Monarquia Para Rousseau

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visão de rousseau da monarquia

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  • MEDIAES REVISTA DE CINCIAS SOCIAIS VOL. 9-N. 2!2004-p. 53-66

    A MONARQUIA SEGUNDO JEAN, JACQUES ROUSSEAU

    Renato Moscateli 1

    N a maior parte das vere;, o nome do filsofo suo Jean-Jacques Rousseau associado s origens da democracia moderna, em razo da defesa que o autor apresentou, em suas obras, da soberania popular eda vontade geral, esta ltima sendo ofundamento da lei em uma repblica ideal. Entretanto, Rousseau no se limitou arefletir sobre como se poderia construir um Estado democrtico em substituio s monarquias absolutistas existentes em sua poca. Ele tambm dedicou seus esforos a compreender, de formacrtica, oprprio regime monrquico, estando consciente dos obstculos aserem vencidos paraque estaforma polticafosse superadaem direo aoutras mais prximas de seus ideais, nas quais todos os cidados poderiam participar ativamente da administrao do governo. Assim sendo, adiscusso que ser desenvolvida aqui tratar de alguns aspectos da reflexo de Rousseau sobre amonarquia, partindo de suacrtica ao regime at chegar asuas propostas concretas parapossveis reformas do mesmo.

    Em seu texto poltico mais importante, oContrato Social, de 1762, Rousseau no poderia deixar de tecer consideraes sobre a monarquia em sua anlise sobre os diferentes tipos de governo possveis, e, mesmo quando ele parecia estar tratando do regime monrquico em geral, certamente era o Estado absolutista que, em ltima instncia, tinha em mente, de modo que suas fortes acusaes contra opoder real no se separam da crtica que ele dirige civilizao de sua poca. Tal crtica baseava-se em princpios ticos, desafiando tambm aseparao entre poltica emoral sobre aqual a monarquia absoluta se erigira,2 pois, como a metodologia de anlise sintetizada por Rousseau no Emz1io postula, " preciso estudar asociedade pelos homens, eos homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente apoltica eamoral nada entender de nenhuma das duas".3 I Mestre em Histria Social pelo Programa Associado de Ps-Graduao em Histria UEWUEI.. Autor de OSenhor das Letras: oAntigo Regime e a Modernidade na literatura voltaireana. Maring: Eduem, 2000.

    2 KOSELLECK, R. Crtica ecrise: uma contribuio patognese do mundo burgus. Trad. Luciana V-B. CasteloBranco. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 1999.

    3 ROUSSF.AU,].-]. Emllio ou Da educao. Trad. Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 309.

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    54. MEDIAES VOL. 9-N. 2/2004 Aps definir o rei como um indivduo que representa um ser coletivo, isto , o

    conjunto do povo, e que detm em suas mos ocontrole pessoal das leis eda mquina estatal, Rousseau afirma que na monarquia que as aes do governante tm maior fora, pois no so abaladas por movimentos conflitantes, visto que tudo se dirige para um mesmo objetivo. "Se no existe, porm, um Governo que possua mais vigor", escreve ofilsofo, "no h absolutamente outro em que avontade particular disponha de mais imprio e mais facilmente domine as outras; verdade que tudo se movimenta para o mesmo fim, mas esse objetivo no o da felicidade pblica".4Assim, ainda que o rei disponha dos meios mais poderosos para fazer cumprir suas determinaes, estando acima dos partidos rivais, isto no resulta necessariamente em benefcio do povo. Para Rousseau, os interesses do monarca se sobrepem aos dos sditos que ele comanda, e a vontade do povo raramente coincide com os desejos pessoais do rei.

    Rousseau no apenas enxergou na monarquia aexistncia de um descompasso entre os desejos do povo edo governante, mas denunciou neste ltimo a nsia de ampliar ao mximo ograu de seu poder. Os reis querem ser absolutos, diz oautor, eno medem esforos para atingir essa meta. Alguns aconselham os prncipes aconquistar oamor do povo. Porm, os monarcas sabem que esse um poder precrio econdicional, ebuscam algo mais slido em que se apoiar:

    Os melhores reis querem ser maus, caso lhes agrade, sem deixar de ser os senhores. Ser grato a um pregador poltico dizer-lhes que, sendo sua fora a do povo, seu maior interesse estar em ser o povo florescente, numeroso, temvel: eles sabem muito bem que isso no verdade. Oseu interesse pessoal estar principalmente em ser o povo fraco, miservel, e nunca possa oferecer-lhes resistncia. Creio que, supondo-se os sditos sempre perfeitamente submissos, o interesse do prncipe seria ento que opovo se tornasse potente afim de que essa fora, sendo asua, otornasse temvel aos vizinhos, mas como tal interesse s secundrio esubordinado, ecomo as duas suposies se mostram incompatveis, parece natural que os prncipes prefiram a mxima que lhes seja mais imediatamente tiJ.5

    Na perspectiva rousseauniana, por conseguinte, a grandeza do rei diretamente proporcional fraqueza dos sditos. No era tambm sem motivo, portanto, que os reis europeus, oda Frana inclusive, faziam to pouco para suprimir, ou mesmo amenizar, as desigualdades que mantinham amaior parte de seus governados na pobreza, enquanto o

    \ ROU SSEAU, j.-j. Do contrato social. In: Rousseau. So Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores). p. 94-95. Id. Ib., p. 95.

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    fausto da corte real permanecia intocado: afinal, um povo miservel mais fcil de subjugar, eos reis preferiam sacrificar aprosperidade do reino por no desejarem obstculos sua autoridade dentro de seus prprios domnios.

    Oregime monrquico, prossegue Rousseau em sua crtica, mais conveniente aos grandes Estados, mas isto no significaqueelessejam fceis de governarpor um nico indivduo.6 Nas grandes monarquias, "huma grande distnciaentre oprncipe e o povo, efalta coeso ao Estado.Para constitu-la, necessitam-se, pois, ordens intermedirias; precisa-se dos prncipes, dos grandes, da nobrezapara desempenh-las"? Cria-se ento uma estrutura administrativa que deve se encarregarde levar aautoridade real atodos os sditos, eessaestruturaresponsvel pelo estabelecimento de novas desigualdades entre os membros da nao, na medida em que gera umaelite colocada acimado povo comum. Um problemafundamental na composio dessa elite, que Rousseau consideraum defeito "essencial einevitvel" do governo monrquico, que os homens que assumem os primeiros postos no Estado "no passam, comumente, de pequenos trapalhes, pequenos intrigantes, cujos pequenos talentos, que nas cortes facilitam o acesso aos grandespostos, s servemparamostrar ao pblico, assim que ascendem, sua inpcia' '.8 Diferentemente das repblicas, em que omrito e a capacidade dos indivduos conduzem-nos ao Estado graas ao voto do povo, na monarquia, levados s dignidades do governo por motivos alheios sua competncia, esses homens de "pequenas virtudes" so incapazes de aproveitar todos os recursos de que dispem em benefcio do bem pblico.

    Acompetncia do governante mximo tambm foi devidamente considerada por Rousseau, ede um ponto de vista educacional. Oautor partia do pressuposto de que os prncipes, como quaisquer homens, precisavam receber uma formao adequada funo que deveriam executar, a fim de que seus governos fossem pelo menos livres de alguns erros, jque vrios outros seriam inevitveis dada aprpriaessncia do regime monrquico. Como se v, otema da educao assume novamente na obra do filsofo suo um lugar fundamental. Assim como o texto do Emz1io prope uma pedagogia cujo objetivo antes evitar omal do que instigar obem, oContrato Social contm aafirmao de que os reis devem aprender aobedecer ao invs de serem educados para mandar:

    Tudo concorre para privar de justia e de razo um homem elevado posio de comandar os demais. Diz-se que muito trabalhoso ensinar aos jovens prncipes a arte de reinar; no parece trazer-lhes proveito tal educao. Seria melhor comear

    6 Esse foi, alis, um dos problemas de que Rousseau se ocupou em suas Consideraes sobre o governo da Polnia (de 1771) ao fazer sua proposta de reforma para as estruturas polticas desse reino europeu.

    7 ROUSSF.AU, ].-]. Do contrato social. p. 96. B Id. Ib., p. 96.

  • 56. MEDIAES VOL. 9 - N. 2/2004 por ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis que a Histria celebra no foram educados para reinar; uma cincia que nunca se possui menos do que depois de t-la aprendido demais, e que melhor se adquire obedecendo do que comandando.9

    Se Rousseau defendia que acriana tem de ser preservada da corrupo moral para que avoz da conscincia - que nela existiria naturalmente10 - se fortalea epossa ser sempre ouvida erespeitada na vida adulta, necessrio que os prncipes, em razo das responsabilidades inerentes sua condio na comunidade poltica, sejam educados de tal forma que o aprendizado da obedincia refreie neles, mais tarde, as tendncias despticas que opoder certamente lhes instigar, bem como lhes ensine a respeitar a autoridade das leis eos direitos dos sditos.Contudo, Rousseau sabia bem que dificilmente os prncipes recebiam tal tipo de educao, emanifestou todo oseu pessimismo quanto aos monarcas que sempre teriam sua formao moral prejudicada pelos ensinamentos nocivos adquiridos na juventude epelos vcios da autoridade que estavam destinados a desempenhar. Assim, ele se pergunta: "se a educao real corrompe necessariamente aqueles que a recebem, que se deve esperar de um sqito de homens educados para reinar? , pois, querer iludir-se, confundir oGoverno real com ode um bom rei. Para ver oque esse Governo em si mesmo, impe-se observ-lo quando os prncipes so tacanhos ou maus,pois chegaro assim ao trono ou otrono assim os tornar". 11

    Aquesto daescolhaedasucesso dos chefes supremosum outro inconveniente que Rousseau encontrou na monarquia. Se orei fosse determinado por eleies, sempre haveria a possibilidade de tumultos entre ofim de um governo e o princpio de outro, alm da corrupo poder influir no resultado do processo eleitoral. Mas, se acoroa jhaviase tomado hereditria, "mais se desejou orisco de aceitar como chefes crianas, monstros eimbecis, ater de discutir sobre aescolha de bons reis" .'2 Como se v, Rousseau estavabem longe de acreditar na idia de que as farru1ias reais possuam virtudes especiais para governar os povos, viltudes que seriam transmitidas pelos reis aseus descendentes pelo sangue sagrado que coma em suas veias. '3 Certamente, a teoriado direito divino no pressupunhaque omonarcadeveria necessariamente

    9 Id. Ib., p. 97.

    10 "Existe, pois, no fundo das almas um princpio inato de justia e de virtude a partir do qual, apesar de nossas

    prprias mximas, julgamos nossas aes eas de outrem como boas ou ms, eaesse princpio que dou onome de conscincia." RoussEAu,].-]. Emflio ou Da educao. Trad. Roberto Leal Ferreira. So Paulo:Martins Fontes, 1995. p. 390.

    11 RoussEAu, ].-]. Do contrato social. p. 98. 12 Id. Ib., p. 97. 13 Com isto, o filsofo contrapunha-se a uma certa imagem real que, nascida ainda na Idade Mdia e reforada

    na poca Moderna, apresentava omonarca como um ser mstico: " a virtude do sangue que corre por suas veias

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    ser um bom governante, mas, se os filhos dos reis podiam ser "monstros e imbecis" - ena histria havia diversos exemplos -, como continuar sustentando acrena da sacralidade da descendncia aristocrtica, umadas pedras angulares da monarquia absolutista,ao invs de ver na hereditariedade dacoroa afonte de males eno de prosperidade?

    Segundo Rousseau, antes dele existiram vrios autores que pensaram arespeito de problemas como esse, refletindo sobre ofato de que nem sempre arealeza um exemplo de virtude. Ora, escreve ofilsofo,

    Essas dificuldades no escaparam a nossos autores, mas eles em absoluto no se embaraaram com elas. Oremdio, dizem eles, obedecer sem murmurar. Deus d os maus reis em sua clera e devemos suport-los como castigos do cu. Sem dvida, tal discurso edificante, mas no sei se no conviria mais num plpito do que num livro de poltica. Que dizer de um mdico que promete milagres, mas cuja arte se limita aexortar seu doente pacincia? Sabemos muito bem que devemos agentar um mau Governo quando o temos; a questo est em encontrar um bom. 14

    Essa aluso aos defensores da teoria do direito divino dos reis feita por Rousseau com um duplo intuito. Em primeiro lugar, elaobjetiva refutar tal teoria, reclamando umadistino entre os domnios da religio edapoltica: odiscurso religioso que conclama auma obedincia devota aos reis, aindaque sejam tiranos, deve ser relegado apenas ao espao que lhe cabe, ou seja, s igrejas. Em segundo lugar, ela tem em mira indicar uma nova abordagem do problema poltico: no se trata mais de justificar aquilo que existe - os abusos do poder inclusiveapelando paraosobrenatural, mas de enxergar arealidade com olhos crticos paraser capazde propor aconstruo de algo novo emelhor.

    Aps essa incurso inicial pelo pensamento de Rousseau sobre amonarquia, cabe uma pergunta: ofilsofo suo no teria jamais escrito palavras favorveis em relao a esse regime poltico? Ora, no obstante ter considerado a monarquia condenvel por diversos motivos, Rousseau no pregava sua abolio imediata em todos os casos em prol da adoo da democracia participativa, como uma leitura restrita ao Contrato Social

    que faz com que vivam seus sditos, que assegura aos seus avitria nas guerras, os xitos culturais". LOPES, MARCOS ANTNIO. Aimagem da realeza: simbolismo monrquico no Antigo Regime. So Paulo: tica, 1994. p. 39. Visto que os reis franceses seriam herdeiros de uma antiga linhagem ungida por Deus, a continuidade de sua descendncia era vista como fundamental para aexistncia do prprio reino. Etamanha era acrena no poder sagrado dos reis, que,como M. BLOClI demonstrou, ainda na Idade Moderna,os monarcas da Frana eda Inglaterra realizavam rituais supostamente capazes de curar doenas de forma milagrosa. BLOCH, MARc. Os reis taumaturgos: ocarter sobrenatural do poder rgio, Frana e Inglaterra. Trad. Jlia Mainardi. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

    14ld. Ib., p. 98.

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    poderia sugerir. H obras do autor em que, de fato, amonarquia aparece de uma forma bem menos negativa, ainda que no isenta de problemas. Tal o caso do texto literrio intitulado A Rainha Fantasiosa. Neste conto de fadas, Rousseau relatou alguns acontecimentos dignos de nota ocorridos nos domnios de um certo rei Fnix. Segundo Jalamir, onarrador da estria, Fnix era um monarca que amava seu povo eque,

    conseqentemente, era adorado por ele. Ele havia empregado todos os seus esforos para encontrar ministros igualmente bem intencionados, mas, tendo reconhecido enfim a loucura de uma tal busca, ocupou-se da tarefa de fazer totalmente sozinho todas as coisas que podia subtrair atividade nociva deles. Como estava corajosamente obstinado no bizarro projeto de tornar seus sditos felizes, ele agia de acordo, e uma conduta to singular fazia-o passar por um ridculo inesquecvel entre os grandes. Opovo o bendizia, mas na corte ele passava por louco. 15

    No reino imaginrio do conto, existia um governante que estava unido ao povo por fortes laos afetivos, uma vez que seu objetivo maior era a bem-aventurana dos sditos. Se Rousseau afirmou alhures que adistncia entre oprncipe e o povo prejudicava acoeso do Estado eexigia acriao de ordens intermedirias entre eles, no reinado de Fnix isso no era um problema, pois orei assumira sozinho otrabalho que deveria caber aos ministros efora bem sucedido em tal empreitad,a.

    Entretanto, Fnix era um indivduo extraordinrio, etemia que toda asua obra se perdesse ao fim de seu reinado. Ele precisava garantir que seu herdeiro e sucessor prosseguisse na mesma direo, mas sua esposa, a rainha Fantasiosa, cujo carter era bem descrito por seu nome, preferia que os filhos gmeos recm-nascidos fossem educados para os prazeres fteis da corte eno para amisso de governar. Afada Discreta, amiga dos governantes, prometeu dar s duas crianas, num passe de mgica, ocarter que os pais desej assem e, enquanto a rainha quis que uma das crianas fosse bela edotada de boas maneiras - ainda que estpida-, orei pediu que asensatez fosse acaractersticaprincipal da outra. Ora, a leitura dessa parte do conto mostra que Rousseau tambm se preocupou em apontar quais deveriam ser as virtudes mais aconselhveis aos reis. Talvez no caiba a essa obra do filsofo suo a classificao de "espelho dos prncipes", 16 mas se pode inferir de sua anlise um certo ideal de conduta indicado aos monarcas. Neste sentido, 15 ROUSSEAU, J.-J. La reine fantasque. Disponvel em:

    Acesso em: 05 ago. 2001. 16 Oespelho dos prncipes (miroir eles princes) constitua um antigo gnero literrio cujo objetivo era definir

    as virtudes mais adequadas aos monarcas. Ver: loPES, MARCOS ANTNIo. Voltaire poltico: espelhos para prlcipes de um novo tempo. So Paulo: Editora Unesp, 2004.

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    Rousseau manifesta uma opinio contrria de Maquiavel a respeito da importncia da prudncia na ao do governante. Oescritor italiano acreditava que a conjugao da virtit pessoal com as benesses dafortuna era o fator determinante do sucesso de um prncipe, de modo que aprudncia, uma virtude crist, teria uma posio pouco relevante nesse caso. Rousseau, por outro lado, pinta um retrato da monarquia em que aprudncia do governante, ou sua falta, desempenha um papel decisivo na preservao do reino ena felicidade do povo. Ao comparar as qualidades e os defeitos que os gmeos do conto deveriam desenvolver no futuro, de acordo com os desejos de seus pais, osbio druidainterlocutor de Jalamir - prev os problemas que oconflito entre a imprudncia de um e a sensatez da outra trariam ao pas:

    Teu prncipe Capricho far virar a cabea de todo o mundo e ser muito bom imitador de sua me para no ser seu tormento. Ele perturbar o reino querendo reform-lo. Para tomar seus sditos felizes, ele os deixar em desespero, tomando seus prprios erros pelos dos outros, e injusto por ter sido imprudente, o pesar por suas faltas ofar comet-las de novo. Como asabedoria no oconduzir jamais, o bem que ele quiser fazer aumentar omal que ele ter feito. Em uma palavra, ainda que no fundo ele seja bom, sensvel e generoso, suas prprias virtudes o levaro ao erro e apenas seu aturdimento, unido a seu poder, ofar mais odiado do que o teria feito uma maldade bem pensada. De outro lado, tua princesa Razo, nova herona do pas das fadas, tornar-se- um prodgio de sabedoria e de prudncia, e sem ter adoradores se far a tal ponto amar pelo povo que cada um far votos de ser governado por ela. Sua boa conduta vantajosa a todo o mundo e a ela mesma no causar problemas a no ser a seu irmo, cujos vcios opor-se-o sem cessar s virtudes dela, e a quem a preveno pblica dar todos os defeitos que ela no ter, mesmo quando ele prprio no os tiver.17

    Acreditando que oprncipe teria recebido da fada um carter igual ao da rainha, orei j se lamentava pelo futuro de seu povo.Afalta das qualidades necessrias a um bom monarca faria malograr todas as medidas tomadas pelo sucessor de Fnix, mesmo as mais bem-intencionadas dentre elas.Aos sditos caberia apenas se resignar com asituao eaceitar as ordens de seu governante legtimo, pois as leis da sucesso ao trono deveriam ser respeitadas, ainda que s custas da felicidade do reino.Como Rousseau havia observado no Contrato Social, sempre h aqueles que defendem incondicionalmente o sagrado direito dos monarcas de agir como bem lhes apetecer. De acordo com o druida, no

    17 ROUSSEAU, J.-J.La reine fantasque. Disponvel em: Acesso em: 05 ago. 2001.

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    faltariam doutores para expor as consequncias nefastas do no cumprimento da tradio epara defender a idia de que

    vale mais que opovo obedea cegamente aos fanticos que o azar pode lhes dar por mestres do que escolher ele mesmo chefes sensatos; que ainda que se interditasse a um louco o governo de seus prprios bens, bom deixar-lhe a suprema disposio de nossos bens e vidas; que o mais insensato dos homens ainda prefervel mais sbia das mulheres; e que se o macho ou o primognito fosse um macaco ou um lobo, seria necessrio, em boa poltica, que uma herona ou um anjo que nasceu depois obedecesse s vontades dele.18

    Recorrendo ironia de um modo que lembra muito a acidez do estilo voltailiano, Rousseau expe assim a irracionalidade presente em uma importante questo poltica.Ao invs de criar uma fonnade governo que sirvaem primeiro lugar ao bem pblico ena qual os interesses particularescurvem-se diante das necessidades coletivas, os homens preferem muitas vezes submeter-se ao arbtrio de um insano coroado pelafora dos costumes.

    Contudo, aquilo que parecia uma desgraa mostrou ser apenas um equvoco,pois afada na verdade havia concedido ao menino uma personalidade semelhante de seu pai. Dessa forma, oprncipe Razo transformou-se, desde a infncia, num modelo de governante naperspectiva rousseauniana. Descrevendo aboacondutado jovem ao assumir o Estado no lugar de seu pai, o filsofo sintetizou as virtudes que caracterizaram seu governo, ou sej a, aprudncia, abusca da paz e a eficincia administrativa:

    Alado ao trono aps a morte do rei, Razo fez muito de bem e pouco barulho. Procurando antes cumprir seus deveres que dquirir reputao, ele no fez guerra aos estrangeiros nem violncia a seus sditos, e recebeu mais bendizeres do que elogios. Todos os projetos feitos no reinado precedente foram executados no dele, e ao passar da dominao do pai para a do filho, o povo foi duas vezes feliz crendo no ter mudado de senhor.19

    oreinado de Razo teria sido to excelente quanto ode seu pai, e to concorde com o dele, que se constituiu numa notvel exceo em se tratando de um regime monrquico.Rousseau escreveu no Contrato social que apassagem do governo de um

    18 ROUSSEAU']'-J.La reinefantasque. Disponvel em: Acesso em: 05 ago. 2001.

    19 ROUSSEAU,].-J. La reinefantasque. Disponvel em: < http://un2sg4.unige.ch!athenalrousseau/jj r_fant.rti> Acesso em: 05 ago. 2001.

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    rei para o de outro sempre trazia srios problemas de continuidade, pois o Estado monrquico, "segundo ocarter do prncipe que reina ou das pessoas que reinam por ele, no pode manter muito tempo um objetivo fixo nem uma conduta conseqente", jque "a mxima comum a todos os ministros e a quase todos os reis a de tomar em todos os assuntos posio contrria de seu predecessor" .20 Fnix e Razo no apenas representariam,enfim, a realeza ideal, como tambm a negao dos casos concretos a partir dos quais Rousseau construiu sua teoria.

    Poder-se-ia, com bons argumentos, objetar dizendo que, por se tratar de um conto de fadas, aestria desses dois monarcas exemplares no serviria para expor as verdadeiras idias de Rousseau sobre a realeza. Contudo, as coisas no so assim to simples. A imagem da realeza apresentada emA Rainha Fantasiosa , certamente, a descrio de uma monarquia ideal, mas oEstado democrtico proposto no Contrato Social tambm no a descrio de uma repblica ideal? Sabe-se muito bem que a monarquia era o regime poltico predominante na Europasetecentista, e a preocupao do filsofo suo em mostrar, por diversos meios, como ela poderia ser aperfeioada no uma vertente secundria - ou utpica - de seu pensamento. Adespeito de sua apaixonada defesa da democracia, Rousseau era capaz de demonstrar um considervel realismo poltico, e conhecia os limites eos perigos das propostas revolucionrias. Em suas Consideraes sobre ogoverno da Polnia, por exemplo, oautor reconhece que era impossvel aum Estado grande como aPolnia dispensar um chefe supremo vi talcio. Oque os poloneses deveriam fazer seria reformar amonarquia de modo que orei deixasse de ser oinimigo nato da nao, pois esse mal, escreve-lhes Rousseau, "no de tal maneira inerente aesse posto aponto de no podermos dele isol-lo ou, ao menos, diminu-lo consideravelmente. No h tentao sem esperana. Tornai ausurpao impossvel avossos reis eeliminarlhes-eis afantasia; eeles colocaro, em bem vos governar evos defender, todos os esforos que fazem atualmente para sujeitar-nos" .21 Oprimeiro passo rumo a tal objetivo tinha de ser alimitao das atribuies do monarca - ele no poderia nomear, aseu bel prazer, todos os membros do governo - e de seus recursos financeiros22 - oEstado pagaria suas despesas. Alm disso, a coroa, que na Polnia ainda era eletiva, jamais poderia ser transmitida de pai para filho; caso contrrio, a liberdade desejada pelos sditos seria 20 RoussEAU, ].-]. Do contrato social. pp. 97-8. 21 RoussEAu,j .-]. Consideraes sobre ogoverno da Polnia esua reformaprojetada. nado Luiz Roberto Salinas

    Fortes. So Paulo: Brasiliense: 1982. p. 59. 22 Na monarquia francesa, assim como em outros reinos europeus,no havia uma separao clara entre oerrio

    pblico eos bens da farnnia real. Aesse respeito ver ELIAS, NORBERT.A sociedade de corte. Trad. Ana Maria Alves. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995.

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    banida para sempre. Para Rousseau, aautoridade absoluta dos reis tinha de ser combatida, ou ento a

    liberdade dos povos jamais seria garantida. Ele colocava o primado da lei acima da autoridade real, exigindo aquilo que mais tarde Weber chamou de dominao legal.23 A modernizao da realeza passava, ento, pela reformulao das bases edo alcance de seu poder, condio essencial para que os reis fossem mais eficazes na conduo do Estado, o que exigia que a estrutura administrativa como um todo passasse por reformas que tornariam seu funcionamento mais racional.

    Ora, em sua crtica ao regime monrquico, Rousseau falou dos "pequenos trapalhes" edos "pequenos intrigantes" que usavam seus "pequenos talentos" como cortesos para alcanar grandes postos no governo, apesar de sua inpcia pessoal. Esses comentrios remetem dinmica da sociedade de corte no interior do Antigo Regime. Nela, as cerimnias da etiqueta, por mais opressivas que pudessem ser para seus executores, eram continuamente reiteradas porque estavam no cerne da ordenao social:como cada um executava uma determinada ao em decorrncia de seu status, qualquer modificao nos papis significava possivelmente ofim de um privilgio e, com isto, adiminuio do prestgio de um nobre frente aos demais.Norbert Elias nos diz que "a verdadeira posio de um indivduo na trama da sociedade de corte era sempre determinada por estes dois fatores em simultneo: a posio oficial e a posio de poder efetivo. Osegundo fator era, em ltima anlise, o mais importante" .24 Su jeitos ao poder da opinio de seus pares, os nobres tinham de agir com desenvoltura na corte para serem reconhecidos como realmente dignos de seu ttulo, representando com maestria os papis referentes s suas posies; caso contrrio seriam superados na competio pelo prestgio prprio de sua configurao social. Considerando opoder do rei para nomear,de acordo com sua prpria vontade, as pessoas que ocupavam os cargos no Estado, em funes como os ministrios, os governos provinciais eas intendncias, os cortesos utilizavam seu prestgio junto aele para obter tais posies privilegiadas, as quais traziam grandes possibilidades de enriquecimento. O que Rousseau assinalou com veemncia foi ofato das escolhas do monarca nem sempre se basearem nas capacidades dos indivduos para desempenhar as atividades necessrias a seu cargo, mas sim justamente nas intrincadas relaes de poder que se davam na corte.

    No bastasse esse problema, o filsofo tambm via na venalidade dos cargos 2l Segundo MAx WEBER, na dominao legal, "obedece-se no pessoa em virtude de seu direito prprio, mas

    regra estatuda, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Tambm quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: 'lei' ou 'regulamento' de uma normaforma/mente abstrata". WEBER, MAX. Os trs tipos puros de dominao legtima. In: --o Sociologia. 6. ed. Trad. Amlia Cohn e Gabriel Cohn. So Paulo:tica, 1997. pp. 128-141. (Grandes Cientistas Sociais) . p. 129.

    24 ELIAS, NORBERT. Asociedade de corte. p. 65.

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    pblicos um outro mal aser extirpado, Para aumentar sua receita, amonarquia francesa criara a chamada noblesse de robe, uma aristocracia cuja posio advinha de ter comprado odireito de exercer uma determinada funo na burocracia estatal que trazia consigo um ttulo de nobreza, Segundo Perry Anderson, "O sistema nasceu no sculo XVI etomou-se um esteio financeiro fundamental dos Estados absolutistas durante osculo XVII. Oseu carter flagrantemente parasitrio evidente: em situaes extremas (a Frana durante adcada de 1630, por exemplo), poderia custar ao oramento real em desembolsos (via oarrendamento da coleta ou as isenes) omesmo que fornecia em remuneraes",25 Nem todos os cargos comprados levavam ao enobrecimento, mas as vantagens que seu exerccio propiciava geralmente valiam oinvestimento, Tocqueville diz que "os burgueses procuravam essas funes com um ardor sem par, Logo que um deles tinha um pequeno capital, em vez de empreg-lo num negcio, utilizava-o imediatamente para comprar um emprego pblico" ,26 Alm de influir negativamente na economia do pas desestimulando as aplicaes financeiras em atividades produtivas - algo apontado por Tocqueville -, tal costume levava tambm aoutra dificuldade: ele impedia que muitas pessoas capazes desempenhassem servios teis ao governo, ao mesmo tempo em que abria as portas do mesmo incompetncia ecorrupo,

    No pensamento de Rousseau, a condenao venalidade dos cargos era uma decorrncia lgica de sua teoria poltica, No Discurso sobre aorigem eosfundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754, o autor traou as origens provveis do Estado apresentando-as como uma conseqncia do surgimento da desigualdade econmicaentre os homens, Asubmisso dos pobres aos ricos constitua aessncia de um contrato social perverso cujos termos era preciso reverter para tomar possvel a liberdade, Assim, escreve Rousseau no Discurso sobre a economia poltica, de 1755, uma das tarefas primordiais do governo deveria residir no abrandamento da desigualdade das riquezas, no apenas evitando que as fortunas pudessem ser aumentadas, como tambm impedindo oalastramento da pobreza entre os cidados, Isto porque a riqueza de poucos e a pobreza de muitos so, nas palavras do filsofo, "as causas principais da opulncia e da misria, da substituio do interesse pblico pelo particular, da raiva mtua dos cidados, de sua indiferena pela causa comum, da corrupo do povo e do enfraquecimento de todos os esforos do governo" ,27 Como adesigualdade econmica foi

    21 ANDERSON, PERRY, Linhagens do Estado absolutista, Trad. Joo R. M, Filho. So Paulo: Brasiliense, 1985. p. 33. 26 TOCQUEVJ!.LE, ALEXlS DE. OAntigo Regime e a Revoluo. 2. ed. Trad. Yvonne Jean. Braslia: Editora UnB, 1982. p. 114.

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    acausa principal do nascimento do Estado, somente esta instituio teria os meios para combater os males que sua existncia perpetuou na sociedade. Tendo em mente apoca em que vivia e o desenvolvimento que nela alcanaram as artes eos ofcios, bem como a relao entre tais atividades e o papel desempenhado pelo governo, Rousseau pintou um quadro dos problemas que os governantes precisavam visualizar com clareza a fim de solucion-los:

    os homens desigualmente distribudos pelo territrio e amontoados num lugar enquanto os outros ficam despovoados; as artes da diverso e de pouca habilidade so mantidas s expensas dos trabalhos teis e penosos; a agricultura sacrificada pelo comrcio; o publicano tornando-se necessrio pela m administrao das finanas do Estado; enfim, a venalidade levada a tal excesso que a considerao se mantm pelas armas e as prprias virtudes so vendidas por dinheiro. Conseqentemente, esses so males que, quando so percebidos, dificilmente so sanados, mas que uma administrao sbia deve prevenir para manter, junto com os bons costumes, o respeito pelas leis, o amor ptria e o vigor da vontade geral. 28

    Para Rousseau, servir ao Estado devia ser omesmo que realizar uma tarefa cvica motivada pelo patriotismo, e a venalidade dos cargos era um grave sintoma de degenerao poltica. Desse modo, sendo o servio pblico ao mesmo tempo um dever patritico e um direito cvico, Rousseau acreditava que, para obem da nao, este jamais poderia ser um privilgio restrito apoucos. "Ento", escreveu ofilsofo, "que aptJ.ia se mostre amecomum de todos os cidados, que as vantagens que usufruem em seu pas a tomem amada, que o governo os deixe participarda administrao pblicaparaperceberem que esto em casaeque as leis sejam aseus olhos garantias de sua liberdade".29 Em umademocracia, odesejo do autor seriafcil de realizar. Entretanto, como aparticipao mais ampla do povo no governo seria possvel numa poca em que o regime monrquico predominava? Confrontado com essa questo prtica no tocante Polnia, Rousseau teve de lidar com uma situao concreta de reforma administrativa, e o resultado de suas reflexes foi um "projeto para submeter auma marchagradual todos os membros do governo".

    De acordo com tal projeto, os membros ativos da Repblica -leia-se o Estado polons - seriam divididos em trs classes devidamente identificadas por distintivos especiais. Para entrar na primeiradelas, os jovens passariam por um perodo de experincia 17 ROUSSF.AU, J.-J. Discurso sobre a economia polflica e Do contraIo social. Trad. Maria Constana P. Pissara.

    Petrpolis:Vozes, 1995. p. 38-39. 28 Id. ib., p. 39. 29 Id. Ib., p. 38.

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    de trs anos em funes como ade advogado, assessor, juiz e administrador. Aps esse perodo, um exame severo daconduta desses funcionrios por parte da dietina30 provincial decidiriapela continuidade de suas carreiras no governo. Os bem-sucedidos, que receberiam ottulo de Servidores do Estado, poderiam ento aspirar segunda classe, aqual somente admitiria os indivduos que houvessem sido eleitos nncios na dieta por trs vezes e recebido aaprovao de seus constituintes. Os membros do segundo nvel seriam chamados de Cidados de escolha, etodos os componentes do senado precisariam passar por ele. A terceira emais elevada das classes, enfim, abrangeria os que tivessem recebido ocargo de senador-deputado por trs vezes, sendo avaliado com mritos por seus pares. Caberia aesses distintos cidados os ttulos de grande castelo epalatino, este ltimo destinado aos que ocupariam, em carter vitalcio, os postos mais eminentes da Repblica, podendo inclusive chegar ao trono. Em todos os nveis,como se pode ver, Rousseau defende anecessidade da aprovao da "voz pblica", oque exigiria a transparncia dos atos dos funcionrios no exerccio de suas funes. Somente acompetncia e a virtude tinham de ser levadas em conta na elevao de um indivduo dentro da hierarquia estatal.

    Mas, equanto ao restante da populao? Como inclU-lo na "marcha" junto com os nobres eos magistrados? Rousseau prope que essa mudana seja feita gradualmente, sem uma revoluo sensvel, de forma que

    a parte mais numerosa da nao se ligue de afeio ptria e mesmo ao governo. Isso seria obtido por dois meios: oprimeiro, uma exata observao da justia, de sorte que o servo e o plebeu, no tendo nunca que temer virem a ser injustamente humilhados pelo nobre, curem-se da averso que devem ter naturalmente por ele. Isto pede uma grande reforma nos tribunais e um cuidado particular na formao do corpo dos advogados. O segundo meio, sem o qual o primeiro no nada, abrir uma porta aos servos para adquirir a liberdade e aos burgueses para adquirir a nobrezaY

    Aexecuo do segundo meio seriauma atribuio de assemblias ffipeCialmente reunidas para avaliar acondutade servos eburgueses afim de decidir sobre omrito de suaelevao de status.Assim como os funcionrios, opovo comum tambm teria de se submeter aprovao da "voz pblica". Rousseau chega aprever um futuro distante em que aconsecuo de seu

    lO Os nobres poloneses reuniam-se periodicamente nas chamadas dietinas, ou dietas de palatinado,para nelas eleger os nncios encarregados de represent-los na dieta geral. Esta se reunia acada dois anos eera composta do senado e dos representantes da nobreza; ela partilhava com o rei opoder legislativo.

    I I RoussEAU, J.-J. Consideraes sobre o governo da Polnia e sua reforma projetada. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. So Paulo: Brasiliense: 1982. p. 94.

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    projeto daria origem acomunas livres na Polnia, franqueando aos plebeus odireito de enviar deputados s dietinas ede participardo exrcito paradefender oEstado. Os burgueses,por sua vez,concorreriam cadavez mais para aprosperidade da nao,pois seus esforos poderiam ser recompensados com diversas honrarias edistines. Se suas sugestes fossem colocadas em prticacom cautelaeseguindo as lies da experincia, conclui ofilsofo, "chegat~se-iaenfim avivificartodas as partes da Polniae a lig-las de maneira ano fazer mais do que um mesmo corpo, cujo vigor eas foras seriam ao menos duplicadas com relao quilo que podem ser hoje: e isto com ainestimvel vantagem de ter evitado toda mudana viva ebrusca e o perigo dasrevolues".32

    Oplano traado por Rousseau certamente obedecia aespecificidades prprias da realidade polonesa, mas demonstra que ofilsofo pensou seriamente em como tornar as monarquias em geral mais prximas de seu ideal de Estado. Para tanto, acoeso nacional precisava ser estabelecida no sentido de unir os grupos diversos que compunham os povos dos Antigos Regimes - nobres, burgueses ecamponeses - no objetivo comum de servir ptria. Com opassar do tempo, as desigualdades que os opunham acabariam sendo, se no abolidas, ao menos minimizadas, e a vontade geral estaria cada vez mais prxima de ser ofundamento do corpo poltico.Naquela "voz pblica" que tinha por meta avaliar as condutas de todos os membros do Estado pode-se ver ogerme da vontade geral, etambm uma extenso do desejo rousseauniano de transparncia na poltica, de impedir que as aes individuais pudessem passar despercebidas aos olhos da comunidade civil, um anseio cuja relevncia justifica-se pelo papel pessoal desempenhado na histria por aqueles indivduos especiais chamados monarcas. Afinal de contas, em uma poca na qual os reis usufruam um poder crucial sobre odestino das naes,era preciso encontrar os meios de impedir que os caprichos eas extravagncias de um governante fantasioso perturbassem a vida dos sditos, bem como de garantir que a razo jamais estivesse distante dos tronos do mundo.

    Recebido em outubro de 2004.

    32 Id. Ib., pp. 97-8. A advertncia de Rousseau contra operigo das revolues vai de encontro s interpretaes de seu pensamento poltico que oconsideram um precursor do movimento revolucionrio que abalou aFrana no fmal do sculo XVIII. Bento Prado Jr. adverte os analistas da obra rousseauniana a respeito das leituras que, a posteri01i, procuram encontrar nela um contedo revolucionrio que oprprio filsofo suo no teria percebido. Mencionando os usos feitos por Rousseau da palavra revoluo em seus escritos,PradoJr. afirma que, em se tratando de poltica,ela vem sempre carregada negativamente. PRADOJR,Booo.Prefcio. In: RouSSEAlJ,].-]. Discurso sobre aeconomiapoltica eDo contraio social. Trad. Maria Constana P. Pissara Petrpolis:VO'lR:S, 1995. p. 7-18.