MOL - Leis e Urbes - Um Estudo Do Impacto Da LPOUS de 1996 Em BH

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Natlia Aguiar Mol

Leis e Urbes- um estudo do impacto da Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 em Belo Horizonte.

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Belo Horizonte Instituto de Geocincias da Universidade Federal de Minas Gerais 2004

Natlia Aguiar Mol

Leis e Urbes- um estudo do impacto da Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 em Belo Horizonte.

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Geografia.

rea de concentrao: Organizao do Espao. Orientador: Prof. Dr.Geraldo Magela Costa.

Belo Horizonte Instituto de Geocincias da Universidade Federal de Minas Gerais 2004

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Ao meu pai, que me ensinou a batalhar. minha me, que me ensinou a acreditar.

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AgradecimentosA trajetria desta dissertao foi composta por diversos momentos, alguns tempestuosos, outros de calmaria, de reflexo, de recluso, caracterizando um processo de marcante crescimento pessoal e profissional. Este caminho contou com a contribuio, participao e/ou estmulo de algumas pessoas, as quais venho a agradecer. Agradeo inicialmente, e, sobretudo, ao meu Orientador, Professor Geraldo M. Costa, que com maestria e um cuidado atento, guiou e deu contornos ao presente estudo. Helosa Costa e Jupira Mendona, que acompanharam tambm o desenrolar deste trabalho, agradeo a ateno e a contribuio certeira recebida sob forma das crticas e sugestes. Fernanda Borges, pelas ajudas e conselhos, tambm amigos, que recebi desde o ingresso concluso deste trabalho. Funcionalmente, este estudo contou tambm com a ajuda de algumas pessoas, as quais agradeo. Paula, da Secretaria da Ps Graduao do IGC, pela ateno e prontido em resolver os inmeros problemas burocrticos. Moema e Juliana, da Biblioteca da Escola de Arquitetura, que em muito auxiliaram na obteno da bibliografia necessria. FAPEMIG, pelo fundamental auxilio financeiro despendido durante o desenvolvimento deste estudo. O fornecimento de dados e informaes, de fundamental relevncia neste trabalho foi feito atravs de diversas pessoas, as quais tambm agradeo imensamente. Ftima Cristina, da SMRU/PBH, pela disponibilizao dos dados. Jorge Jau Filho, da PRODABEL/PBH, pela ateno dispensada durante a formatao destes. Flvia Mouro Amaral, pelas conversas permeadas de ateno e interesse, que contriburam e enriqueceram este estudo. Aos Senhores Teodomiro Diniz Camargos (Ex-Presidente do SINDUSCON/MG) e Marcos Vinicius (Ex-Presidente da CMI), pela ateno e disponibilidade dispensadas durante as entrevistas. Aos colegas de mestrado, companheiros nesta caminhada, pela amizade e cumplicidade. Sofia, Claudinia e Flvia Mello pelo carinho e solicitude nos pedidos de ajuda. Daniela Cota, pelas conversas repletas de amizade, disponibilidade e incentivo. Ao Flvio, em especial, pelas conversas e experincias compartilhadas, que foram de fundamental enriquecimento para o processo. famlia Goldschmidt, que me incentivou carinhosamente. Ao Fred, pela ajuda nas tabelas. Ao Alexandre, pelo apoio e por acreditar em mim. Aos amigos e familiares, pelo interesse e demonstraes de carinho. Mariana e Carol, em especial, pela reviso, e pela presena constante e iluminante em todos os momentos que precisei. Solange, pela ajuda na reviso. Ao Adriano, Lvia e Iara, pelo apoio tcnico nas respectivas ajudas, alm de todo o incentivo durante esta caminhada. Ao Hugo e Angela, pelo apoio incondicional em todos os momentos. A todos, meu sinal de agradecimento.

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Lista de Abreviaturas e Siglas

ADE rea de Diretrizes Especiais (Lei 7166/96) CEMIG Centrais Eltricas de Minas Gerais CF/96 Constituio Federal de 1988 CMI Cmara do Mercado Imobilirio COMPUR Conselho Municipal de Poltica Urbana GTs Grupos de Trabalho (Para elaborao e discusso do PD/96) IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano LOM Lei Orgnica Municipal (aprovada em 1990) LPOUS/96 Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de Belo Horizonte, aprovada em 1996 LUOS/76 Lei de Uso e Ocupao do Solo de 1976 LUOS/85 Lei de Uso e Ocupao do Solo de 1985 MNRU Movimento Nacional pela Reforma Urbana PBH Prefeitura Municipal de Belo Horizonte PD/96 Plano Diretor de Belo Horizonte, aprovado em 1996 PLAMBEL Planejamento da Regio Metropolitana de Belo Horizonte POS Plano de Ocupao do Solo PRODABEL Processamento de Dados de Belo Horizonte SAGMACS Sociedade de Anlises Grficas e Mecanogrficas Aplicadas aos Complexos Sociais SINDUSCON/MG Sindicato da Indstria da Construo Civil de Minas Gerais SMAU Secretaria Municipal de Atividades Urbanas SMPL Secretaria Municipal de Planejamento ZA Zona Adensada (Lei 7166/96) ZC Zona Comercial (Leis 2662/76 e 4034/85) ZAP Zona de Adensamento Preferencial (Lei 7166/96) ZAR Zona de Adensamento Restrito (Lei 7166/96) ZCBH Zona Central de Belo Horizonte (Lei 7166/96)

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ZCVN Zona Central de Venda Nova (Lei 7166/96) ZEIS Zona Especial de Interesse Social (Lei 7166/96) ZHIP Zona Hipercentral (Lei 7166/96) ZPAM Zona de Preservao Ambiental (Lei 7166/96) ZR Zona Residencial (Leis 2662/76 e 4034/85)

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Lista de FigurasFigura 1 Mapa Comisso Construtora....................................................................................36 Figura 2 Evoluo da Mancha urbana de Belo Horizonte......................................................41 Figura 3 Zoneamento proposto pelo POS...............................................................................49 Figura 4 Zoneamento estabelecido pela LUOS/85.................................................................54 Figura 5 Belo Horizonte. Diviso de Bairros e tipologia scio-espacial em 1991.................59 Figura 6 Tendncias recentes de ocupao.............................................................................61 Figura 7 Projeo de edificaes segundo afastamentos de acordo com zoneamentos ZAP e ZA da LPOUS/96.....................................................................................................79 Figura 8 Zoneamento segundo Lei 7166/96 Quadras de zoneamento ZA...........................82 Figura 9 Zoneamento segundo Lei 7166/96 Quadras de zoneamento ZAR-1 e ZAR2................................................................................................................................84 Figura 10 - Zoneamento segundo Lei 7166/96 Quadras de zoneamento ZAP.......................86 Figura 11 Bairros/regies com indicadores de reas de construo aprovadas superiores a 1% em relao ao perodo 1993-1996 ou 1997-2002............................................102 Figura 12 - Projetos aprovados no Belvedere de uso residencial ou misto no perodo 19972002........................................................................................................................111 Figura 13 - Projetos aprovados na regio do Comiteco de uso residencial ou misto no perodo 1997-2002..............................................................................................................112 Figura 14 Bairros/Regies com indicadores de rea de construo aprovada superiores a 1% em relao ao periodo1993-1996...........................................................................113 Figura 15 Bairros/Regies com indicadores de rea de construo aprovada superiores a 1% em relao ao periodo1997-2002...........................................................................113 Figura 16 Incremento em relao mdia anual de rea de construo aprovada em cada bairro/regio, nos perodos 1993-1996 e 1997-2002.............................................115 Figura 17 rea de construo total aprovada em cada bairro/regio no perodo 19972002........................................................................................................................117 Figura 18 rea de construo mdia aprovada por projeto no perodo 1997-2002..............118

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Lista de Grficos

Grfico 1 Projetos aprovados para uso residencial ou misto em cada zona no perodo 1993 a 2002..........................................................................................................................91 Grfico 2 - Projetos aprovados para uso residencial ou misto nos zoneamentos ZA, ZAP, ZAR-1 e ZAR-2.......................................................................................................92 Grfico 3 rea de Construo aprovada em cada zona no perodo 1993 a 2002...................98 Grfico 4 rea total aprovada para uso residencial e misto nos zoneamentos ZAP, ZA, ZAR1 e ZAR-2 no perodo 1993 a 2002.........................................................................99

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Lista de Tabelas

Tabela 1 - Evoluo da populao de Belo Horizonte 1900-1950............................................40 Tabela 2 Taxa de ocupao mxima segundo parmetros do Decreto n. 165/33...................42 Tabela 3 Altura mxima permitida segundo parmetros do Decreto n. 165/33.....................43 Tabela 4 - Evoluo da populao de Belo Horizonte 1940-1980............................................46 Tabela 5 Parmetros Urbansticos da Lei 7166/96.................................................................81 Tabela 6 Nmero de projetos aprovados de acordo com cada perodo. Bairros com indicadores superiores a 1% em relao ao total do perodo. Edificaes com quatro ou mais pavimentos. Uso residencial e misto.........................................................................96 Tabela 7 - rea de Construo aprovada nos perodos 1993-1996 e 1997-2002. Edificaes de uso residencial e misto................................................................................................106 Tabela 8 - Mdia da rea aprovada por projeto em cada bairro nos perodos 1993-1996 e 1997-2002. Uso residencial e misto.................................................................................107

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ResumoO presente trabalho discute a inter-relao entre legislao urbana e produo do espao, enfocando as mudanas no processo de ocupao de Belo Horizonte frente a proposta do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo, aprovados em 1996. O objetivo principal deste estudo refletir sobre a atuao da legislao urbanstica no processo de formao e estruturao das cidades, remetendo a uma discusso no planejamento urbano referente ao papel do Estado. Procurou-se verificar sua atuao, sob forma da normatizao do uso do solo, principalmente, em relao aos demais agentes definidores do espao urbano. A discusso parte do princpio que dentro do processo de acumulao capitalista, o solo urbano, elemento fundamental para sua reproduo, possui uma dinmica de ocupao e utilizao que resulta da interao de determinados agentes. A atuao do Poder Pblico dar-se- frente a este processo, buscando propor regras de ordenamento para o espao urbano. O Plano Diretor de Belo Horizonte incorporou o conceito de funo social da propriedade, remetendo aos preceitos do captulo de poltica urbana da Constituio Federal de 1988, ao propor um aproveitamento socialmente justo e racional do solo urbano. A Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 procura traduzir esta inteno na proposio de um macrozoneamento baseado em critrios relacionados possibilidade de adensamento e infraestrutura existente relativos aos espaos da cidade. Diante disso, procura-se avaliar a efetividade destas leis analisando seu papel na definio da ocupao do solo urbano.Para tanto, percorre-se um caminho com incio na anlise do processo de crescimento de Belo Horizonte e das legislaes urbanas institudas na cidade, buscando entender as mudanas em seu espao decorrente da aplicao destas leis. Prope-se analisar o processo de elaborao, discusso e aprovao do Plano Diretor (PD/96) e da Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo (LPOUS/96), na tentativa de verificar a incluso dos principais agentes e atores no processo. Posteriormente, analisa-se o contedo da LPOUS/96, abordando principalmente as possibilidades e limitaes de ocupao do solo urbano relacionadas ao potencial construtivo dos parmetros urbansticos institudos em alguns zoneamentos. A etapa final deste trabalho busca entender a dinmica de ocupao recente de Belo Horizonte e sua relao com a proposta do PD e LPOUS/96. Para tanto, foi desenvolvida uma metodologia para o tratamento de informaes relacionadas aos projetos aprovados nos anos de 1993 a 2002, para o uso residencial, em todo o territrio da cidade.

Palavras-Chave: Legislao urbana, dinmica imobiliria, Plano Diretor

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Abstract

This research focuses on the inter-relation between state legislation and the production of the urban space. More specifically, the thesis investigates the impacts of the urban legislation of Belo Horizonte, approved in 1996, (Plano Diretor and Lei de Parcelamento, Ocupacao e Uso do Solo) on the urban development process and in changes on the occupation of the city. I investigate the regulatory role of the State regarding the urban development and its relation with others agents that define and change the urban space. The discussion is based on the idea that the urban land, main element of capital reproduction in a capitalist economy, has a dynamic of use and occupation that results from the interaction of different agents. The Public Agent, the State, acts in this process regulating the occupation and use of the urban space. The Plano Diretor of Belo Horizonte (Law n. 7165/1996) incorporates the concept of social function of the land, present in the Brazilian Constitution, proposing a fair, social and rational use of the urban land. The Lei de Parcelamento, Ocupaao e Uso do Solo (Law n. 7166/96) tries to reach these goals by proposing a urban zoning based on rules relating the possibilities of population density and on the infrastructure existent in specific parts of the city. The study aims to analyze the effectiveness of these laws and its relation to the process of urban development. I review and discuss the historical development of Belo Horizonte and the evolution of urban laws, relating how the legislation affected the use of occupation of the land. In addition to that, the study analyzes the elaboration process of the current legislation investigating the behavior of different actors in the process. I also discuss the contents of the new law and its limitations. In order to analyze these issues, I develop a methodology to study the information available in the development and residential projects approved by the city from 1993 to 2002.

Key-Words: Urban Law, Urban Space

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SumrioINTRODUO.........................................................................................................................13 1. 1.1. 1.2. PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL E EM BELO HORIZONTE......................28 Os primrdios do urbanismo e da legislao urbana.....................................................28 Planejamento Urbano e Legislao Urbanstica em Belo Horizonte no processo de

formao da cidade....................................................................................................................34 1.2.1. 1.2.2. 1.3. 2. Nascimento e Consolidao de Belo Horizonte.........................................................34 Legislao urbana e atuao do Estado em Belo Horizonte.....................................38 Tendncias recentes na produo imobiliria de Belo Horizonte..................................57 O PLANO DIRETOR E A LEI DE PARCELAMENTO, OCUPAO E USO DO

SOLO DE BELO HORIZONTE DE 1996................................................................................64 2.1. 2.1.1. 2.2. 2.2.1. 2.2.2. 3. O processo de elaborao..............................................................................................64 Consideraes sobre o Processo...............................................................................69 O Contedo....................................................................................................................72 O Plano Diretor Lei 7165/96..................................................................................72 A Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo Lei 7166/96..............................74

IMPACTOS DA LEI DE PARCELAMENTO, OCUPAO E USO DO SOLO DE

BELO HORIZONTE DE 1996 (LEI 7166/96)..........................................................................89 3.1. 3.1.1. 3.1.2. 4. 5. 6. Procedimentos Metodolgicos.......................................................................................89 Definio do objeto de estudo....................................................................................90 Tratamento dos dados................................................................................................91

CONSIDERAES FINAIS O QUE PODE UMA LEI?............................................119 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................125 ANEXOS.........................................................................................................................130

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INTRODUO

Diversos estudos ligados teoria urbana de inspirao marxista inserem a questo urbana na dinmica de acumulao capitalista, abandonando sua abordagem na forma de um processo isolado em sua prpria lgica. Autores cujo referencial terico estavam ligados a esta vertente, como Lojkine (1981) e Topalov (1979), por exemplo, debruaram-se sobre a relao entre o espao e a acumulao do capital. A cidade passa a ser entendida como um espao construdo onde esto presentes um conjunto de elementos que exercem para o processo global de produo o mesmo papel que as mquinas no interior de um processo particular: capital constante fixo (RIBEIRO, 1982, p.34). Ou seja, segundo os autores, a cidade nada mais do que um conjunto de meios necessrios de produo, circulao e consumo coletivo para a reproduo do capital. Segundo Lojkine (1981, p. 137), a aglomerao da populao, dos instrumentos de produo, do capital, dos prazeres e das necessidades a cidade, em outras palavras, no de modo algum um fenmeno autnomo sujeito a leis de desenvolvimento totalmente distintas das leis de acumulao capitalista. Ribeiro (1982, p.37) afirma que o espao construdo ao mesmo tempo objeto de consumo (intermedirio e final) e de valorizao de capitais especializados na produo e circulao dos objetos imobilirios que servem de suporte fsico do valor de uso complexo. exatamente a partir desta formulao, que so apresentadas as contradies da urbanizao capitalista. Sendo assim, o conflito entre valores de uso e de troca, decorrente dos interesses de diversos atores, explica parte da complexidade da articulao do espao urbano capitalista. Harvey (1980, p. 139), tambm da vertente de inspirao marxista, abordou aspectos da teoria do uso do solo urbano residencial, identificando alguns grupos que atuam especificamente no mercado da moradia, bem como seus modos de determinao do valor de uso e de troca: a) Usurios das moradias a meta principal o valor de uso, sendo os proprietrios, os mais interessados no valor de troca; b) Corretores operam no mercado para obter valor de troca;

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c) Proprietrios objetivam, na maioria das vezes, o valor de troca, podendo os usurios proprietrios serem motivados pelo valor de uso; d) Incorporadores e Indstria da Construo criam novos valores de uso para outrem, realizando valores de troca para si mesmos; e) Instituies Financeiras desempenham papel importante, pois esto interessados em valor de troca, que obtido por meio de financiamentos e oportunidades para a criao de valores de uso; f) Instituies Governamentais atuam diretamente na proviso da habitao (construo de moradias) e, indiretamente, no auxilio s financeiras e indstria da construo e na regulamentao do uso do solo urbano. Sua interferncia no valor de uso ocorre por meio da proviso de servios e infra-estrutura. A ao do Estado, importante agente produtor e transformador do espao urbano, permeou grande parte da produo cientfica da rea. Sua efetivao, entretanto, por meio de polticas pblicas, que produzem um bem coletivo e que atendem s demandas no especficas de determinados setores sociais, parece ser o foco sobre o qual se debruam boa parte das anlises. Topalov (1988), ao apresentar as rupturas da sociologia urbana francesa no pensamento sobre a questo urbana, acentua que a postura do Estado como um sujeito racional, que persegue uma meta, o interesse geral e, a planificao [sendo] definida como uma estratgia, um conjunto de aes racionais ajustadas a esta meta passa a ser definida no como eqidistante, mas sim como um conjunto de aparatos que realizam os interesses das classes dominantes. Lojkine (1981, p.171) discute o papel do Estado na urbanizao capitalista, pontuando as principais caractersticas identificadas nas intervenes estatais sobre as cidades: proporcionou o desenvolvimento de todas as condies gerais de produo atravs do financiamento de equipamentos urbanos; coordenou a ocupao e utilizao do solo urbano atravs da

institucionalizao de normas urbansticas; instaurou instrumentos jurdicos, ideolgicos e financeiros a servio exclusivo da frao monopolista do capital.

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De fato, essa abordagem do Estado permeou parte da produo terica da chamada Economia Poltica da Urbanizao, pois segundo Costa (1993 p, 268):seja na viso Poulantziana de Castells, na de Capitalismo Monopolista do Estado de Lojkine ou na ausncia de referncias teoria do Estado de Harvey, o fato que a interveno estatal na produo do ambiente construdo quase sempre vista de forma instrumentalista, significando o favorecimento dos interesses na produo e reproduo do capital em detrimento dos interesses da fora do trabalho ou da reproduo social ampliada

O fato principal, que deriva desta discusso, e que talvez seja o mais relevante para essa dissertao, relaciona-se ao uso do solo. Para Singer (1979, p.21), o solo urbano disputado pelos inmeros usos, disputa essa, que se pauta pelas regras do jogo capitalista, que se fundamenta na propriedade privada do solo, a qual por isso, e s por isso proporciona renda e, em conseqncia, assemelhada ao capital. Desta forma, a interveno do Estado sobre o solo urbano, seja diretamente atravs de melhorias de infra-estrutura, seja indiretamente na regulamentao de seu uso, tem servido, segundo a tica de Low-Beer (1983, p.37), como fator de expanso do capital e da valorizao de terras. Para a autora, atravs desses investimentos potencializada a percepo da renda fundiria por parte dos agentes privados, sendo, em outras palavras, apropriada de forma privada uma parte do excedente social, desviada de sua realizao sob a forma de lucro. Mas tambm o Estado o principal agente que pode intervir no processo a favor do bem coletivo. O Poder Pblico pode lanar mo de diversos instrumentos, norteados por princpios de justia social, que venham regular a ao dos demais agentes criando, por exemplo, o IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) progressivo, que cria uma sobretaxa gradual na cobrana do imposto aos proprietrios que no utilizam seus terrenos, retendo-os espera de valorizao, caracterizando o chamado processo especulativo. Afinal de contas, grosso modo, parte-se do pressuposto que: se se planeja, porque os mecanismos de mercado (e, por generalizao, os movimentos espontneos) no esto produzindo bens coletivos necessrios ou os esto produzindo em qualidade inaceitvel, quantidade insuficiente, ou ambas as coisas ao mesmo tempo (Cintra, 1988, p.40). Uma vez levantada a questo sobre a renda fundiria, torna-se necessrio retomar seus conceitos a fim de esclarecer o modo pelo qual interfere no processo de estruturao do espao

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urbano. Ser tomado como ponto de referncia, para esta breve reviso, os textos apresentados por Low-Beer (1983), Farret (1985) e Singer (1979)1. A renda da terra existe porque h um monoplio da propriedade fundiria, um monoplio de natureza espacial no processo capitalista de produo (LOW-BEER, 1983, p.33). Esse monoplio dar-se- devido a dois aspectos fundamentais da terra, sendo o primeiro relacionado sua limitao cada parcela de terra nica, isto , no multiplicvel em si (ibidem, p. 33) e o segundo, sua importncia como elemento fundamental no processo de produo. E como a terra se assemelha ao capital, apesar de no se constituir em capital, como afirma Singer (1979), o determinante de seu preo ser o valor das mercadorias produzidas por seu intermdio, alm da sua propriedade (monopolista). Farret (1985) ilustra as diferentes formas de renda proporcionadas pela propriedade fundiria: Renda Absoluta a prpria instituio da propriedade privada, conferindo ao proprietrio, o poder de sua utilizao; Renda de Monoplio surge das caractersticas e localizao dos terrenos, conferindo ao proprietrio o poder de cobrar preos de monoplio pelas mercadorias ali produzidas. O autor cita como exemplo a vista para um parque. Renda Diferencial - expressa diferenas de produtividade do terreno (qualidades diversas ou localizao). Subdivide-se em Renda Diferencial I determinada pelo sobrelucro derivado das caractersticas locacionais e condies materiais; e Renda Diferencial II, que provm do sobrelucro advindo da aplicao diferenciada do capital sobre um terreno, como por exemplo, os ganhos auferidos atravs da construo (e venda) de apartamentos em um determinado terreno. Assim, os preos dos terrenos parecem sofrer interferncia direta da Renda Diferencial, visto que seus valores esto diretamente relacionados ao que se pode produzir na terra e, por conseqncia, de seu excedente.

Esta discusso sobre uso do solo, propriedade privada e renda da terra foi objeto de anlise de diversos autores, como Lojkine (1981), Topalov (1979), Harvey (1980), Singer (1979), Ribeiro (1982) e Farret (1985), dentre outros, sendo alguns j citados neste estudo. Entretanto, por no ser o tema central desta dissertao, decidiu-se no aprofundar nestas anlises, delimitando a reflexo sobre aspectos gerais do funcionamento do mercado do solo urbano.

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A Renda Diferencial, por sua vez, relaciona-se atuao do Estado. Tanto as intervenes via melhorias/instalao de infra-estrutura, quanto as determinaes de normatizao do solo (atravs do zoneamento, por exemplo), serviro como fatores de diferenciao dos espaos e do preo da terra. Esses fatores (de diferenciao econmica) dos espaos urbanos, materializados na forma de seu preo, segundo Mendona (2002, p. 146) correspondem a uma diferenciao tambm entre os espaos de moradia: a tendncia que o solo seja ocupado pelas atividades econmicas e pelas camadas sociais que mais podem pagar pelo seu uso. Desta forma, a dinmica imobiliria caracterizada como o resultado dos processos de formao e apropriao das rendas do solo urbano, para a qual concorrem, em relao de disputa, incorporadores e proprietrios da terra (ibidem, p. 146).

O que se buscou nesta breve seo foi resgatar, nos estudos citados, elementos para um maior entendimento do processo de estruturao do solo urbano, seja direcionando o olhar sobre a atuao do Estado, seja vislumbrando as potencialidades de utilizao da terra pelo mercado imobilirio. Foram destacados os seguintes pontos: i) O solo urbano tido como elemento fundamental no processo de acumulao do capital, pois concentra meios necessrios para sua reproduo; ii) O solo urbano assemelha-se ao capital, posto que proporciona algumas formas de renda; iii) Os tipos de renda funcionam como processos de diferenciao dos espaos, que se tornam objetos de disputa pelo seu uso; iv) A atuao do mercado imobilirio dar-se- principalmente nos espaos diferenciados2; v) A interferncia do Estado feita sob duas formas: a primeira, atravs da proviso de infra-estrutura, que poder funcionar como elemento gerador de renda diferencial, provavelmente apropriado pelo mercado; a segunda, atravs da instituio das normas urbansticas que certamente interfere tambm na renda2

importante ressaltar que trata-se de uma ao reforada por diferentes caminhos: o mercado imobilirio atua sobre os espaos diferenciados ao mesmo tempo que promove (e cria) esta diferenciao atravs de sua atuao.

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diferencial, mas que pode servir como elemento orientador e/ou delimitador da atuao do mercado. Desta forma, tem-se um panorama das possibilidades da atuao das legislaes urbanas, tema abordado neste estudo. Os espaos para os quais elas so pensadas possuem uma dinmica inerente a seu processo de estruturao, que est estreitamente relacionada ao processo de acumulao capitalista. Apesar desta limitao da ao do Estado, a atuao do mercado imobilirio se faz moldada pelas intenes das leis, visto que seu principal objeto - a diferenciao do espao, ou as possibilidades de utilizao do solo urbano - regulamentado pelo Poder Pblico municipal.

O presente trabalho se insere nesta discusso buscando entender a inter-relao entre legislao urbana e produo do espao, tendo como objeto de anlise a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo (Lei n. 7166/96), aprovada em 1996, em Belo Horizonte. O objetivo principal avaliar o impacto desta Lei sobre a dinmica de ocupao da cidade. O processo de elaborao e aprovao da Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de Belo Horizonte (LPOUS/96) desenrolou-se num contexto marcado por uma nova fase da poltica pblica e gesto do espao urbano originria do momento Constitucional de 1988. As dcadas de 70 e 80 foram marcadas por uma crescente mobilizao e incorporao de movimentos sociais que reivindicavam mudanas frente ao quadro da excluso scioespacial presente nas cidades brasileiras. O debate sobre os problemas urbanos buscava respostas no planejamento, visto como a soluo racionalizadora para o caos em que se encontravam as nossas cidades (MARICATO, 1997, p. 174). A interveno do Estado efetuava-se de modo decisivo, seja atravs da proviso da infra-estrutura, seja pela formulao de leis urbanas que controlassem o uso do solo. (COSTA, 1993). Esta discusso ganhou corpo a partir da convocao da Assemblia Nacional Constituinte adquirindo contornos de Movimento Nacional, congregando diversas entidades profissionais, sindicais e de movimentos populares em torno da elaborao e do encaminhamento de proposta popular de emenda Constituio sobre reforma urbana (COSTA, 1988, p. 892).

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As propostas apresentadas pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) buscavam instrumentos para alm dos planos diretores3, que de fato garantissem a funo social da propriedade e da cidade: Buscava-se uma forma de superar o discurso cheio de boas intenes e ineficaz, para ir direto aos objetivos centrais dessa promessa no realizada quilo que constitua o n de toda a resistncia a sua realizao: o controle sobre a propriedade fundiria e imobiliria visando sua funo social (MARICATO, 1997, p.175). Diante de toda discusso e mobilizao empreendida em torno de tais questes, foi acrescentado ao texto Constitucional o captulo destinado poltica urbana, incluindo parte do que havia sido proposto pelo MNRU. Entretanto, apesar da lacuna entre as medidas propostas e as aprovadas, mostrada por Costa (1988), a Constituio Federal (CF/88) sinalizou e possibilitou um novo caminho para a poltica e gesto do espao urbano. A nova proposta para a poltica urbana resgatou o conceito de funo social da propriedade, presente no texto da antiga Constituio Federal de 1934, incumbindo o Poder Pblico municipal de execut-lo atravs do Plano Diretor. A Carta Magna investiu ao Plano Diretor, a partir de ento, considerado obrigatrio para cidades com mais de vinte mil habitantes, o carter de instrumento bsico da poltica de desenvolvimento e de expanso urbana (Art.182, 1). As anlises de diversos autores4 sobre as possibilidades de mudanas no planejamento, decorrente da promulgao da CF/88, recaem principalmente sobre a autonomia dada ao Poder Pblico Municipal relacionada ao papel de executor da poltica de desenvolvimento urbano. Costa (1988, p.894) salientou que algumas vitrias foram obtidas, embora sejam ainda pouco palpveis, uma vez que esto vinculadas a novas definies legais, seja a nvel federal, estadual ou municipal e, levantou a questo para o repasse da responsabilidade do planejamento ao Governo local atravs principalmente das Leis Orgnicas Municipais, que regulamentariam de fato os instrumentos necessrios para uma verdadeira reforma urbana (COSTA, 1988, p. 898).

3 Nos anos 80, j havia certa averso a Planos Diretores, que muitas vezes eram planos e estudos completos do ponto de vista tcnico, mas que no eram aplicados ou eram usados como mera ferramenta para se obter financiamento. Segundo Mendona (2001), tratava-se de constituir documento para a solicitao dos recursos para investimentos e implementao de programas setoriais nos municpios e, mais ainda, poderiam ou no ser executados, pois figuravam principalmente um instrumento de o que Haddad (1980) chamou de planejamento para negociao. 4 Como Mendona (2001) e Cardoso (1997), por exemplo.

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A anlise de Cardoso (1997, p.81) pontuou o avano da participao popular atravs da consolidao do papel dos movimentos sociais, que indicam a emergncia de novos fenmenos sociais, novos sujeitos, nova cultura poltica, reforando o ideal de gesto democrtica das cidades. Para o autor, ao ser direcionado o planejamento esfera local, a legislao municipal tornou-se campo propcio luta poltica, como mais uma fronteira para o estabelecimento de direitos e de responsabilidades pblicas relativas s polticas sociais (CARDOSO,1997, p.95). Deve-se ressaltar, neste ponto, que no ano de 2001, foram ampliados os instrumentos jurdicos para a busca da efetivao da gesto poltica e social das cidades com a aprovao da Lei Federal 10.257, denominada Estatuto da Cidade:Mais do que nunca, cabe aos municpios promover a materializao do novo paradigma atravs da reforma da ordem jurdico-urbanista, visando a promover o controle do processo de desenvolvimento urbano atravs da formulao de polticas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietrios de terras e construes urbanas necessariamente co-existam com outros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade como um todo. Para tanto, foi dado ao poder pblico municipal o poder de, atravs de leis e diversos instrumentos urbansticos, determinar a medida desse equilbrio possvel entre interesses individuais e coletivos quanto utilizao do solo urbano. (FERNANDES, 2002, p. 9).

Uma vez focalizado o olhar para o direcionamento do planejamento ao governo local, as Leis Orgnicas municipais e Planos Diretores tornaram-se focos de avaliaes e anlises relacionadas efetivao de instrumentos que delimitassem a funo social da propriedade. Cardoso (1997) faz um estudo de Leis Orgnicas e Planos Diretores referentes as 50 maiores cidades do pas (alguns aprovados e outros em formato de projetos de lei at o ano de 1994) avaliando a presena e possibilidades - dos instrumentos de controle do uso do solo. Segundo ele, os princpios bsicos nas propostas de Leis Orgnicas expressavam uma compreenso de que imprescindvel fortalecer o Poder Pblico, para que ele possa atuar na regulao do uso e ocupao do solo levando em considerao os interesses da coletividade, mas buscando evitar que sua prpria ao principalmente na proviso de infra-estrutura e de servios urbanos tenha seus fins distorcidos pela apropriao dos seus benefcios pelos proprietrios fundirios imobilirios, definidos, quase sempre, como especuladores (CARDOSO, 1997, p. 99).

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O estudo de Cardoso (1997) mostra-se importante ao revelar o quadro ps-constituinte do planejamento urbano nas cidades e estados do Brasil, apesar de apresentar anlises ainda embrionrias e abranger somente o perodo 1988 19945. Desta forma, ao buscar compreender as mudanas decorrentes do direcionamento do planejamento s esferas locais, deve-se debruar sobre a ao destes novos atores na tentativa de melhor avaliar a implementao e efetividade dos princpios trazidos na Constituio de 1988. Especificamente sobre Belo Horizonte, alguns trabalhos contriburam para um melhor entendimento da condio ps 88 indicando caminhos tomados pelo planejamento na cidade. Cota (2002) fez uma anlise da atuao da legislao urbanstica, especificamente a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de Belo Horizonte, aprovada em 1996, e do capital imobilirio na produo de moradias para o mercado de segmentos sociais de mdiabaixa renda. A autora utilizou como estudo de caso uma empresa de construo civil cujo principal alvo de mercado so os segmentos sociais de renda mdia-baixa, mostrando como os parmetros urbansticos da referida Lei possibilitavam a atuao da empresa no mercado. Sua anlise demonstrou que a Lei 7166/96 contribui para uma distribuio mais justa da populao no espao, uma vez que vem permitindo o acesso de certos segmentos sociais moradia em reas bem servidas de infra-estrutura, mesmo que mais distantes verificando, assim, uma efetivao dos princpios constitucionais (COTA, 2002, p. 128). O trabalho de Ferreira (1999) ilustrou a prtica de planejamento urbano em Belo Horizonte a partir da anlise de trs projetos de planos diretores propostos para a cidade nos anos de 1988, 1990 e 1996. As diferentes concepes dos projetos, apresentadas na anlise da autora, permitiram identificar inegveis avanos no projeto do Plano Diretor de 1996, a considerar a ampliao da participao popular na poltica pblica urbana e a estratgia de propor um zoneamento no associado diretamente ao uso, na tentativa de diminuir o valor agregado do terreno e possibilitar seu acesso pelos segmentos de classe social inferior.

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Cardoso (1997) ressalta que no perodo intermedirio entre as anlises 1994 - e a apresentao do texto 1997, o quadro apresentou mudanas, conforme o relato de Ferreira (1999): No perodo ps-Constituio, este movimento [discusso do planejamento envolvendo setores da sociedade] favorecido pelo restabelecimento das eleies municipais, quando os partidos de esquerda assumem as prefeituras de importantes cidades com propostas de gesto mais democrtica. Este ser realmente um marco nesta nova fase da discusso do planejamento, principalmente porque passam a existir a vontade poltica e o crdito dos referidos governos (FERREIRA, 1999, p. 26).

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De fato, a proposta do Plano Diretor de 1996 (PD/96) rompeu com a concepo idealstica da cidade, presente na proposta apresentada para o Plano Diretor em 1990 (denominado BH-2010), tornando-se mais flexvel realidade da mesma. Mais do que tentar acompanhar a dinmica da cidade, o Plano Diretor prope um zoneamento no mais definido pela rigidez do setorialismo tecnicista, onde cada zona era permitida ou destinada a determinados tipos de uso e ocupao, e sim por um macrozoneamento cujos critrios se ampliam, relacionando-se s caractersticas e potencialidades de infra-estrutura, topografia, sistema virio e acessibilidade, principalmente. Acrescenta-se tambm o fato da importncia da legislao urbanstica como instrumento de atuao do Estado no gerenciamento e ordenamento das urbes. Fernandes (1988, p. 227) ressalta que a legislao urbanstica desempenha um papel poltico e ideolgico importante no processo de reproduo das relaes sociais de produo no Brasil, o qual se relaciona tanto com a difuso de valores dominantes e com as condies de acesso a equipamentos, servios e instalaes de consumo coletivo. pela singularidade e inovao da proposta do Plano Diretor de 1996 que urge a necessidade de se refletir sobre ele, sobre sua efetivao e seus reais efeitos no espao belohorizontino. Para tanto, prope-se utilizar como estudo de caso a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 (LPOUS/96), que regulamenta o parcelamento, as obras de edificaes, as localizaes de usos e o funcionamento das atividades (Art 2, Lei 7166/96), segundo diretrizes expressas no Plano Diretor (Lei 7165/96). Esta Lei estabelece um zoneamento baseado, principalmente, no critrio de adensamento e na demanda de preservao/proteo ambiental, histrica, cultural, arqueolgica ou paisagstica (Art 5, Lei 7166/96). O adensamento foi priorizado em regies com condies favorveis de infra-estrutura, ainda no saturadas, e restringido em reas em que a alta densidade demogrfica comprometia a utilizao da infra-estrutura. Em relao ao uso do solo, o Plano Diretor inova tambm ao definir a multiplicidade e complementaridade deste (Art. 59, Lei 7165/96). A LPOUS/96 regulamentou a localizao e o funcionamento das atividades a partir da sua repercusso sobre o ambiente urbano.

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neste contexto, portanto, que emerge a proposta desta dissertao. Procura-se refletir sobre as legislaes urbanas e seus efeitos na estruturao das cidades atravs da avaliao dos impactos da LPOUS/96 sobre a dinmica de ocupao de Belo Horizonte. A hiptese trabalhada neste estudo que a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 possibilitou, atravs dos parmetros urbansticos relacionados ao zoneamento, um maior aproveitamento e utilizao dos espaos da cidade, promovendo uma desconcentrao da ocupao na rea central e adjacncias, em resposta estratgia do Plano Diretor relacionada ocupao racional do solo urbano. Para isso, a incorporao de outros estudos se mostra de fundamental importncia. Diversos autores se debruaram sobre as anlises das legislaes urbanas no Brasil. A maioria destes estudos considera seus efeitos como ineficazes frente segregao urbana, constituindo-se como delimitadoras das fronteiras de poder. Entre eles, destacam-se o trabalho de Rolnik (1997), Caldeira (1998), Maricato (1997) e Mendona (2000), sendo alguns abordados aqui, e outros remetidos no texto da dissertao. Rolnik (1997) fez um estudo da cidade de So Paulo enfocando as legislaes urbanas e o processo de crescimento da cidade. Ela trabalhou no somente as legislaes e a cidade legal, mas tambm o que est fora deste limite, passando pelas fronteiras de poder e chegando ao ilegal:Na histria da cidade de So Paulo, e de sua legislao urbanstica, esta tenso legalidade-ilegalidade esteve sempre presente, fortemente identificada com espaos de alta renda, fortemente regulados, que se contrapem aos espaos populares no regulados ou em desacordo com a lei (...) Da decorre um duplo movimento estabelecido pela lei: por um lado garantir a proteo de determinados espaos contra a invaso de usos e intensidades de ocupao degradantes, de outro definir uma fronteira, para alm do qual estes mesmos usos seriam tolerados (ROLNIK, 1997, p.170).

Mendona (2000) analisa as mudanas na composio scio-espacial de Belo Horizonte sob a tica das diversas legislaes urbanas institudas na cidade. Segundo a autora, a estruturao do territrio tem sido fortemente orientada pela interveno estatal, seja com aes voltadas para o crescimento econmico, com impactos diretos nos processos de mobilidade residencial, seja na regulamentao da produo do espao (MENDONA, 2000, p. 01).

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Relata que, j nos anos 40, a legislao urbanstica direcionou s elites a ocupao da regio da Pampulha, atravs de parmetros urbansticos que s poderiam ser construdos pelas classes superiores. Segundo a autora, a legislao urbanstica de Belo Horizonte, entre outros fatores, contribuiu para o aprofundamento do quadro de segregao scio-espacial na cidade:O quadro de segregao apresentado tem sua origem na prpria fundao da cidade, e sua evoluo e consolidao tm sido resultado de fatores diversos, desde o espectro mais amplo dos modelos econmicos adotados, que tm gerado uma cada vez mais perversa desigualdade social no pas, at os aspectos mais especficos relacionados com a dinmica imobiliria e a mobilidade residencial urbana. Nesse contexto, a legislao urbanstica que vem sendo adotada no municpio tem exercido papel fundamental (MENDONA, 2000, p.13).

O estudo de Rodrigues (2001) tambm remete cidade de Belo Horizonte. A autora busca compreender o universo das polticas pblicas atravs da anlise da legislao e gesto urbana. Utiliza como estudo de caso o surgimento do Belvedere III, bairro que foi aprovado a partir de uma brecha no zoneamento da legislao vigente. A autora conceitua o espao urbano como uma arena de diferentes interesses, relatando uma vinculao poltica entre o zoneamento e a proteo dos interesses imobilirios contra os riscos do acelerado crescimento urbano, afirmando que, ainda hoje, o zoneamento continua a viabilizar as diferentes formas de segregao social no espao urbano, por meio da diferenciao dos padres de ocupao e usos em termos fsico e scio-econmicos (RODRIGUES, 2001, p. 60) . Da mesma forma, os trabalhos relacionados prtica do planejamento urbano em Belo Horizonte trazem importantes contribuies. O estudo de Ferreira (1999), j citado anteriormente, contribui para a avaliao do Plano Diretor de 1996 atravs da reflexo sobre a prtica do planejamento belo-horizontino vista na anlise comparativa dos projetos de lei para planos diretores na cidade. Freitas (1996) tambm aborda o planejamento urbano de Belo Horizonte, analisando as mudanas ps-Constituintes atravs das anlises das leis urbanas institudas na cidade. O estudo busca investigar a efetividade e o tratamento dado diversidade intra-urbana frente proposta de planejamento. Uma de suas consideraes sobre este processo foi que, apesar da ocorrncia de transformaes substantivas, o planejamento permaneceu com lacunas no preenchidas, sendo uma delas a considerao deficiente da diversidade intra-urbana, evidenciadas a partir do estudo de caso do bairro Carlos Prates. 24

Relacionados ao mercado imobilirio, alguns estudos elaborados sobre o tema, como o caso da coletnea Estudos Bsicos (Belo Horizonte, 1995) que orientaram a proposio do PD e LPOUS/96, deram suporte a esta anlise. O texto do PLAMBEL (1987) faz um relato da dinmica do mercado imobilirio de Belo Horizonte desde sua fundao at meados dos anos 80. Naquele momento, procurou-se entender o funcionamento do mercado imobilirio, pois acreditava-se que parte da desordem do processo de ocupao estava relacionada sua lgica, e a ao do Poder Pblico no conseguia produzir resultados e reverter o quadro. O trabalho de Mendona (2003) aborda o processo de mobilidade residencial na Regio Metropolitana de Belo Horizonte, identificando a expanso do mercado imobilirio e as transformaes scio-espaciais decorrentes deste. Tratam especificamente sobre o Plano Diretor e a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo os trabalhos de Cota (2002) e Torre (2003). Conforme citado anteriormente, Cota (2002) mostrou a efetividade das leis urbanas, atravs de suas atuaes positivas no que diz respeito sua contribuio para a produo de um espao urbano socialmente mais justo. Torre (2003) ilustrou todo o processo de elaborao, discusso e aprovao do PD/96 e LPOUS/96, evidenciando, principalmente, a atuao e participao dos agentes envolvidos. Talvez os estudos que mais se aproximam deste, que se prope como dissertao, sejam os trabalhos de Leite (1994) e Matos (1984). O primeiro analisou a Lei de Uso e Ocupao do Solo de 1976, abrangendo discusses sobre os agentes e os conflitos envolvidos no mbito de sua elaborao, discusso e aprovao, bem como as alteraes produzidas no espao da cidade relacionadas ao zoneamento e ocupao proposta. Sua leitura, a partir da anlise de todo o processo, demonstrou que a trajetria daquela Lei evidencioua incapacidade de formao de alianas polticas suficientemente fortes para propor alternativas viveis no sentido de possibilitar sua alterao estrutural. Por outro lado, evidencia a persistncia histrica de um nmero enorme de emendas pontuais, pulverizadas ao longo do tempo, com o objetivo de atender a demandas localizadas, individuais ou de pequenos grupos, sem levar em considerao os possveis impactos que estas mudanas poderiam causar sobre a estrutura urbana da cidade (LEITE,

1994, p. 107). Matos (1984) trabalhou os impactos da legislao urbanstica sobre a estrutura urbana de Belo Horizonte. O autor analisou as conseqncias da aplicao da Lei de Uso e Ocupao

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do Solo de 1976 sobre a cidade sugerindo que esta lei propiciou uma nova onda da urbanizao, introduzindo mudanas qualitativas e quantitativas na estrutura urbana (MATOS, 1984, p. 186). Avaliou como algumas tipologias se sobressaram sobre outras, bem como zonas que tiveram maior rea construda que as demais, mostrando como a dinmica da cidade respondeu ao zoneamento e modelos de assentamentos propostos. Sua maior contribuio para o trabalho aqui proposto a metodologia - a utilizao de dados relacionados ao Habite-se e licena para construir, dentre outros, que possibilitou analisar a configurao do espao frente proposio da lei.

Sobre a estrutura da dissertao, ela constituda de trs captulos. O primeiro captulo divide-se em duas sees. Na primeira seo, feita uma reviso da prtica do planejamento urbano em Belo Horizonte, focalizando principalmente a atuao da legislao urbanstica na conformao do espao da cidade. Para isto, so incorporados relatos histricos da implantao e crescimento da cidade, como os estudos do PLAMBEL (1979, 1987) e Paula e Monte-Mr (2000), por exemplo, contribuindo para um melhor entendimento da aplicabilidade e insero das leis urbanas realidade em questo. Foram incorporados, tambm, estudos relacionados avaliao de Plano Diretores e Leis de Uso e Ocupao do Solo j institudos na cidade, como Matos (1984), Leite (1994), Freitas (1996) e Ferreira (1999). Esta seo busca entender o passado histrico da legislao urbanstica de Belo Horizonte a fim de situar e melhor compreender a prtica atual. Inclui-se neste capitulo tambm uma reviso das tendncias recentes no processo de ocupao da capital mineira. Foi necessrio focalizar a produo imobiliria dos anos 90 a fim de possibilitar anlises mais pertinentes sobre a nova proposta de lei de uso do solo, bem como de seus resultados. Para tanto, baseou-se em estudos j elaborados sobre o tema, como os de Mendona (2003) e Belo Horizonte (1995), principalmente. O segundo captulo aborda especificamente o Plano Diretor (PD/96) e a Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo de 1996 (LPOUS/96). Busca-se, num primeiro momento, resgatar o processo de elaborao e discusso de ambas as leis na tentativa de identificar seus princpios e intenes. Procurou-se identificar a atuao dos agentes e setores que produzem e interferem na reproduo do espao urbano. Segundo Rodrigues (2001, p.18), a anlise das polticas crucial na compreenso no s dos limites de determinados objetivos,

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mas da multiplicidade de envolvimentos, efeitos ou conseqncias da implementao. Posteriormente, o captulo focaliza o contedo da LPOUS/96, analisando, principalmente, os parmetros que atuam diretamente na questo da ocupao e do adensamento: o coeficiente de aproveitamento, a cota de terreno por unidade habitacional e os afastamentos. Esse captulo foi elaborado com o auxlio de estudos relacionados ao tema, como Torre (2003), Belo Horizonte (1995) e Cota (2002), por exemplo, alm da importante contribuio de entrevistas realizadas com representantes de alguns setores envolvidos do processo. O terceiro captulo trata da aproximao e investigao do estudo de caso a anlise da dinmica de ocupao urbana de Belo Horizonte frente aos princpios e zoneamento propostos pela Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo (Lei 7166/96). Sero trabalhados neste captulo, os dados relacionados aos projetos aprovados em todo o territrio da cidade, no intervalo temporal de 1993 a 2002, mostrando o que o mercado se prope a fazer em relao ocupao do solo. Trata-se de um exerccio que ir permitir entender a efetividade da Lei e fornecer subsdios para as concluses e reflexes que sero feitas nas Consideraes finais. Espera-se tambm que esta dissertao traga contribuies para o desenvolvimento de uma metodologia que se traduza em um processo de tratamento das informaes sobre a ocupao e o adensamento do espao de Belo Horizonte.

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1. PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL E EM BELO HORIZONTE

O captulo que aqui se inicia procura revisar a prtica e o pensamento do planejamento urbano no Brasil e em Belo Horizonte, enfocando principalmente a atuao do Estado atravs da legislao urbana. O estudo tem incio com uma breve reviso do momento em que surgiram as primeiras leis urbanas, passando para a prtica do urbanismo no Brasil, ainda no sculo XIX. Em seguida, o olhar focalizado para a cidade de Belo Horizonte, cuja prtica de planejamento ser analisada, bem como a atuao do Estado e as leis urbanas. Busca-se, neste captulo, situar o passado histrico em relao s normas urbansticas de Belo Horizonte para que se possa melhor compreender a prtica recente, explicitada na atual Lei de Parcelamento, Ocupao e Uso do Solo, foco deste trabalho.

1.1.

Os primrdios do urbanismo e da legislao urbana

No te censuro, filha, nem te pranteio. H uma hora terrvel para as cidades, quando querem ser diferentes de si mesmas; e quase nunca pousa um anjo e ordena-lhes: Pra, como a Assis na mbria...(Carlos Drummond de Andrade. Cano sem Metro).

Toda cidade mltipla, transformao permanente.(Paula e Monte-Mr. As Trs invenes de Belo Horizonte.)

E como as cidades no param (seno a Assis) como no verso acima, elas crescem querendo ser diferentes de si mesmas e quando menos se espera j se tornaram outras. E, no bojo de seu crescimento, a complexidade instaurada no processo faz surgir a necessidade de gerenciamento de seus espaos. O papel do Estado passa a ser considerado, ento, fundamental enquanto importante agente regulador do ambiente urbano. Para um melhor entendimento da atuao do Estado, sugere-se percorrer um caminho que teve incio no sculo XIX, poca na qual a presena deste se faz cada vez mais atuante no espao da cidade.

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As intervenes estatais nas cidades inglesas e francesas, em anos da Revoluo Industrial, segundo relato de Benvolo (1963, p.91), restringiam-se, no seu incio, a uma vigilncia genrica sendo grande parte da infra-estrutura realizada pela iniciativa privada. De incio, cabia ao Estado principalmente o encargo da administrao pblica, tais como autorizaes de utilizao e construo, e proposio das regulamentaes atravs da legislao. Somente em alguns casos assumia as obras pblicas juntamente com parceiros privados6; mas na maioria das vezes, eram as companhias privadas (atravs de concesses do Poder Pblico) que assumiam o papel de provedor da infra-estrutura urbana. A constituio de uma legislao ligada diretamente ao urbano, nesta poca, ficou condicionada a questes pontuais, como, por exemplo, regulamentaes de obras pblicas relacionadas s concesses para construes de estradas ou vias frreas, conforme citado anteriormente. Esse modelo de legislao, pertinente administrao pblica da poca, pontual e restrito, portanto, no daria origem moderna legislao urbanstica, pois no permitia uma abrangncia e tratamento mais generalizado do problema em questo no caso o ambiente urbano:os novos programas de obras pblicas, e especialmente os referentes s vias frreas, permitiam de facto administrao pblica modificar profundamente o ordenamento territorial, e mesmo o dos centros habitados (...), mas a urgncia e a complexidade das exigncias tcnicas deixaram passar quase desapercebido o valor urbanstico global dos novos meios. Tanto a legislao como a prtica adquiriram um carcter especializado, sectorial, impedindo descortinar as relaes e as interligaes entre os sectores (BENEVOLO, 1963, p. 93).

Benvolo (1963) ressalta que a grande contribuio da legislao setorial de vias frreas e obras pblicas foi a reviso da lei da expropriao, anteriormente pouco utilizada, mas que passou a ser aplicada em grande escala com a necessidade de abertura das vias. A atuao do Poder Pblico, at ento feita de maneira pontual, vai sendo alterada medida que as cidades recebem contingentes de populao decorrente do crescimento da industrializao, acompanhados dos problemas de ordem sanitrio-ambiental. O Estado chamado a intervir:a teia das interligaes urbansticas criadas pelo desenvolvimento industrial torna-se necessariamente evidente atravs da constatao dos - Ver captulo 2, Os primrdios da legislao urbanstica moderna em Inglaterra e em Frana, em Benvolo (1963).6

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inconvenientes de ordem higinica causados pela desordem e a aglomerao das novas periferias. Quando estes inconvenientes se tornaram intolerveis devido s epidemias de clera que proliferaram depois de 1830 e se estudaram as primeiras providncias para os eliminar, tornou-se clara a pluralidade das causas determinantes, pelo que as providncias adquiriram necessariamente um carcter mltiplo e coordenado. Deste modo, a legislao sanitria torna-se o precedente directo da moderna legislao urbanstica e cedo se generalizou a noo de expropriao, estendendo-a das obras pblicas a todo o corpo da cidade (BENVOLO, 1963, p. 95).

Na Inglaterra, as providncias sugeridas para melhorar as condies de higiene da cidade7 estavam relacionadas diretamente ao ambiente urbano, incluindo propostas de regulamentao das instalaes de esgotos, pavimentao, fixao de requisitos mnimos para servios sanitrios nas habitaes, obrigatoriedade de ventilao, higiene das casas e abertura de parques pblicos. Essas constataes deram origem a uma srie de leis sanitrias, que retratavam a necessidade de mudana dos hbitos ingleses, bem como do controle pblico da cidade. Entretanto, apesar do desenvolvimento (embora contido) do urbanismo, relacionado ao surgimento destas referidas leis, a revoluo de 1848 foi ressaltada por Benvolo (1963) como o ponto crucial para a histria da urbanstica moderna8. O autor remete as transformaes urbansticas questo poltica do momento de 1848 ressaltando quea independncia da tcnica apenas uma aparncia ou uma conveno. Na realidade, a urbanstica insere-se largamente no mbito do novo conservadorismo europeu; Napoleo III em Franca, os jovens Tories guiados por Disraeli em Inglaterra, Bismarck na Alemanha depressa se do conta da importncia que uma poltica orgnica de obras pblicas pode ter para a estabilidade poltica dos respectivos pases (BENVOLO, 1963,

p.115). Desta forma, ao analisar a Reforma Haussmann em Paris, expoente mximo da interveno urbanstica pelo Poder Pblico, v-se que o carter mltiplo e coordenado, citado por Benvolo (1963, p.95), das providncias que deveriam ser tomadas, ultrapassa

Estas solues referem-se s solues apresentadas frente ao Inqurito sobre Condies sanitrias das classes trabalhadoras, citadas por Benvolo (1963, p.96). 8 Apesar de acentuar a importncia do momento de 1848 para a urbanstica moderna, Benvolo diz no haver um estudo sistemtico das relaes entre os acontecimentos polticos e os urbansticos. Ser portanto necessrio proceder por indcios e por hipteses, que s podero ser confirmados por uma investigao ulterior. A pouca documentao recolhida bastar, todavia, para mostrar a importncia decisiva que aquela crise teve tambm no nosso campo (Op. Cit, p. 111)

7

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questes de ordem sanitria, indo justificar-se na tica poltica de dominao e controle da massa popular. Berman (1987, p.145) ilustra essa transformao ocorrida na rea central de Paris:Nos fins dos anos 1850 e ao longo de toda a dcada seguinte (...), Georges Eugne Haussmann, prefeito de Paris e circunvizinhanas, investido no cargo por um mandato imperial de Napoleo III, estava implantando uma vasta rede de bulevares no corao da velha cidade medieval. Napoleo e Haussmann conceberam as novas vias e artrias como um sistema circulatrio urbano. Tais imagens, lugar-comum hoje, eram altamente revolucionrias para a vida urbana do sculo XIX. Os novos bulevares permitiram ao trfego fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo ao outro um empreendimento quixotesco e virtualmente inimaginvel, at ento. (...) Por fim, criariam longos corredores atravs dos quais as tropas de artilharias poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreies populares (BERMAN apud MAGALHES E ANDRADE, 1989, P.67).

Extrapolando a justificativa de uma ao de estratgia militar, a operao Haussmann significou tambm para a tica de Martins (2000) um momento crucial na histria do urbanismo e, conseqentemente, na prtica do planejamento urbano. O autor ressalta que foi Lefebvre quem viu melhor e mais longe esse processo, que est diretamente relacionado a autonomizao do Estado e ao atendimento dos interesses da classe dominante a burguesia.9Lefebvre observou que tal produo do espao (...) obedeceu em verdade a uma pratica correspondente racionalidade do Estado. (...) Incapaz de tolerar o Outro como sujeito histrico (...), a burguesia, liberta de cuidados polticos, confere alguns poderes burocracia e lhe delega a desintegrao da cidade histrica, que no feita sem o recurso violncia aberta. Simultaneamente, ento, com a expulso para as periferias dos que eram considerados incmodos (ou, antes, perigosos), impe-se o Martins discorre em seu texto a questo relacionada aos interesses das classes dominantes e o processo de utilizao do espao ligados pelo vis do pensamento urbanstico: Ora, o pensamento urbanstico vincula-se originalmente necessidade social de organizao do espao, mas, uma vez que sua ascenso no mundo moderno tem a ver com os interesses polticos das classes dominantes em dispor sobre tal necessidade, j do processo de institucionalizao [baseado no termo usado por Lefebvre que abrange seja a interveno, seja o estabelecimento de uma autoridade especifica] do espao que se trata. Logo nos primeiros passos de sua carreira como saber poltico, o urbanismo convive com representaes cientificas (as resultantes do conhecimento das condies sanitrias e higinicas das cidades das cidades industriais, por exemplo) amalgamadas s ideolgicas, que nele operam privilegiadamente para sustentar a fixao de normas e regulamentos de toda espcie devotados a controlar e combater os males das industrializao, por exemplo, atravs da segregao espacial. Entretanto, sua ao se amplia consideravelmente para alem da disposio do espao restrita aos pressupostos de vigilncia e controle a partir do momento em que as exigncias de incorporao efetiva do espao ao mundo das mercadorias, s tramas reprodutivas do capital, passam a se fazer crescentes. (MARTINS, 2000, p. 54)9

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despovoamento e o aburguesamento do centro da cidade (MARTINS, 2000, p. 51).

Choay (1979, p. 4) abordou tambm a Reforma Haussmann sob o olhar dos interesses da classe social hegemnica, denominando-a como uma ordem nova das cidades. Ressaltou que essa mudana significou a soluo mais imediatamente favorvel aos capites de indstria e aos financistas que constituem ento um dos elementos mais ativos da sociedade. No Brasil, essa mesma viso higienista tambm estava implcita no pensamento sobre o urbano da poca. O estudo de Benchimol10 ilustra como se deram as intervenes sobre a cidade do Rio de Janeiro em fins do sculo XIX e incio do XX. Havia uma concepo de planejamento que se baseava na medicina social, em que a cidade era vista como um ambiente promscuo e sujo:Se o projeto de polcia mdica estava intrinsecamente ligado defesa contra um perigo identificado coabitao numerosa (...) este perigo, naturalmente, materializava-se no meio urbano, caracterizado como local de contato desregulado, como meio hostil devido grande concentrao de indivduos e seu relacionamento aparentemente irracional e desordenado (BENCHIMOL, 1982, p. 217).

Para o caos urbano do Rio de Janeiro do final do sculo XIX foram propostas algumas solues que, como se ver a seguir, so de ordem da sade pblica:

expanso urbana para bairros considerados mais salutares para desafogar o Centro; imposio de normas para construes de casas higinicas, alargamento e abertura de ruas e praas, arborizao, instalao de uma rede de salubre e regularizao do abastecimento de gua; manuteno do asseio em mercados e matadouros; criao de lugares prprios para despejos, etc (BENCHIMOL, 1982, p. 220).

Tal movimentao culminou, j nos primeiros anos do novo sculo, em uma transformao urbana da rea central do Rio de Janeiro que pode ser considerada uma transposio da reforma Haussmann de Paris a reforma Pereira Passos. Tratou-se da abertura de algumas avenidas e demolio de cortios, justificados pelo Poder Pblico como a

10

Ver Benchimol, J. L. Pereira Passos, um Haussmann tropical As transformaes urbanas na cidade do Rio de Janeiro no inicio do sculo XX.

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necessidade de embelezamento11, saneamento - em sua concepo mais ampla e ambgua, segundo Benchimol (1982, p. 486) - e ordenao da cidade, principalmente atravs da aberturas das avenidas, facilitando a circulao urbana. A drstica interveno obviamente gerou graves repercusses para a antiga populao residente, que aos poucos se ajeitou no demais (e restritos) espaos da cidade. Seguindo o relato de Benchimol (1982, p. 660): Pela primeira vez na histria, a cidade sofreu o impacto de uma poltica urbana, previamente concebida em todos seus detalhes, formulada num plano sistemtico, abrangendo um amplo leque de iniciativas que repercutiram como um terremoto nas condies de existncia da populao carioca. Desta forma, a viso da cidade como locus da desordem, denotada como expresso do atraso nacional frente modernidade das metrpoles internacionais, deveria dar lugar a uma cidade moderna e higinica, corrigida pelas aes de saneamento ambiental e embelezamento (RIBEIRO e CARDOSO, 1994, p. 81). Analisando as propostas de interveno das cidades, pode-se dizer que o urbanismo no Brasil j nasce com um suposto vcuo entre a poltica e a tcnica12, que inclui, desde a sua concepo, uma deturpao no entendimento de que poltica abrangeria somente o atendimento a alguns segmentos de classe da sociedade:Ao produzir uma interveno orientada por um projeto e uma imagem da modernidade calcada em modelos externos, este modelo traz em si, uma aceitao tcita da excluso. A reforma Passos, no Rio de Janeiro, por exemplo, caracteriza-se por produzir um espao pblico, cujo pblico privilegiado so as elites. Deixa de lado todo um enorme espao aquele das camadas populares que se caracterizou como territrio da excluso, da informalidade, da no vigncia das normas (RIBEIRO e CARDOSO, 1994, p. 82).

neste molde de planejamento que se envolver a implantao de Belo Horizonte, uma cidade concebida sob a expresso mxima do tecnicismo vigente que foi superposta ao espao e aos ocupantes deste, como se ver a seguir.11

Sobre o termo embelezamento, Benchimol (1982) relata: O termo embelezar tem enorme ressonncia no discurso propagandstico da poca. Designa mais do que a imposio de novos valores estticos, a criao de uma nova fisionomia arquitetnica na cidade. Encobre, por assim dizer, mltiplas estratgias. (p.461) 12 Vcuo este que Benvolo se reportou: Os prximos passos em frente no viro por via dedutiva, aplicando ao campo urbanstico as conquistas da teoria poltica, mas por via indutiva, da repetida experincia das dificuldades e dos conflitos particulares, que impele alguns homens mais empenhados a subir ao longo da cadeia das causas e alargar continuadamente o seu empenhamento at reencontrar o elo perdido entre tcnica e poltica (1963, p. 150).

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1.2.

Planejamento Urbano e Legislao Urbanstica em Belo Horizonte no processo de formao da cidade.

Repassado os antecedentes histricos das intervenes estatais sobre o urbano, a seo que se segue enfocar diretamente esta prtica em Belo Horizonte. O objetivo principal resgatar como se deu o processo de formao da cidade, visto sob a tica da atuante presena do Estado na definio e desenvolvimento de seus espaos. Primeiramente, ser feita uma reviso histrica sobre a implantao da cidade passando-se, ento, para uma anlise sobre o processo de sua consolidao e relao com as principais legislaes urbanas institudas.

1.2.1.

Nascimento e Consolidao de Belo Horizonte

A cidade nascida do avano cientfico e tecnolgico, das novas tcnicas construtivas, das inovaes urbansticas de Haussmann, da ruptura poltica com a velha ordem colonial imperial. Cidade contempornea de grandes transformaes do auge do modernismo europeu as vanguardas artsticas, o cinema, a emergncia da sociedade de massas, da velocidade e da exploso urbana. Cidade sintonizada com os novos termos da urbanizao modernista amplas avenidas, amplos espaos pblicos, parques e jardins, espaos distribudos funcionalmente. E, no entanto, por detrs desta fachada moderna, como um cenrio de Potenkin, a mesma continuidade da excluso, os pobres interditados, a terra urbana privatizada e concentrada, a velha sonegao de direitos sociais que acompanha, como uma sombra, a luz, por vezes intensa, da modernidade mineira. Retrato fiel e expressivo dos dilemas histricos do pas. (PAULA, 2000, p.57)

A fala de Paula (2000) retrata como se deu o nascimento e a implantao de Belo Horizonte, uma cidade remetida como moderna desde seu nascimento13. A nova capital de Minas tomou a forma materializada do pensamento urbanstico vigente a tomada das rdeas do urbano pelo Estado, que gerencia (e produz) o espao das

Gomes e Lima (1999, p.120) ressaltam: Em outras cidades brasileiras as reflexes, idealizaes e intervenes que vo lastrear o desenvolvimento do urbanismo definem-se pela oposio a uma cidade antiga, colonial, que ser necessrio descontruir e repropor a partir de eixos que vo priorizar a higiene, a esttica, a fluidez, elementos esses que, em Belo Horizonte, j haviam sido norteadores do plano da cidade.

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cidades, sendo denominada por Andrade e Magalhes (1989) como a primeira aventura urbanstica do Estado Brasileiro. Rumores sobre a mudana da capital comearam em 1843, quando na Assemblia Legislativa Provincial de Minas Gerais foi proposta uma nova sede para a Provncia. No ano de 1889, ano da Proclamao da Repblica, novamente esta idia foi discutida com a justificativa de que as novas capitais simbolizariam o novo regime dos estados federados o republicano. Em 1891, a Constituio Poltica do Estado confirmou a necessidade de mudana da capital escolhendo, j em 1894, a localidade de Belo Horizonte. Tm incio, ento, as obras de implantao da cidade em 1895, sob o comando do engenheiro Aaro Reis (ANDRADE e MAGALHES, 1998, p.41). Gomes e Lima (1999, p.120) ressaltam que Aaro Reis buscou nos avanos da cincia e da tcnica de seu tempo a baliza para a realizao de seu trabalho, procurando conhecer experincias internacionais relacionadas a interveno e planejamento de cidades. O plano proposto pela Comisso Construtora, chefiada por Reis, mescla referncias ao plano de Washington, Reforma Haussmann e ao plano da cidade de La Plata. Belo Horizonte era um arraial denominado Curral Del Rey, cujas construes e arruamento foram totalmente destrudos, deixando somente a Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, que tambm foi demolida em 1911, para ser erguida a Catedral de mesmo nome. (ANDRADE e MAGALHES, 1998, p.45). A descrio sobre a demolio do arraial permite compar-la, guardadas as devidas propores, ao que aconteceu na reforma de Paris. A similaridade dos fatos provoca, inicialmente, uma dvida sobre a qual cidade o poeta se refere:

Alm disso, eles (os bulevares) eliminariam as habitaes miserveis e abririam espaos livres em meio a camadas de escurido e apertado congestionamento (...) Ao lado do brilho, os detritos: as runas de uma dzia de velhos bairros (...) se amontoavam no cho. Para onde iria toda essa gente? Os responsveis pela demolio e reconstruo no se preocupavam especialmente com isso. Estavam abrindo novas e amplas vias de desenvolvimento (...); nesse meio tempo, os pobres fariam, de algum modo, como sempre haviam feito. (...) O problema que eles simplesmente no iro embora. Eles tambm querem um lugar sob a luz (AZEVEDO apud ANDRADE e MAGALHES, 1989, p.86).

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Aos antigos moradores restaram deixar suas casas e se deslocar para fora da rea planejada, indo ocupar os bairros da rea suburbana, como, por exemplo, a Lagoinha, o Calafate e o Cardoso, dando lugar ao que Berman (1989, p. 146) chamou de hegemonia da burguesia: mesmo em toda a parte: os becos e alamedas mais comprometedores desaparecem, para dar lugar a autoglorificao da burguesia, como crdito de seu tremendo sucesso mas reaparecem logo adiante, muitas vezes no bairro adjacente. A inaugurao da cidade aconteceu no ano de 1897 com parte dos edifcios pblicos j

levantados. Conforme se v na FIG. 1, o projeto de Aaro Reis baseou-se em um traado ortogonal composto malhasFigura 2 Mapa Comisso Construtora Fonte: Castriota (1998).

por

duas

transversais.

Grandes avenidas, cujos encontros so coroados

por praas, completavam a composio do espao. Aaro Reis definiu, a princpio, os lugares que seriam destinados aos hospitais, teatro, zoolgico, mercado, escolas, cemitrio, denotando, desta forma, o carter funcionalista e racional do plano. Entretanto, ao privilegiar a funo sobre a circulao, a fruio do sistema virio ficou comprometida pelo excesso de cruzamentos caracterizando uma interrupo sistemtica das avenidas por praas, em que culminavam suas perspectivas. (ANDRADE e MAGALHES, 1989, p. 125). O projeto dividia a planta da cidade em trs zonas: urbana, suburbana e rural. A urbana, inserida na Avenida do Contorno (denominada Avenida 17 de Dezembro), continha quarteires regulares conforme a malha ortogonal desenhada. A suburbana, com quadras irregulares e de maior tamanho, recebia um maior contingente da populao. Segundo Castriota e Passos (1998, p.134), esta ocupao intensa da rea suburbana se deu devido rigidez do controle da ocupao da rea central (urbana) pelo Poder Pblico. Dados de 1912

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mostram que a populao da rea urbana era de 32%, enquanto que a suburbana e a rural somavam 78% evidenciando o crescimento no sentido periferia-Centro (COSTA, 1998, p. 53). A ocupao da nova capital relatada, em 1934, por dois arquitetos14:a Capital no se tornou densa, de incio, como acontece s grandes cidades (...) Enquanto as ruas do centro da cidade, em sua maior parte, apresentam casas de vastos quintais, h nos bairros um formigamento de construes tendentes a, cada vez mais, ampliar a rea da cidade (...) a Prefeitura, com poucas rendas, ficou impossibilitada de atender s necessidades mltiplas que surgiam e surgem com esses acrscimos Capital.

A ocupao e a posse dos lotes, a princpio sob coordenao do poder pblico, foi transferida gradualmente aos novos proprietrios via leiles que, segundo Costa (1994, p.52), definia o carter da seleo da ocupao pelo critrio da renda, fato que possibilitou a concentrao de lotes e a conseqente especulao com os (j ento altos) preos dos terrenos urbanos. Desta forma, as palavras de Paula (2000), citadas na apresentao desta seo, denotam, j nos primeiros anos de vida de Belo Horizonte, vcios comuns a outras cidades, que certamente tero continuidade ao longo do decorrer de sua histria: excluso, segregao e privatizao das terras. Apesar de sua implantao estar diretamente relacionada ao aparato Estatal, seu manejo parece no ter caminhado no sentido de solucion-los. Antes pelo contrrio, o estudo de Mendona (2000, p.1) demonstra que a interveno estatal vem, desde o incio, reforado os processos de segregao urbana. A comear da implantao da nova capital, passando pela legislao urbanstica que vem sendo elaborada a partir dos anos trinta, o Poder Pblico vem reforando a polarizao scio-espacial que tomou a forma de uma dualidade centro-periferia.

Na seo seguinte, prope-se fazer uma reviso das legislaes urbanas institudas em Belo Horizonte. Buscar-se- entender como essas leis interferiram no processo de produo da cidade, bem como a postura do Poder Pblico perante as questes anteriormente levantadas. O estudo busca tambm esclarecer como aconteceu o processo de verticalizao dentro do contexto do ordenamento legal da cidade. Isto porque, ao analisar a dinmica de ocupao do espao belo-horizontino, frente proposta de ocupao da Lei 7166/96, o entendimento

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deste processo de verticalizao, diretamente relacionado questo do adensamento, contribui para a compreenso dos possveis impactos decorrente das mudanas introduzidas pela referida Lei.

1.2.2.

Legislao urbana e atuao do Estado em Belo Horizonte

Belo Horizonte tornou-se locus da atuao do Estado desde seu nascimento, quando surgiu da necessidade de uma nova capital. Seus espaos nasceram pr-concebidos, atravs de um ordenamento da ocupao do solo via delimitao das zonas da cidade, conforme mencionado anteriormente. Ao longo de toda a sua histria, essa interveno do Poder Pblico se faz presente, reforando uma idia principal de que o Estado, atuando direta ou indiretamente atravs da formulao das leis urbansticas (permissivas ou proibitivas de certos usos e ocupao) e da proviso de infra-estrutura, define de modo preciso a ocupao e a utilizao dos espaos da cidade. As palavras de Matos (1984, p.62) ratificam esta concepo sobre a cidade:Belo Horizonte constitui notvel exemplo de cidade brasileira, onde o poder pblico sempre esteve na origem do processo de urbanizao e estruturao do espao urbano. Em diversos momentos de sua histria, a capital presenciou a realizao de investimentos pblicos de grande vulto, que vieram gradativamente modelar a estrutura espacial ou alterar a morfologia preexistente.

Desta forma, prope-se nesta seo, fazer um breve histrico da legislao urbana de Belo Horizonte, conforme mencionado anteriormente, organizado a partir de intervalos temporais cujas referncias so as datas de aprovao das Leis de Uso e Ocupao do Solo na cidade.

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Em entrevista ao Estado de Minas, os arquitetos Luis Signorelli e ngelo Murgel comentam os

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Da fundao da cidade a 1976.

O processo de ocupao de Belo Horizonte esteve relacionado ao controle exercido pelo Poder Pblico, desde sua implantao, das reas da cidade. Na zona urbana, a ocupao foi direcionada aos segmentos de classe superiores, devido aos elevados preos para aquisio dos lotes. Os terrenos desta rea estavam destinados a funcionrios pblicos, ex-proprietrios de edifcios em Ouro Preto (antiga capital), ex-proprietrios de Belo Horizonte (uma pequena parcela) e burguesia emergente, cuja classe socioeconmica permitia comprar os lotes, que eram leiloados, conforme mencionado anteriormente. O estudo do PLAMBEL (1979, p. 54) assinala o aparecimento das primeiras aes especulativas sobre o solo urbano, definindo, j nesta poca, o carter segregatrio de sua ocupao:O aglomerado que se compe de 200 casas em 1897, transforma-se rapidamente em suntuoso bairro [o Funcionrios]. A aquisio de lotes contguos aos recebidos por sorteio inicial permitiu a concentrao e acumulao da propriedade privada do solo urbano e, conseqentemente, a especulao imobiliria, induzindo para o local, grupo identificado social e economicamente ao funcionalismo.

Desviada do olhar do Poder Pblico, a zona suburbana recebeu o restante da populao, produzindo o movimento de crescimento no sentido Periferia-Centro. Em relao volumetria das edificaes, foi institudo, em 1901, um decreto que restringia a altura das edificaes a trs pavimentos. Para Noronha (1999, p. 78), este regulamento das construes, no qual fica formalizada a restrio a edificaes verticais, vai confirmar para o espao urbano uma arquitetura caracterizada por baixas volumetrias, em que a cidade tem na homogeneidade espacial a sua identidade. Entretanto, essa homogeneidade vai dando lugar diversificao da paisagem decorrente do crescimento da cidade. A TAB. 1 apresenta os ndices de aumento populacional ao longo da primeira metade do sculo. De fato, at a dcada de 30, Belo Horizonte possua um crescimento lento, pertinente a uma economia agrcola: a cidade era basicamente o centro poltico, cultural e de servios de um estado de economia agrria, tendo a capital uma pequena atividade industrial (PLAMBEL, 1979, p. 31).

problemas da cidade. (In: CASTRIOTA e PASSOS, 1998, p.135).

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Anos Populao 1900 13.472 1905 18.662 1910 33.245 1915 45.741 1920 55.563 1925 81.596 1930 116.981 1935 167.712 1940 214.307 1945 272.910 1950 370.000Tabela 1 - Evoluo da populao de Belo Horizonte 1900-1950 Fonte: Giannetti, 1951. In: BELO HORIZONTE, 2000, p. 33.

A cidade segue em ritmo de crescimento, caracterizado principalmente pelo grande nmero de obras pblicas. Alm de consolidar a estrutura lanada, essas obras possibilitariam a expanso da cidade atravs da ampliao do sistema de bondes, da inaugurao do autonibus e da construo do Viaduto de Santa Tereza, transpondo o Rio Arrudas e facilitando a ligao do Centro regio Leste (de intensa ocupao, conforme mostrado na FIG. 2). Em 1922 aprovada a Lei no 226 que autorizava a verticalizao e o aproveitamento maior dos terrenos da rea central, permitindo edifcios com at 25 pavimentos nas vias de 25m de largura, 35 pavimentos nas avenidas de 35 metros e, na Avenida Afonso Pena, de 50 metros de largura, edifcios com at 50 pavimentos (CASTRIOTA e PASSOS, 1998, p. 142). A iniciativa de verticalizao, vinda do Poder Pblico sob forma da Lei, no produziu efeitos imediatos, segundo Castriota e Passos (1998), pois seus parmetros constituam mais uma expectativa por parte do Estado do que uma procura real por este mercado. Entretanto, Mendona (2000, p.14) afirma que essa Lei cria as condies para a verticalizao no centro e, efetivamente, estabelece o incio de uma era de alteraes no uso e intensificao da ocupao como forma de superar a lgica da renda fundiria e viabilizar o mercado imobilirio. Em 1933 foi aprovada uma nova lei: o decreto no 165, denominado Regulamento Geral de Construes em Belo Horizonte. Apesar de seu contedo estar diretamente relacionado

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normatizao das edificaes15, possua um artigo que classificava as zonas da cidade em reas comercial, residencial, suburbana e rural. A rea comercial foi destinada a verticalizao atravs da proibio de construes de um s pavimento em ruas menos movimentadas - e trs pavimentos - nas avenidas principais. Desta forma, a rea central, tornou-se o lugar da implantao dos primeiros edifcios verticalizados, indo ao encontro do pretendido (e permitido) pelo Poder Pblico:A poltica urbana, estabelecida naquele momento, no contrariava o processo de valorizao imobiliria ao proibir construes abaixo de trs pavimentos, o que vai intensificar a utilizao dos terrenos nos trechos demarcados, acentuando o carter comercial e de servios na zona central. Essa regio passa a deter, pela sua concentrao de atividades comerciais e financeiras, a imagem de centro da cidade (NORONHA, 1999, p. 86).

Da mesma maneira, a taxa de ocupao era regida segundo o uso e localizao do lote no quarteiro, conforme demonstrado pela TAB. 2:

Uso Residencial

Localizao do lote Lote no meio do quarteiro Lote de esquina em ngulo reto Lote de esquina em ngulo agudo Pampulha, Cidade Jardim e Sion Na zona comercial Na zona residencial em esquina Na zona residencial no em esquina

Comercial

Taxa de Ocupao Mxima (%) 50 55 60 40 100 100 85Fonte:

Tabela 2 Taxa de ocupao mxima segundo parmetros do Decreto n. 165/33 PLAMBEL (1976, p. 84). Elaborao: Natlia A. Mol.

Os lotes de esquina valorizaram-se em relao aos demais devido maior permissividade de construo (TAB. 2):tais condies legais valorizavam particularmente os lotes de esquina, j que estes ofereciam maiores possibilidades de aberturas para o exterior, pois dispunham de maior superfcie de contato com os logradouros em relao a rea do lote, do que os lotes de meio de quarteiro. Tal situao favorecia ainda mais os lotes de esquina triangulares, onde essa relao superfcie de contato com o logradouro/rea do lote maior do que nos lotes ortogonais. Definia altura, volumetria, reas mnimas para cada cmodo, rea de insolao, ventilao, etc. para edificaes. Tratava-se de um conjunto de normas para edificaes de diferentes usos.15

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Portanto, a despeito das dificuldades de conformao dos espaos internos, os lotes triangulares de esquina tornaram-se preferidos para a construo de edifcios verticais, como confirma o fato de que os trs primeiros edifcios de apartamentos de Belo Horizonte ocupavam lotes nessa condio (PASSOS,

1998, p. 59). Um outro enfoque sobre a especializao da rea central da cidade, direcionada pela legislao, diz respeito ocupao. A maior permissividade dada pelo Decreto gerou uma valorizao dos terrenos reafirmando, mais uma vez, a ocupao dessas reas e deste tipo de edificao pelos segmentos sociais superiores (NORONHA, 1999, p. 89). Nos demais espaos da cidade, a altura mxima era regulamentada segundo o tipo da construo e localizao do terreno. Pelos dados da TAB. 3, percebe-se que a altura da edificao relacionava-se, quase que explicitamente, categoria social, pois em bairros ocupados por segmentos de classe social mais elevados, como a Pampulha e Cidade Jardim, eram permitidas construes com mais de um pavimento. No de pavimentos 2 3 1 2

Localizao Pampulha residencial Cidade Jardim e Sion Residncias proletrias (zona suburbana) Conjunto Habitacional Unifamiliar

Tabela 3 Altura mxima permitida segundo parmetros do Decreto n. 165/33. Fonte: PLAMBEL, 1976, p. 89. Elaborao: Natlia A. Mol.

O aumento populacional e o crescimento da cidade nos anos 30, conforme mostra o mapa da FIG. 2, levou o Poder Pblico a instituir, em 1934, a Comisso Tcnica Consultiva da Cidade, um rgo de assessoria ao prefeito sobre questes e problemas urbanos. Segundo Leme (1999, p. 122):nesse momento j se percebe, com clareza, os efeitos da forma de crescimento que a cidade vinha tendo desde sua fundao, bem como j se nota a a emergncia de uma postura mais crtica com relao ao plano, alm de novas oportunidades de formao profissional e de novos fruns onde a cidade passa a ser discutida e reproposta.

Definido por Paula e Monte-Mr (2001, p. 40) como um amplo processo de replanejamento da cidade, tratou-se de um perodo caracterizado pela realizao de importantes obras pblicas necessrias ao seu desenvolvimento, relacionadas, principalmente,

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ao saneamento como, por exemplo, a canalizao do Ribeiro Arrudas em toda a zona urbana; e ao sistema virio e circulao urbana, como o prolongamento das avenidas Amazonas e Afonso Pena e a abertura das avenidas sanitrias Pedro I, Antonio Carlos, Pedro II, Silviano Brando, Tereza Cristina e Francisco S. O perodo de 1935 a 1954 tratado por estes autores como a volta16 do planejamento urbano cidade. Tal fato deveu-se centralidade que a industrializao assumiu a partir de 1930 como quase sinnimo de desenvolvimento econmico e social, alm da constatao do desordenado processo de ocupao da cidade fora da Avenida do Contorno. (PAULA e MONTE-MR, 2001, p.40).Trata-se da mais importante e ampla interveno urbana em Belo Horizonte depois de sua construo, marcando um novo tempo de planejamento depois de longa dominncia do laissez-faire que havia produzido um tal quadro de precariedade urbana nas reas externas Avenida do Contorno, que se impunha a volta do plano.

Nos anos 50, a industrializao ganha flego com a constituio da CEMIG empresa estatal de energia eltrica: assim, s de fato, na dcada de 1950 que o desenvolvimento industrial de Belo Horizonte poder se dar sem os constrangimentos da carncia de energia eltrica (PAULA e MONTE-MR, 2001, p. 41). O incio da dcada de 50 marcado, ento, por um surto de otimismo, dinamizando o setor produtivo. A ocupao e o desenvolvimento da rea industrial da Regio Metropolitana de Belo Horizonte foi o principal fator de acelerao do processo de parcelamento e da demanda de imveis trazendo conseqncias para o processo de ocupao da cidade e aglomerado. No perodo de 1950 a 1959, o nmero de loteamentos elevou-se de modo explosivo, sendo denominado como o perodo ureo dos loteadores (PLAMBEL, 1976). E de fato, a partir desse momento, Belo Horizonte passa a sediar no somente o aparato burocrtico estatal, mas tambm todo o aparelho produtivo, definido por Oliveira (1982, p. 38) como a sede da indstria propriamente dita. Seguindo o pensamento deste autor, pode-se afirmar que o processo da industrializao teve como conseqncia o que ele denominou de ampliao do tercirio, dando origem s classes mdias.

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Os autores citados consideram uma volta ao dizer que este perodo marcou o segundo ciclo de planejamento urbano de Belo Horizonte (p.39), sendo o Plano de Aaro Reis, o primeiro.

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Neste ponto, Passos (1998, p. 73) ressalta como o surgimento deste segmento de classe social alimentou um movimento de expanso do mercado imobilirio destinado construo de edifcios de apartamentos:A classe mdia urbana, ligada a esse setor de atividades [comrcio e servios], concentrou-se e cresceu nos grandes centros urbanos, assim como tendia a morar prximo das reas de concentrao do comercio e servios. Nesse sentido o edifcio vertical respondia a uma demanda de maximizar o aproveitamento dos lotes valorizados pela sua situao de proximidade com reas de concentrao de atividades tercirias.

A legislao urbana viabilizou a verticalizao fora da rea central somente em 1956, quando aprovou a Lei no 592 de 27 de novembro, ampliando a zona urbana do municpio e permitindo a construo vertical em bairros que j estavam consolidados no entorno da antiga Zona Urbana (NORONHA, 1999, p. 87). Segundo relato de Passos (1988, p.68), a ocupao desses bairros, at o incio da dcada de 50, era exclusivamente por residncias unifamiliares, sendo que a partir de meados dos anos 50 comeam a ser construdos edifcios de apartamentos de 3 a 4 pavimentos. Passos (1998) enfatiza que, na zona Sul da cidade, a abertura das avenidas e a canalizao de crregos criaram condies para expanso deste tipo de ocupao, como aconteceu com os bairros Serra, Santo Antnio, Carmo, Cruzeiro e Gutierrez. Alm disto, pontua-se tambm o fato de que a superutilizao da rea central provocou uma demanda por apartamentos em reas mais calmas, contribuindo para uma dinmica crescente na ocupao desses bai