneo da coisa, da relação ou da personalidade submetida a su influxo e que, por su vez, provocava este desenvolvimento.

(9) Deismo: doutrina filosófico-religiosa que reconhece Deus como causa primeira racional impessoal do mundo, mas nega sua intervenção na vida da natureza e da sociedade.

(10) K. Marx und F. Engels, “Die heilige Familie”, Frankfurt am M., 1845, S. 201-204. (K. Marx e F. Engels. A Sagrada Família, Francfort do Meno, 1845, págs. 201-204.) (N. Edit.)

(11) Refere-se á primeira exposição comercial e industrial mundial que aconteceu em Londres de maio a outubro de 1851.

(12) Exército da Salvação: organização reacionária religioso-filantrópica fundada em 1865 na Inglaterra e reorganizada em 1880 adotando o modelo militar (de onde vem seu nome). Apoiada em grande parte pela burguesia, esta organização fundou em muitos países uma rede de instituições beneficentes, com a finalidade de afastas as massas trabalhadoras da luta contra os exploradores.

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(13) P. Laplace, Traité de mécanique céleste (“Tratado de mecânica celeste”) Vols. I—V, Paris, 1799-1825. (N. Edit).

(14) “Não tive necessidade de recorrer a esta hipótese”. (N. Edit.)

(15) “No princípio era a ação”. Goethe, Fausto, parte I, cena III. (N. Edit.)

(16) “O pudim se prova comendo”. (N. Edit).

(17) Coisa em si

(18) A historiografia burguesa inglesa chama de “revolução gloriosa” o golpe de Estado de 1688 com que se acabou na Inglaterra com a dinastia dos Stuards e se instaurou a monarquia constitucional (1689) encabeçada por Guilherme de Orange e baseada no compromisso entre a aristocracia agrária a grande burguesia.

(19) A guerra das Duas Rosas (1455-1485): guerra entre duas famílias feudais inglesas que lutavam pelo trono: os York, em cujo escudo figurava uma rosa branca, e os Lancaster, que tinham no escudo uma rosa vermelha. Em torno dos York se agrupava uma parte dos grandes feudais do Sul (mais desenvolvido economicamente), os cavaleiros e os cidadãos; os Lancaster eram apoiados pela aristocracia feudal dos condados do Norte. A guerra quase levou ao total extermínio das antigas famílias feudais e terminou com a subida ao trono da nova dinastia dos Tudor que implantou o absolutismo na Inglaterra.

(20) Criança robusta mas maliciosa. (NT)

(21) Filosofia cartesiana: doutrina dos seguidores do filósofo francês do século XVII Descartes (em latim Cartesius), que deduziram conclusões materialistas de sua filosofia.

(22) A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi aprovada pela Assembléia Constituinte em 1789. Nela se proclamavam os princípios políticos do novo regime burguês. A Declaração foi incluída na Constituição francesa de 1791; serviu de base aos jacobinos quando redigiram a Declaração dos Direitos do Homem de 1793, que figurou como prefácio à primeira Constituição republicana da França adotada pela Convenção Nacional em 1793.

(23) Aqui e a partir daqui, Engels não entende por Código de Napoleão unicamente o Code civil (Código civil) de Napoleão adotado em 1804 e conhecido por este nome, mas, no sentido lato da palavra, todo o sistema do Direito burguês, representado pelos cinco códigos (civil, de processo civil, comercial, penal e de processo penal) adotados sob Napoleão I de 1804 a 1810. Tais códigos foram implantados nas regiões Oeste e Sudoeste da Alemanha conquistadas pela França de Napoleão e permaneceram vigindo na província do Reno inclusive depois de sua anexação pela Prússia em 1815.

(24) Escreve-se Londres e se pronuncia Constantinopla. (N. Edit.)

(25) O projeto de lei da primeira reforma eleitoral na Inglaterra foi apresentado ao Parlamento em março de 1831 e aprovado em junho de 1832. A reforma abriu as portas do Parlamento apenas aos representantes da burguesia industrial. O proletariado e a pequena burguesia, que eram a principal força na luta pela reforma, foram enganados pela burguesia liberal e ficaram, como antes da reforma, sem direitos eleitorais.

(26) A lei de abolição das leis cerealistas foi aprovado em junho de 1846. As chamadas leis cerealistas, aprovadas visando restringir ou proibir a importação de trigo do exterior, foram promulgadas na Inglaterra em benefício dos grandes proprietários rurais (landlords). A aprovação da lei de 1846 foi um triunfo da burguesia industrial, que lutava contra as leis cerealistas sob a consigna de liberdade de comércio.

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(27) Em 1824, o Parlamento inglês, pressionado pelo movimento operário, teve que promulgar um ato abolindo a proibição das uniões operárias (as tradeunions).

(28) A Carta do Povo, que continha as exigências dos cartistas, foi publicada em 8 de maio de 1838 como projeto de lei a ser apresentado no Parlamento; continha seis pontos; direito eleitoral universal (para os homens acima dos 21 anos de idade), eleições anuais para o Parlamento, votação secreta, igualdade das circunscrições eleitorais, abolição do requisito de propriedade para os candidatos a deputado no Parlamento, remuneração dos deputados. As três petições dos cartistas com a exigência da aprovação da Carta do Povo, entregues ao Parlamento, foram recusadas por este em 1839, 1842 e 1849.

(29) A Liga anti-cerealista: organização da burguesia industrial inglesa, fundada em 1838 pelos fabricantes Cobden e Bright, de Manchester. Ao apresentar a exigência da liberdade completa de comércio, a Liga propugnava pela abolição das leis cerealistas com o fim de abaixar os salários dos operários e debilitar as posições econômicas e políticas da aristocracia agrária. Depois da abolição das leis cerealistas (1846), a Liga deixou de existir.

(30) A manifestação de massas que os cartistas anunciaram para 10 de abril de 1848 em Londres, com a finalidade de entregar ao Parlamento a petição sobre a aprovação da Carta popular, fracassou devido à indecisão e as vacilações de seus organizadores. O fracasso da manifestação foi utilizado pelas forças da reação para retomar a ofensiva contra os trabalhadores e as represálias contra os cartistas.

(31) Trata-se do golpe de Estado organizado por Luís Bonaparte em 2 de dezembro de 1851, que deu início ao regime bonapartista do Segundo Império.

(32) Irmão Jonathan: mote dado pelos ingleses aos norte-americanos durante a guerra das colônias norte-americanas da Inglaterra pela independência (1775-1783).

(33) O Segundo Império de Napoleão III existiu na Francia de 1852 a 1870, e a Terceira República, de 1870 a 1940.

(34) E até em matéria de negócios a fatuidade do chauvinismo nacional é um mau conselho. Até recentemente, o fabricante inglês corrente considerava indigno para um inglês falar outro idioma que não fosse o seu e se orgulhava de certo modo que esses “pobres diabos” dos estrangeiros viessem viver na Inglaterra, aliviando-lo com isso do trabalho de vender seus produtos no exterior. Não se dava conta sequer que estes estrangeiros, alemães em sua maioria, se apossavam deste modo de uma grande parte do comércio exterior da Inglaterra — quer do de importação como do de exportação — e que o comércio direto dos ingleses com o exterior ia circunscrevendo-se quase exclusivamente às colônias, à China, aos Estados Unidos e à América do Sul. E tão pouco se dava conta de que estes alemães comerciavam com outros alemães do estrangeiro, que com o tempo iam organizando uma rede completa de colônias comerciais por todo o mundo. E quando, há uns quarenta anos, a Alemanha começou seriamente a fabricar para exportar, encontrou nestas colônias comerciais alemãs um instrumento que lhe prestou maravilhosos serviços na empresa de transformar, em tão pouco tempo, um país exportador de cereais em um país industrial de primeira grandeza. Por fim, faz uns dez anos, os fabricantes ingleses começaram a se inquietar e a perguntar a seus embaixadores e cônsules como era que já não podiam reter todos os seus clientes. A resposta unânime foi esta: 1° porque não vos preocupais em aprender a língua de vossos clientes e exigis que eles aprendam a vossa, e 2° porque não intentais sequer satisfazer às necessidades, os costumes e os gostos de vossos clientes, mas que quereis que se atenham aos vossos, aos da Inglaterra.

(35) Educação da classe média (N. Edit.)

(36) Em 1867, na Inglaterra, sob a influência do movimento operário de massas, se levou a cabo a segunda reforma parlamentar. O Conselho Geral da I Internacional tomou parte ativa no movimento que reivindicava esta reforma. Como resultado dela, o número de eleitores na

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Inglaterra aumentou em mais do dobro e uma parcela dos operários qualificados conquistou o direito de votar.

(37) O household suffrage estabelecia o direito de voto para todos que vivessem em casa independente. (N. Edit.)

(38) Votação secreta. (N. Edit.)

(39) Socialismo de cátedra: corrente da ideologia burguesa dos anos 70-90 do século XIX. Seus representantes, na maioria professores de universidades alemãs, pregavam de suas cátedras o reformismo burguês, tratando de apresentá-lo como socialismo. Afirmavam (entre outros A. Wagner, H. Schmoller, L. Brentano e W. Sombart) que o Estado era uma instituição situada acima das classes, podia reconciliar as classes inimigas e implantar gradualmente o “socialismo” sem afetar os interesses dos capitalistas. Seu programa se reduzia à organização dos seguros dos operários contra enfermidades e acidentes e à aplicação de certas medidas na esfera da legislação fabril. Os socialistas de cátedra estimavam que, havendo sindicatos bem organizados, não havia necessidade de luta política, nem de partido político da classe operária. O socialismo de cátedra constituiu uma das fontes ideológicas do revisionismo.

(40) Ritualismo: corrente surgida na Igreja anglicana nos anos 30 do século XIX. Seus adeptos pregavam a restauração dos ritos católicos (daí a denominação) e de certos dogmas do catolicismo na Igreja anglicana.

Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico

1. É a seguinte a passagem de Hegel referente à Revolução Francesa: “A idéia, o conceito de direito, fez-se valer de chofre, sem que lhe pudesse opor qualquer resistência a velha armação da injustiça. Sobre a idéia do direito baseou-se agora, portanto, uma Constituição, e sobre esse fundamento deve basear-se tudo mais no futuro. Desde que o Sol ilumina o firmamento e os planetas giram em torno daquele ninguém havia percebido que o homem se ergue sobre a cabeça, isto é, sobre a idéia, construindo de acordo com ela a realidade. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o noûs, a razão, governa o mundo: mas só agora o homem acabou de compreender que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Era, pois, uma esplêndida aurora. Todos os seres pensantes celebraram a nova época. Uma sublime emoção reinava naquela época a um entusiasmo do espírito abalava o mundo, como se pela primeira vez se conseguisse a reconciliação do mundo com a divindade”. Hegel Philosophie der Geschichte. 1840, pág. 535 [Hegel, Filosofia da História, 1840 pág. 535]. Não terá chegado o momento de aplicar a essas doutrinas subversivas e atentatórias à sociedade, do finado professor Hegel, a lei contra os socialistas?

2. De The Revolution in Mind and Practice [A Revolução no Espírito e na Prática], um memorial dirigido a todos os republicanos vermelhos. comunistas e socialistas da Europa, e enviado ao governo provisório francês de 1848. mas também à rainha Vitória e seus conselheiros responsáveis.

3. Não precisamos explicar que, ainda quando a forma de apropriação permaneça invariável, o caráter da apropriação sofre uma revolução pelo processo que descrevemos, em não menor grau que a própria produção. A apropriação de um produto próprio e a apropriação de um produto alheio são, evidentemente, duas formas muito diferentes de apropriação. E advertimos de passagem que o trabalho assalariado, no qual se contém já o germe de todo o modo capitalista de produção, é muito antigo; coexistiu durante séculos inteiros, em casos isolados e dispersos, com a escravidão. Contudo, esse germe só pode desenvolver-se até formar o modo capitalista de produção quando surgiram as premissas históricas adequadas.

4. A Situação da Classe Operária na Inglaterra pg. 109.

5. E digo que tem de tomar a seu cargo, pois a nacionalização só representará um progresso econômico, um passo adiante para a conquista pela sociedade de todas as forças produtivas,

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embora essa medida seja levada a cabo pelo Estado atual, quando os meios de produção ou de transporte superarem já efetivamente os marcos diretores de uma sociedade anônima, quando, portanto, a medida da nacionalização já for economicamente inevitável. Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da nacionalização, surgiu uma espécie de falso socialismo, que degenera de quando em vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo ato de nacionalização, mesmo nos adotados por Bismarck, vã uma medida socialista. Se a nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário inclui, Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga, por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua conta as principais linhas térreas do pais, eu quando Bismarck, sem que nenhuma necessidade econômica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem direta nem indiretamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de socialistas. De outro modo, seria necessário também classificar entre as instituições socialistas a Real Companhia de Comércio Marítimo, a Real Manufatura de Porcelanas e até os alfaiates do exército, sem esquecer a nacionalização dos prostíbulos, proposta muito seriamente, ai por volta do ano 34, sob Frederico Guilherme III, por um homem muito esperto.

6. Algumas cifras darão ao leitor uma noção aproximada da enorme força expansiva que, mesmo sob a pressão capitalista, os modernos meios de produção desenvolvem. Segundo os cálculos de Giffen, a riqueza global da Grã Bretanha e Irlanda ascendia, em números redondos, a

1865 — 6.100 milhões de libras esterlinas — 122.000 milhões de marcos 1875 — 8.500 milhões de libras esterlinas — 170.000 milhões de marcos

Para dar uma idéia do que representa a dilapidação dos meios de produção e de produtos desperdiçados durante a crise, direi que no segundo congresso dos industriais alemães, realizado em Berlim, em 21 de fevereiro de 1878, calculou-se em 455 milhões de marcos as perdas globais representadas pelo último crack, somente para a indústria siderúrgica alemã.

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Marx Atual?

Textos sobre a vigência do marxismo na contemporaneidade Sandra M. M. Siqueira - Francisco P. Silva

Capítulo VI

Condições materiais, luta de classes e socialismo1

Por seu conteúdo, o socialismo moderno é, antes de mais nada, o produto de uma dupla verificação: os antagonismos de classe entre possuidores e não-possuidores, burgueses e operários assalariados, que imperam na moderna sociedade, e a anarquia, que preside a produção (Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico)

Da análise crítica da sociedade capitalista constatamos que a essência do modo de

produção burguês continua a mesma: de um lado, a acumulação de riqueza nas mãos de uma minoria; de outro, a produção de miséria para a esmagadora maioria da sociedade. Que articulação há, então, entre as condições materiais de vida na ordem do capital e a luta de classes? Que formas de organização e de luta foram criadas historicamente pelos trabalhadores e demais explorados desde o século XIX? Teria sentido hoje a luta pelo socialismo?

Retomemos a análise das sociedades de classes, para podermos compreender como as

diferenças de condições econômico-sociais geram a oposição de interesses sobre os produtos do trabalho, a luta de classes e as possibilidades de mudanças. Veremos que as contradições geradas pelas sociedades classistas levam aos conflitos entre as classes sociais fundamentais ao longo da história da humanidade.

Marx argüiu em diversas ocasiões que a luta de classes é motor da história. Como tal o

capitalismo, apesar de suas crises, não cairá de podre, sem que haja a construção organizativa e o desenvolvimento da consciência política da classe operária e demais explorados, enfim sem uma transformação radical. É precisamente o que estudaremos neste capítulo, em particular as classes sociais originadas a partir do desenvolvimento da sociedade burguesa, os conflitos de classes determinantes e as possibilidades abertas para a superação da ordem do capital e para a construção do socialismo.

Neste ponto, coloca-se a questão da consciência de classe, que tem as condições materiais

como sua base fundamental e que se desenvolve a partir das experiências concretas, das lutas sociais, dos desafios colocados e das aspirações construídas ao logo da história. A consciência social de classe tem, portanto, caráter processual, comporta avanços e retrocessos. Dessa forma, tem razão Mauro Luis Iasi quando aduz que o processo de consciência deve ser visto

Como um desenvolvimento dialético, em que cada momento traz em si os elementos de sua superação, em que as formas já incluem contradições que, ao amadurecerem, remetem à consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos (2007:12).

As sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção e do produto do

trabalho, das quais podemos citar a sociedade escravista antiga, a sociedade feudal e a atual sociedade capitalista, são segmentadas em classes sociais, que se diferenciam pelo papel que cumprem no processo social de produção. Na antiguidade escravocrata, os produtores da riqueza social eram os escravos que, do ponto de vista das relações que mantinham com a classe dominante, os proprietários de terras, apareciam como instrumentos de trabalho, iguais às ferramentas, ao gado e à matéria-prima. Deram-lhes a alcunha de instrumentos falantes.

Além da parte dos produtos que lhe cabia para atender às suas necessidade (produto

necessário) produziam também os bens que a classe dominante desejava, para manter as suas

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condições materiais e espirituais de existência (produto excedente). O trabalho escravo era, portanto, a base da sociedade escravista. Sob a base do trabalho escravo, Grécia, Roma e uma série de grandes civilizações da antiguidade puderam florescer culturalmente. Uma minoria da sociedade pôde, livres da atividade do trabalho às expensas da esmagadora maioria de produtores, dedicar-se às atividades consideradas nobres, quais sejam, a arte, a literatura, a filosofia etc., além das ações propriamente políticas, como a atividade política na polis e debates nas assembléias, enfim nas decisões do Estado. Não poucas vezes, essas condições de exploração levaram a grandes levantes de escravos.

A desagregação do escravismo antigo bem como as invasões “bárbaras”, com suas formas

de organização social, deram origem mais adiante, na Europa ocidental, ao sistema feudal. No feudalismo, a produção material ficava a cargo dos camponeses, submetidos a relações de servidão. Os feudos tinham uma economia de auto-subsistência, de modo que a maior parte dos produtos necessários à vida nas propriedades provinha do trabalho servil. Eventualmente, recorria-se à troca por outros produtos que não podiam produzir. As trocas, no entanto, não chegavam a constituir uma relação social dominante. Prevaleciam as relações sociais de servidão, de modo que além dos produtos imprescindíveis à sua manutenção e da sua família, os camponeses obrigavam-se pelos costumes da época a trabalhar nas terras do senhor (corvéia), a retribuir-lhe pelo pagamento em produtos, e, numa etapa mais à frente, em dinheiro. O trabalho servil era, neste caso, a base da sociedade feudal. A situação social dos camponeses os empurrou a revoltas particularmente violentas.

A partir do século XIV, o feudalismo passou por transformações, sendo as mais importantes

o revigoramento das cidades medievais, o crescimento de uma economia mercantil, baseada na produção artesanal e nas corporações de ofício, o desenvolvimento do conhecimento e da ciência, a formação dos Estados nacionais, o investimento na navegação, a procura de rotas comerciais, a colonização e exploração de colônias, enfim um amplo processo de acumulação de recursos materiais na Europa, que Marx denominou, n’O Capital, de acumulação primitiva do capital, que durou praticamente até o século XVIII. Com a ampliação do comércio e o desenvolvimento da produção mercantil, ergueu-se uma classe social antagônica aos interesses materiais e políticos dos proprietários de terras: a burguesia. Esta, para fazer valer seus interesses, teve de travar uma luta mortal contra o clero e a nobreza, até se tornar definitivamente uma classe politicamente dominante. O desenlace da luta de classes resultou na realização de revoluções democrático-burguesas, das quais a Revolução Francesa é a mais clássica.

Com a Revolução Industrial, da segunda metade do século XVIII e primeira metade do

século XIX, criou-se a base material para a consolidação das relações de produção capitalistas. A substituição progressiva das antigas ferramentas manuais por máquinas modernas submeteu definitivamente os trabalhadores ao domínio do capital: domínio sobre os conhecimentos, dos processos de produção e dos meios de produção, agora controlados em sua integralidade pelo capital. Marx denominou este processo de subsunção real do trabalho ao capital. De fato, o capital tinha agora total controle sobre a força de trabalho e este nada mais se apresentava na sociedade burguesa, senão como apêndice da máquina.

Portanto, a classe operária é o produto mais genuíno da industrialização do século XVIII.

Formou-se a partir do submetimento às relações de assalariamento das antigas classes populares do sistema feudal, em particular os camponeses e artesãos. Sem possibilidade de concorrer com o grande capital, expulsos de terras por causa dos cercamentos, com a utilização das terras para criação de ovelhas, tendo em vista o fornecimento de lã para a indústria têxtil, os camponeses tiveram de se assalariar, de vender a sua força de trabalho por um salário.

As condições materiais de vida e trabalho do proletariado industrial, mineiro e agrícola em

formação eram extremamente degradantes. Jornadas de trabalho extenuantes, exploração em condições desumanas do trabalho infantil e da mulher, emprego de métodos mesquinhos para expropriar uma maior quantidade de mais-valia, habitações insalubres, doenças, salários aviltantes. Engels descreveu magnificamente as condições da classe trabalhadora na Inglaterra da primeira metade do século XIX na obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, editada

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em 1845. O autor traça a trajetória histórica de organização política e de criação de formas de resistência pelos operários contra o capital.

Neste texto, Engels cita um poema de Edward P. Mead sobre as conseqüências do sistema

fabril sobre as condições de trabalho e a vida dos trabalhadores, que merece ser lido atentamente: Existe um rei, um príncipe furioso, não a imagem sonhada pelo poeta, um tirano cruel, bem conhecido dos escravos brancos. Esse rei impiedoso é o vapor. Ele tem um braço, um braço de ferro, e, embora só tenha a um, há nesse braço uma força mágica que destruiu a milhões. É feroz como Moloch, seu antepassado, que por um tempo viveu no vale de Himmon: fogo ardente são suas entranhas e crianças seu repasto. Seus sacerdotes, desumanos sequiosos de sangue, cheios de soberba e fúria, guiam – ó vergonha! – sua mão gigantesca e transformam em ouro o sangue. Esmagam no pó o direito do homem pelo amor do ouro vil, seu deus, divertem-se com a dor das mulheres e gargalham com as lágrimas dos homens. É música para seus ouvidos o grito de agonia dos pobres que lutam contra a morte. Esqueletos de virgens e de crianças enchem os infernos do Rei Vapor. O inferno na terra! Espalham morte pelo reino, desde que reina o Vapor, assassinado ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos homens. Morte, pois, ao rei Vapor, esse Moloch impiedoso! Ó milhares de trabalhadores, todos, atem-lhe as mãos ou nossa terra logo ele levará à ruína! E seus sátrapas ferozes, os orgulhosos barões das fábricas, Locupletados de ouro e manchados de sangue, a cólera do povo deve liquidá-los, como haverá de liquidar seu deus monstruoso. (In Engels, 2007:221-22). As condições materiais de existência social (relações de trabalho, de produção, sob a base

da exploração da força de trabalho) dos operários levaram os mesmos a fomentar as primeiras formas de luta e de organização. Diante do aprofundamento da exploração nas indústrias, com a introdução de máquinas cada vez mais modernas, o proletariado reagiu destruindo os instrumentos de trabalho e meios de produção, fazendo motins, tendo em vista que seu nível de consciência levava a crerem que o verdadeiro responsável pela sua situação de miséria, de exploração e da iminência de desemprego eram as máquinas aplicadas ao processo de produção e não os capitalistas que as empregavam. De fato, as máquinas reduziam sensivelmente a necessidade do número de empregados na produção, tendo em vista que a função do proletário passava a ser, com o emprego delas, de simples apêndice.

Essa primeira forma de expressão do inconformismo do operariado diante de sua situação

social e das condições de trabalho passou para a história pelo nome de luddismo. Os operários

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não conseguiam ainda distinguir a máquina do seu emprego no processo de produção e das conseqüências na vida operária. O problema central não se encontrava na máquina em si, mas na forma como era aplicada ao processo de produção, a que interesses servia e a quem beneficiava concretamente a sua aplicação na produção industrial. É evidente que a inovação promovida pela industrialização tinha como objetivo central aumentar a produtividade do trabalho humano, diminuir o número de trabalhadores necessários ao processo de produção, incrementar a quantidade de mercadorias produzidas durante o tempo de trabalho e possibilitar a diminuição do preço dos produtos, fortalecendo os capitalistas que inovavam frente aos que permaneciam inertes quanto ao processo de inovação científica e técnica. Com o tempo, os trabalhadores começaram a formar outras organizações com as associações e sindicatos e determinadas formas de luta. Dada a existência de leis proibitivas da organização operária, os trabalhadores acabavam formando associações secretas.

Com o reconhecimento do direito de associação, muitas organizações secretas sofreram

mutações, passando a atuar de forma aberta. A partir de um certo desenvolvimento do movimento operário, constituíram-se os sindicatos, que passaram a representar os interesses de determinados setores profissionais, na defesa dos salários e de jornadas de trabalhos menores. Em princípio, os sindicatos lutavam pelos interesses econômicos dos trabalhadores a eles associados. É certo, porém, que uma parte dos trabalhadores permanecia desorganizada e, portanto, distante da necessidade de se mobilizar para defender seus interesses frente aos capitalistas.

Passados os anos, com a experiência acumulada, o operariado passou a perceber que não

se tratava apenas de restringir a sua luta aos aspectos econômicos, mas aprofundá-la no sentido de reivindicações políticas. Para tanto, a intervenção das idéias socialistas no interior do movimento operário nascente foi fundamental. Engels relata da seguinte maneira essa experiência operária:

Quando, em 1824, os operários obtiveram o direito à livre associação, essas sociedades rapidamente se expandiram por toda a Inglaterra e tornaram-se fortes. Em todos os ramos de trabalho constituíram-se organizações semelhantes (trade unions), com o objetivo declarado de proteger o operário contra a tirania e o descaso da burguesia. Eram suas finalidades fixar o salário, negociar em masse, como força, com os patrões, regular os salários em relação aos lucros patronais, aumentá-lo no momento propício e mantê-los em todas as partes no mesmo nível para cada ramo de trabalho, por isso, trataram de negociar com os capitalistas uma escala salarial a ser cumprida por todos e recusar empregos oferecidos por aqueles que não a respeitassem. Ademais, outras finalidades eram: manter o nível de procura do trabalho, limitando o emprego de aprendizes e, assim, impedir também a redução dos salários, combater, no limite do possível, os estratagemas patronais utilizados para reduzir os salários mediante a utilização de novas máquinas e instrumentos de trabalho etc.; e, enfim, ajudar financeiramente os operários desempregados (2007:250).

Afirma ainda que

Quando foi possível e vantajoso, os operários de um mesmo ramo de trabalho de diferentes distritos uniram-se numa associação federada, organizando assembléias de delegados em datas fixas. Em alguns caos, tentou-se unir numa só organização de toda a Inglaterra os operários de um mesmo ramo e também houve tentativas – a primeira, em 1830 – de criar uma única associação geral de operários de todo o reino, com organizações específicas para cada categoria, mas esses experimentos foram raros e de curta duração, porque uma organização desse tipo só

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pode ter vida e eficácia à base de uma agitação geral de excepcional intensidade (Idem: 250).

O primeiro movimento operário de grande envergadura política foi o Cartismo, surgido a

partir de 1835. Este movimento se apoiava na Carta do Povo, elaborada em 1837-1838, que continha reivindicações de caráter democrático. Entre as reivindicações defendidas pelo Cartismo se destacavam: a) sufrágio universal para todos os homens maiores, mentalmente sadios e não condenados por crime; b) renovação anual do Parlamento; c) remuneração para os parlamentares, para que indivíduos sem recursos pudessem exercer mandatos; d) eleições por voto secreto, para evitar a corrupção e a intimidação pela burguesia; e) colégios eleitorais iguais, para garantir representações eqüitativas; f) supressão da exigência da posse de propriedades fundiárias como condição para a elegibilidade, de modo que qualquer eleitor pudesse se tornar elegível.2

A essas reivindicações democráticas quanto ao voto e ao sistema eleitoral existente na

sociedade burguesa, buscando aprofundar as formas de participação política dos trabalhadores ligaram-se as consignas eminentemente de classe, que tratavam das condições de vida e de trabalho da classe operária, como a redução da jornada de trabalho para dez horas, a obtenção de condições mais suportáveis de trabalho, a proteção legal dos trabalhadores diante do capital, aumento de salário, segurança no trabalho e a supressão da lei contra os pobres. Era propriamente este programa que levava os operários a se chocarem com os capitalistas, tendo em vista que era produto das contradições de interesses materiais, das relações sociais de exploração a que os trabalhadores estavam subsumidos na sociedade. A Carta do Povo era apenas o meio para a conquista do bem-estar social e não o fim do movimento.

Numa passagem esclarecedora, Engels alerta que nas reivindicações relativas às condições sociais dos trabalhadores pelo Cartismo se encontra a diferença entre a democracia cartista e todas as formas de democracia política burguesa até hoje existentes. O cartismo tem uma natureza essencialmente social. Os seis pontos, que tudo representam para a burguesia radical e que, quando muito, implicarão reformas constitucionais, para o proletário não são mais que meios: “O poder político é o nosso meio; a nossa finalidade é o bem-estar social” – essa é a palavra de ordem eleitora claramente formulada pelos cartistas (2007:268-269).

Enquanto o Cartismo permaneceu no nível das reivindicações democráticas, para ele migrou

uma parcela da pequena-burguesia radical, que tinha interesse na defesa do sufrágio universal. Os embates no interior do movimento entre a pequena-burguesia, que tentava enquadrá-lo nos limites da institucionalidade, e o operariado, que associava as consignas democráticas às econômicas, se tornara constantes até levar à divisão do movimento. A partir de 1837, desenvolveram-se no âmbito do movimento tendências insurrecionais. O estopim da divisão se deu na Convenção Nacional de 1843, quando os membros pequeno-burgueses exigiram a supressão nos estatutos da Associação de qualquer referência à Carta, por a mesma lembrar a violência revolucionária, manifestada nas lutas anteriores dos operários. A pequena-burguesia rompida formou então outro movimento que se chamou Associação pelo sufrágio completo (Complete Suffrage Association), com uma plataforma programática essencialmente democrático-burguesa.

O movimento cartista foi muito importante na história da organização política da classe

operária, tendo em vista que, em seu seio, se conformaram tendências de comunismo eminentemente proletário. Constituiu-se também em espaço de concretização das formas de lutas dos trabalhadores, como greves, ocupações, sublevações, reivindicações, manifestações etc. Sua experiência demonstrou claramente o conflito entre as posições proletárias e as pequeno-burguesas. A associação entre as reivindicações de classe e as demandas políticas demarcou os horizontes que separam as tendências que lutam simplesmente pela ampliação de direitos políticos no interior das relações sociais dominantes, sem questionarem as bases da dominação de classe, e as que ligam a luta por direitos à necessidade de defender a vida e melhores

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condições de trabalho para o proletariado, que levavam freqüentemente a choques com os capitalistas.

Por isso, o movimento teve de enfrentar processos, ataques, perseguições, pressão e uso da

violência estatal e dos patrões. Associadas a essas retaliações governamentais, da justiça e dos capitalistas, irromperam divergências internas entre grupos, personalidades e direção, manifestando-se tanto com relação à fragilidade quanto à ação unitária e às táticas utilizadas pelo movimento na preparação das ações. Mas, mesmo diante dessas adversidades, o período em que o movimento cartista esteve atuante foi frutífero de conquistas democráticas e sociais, podendo ser citadas as seguintes: a primeira lei de proteção ao trabalho de crianças (1833), a lei relativa ao trabalho de crianças e mulheres nas fábricas (1842), lei da jornada de trabalho de dez horas (1847), lei de imprensa (1836), lei de reforma do Código Penal (1837), lei de supressão dos direitos sobre os cereais (1846) e lei da associação política (1846), além de ter tecido uma articulação de fortes sindicatos, cooperativas e um espírito internacionalista (Beer, 2006:454). Os problemas que atingiram o Cartismo, interna e externamente, levaram à desagregação do movimento a partir de 1848.

Além do movimento cartista, destacou-se também na primeira metade do século XIX a Liga

dos Comunistas. Os antecedentes desta organização remontam à Liga dos Proscritos que se originou da atividade de emigrados alemães, que lutavam pelas liberdades democráticas e pela unificação da Alemanha. Devido às perseguições e a repressão da aristocracia e do clero, os ativistas se dirigiram a Paris, onde receberam apoio de republicanos e socialistas. Os dois principais dirigentes da Liga dos Proscritos foram Theodoro Schuster e Jacob Venedey.

Através do órgão O Proscrito, divulgavam as suas opiniões sobre os problemas que os

preocupavam. As posições dos dois dirigentes não eram homogêneas, tendo em vista que enquanto Venedey era um democrata, Schuster tinha uma posição mais claramente social, participando de uma sublevação armada em julho de 1830. Vanedey, ao contrário de Schuster, apostava no fomento de cooperativas, com o apoio do Estado. Essas divergências levaram à saída de Vendeday, entretanto continuaram os conflitos internos na Liga dos Proscritos entre a ala revolucionária e internacionalista de Schuster e a parte limitadamente democrática. As lutas internas levaram à cisão da ala revolucionária que, sob a direção de Schuster, acabou por fundar a Liga dos Justos, em 1836. Posteriormente, Schuster foi substituído por outro emigrado alemão chamado Weitling, um artesão que conhecia as tendências e idéias comunistas, presentes no movimento operário da época. A obra principal do dirigente da Liga dos Justos se intitulava A humanidade como ela é e como deveria ser, publicada em 1838. Juntamente com Weitling, destacaram-se Karl Schapper, Bauer, Joseph Moll, Hermann Everberck, Germann Maurer.

Os membros da Liga organizaram em 1845, em Londres, a Associação Cultural dos

Operários Alemães através da qual realizavam o trabalho de articulação entre inúmeros operários de vários países, que se encontravam naquela cidade. Da mesma forma, acompanhavam os debates, as polêmicas e os avanços da teoria social comunista na Europa, inclusive as análises de Marx e Engels. Quando se encontrava em Bruxelas, na Bélgica, Marx organizou um Comitê de Correspondência, que fazia um trabalho semelhante ao dos membros da Liga dos Justos, na aproximação e socialização das idéias socialistas. Nesta oportunidade, manteve contato estreito com os membros da organização, com a qual debatia as suas próprias idéias. O fato é que Moll foi designado pela direção da entidade, em 1847, para contatar pessoalmente com Marx e Engels, a fim de aproximá-los às atividades da organização.

Engels participou do congresso da Liga dos Justos em meados de 1847 e Marx fora

representando por seu amigo Willian Wolf. A partir da influência das posições de Marx e Engels, a Liga dos Justos se transformou em Liga dos Comunistas, e, em lugar das antigas bandeiras, circunscritas à busca de uma justiça social abstrata e da realização dos direitos humanos, inscreveu em seus documentos a palavra de ordem: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Marx compareceu ao segundo congresso, realizado no final do mesmo ano.

Segundo Beer, o segundo congresso da Liga dos Comunistas adotou os seguintes estatutos:

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1.O objetivo da Liga é derrubar a burguesia, elevar o proletariado à situação de classe dominante, suprimir a velha sociedade baseada na dominação de classe e instaurar uma sociedade nova, sem classes e sem propriedade privada. 2. Para fazer parte da Liga é necessário preencher as seguintes condições: a) viver e agir de acordo com as finalidades da Liga; b) ser enérgico e abnegado na propaganda; c) aderir aos princípios do comunismo; d) não fazer parte de qualquer associação anticomunista, política ou nacional; e) submeter-se às decisões da Liga; f) manter absoluta discrição acerca de todas as questões da Liga; g) ser aceito unanimemente por todas as seções da Liga. 3. Todos os membros da Liga devem se considerar irmãos e devem se ajudar mutuamente, em caso de necessidade (2006:520-21).

A pedido da Liga, Marx foi encarregado de redigir um documento que sintetizasse as

principais posições da nova organização proletária e fizesse um balanço dos debates em torno das concepções e correntes atuantes no movimento social. Trata-se de um dos mais importantes documentos do movimento operário internacional, O Manifesto Comunista, de 1848. Este documento histórico, que influenciou as idéias e a luta socialista em todo o mundo, veio a lume no momento em que estourou a revolução de 1848 na Europa.

Por conta dos processos revolucionários, os membros da Liga dos Comunistas se

empenharam em intervir na organização das ações políticas nos países em que se encontravam os seus membros. Depois das derrotas de várias insurreições, a burguesia, associada aos setores oligárquicos, e seu Estado responderam com a contra revolução: perseguições, processos, prisões, expulsão etc. Inúmeros revolucionários se encaminham a Londres, onde tentaram reerguer a Liga.

Marx e Engels, que haviam tirado lições valorosas do processo revolucionário, entre as

quais, de que uma nova revolução não seria fruto das boas intenções idealistas dos militantes, mas de uma verdadeira articulação de elementos objetivos (crise econômica) e subjetivos (desenvolvimento da consciência e da organização proletária) trataram de defender suas posição no interior da Liga. Essa posição de Marx e Engels entrou em choque com a orientação de outros dirigentes como Willich e Schapper, dando ensejo a uma cisão. A sede da organização foi transferida para Colônia, na Alemanha, onde continuou o trabalho de propaganda das idéias socialistas e organizativas. A burguesia reagiu com os famosos processos contra os comunistas de Colônia e prisão de revolucionários. Esta situação levou à dissolução da Liga dos Comunistas.

Depois de 1848, o capitalismo ingressou numa fase de crescimento econômico, que,

associada à repressão geral logo depois dos levantes revolucionários na Europa (que durou até praticamente o fina da década de 1850), desorganizou o movimento operário e impôs um período de calmaria na luta de classes. Os comunistas, inclusive Marx, tiveram de enfrentar processos na justiça burguesa, a pressão do Estado e da imprensa dominante. Contra eles foram sacadas as mais horrendas acusações, numa tentativa de desmoralizá-los publicamente, incitando o medo e a desconfiança entre os operários. De fato, o movimento operário só tomou novo fôlego nas décadas seguintes, após derrotas reiteradas.

Passado esse longo período de desorganização e derrotas, o movimento operário começou

a se erguer novamente, desta feita em escala internacional. Para tanto, em 25 de setembro de 1864, formou-se a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), também conhecida como a Primeira Internacional. A sua fundação ocorreu em Londres e dela participaram delegações e representantes de países como Inglaterra, Alemanha, Itália e França. Na Internacional eram confrontadas idéias e posições concretas de grupos radicalmente diferentes, como os anarquistas (adeptos em particular de Proudhon e Bakunin) e os marxistas. Pelas suas profundas diferenças de análise política e econômica, bem como quanto à tática e à estratégica a serem postas em práticas pelas organizações vinculadas à Internacional, não tinham como se harmonizar, por mais que ambos se identificassem com o comunismo e o tivessem como objetivo final de suas lutas.

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Até praticamente 1872, a organização se manteve firme, procurando articular os programas, movimentos, ações, atividades e manifestações internacionalmente. As principais bandeiras defendidas pela Internacional eram: organização do proletariado em partido de classe, luta pela legislação social, luta contra a diplomacia secreta, união da classe operária em todos os países, extinção do domínio de classe, libertação econômica da classe operária, socialização do solo e dos meios de transporte. Essas consignas representavam um enorme avanço para a luta proletária e tornaram-se o foco de disputas entre as tendências socialistas, que se aproximam ou se distanciavam delas. Foram realizados cinco congressos da Internacional: Genebra (1866), Lausanne (1867), Bruxelas (1868), Basiléia (1869) e Haia (1872). Os conflitos no interior da Internacional levaram à sua cisão no Congresso de Haia, a transferência de sua sede para Nova York e desaparecimento formal em 1876.

Durante a vigência da Internacional ocorreu um fato marcante na história do movimento

operário: a Comuna de Paris, em 1871. A França encontrava-se mergulhada num conflito com a Alemanha, enquanto a classe operária sentia na pele as conseqüências sociais da guerra franco-prussiana. Marx retratou esse acontecimento na obra A Guerra Civil na França, que, na verdade, compõe-se de um conjunto de manifestos aprovados pelo Conselho Geral da AIT.

A sublevação comunal representou a primeira tentativa revolucionária do operariado de

constituir uma sociedade diferente da dominação burguesa. Apesar do exíguo tempo em que os trabalhadores, liderados por grupos socialistas, se mantiveram no poder, da proclamação da Comuna em 18 de março de 1871, passando por sua eleição pelo sufrágio universal em 26 de março e a sua derrota em maio do mesmo ano, tomaram medidas inéditas, que, em seu conjunto, jogaram luzes na compreensão do processo revolucionário, da transição do capitalismo ao socialismo e quanto ao papel da direção política do movimento. A comuna foi desagregada pela burguesia por meio de um banho de sangue, tortura, prisões, processos e expulsão dos rebelados.

Entretanto, de maneira geral a AIT havia cumprido sua função essencial, de servir como

instrumento de reorganização nacional e internacional do proletariado. Sua intervenção nos acontecimentos mais importantes da época, em particular na Comuna de Paris, representou um avanço, face a apatia reinante no período anterior. A presença da Internacional foi a expressão do caráter mundial da luta socialista e da classe fundamental da sociedade burguesa, qual seja, o proletariado.

Diferentemente das burguesias nacionais que, apesar dos interesses comuns em torno da

exploração da força de trabalho e da manutenção de sua dominação, se enfrentam numa concorrência encarniçada por mercados e por lucros, o proletariado é uma classe social que se construiu concomitantemente com o capitalismo industrial, produz a riqueza social específica da sociedade burguesa, através da extração e apropriação privadas da mais-valia e não pode se libertar completamente desse estado de submissão e alienação a não ser destruindo as bases de sua exploração, qual seja a propriedade privada.

Desde o Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels já tinham clara a idéia de que a

classe operária tinha de se organizar nacional e internacionalmente em partido de novo tipo. Nas palavras dos dois revolucionários,

A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais sólida, mais poderosa. Aproveita-se das divisões internas das divisões internas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra (2002b:48).

O partido operário de base marxista, com apoio na experiência da Internacional, foi fundado

por Wilhelm Liebknecht (1826-1990) e August Bebel (1840-1913), ambos discípulos de Marx, em 1869. Não obstante, antes mesmo do partido marxista aparecer, Ferdinand Lassalle (1825-1864)

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havia fundado em 1863 a União Geral dos Trabalhadores Alemães, da qual foi o primeiro dirigente. A primeira prova dos dois partidos se deu na Guerra Franco-Prussiana, contexto em que os partidários de Lassalle votaram a favor da concessão de créditos de guerra ao governo prussiano. Os marxistas, também chamados eisenachianos, colocaram-se contra os créditos, denunciando o caráter do conflito (guerra de conquista). Por conta de sua postura, os revolucionários foram processados e condenados à prisão.

As duas organizações operárias acompanharam a evolução de sua influência política no

movimento proletário e sua força eleitoral ao longo dos anos seguintes. Para se ter uma idéia desse fato, nas eleições para o parlamento alemão (o Reichstag), de 1871, as duas agremiações obtiveram mais de 100 mil votos, incrementados para 352 mil votos nas eleições de 1874. Os êxitos eleitorais dos socialistas não paravam de crescer: em 1887, receberam 763.200 votos e, em 1889, 1.427.128 votos.

No Congresso de Ghota, de 1875, as duas organizações se unificaram, dando origem ao

Partido Social-Democrata (Sozialdemokratische Partei Deutschlands) unificado. Evidentemente, a fusão de duas correntes como essas deu-se a partir de um programa rebaixado. Marx criticou intransigentemente o oportunismo de membros do partido operário de Bebel e Liebknecht, num documento intitulado Crítica ao Programa de Gotha, mostrando os recuos teóricos e programáticos do partido revolucionário com o objetivo de facilitar a unificação com os lassalleanos, recuo que beneficiava os setores reformistas do movimento socialista. O novo programa sacrificava o internacionalismo proletário em favor de uma emancipação dentro dos marcos do Estado nacional; a abolição do trabalho assalariado e de toda distinção de classe é substituída pela reivindicação de uma ajuda estatal típica do reformismo lassalleano.

O documento de Marx ficou retido pela direção, até que Engels, em 1891, resolveu publicá-lo

na revista Neue Zeit, contra a vontade do grupo dirigente. Depois da análise do novo programa, Marx, claramente irritado com o oportunismo manifestado pelos dirigentes da social-democracia alemã, escreveu uma carta a W. Bracke, em 5 de maio de 1875, tecendo os seguintes comentários:

Rogo-lhe que, depois de lê-las, transmita as anexas observações críticas à margem do programa de coalizão a Geib, Auer, Bebel e Liebknecht, para que as vejam. Estou ocupadíssimo e vejo-me obrigado a ultrapassar em muito o regime de trabalho que me havia prescrito pelos médicos. Não foi, pois, para mim nenhuma ‘delícia’ ter que escrever uma tirada tão longa. Mas, era necessário fazê-lo para que depois os amigos do Partido aos quais são dirigidas estas notas não interpretem mal os passos que terei de dar. Refiro-me a que, depois de realizado o Congresso de unificação, Engels e eu tornaremos pública uma breve declaração fazendo saber que não estamos de acordo com o mencionado programa de princípios e que nada temos a ver com ele (1975:225).

De qualquer forma, iniciava-se nesse contexto, com o estouro da Comuna de Paris e a

construção dos partidos operários, a era das revoluções proletárias e, portanto, da organização do proletariado como partido político. No âmbito do movimento operário europeu intervieram as idéias e correntes socialistas. No Manifesto Comunista, Marx e Engels realizaram uma crítica às principais tendências do socialismo da época, suas idéias, sistemas, projetos e programas que defendiam, além das ações que inspiraram. Diferentemente dos socialistas utópicos, cuja influência era ainda marcante nos movimentos sociais europeus, Marx e Engels não produziram projetos de sociedades perfeitas para serem construídas artificialmente pelos trabalhadores, por fora do movimento operário.

Marx e Engels, como narramos no Capítulo II, percorreram toda uma trajetória de

assimilação dos conhecimentos mais avançados de sua época, da ciência e da filosofia, além das experiências das organizações e correntes socialistas. Suas investigações os levaram a se desgarrar do idealismo jovem hegeliano, elaborando a concepção materialista e dialética da

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história. Além disso, no ano de 1847, Marx realizou uma crítica às concepções de Proudhon, muito influentes na sessão francesa da Liga dos Comunistas, como a criação de um “banco popular” e a “concessão de crédito” para os trabalhadores, como forma de superar a miséria e a opressão sociais.

Os socialistas anteriores a Marx sabiam das contradições e conseqüências sociais do

capitalismo. Observavam a exploração, a miséria, as condições desumanas do proletariado, o desemprego, os processos de alienação etc., mas nem sabiam fundamentar de conjunto a fonte dessas contradições (da miséria das massas e da opulência do capital), nem conseguiam compreender que a superação do atual estado de coisas devia ser obra da classe operária, em aliança com os demais explorados. As tendências socialistas mais avançadas e que se encontravam ligadas ao movimento operário, ora degeneravam em socialismo de Estado (propunham projetos dependentes de financiamento estatal), ora despencavam para o golpismo (ações de grupos isolados), ora se perdiam em propostas claramente adaptáveis à lógica da economia capitalista (como o banco do povo, a concessão de credito, etc.). Nenhuma destas perspectivas rompia inteiramente com o utopismo.

Para Marx e Engels, o socialismo não era um projeto utópico de sociedade, nem uma

experiência localizada, isolada ou conformada às regras da economia de mercado. Não se tratava de criar na cabeça sistemas socialistas perfeitos, acabados, prontos para serem executados. O socialismo, como teoria social, era produto da assimilação dos conhecimentos mais avançados que a humanidade havia produzido. Como movimento real, estava ligado indissoluvelmente às contradições da sociedade capitalista, que engendravam a necessidade de organização e resistência à exploração pela classe explorada, atualmente pela classe operária. Portanto, o socialismo não era para Marx e Engels um ideal de sociedade a ser atingido na teoria, na especulação filosófica. Era (e ainda é) a superação das atuais relações de produção, calcadas na propriedade privada e na exploração social.

Marx e Engels tomaram sempre o cuidado de não se perder em divagações sobre uma

sociedade socialista do futuro. Em geral, quando trataram desse tema, partiram sempre da análise das contradições e das possibilidades abertas pelo desenvolvimento da sociedade capitalista, como a ocorrência de crises cíclicas, o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, o caráter social da produção e apropriação privada dos produtos do trabalho, a concentração dos meios de produção e a centralização do capital em escala nacional e internacional, o papel do Estado na salvaguarda dos interesses do capital nos momentos de normalidade (garantindo a ordem, a infra-estrutura e as condições legais para o funcionamento do sistema) e de crise, inclusive assumindo setores da atividade econômica não explorados pelo capital, enquanto este estava impossibilitado de fazê-lo por sua conta e risco.

Neste sentido, a concepção de socialismo marxista se apóia inteiramente numa teoria da

história e na análise crítica da sociedade burguesa atual, de suas contradições e das possibilidades de sua superação. Toda a obra de Marx e Engels desde que fundaram o marxismo, foi no sentido de forjar uma teoria capaz de produzir os instrumentos políticos e organizativos e de compreender a realidade que se deseja transformar. E mais: a elaboração, aprofundamento e retificação da teoria se deram em consonância com a luta social. Para Marx e Engels, nenhuma classe dominante deixa o poder sem opor resistência. Por isso, não acreditando nas saídas institucionais para o socialismo, por mais democrática que seja a organização estatal, cuidaram de organizar politicamente a classe operária, de construir o partido revolucionário do proletariado.

A classe operária é para Marx e Engels uma classe potencialmente revolucionária, a única

capaz de confrontar o capital na sua raiz, nas bases de sua existência, a propriedade privada, a exploração da força de trabalho, a produção da mais-valia e a apropriação privada da riqueza socialmente produzida. As classes sociais são caracterizadas segundo o papel que cumprem no processo de produção e na organização social. O proletariado é, assim, a classe que se criou a partir do avanço do capitalismo industrial, tem sua existência articulada à do capital. Para destruir a sua condição de classe explorada, precisa superar as bases de sua exploração, o capital. Mas a classe operária deve construir, pela sua experiência, por suas reivindicações, as condições para

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esta transformação: a organização política e a consciência de classe. Sem as condições objetivas, acima descritas, e as condições subjetivas (organização e consciência) as situações revolucionárias se perdem em levantes desorganizados e espontâneos, passíveis de retrocessos, diante das pressões burguesas.

Em segundo lugar, o socialismo tem um caráter internacional. Engels, no texto Princípios do

Comunismo, escrito um pouco antes do Manifesto Comunista de 1848, respondendo à pergunta se seria possível o comunismo num único país, escreveu o seguinte:

Não. Ao criar um mercado mundial, a grande indústria trouxe já todos os povos da Terra, e especialmente os povos civilizados a uma relação tão íntima uns com os outros que ninguém é independente do que acontece aos outros. Além disso, ela tem coordenado o desenvolvimento social dos países civilizados a um tal ponto que em todos eles a burguesia e o proletariado se tornaram as classes decisivas e a luta entre elas a grande luta do dia-a-dia. Segue-se que a revolução comunista não será meramente um fenômeno nacional (...). É uma revolução universal e terá conseqüentemente um alcance universal (1980:133).3

Marx, em março de 1850, em documento intitulado Mensagem do Comitê Central à Liga dos

Comunistas, observou que, enquanto os partidos e setores democrático-burgueses desejavam encerrar as transformações sociais, econômicas e políticas no estreito limite em que obtêm concessões e vantagens no interior do sistema capitalista, os interesses e tarefas dos trabalhadores consistiam em

tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só num país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova (2006:09).

A revolução socialista é, portanto, a parteira da nova sociedade. É a mediação necessária

para que o proletariado e os explorados possam se constituir como classe dominante e iniciar o processo tortuoso de construção das condições do comunismo. Marx chamou o período de transição do capitalismo ao socialismo de ditadura do proletariado. Certamente, a palavra ditadura pode, à primeira vista, causa furor aos mais fervorosos defensores da democracia abstrata. Para Marx, a democracia só pode ser compreendida de um ponto de vista de classe, e a atual é apenas a forma mais compatível e suave da ditadura do capital sobre o trabalho.

A democracia na sociedade capitalista é a forma por excelência da dominação burguesa,

porque passa a impressão de que os trabalhadores e demais explorados são livres para decidir as suas vidas. Na verdade, a vida e o trabalho são controlados pelas relações sociais de produção, seus limites são estabelecidos pelas condições materiais de existência social. O Estado, as instituições e o direito estabelecem os limites e as possibilidades jurídico-políticas às ações dos indivíduos, grupos e organizações.

A base do poder operário, portanto do domínio do proletariado, deve ser suas organizações

(soviets, conselhos, assembléias etc.) e os explorados têm dado prova da sua criatividade quando se trata de criar e recriar seus órgãos de luta. De outro lado, o domínio do proletariado é a forma

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mais profunda da democracia proletária, no período em que se tenta reconstruir a sociedade, após a tomada revolucionária do poder, sob novas bases, colocando a economia, a ciência, os conhecimentos, a técnica e as condições materiais a serviço das necessidades humanas. Assim sendo, a ditadura do proletariado não é o oposto da democracia proletária, assim como a democracia formal, nas condições econômico-sociais da sociabilidade burguesa, não é a antípoda da ditadura, mas uma forma específica de exercício do poder político da classe dominante capitalista, através das instituições e do Estado “democrático de direito”.

Não à toa, a liberdade de expressão, de manifestação e de participação popular na forma

democrático burguesa encontra limites bem concretos nas condições de classe. O Estado, os poderes, as instituições políticas e os patrões só admitem a organização, a manifestação e as ações dos explorados na medida em que não afetam a dinâmica da sociedade e da produção. Logo que a organização e a luta dos trabalhadores, estudantes, camponeses e demais explorados colocam em dúvida a forma de dominação de classe, por mais democrático que seja o Estado, são respondidas com a repressão, da mais sutil a mais aberta. Todas as regras da democracia atual são feitas para estabelecer e regular as condições de exercício do poder e da participação formal da população, tendo como foco a manutenção das regras do jogo da sociedade capitalista e a proteção da propriedade privada.

A democracia proletária, que perpassará todas as artérias da forma de transição ao

socialismo, deve ser a mais ampla, profunda e expansiva, criando efetivamente as condições para a determinação, pela esmagadora maioria do povo, dos destinos da sociedade, das necessidades a serem atendidas, das condições, processo, objetivos e resultados da produção social, enfim da organização da economia e das condições de trabalho. Os resultados a que chegaram a ciência, os conhecimentos e a técnica permitem aos indivíduos, em novas condições sociais, planejarem as atividades econômicas, de modo a garantir o exercício de ações conscientes, abrandar a atividade de trabalho e criar tempo livre para a realização de atividades mais nobres, do ponto de vista da realização das capacidades e aptidões humanas, como a arte, a ciência, a cultura, o conhecimento, o lazer e a convivência coletiva.

Marx afirmou, a partir de todos os resultados a que chegou a sociabilidade atual, que a

sociedade comunista poderia se apoiar na forma do trabalho associado, em que os trabalhadores teriam, concretamente, possibilidade de organizar, planejar, debater, executar e controlar todos os processos das relações de trabalho e da produção social. Portanto, o trabalho associado se caracteriza pela coletiva determinação dos processos em que se realizará o trabalho, a produção e a repartição da riqueza social. Mas não apenas isso. O trabalho associado, sob a forma da cooperação entre os trabalhadores, terá condições de aprofundar a participação e controle efetivo pelo conjunto da sociedade, através de suas organizações sociais e políticas, de todo o evolver da vida social e econômica.

Trata-se de uma transformação radical (pela raiz) da forma atual do trabalho, o trabalho

assalariado, das relações de produção e apropriação dos produtos do trabalho e dos meios sociais de produção. Sob a forma do trabalho associado, os produtos do trabalho humano, na relação metabólica dos humanos com a natureza, não só serão postos conscientemente, mas a sua finalidade será proporcionar aos indivíduos e à coletividade a satisfação das suas necessidades essenciais, a progressiva redução do tempo socialmente necessário para a produção total, bem como o direcionamento do tempo livre e das nossas energias para a realização dos humanos, como seres omnilateriais.

Hoje, mais do que no século XIX, quando Marx e Engels escreveram suas teses sobre o

socialismo, as possibilidades colocadas para a superação da sociedade capitalista são incomparavelmente mais nítidas. Daí a atualidade do pensamento marxista, no que se refere à compreensão das tendências atuais, como da materialização da superação da forma capitalista de se organizar a sociedade, pelos explorados, no seio dos quais deve atuar a militância socialista.

Da discussão sobre as condições materiais, luta de classes e socialismo, podemos dizer

então:

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a) as desigualdades econômico-sociais geradas pelas contradições da sociedade capitalista levam os explorados, em particular, a classe operária, a se organizar e lutar por condições mais favoráveis de vida e trabalho, contra a exploração burguesa. Nessa luta, os explorados constroem suas organizações (associações, sindicatos, partidos, internacionais etc.) e formas de luta (greve, manifestações, ocupações, piquetes etc.), além dos seus canais de expressão ideológica (jornais, revistas etc.). Em princípio, a luta operária toma um caráter economicista e sindical, de reivindicação de direitos e conquistas no marco do capitalismo, tendo em vista limitar as formas de exploração social à qual os trabalhadores estão submetidos, mas não questionam o sistema de assalariamento enquanto tal, as causas de sua exploração e miséria, portanto, não coloca em primeiro plano a própria superação do modo de produção capitalista;

b) a experiência da luta operária, a intervenção das idéias socialistas revolucionárias contra

a propriedade privada e a exploração de classe, a difusão da revolução proletária como tarefa a ser cumprida para a superação completa da exploração, que o capital impões aos explorados, a formação das organizações políticas, opera a fusão das idéias revolucionárias com o movimento operário e socialista, criando as condições para a transformação da luta puramente econômica em luta política aberta contra os capitalista;

c) o socialismo é, como diz Marx, expressão do movimento histórico que se traduziu na

sociedade capitalista, com suas contradições internas, e no advento da classe operária, como classe com potencial revolucionário, capaz em conjunto com os demais explorados de confrontar o capital e superar definitivamente o capitalismo. Neste sentido, o socialismo não é nem um ideal utópico a se atingir, nem muito menos um projeto arquitetado nas cabeças de bem pensantes engenheiros sociais, como ocorria com os socialistas utópicos pré-marxistas, mas produto das contradições geradas pelo próprio modo de produção capitalista, cujo conflito histórico entre as forças produtivas e as relações de produção requer um desenlace através da revolução social. O desenvolvimento da ciência e da técnica, por outro lado, fortalece a necessidade da revolução e a viabilidade de outra formação social: o socialismo.

NOTAS

1Sobre as questões analisadas neste capítulo, conferir especialmente as obras de Marx e Engels que tratam das tendências socialistas, das organizações operárias e do movimento do proletariado de sua época, em especial as seguintes: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Do socialismo utópico ao socialismo científico, Anti-Dühring, Contribuição à história da Liga dos Comunistas, todos de Engels; Miséria da filosofia, As lutas de classes na França, O 18 Brumário, A guerra civil na França, Crítica ao programa de Gotha e de Erfurt, Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas, de Marx; Manifesto comunista, de Marx e Engels. Para aprofundar a temática da luta de classes e do socialismo, ver os seguintes autores: Émile Bottigelli, A gênese do socialismo científico (São Paulo, Mandacaru, 1974); Guillermo Lora, Historia de las cuatro internacionales (La Paz, Massas, 1989); Werner Hofmann, A história do pensamento do movimento social dos séculos 19 e 20 (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1974); Ernest Mandel, O lugar do marxismo na história (São Paulo, Xamã, 2001) e Introdução ao Marxismo (Lisboa, Antídoto, 1978); David McLellan, Karl Marx: vida e pensamento (Rio de Janeiro, Vozes, 1990); Franz Mehring, Karl Marx (Lisboa, Editorial Presença, 1976); David Riazanov, Marx-Engels e a história do movimento operário (São Paulo, Global, 1984); Iring Fetscher, Karl Marx e os marxismos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970); M. Rubel, Karl Marx: ensayo de bibliografia intelectual (Buenos Aires, Paidós, 1970); Michael Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx (Petrópolis, RJ, Vozes, 2002); V. I. Lênin, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo (São Paulo, Global, 1979); Karl Kautsky, As três fontes do marxismo (São Paulo, Centauro, 2002); Márcio B. Naves, Marx: ciência e revolução (São Paulo, Moderna, Campinas, Editora Unicamp, 2000); Wolfgang Abendroth, A história social do movimento trabalhista europeu (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977); Max Beer, História do socialismo e das lutas sociais (São Paulo, Expressão Popular, 2006); Fernando Claudín, A crise do movimento comunista (Rio de Janeiro, Global, 1985); Mauro Luis Iasi, Ensaios sobre consciência e emancipação (São Paulo, Expressão Popular, 2007).

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2 Engels cita esse conjunto de reivindicações da Carta do Povo na obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2007:262). Também encontramos uma análise do movimento cartista e de suas reivindicações em Max Beer, História do socialismo e das lutas sociais (2006).

3Também em A Ideologia Alemã, Marx e Engels ressaltam que o “proletariado só pode

existir, portanto, em termos de história universal, assim como o comunismo, que é a sua conseqüência, só pode se apresentar enquanto existência ‘histórica universal’. Existência histórica universal dos indivíduos, em outras palavras, existência dos indivíduos diretamente ligados à história universal” (2002a: 33).

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Marx Atual? Textos sobre a vigência do marxismo na contemporaneidade

Sandra M. M. Siqueira - Francisco P. Silva

Capítulo VIII Marxismo e lutas sociais no Brasil1

Assim, em 1922, surgia o Partido Comunista, oriundo de uma ala anarquista, sob a influência direta da Revolução Socialista de Outubro (Hermínio Linhares, Contribuição à história das lutas operárias no Brasil)

Neste Capítulo, pretende-se esboçar alguns elementos sobre a história do marxismo e das

lutas sociais no Brasil, seus avanços, retrocessos e perspectivas atuais. Essa história não é a história de um único partido (do Partido Comunista do Brasil–PCB, por exemplo) ou de uma única tendência de filiação à teoria de Marx e Engels, como muitas vezes tentou-se passar, encarando-se, por exemplo, as correntes trotskistas como algo menor, sem relevância histórica. Trata-se, na verdade, da rica e complexa história da luta de classes e das tendências, correntes, organizações e partidos que nela atuaram, no seio da qual se confrontaram idéias e práticas diferenciadas.

Uma segunda questão fundamental é que o Brasil, apesar das suas particularidades, é parte

da economia mundial capitalista, e, como tal, constitui um dos elos da dinâmica contraditória e complexa do movimento internacional do capital, de modo que a compreensão dos acontecimentos sociais, políticos e econômicas da história do país deve estar articulada à história mundial, ainda mais se tratando da história do marxismo e das lutas sociais.

Neste sentido procura-se avaliar: como as idéias marxistas chegaram ao país? Como se deu

a formação do Partido Comunista (PCB), sua trajetória e suas posições diante dos grandes problemas da luta de classes? Qual a relação desde partido com a Rússia e a Terceira Internacional? Como se deu a formação da oposição de esquerda trotskista, sua trajetória e posições políticas? Quais os reflexos da crise do stalinismo no Brasil a partir dos anos 1950? Quais as lições da história da luta armada nos anos 1960-1970 e quais os acontecimentos da luta de classes na recente história do país? Quais as perspectivas e tarefas da luta revolucionária na atualidade? São muitos os problemas e questionamento, comecemos pela difusão das idéias marxistas entre nós.

No Brasil, não se tinha no final do século XIX senão uma visão superficial e pitoresca das

correntes em disputa no socialismo internacional. Sabia-se muito pouco sobre as idéias defendidas pelas tendências socialistas na Europa e sentia-se apenas o eco, por vezes distante, do comunismo. Somente a partir das repercussões da Comuna de Paris de 1871, que o nome de Marx começa a ser citado por escritores, jornalistas e políticos, de forma preconceituosa ou simpática, mas sempre demonstrando antes de tudo um desconhecimento completo ou uma profunda superficialidade quanto às idéias fundamentais dos mentores do socialismo científico e as diferenças em relação às demais correntes do movimento socialista em curso na Europa.

Pacheco destaca que a primeira tentativa de organização de uma comunidade socialista no

Brasil deve-se ao médico francês Benoit-Jules Mure. Seguidor das idéias de Charles Fourier, Mure tentou fundar uma comunidade igualitária em Saí, próxima a São Francisco do Sul, Estado de Santa Catarina. Esta tentativa prolongou-se de janeiro de 1842 a setembro de 1843, quando Mure retorna ao Rio de Janeiro. Outro francês, o engenheiro Louis Leger Vauthier, contratado pelo governo de Pernambuco, estabeleceu-se no Recife, onde desenvolveria intenso proselitismo político. A ambos deve-se a formação de grupos intelectuais e o surgimento de publicações socialistas no país. Entre estas a mais proeminente foi O

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Socialista da Província do Rio de Janeiro, lançado a 1º de agosto de 1845, no qual escreviam Mure, João Vicente Martins, seu diretor Manuel Gaspar de Siqueira Rego e outros. A circulação se estenderia até agosto de 1847 (2008:23 e ss.).

Ecos da Revolução de 1848 na Europa teriam chegado aqui pelas páginas de O Progresso,

em 31 de agosto daquele ano. Não obstante, é com a repercussão da Comuna de Paris de 1871 na América Latina, que a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) passou a influenciar intelectuais, ativistas e grupos políticas recém criados em vários países. Na Argentina, como vimos, já na década de 1870 eram criadas as primeiras seções da AIT e na década de 1890 nascia o primeiro Partido Socialista. Juan Bautista Justo, do Partido Socialista havia traduzido O Capital na década de 1890.

No Brasil, entretanto, apesar do nome de Marx ser citado ocasionalmente por alguns

autores, na maioria das vezes se fazia por segundas ou terceiras fontes, em muitos casos de forma distorcida, e mescladas com outras correntes de pensamento como o positivo, o cientificismo e o darwinismo. A influência do pensamento de Augusto Comte e Herbert Spencer no país na segunda metade do século XIX entre a intelectualidade aumentava as deformações na compreensão do que se passava no movimento socialista internacional e das diferenças essenciais entre as idéias de pensadores anarquistas (como Proudhon e Bakunin) e dos fundadores do marxismo.

Algumas passagens da ressonância das idéias e das experiências do movimento operário

em nosso país nas últimas décadas do século XIX são muito interessantes. A pré-história das idéias socialistas e de sua repercussão em nossas terras foram registradas por Konder (2009:95-149). Logo após os eventos da Comuna, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Manuel Francisco Correa procurava tranqüilizar a classe dominante e os parlamentares com a promessa de que todo e qualquer communard que aportasse no Brasil, fugindo da repressão na França, seria extraditado para responder pelos crimes cometidos. O deputado Machado Freire Pereira da Silva podia dizer, então, que o comunismo era o “cancro do mundo moderno”. Mas há também expressadas de simpatia com a Comuna, como as manifestações pelo político republicado mineiro Lúcio de Mendonça, que chegou a incluir Marx entre os maiores políticos daqueles tempos. No jornal do Partido Liberal, A reforma, afirmou-se em 1871 a seguinte notícia:

O sr. Karl Marx, chefe da Internacional, cuja sede é em Londres, acaba de escrever ao Times, declarando que a asserção apresentada no Daily news de que a associação (refere-se à AIT) recomendou aos rústicos franceses que incendiassem os palácios é de todo o ponto falsa, afirmando, outrossim, que todas as proclamações contendo infames sugestões, publicadas em Paris em nome da Internacional, depois de 18 de março, são apócrifas (Idem:97).

O jornal republicano Os seis de março, reproduzia em 17 e 29 de março de 1872 uma

matéria publicada originalmente na revista Ilustração espanhola, em que descreve Marx da seguinte forma:

Sua larga fronte revela um pensador. Seu rosto, emoldurado por grandes e abundantes cabelos, denota nas rugas profundas e numerosas as suas meditações e graves preocupações; sob a testa se vêem umas sobrancelhas espessas, que sombreiam uns olhos pardos, afundados em suas órbitas e cintilando através dos cílios roxeados pelo estudo e pelas vigílias. O nariz, largo em sua base como o de Balzac – indício de grandes faculdades intelectuais, segundo os fisionomistas – desenha-se sobre duas faces cheias; dos extremos do nariz descem dois fundos sulcos, que vão perder-se nos lábios grossos e sensuais, e meio cobertos por um abundante bigode a confundir-se com uma barba grisalha, bastante espessa e quase patriarcal (Idem:99).

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A revista Echo Americano, editada no estrangeiro (em Londres), em língua portuguesa, por Luiz Bívar e Melo Morais Filho, datada de 20 de fevereiro de 1872, traça a seguinte síntese das idéias de Marx:

A doutrina de Karl Marx se distingue dos sistemas dos outros socialistas. Rejeita todas as concepções e deduções doutrinárias e procura demonstrar que a sociedade atual possui os germes de uma sociedade nova; que esta sociedade elabora-se por meio da luta de classes que, depois de ter passado pela ditadura do proletariado, se fundirão finalmente na Associação dos Produtores Livres, baseada sobre a propriedade coletiva do terreno e dos instrumentos de trabalho (Idem:100).

Tobias Barreto citou o nome de Marx em 1874, 1882 e 1883, este último em discurso

proferido por ocasião de uma formatura de advogados na Faculdade de Recife. Numa passagem do seu discurso, Tobias Barreto cita Marx, avaliando que o filósofo alemão “diz uma bela verdade quando afirma que cada período histórico tem as suas próprias leis. Logo que a vida atravessa um dado período evolutivo, logo que passa de um estágio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis diferentes”. Em seguida, Tobias completa com uma idéia evolucionista, bem a gosto de Herbert Spencer: “O organismo social brasileiro não é o organismo social inglês. Esta proposição, que parece uma tolice por excesso de verdade, não é todavia insignificante para firmar a idéia de que o nosso regime político não pode se modelar pelo regime britânico” (Konder, 2009:102). Tobias rejeitava o socialismo.

Rui Barbosa chega a citar o nome de Marx de passagem e manifesta uma posição de

antipatia frente aos socialistas. Clóvis Bevilacqua cita o fundador do marxismo em 1886, numa obra intitulada Estudos de Direito e Economia Política, comparando Marx a Lassalle, como um reformista que se propõe arrancar do Estado migalhas para distribuir aos pobres. Clóvis Bevilacqua era influenciado por Spencer e chega a dizer: “O pecado original do socialismo é querer nivelar as classes sociais, quando é certo que é de sua desigualdade, da diversidade de suas funções que resulta a harmonia e o progresso humano” (Idem:104). Já em Criminologia e Direito, de 1896, Clóvis aproxima Marx a Schaeffle, como autores de uma mesma tendência que sacrificaria o indivíduo à sociedade. Silvio Romero cita Marx em 1894 e 1896, a primeira associando-o à Segunda Internacional, e a segunda, como adepto de uma concepção despótica do Estado “anterior e superior à nação”.

O filósofo Farias Brito também cita Marx por fontes indiretas (através de Enrico Ferri e Benoit

Malon) no segundo volume de sua obra A finalidade do mundo, de 1899. Apesar de mostrar respeito à teoria marxista, rejeita a concepção materialista e a forma da resolução da questão social proposta pelo marxismo: “O ponto de vista dos socialistas é: a questão social deve ser resolvida politicamente, em nome do interesse. O meu ponto de vista é: a questão social deve ser resolvida religiosamente, em nome de uma idéia” (Idem:106). Machado de Assis, por outro lado, cético tanto às propostas revolucionárias quanto às tentativas de organização política do proletariado, em crônica publicada na Gazeta de notícia, em 13 de janeiro de 1885, cita Marx, ao lado de Bebel, Cabet e Proudhon, quando descreve, a seu modo literário, a chegada das idéias socialistas ao Brasil (Idem:107).

Nesse clima intelectual e de pouco desenvolvimento do proletariado e do movimento

operário, o marxismo não poderia se desenvolver plenamente em nosso país em articulação com a militância socialista. Mesmo no movimento operário nascente do final do século XIX, o nome de Marx era associado ao coletivismo reformista, como se observa do quinzenário A questão social, de 1895, do Centro Socialista de Santos (SP), que tinha entre seus quadros Sóter de Araújo, Carlos de Escobar e Silvério Fortes, considerado por Astrojildo Pereira, como o “primeiro socialista brasileiro de tendência marxista” e “pioneiro do marxismo no Brasil” (Idem:111). A influência das idéias marxistas também se fariam presente nas posições de Antonio Piccarollo, colaborador do jornal Avanti, lançado em 1990, e autor da obra Socialismo no Brasil. mas com um viés claramente reformista. Em João Ezequiel de Oliveira Luz, as idéias socialistas se mesclam com teorias cientificistas e cristãs. O social-democrata Mariano Garcia expressava as idéias reformistas de

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transformação gradual nas páginas de Jornal dos Operários, em 1891, Gazeta operário, em 1902 e Tribuna do povo, em 1909. Estevam Estrela, nas páginas de A reforma e Gazeta Operária externava suas idéias excêntricas sobre o pensamento de Marx e a teoria da mais-valia, de forma muito superficial (Idem: 119 e ss.).

O anarquismo e a social-democracia reformista se desenvolveram mais rapidamente que a

teoria revolucionária marxista em nosso país. O país passava por transformações econômicas, sociais e políticas, que expressavam o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e o advento da classe operária à cena histórica nacional e o apodrecimento da estrutura política, econômica e social do período colonial e imperial, baseada fundamentalmente na exploração do trabalho escravo negro e na produção de matérias-primas e produtos agrícolas para exportação. Na divisão internacional do trabalho do capitalismo, o Brasil comparecia até então como fornecedor desses produtos, em geral centrado em ciclos de monocultura, e recebia em troca produtos manufaturados, fabricados pela potente e já bastante desenvolvida indústria européia, em especial a inglesa.

As transformações em curso se expressavam na criação da incipiente e débil indústria e na

proletarização de contingentes enormes de trabalhadores, oriundos da população negra, formalmente liberta da escravidão, mestiça e de levas de imigrantes europeus, compostos por italianos, alemães, espanhóis, portugueses e asiáticos, que assumiam as tarefas ligadas à agricultura, ao artesanato e o trabalho nas manufaturas. As atividades econômicas se concentram em grande medida no eixo Centro-sul. Segundo Pacheco (2008:11 e ss.). O censo de 1890 expressa uma população de 14.333.915 habitantes no Brasil. Dados revelam que em 1901, existiam em São Paulo aproximadamente 50 mil operários, sendo que do total apenas 10% eram brasileiros. No Rio de Janeiro, em 1906, havia 118.770 operários numa população total de 811.223. Entre os anos de 1890 e 1914, realça ainda Pacheco (Idem:28) teriam se instalado no Brasil perto de 7 mil indústrias.

O movimento operário foi até as duas primeiras décadas do século XX dominado

incontestavelmente pelas correntes anarquistas e anarcossindicalistas. As conseqüências do aparecimento da classe operária e das primeiras indústrias se faziam sentir na necessidade de articulação dos explorados por meio de suas organizações (sindicatos, associações e partidos) e formas de luta (manifestações, greves, ocupações etc.). Instigados pelas polêmicas no movimento socialista internacional entre marxistas e anarquistas, os adeptos do anarquismo no Brasil tratavam com desdém as teorias de Marx e Engels e buscavam de difundir os ideais de Bakunin, Proudhon, Kropotkin e Malatesta. Evaristo de Moraes Filho (2007:37 e ss.) relata que em 1903 era criada uma Federação das Associações de Classe, no Rio de Janeiro, que, em 1906, passou a chamar-se Federação Operária Regional Brasileira. Em 1906 se realizou o I Congresso Operário Brasileiro e, em 1913, o II Congresso. Em 1908 surgiu a Confederação Operária Brasileira, a COB, articulando 50 entidades de estados como Rio de Janeiro, Alagoas, Rio Grande do Sul, Bahia e São Paulo, que seria extinta em 1912.

O anarquismo, em suas origens, desprezava as lutas operárias por melhores condições de

vida e trabalho, como ocorrera com as posições expressas por Proudhon em A Filosofia da Miséria e reduzia-se ao culto (e à prática) abstrato do individualismo, presente em Max Stirner. Ambos foram firmemente criticados por Marx nas obras A Miséria da Filosofia e A Ideologia Alemã. Entretanto, ao longo do seu desenvolvimento, o movimento anarquista e anarcossindicalista foi obrigado, pelo avanço e pressão do movimento operário, a conviver com os sindicatos e as greves. Assim, surgem nos primeiros anos do século XX no Brasil, sindicatos como a União dos Foguistas (1903), a Associação de Resistência dos Cocheiros, Carroceiros e Classes Anexas (1906), União dos Operários das Fábricas de Tecidos (1917).

De qualquer modo, os anarquistas em todo o mundo desprezavam a necessidade de

organização do proletariado em partido político, como havia defendido Marx n’O Manifesto Comunista. Assim é que no I Congresso Operário Brasileiro, de 1906, é rejeitada a proposta de constituição de um forte partido operário. Pacheco (2008:29) registra, entretanto, que em 1892 foi criado um Centro Operário Radical e fundado durante a realização do I Congresso Socialista no

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Rio de Janeiro um Partido Socialista do Brasil, dirigido por França e Silva. Sobre esse acontecimento, observa Pacheco (2008:31), Karl Kaustky, líder da Segunda Internacional, informou a Engels da seguinte forma:

Envio-te adjunto um periódico que me remeteram do Rio de Janeiro. Contém um artigo sobre o Partido Operário Brasileiro e seus programa. Lamentavelmente não sei português e por isso, só posso adivinhar aqui e ali algo do seu conteúdo. Quiçá o artigo te interesse... Eu já mencionei uma vez o movimento brasileiro, numa informação baseada em um periódico alemão de São Paulo.

Por sua vez, Engels parece demonstrar dúvidas quanto ao destino dessas organizações,

respondendo o seguinte: “Dei a Ede (Eduard Bernstein) o periódico brasileiro, porém lhe disse que a importância desses partidos sul-americanos está sempre em relação inversa às demonstrações de seus programas” (Idem: Ibidem).

No começo da década de 1920, percebia-se o avanço das relações apitalistas e o

fortalecimento do movimento operário de massa. Conforme Pacheco (2008:13 e ss.) observa-se que o censo de 1920 registrou a existência de 13.569 indústrias no país e um total de 293.673 operários, numa população de 30 milhões de indivíduos. Mais de 50% das industriais haviam surgido entre 1905 e 1919, período que registra também um maior volume de capital empregado, se comparados com as décadas anteriores. De 1915 a 1916 foram instalados 5.950 do total de 13.336 indústrias existentes em 1920. Existiam de 300 a 320 mil operários industriais e entre 1.000.000 e 1.200.000 assalariados no país.

Entre 1917 e 1921 ocorreram no Brasil grandes manifestações e greves operárias de massa,

destacando-se a Greve Geral de 1917, as comemorações do 1º de maio de 1918, de greves de categorias como tecelões, sapateiros e ferroviários em São Paulo, além de greves tecelões, pessoal da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, marítimos e ferroviários, no Rio de Janeiro. Em 1918, formou-se a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Neste mesmo ano, precisamente em 18 de dezembro de 1918, ocorreu um levante operário, quando paralisaram as fábricas têxteis do Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis e Magé, que foi reforçado com o apoio dos trabalhadores da construção civil, metalúrgicos e tecelões. Informados antecipadamente do evento por um traidor do movimento, a polícia e o exército reprimiram violentamente a rebelião. Vários dos dirigentes operários são presos como João da Costa Pimenta, Astrojildo Pereira, Álvaro Palmeira, José Oiticica, Agripino Nazaré, Manuel de Campos e Ricardo Correia Perpétua e, junto com numerosos militantes, são indiciados pela polícia (Pacheco, 2008:48).

O marxismo penetrou efetivamente em nosso país a partir da influência da Revolução Russa

na América Latina. A vitória do proletariado russo teve uma repercussão política internacional e instigou a formação da Terceira Internacional Comunista e de partidos comunistas em numerosos países. Com esse grande acontecimento da história, as idéias de Marx, Engels e dos marxistas russos chegam finalmente em terras brasileiras. O movimento havia passado pela experiência das idéias e das organizações anarquistas e anarcossindicalistas, esgotando-as historicamente. Apesar das conquistas obtidas no período anterior, a experiência anarquista se tornou excessivamente limitada diante do avanço da exploração capitalista, da organização de movimentos de massa e da necessidade de constituição de um partido político operário. Os anarquistas, em processo de debate das suas idéias, chegaram a ensaiar a organização de um Partido Comunista em 1919, que tinha como principais dirigentes e ideólogos Edgard Leuenroth, Antônio Duarte Candeias, Astrojildo Pereira, Otávio Brandão, Fábio Luz, Santos Barbosa, José Madeira, M. de L. Nogueira e José Oiticica (Pacheco, 2008:56 e ss.).

Tamanha foi a repercussão da Revolução Russa e quão confusas eram as informações que

chegavam ao Brasil, que os anarquistas nutriram inicialmente simpatias pela vitória do proletariado russo. Confundiram mesmo a vitória dos bolcheviques com a vitória dos anarquistas. Mas quando começaram a se confirmar s notícias das divergências entre anarquistas e comunistas russos, que

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resultaram nos combates entre os anarquistas, liderados por Nestor Makhno e as tropas do Exército Vermelho na Ucrânia, que colocava contra o poder soviético, naquela época cercado pelas tropas da burguesia russa e incitados pelo imperialismo, começaram as críticas entre anarquistas sobre a Revolução Russa e o Partido Bolchevique. Nas comemorações do primeiro de maio de 1918, comenta Pacheco, ainda era possível se verificar a saudação da revolução pelos anarquistas:

Algumas organizações operárias transgrediram a determinação do chefe de polícia de só comemorar o 1º de maio entre quatro paredes. Os operários em pedreiras saíram com bandeiras vermelhas, da Praça Tiradentes à Estação Central, cantando a Internacional e dando vivas à Rússia, à ‘emancipação do proletariado’ e repudiando a ‘escravidão moderna’. Conduziam faixas com ‘Paz e Liberdade’ e ‘Avante pelas 8 horas de trabalho’. Fizeram audaciosamente um comício em Madureira. Em Niterói, ao Largo das Neves, houve manifestações, a polícia interveio e, segundo o noticiário, o soldado Inocêncio Luiz Rodrigues feriu um comissário de polícia (2008:46).

Os primeiros adeptos do comunismo marxista provinham evidentemente de rupturas com o

anarquismo, como é o caso de Astrojildo Pereira e Otávio Brandão. Com a repercussão dos acontecimentos na Rússia estruturam-se vários grupos, que procuram se organizar a partir das idéias marxistas, entre eles, a União Operária 1º de Maio, na cidade de Cruzeiro (SP), dirigida por Hermogêneo Silva, a Liga Comunista, fundada por Santos Soares, em Livramento (RS), o Centro Comunista e a União Maximalista (RS), dirigida por Abílio de Nequette, o Círculo de Estudos Marxistas e a Universidade Popular, dirigidas por Cristiano Cordeiro e Rodolfo Coutinho, no Recife.

De grande importância na formação do partido comunista foi o Grupo Comunista do Rio de

Janeiro, composto por Antonio de Carvalho, Antonio Branco, Antonio Cruz Júnior, Astrojildo Pereira, Aurélio Durães, Francisco Ferreira, João Argolo, José Alves Dinis, Luis Peres, Manuel Abril, Olgier Lacerda e Sebastião Figueiredo, aos quais se juntaram Cristiano Cordeiro, Hermogêneo Silva, Manuel Cendon e João da Costa Pimenta, reunidos em torno da publicação da revista Movimento Comunista. Destaque-se também a formação do grupo Clarté, inspirado no francês Henri Barbusse, em 1921, de apoio ao Estado Russo, integrado por Evaristo de Moraes, Agripino Nazareth, Alcides Rosa, Vicente Perrota, Everardo Dias, Antônio Fagundes dos Santos Figueiredo, Leônidas Rezende, Luiz Palmeira, Nicanor Nascimento, entre outros.

A partir da Revolução Russa e da organização de grupos comunistas orientados pelo

marxismo, também ocorre a publicação de textos de V. I. Lênin, o grande dirigente do processo revolucionário soviético de 1917. Assim, destaca Konder,

em março de 1919, o semanário Alba Rossa, editado em italiano, em São Paulo, havia publicado um artigo de Lênin sobre a paz de Brest-Litovski; em agosto de 1919, o Spartacus também tinha publicado a ‘Mensagem aos Trabalhadores Americanos’, de Lênin. Em novembro de 1919, A hora social, em Recife, publicou o texto da primeira Constituição da União Soviética. Em março de 1921, A Vanguarda, de São Paulo, publicou o discurso pronunciado por Clara Zetkin no congresso de fundação do Partido Comunista da França, em Tours (2009:163-164).

O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 1922, em Congresso realizado entre os

dias 25 e 27 de março, tendo como seus fundadores, além de Astrojildo Pereira (jornalista), os históricos militantes José Elias da Silva (funcionário), Cristiano Cordeiro (professor), Luis Peres (artesão-vassoureiro), Manuel Cendón (alfaiate), Joaquim Barbosa (alfaiate), João da Costa Pimenta (gráfico) e Hermogênio Silva (eletricista), representando 73 militantes, que aderiam ao novo partido. Abílio de Nequette representou o Bureau da Internacional Comunista para a América Latina e o Partido Comunista do Uruguai. A direção era constituída por Abílio de Nequette,

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Astrojildo Pereira, Luiz Peres, Antonio Cruz Júnior e Antonio Canellas. Ficaram como suplentes: Cristiano Cordeiro, Rodolfo Coutinho, Joaquim Barbosa, Manuel Cendón e Antonio de Carvalho. A eles aderem depois Otávio Brandão e Leôncio Basbaum.

Com exceção de Manuel Cendón, que tinha uma certa formação marxista, os demais

integrantes do novo partido faziam parte das fileiras anarquistas e anarcossindicalistas e haviam evoluído para o marxismo há pouco tempo. Praticamente não tiveram qualquer experiência político-partidária, fora dos estreitos limites do anarquismo. Essa situação foi determinante nos primeiros anos da nova agremiação. Com a revolta tenentista de Copacabana, a decretação do estado de sítio pelo presidente Arthur Bernardes e a repressão policial, o partido ingressou na ilegalidade. Seu primeiro secretário-geral, Abílio de Nequette, foi preso junto com outros 12 comunistas. A pressão dos acontecimentos e a incompreensão da teoria revolucionária marxista levaram-no a renunciar ao cargo de direção partidária. As incompreensões de Abílio se manifestaram logo após, já em 1925, com a publicação do seu folheto intitulado Tecnocracia ou o 5º Estado. Defende a incapacidade revolucionária do proletariado e a centralidade política dos tecnocratas na transformação social. Daí em diante, Abílio resvalou para o misticismo mais completo.

O reconhecimento do partido não se deu de forma imediata. O PCB enviou o dirigente

Antonio Bernardo Canellas para representá-lo no Quarto Congresso da Terceira Internacional Comunista, realizado em 1922 na União Soviética. Como destaca Konder (2009:172-173), Canellas não foi eleito delegado, mas pode participar dos debates políticos. As intervenções do representante brasileiro suscitaram polêmicas e críticas por parte de delegados da Argentina e Uruguai sobre as informações. Canellas manifestou certa insatisfação com a posição da Argentina de apresentar-se perante o Congresso como referência para o movimento socialista Sul-americano. Some-se a isso o fato de Canellas não ter conseguido realizar o objetivo de sua participação do congresso: o reconhecimento do PCB como seção da Internacional Comunista. Esta claramente duvidava da clareza teórico-programática do novo partido e da firmeza marxista da militância, destacando os resquícios dos preconceitos anarquistas. Não aceitando as críticas da Internacional, Canellas elaborou um relatório em defesa de suas posições pessoais.

De fato, levando em consideração a formação teórico-política da militância, o conhecimento

das idéias de Marx e Engels e da tradição marxista posterior no seio do PCB era ainda extremamente precário. O partido precisava superar as debilidades teóricas e organizativas, além dos resquícios do passado anarquista dos seus militantes. Além disso, era necessário acabar com todo tipo de ecletismo no campo do marxismo, como a junção de idéias marxistas com o positivismo. O partido teria de tirar todo o proveito possível da experiência acumulada teórica e praticamente pela Internacional Comunista. A indisposição de Canellas de tirar todas as lições possíveis da experiência do PCB levou-o ao isolamento e expulsão. O partido só seria reconhecido como seção brasileira da Terceira Internacional, em 1924, quando Rodolfo Coutinho e Astrojildo Pereira estiveram pessoalmente em Moscou, para solicitar o reconhecimento da nova organização política.

Por outro lado, era preciso também uma divulgação ampla das obras marxistas no Brasil,

não só dos clássicos do marxismo, mas também dos autores soviéticos. Ainda nos anos de 1920, precisamente em 1923, Otávio Brandão realizou uma tradução do Manifesto Comunista de 1848 para a nossa língua, diretamente do francês, que foi publicada no jornal carioca Voz Cosmopolita. Em 1924, anota Konder (2009:178 e ss.), a tradução foi publicada em forma de livro por Samuel Speiski, em Porto Alegre. Foram também publicados folhetos em 1925 em comemoração ao aniversário da Revolução Russa e em homenagem a Lênin. Em 1926, foi publicada uma tradução do livro ABC do Comunismo, em Porto Alegre, de autoria de Bukharin e Preobrajenski.

Nas fileiras do PCB, apesar da liderança política do secretário-geral Astrojildo Pereira, o

papel de elaboração teórica acabou se concentrando em Otávio Brandão. Este militante é, de fato, o primeiro a tentar uma aplicação arrojada da teoria marxista, no limite de sua aprendizagem teórico-política, à análise da realidade brasileira. Dele brotaram obras como Rússia Proletária (1924) e Agrarismo e Industrialismo (1926). Os livros apresentam uma assimilação muito

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embrionária da dialética marxista e da teoria materialista da história. A exposição da história e do desenvolvimento da sociedade brasileira aparece de forma esquemática e movida mais pelo enquadramento lógico do movimento do real aos esquemas teóricos previamente elaborados por Brandão, a partir da sua compreensão da dialética como tese-antítese-síntese. Não obstante, segundo Konder, Otávio Brandão teria observado em sua memórias que já tinha lido em francês as obras

O Estado e a Revolução, A doença infantil do esquerdismo no comunismo, Que fazer?, A revolução proletária e o renegado Kautsky, todos de Lênin, além de obras de Marx e Engels, como A miséria da filosofia, O anti-Duhring, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, A origem da família, A guerra dos camponeses na Alemanha, As lutas de classe na França de 1848-1850. Conhecia, igualmente, um resumo d’O Capital. Ao que tudo indica, nenhum outro marxista brasileiro, naquele momento, dispunha de uma bagagem de conhecimentos comparável à de Brandão (2009:182 e ss.).

Nesta época, o processo de burocratização encontrava-se no começo, mas já havia indícios

de que não eram homogêneas as posições no interior do partido comunista na Rússia, quanto aos rumos da revolução. A falta de clareza teórico-programática da militância brasileira sobre as divergências entre a Oposição de Esquerda, liderada por Trotsky, e as posições conservadoras de Stalin e seus apoiadores, se traduziram, por exemplo, na posição de Astrojildo Pereira, publicadas em O paiz, em 1924, de suas impressões sobre o que estava ocorrendo na URSS. Segundo ele, “As histórias telegráficas de brigas entre Trotsky e Zinoviev, entre Bukharin e Rikov, e não sei mais quem, são motivo de risadas. Que patranhas!” (1980:121).

Quando estouraram as divergências entre a Oposição de Esquerda e o stalinismo, não

houve como evitar os reflexos sobre o partido no Brasil. A Oposição de Esquerda, inspirada nas idéias de Trotsky, encontrava-se em plena batalha no interior do Partido Comunista Russo e da Terceira Internacional, contra a degeneração stalinista das conquistas teórico-práticas da Revolução de Outubro de 1917, que levava a uma escala insuportável a burocratização do Estado Soviético, do PC russo e da Internacional. Contra as teses stalinistas da “revolução por etapas” e do “socialismo em só país”, contra a deformação das idéias de Marx, Engels e Lênin por Stalin e consortes, os trotskistas afirmavam as teses da revolução permanente, do internacionalismo proletário e do caráter revolucionário do marxismo. As diferenças profundas de análises da conjuntura nacional e internacional, bem como da compreensão das relações de classes e do processo revolucionário no Brasil e no mundo, além das divergências quanto à política sindical e de alianças do partido com setores da pequena-burguesia, da burguesia liberal e do nacionalismo tenentista, levaram à primeira cisão de grande importância no seio do PCB. As críticas contundentes de Joaquim Barbosa à linha oficial do partido, receberam apoio de militantes como Rodolfo Coutinho, Lívio Xavier, Aristides Lobo e Hilcar Leite.

É preciso relatar ainda que Rodolfo Coutinho, que engrossaria as fileiras dos comunistas que

criticavam a linha oficial do PCB, havia estado na Rússia em 1924, como membro da delegação brasileira para garantir o reconhecimento do PCB junto à Internacional. Permanecendo algum tempo em Moscou, conheceu pessoalmente Trotsky e suas concepções. Voltando ao Brasil e assumindo suas funções no partido, se opôs abertamente à decisão de que Astrojildo Pereira fosse à procura de Luis Carlos Prestes na Bolívia. O fato marcante diz respeito à aproximação de Mário Pedrosa, que havia ingressado em 1927 no PCB, às teses de Trotsky. O contato de Pedrosa com as críticas do trotskismo ao stalinismo e aos rumos da URSS ocorreu de maneira muito interessante.

Mário Pedrosa tinha sido mandado a Moscou em 1929 para realizar uma formação teórico-

política, porém permaneceu em Berlim, em razão do inverno rigoroso, que o impossibilitava seguir para a Rússia. Mediante contatos com os comunistas alemães, Mário Pedrosa teve acesso às teses da Oposição de Esquerda, elaborados por Trosky para o VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1928. Pedrosa leu os documentos e concordou com as críticas e a

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plataforma da oposição ao stalinismo. Os documentos eram enviados por Mário ao amigo e companheiro de partido Lívio Xavier, que tratava de discuti-los com outros militantes. Quando regressou da Alemanha, Pedrosa encontrou um grupo de militantes do PCB, acima descritos, descontentes com os rumos do partido e iniciou o debate sobre as idéias de Trotsky no partido. Aos poucos, as teses defendidas por Pedrosa ganharam adeptos como Aristides Lobo, Lídia Besouchet, Hilcar Leite, Edmundo Muniz, Rodolfo Coutinho, Raquel de Queiroz, Lívio Xavier, Barreto Leite Filho, Raul Karacik e Fúlvio Abramo. Os trotskistas formam o agrupamento Grupo Comunista Lênin (GCL) em 1930.

Observa Campos (1998:65 e ss.) que juntamente com outros setores do movimento

comunista, como estudantes e operários, Mário Pedrosa e demais dissidentes como Lívio Xavier, Aristides lobo, Benjamim Peret e Salvador Pintaubecriaram a Liga Comunista Internacionalista (LCI) em 21 de janeiro de 1931 em São Paulo. Publicam o jornal Luta de Classes. No Rio de Janeiro, a Liga Comunista Internacionalista se organizou através de militantes como Rodolfo Coutinho, José Neves, Octaviano Du Pin Galvão, dentro outros. Os trotskistas, através da atuação de Mário Pedrosa na direção da União dos Trabalhadores Gráficos, procuraram disseminar as novas idéias no movimento operário. A combatividade militante de Pedrosa e de outros militantes, criticando as teses stalinistas da “revolução por etapas”, não se deixando dobrar pela burocratização imposta ao partido pelo stalinismo em processo, leva à sua expulsão do PCB junto com um setor importante dos operários gráficos.

De qualquer maneira, a partir da vitória da burocracia stalinista a frente do partido russo e da

Internacional Comunista, a agremiação brasileira passou por transformações internas, que a adequaram às pretensões de Moscou. O PCB se tornou um satélite da política internacional da URSS, aplicando as teses stalinistas. Em geral, a política do PCB esteve voltada a apoiar o que chamava de burguesia nacional progressista, acreditando que a mesma poderia realizar a tarefa de desenvolver as forças produtivas internas no sentido do capitalismo avançado, no estilo europeu, para só então se pensar em socialismo.

Ao longo da década de 1930, destaca Konder (2009:218 e ss.) houve uma intensa difusão

das idéias stalinistas em nosso país, presentes tanto nas obras de Josef Stalin, quanto nos catecismos soviéticos. Assim, em 1929 era publicada na Argentina e divulgada no Brasil, uma edição de Os fundamentos do Leninismo; em 1931, publicar-se-ia o discurso de Stalin ao 16º Congresso do PC russo, intitulado Em marcha para o socialismo; 1932, era difundido o texto Sobre algumas questões da história do bolchevismo; em 1933, aparecia Novos rumos da URSS; em 1934, surgia o texto A luta contra Trotsky; em 1934, sairia uma segunda reedição de Os fundamentos do Leninismo e o informa de Stalin ao 17º Congresso do PC russo, com o título O mundo socialista e o mundo capitalista – de 1932 a 1934 (todos de Stalin). Entre os catecismos soviéticos publicaram-se O abecedário da nova Rússia (Illine), O plano qüinqüenal soviético (G. Grinko), A educação na Rússia soviética (S. Fridman), A política dos sovietes em matéria criminal (Krilenko) e A URSS, A Liga das Nações e a Paz Mundial (Vorochilov e Litvinov).

No campo da atividade político-partidária do PCB, com a consigna de “reforma agrária e

antiimperialista”, que nada se parecia com a revolução proletária, apoiada na luta camponesa pela terra, o PCB se conformava a posições ultra-esquerdistas e direitistas do PCUS e da direção da Terceira Internacional, entre 1926 e 1935. Segundo Campos,

A princípio, o partido Comunista apontou a contradição entre a grande propriedade feudal e o moderno capitalismo industrial, defendendo um bloco do proletariado, campesinato, pequena burguesia urbana e burguesia industrial para dirigir o país. Após o VI Congresso da Internacional Comunista (1928) ele radicalizou suas teses, prevendo que a revolução agrária e antiimperialista estava na ordem do dia e seria uma seqüência ampliada das revoltas militares de 1922 e 1924 – revoltas que, na verdade, nada tinham a ver com a expropriação do latifúndio nem com a expulsão do imperialismo e que exaltavam uma confusa, elitista e autoritária ideologia democratizante (1998:66-67).

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A partir do VI Congresso da Internacional Comunista, a direção stalinista, plenamente dominante com a derrota e expulsão de Trotsky e dos membros da Oposição de Esquerda do PCUS, proclamou a tendência à iminente crise capitalista e, por conseqüência, a erupção de uma crise revolucionária em todos os países. Dessa forma, o stalinismo assumia uma posição de rejeitar qualquer acordo com os socialistas, encarando a social-democracia como a ala esquerda do fascismo. A aplicação das teses do chamado terceiro período, caracterizado pelo ultraesquerdismo stalinista significou na Alemanha e na França a criação das condições políticas para a ascensão do fascismo. No Brasil, essa política findou com a preparação e concretização do golpe de 1935, chamado de forma inconsistente pela literatura política nacional de Intentona Comunista.

Luiz Carlos Prestes, capitão do exército e nacionalista, que havia liderado a Coluna Prestes

nos anos 1920, iniciou ainda no exílio na Bolívia uma discussão com o PCB, que terminou com a sua viagem a Moscou em 1931 e seu ingresso nas fileiras do partido comunista. Com o reingresso de Prestes em 1935 e a adesão ao partido de vários militares, foi criada então a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma associação dirigida pelo PCB que congregava militantes e simpatizantes de mudanças nacionais mais “autênticas”. No âmbito nacional, a direção ultraesquerdista do PCB nutria uma desconfiança contra os intelectuais (os teóricos) nos órgãos de direção, expressas na guinada ao obreirismo. Entretanto, essa política não conseguiu se sustentar por muito tempo, e, logo diversos militares ingressavam nas fileiras do partido, tais como Agildo Barata, Gregório Bezerra, Álvaro de Souza, Antonio Carlos Bento Tourinho, Carlos da Costa Leite, Apolônio de Carvalho, Moésias Rolim, Agliberto Vieira de Azevedo, Ivo Meireles, Roberto Besouchet, Dinarco Reis, Henrique Oest, Ivan Ramos Ribeiro, Sócrates Golçalves da Silva, Francisco Antonio Leivas Otero, Lamartine Correia de Oliveira, Davino dos Santos e José Maria Crispim.

As tendências golpistas se fortaleceram nas fileiras do PCB, que, apesar de não ter raízes

profundas nas massas, entendia ser possível a instauração de um novo governo por meio de um golpe de poucos homens. Em julho de 1935, Prestes publica um manifesto que

falava na união das grandes massas trabalhadoras à burguesia nacional não ligada ao imperialismo para defender a democracia. E apelava a que viessem para a ANL todas as pessoas, grupos, correntes, organizações e partidos políticos, quaisquer que fossem seus programas, sob a única condição de que quisessem lutar contra a implantação do fascismo no Brasil, contra o imperialismo e o feudalismo, pelos direitos democráticos (Campos, 1998:67).

É evidente que se tratava de uma avaliação política problemática, para não dizer sem

qualquer fundamento real, levando os militantes a uma ação artificialmente construída, sob controle da direção stalinista da Terceira Internacional deformada. O governo Vargas respondeu com prisões, expurgos e repressão não só aos declaradamente comunistas, mas a escritores e intelectuais. Luiz Carlos Prestes e sua companheira, Olga Benário, foram capturados pelas forças do governo e encaminhados ao cárcere. Olga foi entregue à morte por Getúlio a Hitler. O controle sobre as organizações dos trabalhadores se ampliou e a repressão aos movimentos sociais e aos comunistas sem intensificou. A mesma burguesia que Prestes chamava a combinar-se com o proletariado, respondia com uma brutal repressão e com o cerco sobre os sindicatos, que perderam qualquer rastro de independência política frente ao aparelho de estado.

Os trotskistas sofreram uma dura repressão por parte do governo Vargas nesse período.

Vários dos seus militantes foram encarcerados. A Mário Pedrosa restou o exílio. Os trotskistas, organizados na Liga Comunista Internacionalista, criticaram fortemente a política equivocada da direção da Terceira Internacional e sua aplicação pelo PCB no Brasil, na tentativa de um golpe de estado, por fora da luta de classes das massas exploradas. Aplicando a Teoria da Revolução Permanente à análise da realidade brasileira, os trotskistas concluíram que o caráter da revolução em nosso país era desigual e combinado, ou sejam, as tarefas democráticas pendentes, não resolvidas pela burguesia, e as tarefas propriamente socialistas se combinavam na estratégia da revolução proletária, dirigida pelo operariado, apoiado na maioria nacional oprimida. Nenhuma

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aliança com a burguesia nacional resolveria os problemas do país. A burguesia estava ligada por laços cada vez mais firmes ao imperialismo e à grande propriedade da terra, de modo que não havia qualquer interesse da classe dominante de levar adiante as tarefas da revolução democrático-burguesa.

Os trotskistas combateram exaustivamente as tendências stalinistas no movimento operário

através da denúncia constante dos ziguezagues do PCB, a partir das mudanças efetuadas na linha política do PCUS, que ia do ultraesquerdismo a posições direitistas. No movimento sindical, a LCI combateu pela autonomia e independência política dos organismos do proletariado frente aos governos e ao Estado burguês, diante das ações de controle dos sindicatos envidadas pelo Governo Vargas, através do Ministério do Trabalho, e cooptação dos setores reformistas do movimento. Uma vez atrelados os sindicatos ao Estado burguês, os trotskistas defenderam permanentemente a independência dos sindicatos frente ao aparelho estatal e a formação de uma Confederação Geral do Trabalho do Brasil, que pudesse dar unidade e fortalecer a luta operária contra a exploração capitalista.

Enquanto os comunistas do PCB incentivavam uma aliança policlassista (explorados,

pequena-burguesia e burguesia nacional), com o argumento da defesa da democracia contra a ameaça fascista, os trotskistas envidaram esforços por constituir uma frente única com as outras tendências do movimento operário (socialistas e anarquistas), sem qualquer compromisso com os setores da burguesia, lutando abertamente contra os fascistas, que compunham o Integralismo de Plínio Salgado, chegando a confrontos históricos de rua, como o que ocorreu na Praça da Sé em São Paulo, a 7 de outubro de 1934, quando bandos de direita “quisera fazer uma provocação diante do edifício Santa Helena, prédio onde se concentravam vários sindicatos e a Federação Sindical Regional de São Paulo” (Campos, 1998:89).

Quando o PCB decidiu lançar-se sozinho nas eleições de 1934, a Liga Comunista

Internacionalista trotskista se esforçou por constituir uma frente única das esquerdas para lançamento de candidaturas operárias, com um programa de reivindicações democráticas, econômicas e políticas de interesse dos explorados. Campos afirma que o programa da LCI

exigia a vidência a vigência da totalidade dos direitos democráticos – voto aos analfabetos, soldados e marinheiros, supressão da polícia política, separação da Igreja do Estado, ensino público e laico, instituição do divórcio, etc. Dentre as reivindicações econômicas colocava a escala móvel de salários, creches nas empresas, jornada de horas para todos e de 4 a 6 horas nas indústrias perigosas e insalubres, interdição do trabalho noturno – salvo em casos necessários por motivos técnicos e por um período não superior a 4 horas por pessoa -, tratamento médico gratuito. Pedia ainda a nacionalização das companhias de transporte e dos bancos, a organização de grandes fazendas-modelo geridas pelos sindicatos dos trabalhadores rurais e a extinção do serviço da dívida externa (1998:70).

Não obstante, a primeira tentativa de constituir um partido revolucionário de base marxista-

leninista-trotskista fracassou em 1935, tendo a LCI sofrido a sua primeira grande cisão, quando Mário Pedrosa deixou a organização para fundar uma nova corrente política denominada Partido Operário Leninista (POL). A nova organização caracterizar-se-ia por divergências internas, pela fragilidade teórica e diminuto número de militantes, levando-a praticamente ao desaparecimento logo em seguida. Com a decretação do Estado Novo varguista em 1937, Mário Pedrosa teve de sair do país, tendo participado da Conferência de fundação da IV Internacional, em 1938 em Paris.

Ainda em 1939, Hermínio Sachetta, militante do PCB e redator do jornal comunista A Classe

Operária rompeu com o stalinismo e se aproximou progressivamente ao trotskismo. Acabou por fundar o Partido Socialista Revolucionário (PSR), fundindo-se ao grupo de Mário Pedrosa. Porém, este último rompeu com a IV Internacional, divergindo da caracterização trotskista da ex-União Soviética e da necessidade de defesa do Estado Operário contra qualquer intervenção imperialista. O PSR enfrentou dificuldades de funcionamento durante o regime do Estado Novo

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getulista, reorganizando-se a partir de 1943, como seção brasileira da IV Internacional. Segundo Campos, o PSR de Sachetta

participou das eleições da Constituinte de 1946 com um programa de reivindicações operárias e independência de classe em relação ao Estado. E lutou no Congresso Sindical Brasileiro, realizado no Rio em setembro de 1946, pelo desatrelamento dos sindicatos do Ministério do Trabalho e pela completa liberdade das organizações operárias, opondo-se ao Movimento Unificador dos Trabalhadores, dirigido pelo PCB e que defendia, com alguns retoques, a estrutura sindical imposta por Getúlio. A crise da IV Internacional nos anos de 1950-1952 levou à dissolução do PSR (1998:71).

De outro lado, o PCB conheceria a ilegalidade e as restrições durante a ditadura do Estado

Novo de Getúlio Vargas. Mesmo assim, os militantes do partido decidiram em 1943, em sua II Conferência Nacional, secundarizar a luta de classe e a independência política do proletariado, apoiando o governo federal supostamente contra a ameaça “nazi-fascista”. Tudo isso sabendo-se das simpatias de Getúlio pelos governos autoritários e da profunda repressão que se abateu sobre a militância socialista e o movimento operário durante o seu regime. Portanto, o PCB adotou uma linha semelhante àquela aconselhada pela burocracia stalinista de apoio às burguesias nacionais, com a política de “Unidade Nacional”, refletindo numa postura conciliadora diante do governo e posicionamentos direitistas frente às lutas sociais, em particular as greves. Neste período, o PCB aplicava no país as teses stalinistas de constituição de frentes populares, orientação aprovada na Terceira Internacional já profundamente deformada após o período de ultra-esquerdismo, que marcou a ação do PCB no final da década de 1920 e primeira metade da de 1930. Neste caso, reforçaram-se as tendências de aliança dos comunistas com setores da “burguesia nacional”, o que implicava traição à independência de classe do proletariado e demais explorados e limitação das lutas e movimentações dos trabalhadores, pelo controle das suas organizações.

Parte importante da intelectualidade do período compunham as fileiras do PCB, entre os

quais podemos citar: Aparício Torelly, Jorge Amado, Patrícia Galvão, Oswaldo de Andrade, Vilanova Artigas, Oscar Niemayer, Gracialiano Ramos, Cândido Portinari, Mário Schenberg, Caio Prado Jr. Muitos intelectuais eram próximos ou colaboravam com o partido, tais como José Lins do Rego, Otto Maria Carpeaux, Sergio Millet, Ivan Pedro de Martins, Marques Rebelo, Álvaro Lins, Aníbal Machado, Eneida Costa de Morais, Lúcia Miguel Pereira, Orígenes Lessa, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Ramos, Manuel Bandeira, Guilherme Figueiredo, Francisco de Assis Barbosa.

Após a saída de Getúlio e com a posição do PCB de se aproximar dos adeptos do getulismo,

formou-se no Brasil um setor denominado de Esquerda Democrática, que deu origem logo depois ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), dirigido por João Mangabeira. Como opositores de Getúlio, considerado um ditador e opositor das liberdades democráticas, contraditoriamente, o PSB ligou-se a outra fração da burguesia, ligada à União Democrática Nacional (UDN). Esses socialistas defendiam um programa que era uma mistura de reformismo com princípios cristãos. Não se tratava, pois, de um partido ligado à luta de classe do proletariado pelo socialismo, mas uma organização ainda mais adaptada ao capitalismo e à democracia burguesa. Negavam em palavras e em ações as idéias marxistas e se colocavam radicalmente contrários ao partido revolucionário.

No pós - Segunda Guerra Mundial, o PCB aumentou sua influência eleitoral, conseguindo

eleger Prestes para senador da república, além de uma bancada de deputados e vereadores no Rio de Janeiro. O clima do pós-guerra era de rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética. Naquele país, reforçaram-se as campanhas contra a ameaça comunista e as perseguições à militância socialista. No Brasil, essa conjuntura internacional se expressou na decisão de Dutra de colocar o PCB na ilegalidade e na cassação dos mandatos parlamentares conseguidos antes. O PCB, que tinha uma posição de apoio aos getulistas, de repente, muda para uma posição de repúdio tanto aos getulistas quanto aos seus opositores, coligados na UDN. Novamente, o PCB, em novo ziguezague, adota uma posição diametralmente oposta à sua postura política conciliatória anterior, em direção ao ultraesquerdismo.

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No campo do movimento trotskista em nosso país, foi criada em 1953 um grupo de militantes que passou a se chamar Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), influenciado pelo então dirigente da IV Internacional, Michel Pablo. Era, ainda, ligado ao representante da internacional para a América Latina, J. Posadas. A IV Internacional arrastava uma profunda crise interna desde 1950 e pouco depois já não se constituía um autêntico Partido Mundial da Revolução Socialista, como defendera Leon Trotsky, quando da sua fundação, mas uma simples aglutinação de partidos, organizações e correntes de vários países e continentes.

Como dissemos no Capítulo anterior, o grupo de Michel Pablo realizou uma virada teórico-

política em direção ao oportunismo mais aberto. Sob o argumento de que uma terceira guerra mundial era iminente devido ao avanço da guerra fria entre Estados Unidos e a ex-União Soviética, passou a defender no 3º Congresso Mundial da IV Internacional, realizado em 1951, a tese de que os agrupamentos trotskistas deveriam se dissolver nos partidos comunistas (PCs) stalinizados e/ou nas organizações nacionalistas. Esta posição potenciou a fragmentação da organização e, em parte, contribuiu para derrotas fragorosas dos trotskistas em acontecimentos de transcendência internacional, como a Revolução Boliviana de 1952. Portanto, já nascendo sob orientação pablista, o PORT brasileiro nada tinha de comum com o pensamento de Trotsky, embora tenha sido considerado muitas vezes como uma verdadeira organização trotskista.

No contexto das traições do stalinismo internacional e nacionalmente ao movimento

operário, com a aplicação das fórmulas vazias do Partido Comunistas Soviético (PCUS) no país, em geral marcadas pelas alianças com a suposta burguesia “progressista”, com lapsos passageiros de ultra-esquerdismo, além do nacionalismo burguês do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) getilista, o PORT de Posadas e Pablo, organizado por meio do jornal Frente Operária, tornou-se um atrativo para os setores militantes marxistas descontes.

Os posadistas se organizaram mais nitidamente “em Pernambuco, onde dirigiram alguns

sindicatos rurais, pregaram a tomada das terras pelos camponeses, a criação de uma Central dos Camponeses de Pernambuco, vinculada a uma Confederação Nacional dos Trabalhadores. Chocaram-se com a Igreja, que procurava controlar as organizações camponesas e com o governador Miguel Arraes, que mandou prender alguns militantes do POR (diga-se PORT)” (1998:72). Esta tentativa de organização de uma corrente trotskista naufragou, levando seu dirigente maior, J. Posadas, ao rompimento com a IV Internacional, a formação de uma internacional posadista, e, enfim, a posições antimarxistas e extravagantes. Finalizou sua trajetória política aprofundando as teses de Michel Pablo para as correntes e a luta de classes no Brasil, passando a defender que as condições objetivas levariam setores “progressistas” da Igreja, militares nacionalistas, brizolistas e stalinistas ao campo da transformação revolucionária.

O governo de Juscelino Kubitschek foi marcado por uma abertura do mercado interno para o

capital financeiro internacional, que passava a investir com mais peso em atividades econômicas no país. A indústria automobilística se implementava com a instalação de multinacionais, como a Volkswagen. Os aportes de recursos financeiros se avolumaram e a articulação da economia nacional com a mundial se tornava mais patente. Os interesses de governos estrangeiros e do grande capital internacional se expressavam na dinâmica política interna. Os anos 1960 conhecem uma ampliação dos movimentos sociais no campo e nos centros urbanos. Desenvolve-se a luta no campo, particularmente das Ligas Camponesas, no Nordeste, incrementando a luta de classes entre o campesinato, trabalhadores rurais e os proprietários de terras. Destaca-se, neste contexto, a figura de Francisco Julião, um dos dirigentes das ligas.

Do ponto de vista político, a instabilidade no governo se torna patente, com a eleição e

renúncia de Jânio Quadros, em pouco mais de seis meses. Os setores militares e a classe dominante se movimentavam no sentido de garantir uma determinada ordem nas coisas, dificultando a posse do vice-presidente João Goulart, com a renúncia de Jânio. A pressão de setores da política nacional garante a posse do vice-presidente, mas a frações mais conservadoras reagem com a imposição de um parlamentarismo artificial. Um plebiscito derruba o parlamentarismo e se reinstala o presidencialismo. O governo Jango é marcado pela instabilidade e pela pressão dos movimentos sociais, que se organizavam no campo e nas cidades, exigindo as

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conhecidas reformas de base, que iam da questão agrária ao acesso à educação. Em 1962, forma-se o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).

A morte de Stalin, em 1953, e as denúncias de seus crimes no XX Congresso do PCUS

desencadearam uma discussão interna ao partido no Brasil. O partido elegeu como seus adversários efetivos o imperialismo e o latifúndio. A burguesia nacional e “progressista” continuava no campo das relações políticas e se reforçavam as ilusões na possibilidade dela realizar as tarefas democráticas pendentes em nosso país, como, por exemplo, a reforma agrária, a extinção do analfabetismo, o desenvolvimento nacional etc. O XXI Congresso do PCUS, ocorrido em 1959, adota definitivamente a posição de “coexistência pacífica com o imperialismo”, reforçando o processo de adaptação dos PCs à institucionalidade burguesa. A crise se instaura no interior do PCB, de modo que este partido aprofunda a sua adaptação ao Estado burguesia e à via pacífica para a transformação do país. Ao mesmo tempo, incrementa a sua política de apoio aos governos nacionalistas burgueses, disseminando entre as massas a ilusões de que suas reivindicações poderiam ser atendidas pelo governo burguês através da ação estatal. O PCB em seu V Congresso, em 1960, ratificou a tese da coexistência pacífica com o imperialismo e repudiou a revolução violenta. O partido adotou um novo nome: Partido Comunista Brasileiro, mantendo a sigla anterior (PCB). Com isto, tentava passar a idéia de que estaria disposto a voltar os olhos para os problemas do país, sem a tutela de Moscou.

As polêmicas internas sobre os rumos do partido e a relação com a URSS levam à divisão

da organização. Uma delas se deu com a fração influenciada por Agildo Barata, que atacou a fundo as tendências burocráticas no interior da organização stalinista. Entretanto, os acertos das críticas de Barata foram ofuscados pelos seus erros, quando passou a defender posições partidárias antileninista em termos de organização e adotou uma posição acentuadamente nacionalista. Logo depois, o PCB sofre a sua primeira grande cisão política: o partido foi dividido em duas correntes: o PCB, sob orientação de Prestes e o PCdoB, de João Amazonas, Diógenes Arruda, Pedro Pomar e Maurício Grabois. O PCdoB constituiu uma fração stalinista ortodoxo, colocando na defesa da herança de Stalin contra o “revisonismo” do PCUS e PCB. Caracteriza as mudanças na burocracia de Moscou, de denunciar os crimes do stalinismo, como um reforço do reformismo e um desvio do programa revolucionário, supostamente posto em prática na era Stalin.

A posição dos comunistas do PCB, apoiados na caracterização da existência de uma

burguesia nacional progressista, foi no sentido de pressionar o governo Jango, para que o mesmo realizasse reformas sociais, promovesse o desenvolvimento econômico e modernizasse a estrutura do Estado, de um lado, segurando momentaneamente os ímpetos das mobilizações populares, de outro, para evitar o aprofundamento da luta de classes, de modo que fugisse ao controle do partido. Ainda, os comunistas subestimavam a capacidade de reação da burguesia através de sua força de repressão. Uma vez mais, o desdobramento dos fatos pegou os comunistas despreparados para o combate contra o golpe militar. Os acadêmicos ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) promoveram análises sobre o desenvolvimento econômico no país, elaborando propostas que poderiam ser executadas pelos governos e pela burguesia nacional “progressista”. O nacionalismo e a aposta na capacidade da burguesia de realizar o desenvolvimento e modernizar as estruturas arcaicas do país eram teses fortes entre os intelectuais. Entre os professores do Iseb se destacaram: Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto.

Mas a efervescência não se deu só na política e na luta de classes. Também se expressou

claramente na arte, no cinema, na poesia, na arquitetura, particularmente no seio do movimento estudantil, centrado na União Nacional dos Estudantes (UNE). No Centro Popular de Cultura da UNE reuniam-se intelectuais, ativistas e a juventude, promovendo peças de teatro, produzindo poesias e filmes com uma forte conotação de crítica sobre a realidade social brasileira. Destacam-se nessa época figuras como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Armando Costa e João das Neves, José Carlos Capinam, Moacir Félix e Ferreira Gullar. Na educação, realçam-se as experiências de Educação Popular, com Paulo Freire; na arquitetura, destacam-se as obras de Oscar Niemayer e Vilanova Artigas.

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A ditadura militar foi implantada em 31 de março de 1964. O primeiro governo, após a constituição de uma Junta Militar provisória, foi o do General Castelo Branco. O golpe foi programado com o incentivo e a ajuda militar, logística e financeira dos Estados Unidos (EUA), receosos que o processo revolucionário ocorrido recentemente em Cuba pudesse servir como inspiração em outros países da América Latina. Junte-se a isso, a vinda de Che Guevara ao Brasil, durante o meteórico governo de Jânio Quadros. O golpe tinha como objetivo arrefecer a luta de classes no campo e nos centros urbanos de estudantes, camponeses, trabalhadores e intelectuais. Tinha ainda como finalidade disciplinar as frações burguesas em conflito, impondo uma direção política e econômica mais condizente com a conjuntura internacional, marcada pela coexistência de duas grandes potências econômicas e políticas, quais sejam: EUA e URSS.

O golpe decisivo sobre a esquerda e os movimentos sociais se deu a partir da edição do Ato

Institucional nº 5, em dezembro de 1968, no governo Costa e Silva, sistematicamente aplicado para legitimar legalmente a tortura, prisões, mortes e desaparecimentos nos governos militares posteriores, em particular o de Emílio Garrastazu Médici. Estabeleceu-se um bipartidarismo consentindo entre o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (Arena). A conjuntura internacional era de manifestações estudantis em vários países, que se refletiu no Maio de 1968, em Paris. No Brasil, destacaram-se os protestos dos estudantes, que se fortaleceram com a repercussão da morte do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro, em 1968, as prisões de militantes e a greve dos operários de Contagem-MG e Osasco-SP.

Com os primeiros focos de resistência à ditadura, os protestos e atos estudantis, os

movimentos de setores da intelectualidade, formaram-se várias organizações de esquerda a partir da crise e dissolução do stalinismo e da penetração de outras idéias e práticas políticas, tais como a Ação Popular (AP), Organização Revolucionária Marxista (ORM), intitulada Política Operária, a Polop, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), a Organização Operária-Classe Operária (OP-COB), o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), o Partido Comunista Revolucionário (PCR), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a fusão da organização Colina e a VPR, em VAR-Palmares, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Mariguella, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), de Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e Mário Alves, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

Influenciaram essas organizações, além da tradição stalinista, o maoísmo e o castrismo. Na

essência, as cisões fundamentais do PCB, quais sejam, a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), além das principais cisões do PCdoB, ou seja, o Partido Comunista Revolucionário (PCR) e o Partido Comunista do Brasil-Ala Vermelha (PCdoB – AV), mantiveram em linhas gerais a concepção da revolução por etapas do stalinismo, bipartindo o processo revolucionário em duas etapas bem distintas, a da revolução democrática e a da revolução socialista. Apesar das diferenças fundamentais em suas análises e programas, no fundo quando falavam de revolução e de governo popular revolucionário, estava na verdade falando de um governo de aliança entre os explorados e os setores “progressistas” da burguesia industrial nacional. As tarefas colocadas eram, em essência, as da revolução democrático-burguesa e, em nenhum momento, se trata de uma revolução socialista, de destruição da propriedade privada dos meios de produção.

Muitos desses grupos, influenciados pelos acontecimentos da Revolução Cubana de 1959 e

pela conjuntura de crise do stalinismo, passaram a desenvolver a estratégia da luta armada foquista, isolada das massas populares, caracterizada por ações de grupos ou de indivíduos, como seqüestros e assaltos, como resistência à repressão etc. A esquerda oriunda das cisões do PCB e do PCdoB confundiam claramente a forma de luta da guerrilha, posta em prática pelas massas em luta em diversos países, com a ação de grupos armados contra um exército e uma polícia bem equipada e fortemente armada. Um dos fatos marcantes do período foi a captura e seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, que foi trocado pela liberdade de alguns presos políticos do regime. Inspirados pelo maoísmo, os militantes do PCdoB organizaram a Guerrilha do Araguaia. O maoísmo se caracterizava por centrar as suas forças na guerrilha rural camponesa. É evidente que a luta isolada da classe operária, que continuava em grande parte alheia e desorganizada em todo o

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país, foi respondida pela ditadura com repressão, prisões, execuções e desaparecimentos. Parte importante da militância socialista foi dizimada pelas forças de repressão e a resistência armada de grupos de militantes, desgarrados da luta de massas, derrotada.

No campo do trotskismo, o final dos anos 1960 e a década de 1970 assistiram à formação de

algumas organizações políticas. O que sobrou dos escombros da IV Internacional depois da crise dos anos 1950 estava sob a direção do marxista belga Ernest Mandel que, sob a influência e a pressão da Revolução Cubana de 1959, passou a defender a guerrilha (diga-se na verdade o foquismo como método de luta nos países atrasados. Já no final dos anos 1960 surge o Partido Operário Comunista (POC), sob influência mandelista. Depois de um ziguezague, o POC revisou suas teses sobre a luta armada foquista e passou a defender a atuação no seio do movimento operário, a organização independente do operariado e a defesa de reivindicações como o aumento de salários, contra o desemprego.

A partir dos anos 1960, também se percebe o ingresso das idéias de pensadores europeus,

considerados partes do campo marxista, particularmente no campo da política cultural do PCB, das idéias de personalidades internacionais como Antônio Gramsci (logicamente, tendo em vista os debates e as interpretações dadas ao pensamento deste autor por seus discípulos europeus), além de Louis Althusser, representante do “marxismo estruturalista” e Georg Lukács, autor da Ontologia do Ser Social e de uma ampla produção no campo da filosofia e da estética. Particularmente, as idéias políticas de Gramsci iriam ter maior influxo sobre a militância de esquerda com a formação mais adiante do Partido dos Trabalhadores (PT).

Com o fracasso definitivo da luta foquista, isolada das massas populares, e o fim do

chamado “milagre econômico brasileiro” (1968-1973), quando as taxas de crescimento eram elevadas e foram declinando com o impacto da crise mundial do capitalismo, reforçaram-se as campanhas pela redemocratização do país, centradas nas ações do MDB, que obteve a partir de 1974, resultados eleitorais importantes. Desenvolviam-se também ações da Teologia da Libertação nas comunidades de base da Igreja, mesclando uma crítica à estrutura e atividade tradicional da instituição à opção preferencial pelos pobres.

A partir de meados dessa década, o movimento operário começa a se organizar novamente,

culminando com as greves e manifestações do final dos anos 1970, em defesa de suas reivindicações econômicas e melhorias das condições de trabalho, deterioradas pela crise que abatia a ditadura e que se potenciava a partir da crise mundial do capitalismo, culminando com greves operárias, em particular na região do ABC Paulista, que se expandiram por vários outros espaços. A retomada do movimento operário foi fundamental para a reorganização e reforço da luta da esquerda contra a ditadura em definhamento e contra o processo de exploração a que eram submetidos os trabalhadores no país.

No campo trotskista, as cisões do posadismo deram origem aos grupos Organização

Comunista 1º de Maio e a Fração Bolchevique-Trotskista, que se fundiram em 1976, originando a Organização Socialista Internacionalista (OSI), que teve maior visibilidade na ditadura militar através do seu braço estudantil a Liberdade e Luta. A OSI publicou logo adiante a revista Luta de Classes. De todo modo, os grupos que faziam parte dessa organização partiam da crítica da luta armada foquista, isolada da organização das massas, e se voltam para a intervenção nas fábricas e sindicatos, tendo em vista a reorganização dos trabalhadores a partir das suas lutas por reivindicações econômicas e democráticas, tendo em vista a sua conversão em luta política. Assim, diz Campos, a OSI partia da consideração de que

os sindicatos atuais, herdados da legislação de Vargas, não são organismos independentes e têm servido como uma verdadeira camisa-de-força contra os trabalhadores. Eles são obstáculos à mobilização operária e instrumento fundamental do controle que a classe dominante exerceu sobre os trabalhadores durante 40 anos. Apesar disso, a OSI atua neles, pois reconhece que, por não dispor de qualquer tipo de organização independente, os operários procuraram se defender utilizando os únicos

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meios que possuíam às mãos e afluíram aos sindicatos regidos pela CLT para lutar por seus direitos. Este objetivo é incompatível com a própria natureza desses sindicatos e o movimentos dos trabalhadores, se dirigido por uma política independente, pode provocar o rompimento dos vínculos que os unem ao Estado e a criação de novas entidades livres. A OSI prega também a criação de uma Central Sindical Independente, cujo ponto de partida deve ser a união de todas as correntes políticas que defendem a independência de classe (1998:74-75).

Quando da formação do Partido dos Trabalhadores, caracterizando-o inicialmente como

mais um partido da ordem, a OSI colocou-se contra ele, mas depois reformula as suas posições e ingressa no novo partido, passando a vê-lo como uma alternativa de organização da classe trabalhadora.

No final dos anos 1970, despontam também as lutas e a organização das massas

camponesas, forjando ocupações, entre as mais conhecidas, a da Fazenda Macali, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, em 1979, a partir da qual se plantaram as sementes do atual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A reorganização dos movimentos no campo e na cidade deu origem à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ao Partido dos Trabalhadores (PT), no início dos anos oitenta. O PT foi constituído por intelectuais, militantes, operários, juventude e setores da Igreja. No seio do novo partido, abrigaram-se diversas correntes, que iam da esquerda revolucionária marxista a tendências reformistas e democratizantes.

O processo de redemocratização negociada com os militares levou ao restabelecimento dos

governos civis, com a eleição pelo Colégio Eleitoral em 1985 de Tancredo Neves. Com sua morte, assumiu o poder José Sarney. O governo Sarney foi marcado pela instabilidade econômica e pela inflação descontrolada, conjuntura na qual foram aplicados sistematicamente planos econômicos, que rebaixavam os salários e as condições mais elementares de vida em escala ampliada dos trabalhadores e as condições de vida das massas operárias. O crescimento das lutas operárias na segunda metade da década de 1980, com greves, manifestações e passeatas foram direcionadas para a institucionalidade, levando-se à contenção da luta de classes, no momento em que se poderia potencializá-la na perspectiva do desenvolvimento da luta revolucionária. No final dos anos 1980, o PT concorre à sucessão presidencial com a candidatura de Luis Inácio Lula da Silva, sendo derrotado por Fernando Collor de Melo.

Inicia-se nitidamente uma época de implantação de fortes medidas neoliberais de impacto na

vida do funcionalismo público, dos trabalhadores assalariados e da juventude, com a liberalização do capital, destruição de direitos e conquistas sociais, corrosão salarial, contenção de investimentos na produção e na geração de empregos, altas taxas de juros, aumento de impostos, superávits fiscais, corte de verbas para políticas sociais, como educação, saúde e habitação, cumprindo rigorosamente as determinações de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Essas políticas são ampliadas e aprofundadas nos governos seguintes de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, como a implantação do Plano Real, das políticas de superávit fiscal, de privatizações das estatais, da reformas constitucionais e legais de interesse da burguesia nacional e do grande capital internacional, em desfavor dos trabalhadores, dos aposentados e dos servidores públicos.

Ao longo dos anos 1980 e 1990, marcados pela débâcle da ex-URSS e do Leste Europeu,

resultado, aliás, do longo e complexo processo de dominação da burocracia stalinista e da restauração do capitalismo em curso nas décadas anteriores, pela integração cada vez mais ampla e profunda dos Partidos Comunistas (PCs) ao gerenciamento dos negócios comuns da burguesia e à perspectiva da humanização do capitalismo, através das eleições, do parlamento e do poder do Estado burguês, o Partido dos Trabalhadores passa por uma depuração interna, com mudanças de estatutos, abandono de posições mais radicais, que poderiam despertar a desconfiança no partido do eleitorado e da burguesia, a pressão sobre a militância revolucionária e, finalmente, a exclusão ou saída de correntes políticas, como a Causa Operária, hoje, Partido da Causa Operária (PCO), a Tendência pelo Partido Operário Revolucionário (TPOR), atualmente

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Partido Operário Revolucionário (POR) e a Convergência Socialista (CS), que hodiernamente forma o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), todos de orientação trotskista.2

Recentemente, um conjunto de militantes, agrupamentos e parlamentares petistas constituiu

outro partido, de nome Partido Socialismo e Liberdade (Psol). No interior do Psol convivem diversas outras tendências, tais como Movimento de Esquerda Socialista (MES), Ação Popular Socialista (APS), Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL), entre outras. Algumas outras correntes permanecem no interior do PT, mesmo diante da profunda adaptação do partido à política e ao Estado burguês, das relações com os partidos orgânicos da burguesia, bem como da política reformista majoritária, supondo poder retroagir ao que chamam “PT das origens”, enquanto outras correntes simplesmente reproduzem, com pequenas nuances a estratégia e as táticas eleitorais petistas, de administrar o estado burguês e humanizar o capital. Mesmo diante do profundo comprometimento teórico-político do PT com a classe dominante e o Estado capitalista, algumas organizações que se reivindicam do trotskismo permaneceram em seu interior, tais como O Trabalho (OT), de orientação lambertista (Pierre Lambert) e a Democracia Socialista (DS), vinculada ao Secretariado Unificado (SU) mandelista (Ernest Mandel).

A crise internacional do final dos anos 1990, e seus impactos no Brasil, a falência das

políticas neoliberais e de suas pretensões de conter a crise e modernizar o país, além dos retrocessos nos direitos e conquistas sociais levaram ao desgaste do governo de FHC e a ascensão de Luis Inácio Lula da Silva, do PT. O clima de desconfiança das frações burguesas quanto ao destino de um governo petista levou a pressões da mídia, das entidades de classe da burguesia e dos organismos internacionais, no sentido de que o PT e Lula se comprometessem de manter os acordos, contratos e obrigações assumidas anteriormente pelo governo FHC.

A pressão teve seus resultados: o PT e o candidato Lula da Silva assinaram a Carta aos

Brasileiros, na qual assumiram claramente a responsabilidade quanto à manutenção da ordem e da disciplina econômica, o respeito aos compromissos assumidos pelo governo passado (FHC) com o capital. Não havia, portanto, com que o capital nacional e internacional se preocupar, afinal, o virtual vencedor da pugna eleitoral havia assumido inteiramente perante os amos capitalistas o horizonte das regras do jogo democrático burguês e da proteção da propriedade privada e suas conseqüências jurídico-políticas.

De fato, Lula foi eleito em 2002, com um programa que contemplava a democratização das

estruturas do Estado e da administração, de abrandamento das tendências oligárquicas dominantes historicamente, de contensão das políticas neoliberais e das privatizações, de atendimento das políticas públicas e dos anseios da população pobre, enfim, de abertura de uma etapa de desenvolvimento nacional harmonioso. O novo governo recebeu incontinenti o apoio de organizações sociais importantes do movimento operário, por centrais sindicais (em especial a CUT) e sindicatos que congregam importantes setores do proletariado e do conjunto dos trabalhadores assalariados, do movimento camponês, em particular sua maior e combativa organização (MST), do movimento estudantil, por sua mais influente entidade (UNE), bem como de entidades e organizações dos movimentos populares. Além do mais, uma gama de intelectuais passaram a ver no governo Lula da Silva, um governo em disputa, que pode ser direcionado para o atendimento dos interesses do conjunto dos trabalhadores. E, não obstante, o governo Lula da Silva tem na sua base de apoio um amalgama de partidos burgueses.

O governo Lula tem articulado a continuidade da política econômica anterior (plano real,

superávit primário, cumprimento de metas com FMI e Banco Mundial, altas taxas de juros, algumas privatizações e concessões permanentes ao capital nacional e internacional, particularmente aos Bancos e ao Agronegócio) com programas assistencialistas, em grande parte montados no governo FHC, como o programa Bolsa Família, além de intervenções das chamadas políticas afirmativas, particularmente na educação como o Prouni, Reuni, Projovem e a política de quotas. Longe de superar os graves problemas sociais e históricos do país, o governo Lula, pela influência do Partido dos Trabalhadores nos movimentos sociais e nas mais importantes organizações da classe operária (CUT e sindicatos estratégicos do proletariado) os posterga com

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os programas assistencialistas e, com isso, contém temporariamente, na medida do possível, o aprofundamento da luta de classes no país, mantendo os explorados sob sua tutela.

Para tanto, o PT e demais partidos de sua base ligados organicamente aos movimentos

sociais tiveram que enrijecer a burocratização dos organismos de luta do proletariado, dos demais trabalhadores assalariados, de servidores públicos e estudantes, levando-os a um processo de subordinação ao aparelho do Estado burguês a um nível impressionante. O governo petista conseguiu realizar aquilo que o governo de FHC (PSDB) não teve êxito: as reformas de interesse do capital. Assim é que as reformas da previdência, das leis trabalhistas e da organização sindical encontram-se no congresso, sendo aprovadas fragmentariamente, mas rumo à conclusão definitiva. Essas reformas têm como desiderato limitar ou extinguir direitos e conquistas dos explorados ao longo das últimas décadas, reforçando as possibilidades de negociação de direitos, evidentemente em favor da parte mais forte: o capital. Alem disso, a reforma sindical reforça as tendências de burocratização das entidades e organizações, potenciando o processo de fragmentação organizativa da classe operária, em razão da luta aparelhista por uma fatia dos recursos disponíveis. Essa política de contenção da luta de classes teve nos primeiros anos do governo Lula um êxito considerável, tendo em vista que o PT e o governo foram extremamente beneficiados pela conjuntura econômica mundial (2002-2007) que se instalou depois de sua primeira eleição, com o crescimento da demanda mundial por matérias primas (commodites). O crescimento da China elevou as exportações brasileiras e fez subir os índices favoráveis da balança comercial.

A estabilidade econômica e as altas taxas de juros no país abriram espaço para a entrada e

circulação do capital financeiro internacional, mantendo as reservas nacionais em dólares altas. A participação direta do governo e do presidente nas negociações comerciais, como representantes do empresariado, ampliou as negociações entre o Brasil e outros países. Entretanto, o crescimento e a estabilidades anteriores estão sendo enormemente comprometidos pela crise econômico-financeira. O impacto da crise na vida dos trabalhadores, incrementando o desemprego, a miséria e a instabilidade impelem os explorados par manifestações, greves e ocupações.

As aspirações e ilusões democráticas semeadas pelo novo governo, de possibilidade de

transformação social e realização de tarefas históricas (como a reforma agrária) através das instituições estatais, a pouco e pouco, chocam-se com uma realidade social, econômica e política marcada pela profunda exploração de classe e pela submissão dos governos federal, estaduais e municipais aos ditames e lógica do capital nacional e internacional e aos organismos ideológico-políticos do imperialismo (Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN, Fundo Monetário Internacional - FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio - OMC).

A experiência política com o governo Lula mostra às organizações revolucionárias e aos

militantes de esquerda as limitações dos projetos de democratização do Estado burguês e o esgotamento do reformismo, como saída para a luta dos explorados pela humanização da atual sociedade. O PT finalizou sua trajetória integrando-se completamente à política burguesa e ao gerenciamento do Estado e da crise capitalista. Não se pode mais esperar, do ponto de vista da luta capitalista, qualquer passo do PT, a não ser no sentido de aprofundar cada vez mais a sua atual situação de integração ao Estado burguês, constituindo-se, dessa forma, num obstáculo à constituição de um verdadeiro instrumento de luta dos trabalhadores e dos demais explorados, o partido revolucionário. Não há como superar as contradições da sociedade capitalista, que gera de um lado riqueza para a classe dominante e miséria para o conjunto dos explorados, e construir uma sociedade socialista sem a luta social através da ação direta (mobilizações, manifestações, ocupações, greves, protestos, etc.).

A classe operária, o campesinato, desempregados e sem-tetos, trabalhadores precarizados,

a juventude, enfim o conjunto dos explorados começa a se movimentar, embora estejam em condições muito desfavoráveis, a começar pela fragmentação do movimento operário, a existência de várias centrais sindicais e organizações (além da Central Única dos Trabalhadores - CUT, realcem-se a Força Sindical - FS, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras brasileiros – CTB), a burocratização das entidades de operários e estudantes, a redução das lutas aos aspectos

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econômicos e a direitos na órbita da cidadania burguesa e à pressão institucional. Também a União Nacional dos Estudantes (UNE) encontra-se há décadas burocratizada e sob domínio de força políticas, que emperram a luta e a organização revolucionária da juventude. Na atualidade, seguindo o caminho das demais organizações sindicais, aprofundou-se o processo de burocratização e estatização da entidade, que tantas lutas travou ao longo da história.

O encaminhamento da reforma sindical pelo governo Lula detonou um movimento de

autoproteção da burocracia, acelerando o processo de fragmentação organizativa dos explorados. Em meio a este processo de imposição de uma reforma sindical centralizadora, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) formou, junto com outras correntes políticas e setores dos movimentos sociais, a Coordenação Nacional de Lutas – CONLUTAS, que congrega um importante setor da vanguarda socialista. O Psol criou a Intersindical. Logo após, o PCdoB, que criticava a atitude tomada pelo PSTU de cindir a CUT, resolveu criar a sua própria central, a CTB. No momento atual, a CONLUTAS busca uma fusão com a Irtesindical, para fundar uma nova central. Resta discutir apenas qual o seu caráter e a composição social de classe. Tal como ocorre na esfera sindical, a UNE foi cindida, dando ensejo à formação de uma nova entidade, a Assembléia Nacional dos Estudantes Livre (ANEL, antes CONLUTE).

O que se tem em vista é que o processo de burocratização das organizações sindicais e das

centrais e a fragmentação organizativa da classe operária e dos explorados deverá se aprofundar em razão da luta encarniçada das correntes, organizações e partidos. Portanto, esta situação se mostra profundamente desfavorável à organização, mobilização e luta dos explorados pelas suas reivindicações mais elementares e pela superação das causas de sua opressão social e política. Diante de tamanha fragmentação e fraqueza dos movimentos sociais, apesar da profunda crise econômico-financeira em processo e das tendências instintivas de resistência das massas, fortalece a burguesa, que pode, então, impor, manipular, criminalizar e reprimir os movimentos sociais, em particular o movimento operário, que não conseguem responder à altura as ações truculentas dos capitalistas, seus governos e seu Estado burguês.

Entretanto, os trabalhadores na luta social terão de superar a presente fragmentação

organizativa e política, visto que a sua força diante do capital é a sua unidade, organização e a ação direta. A fragmentação apenas favorece à dominação da burguesia, que encontra as condições adequadas para impor seus interesses econômicos, políticos e sociais frente a crise. Neste sentido, a ação das burocracias na direção das entidades de trabalhadores e estudantes, mantendo privilégios, destruindo a independência política em relação ao Estado burguês, apoiando as ações dos governos, defendendo uma política sindical rebaixada e adaptada à lógica de dominação do capital favorece permanentemente a fragmentação da luta operária e estudantil. Por isso, a luta pela unidade dos explorados passa também pela destruição de toda e qualquer forma de burocratização nos sindicatos, centrais e entidades dos trabalhadores, estudantes e demais explorados, aplicando ao seu funcionamento a democracia proletária.

Os desafios são, portanto, imensos. A crise teve também um aspecto positivo em relação ao

marxismo e à luta de classes em nosso país. Não há mais razões teóricas e práticas para continuar acreditando nas teses neoliberais, reformistas e pós-modernas da crise ou da morte do marxismo. A dinâmica econômica, social e política das últimas décadas demonstra cada vez mais a justeza, profundidade e atualidade das análises de Marx e Engels sobre as contradições da sociedade burguesa e as possibilidades de superação do capitalismo e construção do socialismo. Começamos a perceber o potencial fortalecimento do interesse no estudo do marxismo no Brasil, em várias instâncias de debate e da luta política, nos movimentos sociais, nas Universidades, nos agrupamentos político-partidários.

O importante é que assim como o capitalismo é um sistema econômico-social mundial, a

teoria que lhe opõe uma crítica férrea, que explica as causas do lucro e da riqueza da classe dominante, que expõe as suas contradições e suas crises periódicas, que acumulam historicamente contradições insuperáveis pela a ação da burguesia e do seu Estado, que se propõe colocar-se como força material organizativa dos explorados, esta teoria, nascida na Europa, por uma conjunção de forças sociais, políticas, econômicas e teóricas, expandiu-se para

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todos os rincões do mundo capitalista internacional. Da Alemanha à Rússia, de Portugal ao Brasil, da Bolívia aos Estados Unidos da América, da França ao Japão, da China aos países asiáticos, não há um só deles que não tenha ouvido falar das teses de Marx e Engels. Não há um só país, que não tenha sido sacudido por acontecimentos sociais, que não tenha, de alguma maneira, ligação com o marxismo e a luta do proletariado. A luta socialista no Brasil se articula necessariamente com os combates internacionais. Eis um indício de que a luta se renova e se amplia em nosso país.

Em síntese, podemos concluir: a) que o marxismo começa, de fato, a ter repercussões no Brasil a partir da Revolução

Russa de 1917, quando militantes anarquistas e anarcossindicalistas começam a romper com a antiga orientação e a se aproximar das idéias marxistas, sob influência dos acontecimentos da revolução de Outubro. O Partido Comunista do Brasil (PCB) só seria fundado em 1922 e reconhecido como seção da Terceira Internacional em 1924, depois de críticas aos resquícios anarquistas da militância dos primeiros comunistas brasileiros. De fato, o passado anarquista da militância, a escassa assimilação das idéias revolucionárias marxistas e a incipiente inserção no movimento operário foram responsáveis por inúmeros problemas políticos e organizativos nos primeiros anos do novo partido. As primeiras tentativas de aplicação do marxismo à análise da realidade brasileira também não lograram êxito;

b) quando estouram as divergências entre a Oposição de Esquerda e os seguidores de

Stalin na Rússia, as repercussões não puderam ser contidas. Já no final da década de 1920, um grupo de militantes se aproximou das idéias de Leon Trotsky sobre o movimento socialista na Rússia e internacional, sendo expulso do PCB. Papel pioneiro coube a Mário Pedrosa que tomou contato com as teses da Oposição de Esquerda e se aliou ao trotskismo. Difundiu as idéias quando da sua volta ao Brasil e junto com um grupo de militantes fundou a Liga Comunista Internacionalista;

c) tomando definitivamente a direção do PC russo, do Estado Soviético e da Internacional

Comunista, as idéias stalinistas passaram a ser disseminadas pelos PCs em todo o mundo através da tradução dos textos e discursos de Stalin e dos catecismos soviéticos. No Brasil, esse processo se torna mais forte a parte dos primeiros anos da década de 1930. Os PCs passam a aplicar sistematicamente as orientação do PC russo, manejando as idéias marxistas (interpretadas pela dogmática stalinista) de acordo com os ziguezagues soviéticos e da Internacional, que levava o PCB de posições direitistas (contra as greves e a favor da unidade nacional, por exemplo) a posições ultraesquerdistas (organização de um golpe de estado, como a Intentona Comunista, de 1935). Em geral, o PCB buscou uma aliança dos explorados com uma suposta “burguesia nacional progressista”, que seria capaz de superar o atraso e modernizar as relações sociais, políticas e econômicas do país. Portanto, o PCB aplicou sistematicamente a tese da “revolução por etapas”;

d) a crise do stalinismo e a denúncia dos crimes de Stalin e do culto à personalidade

existente nos PCs abriram uma crise também no PCB, que se dividiu a partir do começo dos anos 1960 em Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Este último considerava as mudanças internas do PCB como revisionismo e traição ao processo de construção do socialismo supostamente implementado na era Stalin. Portanto, o PCdo B colocava-se claramente contra as denúncias dos crimes stalinistas, justificando-os politicamente. Pois bem, na década de 1960 diversas correntes surgem a partir da crise do PCB e influenciadas pela Revolução Chinesa, de 1949, e pela Revolução Cubana de 1959, partem para a luta armada (foquista) contra a ditadura, luta esta que consideravam a concretização da guerrilha. Tratava-se de grupos de militantes e intelectuais armados, mas distanciados da luta concreta da classe operárias e dos explorados. Inúmeros militantes e jovens ativistas foram mortos e as organizações exterminadas;

e) com a crise da ditadura militar na década de 1970 e o processo lento, gradual e negociado

de abertura, provocado pelo esgotamento político e econômico do regime, em face da crise mundial da economia naqueles anos, a classe operária pressionada pelo arrocho salarial e pelas

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péssimas condições de vida e trabalho começa a se reorganizar, despontando as greves do final da década, levando à formação da CUT e do PT. Outros movimentos como de estudantes e camponeses começam a se organizar também. Assim formou-se o MST. Outras correntes políticas, como as trotskistas, se agregam às lutas estudantis e operárias. O PT abrigava em seu seio inúmeras tendências (de reformistas a revolucionárias), intelectuais, setores “progressistas” da Igreja. Ao longo das décadas de 1980 e começos de 1990, contexto marcado internacionalmente pela quebra da ex-URSS e restauração das relações de produção capitalistas, pelo fim das “democracias populares” do Leste Europeu, pelo longo aprofundamento da integração dos PCs no Estado e na democracia burguesas, o PT passa por mudanças internas no sentido de desfazer-se das correntes revolucionárias, que se subordinavam à estratégia dirigente de adaptação à política e ao estado burguês. Esse processo, que finaliza com a subscrição da Carta aos Brasileiros, e a eleição de Lula da Silva, em 2002, para a Presidência da República, fechou um ciclo histórico do movimento operário e do PT no Brasil. O PT esgotou-se historicamente e passou, de fato, de partido orgânico do movimento operário a pilar fundamental para a continuidade do capitalismo, controle das organizações e movimentos sociais e gerenciamento dos negócios comuns da burguesia, por meio do Estado capitalista. Mas, neste percurso, o PT arrastou correntes, organizações e partidos, antes adeptos da revolução socialista como estratégia, forçando-os, para continuar no interior do maior partido a reformular seus objetivos estratégicos, substituindo (ou tornando inócua) a estratégia da revolução e ditaduras proletárias por um governo dos trabalhadores da cidade e do campo, como produto das eleições burguesas e não da insurreição dos explorados;

f) o momento atual do marxismo no Brasil passa pela assimilação entre a jovem militância da

teoria marxista e da experiência nacional e internacional dos movimentos sociais, em particular do movimento operário. Somente assim, poderemos avançar na tarefa de elaboração do programa da revolução social em nosso país, como elo da luta socialista internacional, e na constituição de um poderoso partido operário revolucionário, que tenha como estratégia a revolução proletária, a superação da propriedade privada e a constituição da propriedade coletiva dos meios de produção sob a base do trabalho associado, em síntese, a construção do socialismo. Esse processo de assimilação das idéias e das experiências históricas passa necessariamente pela luta de classes, pela intervenção nos movimentos sociais. No calor da luta de classes, as idéias socialistas são cotejadas com a realidade, tornando-se um guia valioso na compreensão da história do país, da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, da dinâmica das classes sociais e suas relações, do caráter da revolução social e das tarefas a serem desenvolvidas. A tarefa histórica de superação da crise de direção revolucionária em nosso país não pode ser objeto de improvisos, mas fruto de uma séria assimilação da teoria revolucionária, o marxismo, e da experiência dos movimentos sociais nacional e internacionalmente, o que implica o estudo crítico e autocrítico da história do marxismo no Brasil.

NOTAS

1Sobre as diversas correntes socialistas no movimento operário e a trajetória do marxismo no Brasil, ler os seguintes autores: João Quartim de Moraes e Daniel Aarão Reis (orgs.), História do marxismo no Brasil (Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2007); Leandro Konder, Históira das idéias socialistas no Brasil (São Paulo, Expressão Popular, 2003) e A derrota da dialética (São Paulo, Expressão Popular, 2009); Michael Löwy (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006; Hermínio Linhares, Contribuição à história das lutas operárias no Brasil (São Paulo, Alfa Ômega, 1977); Everardo Dias, História das lutas sociais no Brasil (São Paulo, Alfa Ômega, 1977); Carmen Lúcia Evangelho Lopes, Sindicatos no Brasil (São Paulo, Global, 1986); Fernando Antônio Azevedo, As Ligas Camponesas (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982); Edgar Carone (org.), Movimento operário no Brasil (1945-1964) (São Paulo, Difel, 1981), Movimento operário no Brasil (1964-1984) (São Paulo, Difel, 1984) e O PCB (São Paulo, Difel, 1982); Luiz Alberto Moniz Bandeira, De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998); Muniz Bandeira, Clovis Melo e A.T. Andrade, O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967); Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira (São Paulo,

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Brasiliense, 1978); Daniel Aarão Reis, A revolução faltou ao encontro: Os comunistas no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1990); Marcelo Ridenti, Os fantasmas da revolução brasileira (São Paulo, Editora da Unesp, 1993); John W. Dulles, Anarquistas e Comunistas no Brasil (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977); Jacob Gorender, Combate nas Trevas (São Paulo, Ática, 1987); José Nilo Tavares, Marx, o socialismo e o Brasil (Rio de Janeiro, 1983); José Roberto Campos, O que é trotskismo (São Paulo, Brasiliense, 1998).

2Há inúmeras outras correntes políticas, que surgiram a partir de outras correntes acima identificadas, que reivindicam o trotskismo e a IV Internacional. Entre elas podemos citar: a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI – QI), a Liga Quarta-Internacionalista do Brasil (LQB), a Liga Estratégia Revolucionária (LER – QI).