Moeda, Política e Propaganda: As moedas de Constâncio II

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Moeda, Política e Propaganda: As moedas de Constâncio II, por Claudio Umpierre Carlan. Editora Artefato Cultural

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  • 1 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    CCLLUUDDIIOO UUMMPPIIEERRRREE CCAARRLLAANN

    AARRTTEEFFAATTOO CCUULLTTUURRAALL

  • 2012 Cludio Umpierre Carlan

    Direitos de publicao reservados a

    Artefato Cultural

    Editorao eletrnica e capa:

    (Ferrarezi)

    CIP-Brasil. Catalogao na Fonte

    Carlan, Cludio Umpierre

    Moeda, Poltica e Propaganda: As Moedas de Constncio II/ Cludio

    Umpierre Carlan- 1 ed. Santos: Artefato Cutlural.

    142 p.; 21 x 30 cm

    Carlan, Cludio Umpierre.

    Inclui bibliografia.

    ISBN 978-85-65210-02-7

    1. Histria. 2. Numismtica. 3. Poltica. 4. Constncio II. I. Ttulo.

    CDU 94331/361(37)

    [2012]

    Editora responsvel: Cristiane de Andrade Carvalho

    Instituto Artefato Cultural

    Santos, SP Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida,

    por qualquer meio, sem a expressa autorizao da Editora.

    *** Cumpra a lei e respeite os direitos autorais! No tire xrox de livro e no distribua

    cpias ilegais do arquivo digital. Isso crime e prejudica o autor e as editoras.***

  • Sumrio

    APRESENTAO .................................................................................................... 5

    PREFCIO ................................................................................................................ 6

    INTRODUO ......................................................................................................... 8

    AS PESQUISAS COM MOEDAS: UM DEBATE METODOLGICO. .......... 12

    Primeira etapa da anlise de contedo: anlise prvia da documentao

    disponvel e estabelecimento de um corpus documental ao qual ser aplicado

    aquele mtodo.* .................................................................................................... 13

    Segunda etapa da anlise de contedo: a categorizao. ................................. 15

    Terceira etapa da anlise do contedo: codificao e cmputo das unidades.

    ............................................................................................................................... 17

    Quarta etapa da anlise de contedo: a interpretao dos resultados. .......... 17

    ELEMENTOS DA HISTRIA DO BAIXO IMPRIO ROMANO

    INCIDENTES NA ICONOGRAFIA MONETRIA. .......................................... 23

    Elementos da Histria Militar ............................................................................ 23

    Elementos da Histria Poltica ........................................................................... 27

    Elementos da Histria Religiosa......................................................................... 30

    Elementos de Histria Financeira (com nfase no fator monetrio) .............. 36

    AS MOEDAS DE CONSTNCIO II NO ACERVO DO MUSEU HISTRICO

    NACIONAL: CARACTERSTICAS E ANLISE .............................................. 41

    O Aervo ................................................................................................................. 41

    A Origem .......................................................................................................... 41

    Tcnicas de Produo ...................................................................................... 42

    Smbolos Monetrios ....................................................................................... 43

    Emisses Monetrias ....................................................................................... 47

    Tipologia das Medas de Constncio II: aplicao do mtodo de anlise de

    contedo. ............................................................................................................... 51

    Moedas de Tpo Militar .................................................................................... 51

    Vitria ............................................................................................................... 51

    Fortificaes ..................................................................................................... 53

    Cavaleiro Derrotando um Inimigo. ............................................................... 54

    Soldado Derrotando Inimigo a P .................................................................. 55

  • 4 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Dois Soldados e um Lbaro ............................................................................ 56

    Um Soldado E Dois Lbaros ........................................................................... 57

    Dois Soldados com Dois Lbaros ................................................................... 57

    Moedas Laudatrias ou Votivas ..................................................................... 58

    Moedas Ligadas Religiosidade .................................................................... 59

    Imperador Navegando .................................................................................... 61

    Imperador com Dois Observadores ............................................................... 62

    Constncio em P Acompanhado do Lbaro e do Globo ............................ 62

    Altar .................................................................................................................. 63

    Moedas Simblicas .......................................................................................... 63

    Algumas Concluses Preliminares ..................................................................... 64

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 65

    CATLOGO DE MOEDAS DE BRONZE DO IMPERADOR CONSTNCIO

    II CONTIDAS NA COLEO DO MUSEU HISTRICO NACIONAL / RJ. 69

    FONTES ................................................................................................................. 130

    Impressas ........................................................................................................ 130

    Dicionrios e Enciclopdias .......................................................................... 131

    Referncias ......................................................................................................... 132

    Especficas ...................................................................................................... 132

    Terico-metodolgicas .................................................................................. 137

    Notas do Prefcio e da Introduo ............................................................... 142

  • APRESENTAO

    A publicao do livro Moeda, Poltica e Propaganda: as Moedas de Constncio II

    concretiza o brilhante resultado da pesquisa de Cludio Umpierre Carlan, realizada no Museu

    Histrico Nacional, responsvel pela guarda da maior coleo numismtica da Amrica Latina,

    reunindo um conjunto de mais de 130 mil moedas e outros objetos pecunirios de procedncias e de

    pocas variadas.

    Das mais de 30 mil moedas da Antiguidade Romana, o autor selecionou para seu estudo

    aproximadamente 259 cunhadas no perodo do Imperador Constncio II, que resultou na presente

    publicao.

    gratificante para a equipe do Museu Histrico Nacional poder oferecer ao pblico uma

    obra baseada em seu contedo documental, comprovando a importncia da pesquisa que utiliza

    objeto museolgico como elo entre o Museu e a Universidade.

    O leitor descobre nas pginas do livro a riqueza que esses pequenos objetos so capazes de

    guardar e que o autor atravs de seu apurado estudo nos revela com elegante objetividade.

    Vera Lcia Bottrel Tostes

    Diretora do Museu Histrico Nacional / RJ

  • PREFCIO

    Gostaria de comear parabenizando o professor e pesquisador Cludio Umpierre Carlan

    pelo livro Moeda, Poltica e Propaganda: as Moedas de Constncio II. Trata-se de um tipo de

    publicao pouco comum no mercado editorial brasileiro, na medida em que a referida obra o

    resultado direto de uma pesquisa concluda de Mestrado. Certamente aqueles leitores interessados

    no estudo do mundo antigo, em particular no perodo imperial romano, tero a oportunidade de

    entrar em contato com um trabalho srio e de qualidade.

    visvel, ao longo dos ltimos anos, o crescente nmero de livros e de artigos acadmicos

    publicados no Brasil, feitos por pesquisadores brasileiros, cujos temas esto relacionados s mais

    diferentes reas da Antiguidade oriental e ocidental. Podem ser apontados vrios aspectos para

    explicar este crescimento, entre os quais eu gostaria de destacar: (a) o expressivo aumento de

    professores com doutorado nas mais diferentes reas do mundo antigo; (b) a atuao destes

    especialistas nos programas de ps-graduao dos cursos de Histria; (c) um maior nmero de

    Bolsas de Mestrado, Doutorado e Ps-Doutorado destinadas aos pesquisadores que querem

    trabalhar com temas ligados Antiguidade; (d) a nfase dada, atravs das Bancas de Seleo

    para a contratao de professores, na escolha de docentes com titulao especfica para lecionar

    disciplinas ligadas ao mundo antigo oriental e ocidental; (e) o nmero cada vez maior de encontros

    cientficos, sejam eles de mbito regional e nacional. Estas reunies tm proporcionado a troca de

    idias entre especialistas, bem como o desenvolvimento da crtica, sem a qual no haveria a

    possibilidade do aumento da qualidade das pesquisas desenvolvidas aqui no Brasil; e (f) a criao

    de laboratrios e de centros de pesquisas destinados exclusivamente ao estudo de questes

    relacionadas s mais diferentes reas da Antiguidade.

    Este livro se encaixa em muitos dos aspectos apontados acima. Ele o resultado de uma

    Dissertao de Mestrado desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense, sob a orientao do Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso.

    Eu gostaria de chamar a ateno dos leitores para dois importantes aspectos contidos neste

    livro: (1) a documentao numismtica utilizada na pesquisa as moedas batidas durante o

    reinado de Constncio II (337 - 361) pertence ao acervo do Museu Histrico Nacional do Rio

    de Janeiro. Este dado, por si s, j maravilhoso: quantos brasileiros sabem que o nosso pas, em

  • 7 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    particular, o referido museu, tem uma coleo com mais de cem mil moedas das mais variadas

    procedncias, das quais, trinta mil pertencem antiga Roma (Repblica e Imprio)? Eu ousaria

    dizer: um nmero irrisrio de brasileiros, incluindo a os prprios cariocas e fluminenses, tem esta

    informao. Neste caso, este livro j traz consigo o grande mrito de tornar pblico parte de um

    importante acervo at ento desconhecido da imensa maioria dos brasileiros (inclusive muitos

    especialistas em Antiguidade); (2) o uso de material numismtico, como documentao bsica

    para uma pesquisa na rea de Histria, rarssimo, principalmente aqui no Brasil, onde uma

    parcela grande de historiadores opta por trabalhar quase que exclusivamente com fontes escritas,

    de preferncia aquelas que estejam j impressas em papis e guardadas em arquivos e bibliotecas.

    Este livro proporciona, ao seu leitor, uma tima oportunidade de saber como possvel obter dados

    histricos de documentos, cujas informaes so apresentadas, em sua maior parte, na forma de

    imagens. Estes dois aspectos representam um interessante desafio assumido pelo autor, mas que, ao

    longo da pesquisa, ele soube muito bem enfrent-lo e super-lo.

    Por fim, mas no menos importante, vale a pena registrar que o professor Cludio

    Umpierre Carlan continuou com o seu firme propsito de dar visibilidade ao importante acervo

    numismtico do Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro, em especial quela parte voltada

    para o Imprio Romano. Isso ficou patente na sua Tese de Doutorado, tal, como agora, na sua

    atual pesquisa de Ps Doutorado, que est em andamento na Universidade Estadual de

    Campinas, sob a superviso do Dr. Pedro Paulo Abreu Funari.

    Andr Leonardo Chevitarese

    Professor Associado do Instituto de Histria da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • INTRODUO

    Em 2000, o texto do professor Cludio Umpierre Carlan que ora publicado foi

    defendido como dissertao de mestrado no Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense, sob o ttulo Moeda, Poltica e Propaganda: As Moedas de

    Constncio II, tomando como fonte central o corpus constitudo pelas 259 moedas do imperador

    Constncio II (317-361) que constam do acervo do Museu Histrico Nacional. O trabalho cujo

    ncleo principal foi a elaborao de til catlogo numismtico privilegiou, na anlise, os

    aspectos polticos e ideolgicos iluminados pelas moedas tomadas como documentos, mediante a

    aplicao de tcnicas de anlise de contedo aos textos e imagens contidos nas moedas romanas

    estudadas.

    No havendo razo alguma para repetir ou sintetizar, nesta introduo, o prprio texto que

    o leitor tem em mos, preferi inspirar-me em obra publicada um ano aps a defesa da dissertao

    do professor Carlan, com o fito de responder pergunta: o que a moeda?

    Em 2001, o antroplogo francs Alain Testart publicou um volume por ele organizado

    sobre as origens da moeda e, em seu prprio artigo, tratou longa e inovadoramente da natureza da

    moeda. Comeou por mostrar que a moeda habitualmente definida mediante uma enumerao de

    suas funes: meio de troca, padro de valor, reserva de valor e ponto que tendeu a ser deixado

    de fora da maioria das consideraes desde o fim do sculo XIX meio de pagamento. verdade

    que a moeda tem, tambm, usos extramonetrios: ela pode ser considerada, por exemplo, a partir

    da simbologia inscrita em sua iconografia e em seus textos o caso do livro do professor Carlan

    em suas consideraes centrais ou como elemento de prestgio e ostentao. Mas no possvel

    defini-la deixando de lado seus aspectos econmicos, portanto, seus usos propriamente monetrios.

    A definio de moeda que por fim prope Testart a seguinte:

    Consideraremos como moeda: - uma espcie de bens, ou mais de uma, sendo limitado o nmero

    dessas espcies; - cuja cesso, em quantidade determinada, no seio de uma

    comunidade de pagamento, prescrita ou preferida na maioria dos pagamentos e reputada como tendo valor liberatrio.i

  • 9 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Testart mostra que tal definio obedece ao princpio racional de economia (navalha de

    Ockam), pois enuncia somente as propriedades mnimas do objeto a definir, de que as outras

    possam ser deduzidas. Assim, de sua definio deduz-se o fato de ser a moeda o bem por

    excelncia ou a forma suprema da riqueza, a aceitao geral da moeda como meio de pagamento e

    as suas funes subsequentes logicamente de meio de troca, de reserva de valor e de estalo

    (padro) de valor.

    Outro ponto a meu ver muito pertinente da anlise de Testart consiste em apontar que a

    moeda a inveno do anonimato.ii Isto sobretudo verdadeiro ao se tratar da moeda cunhada,

    da moeda stricto sensu. Previamente apario da moeda, predominavam na economia as relaes

    entre pessoas vistas como seres individualizados, definidos, inseridos em redes personalizadas de

    trocas ou de dvidas: todo o contrrio do anonimato, portanto. No Egito faranico, um arteso do

    povoado de construtores das tumbas dos reis poderia trocar alguns dias de trabalho de uma escrava

    domstica por um dado objeto, ambos os elementos da troca avaliados em pesos de metal: o modo

    pelo qual tinha direito ao trabalho dessa escrava, entretanto, nada tinha de annimo ou

    generalizado. A moeda, no entanto, ao surgir, tendeu a despersonalizar e generalizar as relaes

    econmicas.

    Em sua definio, o antroplogo francs volta a enfatizar a moeda como meio de

    pagamento, contrariamente tendncia dominante entre os economistas a partir do marginalismo.

    Tal tendncia ligou-se considerao preferencial ou exclusiva da moeda como intermediria

    privilegiada das trocas. E, no entanto, se todas as trocas envolvem pagamento (imediato ou

    diferido), nem todos os pagamentos vinculam-se a trocas: no envolvem trocas, por exemplo, os

    pagamentos de impostos. A razo principal de terem os marginalistas deixado de lado ou

    ativamente combatido a noo da moeda como meio de pagamento na independncia das trocas

    parece ter sido que a Economia, desde o final do sculo XIX, tratou ao mximo de livrar-se, em

    suas anlises, dos elementos sociais, jurdicos e polticos; e, na viso econmica pura, tendeu-se

    a tudo centrar na troca de mercadorias e na teoria da formao dos preos, o que pode fazer

    sentido no relativo economia estritamente contempornea mas, no, ao serem estudadas

    historicamente as economias de sociedades no-capitalistas.

    Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o

    resultado final de dois processos de seleo. O primeiro a passagem pelo filtro definido pelo

    conjunto de limitaes estruturais sobre as quais os agentes no tenham controle que reduz as

  • 10 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    possibilidades alternativas de agir, de seu nmero terico a um conjunto menor de aes

    efetivamente possveis. E o segundo outro filtro, o do mecanismo que leve a escolher, dentre as

    aes factveis remanescentes, a que ser efetivamente realizada. As cincias humanas e sociais

    sem apresentar tendncias contrastantes ao considerarem estes dois processos de seleo. O

    economista, ao aceitar ordinariamente uma teoria da escolha racional, costuma negligenciar (ou

    minimizar) em muitos casos o primeiro e a concentrar-se no segundo (alis, partir da suposio de

    que as preferncias dos seres humanos sejam, no fundamental, idnticas ou similares,

    independentemente dos perodos da Histria e dos tipos de sociedade). O historiador, o antroplogo

    e muitos dos socilogos, pelo contrrio, concentrar-se-o no primeiro filtro ou processo, sublinhando

    coisas como cultura, ideologia, tradio ou valores. Os indivduos ou grupos que agem so

    considerados pelo economista como se fossem atrados por distintas recompensas, ao decidirem entre

    formas alternativas de agir; por outros cientistas sociais, como se fossem impelidos a dadas

    escolhas. De certo modo, a atitude dos economistas baseia-se na intencionalidade; a de outros

    cientistas sociais, frequentemente, na causalidade cultural ou estrutural.iii As duas atitudes

    contrastantes parecem ter a ver com a diferena estabelecida certa vez por Claude Lvi-Strauss

    entre o que, naquela ocasio, props chamar de cincias humanas (como a Antropologia ou a

    Histria: aquelas que se interessam pelas formas variveis das estruturaes sociais, por mltiplas

    sociedades) e de cincias sociais (as que, como a Economia, se instalam, para efetuar seus

    trabalhos, num nico tipo de sociedade.iv Mas, ipso facto, a validade dos conceitos dos modernos

    marginalistas torna-se duvidosa para aplicao a qualquer sociedade pr-moderna.

    O livro do professor Carlan ocupa-se, prioritariamente, com os aspectos simblicos das

    moedas de Constncio II, o que perfeitamente legtimo. Como quaisquer objetos que contenham

    textos e imagens, smbolos portadores de ideologia podem detectar-se e estudar-se nas moedas. O

    que no tem qualquer legitimidade, mas deriva do vis j mencionado e restritivo da moderna

    Economia, considerar, por exemplo, que a moeda tenha surgido, na Antiguidade mediterrnea,

    seja devido a razes econmicas, seja em funo de razes ticas, polticas, ideolgicas, em suma,

    extraeconmicas. assim que, nos estudos das origens da moeda na antiga Grcia, foi moda, em

    certa poca, declarar ser sua inveno explicvel por consideraes ticas, polticas, militares,

    religiosas; mas, no, econmicas.v Isto porque o entendimento do que seja econmico se restringiu

    crescentemente, desde o final do sculo XIX, s a trocas e preos. Tambm curioso que se

    confunda a suposta intencionalidade dos criadores da moeda antiga com o que ela de fato foi ou

  • 11 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    fez. Ora, o mais comum na histria humana tem sido que os efeitos daquilo que se estabelece

    mediante decises intencionais excedam em muito as razes levadas em conta ao decidir.

    A produo brasileira, no campo dos estudos da Antiguidade, ainda muito pobre no ramo

    especfico da Numismtica. O livro do professor Carlan vem mostrar a existncia, no pas, de ricos

    acervos monetrios, e de ser possvel conseguir resultados interessantes e pertinentes por meio de sua

    anlise.

    Ciro Flamarion Cardoso

    Professor Titular de Histria Antiga e Medieval da

    Universidade Federal Fluminense

  • AS PESQUISAS COM MOEDAS: UM DEBATE METODOLGICO.

    O corpus documental aqui abordado faz parte do acervo existente no Museu

    Histrico Nacional do Rio de Janeiro (MHN / RJ), considerado o maior da Amrica

    Latina, com mais de 100 mil peas das mais variadas procedncias. Destas, 1824, das

    30 mil moedas romanas, pertencem ao sculo IV d.C., representando todos os imperadores

    do perodo. Aproximadamente 259 foram cunhadas a mando de Constncio II. Isto

    determinado pelo fato de possurem a sua efgie, ou por mostrarem eventos importantes

    ocorrido durante o seu governo. Isto tanto em suas nomeaes como Csar (NOB C),

    entre os anos de 324 a 337, quanto nas de Augusto (AVG), 337 a 361. Trata-se, a

    nosso ver, de um grupo de moedas bastante representativo do perodo e dos seus respectivos

    centros emissores, espalhados pelo mundo romano.

    Grande parte dessa coleo composta por moedas de bronze, naturalmente mais

    gastas, devido sua maior circulao nas camadas mais populares do Imprio, que as de

    prata ou de ouro. E, artisticamente falando, de categoria inferior, esto determinadas por

    fatores histricos precisos e definidos; o seu estudo pode vir a elucidar traos fundamentais

    do momento histrico em que essas peas se difundem.

    As moedas so guardadas em uma espcie de estante, denominada pelo corpo

    tcnico de medalheiro, em cujo interior acham-se vrias gavetas, conhecidas como

    lminas. No caso de Constncio, o medalheiro no qual se encontram tais documentos o

    de nmero 3, e as lminas so respectivamente as de nmeros 26, 27, 28 e 29. Seria bom

    ressaltar que a Seo de Numismtica, localizada na reserva tcnica do museu, acessvel

    apenas a pesquisadores e aos prprios funcionrios.

    De incio, pensvamos organizar a dissertao em torno de uma anlise talvez

    semitica das imagens contidas nas moedas de Constncio II presentes no MHN.

    Entretanto, no estando tais moedas classificadas, foi necessrio previamente, de acordo

    com instrues das numismatas Rejane Maria Lobo Vieira e Maria Beatriz Borba

    Florenzano, elaborar um catlogo detalhado de todo o acervo abordado.

  • 13 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Tal catlogo, alis, segundo as mencionadas especialistas, justificaria amplamente

    o Mestrado, por sua evidente pertinncia no guardo dos estudos da Antiguidade Clssica. A

    feitura do catlogo, com fotografia, por ns levada a cabo, das 259 peas, o que implica o

    dobro quanto ao nmero de fotos, justo que cada moeda tem dois lados, a inverso de tais

    fotos em fichas complexas contendo tambm descrio e bibliografia, ocupou-nos durante

    uma proporo de tempo de preparao deste texto desproporcionalmente grande em relao

    as que fora pensado de incio. Assim sendo, o catlogo de certo modo passou para o

    primeiro plano e as ambies da parte analtica da dissertao foram reduzidas.

    A utilizao das moedas como fonte no novidade. No pretendemos aqui explorar

    todos aqueles que trilharam esse caminho, mas citaremos alguns autores que trabalharam

    com tal documentao. Quanto a ns, estudaremos a propaganda poltica representada

    pela iconografia, atravs de uma anlise simples de contedo, tratando de analisar as

    conotaes tanto histricas quanto estticas.

    Com identificao prvia da documentao disponvel e na catalogao,

    estabelecemos um corpus documental ao qual foi aplicado o mencionado mtodo. Para isso,

    seguimos a categorizao conhecida como esquema de Lasswell, pioneiro, desde 1927,

    das anlises de contedo aplicadas poltica e propaganda. Relacionamos o corpus com:

    o natureza do emissor; a quem se destinam tais representaes; e o seu significado.

    PRIMEIRA ETAPA DA ANLISE DE CONTEDO: ANLISE PRVIA DA DOCUMENTAO DISPONVEL E ESTABELECIMENTO DE UM CORPUS DOCUMENTAL AO QUAL SER

    APLICADO AQUELE MTODO.*

    Mesmo j tendo decidido funo de caractersticas que percebe na documentao

    disponvel pertinente s hipteses que formulou e de que pretende obter a comparao (ou a

    refutao) aplicar alguma modalidade de Anlise de contedo, a posio do historiador

    diante de suas fontes , quanto a isso, imprecisa e intuitiva de incio. Ele sabe em que

    direo e partindo de quais perguntas se vai orientar, mas ainda ignora em que consistir o * Anotaes de aulas realizadas pelo Prof. Dr. Ciro F.S.Cardoso.

  • 14 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    suporte de sua anlise de contedo pelo menos, no o sabe necessariamente, a no ser que

    esteja mais ou menos repetindo, para outro caos e outro corpus, algum tipo de aplicao j

    bem conhecido e testado alhures.

    Certos critrios devem ser satisfeitos para que a anlise de contedo possa ser

    aplicada com sucesso. Ser preciso renunciar a certas fontes: as que no formarem uma

    srie completa para os fins da aplicao; e/ou apresentarem uma natureza pouco adequada

    ao mtodo; e/ou no forem homogneas. Com efeito, a escolha de um corpus documental ao

    qual aplicar alguma forma de anlise de contedo passa por estes trs critrios principais:

    1) o corpus em questo deve ser completo no sentido exigido pela natureza do tema e das

    hipteses; 2) deve ser uma documentao que, em seus contedos e em suas dimenses,

    justifique ser pertinente o uso da anlise de contedo; 3) deve ser homognea segundo

    princpios que se definam. Nesta fase pr-analtica, frequente que o pesquisador hesita

    entre diversos conjuntos documentais, faa tentativas parciais de aplicao do mtodo para

    avaliar os resultados assim obtidos e, em funo destes, os que se conseguiriam com uma

    aplicao detalhada ou total.

    Ao cabo desta primeira etapa, o pesquisador dispor ento de um corpus documental

    constitudo de um s documento ou, o que mais provvel, de vrios: mas, no segundo caso,

    preciso poder justificar o fato de consider-los como uma espcie de supertexto

    suficientemente homogneo constitudo por textos individuais. Em certos casos possvel e

    necessrio distinguir entre o corpus total e o corpus pertinente: isto , entre a documentao

    que integra o corpus em questo vista em sua totalidade, por um lado, e, por outro, o recorte

    parcial dela ao qual, devido aos contornos da pesquisa (delimitao do tema, objetivos,

    hipteses), for de fato til aplicar a anlise de contedo.

  • 15 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    SEGUNDA ETAPA DA ANLISE DE CONTEDO: A CATEGORIZAO.

    Antes de passar a esta etapa, preciso aplicar ao corpus escolhido a operao

    conhecida como esquema de Lasswell, conforme j explicamos na pgina anterior.

    Existe, na anlise de contedo de qualquer tipo, um postulado (ou hiptese terica

    de base) nem sempre explicitado pelos pesquisadores: a afirmao de que haja, nos textos

    que interrogados mediante este mtodo, algum significado no imediatamente dado,

    evidente ou visvel e que s a anlise revelar. Outrossim, preciso preocupar-se com a

    necessidade de no desnaturar, no falsificar os contedos contidos nos textos ao aplicar-

    lhes o mtodo de anlise. Em suma, h de incio duas exigncias: de originalidade de saber

    tratar os textos de um modo que responda a perguntas ou problemas no formulados antes

    em relao a eles; e de fidelidade aos contedos efetivamente presentes no corpus.

    A operao central , nesta etapa, o estabelecimento de uma grade ou rede de

    categorias. A partir de uma leitura prvia do corpus completo, com ateno voltada

    constantemente para o que for til pesquisa (delimitao do objeto, objetivos, problema

    formulado, hipteses), registram-se os elementos pertinentes observveis nele, distinguindo-

    os em temas ou categorias temticas que possam, eventualmente, ser computadas e,

    sobretudo, que permitam comparaes significativas entre os diferentes textos integrantes do

    corpus (ou, se tratar de um s documento de ampla extenso, entre diferentes partes desse

    documento). Na verdade, uma anlise de contedo valer aquilo que valerem as categorias

    segundo as quais for realizada quanto ao que tragam efetivamente pesquisa em curso,

    bem como no tocante ao grau de fidelidade que observem diante dos contedos documentais.

    Uma boa categorizao tem como condio prvia sine qua non uma compreenso

    adequada dos contedos semnticos dos textos do corpus; e tal compreenso s ocorrer se o

    pesquisador possuir familiaridade e informaes suficientes acerca da poca em estudo e de

    seu universo mental. A formao que representa, por exemplo, a anlise de contedo uma

    Segunda leitura fundamentada em outra: uma primeira leitura ou decodificao, ou mais

    simples e mais bsica, que depende de conhecer-se a lngua e a cultura da poca em que se

    geraram os textos. Sem esta primeira leitura feita adequadamente, as categorias escolhidas

  • 16 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    dificilmente sero pertinentes e profcuas. Tais categorias so conceitos de nvel superior

    (secundrios, supraordenados), enquanto os conceitos obtidos na primeira leitura ou

    decodificao so de nvel primrio: os primeiros dependem necessariamente destes, embora

    possam reuni-los em esquemas mais amplos.

    As categorias temticas selecionadas para a anlise, estabelecidas pelo pesquisador

    no final de um processo s vezes longo de ensaio e erro, correes e renncias, devem

    responder a quatro critrios principais: pertinncia, exaustividade e objetividade.

    A pertinncia dada pela medida em que as categorias escolhidas tiverem a

    capacidade de refletir escrupulosamente os contedos do corpus e, ao mesmo tempo, de

    expressar a problemtica do processo de pesquisa em funo do qual se aplique a anlise

    de contedo.

    A exaustividade das categorias se d quando, no seu conjunto, permitam interrogar

    a totalidade do corpus (ou parte do mesmo pertinente pesquisa). Em certos casos, no se

    consegue uma exaustividade completa, restando algumas categorias para acomodar pores

    inclassificveis do mencionado corpus: mas estas devem ser residuais, ter dimenses

    reduzidas no relativo parte do corpus que nelas entrem.

    A exclusividade significa que elementos idnticos de contedo no devem aparecer

    em mais de uma categoria: a relao categoria/contedo deve ser discreta ou excludente.

    De novo: se no for possvel uma exclusividade total, para que o trabalho funcione

    adequadamente preciso pelo menos chegar perto dela.

    A objetividade somente tendencial, mesmo porque diferentes pesquisadores podem

    chegar a diferentes categorias em relao a um mesmo corpus, cada um deles defendendo

    as suas como sendo mais fiis aos contedos efetivos do mesmo. Pelo menos, seria preciso

    que um leitor informado, mesmo que preferisse uma grade de categorias diferente no todo

    ou em parte da que elaborou o pesquisador, aceitasse que o analista registrou

    adequadamente cada unidade de contedo nas categorias que formulou. Espera-se,

    naturalmente, que o autor estabelea e defenda sua objetividade mediante um esprito

    crtico sempre ativo manifestado diante de seu prprio trabalho, pela clareza com que

    exponha o encaminhamento e a justificativa das categorias que estabeleceu. Em especial,

  • 17 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    cabe ao pesquisador precisar alguns indicadores que informem ao leitor as razes de suas

    escolhas em matria de categorizao. Segundo Berelson, as hipteses devem exprimir o

    problema o mais adequadamente que for possvel; as categorias devem fazer o mesmo em

    relao s hipteses; e os indicadores, em relao s categorias.1

    TERCEIRA ETAPA DA ANLISE DO CONTEDO: CODIFICAO E CMPUTO DAS UNIDADES.

    Para possibilitar a aplicao das categorias ao corpus, preciso delimitar as

    unidades que determinaro os recortes a fazer no mesmo. Em geral se distinguem as

    unidades de registro de contexto.

    Unidade de registro o segmento de contedo que o pesquisador decidiu tomar como

    menor unidade de sua grade de leitura e anlise: uma palavra, um grupo de palavras, um

    pargrafo, um semema, etc. Sua dimenso pode, pois, variar segundo os critrios de recorte

    que houveram sido introduzidos na dependncia da natureza e dos objetivos da anlise de

    contedo.

    Unidade de Contexto a unidade imediatamente superior em suas dimenses

    unidade de registro. Sua finalidade permitir optar por uma determinada categoria onde

    classificar uma dada unidade de registro, em caso de dvida.

    QUARTA ETAPA DA ANLISE DE CONTEDO: A INTERPRETAO DOS RESULTADOS.

    Nesta etapa que ficaro patentes se for o caso a fecundidade das escolhas de

    mtodo operadas e a pertinncia das hipteses de trabalho. Interpretao, no sentido do

    termo que aqui interessa, uma leitura nova (original) e objetiva do corpus, apoiada nas

    etapas Segunda e terceira acima e, tambm, nos conhecimentos do pesquisador acerca do

    1 BERELSON, Bernard. Content Analysis in Communication Research. New York: New York University

    Press, 1952, p. 78.

  • 18 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    perodo estudado, do tema tratado, do contexto em que se insere, etc. segundo Lasswell,

    teramos aqui outra pergunta a propor: com que resultados os textos foram formulados e

    circulam?2 No entanto, nem sempre esta a inteno: pode-se tentar, simplesmente, ler

    determinada ideologia, representao, imaginrio no corpus, mesmo ao se tratar,

    eventualmente, de documentos que no tiveram importante circulao para, deste modo, vir

    a entender melhor algum tema.

    Interpretar inferir: uma operao lgica por meio da qual, de uma ou mais

    proposies no caos presente, os dados estabelecidos ao terminar o processo da anlise de

    contedo referente ao corpus se retira uma ou mais consequncias que resultem

    necessariamente daquelas proposies. Trata-se, aqui, de voltar s hipteses para, por meio

    dessa inferncia, avaliar at que ponto foram comprovadas. Caso uma ou mais hipteses

    tenham sido, pelo contrrio, refutadas pelos resultados da anlise de contedo, ser preciso

    verificar a razo de tal coisa ter acontecido e, conforme as circunstncias, completar,

    modificar parcialmente ou substituir as hipteses em questo; e, a seguir, recomear a

    anlise ou pelo menos, introduzir nela as consequncias de tais operaes.

    Realizamos uma comparao significativa entre as diferentes imagens contidas no

    reverso de cada moeda, fazendo uma primeira leitura ou decodificao dos smbolos

    existentes, nas fichas do catlogo. Assim, foi possvel encontrar e identificar determinados

    elementos que representavam a ideologia poltica, militar ou religiosa da poca.

    Em tais representaes, poltica e esttica estavam intimamente ligadas em Roma.

    As moedas associavam-se tanto propaganda ideolgica quanto poltica. As peas no

    apenas so instrumentos importantes para estabelecer a datao de documentos que

    chegaram at ns sem seu contexto original, como tm grande valia, em si mesmas, por

    meio de nossa compreenso desses retratos de uma realidade antiga. Com frequncia, o

    tipo monetrio de reverso mostra determinada reproduo artstica. Ainda que o seu

    significado, em alguns casos indicado pela legenda que a acompanha ou pelo tipo do

    anverso, possa aparecer com uma interpretao original em relao ao modelo, muitas

    2 LASSWELL, Harold D. et alii (org.). Language of Politics. Studies in quantitative semantics. Cambridge

    (Mass): Massachusetts Institute of Technology Press, 1965, p.95.

  • 19 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    vezes, tipos monetrios e modelos tm o mesmo sentido. Por isso, os dois lados de uma

    moeda devem sempre ser observados com muita ateno, o que procuramos fazer aqui com

    as de Constncio II, agrupando-as de modo a iluminar a complexidade do tema.

    O nosso interesse por essa temtica vem desde o ano de 1993, quando iniciamos um

    contato maior com o perodo conhecido como Antiguidade Tardia. Atravs das obras de

    Lot e Marrou, inquietamo-nos com a complexa organizao poltica romana do sculo IV e

    com sua anlise na historiografia contempornea. Ao nos aprofundarmos sobre o perodo,

    passamos a ampliar nosso conhecimento mediante a interpretao de diversos

    historiadores, Momigliano, Mazzarino, Brown, Maier e, entre os antigos, Amiano

    Marcelino, entre outros. Verificamos que a nossa temtica permanece, quase sempre,

    analisada superficialmente e no em sua totalidade. Acreditamos que esse tangenciamento

    seja, em parte, explicado pela dissociao da documentao escrita e no escrita,

    principalmente, no nosso caso, daquela que estuda a numismtica.

    No podemos esquecer que a histria deve sempre procurar explorar o seu objeto a

    partir da anlise dos diferentes elementos nela intervenientes, aberta a uma nova

    linguagem, s novas interrogaes que cada poca faz ao passado:

    Engajar-se no presente, dar ouvidos a todos os seus rumores - numa

    palavra, viver - exige que o historiador se mantenha informado sobre o que

    descobre e se transforma no campo das cincias vizinhas. A histria se

    enfraqueceria isolando-se3

    Existe, no Brasil, um rico filo de numismtica antiga: pretendemos explor-lo,

    sem depreciar as fontes escritas. H vrios trabalhos que procuram revitalizar as

    pesquisas na rea de Histria Antiga e Medieval, como as realizadas pelo Prof. Dr. Ciro

    Flamarion Cardoso, da UFF, pela Profa. Dra. Maria Beatriz Florenzano, da USP, pelo

    Laboratrio de Histria Antiga da UFRJ, sob a coordenao da Profa. Dra. Neyde

    Theml, entre outros. Queremos somar-nos a tal esforo.

    3 DUBY, Georges. Idade Mdia, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1986, p. 190.

  • 20 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    A princpio gostaramos de mencionar que o nosso trabalho, segundo informaes da

    Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano, indito no meio acadmico nacional e,

    provavelmente, internacional, pois as pesquisas realizadas sobre a numismtica do sculo

    IV so geralmente concentradas na figura de Constantino e, esporadicamente, nas de

    alguns membros de sua famlia. Podemos citar, a respeito, a obra realizada por Jules

    Maurice, no incio do sculo XX, Numismatique Constantinienne, e a coletnea de Patrick

    Bruun Studies in Constantinian Numismatics, publicada entre os anos de 1958 e 1988.

    Mas nenhuma delas deteve-se exclusivamente em um de seus filhos, no caso Constncio II,

    que continuou a poltica paterna.

    Na elaborao do catlogo de moedas, constam todas as de Constncio II existentes

    na coleo do Museu Histrico Nacional. Para isso, resolvemos enumerar as fichas por

    tipos monetrios, levando em considerao tambm os subtipos, grandes ou pequenas

    variaes iconogrficas contidas no reverso das peas. Criamos uma numerao prpria,

    pois o nmero de ordem do MHN no esta organizado por tipos ou subtipos. Mesmo assim,

    acrescentamos a numerao do Museu junto com as observaes sobre o acervo. Para a

    confeco dos fichrios-imagens, utilizamos um modelo idealizado pelo Prof. Dr. Ciro

    Flamarion, aperfeioando-o para as peas segundo indicaes da Profa. Dra. Maria

    Beatriz Florenzano e da museloga Rejane Vieira.

    No Brasil, temos conhecimento de apenas dois trabalhos recentes que tm a

    numismtica como tema principal. Um deles, executado pela prpria Profa. Dra. Maria

    Beatriz Borba Florenzano; trata principalmente de moedas gregas; o outro a Dissertao

    de Mestrado da museloga Rejane Maria Lobo Vieira, que responde pela Seo de

    Numismtica do Museu Histrico Nacional. A citada Dissertao trata de um estudo

    realizado nas moedas cunhadas por D. Fernando (1367-1383), ltimo rei da dinastia de

    Borgonha. Chegou concluso de que, ao ocorrer uma mudana no perfil da efgie do

    monarca, altera-se tambm o reverso da pea. Quando a figura representada est voltada

  • 21 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    para a direita de quem a observa, ou a esquerda da moeda, o alto reverso simboliza uma

    cena de batalha. Na posio inversa, a representao do alto reverso religiosa4.

    Sobre a historiografia romana, podemos citar a vasta obra de Momigliano que,

    alm de fazer um apanhado geral sobre o Imprio Romano, realiza vrias anlises crticas

    das fontes historiogrficas5.

    O numismata belga, Hubert Frre, em Numismtica: Uma Introduo aos Mtodos

    e Classificao, cita a importncia do local onde foi encontrada a documentao

    numismtica, como edifcios, fonte de rios, pontes, esttuas, palcios, entre outros6. Pois

    cada um destes locais pode influenciar as mais diferentes anlises. Deve-se valorizar

    tambm a interpretao da cincia arqueolgica, defendida pelo arquelogo francs

    Raymond Bloch em Roma e seu Destino, escrita em parceria com Jean Cousin7.

    Corvisier, em seu livro, Sources et Mthodes en Histoire Ancienne, tambm defende

    a importncia da numismtica, no apenas na Histria da Arte, muitos artesos

    trabalhavam nas casas de cunhagem, como tambm no estudo da Histria Poltica, pois no

    reverso de cada pea vem representando um fato de crucial importncia para o perodo

    estudado8.

    Nieto Soria acrescenta em sua obra, Ceremonias de la Realeza. Propaganda y

    Legitimacin en la Castilla Trastmara, que o poder dos smbolos, expresso nas moedas,

    tem uma funo de mdia, de propaganda, mas tambm funciona como legitimador de

    uma dinastia ou elite social9.

    4 VIEIRA, Rejane Maria Lobo. A Imagem do Rei e do Reino de Portugal Atravs das Moedas de D.

    Fernando (1367-1383). Niteri: Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, 1994, p. 5 MOMIGLIANO, Arnaldo. Ensayos de Historiografia Antigua y Moderna. Mexico: FCE, 1983, p. 95.

    6 FRRE, Hubert. Numismtica. Uma Introduo aos Mtodos e a Classificao. Traduo e Adaptao:

    Alain Costilhes e Maria Beatriz Florenzano. So Paulo: Sociedade Numismtica Brasileira, 1984, p. 34. 7 BLOCH, Raymond e COUSIN, Jean. Roma e o seu Destino. Traduo de Maria Antonieta Magalhes

    Godinho. Lisboa / Rio de Janeiro, 1964, p.443. 8 CORVISIER, Jean Nicolas. Sources et Mthodes en Histoire Ancienne. Pr. Editons. Paris: Presses

    Universitaires de France, 1997, p. 9 NIETO SORIA, Jose Manuel. Ceremonias de la Realeza. Propaganda y Legitimacion en la Castilla

    Trastmara. Madrid: Editorial Nerea, 1993, p. 19.

  • 22 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Fernando de la Flor, em Emblemas Lectures de la Imagem Simblica, confirma

    essa viso de Soria a iconografia, fazendo uma aluso numismtica como um

    monumento de legitimao do Estado, uma tentativa de manter inalterado o status quo10.

    Le Goff, no Imaginrio Medieval, cita as pesquisas desenvolvidas por Jean Claude

    Bonne e Jean Claude Schmitt, no sentido de demonstrar que a anlise iconogrfica um

    trabalho plenamente cientfico e histrico 11.

    Brown, tambm faz uso da numria constantiniana, para exemplificar a luta das

    ideologias nos sculos II, III, IV, muito bem retratados em o Fim do Mundo Clssico. De

    Marco Aurlio a Maom. O autor alm de analisar o solidus constantinianus, tambm

    cita muitas nomeaes representadas nos reversos monetrios12.

    Em resumo, essa ideologia poltica, segundo Eco, no Tratado Geral de Semitica e

    As Formas do Contedo, faz parte da prpria estrutura do cdigo, onde a semitica prope

    o problema do estudo da configurao sinttica do cdigo como nascente de uma

    informao sgnica13. Em outra ocasio, uma anlise semitica da iconografia monetria

    nosso objetivo anterior na presente dissertao, que se contenta com uma limitada

    anlise de contedo.

    10

    FLOR, Fernando R. de la. Emblemas Lectures de la Imagen Simblica. Madrid: Alianza Editorial, 1995, p. 301. 11

    LE GOFF, Jacques. O Imaginrio Medieval. Traduo: Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p.15 12

    BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clssico. De Marco Aurlio a Maom. Traduo de Antnio Gonalves Mattoso. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 94. 13

    ECO, Humberto. Tratado Geral de Semitica. Traduo de Antnio de Pdua Danesi e Gilson Csar C. de Souza. So Paulo: Editora Perspectiva, 1980, p. 194.

  • ELEMENTOS DA HISTRIA DO BAIXO IMPRIO ROMANO INCIDENTES NA ICONOGRAFIA MONETRIA.

    No nossa inteno escrever uma histria parcial ou total do Baixo

    Imprio mas, sim, unicamente apresentar de forma s analtica, no desembocando numa

    sntese, os elementos dessa histria que tiveram direta incidncia nos textos e iconografia

    includo nas moedas.

    ELEMENTOS DA HISTRIA MILITAR

    O nosso trabalho tem por objetivo realizar um estudo de base numismtica sobre as

    manifestaes polticas e ideolgicas ocorridas no Imprio Romano, durante o fim do

    terceiro e quarto sculo cristos, mais especificamente sobre a tentativa dos chamados

    Imperadores Reformadores de reorganizar o Imprio Romano nas esferas poltica

    (interna e externa), social e econmica.

    Sucedendo a um longo perodo de crise e anarquia militar, tais imperadores

    procuraram realizar as mais variadas reformas polticas, econmicas, sociais e at mesmo

    religiosas. A energia dos governantes ilrios livrou o imprio da invaso e da revoluo

    anrquica. O mais dotado para a administrao, Diocleciano, estendeu e retomou essas

    medidas durante pelo menos uma dezena de anos, antes de sistematizar uma obra que foi,

    ainda, completada por Constantino. Os perigos externos, tanto dos povos brbaros como

    dos persas sassnidas, era uma das principais preocupaes dessa poca.

    As tropas romanas atravessaram o Reno e o Danbio, ao longo de cujos cursos se

    reconstruiria uma slida defesa. Tanto que as melhores representaes da numria

    romana sobre as fortificaes so, respectivamente, as de Constantino, as das portas de

  • 24 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Treves contidas nas moedas de um slido, e a de seu filho e sucessor, Constncio II. Da

    poca deste ltimo, h dezessete peas no Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro, que

    reproduzem a imagem das portas de Londres.14 (catlogo p. 65 )

    A Mesopotmia reconquistada e o Imprio Sassnida obrigado a ceder territrios

    alm-Tigre. No Oriente, Roma nunca avanara to longe. Como exemplo, podemos citar os

    combates travados entre Constncio II e Sapor II, nos quais o Imperador Romano obteve os

    mais variados resultados. Tais combates esto representados nas moedas existentes nos

    lotes de nmeros 26 e 27 do Museu Histrico Nacional, onde aparece a figura de

    Constncio, esquerda de quem observa, de armadura, a cavalo, derrotando um inimigo,

    que aparece de joelhos, com os braos levantados, como se estivesse suplicando misericrdia.

    (catlogo p. 68) Apesar de a moeda estar um pouco deteriorada pelo tempo, nota-se, que a

    imagem central do imperador romano que o centro do poder sempre aparece maior

    que a do persa. Atravs da anlise desse pequeno objeto de bronze, cujo dimetro de

    2,5mm, e o peso, de pouco mais de 4 gramas, podemos destacar tambm a crescente

    importncia da cavalaria, representada aqui pela personificao de Constncio.

    A riqueza iconogrfica dessa fase muito bem representada nas medalhas e

    moedas romanas, pois, segundo Nieto Soria, ocorre uma exaltao pessoa, na figura do

    monarca, da prpria poltica real.15 Uma espcie de propaganda, de comunicao, de que

    todos os habitantes do vasto Imprio Romano tomariam conhecimento, atravs da

    visualizao das peas, legitimando o poder temporal. Isto tambm explica as vrias

    cidades, espalhadas por todo o territrio, onde tal cunhagem era feita .

    A experincia vinha provando quo insuficiente era o antigo exrcito, bem como sua

    inadaptao s novas condies da guerra agora impostas pelos adversrios. Assim sendo,

    o exrcito foi aumentado e, ao mesmo tempo, alterada a sua estrutura.

    O ideal romano continua sendo o do Estado estabilizado, visando proteo da

    totalidade do territrio. Depois das lutas vencidas pelo ento Csar Juliano,

    14

    MARQUES, Mario Gomes. Introduo a Numismtica. 1a. ed. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1982,

    p.133. 15

    NIETO SORIA, Jose Manuel. Op. cit., p. 17.

  • 25 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    restabelecendo as fronteiras ao longo do Reno e do Danbio contra os alamanos, comea a

    ser realizada uma obra sistemtica e de suma importncia, sobretudo no tempo de

    Valentiniano I. Sem voltar ao mtodo dos entrincheiramentos contnuos, multiplicam-se,

    em relao com as estradas e os rios, as torres, os fortins, os castelos e os campos, seguindo

    uma tcnica que o contato com os persas torna mais apurada: padres orientais so

    transferidos para o Ocidente. Do mesmo modo, mantm-se e aperfeioam-se as muralhas

    urbanas: perante os brbaros, dotados de rudimentares tcnicas blicas de assdio, as

    cidades constituem redutos quase inexpugnveis. O prprio equipamento individual

    comea a sofrer mutaes que, segundo Peter Brown, desde o final do sculo III, j

    mostram indcios dos aparatos dos futuros cavaleiros medievais16. Os soldados, que desde

    o governo de Septmio Severo podem contrair matrimnio, recebem terras nas fronteiras

    para auxiliar em sua defesa: ao ponto de o latim vulgar influenciar, at os dias atuais,

    algumas dessas regies. Algumas provncias, como a Trcia, por exemplo, depois da

    grande leva de invases, ficaram totalmente isoladas. princpio da hereditariedade na

    profisso paterna aplica-se de maneira rigorosa no exrcito.

    Outra questo importante a chamada barbarizao do imprio. Os numerosos

    cativos e grupos tnicos que pedem asilo so instalados em territrio romano, a fim de

    repovoar e recultivar regies em que a mo de obra rara. Trata-

    se dos chamados letos ou gentios, que a administrao deve manter sob vigilncia, e cujos

    filhos so agora obrigados, como filhos de soldados, a entrar no exrcito. Outros gozam do

    regime de federados e fornecem contigentes organizados sua maneira, comandados pelos

    seus chefes. O exrcito chamado romano deixa de ser notvel instrumento de romanizao,

    perdendo assim umas de suas principais caractersticas.

    Os efetivos da cavalaria aumentam muito, porque a mobilidade torna-se a principal

    estratgia militar. Como na batalha de Andrinopla, em 378, ganha por uma carga de

    cavaleiros godos, a qual Ferril afirmou ter sido precursora das tticas medievais17.

    16

    BROWN, Peter. op. cit., p.98. 17

    FERRIL, Arther. A Queda do Imprio Romano. A explicao militar. Traduo de Octavio Alves Velho.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p. 53.

  • 26 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Durante esse perodo, os imperadores empenham-se em anular o privilgio de

    sangue, ou seja, os antigos lderes senatoriais so afastados dos comandos das legies; o

    que Constantino consegue durante o seu governo, separando as funes civis das militares.

    A principal conquista social do sculo III mantm-se no sculo IV, isto , a atribuio dos

    postos e a prpria promoo baseadas apenas no mrito. Essa mudana foi influenciada

    principalmente pela necessidade de ser mantida a ordem poltica, pois temia-se que a

    ambio da classe senatorial incentivasse a tropa contra o governante. Isso leva

    Constncio II a nomear apenas um nico oficial para o comando da infantaria e da

    cavalaria, no Oriente, o magister equitum et preditum per Orientum18.

    Os imperadores continuam sendo aclamados pelas tropas e, no sculo IV, se no

    levam seus deveres militares a srio, seu poder efmero. Muitas vezes, como nos casos de

    Juliano e Valentiniano I , devem a proclamao s provas previamente dadas de seu valor

    militar e no se afastam do exrcito, participam das expedies e arriscam a vida, no caso

    de Juliano contra os persas, perdendo-a.

    Mas, apesar de o inimigo figadal dos romanos ser Sapor II, o verdadeiro e terrvel

    perigo tem outra provenincia.

    No ano de 350, quando Magnncio aclamado imperador, Constncio leva um rei

    alamano a atravessar o Reno, numa manobra para despistar as tropas do usurpador, que

    iria tentar a sorte na Pannia (atual Hungria ocidental) e na Itlia. As dificuldades

    tendem a aumentar quando todo o nordeste da Glia invadido. Constncio obrigado a

    associar seu primo Galo ao poder, na funo de Csar. Alguns anos mais tarde, Galo

    seria acusado de traio, e condenado morte, numa intriga palaciana realizada pelo

    eunuco Eusbio, que exercia grande influncia sobre as decises do imperador.

    Havia tambm o choque, egosmo ou at mesmo rivalidade entre os conselheiros, de

    seu escritrios burocrticos, e, s vezes, entre as populaes. A ao militar, que

    pressupe unidade de comando, estava cindida, retardada ou precipitada, por ignorncia

    ou mesquinharia da parte de homens desejosos de triunfar sozinhos. Valente deu combate

    18

    Idem, Ibidem - op. cit, p. 59.

  • 27 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    aos godos, seguindo o conselho do seu comandante-em-chefe, Sebastiano, diante de

    Andrinpolis, sem esperar a chegada do outro Augusto, que lhe levava reforos. Condenado

    pelas circunstncias do sistema colegial, o Baixo Imprio sofria os seus inconvenientes.

    ELEMENTOS DA HISTRIA POLTICA

    Na poltica interna as crises continuam surgindo depois de um breve perodo de

    incerta soluo.

    Depois de vinte anos de governo, atravs do efmero sistema de tetrarquia de

    Diocleciano, o imprio recobra a paz sob o cetro de um nico senhor: Constantino. Que,

    apesar de no retornar antiga forma de governo de que seu pai fez parte, limitou-se, dois

    anos antes de sua morte, a partilhar o governo dos territrios imperiais em cinco partes: trs

    , as maiores, seriam entregues a seus trs filhos; as duas outras, a trs de seus sobrinhos.

    Ou seja: coube ao filho mais velho, Constantino II, a Bretanha, a Glia e a Espanha;

    Constncio II ficou com a rica parte oriental do Imprio que, desde 333, governava como

    Csar em Antiquia; o mais jovem, Constante, ficou com a Itlia, a frica e a Pannia.

    Os primos Flvio Jlio, Dalmcio e Anibaliano ficaram, respectivamente, com os Blcs e

    a sia Menor. Alguns autores chegaram a afirmar que Constantino teria a inteno de,

    bem antes de Merovngios e Carolngios, levar aplicao um conceito patrimonial do

    Estado monrquico. Tal afirmao discutida por Rmondon que, usando como base o

    testemunho numismtico, afirma que Constantino havia pensado em seu filho mais velho,

    Constantino II, como herdeiro do imprio.19 Acreditamos que ele pretendia legar uma

    diferente organizao poltica para aquele que o sucederia como coordenador e

    administrador. A morte no lhe deu tempo para isso. E se realmente, como afirmou

    19

    RMONDON, Roger. Las Crisis del Imperio Romano. De Marco Aurelio a Anastacio. 2a. ed. Barcelona:

    Editorial Labor, 1973, p. 72.

  • 28 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Rmondon, a ideia de Constantino era que o seu filho mais velho lhe sucedesse, por que a

    parte mais rica do imprio ficaria com o filho do meio, Constncio? No podemos esquecer

    que Constncio II foi considerado pela posteridade como o mais eficiente administrador

    dentre os herdeiros do pai.

    A unicidade do governo imperial, quebrada durante a tetrarquia de Diocleciano,

    volta a ser estabelecida nos treze anos de reinado de Constantino. A partir de 353, o poder

    do soberano encarna-se novamente em uma nica pessoa, Constncio e, depois, em

    Juliano. Mas, aps este perodo, ocorre uma associao de dois imperadores ao trono. O

    cristo ortodoxo Valentiniano I, antigo general de Juliano, sucedeu a Joviano, que

    governou menos de um ano e dividiu a parte oriental do imprio com o irmo, Valente,

    seguidor do arianismo.

    Teoricamente, o imprio continuava a ser uno, tratava-se de uma associao e de

    um sistema colegial, no de uma diviso territorial, embora cada Augusto, auxiliado ou

    no por um Csar, ou por outro Augusto menos prestigioso, fosse encarregado da

    administrao e da defesa de uma parte. O prprio Diocleciano era considerado como um

    Iuono, filho de Jpiter, enquanto que o outro tetrarca, Maximiano, era um Herculeo, ou

    filho de Hrcules.20 Rmondon deixa bem claro que, em um sistema criado para

    estabelecer uma igualdade, existe, entretanto, uma hierarquizao interna, pelo qual um

    governante possui um grau maior de importncia que o seu co-irmo. Pois um novo

    Augusto s era admitido oficialmente no colgio depois da aprovao de seu ou dos seus

    colegas.

    A diviso administrativa do Imprio Romano em dois blocos, Ocidente e Oriente,

    contudo, no garantia a coeso, nem inibia a disputa dentro do seio da prpria famlia

    imperial. Podemos citar como exemplo as muitas suspeitas existentes entre os filhos e

    sobrinhos de Constantino, que tornaram o governo invivel. Provavelmente, Constncio, o

    homem forte do novo regime, instigou o massacre, em Constantinopla, de toda a faco de

    20

    RMONDON, Roger - op. cit., p. 45.

  • 29 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    seus tios e primos, deixando vivos, mas sob sua custdia, somente os seus jovens primos, os

    irmos Galo e Juliano.

    Outra inspirao ocorrida durante o sculo IV o progresso de uma ideia dinstica.

    Nesse perodo ocorreram menos desordens do que nos anteriores. Efetivamente aps ter

    conhecido uma dinastia constantiniana e uma valentiniana, o sculo V conhece uma

    dinastia teodosiana. Houve tambm uma tentativa de ligao entre elas, uma espcie de

    elo familiar, como mostra o esquema a seguir:

    Fonte: ibidem idem op.cit.., p. 90

    A inovao desse sculo consistiu em discutir a ideia de uma linha sucessria

    direta e familiar: Constantino pensou nos seus sobrinhos e Valentiniano I associou-se a seu

    irmo Valente. A ideia familiar foi suficientemente forte para que, de uma dinastia a

    outra, se procurasse criar um lao, atravs do matrimnio. O grfico familiar reproduzido

  • 30 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    acima deixa bem clara essa unio. Valentiniano casa o filho, Graciano, ento como

    dezesseis anos, com a neta de Constantino, de treze anos. E Teodsio, por sua vez,

    desposou a filha de Valentiniano.

    Isso no significa que a histria dessas dinastias fosse sempre calma. A da

    famlia constantiniana, por exemplo, oferece uma srie de tragdias palacianas, chacinas,

    rivalidades fraternas levadas at a guerra civil. Houve revoltas e usurpaes, culminando

    com o assassinato de imperadores legtimos. Mas, ao contrrio dos sculos anteriores, com

    a exceo de Constantino e Juliano21, nenhum desses episdios violentos culminou no

    triunfo do usurpador. Foi, sem dvida, uma ajuda muito grande para Juliano,

    proclamado imperador por seus soldados em Lutcia, que seu primo Constncio II morresse

    de peste antes do choque dos dois exrcitos, evitando, assim, o desgaste de uma guerra civil.

    Tambm nos parece ser claro o surgimento de um sentimento de lealdade

    monrquica, apesar de uma srie de transtornos. A melhor prova disso que, apesar de

    toda a carncia militar e poltica, os filhos de Teodsio I morreram de morte natural.

    Paulatinamente, vai-se instalando nas vastas regies imperiais um respeito prpura. Por

    este motivo, no podemos considerar completamente ineficazes os esforos das dinastias do

    Baixo Imprio para regularizar a transmisso de poder.

    Alm dos problemas militares e polticos, encontramos, num mesmo nvel de

    importncia, o religioso.

    ELEMENTOS DA HISTRIA RELIGIOSA

    Depois da grande perseguio do sculo III, encerrada no ano de 260, o

    cristianismo passa a gozar de uma paz externa de aproximadamente quarenta anos, da

    qual tirou grande proveito.

    21

    SILVA, Gilvan Ventura da. Domus Imperial e o Fenmeno das Usurpaes no IV Sculo. In: PHONIX

    Laboratrio de Histria Antiga UFRJ. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

  • 31 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Essa suposta tranquilidade vai acabar durante o governo de Diocleciano, que

    organizaria a ltima grande perseguio. Uma mudana brusca, acerca da qual a

    maioria dos historiadores tem sua explicao pessoal. Mas, como no o nosso objetivo

    discutir as vrias correntes que analisaram este perodo, ficaremos com a tradio crist,

    segundo a qual Diocleciano cedeu s insistncias de seu genro e Csar, Galrio.22

    Atravs dos relatos de Lactncio, podemos dividir essa perseguio em trs etapas:

    depurao no palcio, no exrcito e nas funes administrativas; e, finalmente,

    afastamento de todos os funcionrios graduados que se recusavam a praticar o sacrifcio

    aos deuses. Pois a meta da tetrarquia era um retorno aos bons tempos do Principado, a

    comear pelo culto religioso. Depois vieram os editos. Quatro deles sucederam-se, no

    decorrer do ano de 303 e no incio de 304, cada um assinalando, em relao ao

    precedente, um agravamento. E, por ltimo, a atribuio aos cristos do incndio do

    palcio imperial de Nicomdia, por ocasio de uma estada na cidade de Diocleciano e

    Galrio. Como acontecera meio sculo antes, todos os cidados do imprio foram obrigados

    a realizar os sacrifcios, sob pena de condenaes morte na fogueira.

    A tradio crist considera essa perseguio como mais violenta e cruel do que as

    anteriores. Dodss, na sua obra Paganos y Cristianos en una Epoca Augustia23, no

    concorda com est opinio. Para ele, tanto a brutalidade quanto a durao dependiam

    muito da regio do imprio a que estivermos nos referindo. Na parte de Constncio Cloro,

    Glia e Bretanha, as pessoas foram poupadas e os bens s foram atingidos no mnimo

    exigido pelo respeito para com a autoridade do Augusto mais importante; ocorreram

    tambm casos em que os magistrados obrigavam os cristos, amarrados a cavalos, a

    entrarem nos templos e fazerem o juramento, para logo depois libert-los.24 No resto do

    Ocidente a perseguio foi violenta, mas breve, porque Maximiano, o outro Augusto,

    abdicou em 305, juntamente com Diocleciano, pois existia um acordo entre os tetrarcas de

    que, aps vinte anos de governo, ambos se afastariam de suas funes. Mas, no Oriente ir

    22

    LACTNCIO. De Mortibus Persecutorum. Paris: Ed. J. Moreau, 1954, p. 32. 23

    DODDS, E. R. Paganos y Cristianos en una Epoca Augustia. Madrid: Cristiandad, 975, p. 55. 24

    Idem, Ibidem. p.101.

  • 32 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    se prolongar at a vitria de Constantino sobre Licnio, em 324. Entre os anos de 313 a

    320, porm, ficou interrompida.

    Essas variaes da poltica religiosa foram dirigidas ao mesmo tempo pela paixo e

    pelo clculo, que se refletem nas diversas moedas, demonstrando que a atuao do

    cristianismo era sentida e passava a ser incorporada, durante esse longo perodo. O lbaro

    cristo de Constantino aparece tanto nas moedas de seu filho e sucessor, Constncio II,

    como na de outros imperadores, como Joviano e Valentiniano I, acompanhadas da legenda,

    contida no reverso, FEL TEMP REPARATIO, ou seja, um ressurgimento da grandeza

    romana atravs do baluarte cristo. (catlogo p. 117)

    Notamos tambm o reaparecimento, muito mais tarde, dessa influncia nas moedas

    cunhadas durante o reinado de dom Manuel I (1469-1521), rei de Portugal. Nas peas

    aparecem o smbolo cristo de Constantino, uma letra X, virada transversalmente e cuja a

    ponta superior era inflectida (presente no labarum imperial de Constncio: P),

    acompanhado da frase: IN HOC SIGNO VINCES (POR ESTE SINAL VENCERS).

    importante ressaltar que os smbolos cristo surgem nas moedas de Constantino, a

    partir do ano de 315, e os pagos desaparecem em 323, reaparecendo novamente durante

    o governo de Juliano, para desaparecerem novamente aps a sua morte. Sob este ltimo,

    ocorrem algumas mudanas. O touro, smbolo pago do sacrifcio, pronto para ser imolado,

    substitui o lbaro cristo.

    No nossa inteno analisar os fatores que fortaleceram a converso de

    Constantino, se foi a revelao divina que nos narram os historiadores cristos, diante da

    ponte Mlvia, ao norte de Roma, espera do exrcito de Maxncio, ou simplesmente um

    frio clculo de oportunismo poltico. Mas o que devemos deixar claro que a tolerncia,

    herana de seu pai Constncio Cloro, para muitos chefes a nica soluo. Mesmo

    Galrio, irredutvel adversrio do cristianismo, aceitou este ponto de vista. Alguns dias

    antes de sua morte, gravemente enfermo, na primavera de 311, publicou o Edito de

    Tolerncia, reconhecendo o malogro da perseguio. Tal edito nunca foi ab-rogado.

  • 33 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    No incio de 313, antes de entrar em campanha contra Maximino Daia, que no

    era favorvel tolerncia aos cristos no Oriente, Licnio encontrou-se com Constantino, j

    senhor do Ocidente, em Milo. Dessas conferncias resultaram, ao menos, algumas

    instrues, s quais podemos manter, por conveno, o nome tradicional de Edito de Milo.

    Aps derrotar a Licnio que, por sua vez, tornara-se perseguidor, em 324,

    Constantino procurando tranquilizar os pagos do Oriente, reafirmou a tolerncia

    religiosa. Eusbio de Cesara, em sua obra De Vita Cosntantini, alm de mudar a sua

    opinio sobre Licnio, pois, antes dessa perseguio promovida pelo ento senhor do Oriente,

    o havia elogiado em seus escritos, sublinha esta poltica constantiniana25.

    Seria exagero falarmos de uma perseguio ao paganismo, mas Constantino proibiu

    certos sacrifcios. O domingo tornou-se o dia de repouso legal, interditando-se a realizao

    de qualquer ato oficial, exceto a alforria de escravos. Os bispos conseguem o direito de

    jurisdio sobre os membros do clero, e sua arbitragem foi reconhecida como inapelvel

    para os processos civis entre os leigos. Existe um desejo de fazer da Igreja um organismo

    oficial, de associ-la vida e ao funcionamento do Estado.

    O paganismo, entretanto, ainda conservava posies muito slidas. Em sua grande

    maioria, o exrcito ainda lhe era fiel. Geralmente, os mistrios de Mitra, um dos mais

    importantes cultos de mistrios, que prometia a imortalidade aos iniciados, eram adotados

    pelos soldados. Tanto que Juliano, quando foi iniciado nestes mistrios por Mximo de

    feso, se faz acompanhar por dois membros da sua escolta que respeitassem e acreditassem

    em tal culto. Na ocasio, o futuro imperador ainda estava sob o cetro de Constncio.

    Grande parte dos intelectuais com um certo renome eram pagos, como Libnio, muito

    requisitado por alunos pagos (Juliano), como tambm por cristos (Gregrio de Nissa,

    Gregrio Nazianzo, Joo Crisstomo). E, principalmente em Roma, eram tambm pags

    as antigas famlias senatoriais, de riqueza considervel e que forneciam importantes

    funcionrios ao imprio. Apesar disto, salvo alguns breves interldios, a autoridade, a

    25

    EUSEBIUS PAMPHILI,Bispo de Cesara. De Vita Constantini.. V. 7. Lib. I. Leipzig: Texto da edio I.

    A. Heikel, 1902, p. 21.

  • 34 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    partir de Constantino, sempre esteve nas mos dos cristos. Momigliano acrescenta, ainda,

    que a tentativa de renascimento pago chegou tarde, e desapareceu muito rapidamente para

    que tivesse xito26.

    Alguns imperadores voltaram ideia de tolerncia. Valentiniano I e seu irmo

    Valente proclamaram-na numa lei de 364, renovando-a sete anos mais tarde. Nesse caso,

    o imperador ainda mantm o ttulo de sumo-pontfice, numa tentativa de melhor vigiar e

    controlar o paganismo. Teodsio foi o primeiro que no o assumiu, por ocasio de seu

    advento, afirmando assim a separao entre o Estado e aquilo que Maximino Daia e

    Juliano haviam procurado organizar como Igreja pag, dotada de uma hierarquia

    sacerdotal. J Constncio II mandara retirar da sala das sesses do senado romano o

    altar colocado diante da esttua da Vitria, no qual os senadores pagos queimavam

    alguns gros de incenso; Juliano o havia restabelecido, mas voltou a desaparecer em 382

    e, a despeito de inmeros protestos, s iria reaparecer, de maneira efmera, no tempo, de

    Eugnio (392-394). Apesar disso, o smbolo da Vitria, uma mulher alada e, em alguns

    casos, de dorso nu, foi muito representado nas peas de vrios imperadores, tanto cristos,

    como Constncio, quanto pagos, como Juliano. (catlogo p. 81 )

    O grande golpe dado no paganismo foi o estrangulamento econmico, por meio de

    confiscos, interdio de sacrificar, de consultar orculos, de visitar templos, ou seja, do que

    lhe proporcionava rendimentos ocasionais. Aliado a promulgaes de leis violentas e

    precisas, como a de 356, na qual era proibido, sob pena de morte, celebrar sacrifcios,

    adorar os dolos, entrar nos templos. Mas coube a Teodsio, em 392, promulgar uma lei

    que, finalmente aplicada com rigor, continha minuciosas especificaes, atingindo com

    pesadas multas os recalcitrantes e os funcionrios negligentes, proibindo qualquer ato do

    culto, embora no sangrento, mesmo no interior das casas e propriedades privadas. Assim

    sendo, o j alquebrado paganismo ir desaparecer, praticamente, nos sculos vindouros.

    26

    MOMIGLIANO, Arnaldo. Saggi di Storia della Religione Romana. Studi e lezioni 1983-1986. A cura de

    Riccardo di Donato. Brescia: Morcelliana, 1988, p.79.

  • 35 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    Com o apoio do brao secular, a Igreja tratou de eliminar os seus inimigos internos,

    os herticos. Para isto, foram realizados vrios conclios, desde o reinado de Constantino

    numa tentativa de definir uma ideologia a ser seguida. Neles, a interveno do imperador

    em defesa de um ou outro bispo era comum. Podemos citar, por exemplo, o antagonismo

    existente entre os irmos Constncio, ariano, e Constante, defensor do Credo de Nicia.

    Com a morte deste, Constncio impe a sua vontade nos Conclios de Arles (353) e Milo

    (355), condenando os nicenianos de Atansio.

    Podemos dividir essa querela em dois grandes grupos: o dos nicenianos, ou

    homoousianos, que acreditavam na consubstancialidade entre pai e filho; e os arianos,

    partidrios da doutrina defendida por rio, que, por sua vez, dividiam-se em trs grupos:

    os moderados ou homoiousianos, que acreditavam numa similitude substancial, os homeos,

    segundo os quais no existia similitude substancial; mas todas tinham em comum, a

    diminuio da divindade de Jesus Cristo. J os radicais ou anomeos, indiretamente,

    negavam a divindade de Cristo. Juliano, numa tentativa de enfraquecer o cristianismo,

    ir chamar os nicenianos exilados por Constncio, restituindo seus antigos bispados. A

    esperana do rei-filsofo era que as discusses recomeassem, desestruturando os galileus.

    Ambrsio, bispo de Milo no governo de Teodsio, iria atrair os arianos moderados para o

    Credo de Nicia.

    Concordamos com Rmondon, o qual afirma que desde o Conclio de Srmio (351),

    ocorrera uma anarquia teolgica27; o que, fica bem claro atravs da citao de Hilrio de

    Poitiers, contemporneo dos fatos, niceniano exilado por Constncio, ao dar a sua viso

    geral das controvrsias: Cada ano, cada ms, damos uma nova definio da f28.

    Assim, associando-se Igreja, o Estado penetrou nas querelas religiosas e a histria

    do sculo IV mostra uma sociedade que, submetida a esses acontecimentos, aumentou as

    perturbaes que agitavam o imprio.

    27

    RMONDON, Roger. - op. cit., p. 79. 28

    AMMIANO MARCELLINO. Delle Guerre di Romani. Tradotto per M. Remigio Fiorentino.

    Venetia: Apresso Gabriel Giolito de Ferrari, 1550, p. 281.

  • 36 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    ELEMENTOS DE HISTRIA FINANCEIRA (COM NFASE NO FATOR MONETRIO)

    No o nosso objetivo analisarmos o processo da circulao monetria do quarto

    sculo. Pois, como se trata de uma dissertao de mestrado, no haveria tempo vivel para

    tal trabalho, sendo assim desaconselhado pelo prof./Dr. Ciro Flamarion e pela profa/Dra.

    Maria Beatriz Florenzano. Por isso ficaremos retidos a uma pequena introduo da vida

    financeira do perodo. Pretendemos em uma outra oportunidade dedicar-nos essencialmente

    ao estudo do montante monetrio em curso no sculo IV, algo, em nossa opinio, de suma

    importncia para compreenso do Baixo Imprio.

    Durante boa parte do sculo III, principalmente durante o governo de Aureliano

    (270-275), h uma tentativa de restabelecer as finanas e o equilbrio econmico. As

    oficinas de cunhagem, para facilitar a circulao das moedas, so multiplicadas. Mas,

    logo que so fechadas para que se faa uma redistribuio do manancial monetrio, h

    revoltas. Para regularizar a situao s se admite a moeda emitida pelo Estado,

    suprimindo o direito do Senado de fiscalizar esta produo. A alta dos preos eleva-se a

    1000 %. Os cidados recusam-se a aceitar essas novas medidas, tanto que uma

    sublevao ir explodir, em Roma no ano 273, na qual os trabalhadores da Casa da

    Moeda (monetarii), apoiados pelas camadas inferiores da populao, matam cerca de

    7000 soldados das foras de represso.

    Numa tentativa de restabelecer o poder da economia romana, Diocleciano realiza,

    ou pelo menos tenta faz-lo, uma reforma econmico-administrativa. Alm de emitir

    moedas de ouro e prata, coloca em circulao peas divisionrias de bronze, com tenussimo

    invlucro de prata, que servem para as operaes quotidianas, conhecidas como follis. Em

    301, os tetrarcas tentaram atravs de um dito, Edictum Diocletiani et Collegarum de

  • 37 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    pretiis rerum venalium 29, ou Edito Mximo de Preos, restabelecer a economia do

    Imprio.

    Tambm nesse perodo as casas de cunhagem so ampliadas, a fim de satisfazer as

    obrigaes da tetrarquia e as necessidades do comrcio: obras pblicas, aumento do efetivo

    militar e civil . Para isso, novas peas comeam a circular com letras, na parte inferior do

    reverso da moeda, conhecida por exergo. Quando visvel, podemos identificar o nome

    (espcie de sigla) do local da cunhagem. Vejamos o quadro a seguir:

    SIGLA

    LOCAL

    CONSA, CONS, CONST,

    CONSP, CONSPB,

    Constantinopla

    TSA, final SR, SMTS, TES

    TR

    Tessalnica

    RE, RT, RQ,

    RT, RQ,VRB. ROMQ, VRB. ROM.Q, VRB. ROM, RS

    Roma

    SMKR ou SMK, SMNE, SMAB, SMAKA

    Czico

    SMANAI, SMANEI, SMANTH

    SMANB, SMANH, SMANS, NA

    SMAN

    Antioquia

    SMALE, SMALA, ALE, ALEA

    Alexandria

    SMHA

    Herclea

    SMNE, SMNI, SAMNA

    Nicomdia

    ARLQ, PARL, PCON, SCON, PAR Arles

    29

    DESSAU, Hermannus (Ed.). Inscriptiones Latinae Selectae. v. 1. Berolini: Widmannos, 1892, p. 58.

  • 38 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    TRS

    BSISZ, ESIN, ASI, ASSIS,

    BSISG

    AQP*

    Treves

    Siscia

    Aquilia

    Tanto Depeyrot, como Mendes, estabelecem um mapa dos ateliers monetrios romanos espalhados pelas diversas regies imprio.30 Ver o mapa a seguir:

    Durante a tetrarquia, mais especificamente no governo do Hercleo Maximiano,

    ir ser cunhada uma nova pea chamada de votiva, pois em seu exergo vem a seguinte

    inscrio: VOT XX MVLT XXX, que significa, votamos por vinte anos, depois por mais

    trinta anos. Na legenda, uma coroa de louros cerca o voto. Estes votos expressavam uma

    espcie de confiana, de fidelidade do povo ao seu governante. Posteriormente, outros

    imperadores, Constncio II, Juliano, Joviano, Valentiniano I, cunharam moedas com a

    30

    MENDES, Norma Musco. Sistema Poltico do Imprio Romano: um modelo de colapso. Rio de

    Janeir: DP&A, 2002, p.163.

  • 39 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    mesma legenda ou derivadas, como VOT XXX MVLTIS XXXX ou VOT XX SIC XXX.

    (catlogo p. 111 )

    Na era constantiniana, permaneceram os mesmos problemas. Depois da derrota de

    Licnio, Constantino apoderou-se dos tesouros do antigo rival, mas, dois anos mais tarde, a

    maior parte das casas monetrias fundadas por Diocleciano eram fechadas. Em 332,

    graas ao confisco dos bens dos templos, foi possvel reabri-las. Mas Constantino foi

    obrigado a realizar uma reforma monetria, baixando o peso do aureus, a fim de emitir

    o solidus, e em 324, o miliarense, de prata, que poderia chegar ao valor de 1/12 do

    solidus aureus. Quanto massa em circulao, constituda por espcies de cobre e bronze,

    de peso varivel. Tal medida foi de tamanha importncia que Brown faz uma aluso ao

    solidus como o dlar da Idade Mdia31.

    Na administrao, o ministro do tesouro real , o rationalis, cedeu lugar ao conde

    das liberalidades sagradas; e o procurator rei privatae ao conde dos bens privados, na

    organizao dos bens e da fortuna do prncipe para que revertessem as rendas do ager

    publicus, dos domnios confiscados, das terras municipais e os recursos dos templos.

    De fato, a poltica constantiniana de grandes despesas no podia fazer parar a

    inflao, tanto mais que as liberalidades, como o fornecimento do po, que a princpio era

    gratuito, passando, em seguida, a um preo reduzido, bem como as distribuies de azeite e

    de carne de porco, aumentaram, medida que so ampliadas as fronteiras imperiais. S

    no sculo IV so distribudas quatro mil raes de carne de porco por dia. Esta assistncia

    social custava caro.

    A partilha do imprio entre os filhos e sobrinhos de Constantino, as agitaes

    consecutivas usurpao de Magnncio, as inquietaes suscitadas por dissenes

    religiosas, a subida ao poder de Juliano, no trazem qualquer soluo. Sobrecarregara-se

    com pesados encargos o funcionamento do servio de correio, que transportava os bispos aos

    diversos conclios, implicando em despesas incontrolveis. Durante o governo de Constncio

    II e Constante foram colocadas em circulao novas moedas, a maiorina e o centenionalis,

    31

    BROWN, Peter. - op. cit., p. 27.

  • 40 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    mais pesadas do que as de Constantino, mas tinha sido preciso desvaloriz-las. Juliano

    restitui-lhes o seu peso primitivo, mas o efeito no durou muito.

    Valentiniano I, em consequncia das guerras que no param, v-se em apuros de

    dinheiro. Comea a exigir o pagamento em ouro das contribuies e taxas devidas ao

    Estado e a concesso, em trs prestaes, para o imposto da anona (imposto direto, em

    espcie, arrecadado nas provncias). Restabelece o controle estatal sobre as minas, cuja

    explorao Constantino tornara livre. Procede a confiscaes em massa dos bens privados e

    s deixa s cidades um tero dos seus rendimentos. De acordo com Smaco32, chega at a

    emitir moedas falsas.

    32

    SMACO. Epistolarum. Symmachi praefectivrbi libri II. De Ambrosii Epistolae in Symmachum.

    Epistolarum Magni turci ad uarias gentes liber unus, a Laudino Equite Hierosolymitano latine redditus.

    Basilae: Froben, 1549, p. 243.

  • AS MOEDAS DE CONSTNCIO II NO ACERVO DO MUSEU HISTRICO NACIONAL: CARACTERSTICAS E ANLISE

    O ACERVO

    A Origem

    As 259 moedas do Imperador Constncio II que constituem o objeto do catlogo

    que elaboramos, pertencem ao acervo do MHN e, por isso, nossa anlise ser centrada

    nesta documentao.

    A origem da coleo um tanto obscura. O corpo tcnico do museu acredita que a

    maior parte das peas foi legado, em 1921, da grande coleo reunida pelo comendador

    Antonio Pedro de Andrade Biblioteca Nacional, onde o seu antigo diretor, Ramiz

    Galvo, desde 1880 havia comeado a formar o que mais tarde viria a ser a coleo

    oficial brasileira.33

    Antonio Pedro reuniu uma coleo de 13.941 moedas e medalhas que

    compreende, entre outros ncleos expressivos, 4.559 moedas e 2.054 medalhas portuguesas

    e 4.420 moedas da Antiguidade.

    tambm possvel que alguns exemplares sejam precedentes das colees da

    famlia imperial, legadas pelo imperador D. Pedro II ao Museu Nacional em 1891 e

    incorporadas pela Biblioteca Nacional em 1896 34.

    Em 1922, quando o Museu Histrico Nacional foi criado, o decreto que o

    instituiu tambm determinou que o acervo numismtico existente na Biblioteca Nacional

    assim como em outras instituies como o Arquivo Nacional e a Casa da Moeda fosse

    33

    VIEIRA, Rejane Maria Lobo. Op,cit., p. 23.

    34

    Idem, Ibidem op.cit. p. 23.

  • 42 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    para ali transferido. No momento em que se efetivou a cesso, a coleo total ultrapassava

    as 48 mil peas. Hoje ela chega a aproximadamente 109 mil.

    Tcnicas de Produo

    O primeiro estgio na produo das moedas a fabricao de um disco metlico,

    seja fundido e moldado, seja recortado de uma placa. Esse disco colocado entre dois

    cunhos gravados, o de baixo preso a uma bigorna e o de cima seguro na mo ou com o

    auxlio de uma pina. Com o disco no lugar, a presso de um martelo sobre o cunho

    superior suficiente para imprimir o desenho em ambos os lados simultaneamente.35

    A cunhagem de moedas empregava mo de obra escrava. Parece ser que quatro

    homens, pelo menos, eram necessrios: um para colocar o disco na posio, outro para

    segurar o cunho superior, um terceiro para manejar o martelo e o quarto para retirar o

    produto final. O alinhamento incorreto do anverso em relao ao reverso, fenmeno

    bastante comum na amoedaes de Constncio, deve-se provavelmente rapidez da

    produo e sugere que no existia um cuidado especial para colocar os discos.

    De modo geral, o ouro foi o metal com maior grau de pureza em pregado na

    fabricao monetria desde a Repblica at Constncio II. Os nveis de pureza chegaram

    at 98% muitas vezes, mas caram a 50% nas emisses de Septmo Severo.

    Tais fenmenos no refletem apenas motivos econmicos; refletem tambm

    aspectos como a eficincia na produo em relao aos custos. Metais menos valiosos e mais

    abundantes, e que circulavam mais, tambm eram adulterados com mais frequncia. Por

    exemplo, a liga denominada orialco, uma das ligas feitas com cobre, obtinha uma

    durabilidade maior ao aumentar-se a quantidade de zinco.

    35

    SINGER, Charles. HOLMYARD, E. J. and WILLIANS, Trevor. A History of Technology. The

    mediterranean civilizations and the Middle Ages c. 700 B.C. To c. A.D. Oxford: At the Clarendon Press,

    1956, p. 490.

  • 43 Cludio Umpierre Carlan - As Moedas de Constncio II

    A fase mais demorada e que exigia maior habilidade na produo das moedas era

    a da gravao dos cunhos. A maioria deles parece ter sido fabricada de bronze com grande

    quantidade de estanho. Os cunhos deveriam ser suficientemente densos para suportar os

    inmeros golpes de martelo. s vezes era colocada, ao redor do cunho superior, uma capa

    de ferro para evitar rachaduras.

    O cunho era fundido em um canio com um dos lados arredondado e o outro reto.

    Neste era gravado o desenho com uma goiva com ponta de diamante ou de ao36. Na

    medida em que o desenho exigisse mais detalhes, utilizavam-se instrumentos cada vez mais

    delicados. Geralmente as inscries e os detalhes mais delicados, como a efgie, eram feitos

    a mo.

    A proximidade das tcnicas de fabricao das gemas e dos cunhos monetrios

    levou os especialistas a admitirem a possibilidade dos mesmos artistas trabalharem numa e

    noutra atividade, ainda que no seja de nosso conhecimento a existncia de alguma

    documentao que comprove ou refute esta hiptese.

    Smbolos Monetrios

    O homem, durante a sua passagem pelo planeta, desenvolveu diversas formas

    simblicas, tanto artsticas quanto lingusticas, expressas pela sua conscincia. A respeito,

    e ao tocante ao nosso tema, podemos afirmar que ...os smbolos polticos so definidos

    como smbolos que funcionam at um ponto significativo na prtica do pode