Moedas sociais como artefatos na construção de...

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Severo, Faria. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 8(gt34):1-16 Moedas sociais como artefatos na construção de “empodimentos” político-pedagógicos GT 34 - Interfaces entre ciência, tecnologia e educação Fernando Gonçalves Severo Luiz Arthur Silva de Faria

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Moedas sociais como artefatos na construção de“empodimentos” político-pedagógicos

GT 34 - Interfaces entre ciência, tecnologia e educação

Fernando Gonçalves SeveroLuiz Arthur Silva de Faria

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Situando os experimentos

Antes de mais nada, é importante situar nossos experimentos. Consideramos importanteinvestigar e trabalhar com a temática das moedas sociais em salas de aula no Brasil neste momento.Primeiro, o Brasil é conhecido como um país onde a desigualdade social é enorme. Por outro lado,acreditamos que hoje vivemos no Brasil uma crise de um certo tipo de práticas democráticas,relacionadas a uma “democracia do voto” - para citar o educador Gustavo Brito (2017) -, ademocracia representativa. Este modelo está conectado com uma ideia de cidadania passiva, onde opapel dos cidadãos é em grande medida optar para quem delegar certas instâncias (limitadas) depoder. Para alguns, esta crise não é somente brasileira, mas internacional (BRITO, 2017).

Autores de diferentes áreas do conhecimento revelam inquietações e preocupações com otema da democracia. Para José Saramago (2006) “[t]udo se discute, menos a democracia”, enquantoque, para José Murilo de Carvalho (2007, p. 219), “perdeu-se a crença de que a democracia políticaresolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade”. Uma característica do modelode democracia que adotamos, “delegatícia”, é por exemplo que os processos de criação e circulaçãode dinheiro em um país é um dos assuntos delegados pelos cidadãos a políticos e "especialistas".Isso significa que os cidadãos estão geralmente muito longe destes processos, considerando-osmuitas vezes como “naturais”, apesar dos efeitos que estes processos causam sobre cada um denós.

Se por um lado temos um quadro, ao menos brasileiro, de cidadãos desiludidos com umademocracia restrita ao ambiente político tradicional (em que cidadãos ficam “consumem” políticos etêm a sensação de que “não podemos mudar as coisas”), por outro lado é conhecido também que osambientes educacionais tradicionais incorporam de certa maneira um “modus operandi” passivo dosestudantes. Uma educação voltada para o “consumo” de conteúdos pré-estabelecidos em ritmos pré-determinados, em um estilo Fordista de produção de cidadãos, pode até certo ponto ser útil para aformação de determinadas mãos-de-obra, mas gera efeitos colaterais tais como cidadãos formatadospara “consumir” um mundo já pronto. Certamente há diversas experiências interessantes no sentidocontrário, linhas de fuga desse quadro panorâmico que traçamos nestas poucas linhas, masacreditamos que essa seja a realidade de muitos dos espaços educacionais brasileiros. Nas palavrasde Brito (2017), as “escolas replicam um sistema de cidadania passiva, que (…) nutre a corrupção,(…) a crise política, (…) que não [são problemas somente] brasileiros, mas mundiais”.

Neste trabalho, descrevemos duas experiências situadas em sala de aula, das quaisparticipamos da concepção e da execução. Apresentamos aos públicos (jovens do ensino médio esuperior da cidade do Rio de Janeiro) não somente conceitos de uso de moedas sociais, maspreferimos a abordagem de vivenciar a criação de moedas válidas para aqueles coletivos eambientes. Discutiremos assim ao longo do texto a ideia do uso de moedas sociais em sala de aulacomo instrumentos a um só tempo políticos e pedagógicos.

Em várias experiências de moedas sociais parece não haver dúvidas de que a práticaeconômica de adquirir produtos e serviços localmente se configura em uma prática pedagógica. Bastaaqui pensarmos no exemplo do Banco Palmas (Fortaleza, Brasil) que, segundo pesquisas realizadasno Conjunto Palmeiras praticamente inverteu o hábito de consumo das famílias no que se refere àprocedência: a grande maioria passou a realizar a maior parte de suas compras em produtos locais.Neste trabalho exploramos de certa forma um caminho diferente: ao invés da prática político-econômica do uso e da gestão de uma moeda social se configurar como um processo pedagógico,pensamos aqui se o uso e a criação de um instrumento de medida compartilhado válido naqueleambiente (uma “moeda social” em sala de aula em substituição às notas tradicionais) como prática

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em ambientes de ensino-aprendizagem pode contribuir para a formação de um estudante e umcidadão mais ativo, ao cultivar práticas democráticas conectadas com o que o educador Tião Rochapropõe chamar de “empodimento”.

Enquadrando os experimentos

A seguir apresentaremos alguns dos referências e metodologias que entremeiam este artigo.Nosso trabalho de campo gravitou em torno de alguns referenciais teóricos, a saber, os estudos CTS(Ciênica-Tecnologia-Sociedade) de Bruno Latour, Michel Callon e John Law e os estudos pós-coloniais de Walter Mignolo, e um referencial que poderíamos chamar de vivencial ou de campo: aspedagogias do educador popular Sebastião Rocha1.

Na presente descrição buscamos estar atentos às relações que se formam entre pessoas,coletivos, metodologias, formas organizacionais, computadores e softwares, em outras palavras,entre os híbridos de tecnologia e sociedade que podem incorporar e espalhar relações maisdemocráticas ou mais autoritárias, mais mecanizadas ou mais dialógicas, mais hierárquicas ou maishorizontais, inspirados em reflexões de autores como Bruno Latour, Michel Callon e John Law, docampo dos estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Em resumo, buscamos olhar aformação de coletivos considerando de forma atenta a participação não apenas dos humanos mastambém dos diversos artefatos que os compõe, como em nosso caso computadores, sonhos, modosde organização e indicadores de avaliação.

Dois autores latino-americanos interessam aqui, ambos inspirados no educador brasileiroPaulo Freire: Tião Rocha, de uma forma mais visceral (no sentido de uma prática intensa dosprincípios freirianos), e Mignolo de uma outra forma tão interessante quanto, porém mais acadêmica ereflexiva. Mignolo se aproximou de Freire ao publicar na virada do milênio um livro chamado HistóriasLocais/Projetos Globais – Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar (2003). Nestaobra, Mignolo fez referência ao livro Pedagogia do Oprimido de Freire para discutir a pós-colonialidade de uma maneira um tanto exótica ao mencioná-lo em um capítulo chamadoBilinguajando o Amor – Pensando entre Línguas. Apesar da heterodoxia do título, Mignolo - aolevantar as questões da língua como um poderoso artefato na “construção de comunidadesimaginadas homogêneas” e como cúmplice das ciências (naturais e humanas) e da cultura no arranjogeopolítico dos estados-nação - traz a reflexão dialógica de Freire para um lugar original e pertinentesobre as línguas e suas implicações na cultura acadêmica e nos projetos educacionais.

[A] interpretação d[o] pensamento dialógico de [Freire] mostra o caminho para odeslocamento de noções hegemônicas de conhecimento disciplinar ou acadêmico.Freire fala sobre o pensar com em vez do pensar por ou pensar sobre as pessoas.Visando analisar os sistemas educacionais e as línguas nacionais, seu pensamentodialógico enquanto projeto educacional reformula o arcabouço [que] conserva umatradição segundo a qual a ciência e a pesquisa são monológicas: trata-se do pensar

1 O educador costuma se apresentar da seguinte forma: “Tião Rocha é meu nome, Sebastião é meu apelido, porfavor, me chame pelo nome que apelido é só para os mais chegados, sou antropólogo por formação acadêmica,educador popular por opção política, folclorista por necessidade, mineiro por sorte e atleticano por sina.” Ele foiprofessor em todos os níveis escolares, do ensino fundamental ao superior, atuando também em atividadesadministrativas a exemplo da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).Atualmente preside e dirige o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, o CPCD, ONG criada em 1984 emBelo Horizonte, que atua no empodimento (a versão tiaorochiana do termo empoderamento ou empowerment)de comunidades populares e na valorização da cultura local com atenção especial para a educação de criançase o fortalecimento do protagonismo juvenil.

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sobre, não pensar com. O objetivo da ciência e da pesquisa é conquistar fatos,percebidos quer como natureza humana quer como natureza natural. (MIGNOLO,2003, p. 360, grifos dos autores).

Se uma das reflexões pretendidas em nossas ações econômicas-educativas com jovens do Riode Janeiro era apontar as relações entre as análises de Mignolo e as atuações de Tião Rocha,certamente o pensamento dialógico de Paulo Freire serve de ponte entre os dois. Mignolo critica “opensamento acadêmico sobre nações e línguas” como um limitante para o “pensar com” a população(que nos lugares geo-históricos2 subalternos geralmente estão fora da academia).

Para apreender o empodimento tiaorochiano, não como um simples jogo de palavras com ostermos empoderamento ou empowerment, precisamos trazer à tona o conceito de pensamentoliminar. Sem restringi-lo a uma mera crítica ao sistema colonial/moderno, Mignolo reafirma a força dopensamento liminar no sentido de

reverter a subalternização dos saberes e a colonialidade do poder. [O pensamento liminar] também indica uma nova maneira de pensar na qual as dicotomias podem ser substituídas pela complementaridade de termos obviamente contraditórios[, por exemplo, Natureza e Cultura]. O pensamento liminar poderia abrir portas para uma outra língua, um outro pensamento, superando a longa história do mundo colonial/moderno (MIGNOLO, 2003, p. 454).

Portanto, poderia abrir portas para um outro pensar econômico, e, consequentemente, paraoutras moedas. No presente artigo utilizaremos o conceito de pensamento liminar como uminstrumento de articulação para entendermos que as experiências educativas Tecnojovem e ECI nãosão exclusivamente projetos globais ou histórias locais e nem estão sufocados entre eles, mas simpara compreender até que ponto a apropriação do conceito de moeda social configura-se como apromessa de um potencial epistemológico.

Ao apresentarmos o conceito de moedas sociais para jovens estudantes pretendíamosconverter as dicotomias local/global, acadêmico/popular, técnico/social, e similares em potenciaisepistemológicos. Dessa forma, ao trazer como condição fundamental do pensamento liminar, a denão ser capaz de ser onde se está, Mignolo demarcou de vez um território reconfortante para aquelesque constroem saberes locais a partir da conformação ou da deformação de projetos globais. Dentreas possibilidades de conceituação, Mignolo caracteriza o pensamento liminar como uma

gnosologia poderosa e emergente, que, na perspectiva do subalterno, está absorvendo e deslocando formas hegemônicas de conhecimento. Não se trata de uma nova forma de sincretismo ou hibridismo, mas de um sangrento campo de batalha na longa história da subalternização colonial do conhecimento e da legitimação da diferença colonial (MIGNOLO, 2003, p. 35).

“Não ser capaz de ser onde se está torna-se a condição fundamental do pensamento liminar”.Assim, Mignolo converte uma não possibilidade de ser em potência para construção/articulação doconhecimento. Fomos buscar essa possibilidade de reverter a nostalgia em celebração através danegação em pessoas e instituições que serviram de inspiração e conteúdo didático-pedagógico parao trabalho que desenvolvemos com os jovens do Rio de Janeiro.

Para corroborar o argumento de Mignolo sobre essa incapacidade de sermos onde estamos,podemos nos valer das diversas histórias locais associadas a projetos globais descritas nodocumentário Quem se importa (Mara Mourão, 2013). O documentário mostra a história de vida (e de

2 Aqui apropriamos a noção de local geo-histórico de Mignolo. Para ele um local geo-histórico não é apenas “umlugar geográfico específico, mas [é um] lugar geográfico com uma história local particular, (…) [onde] a produçãodo conhecimento é inseparável das sensibilidades do local” (MIGNOLO, 2003, p. 254-6)

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seus projetos de vida) de diversas pessoas de várias regiões do mundo, pessoas que hoje são“definidas” ou reconhecidas como empreendedores sociais, mas que antes desse reconhecimentonão eram capazes de ser onde estavam. Ao contar que sempre deixava em branco o campo profissãoao se registrar em hotéis, pois não sabia o que ali escrever, um dos entrevistados no filme contou quea origem dos termos ONG (Organizações Não Governamentais) e Empresas Sem Fins Lucrativos sedeu em contraste com e em negação às referências hegemonicamente estabelecidas. Por exemplo,na Europa continental, quem não trabalhasse em uma grande empresa (estatal ou privada)trabalhava por consequente lógica de negação em uma Organização Não Governamental. Já nosEUA, as empresas de utilidade social e que não tinham como finalidade o lucro (uma aberração emcomparação com a maioria das empresas naquele país) começaram a ser denominadas deEmpresas Sem Fins Lucrativos, ou seja, a sua definição foi caracterizada por algo que não possuíam.Afinal, essas empresas poderiam ter sido reconhecidas por suas qualidades intrínsecas, sendochamadas de Empresas Solidárias, ou Empresas Autogestionárias, ou algum adjetivo similar. Dentreas pessoas entrevistadas no filme, encontram-se aquelas que, olhando para seu passado, poderiamser consideradas “promessas de um potencial epistemológico”. Ali estão os precursores domicrocrédito na Índia e no Brasil, um deles, Joaquim Melo, fundador do Banco Comunitário Palmasem uma das maiores favelas de Fortaleza-CE, emergiu da ilegalidade para a gestão de uma rede debancos comunitários pelo país afora.

Se o latino-americano Walter Mignolo pode sacramentar “Sou onde penso” a partir dascontingências de uma universidade norte-americana, no Brasil, de um outro local de enunciação, FreiBeto pode dizer “a cabeça pensa onde os pés pisam”. A primeira vez que ouvimos essa frase foi deJoaquim Melo. Após dar uma palestra sobre finanças solidárias, ele narrou o novo desafio de seconstruir um banco comunitário a partir de uma política pública de estado e não a partir de umaagenda comunitária como ele estava acostumado (referia-se ao caso do Banco ComunitárioMumbuca, em Maricá-RJ3). Quando questionamos Joaquim sobre a necessidade de seudeslocamento quase semanal para Maricá, Joaquim respondeu dizendo que sua experiência de anoscom o Banco Palmas era um know-how de base, no sentido de que a moeda social deveria serconstruída pelas particularidades da comunidade (demandas locais e situadas). Já em Maricá, ocontexto da ação do banco comunitário era o inverso daquele que estava habituado a trabalhar, istoé, o de uma política pública da prefeitura, o de uma lei que define para o banco as regras quedeterminam as demandas sociais que deveriam ser atendidas. Para entender esse novo desafio,Joaquim disse que precisava estar em Maricá para conversar com as pessoas, para entender epensar em como construir aquele banco, e foi assim que justificou a necessidade de uma atuaçãopresente e não remota: “como dizia Frei Beto: a cabeça pensa onde os pés pisam. Rapaz, para essenegócio de construir banco não tem receita de bolo, cada lugar é um lugar, cada comunidade é umacomunidade”.

Assim como Joaquim Melo e o Banco Palmas surgiram a partir de uma negação, ou seja, donão enquadramento às limitações de um sistema bancário nacional (um projeto global nos termos deMignolo), Tião Rocha e algumas pessoas do sertão mineiro inventaram o CPCD a partir da negaçãode outro projeto global, a saber, os sistemas educacionais nacionais. Nos termos de Tião, essanegação do saber hegemônico (ou de uma moeda hegemônica) pode se materializar como umapotência de realização e atendimento das demandas locais de uma comunidade. Demandas quemuitas vezes são simultaneamente econômicas e educacionais. Foram esses saberes, quereres efazer (aquilo que Tião define como cultura) que tentamos levar à prática educativa com moedassociais para jovens do Rio de Janeiro.

3 Este é o tema da pesquisa que está sendo desenvolvida por Luiz Arthur Silva de Faria no Programa de Históriadas Ciências e das Técnicas e Epistemoloiga, sob a orientação do Prof. Henrique Cukierman.

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Ensaiando perguntas e desenvolvendo os experimentos

Nossa hipótese de pesquisa é a de que o uso e a criação de um instrumento de medidacompartilhado (neste caso, uma “moeda social”, em substituição às notas tradicionais) válido comoprática ao menos no ambiente de ensino-aprendizagem pode ser um meio para contribuir para aformação de um estudante mais ativo - e talvez futuramente um cidadão mais ativo -, na medida emque cultiva práticas democráticas conectadas com o que o educador Tião Rocha propõe chamar de“empodimento”.

Nessa linha, uma abordagem que propomos é narrar e avaliar dois eixos: primeiramente, emque medidas conseguimos nos experimentos discutir com os jovens o mundo como algo a serconstruído? Em outras palavras, e traduzindo para as realidades vividas nas salas de aula, em quemedidas conseguimos rediscutir os indicadores, tecnologias e moedas com os jovens. E, em outradimensão, até que ponto conseguimos despertar a construção de novos coletivos que embutempráticas democráticas?

Reconhecemos a dificuldade de tal avaliação, sobre as possibilidades (e limitações) dasmoedas sociais e digitais em salas de aula no Brasil como forma de representar uma resposta paraeste duplo problema brasileiro, ou seja, o de uma cidadania passiva misturada/reforçada por práticaseducacionais que contribuem para uma passividade dos estudantes. Como forma de avaliar talquestão, além da observação quotidiana presencial e através da plataforma online utilizada nasexperiências (Corais.org), realizamos pesquisas tanto logo ao final dos cursos quanto após um longoperíodo de término dos cursos (já em 2017), a fim de avaliar questões como: a percepção dediferenças entre o sistema de avaliação do curso (que utilizou “moedas sociais” válidas naquelecontexto) e o sistema mais tradicional, com que os estudantes estavam habituados; o conhecimentodos estudantes antes do curso sobre o tema das moedas sociais; o uso de alguma “moeda”complementar pelos estudantes após terminado o curso; como os estudantes encaram, após o curso,a possibilidade de criar uma “moeda”; mudanças na maneira do estudante pensar, após as práticasem sala de aula.

Na primeira experiência, jovens de ensino médio residentes em bairros no entorno do centrodo Rio de Janeiro tiveram aulas de temas ligados a tecnologias de informação e comunicação (comofotografia, infraestrutura com Linux e jogos educacionais). O projeto foi realizado nos anos de 2014 e2016 no contexto de ações de responsabilidade social de uma empresa de economia mista, emparceria com instituições de ensino (como o Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET RJ) eorganizações do campo da economia solidária. As aulas foram ministradas por profissionais daempresa com atuação nos respectivos temas, e organizado também por profissionais da empresa,entre eles os autores deste artigo. Nesta experiência, buscou-se uma aproximação dos jovens com omundo do trabalho, de modo que os alunos fossem envolvidos em produtoras / fabriquetas, queentregaram produtos/serviços a clientes reais ao final do processo. O tema das moedas sociais, emversões anteriores do projeto, era apresentado em uma aula que era comum a todas as turmas. Já naedição 2014, a moeda Tecnotas integrou parte do sistema de avaliação, com o objetivo de trabalhar otema das moedas sociais de forma prática, ao invés das notas (graus de avaliação) tradicionais.

A metodologia das “produtoras” foi implementada de forma que os jovens assistiam aulas emsuas turmas (4 turmas sendo uma de Fotografia, uma de Fotografia Panorâmica – formando a linhade Multimídia Comunitária -, uma Softwares Educacionais e uma em Infraestrutura com Linux –

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formando a linha Laboratórios de Aprendizagem), e participavam de grupos produtivos (as produtoras,inicialmente chamadas de MUC1, MUC2, LAP1 e LAP2) que misturavam as turmas de uma mesmalinha tinham produtos concretos a serem entregues a clientes reais.

Tal metodologia foi construída em conjunto com atores da economia solidária no Brasil,notadamente a cooperativa EITA (Educação, Informação e Tecnologias para Autogestão) e a PCC(Produtora Cultural Colaborativa) [email protected], em especial tendo Pedro Jatobá comointerlocutor. Vale pontuar que as PCCs tiveram seu início em meio ao programa governamental"Pontos de Cultura" – uma origem distinta dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento, cujopioneiro foi o Banco Palmas. O “Pontos de Cultura” apoiava não apenas financeiramente (por doisanos) experiências culturais existentes, mas também com um "kit multimídia", incluindo umcomputador com Linux e outros softwares livres. Após esse período, quando o apoio do governoparava, um dos problemas colocados por esta rede era como circular seus produtos, serviços esaberes para pessoas que por vezes não dispunham de recursos financeiros. Também vale a penamencionar o software livre que foi desenvolvido por esta rede para trabalhar com moedas sociais, naverdade um módulo do software hospedado em Corais.org. Tal software teve reconhecimentointernacional, quando Pedro Jatobá participou do Fórum de Inovação 1º e Ciência e da Juventude daUnião do Brics EuroAsiática (Rússia, 2015)4.

O curso Tecnojovem foi então pensado como uma PCC, com uma tabela de ofertas e umatabela de demandas. Cada produto/serviço ofertado/demandado foi “monetizado” em termos deTecnotas. A ideia era aproximar os estudantes do Tecnojovem da vida prática de um empreendimentode economia solidária real como uma PCC. Nessa nova rede concebida, os jovens formaram tambémprodutoras (MUC1, MUC2, LAP1 e LAP2) que se relacionariam com a Produtora Tecnojovem, deacordo com as ofertas e demandas definidas nas tabelas abaixo.

4 Mais em http://www.anpg.org.br/1o-forum-de-inovacao-da-juventude-dos-brics-e-da-uniao-eurasiatica-pedro-jatoba/

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Vale destacar, na tabela de ofertas, os “itens extra” decorrentes de possibilidades que foramse concretizando ao longo do curso. Vale chamar atenção ainda para a ideia de valorizar o público docurso: ao invés de promovermos a noção de que se tratava de um curso gratuito (o que por vezesacarreta problemas de desvalorização do próprio curso pelos estudantes), o discurso dosorganizadores do Tecnojovem para com os alunos era de que o curso era “pago em Tecnotas”, já queelas eram baseadas em recursos que eles tinham, ou poderiam adquirir: dedicação e conhecimento.

Na tabela abaixo, é possível visualizar bem praticamente o sistema de avaliação do curso.

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Como se pode ver, a quantidade de Tecnotas final de cada estudante dependia de umaprofusão de indicadores, e era obtida pela soma destes:

1. Cumprimento de Produções finais (em grupo, máximo de 350TN)

2. Cumprimento de Produções finais (individual, máximo de 350TN)

3. MÍNIMO: Participou da produção?

4. Satisfação do cliente/usuário das produções finais (específicas; Valor = (0-10) x 15 TN)

5. Satisfação do cliente/usuário das produções finais (ECOSOL; Valor = (0-10) x 15 TN)

6. BÔNUS: Prazo das produções finais (100TN)

7. BÔNUS: 100% das tarefas (em sala; 100TN)

8. Qualidade das tarefas (em sala; Conceito (0-10) x 30 TN)

9. BÔNUS: 100% das tarefas específicas (a distância; 50 TN)

10. Qualidade das tarefas (a distância; Conceito (0-10) x 15 TN))

11. Participação em sala (desenv sw)

12. BÔNUS: 100% das tarefas ECOSOL ? (a distância; 50 TN)

13. Qualidade das tarefas ECOSOL (a distância)

14. BÔNUS: Frequência 100%? (; 50 TN)

15. Tarefas administrativas

16. Tarefa-extra

No Corais.org ficaram todos os conteúdos trabalhados pelos professores, bem como o registrode cada tarefa realizada pelos alunos. O fluxo de informações teve a seguinte característica:

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Organizadores e professores criam uma tarefa, a ser desenvolvida pelos estudantes, no sistema;

O aluno registra que a tarefa foi terminada, marcando o professor para receber e-mail;

Professor registra avaliação, marcando o “usuário-banco” do sistema (os autores fizerem este papel,ao qual voltaremos à frente) para acerto de TECNOTAS;

O usuário-banco adiciona a transação transferindo as tecnotas (quantidade de acordo com tabela deofertas e demandas) aos alunos;

A transação é vinculada à tarefa;

Registro: usuário-banco paga as Tecnotas ao estudante.5

Vale ainda registrar aqui que todas as turmas tinham aulas comuns com o tema “Gestão deEmpreendimentos Solidários” (nas versões anteriores do curso, o tema de moedas sociais foi tratadoem uma dessas aulas). Em uma dessas aulas, foi realizado o que chamamos de Tecnojogo, umadinâmica que objetivava treinar as possibilidades de trocas entre as produtoras, com base em suaspróprias tabelas de ofertas e demandas. Aqui, utilizamos uma situação que Bruno Latour poderiachamar de “pane” na disponibilidade de moedas: a partir da simulação de que as produtoras nãocontavam com dinheiro propriamente dito (Reais, moeda nacional), estimulamos a reflexão dosalunos (com base na própria dinâmica) sobre alternativas à escassez de dinheiro, aguçando osolhares para as riquezas existentes em cada “produtora” (grupo de alunos). Para Latour (2016, pág42), em situações de pane um objeto passa “de técnico a sociotécnico” (desnaturalizado): de frio,rápido, imediato, passa a quente, lento, mediato. A atividade foi de grande interesse dos alunos, egerou um mapa de trocas relevante (figura abaixo), dado o pouco tempo da atividade. Contudo, nãohouve tempo hábil para monetizar tais trocas e pensar uma integração com as Tecnotas.

5 Mais em http://www.corais.org/sites/default/files/passo-a-passo_corais.pdf

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Já o segundo projeto foi realizado em 2015 com graduandos de Engenharia da Computação eInformação, da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na disciplinaComputadores e Sociedade. A disciplina teve participação dos autores, em níveis diferentes, em suaconcepção e condução. A partir do conceito de empodimento do educador popular Tião Rocha e dasmetodologias das Produtoras Colaborativas Culturais (PCC), os estudantes da disciplina construírame implementaram autonomamente indicadores de avaliação (estes, não monetizados), ao longo dadisciplina.

Inspirados na experiência da PCC Universidade Livre de Teatro Vila Velha(http://www.corais.org/livre/), que utiliza uma moeda social como forma de engajar os estudantes emtodos os aspectos ligados na formação de um ator, replicamos essa metodologia (adaptada a nossarealidade local) utilizando também a ideia de uma moeda social (cujo nome foi escolhido pelosalunos) de forma a permitir que estudantes de um curso de computação efetivamente começassem aproblematizar o estudo e a produção do conhecimento como algo mensurável. Vale destacar nestecaso que, entre negociações e aprendizados sobre o funcionamento de um “lastro pedagógico” apartir do que se produz estudando, levamos quase dois meses para finalizar o acordo da moedasocial Cookie (CK$), a saber:

• Cada um individualmente começava o curso com um saldo negativo de -110CK$.

• Cada hora despendida no projeto, assim como as horas em sala de aula (ou aularemota), valia 3CK$. A entrega do MVP (mínimo produto viável) valia 11CK$.

• O estudante, ao apresentar um saldo de 63CK$, ou seja, ter obtido 173CK$ aolongo do curso, era aprovado com a média mínima (cinco).

• Para ser aprovado com média dez seriam necessários 98CK$ de saldo. Os 35 CK$extras seriam obtidos pela mesma convenção, ou seja, 3CK$ por hora de trabalho nosprojetos.

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Alguns resultados

Em ambas as experiências, ECI e Tecnojovem, percebemos um excesso de trabalhorelacionados aos projetos demandados, o que ocasionou um engajamento que produziu sobra demoedas. Como exemplo, podemos citar o Projeto Bornal de Jogos (ECI), em que uma das alunasencerrou a disciplina com um saldo de 140CK$, ou seja, 42CK$ acima dos 98CK$ necessários para aobter o grau máximo. Tal “excedente” de moeda social não foi utilizado nesta experiência. Contudo,no Tecnojovem a característica das Tecnotas “ultrapassarem as fronteiras” da sala de aula(notadamente pela materialidade das possibilidades de aquisição de “itens extra” ao final do curso) foialgo que ganhou destaque nas impressões dos alunos6. Eles destacaram que elas “(…) são híbridas,misturam conceitos de avaliação de rendimento e troca”, e que “incentivam mais o aluno a realizaruma tarefa sabendo que depois poderão utilizá-las las para comprar algo de seu interesse”.

A transparência na avaliação, feita de forma mais gradual, com um “melhor entendimento”pelos alunos, de uma forma “mais justa” foi outra característica bastante citada: nas palavras de umestudante, “o próprio aluno percebia o quanto ele ou seu grupo estava progredindo e contribuindopara o projeto, ao mesmo tempo em que isso era documentado”.

Ainda sobre tais diferenças, interesse e motivação foram características também destacadas,ao lado da participação:

Os alunos também podiam opinar na forma como esse sistema funcionariae como as moedas seriam distribuídas, uma aula em que os alunos tinhammuita voz. Moedas também que eram extras faziam com que os estudantesparticipassem ainda mais, de eventos ou atividades extra classe, fazendoque o curso fosse além da sala de aula(…)

Ganhávamos nota por participar de tudo, quanto mais participação maispontos, e os colégios não são bem assim, então acho que isso que dá oprazer de participar mais e mais.

Já sobre o conhecimento dos estudantes antes do curso sobre o tema das moedas sociais,apenas um dos estudantes respondentes conhecia o tema das moedas sociais (92% dosrespondentes não conhecia o tema). Assim, acreditamos que conseguimos desnaturalizar algumaspráticas de sala de aula, introduzindo um tema realmente novo para os jovens, que teve uma boarecepção.

Contudo, nenhum dos respondentes registrou o uso posterior de moedas sociais, após otérmino do curso, o que aponta para uma precariedade das redes atuais de possibilidades, e tambémpara uma oportunidade em projetos futuros. Apesar disso, todos entendem como possível essacriação de novas moedas. Assim, avaliamos o despertar a construção de novos coletivos queembutem práticas democráticas como um resultado parcialmente obtido.

Na linha do que aqui chamamos de desnaturalizações, apenas um estudante afirmou não termudado sob nenhum aspecto sua maneira de pensar. Vale destacar três aspectos mais citados nas

6 Tivemos a resposta formal de 12 dos 55 alunos envolvidos

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respostas a este questionamento: as moedas sociais como algo útil para facilitar trocas / comérciolocal, e como interessante para uma maior independência financeira (do Real, dos bancos e domercado financeiro. Em suas palavras, “me fez ver que não precisamos ser dependentes do real,uma comunidade unida pode criar a própria moeda e em conjunto se desenvolver independente dautilização do real.”

Ainda nesta questão foram bastante citados aspectos relacionados com a ideia de que ascoisas não estão prontas, ou que podem ser problematizadas e mudadas. Com a palavra, os alunos:“me fez pensar que as coisas não necessitam ser tão fixas e que não precisamos necessariamenteutilizar o que está aí imposto, tal como o real como moeda e pontos como nota”.

Para além das respostas formalizadas pelos próprios estudantes, vale destacarmos agoraalgumas percepções destes autores sobre o processo. A começar pelas materialidades que geraramsurpresas: por exemplo, a profusão de indicadores (que eram convertidos em moedas), se por umlado deu maior transparência ao processo e gerou maior interesse dos jovens, por outro gerou ummaior esforço dos organizadores no que se refere ao controle e atribuição das moedas a cada jovem,pelo sistema Corais.org. Na experiência do Tecnojovem, por exemplo, decidimos no meio doprocesso controlar os saldos de Tecnotas apenas por uma planilha, na medida que ficou inviável aatualização do sistema (em parte pela relativa lentidão e limitação de funcionalidades do sistema).

Uma outra surpresa foi gerada pela sugestão e iniciativa de uma das professoras que, ao finaldo Tecnojovem, imprimiu as Tecnotas para levar à formatura e distribuir aos alunos, “conforme seussaldos finais”. Acreditamos que essa mudança de materialidade das Tecnotas tenha aumentado oefeito, já citado, de que as Tecnotas “saíram” da sala de aula, e puderam ser usadas para comprar /serem trocadas pelos itens-extra, arrecadados ao final do curso.

Cabe ressaltar também que no experimento ECI houve uma maior possibilidade departicipação dos jovens na definição dos indicadores em relação ao Tecnojovem. Atribuímos essacaracterística ao fato de época já contarmos com a experiência já realizada do Tecnojovem.Acreditamos que esse envolvimento também seria possível com jovens do ensino médio.

A noção de “sevirismo”, no sentido de “se virar”, de lidar com o imprevisto ainda que ascondições de trabalho não sejam as ideiais, é algo que consta nos “manuais” das produtorascolaborativas. Acreditamos ter utilizado esta noção, por exemplo ao decidir utilizar o sistemaCorais.org de uma maneira nova para as próprias produtoras. Apesar de o sistema contar com ummódulo de “cursos”, este não era na prática integrado ao módulo de moedas, ao menos da maneiraque utilizamos. Apesar de nossos interlocutores terem uma certa resistência à época, nos informaramposteriormente que a metodologia foi copiada por outro coletivo usuário da plataforma – aliás, esta foiuma possibilidade apenas pelo caráter de conhecimento e acesso aberto aos conteúdos, permitidopela plataforma.

Essa adaptação implicou em algumas situações não previstas, como relata o e-mail de um dosadministradores do sistema:

Olá pessoal do projeto TecnoJovem!

As tarefas podem ser editadas por qualquer usuário de um projeto. Quando issoacontece, a autoria da tarefa muda. O administrador do projeto pode entretantoreverter as alterações clicando na aba Revisões.

O módulo tarefa é feito para trabalho colaborativo, em que a redefinição da tarefa éuma constante. (…)

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Abç!

.{ Frederick van Amstel }.

http://fredvanamstel.com

PhD Researcher

Construction Management & Engineering University of Twente"7

Por fim, cabe mencionar a ideia do trabalho associativo como uma possibilidade, para além doempreendedorismo individual e do trabalho em grandes empresas ou no estado. Conectada àtemática das moedas sociais, a discussão de uma economia solidária foi em certa medida tambémembutida nas práticas dos jovens. Alguns resultados valem ser mencionados, nesse sentido.

O primeiro, foi a mobilização de um grupo de 10 jovens ex-participantes do Tecnojovem paraformarem um empreendimento de economia solidária (o então nomeado coletivo “Visual Up – Vup,dando um uo na sua marca”), por conta de um processo seletivo aberto pelo CEFET-RJ, em 2015(um mês após o final do Tecnojovem)8. O segundo, a participação de 2 jovens, junto com outros emuma Hackaton (“Maratona Hacker”) do MAR (Museu de Arte do Rio), sob a orientação de FernandoSevero, um dos autores (Severo, 2016). Apesar da sustentabilidade de tais empreendimentos sercaracterizada por enormes dificuldades, e merecer uma análise em outro momento, cabe aquimencionar a iniciativa dos jovens em participar de uma modalidade de trabalho que podemos colocarno enquadramento do “trabalho associativo” como um resultado interessante das experiências.

Algumas conclusões apontamentos para o futuro

Os experimentos geraram desejos e necessidades de pesquisas / intervenções /acompanhamentos futuros. Dentre eles, certamente estão:

• acompanhar os coletivos de trabalho associativo (empreendimento pré-incubado VUP,coletivo Sonserina vencedor em maratona hacker, Librasoffice e APP Transpote UFRJ);

• Corais.org, software e plataforma aberta: acompanhar resultados da metodologiacopiada em outro projeto;

• “monetizar” o Tecnojogo;

• adotar instrumentos de avaliação criados em conjunto com os jovens e

• que se materializem também para fora da sala de aula.

Acreditamos, por fim, que a experiência de dialogar e desenvolver um experimento comjovens, como nos dois casos que buscamos descrever neste trabalho, implica em rediscutir aslinguagens acadêmicas, e se aproximar das linguagens dos públicos em questão. Concluímos então

7 Disponível em http://www.corais.org/tecnojovem2014/node/82557

8 Mais em <http://noticias.cefet-rj.br/2014/12/18/divulgacao-edital-para-ingresso-na-itess/> (Edital Completo ) e em http://cirandas.net/itess-cefetrj/blog-da-itess/edital-para-ingresso-na-itess-cefetr

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o trabalho com uma “conclusão-manifesto”, que procura resumir as ideias do texto, em um outroformato, em uma outra linguagem, ainda que saibamos que (pelos estudos CTS, por exemplo), umatradução como essa implica necessariamente em modificações de sentido, em traições (LAW, 1997).

Manifesto NOS PÓDI

“Nós podi” fazer circular produtos/serviços/saberes.

“Nós podi” definir em roda as regras de como eles vão circular,

“Nós podi” criar instrumentos que “embutam” essas regras: indicadores, planos, e até...

“Nós podi” criar uma moeda.

“Nós podi” contar com plataformas digitais abertas pra isso.

Eu só? Num podi, mas nós juntos podi.

Uma moeda definida em roda é uma moeda-commons. Uma moeda-come?

Uma moeda que come a roda do Tião, come a mediação do Joaquim, come a hibridação doLatour, come o commons da Ostrom.

Come tudo, come junto.

Digere e fortalece uma comunidade que acredita que “nós podi”.

Podi na universidade, podi na favela.

Come a delegação da democracia liberal, e cospe.

Delegado não podi.

Podi fortalecer aquilo que nós podi fazer nós mesmos.

Podi fortalecer outras práticas democráticas.

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Referências

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BRITO, Gustavo, 2017. Discussão sobre moedas socIais em sala de aula, com Luiz Arthur Silva deFaria. Niterói.

FARIA, Luiz Arthur Silva de. Softwares livres, economia solidária e o fortalecimento de práticas democráticas:três casos brasileiros. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, 2010.

LAW, John, 1997. Traduction/trahison: notes on ANT. Lancaster: Centre for Science Studies, Lancaster University.Disponível em: <http://www.comp.lancs.ac.uk/sociology/papers/Law-Traduction-Trahison.pdf>. Acesso em:04 mai. 2007.

LESSIG, Lawrence, 1999. “Code and the Commons”. Conferência apresentada à Media Convergence. FordhamLaw School, New York, NY, 09 fev.

LEVINE, Peter. “Collective Action, Civic Engagement, and the Knowledge Commons”. In: HESS, Charlotte;OSTROM, Elinor, 2007, Understanding Knowledge as a Commons From Theory to Practice, Cambridge, TheMIT Press, pp. 247-276.

LATOUR, Bruno, 2016. “Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas”. Editora 34.

MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, conhecimentos subalternos e

pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

OSTROM, Elinor, 1990. Governing The Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. CambridgeUniversity Press. Disponível em <http://www.cooperationcommons.com/node/361>. Acesso: em 01 ago.2010.

HESS, Charlotte; OSTROM, Elinor, 2007, “Introduction: An Overview of the Knowledge Commons”. In: HESS,Charlotte; OSTROM, Elinor, Understanding Knowledge as a Commons From Theory to Practice, Cambridge,The MIT Press.

ROCHA, Sebastião. Cultura, matéria prima de Educação. CPCD (sem data) Disponível em:

<https://www.scribd.com/document/2974454/Cultura-materia-prima-de-Educacao-por-Tiao-

Rocha>. Acesso em: 15 ago. 2016.

SEVERO, Fernando Gonçalves. TICS E TACS: O Refazimento de Softwares e Engenheiros no Limiar entre AsCiências e Os Segredos. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, 2016.

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