Monogamia - Adam Phillips.pdf

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  • Dois formam um par. Para um casal preciso trs.

    O que mantm as pessoas juntas? Por que elas devemcontinuar juntas? Quase todas as controvrsias correntes hojeem dia em torno dos valores da famlia so, na verdade,discusses sobre a monogamia. Neste livro, constitudo de 121aforismos, Adam Phillips investiga as razes do sucesso damonogamia, bem como a dificuldade que temos em pensar noassunto.

    Pode ser confortador, mas na verdade exigir muito e beira a crueldade pretender de uma nica outra pessoa quesomente ela possa nos dar o que desejamos. E todo mundo sabeque, na maioria das vezes, por muito que possamos amar nosso(a) parceiro (a), somos capazes de amar e desejar mais de umapessoa ao mesmo tempo.

    Mas pelo menos em matria de sexo, partilhar comterceiros algo que contraria nossas mais enraizadastendncias. A monogamia de tal modo aceita como umaverdade inquestionvel no que se refere estrutura familiar quenos sentimos pouco vontade para critic-la. Adam Phillipssugere, no entanto, que certamente vale a pena faz-lo.

    Adam Phillips diretor depsicoterapia infantil do WolwertonGardens Child e do FamilyConsultation Centre, em Londres. autor, entre outros, de Winnicott,On flirtation, Terrors and experts,

    e Beijo, ccegas e tdio, esteultimo lanado no Brasil pelaCompanhia das Letras em 1996.

  • Texto da Contra capa

    Penetrante, espirituoso e questionador, Phillips irradia umcharme que absolutamente contagioso.

    Sunday Times

    Notvel. Como Tchekhov, Phillips to bom escritor quantomdico, e o fascnio que nele despertam as sutilezas docomportamento humano o tornam um bom contador dehistrias.

    Guardian

    Seu dom especial est na maneira como expressa todasaquelas coisas que sabamos instintivamente mas que noencontrvamos palavras para dizer.

    OBSERVER

  • Se voc engole uma mentira, tem que engolir tudo o

    que vem com ela.

    Emerson, English traits

  • PREFCIO

    As controvrsias correntes hoje em dia sobre os valoresda famlia sobre estatsticas de casamentos e divrcios so na verdade discusses sobre a monogamia. Sobre o quemantm as pessoas juntas e a razo pela qual deveriampermanecer juntas. Sobre como as pessoas decidem quais osprazeres que importam. Para que se formam os casais se nofor por prazer? E se o prazer no interessa, ento o que queinteressa? Este, poder-se-ia dizer, o problema da monogamia.

    Sem dvida, falar de monogamia praticamente abrangetudo o que de fato interessa. Honestidade, assassinato, afeto,segurana, escolha, vingana, desejo, lealdade, mentiras, risco,dever, filhos, emoo, recriminao, amor, promessas,preocupao, curiosidade, cimes, direitos, culpa, xtase,princpios, castigo, dinheiro, confiana, inveja, paz, solido,lar, humilhao, respeito, concesso, regras, continuidade,sigilo, chance, compreenso, traio, intimidade, consolao,amizade, aparncias, suicdio e, claro, a famlia. A monogamiano simplesmente sobre essas coisas, entre outras; masquando falamos de monogamia no h como deixar de falardessas coisas tambm. A monogamia um ponto-chave deconexes morais, uma espcie de fechadura por onde podemosespionar a trama de nossos interesses.

    Para alguns de ns de quem se pode dizer, talvez, quederam sorte na vida ou que, pelo menos, tm dinheiro amonogamia a nica questo filosfica sria. Este livroenvolve, portanto, uma investigao em torno da palavra ns.

  • 1Nem todo mundo acredita na monogamia, mas todos

    vivem como se acreditassem. Todos tm conscincia de estarmentindo ou querendo dizer a verdade quando esto em jogo alealdade ou a fidelidade. Todos se consideram a si mesmostraidores ou trados. Todos sentem cimes ou se sentemculpados, e sofrem a angstia de suas preferncias. E os poucosfelizardos que aparentemente nunca sofrem de cimes sexuaisesto sempre ou se mostrando intrigados com isso ou sevangloriando do privilgio. Ningum jamais foi excludo dasensao de ter sido deixado de fora. E todos vivem com aobsesso daquilo de que foram excludos. Noutras palavras:acreditar na monogamia no diferente de acreditar em Deus.

    2Uma vez conhecidas as regras de um jogo, podemos

    prestar ateno no nosso desempenho, no precisamos nospreocupar com o jogo. Pensamos em algumas coisas comocertas, fundamentadas ou indiscutveis de antemo, de tal modoque tenhamos que encarar outras como sendo de uma espciediferente.

    A infidelidade o problema que porque assumimos amonogamia como algo indiscutvel; como se fosse a norma.Talvez devssemos pensar na infidelidade como o que noprecisa se justificar, assumi-la com uma naturalidade semmortificaes. Ento estaramos em condies de refletir sobrea monogamia.

  • 3Profundamente empenhados em gozar a vida, os

    promscuos, da mesma forma que os mongamos, soidealistas. A esperana os perturba, sempre impelidos por umanecessidade de reafirmao, impressionados com seus prazeres.Deveramos ir com calma antes de fixar os promscuos e osmongamos como contrastantes entre si. Vistos do melhorngulo, ambos se constituem nos inimigos do ceticismo. Oscticos que so desalentadores, porque j partem para suasexperincias convencidos de que se decepcionaro.

    4A infidelidade tem tanto a ver com o drama de contar a

    verdade como com o drama da sexualidade. Somente por causada sexualidade que a verdade entra em cogitao, somentepor causa dela que a honestidade e o afeto entram emconflito.

    A mentira bem-sucedida cria uma liberdade assustadora.Mostra-nos que possvel conseguir que ningum saiba o queestamos fazendo. A mentira esfarrapada o desejo de serdescoberto revela o medo que sentimos do que somoscapazes de fazer com as palavras. Mentir, digamos assim, no tanto uma maneira de manter em aberto nossas opes, mas dedescobrir quais so elas. O medo da infidelidade o medo dalinguagem.

  • 5Viver em casal uma arte performtica. Mas como

    que se aprende o que deve ser feito juntos? Em que espcie deroteiro, de partitura, esto as dicas de como ser, eu insisto, doiscorpos em pblico, atuando coerentemente juntos, cada qualcomo guardio da vergonha do outro? Onde buscar indicaopara os passos a seguir?

    aqui que os casais charmosos podem nos infundirconfiana, podem at funcionar como inspiradores. Provocados da mesma maneira que eles prprios muitas vezes o so por sua beleza, podemos conspirar, em suma, para serdesavergonhados como eles. Para no ter nada a esconder. Ocharme, a aparncia atraente, sempre foram, afinal de contas,nosso melhor antidepressivo cultural. o que no deixa ascoisas pararem de rolar.

    6Nossa sobrevivncia bem no incio de nossa vida nos

    envolve em algo assim como a monogamia. Nosso percurso decrescimento nos envolve em algo assim como a infidelidade(ns desafiamos nossos pais, ns os tramos, ns osdecepcionamos). Por isso, quando pensamos na monogamia,pensamos como se ainda fssemos crianas, no como adultos.No sabemos o que os adultos pensam sobre a monogamia.

  • 7Fazemos um esforo danado para incutir certas verses

    de ns mesmos na mente das outras pessoas; e, claro, paraafastar delas aquelas menos atraentes. No entanto, todo mundoque ficamos conhecendo nos inventa, seja isso do nosso agradoou no. Na verdade, no h nada que nos convena tanto daexistncia das outras pessoas, do quanto elas so diferentes dens, como aquilo que so capazes de fazer com o que dizemospara elas. Nossas histrias chegam a se tornar s vezesirreconhecveis, medida que passam de boca em boca.

    Sentimos que houve uma deturpao cada vez quesimplesmente nos confrontamos com uma verso de nsmesmos uma inveno com a qual no somos capazes deconcordar. Mas na verdade o fato de os outros nos inventaremnos causa medo, em razo da pluralidade de pessoas que derepente parecemos ser. E entramos num verdadeiro frenesi dequerer baixar esse nmero, de fixar a verso autntica dahistria que circula a respeito de quem somos. Isso, talvez maisdo que qualquer outra coisa, o que nos atira nos braos de umnico parceiro especial. A monogamia uma forma dereduzirmos ao mnimo as verses de ns mesmos. E, claro,uma forma de nos convencermos de que certas verses somais verdadeiras do que outras de que so de fato especiais.

  • 8A nica tradio que podemos experimentar o

    momento presente. E, no entanto, passamos a maior parte denossa vida esperando ansiosamente que iremos mudar planejando coisas e fazendo tudo o que possvel paraimpedir que tal acontea. Isso explica que s relaxemosrealmente, que s estejamos de fato vontade, em perodos detransio, quando conseguimos deixar que o tempo faa seutrabalho.

    Infidelidade a outra palavra que temos para designarmudana, a nica forma de mudana que conhecemos, e que um mudar de crena. Cada um de ns viceja s custas dadeslealdade para consigo prprio.

    9As pessoas as quais para nos e mais difcil ser infiis

    so os nossos pais. E isso que torna a monogamia nossacapacidade de encontrar um outro par uma conquista toextraordinria. Ou apenas uma repetio do de sempre.

    10Como um im que junta nossos vcios e virtudes, a

    monogamia faz das maiores abstraes uma realidade, tal comoo fazia noutros tempos a religio. A f, a esperana, aconfiana, a moralidade todas estas so hoje questes daesfera domstica. Na verdade, contrastamos a monogamia nocom a bigamia ou com a poligamia, mas com a infidelidade,

  • porque se trata de nossa religio secular. Deus pode termorrido, mas o casal fiel continuar de p.

    11Se o proibido que excitante se o desejo

    fundamentalmente transgressivo, ento os mongamos seacham na mesma situao dos muito ricos. Tm que descobrirsua pobreza. Tm que passar fome o suficiente. Noutraspalavras, tm que trabalhar, tm que se esforar, quando maisno seja, para tornar suficientemente ilcito o que se achasempre disponvel, a fim de que passe a ser interessante.

    Infelizmente, mais fcil criar obstculos falsos simular o proibido do que falsificar o desejo.

    12Envelhecer juntos ou rejuvenescer juntos? H sempre

    algo a que resistir, algo a desafiar.

    13A pessoa inevitavelmente fiel ao cadver que cresce

    dentro de si. isso que torna a infidelidade um enigma toirresistvel, e pode levar a monogamia a se assemelhar morte.

  • 14

    Somos os nicos animais que pensamos em ns mesmoscomo sendo animais. E, no entanto, os hbitos de acasalamentodos cisnes, os rituais de namoro das hienas, o amplo conceitode famlia das formigas no nos dizem nada sobre nossaprpria vida ertica; nada que nos possa servir.

    A monogamia simplesmente um dos mistrios danatureza. Nada na natureza mais natural do que qualqueroutra coisa.

    15Podemos crer que partilhar seja uma virtude podemos

    ensinar isso a nossos filhos , mas parecemos no acreditarem partilhar aquilo que mais valorizamos na vida: nossosparceiros sexuais. Se realmente gostssemos de algum, onatural no seria dar a esse algum o que possumos de melhor,nosso parceiro? Seria um alvio deixarmos de nos embaraarcom isso.

    Talvez o valor da amizade esteja a, talvez seja essa adiferena entre amigos e amantes. Os amigos podem partilhar,os amantes precisam agir de modo diverso. Os amantes noousam ser virtuosos demais.

    16Gostaramos de poder contar com indicaes.

    Gostaramos que houvesse algo que pudssemos reconhecer um grupo de pessoas, todas elas obviamente agindo da mesmamaneira , que pudssemos chamar de monogamia. Sentimos

  • tanta falta de um encorajamento, precisamos tanto, para viver,do precedente criado pela vida das outras pessoas precisamos tanto viver como que por citao que acabamosesquecendo o quanto os casais so diferentes uns dos outros. Ainfidelidade tem vezes que d uns solavancos na nossamemria.

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    impossvel prometer infidelidade. Voc sendo infiel,sua palavra est mantida; no sendo, ela passa a no valer.

    Pelo menos com a monogamia sua palavra pode ser o seuvnculo. A monogamia permite a voc cumprir sua promessa,mas nem sempre guardar o seu segredo.

    18No comeo de um caso amoroso a gente pode perguntar

    dependendo do tipo de pessoa que a gente , se algum queprefere o futuro ou algum que prefere o passado: Em que que eu estou entrando?, ou: De que que eu estou saindo? Osenso comum nos diz que cada entrada tambm uma sada.

    O monogamista compulsivo nunca precisa fazer essasperguntas. Para isso que serve sua compulso, para convenc-lo de que o futuro o mesmo que o passado. Ludibriando otempo e a mudana, ele constri um monumento decontinuidade entre as runas promscuas. Valorizando umarelao pelo fato de ela durar, ele vive como se o tempoprovasse alguma coisa.

  • 19Na vida privada a palavra ns uma pretenso, um

    exagero da palavra eu. Ns o eu como seria de se desejar, oeu como uma multiplicao, o eu como incluindo algum mais.A situao de casal pode ser to decepcionante justamenteporque o outro na verdade nunca chega a se juntar. Ou melhor:os dois desejam exatamente o mesmo, mas cada um de umponto de vista muito diferente.

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    Se a sexualidade contempla prazeres diferentes dos daprocriao, ento que que mantm as pessoas juntas? Que que as faz ficar?

    Dito de outra maneira invertendo a questo: que vma ser os filhos, se permanecemos juntos por causa deles? Que que lhes estamos pedindo que sejam?

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    Um casal uma conspirao em busca de um crime. Osexo muitas vezes o mais perto que conseguem chegar de seuobjetivo.

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    Pessoas que acreditam no valor do sofrimento, pessoasque promovem a dor, seja como uma virtude, seja como uma

  • necessidade, invariavelmente nos levam a pensar sesecretamente no descobriram um meio de sentir prazer dessaforma. Noutras palavras, no h como deixarmos de ficar emdvida se elas so artistas, ou santos ou at mesmo realistas.Por isso nunca temos muita certeza se a monogamia areligio ou a arte dos realistas ou dos desiludidos.

    Difcil dizer, porque os desiludidos sempre se consideramrealistas, e os realistas sempre acham que esto falando averdade.

    23A questo no saber no que acreditamos, a questo

    que acreditamos. A questo no saber a quem somos fiis, aquesto que somos fiis.

    A fidelidade no deveria ser sempre encarada como umaquesto pessoal.

    24Descrever um casal escrever uma autobiografia. Uma

    vez que comeamos nossa vida num casal, e nascemos de umcasal, quando falamos de casais estamos contando a histria denossa vida. Podemos tentar fazer o casal o mais abstratopossvel porque um e outro esto por demais chegados nossaexperincia de casa. Ou melhor, porque so a idia de casa;porque outrora no havia outro lugar onde morar.

  • 25Exagerar , no primeiro momento, uma forma de se

    fazer ser levado a srio; e depois a pessoa passa a no sertomada em considerao sob a alegao de que exagera. Issosignifica que o que confiavelmente infiel sofre de uma crisede invisibilidade.

    26Se eu for fiel, ela ser. Mas se ela no for...Se eu for infiel, ele descobrir. Mas se no descobrir...Se eu no conseguir suportar o cime, serei seu escravo e

    seu amo. Mas se conseguir, serei seu...Se consigo parar de me sentir culpado, posso fazer o que

    quero. Mas se eu parar de me sentir culpado, vou querer...Se consigo guardar um segredo, sou livre. Mas se tenho

    necessidade de guardar um segredo, sou...Se tiver de escolher, perderei alguma coisa. Mas se no

    tiver de escolher, eu...Se, mas se, ento...: a ladainha do monogamista.

    27Na melhor das hipteses, a monogamia pode ser o

    desejo de encontrar algum com quem morrer; na pior, umacura para os terrores de estar vivo. Um e outro objetivo seconfundem facilmente.

  • 28H sempre o relacionamento tido como indiscutvel e o

    relacionamento precrio, a rotina consoladora e o riscoexcitante. A linguagem no nos permite confundi-los.Distinguimos segurana e perigo, hbito e paixo, amor eluxria, afeto e desejo, casamento e casos. Nossa confuso temseus limites. Noutras palavras, continuamos a ter corpo e alma.

    29At agora, os promscuos no tem conseguido

    envelhecer com elegncia. Mas isso talvez revele mais sobrenossas idias de dignidade do que sobre aquelas deenvelhecimento.

    30Por que ser que tantas de nossas fantasias sobre

    liberdade pessoal exatamente como as fantasias de que maisnos envergonhamos tm a ver com perder o controle? Queachamos que somos? Os temerrios, os impulsivos, osapaixonados so os heris e as heronas de nossa imaginao;os incontinentes so nossos ideais negativos.

    Seria precipitado pretender que simplesmente nosenvergonhamos de nossa liberdade, que o nosso bomcomportamento nos deixa sempre decepcionados. Que todocompromisso excessivo.

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    A monogamia j vem com a infidelidade embutida nela,nem que seja como mera possibilidade. Isso torna muito difcilescrever sobre a monogamia sem ser ctico ou ingnuo, semmostrar que se est por dentro demais (isto , irnico) ou porfora demais (inocente). Como se a nica maneira possvel dev-la envolvesse, tambm, desmascar-la.

    Escrever sobre a monogamia como escrever sobre asperverses sexuais. sempre uma questo de encontrar o tom.O contedo muitas vezes uma cortina de fumaa. Nodeveramos perguntar, por exemplo, se o autor est com arazo, mas se est sendo amargo. E, se for este o caso, aamargura se volta contra o qu, exatamente? No deveramosperguntar no que a autora acredita, mas o que que ela teme.

    32Se, digamos, voc se permite ser mais como sua me,

    descobrir que diferente dela; se voc se devota a serdiferente de sua me, acabar se transformando nela. Esse oprimeiro princpio da vida em casal. O segundo princpio davida em casal que voc s pode ser como outra pessoa sevoc j for diferente dela.

    33Escolher a monogamia no , evidentemente, escolher

    no desejar ningum a no ser o prprio parceiro; escolherno fazer nada que v contra a prpria idia que se tem demonogamia. Todo mundo flerta com seus (em geralinconscientes) padres de fidelidade. Mas a pessoa s

  • verdadeiramente fiel fidelidade em si mesma, nunca apenas aseu parceiro.1

    Para certas pessoas, danar com algum que no seja oprprio parceiro traio; para outras, ir para a cama que fazdiferena, tudo o mais podendo passar impune. Se notivssemos nossas prprias regras, como poderamos saber seestvamos sendo infiis? Para amar nossos parceiros temos queseguir estritamente as regras.

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    As pessoas tm relacionamentos no porque desejam sesentir seguras embora muitas vezes pensem que sim, masporque querem descobrir em que consiste o perigo. E aqui quea infidelidade pode decepcionar as pessoas.

    35S a criana que se sente segura em algum lugar capaz

    de assumir riscos. Os adultos so menos ousados que ascrianas, porque jamais conseguem se sentir seguros.

    1O autor usa sempre, no original, ones partner, que tanto se podetraduzir por seu parceiro como por sua parceira, partner sendo deuso comum para ambos os sexos, e ones, ao contrrio de his ou her,no especificando se se trata de parceira dele ou parceiro dela. Ainteno do autor, quando usa ones partner, , obviamente, no fazera distino. Quando a distino estiver assinalada, seja por his, sejapor her, a traduo registrar. (N. T.)

  • 36Por que nos impressiona mais a experincia de nos

    apaixonarmos do que aquela de nos desapaixonarmos? Afinalde contas, as duas so dolorosas, as duas so inteiramentedesconcertantes, as duas criam oportunidades.

    Talvez valorizemos a monogamia porque nos permiteexperimentar as duas faces da moeda. Ela inclui odesapaixonar-se como parte do ritual at mesmo o encoraja.

    37H uma diferena entre no fazer algo porque

    acreditamos ser errado e no fazer algo porque tememos serpunidos. Uma das coisas mais espantosas a propsito dainfidelidade o que a torna to moralmente entorpecedora que nosso sentimento de culpa nos pressiona para apagarmosessa diferena. Fazemos vista grossa para tal distino. Astragdias so feitas de esquecimentos assim, desse desejo todesenfreado de agradar.

    38No comeo todo filho um filho nico. O filho no

    possessivo da me, porque j a possui; ele se comporta naverdade, vive como se a posse resultasse de pleno direito.Nossas primeiras intuies, quero dizer, so monogmicas: deprivilgio e de privacidade, de exercer a propriedade e depertencer. A substncia de que ser feita a monogamia.

    Porque todo mundo comea a vida pertencendo a umaoutra pessoa inextricvel fsica e emocionalmente de outrapessoa , o fato de se separar, ou de ter que partilhar, nos

  • deixa em estado de choque. Para ns, o que acontece ento um tudo ou nada; assim, potencialmente sempre fica a sensaode ser nada, advinda de no ser tudo.

    Se comeamos a vida fazendo parte do corpo de outrapessoa, nossa independncia sentida como umdesmembramento. Constituir um casal nos lembra, nosconvence mais uma vez, de que somos tambm uma outrapessoa; de que formamos um todo com ela. Como sabido detodos aqueles que esto apaixonados (ou sofrem a perda de umser amado), o que chamado polidamente de separao naverdade uma mutilao. Crescer significa tornar-se ummembro-fantasma; apaixonar-se significa adquirir um.

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    Se, por um lado, o sexo nos introduziu na famlia, poroutro, ele tambm que nos impele para fora da famlia.Noutras palavras, as pessoas saem de casa quando aquilo queprecisam esconder sua sexualidade , ou tem que serescondido noutro lugar, ou mostrado com mais vantagemnoutro lugar.

    Se voc no tem nada que esconder, no tem lugarnenhum para ir. O que uma das razes pelas quais osmembros de um casal s vezes querem ser inteiramentehonestos um com o outro.

  • 40Todo casamento um encontro s cegas que faz a gente

    ficar pensando em quais so as alternativas para um encontros cegas.

    41A suspeita uma filosofia de esperana. Faz-nos

    acreditar que h algo a ser sabido e que algo que vale a penasaber. Faz-nos acreditar que h algo em vez de nada. Nessesentido, o cime sexual uma forma de otimismo, ainda que oseja s para os filsofos.

    42Parceiro(a), esposo(a), marido, mulher, companheiro(a),

    amsio(a). O problema da monogamia que nuncaconseguimos fixar uma palavra para ela.

    43Ningum indiferente a elogios; mas no h melhor

    maneira de testar um carter do que observar a reao de quemrecebe um elogio. Causam desconfiana aquelas pessoas que semostram ansiosas por ser elogiadas, porque no se trata de algoque deveriam querer, mas de algo que deveriam considerar umasorte receber. Ningum se sente muito vontade quando setrata de reivindicar como plenamente justificvel o desejo dereceber elogios, ou, ainda menos, o talento para se auto-elogiarconhecido como cabotinismo.

  • Mas e se nosso desejo mais forte fosse o de ser elogiado e, por conseqncia, de elogiar , no o de ser amado/oucompreendido, ou desejado, ou punido? Como seria nossavida? Ou melhor: como seriam nossos relacionamentos?Quanto tempo durariam? Que estariam as pessoas fazendojuntas?

    A gente de repente estaria dizendo coisas como estas:nada mais cruel com um parceiro do que ser bom em matriade fidelidade mas ruim nas celebraes e festejos. Ou ento: aspessoas tm casos porque no recebem elogios suficientes doparceiro, ou porque no so elogiadas da maneira comopreferem. Ou: no difcil segurar um relacionamento, mas impossvel celebrar e celebrar e celebrar o tempo inteiro. Oaplauso prolongado acaba tendo um efeito duvidoso.

    44Para o monogamista, pensar numa infidelidade o

    mesmo, secularmente falando, que pensar na vida depois damorte. pensar em algo infinitamente melhor ou infinitamentepior: em algo que a gente faz por merecer, onde entra uma certachantagem, digamos assim. Com certeza, algo a se realizar nofuturo.

    S que o que ningum jamais se atreveu a pensar sobre avida depois da morte que ela poderia ser exatamente igual que estamos levando.

  • 45As regras so maneiras de imaginar o que fazer. Nossos

    ritos pessoais de infidelidade a coreografia de nossos casos so os textos paralelos de nossos casamentos. A culpa, aonos alertar para o que no devemos fazer, nos mostra o quepodemos estar querendo; mostra-nos nosso senso moral, adiferena entre aquilo que queremos e aquilo que queremosquerer. Sem a possibilidade de uma vida dupla no hmoralidade.

    46 impossvel no se comunicar. No h como ser a favor

    ou contra comunicar-se. Apenas, podemos faz-lo de maneirapior ou melhor segundo nossos prprios padres ou ospadres dos outros , mas ningum consegue ficar sem secomunicar.

    Nesse sentido, a monogamia como a comunicao. Eabsurdo ser contra ela tanto quanto defender a sua causa. Pelofato de estarmos sempre sendo sexualmente fiis a algum,toda preferncia uma traio. Estamos sempre praticando amonogamia, ainda que nem sempre seja bvio com quem aestamos praticando.

  • 47Nunca podemos ter absoluta certeza se estamos

    competindo por algo que no existe, ou vencendo umacompetio em que no h mais ningum competindo. Por isso que no casamento nunca podemos saber com certeza absolutaquem est fazendo o outro de bobo. Nada nos derrota tantocomo o sucesso. Ele sempre mais frustrante maisessencialmente irnico do que o fracasso.

    48Se eu acreditar que a liberdade de meus parceiros

    acarreta uma frustrao para mim, ento minha nica liberdadeconsiste em lhes roubar a deles. Eis a folie deux da fidelidade.

    Se eu acreditar que a liberdade de meus parceirosacarreta minha prpria liberdade, ento a idia de permissodesaparece. Eis a folie deux da infidelidade.

    49Nossa vida ertica uma tentativa de chegar a uma

    poltica que boa demais para este mundo. Mas uma polticaque seja boa demais para este mundo uma contradio emtermos. Pelo menos essa a notcia que o mundo est sempremandando algum nos transmitir. O esbaforido mensageiro estsempre chegando, o eterno terceiro.

  • 50Os cimes e a paixo podem ser inseparveis cada

    qual um indcio seguro do outro e, no entanto, os cimes socapazes de durar mais que o desejo. Nossos apetites podem serinstveis, mas o senso de estarmos em nosso direito persiste.Este um legado da infncia: ter [guardar] o bolo para com-locaso se tenha vontade.2

    S que o guardar tem primazia. Sem a certeza da posse oque h apenas a tantalizao com suas solues menos oumais desesperanadas: auto-suficincia, abolio do desejo,medo da paixo, dio ao sexo, ressentimento, uma vida deinsinuaes e acusaes. No entanto, claro, jamais houveposse da qual algum pudesse ter certeza, jamais houve desejoque viesse com garantia. Sempre fomos dependentes dos outrospara o nosso bem-estar, que nunca foi, nunca poderia ser, aprioridade exclusiva deles. O desejo de ser dono de algum ou a crena de que a pessoa o de fato umreconhecimento de que isso impossvel; todos os crimessexuais constituem uma recusa desse reconhecimentofundamental, uma imagem do quanto ele pode ser insuportvel.

    Mas se os cimes so a maneira de eu notar que a outrapessoa no propriedade minha no como uma coisa quefosse minha , ento quer dizer que preciso ser trado para sairdo crculo mgico do meu eu. Da mesma forma que a traionos toma demasiado reais um para o outro, sua impossibilidadenos torna invisveis.

    2Aluso irnica ao provrbio You cannot have your cake and eat it[No se pode ter (guardar) o bolo e com-lo]. (N. T.)

  • 51A monogamia contumaz (praticada em srie, serial

    monogamy) uma questo no tanto de quantidade mas dequalidade; no importa quantas vezes, mas a seqncia em quese sucedem; importante como se sustenta a trama. Saber quetipo de pessoa parece estar contando a histria.

    52 Que faramos se no tivssemos a noo da CoisaLegtima, da Coisa Autntica, do relacionamento verdadeiro,para valer? Teramos que comparar cada coisa com tudo omais. A monogamia nos poupa da ao mesmo tempo que,lamentavelmente, nos guarda para a loucura dascomparaes. Ela domestica o infinito.

    53O fora-da-lei, a mulher fatal, o herege, o agente duplo, o

    trocadilho (duplo sentido) sempre a infidelidadechamando para si todas as atenes e emoes. Ela tem ocharme do segredo mal guardado e da mentira que funciona.No se fixa porque da sua maneira de ser, ela acredita emtransitar, em estar noutra parte.

    Sendo assim, que deveramos fazer para tornar amonogamia charmosa? Ou melhor: o que deveramos parar defazer?

  • 54No existe isto que se rotula de competio sexual,

    existe apenas uma contnua aceitao e acomodao diante dofato de que ningum conseguir jamais virar uma outra pessoapara o seu parceiro, o fato de to rapidamente sermos fixadosnum tipo invarivel em nossos relacionamentos. Nossos rivaisatraem meramente por serem outras pessoas. Eles so toindefesos quanto ns, porque s tm uma nica vantagem emcomparao conosco, uma vantagem que sempre decisiva.Eles jamais sero ns.

    55O casal seguro, satisfeito e em que um transmite

    confiana ao outro uma das imagens que entram na formaodo nosso conceito de vida feliz, da mesma forma que o casalem desarmonia representa nosso senso da impossibilidade deser feliz. Como crianas todos presenciamos o drama de nossospais, um drama que pesava sobre tantas coisas.

    Nossa crena no casal em bons casais umamedida de nosso senso de esperana. Afinal, o momento emque fomos concebidos, pelo menos, foi um momentomonogmico, apesar de o nosso primeiro caso de amor ter sidocom algum que era casado.

    56As infidelidades, em sua maioria, no so feias, s

    aparentemente.

  • 57H fundamentalmente dois tipos de escritores, como

    existem dois tipos de monogamistas: os imaculados e osfalveis. Para os imaculados toda frase tem que ser perfeita,toda palavra insubstituvel. Para eles, chegar ao resultado certo o que conta. Para os falveis, errado apenas a palavra paradesignar quem sente necessidade de estar certo. Quer dizer: osfalveis tm a coragem de ser gaches, tortos; nunca estoabsolutamente seguros de qual possa ser a linha certa, erevelam uma confiana supersticiosa em escrever certo porlinhas tortas.

    58O essencial no que diz respeito confiana que

    impossvel fixar a sua essncia. E um risco que se faz passarpor uma promessa. A pergunta a ser feita no : Voc confia emseu parceiro? Mas: Voc sabe o que eles entendem porconfiana? E como faria voc para apurar isso? E o que olevaria a acreditar neles? E o que o faria confiar no queacreditou?

    Confiana uma palavra que exige de nossa parte umexcesso de confiana.

  • 59Em nossa vida ertica no fazemos nada pela metade.

    Assim, dizer de algum que possessivo de seu parceiro nunca muito verdade, porque os parceiros sempre se refletem um nooutro. Por isso ningum jamais realmente se separa deningum. E tambm por isso, claro, as pessoas nunca estopropriamente juntas.

    60A autotraio um melodrama sentimental; uma

    deificao da entidade em ns que nos autocondena, umaadorao da vergonha. Sou sempre fiel a mim mesmo, honestopara comigo mesmo, esse que o problema. A quem maispoderia ser fiel?

    Quando digo que me decepcionei comigo mesmo, estouquerendo me gabar. Sou a nica pessoa a quem no possoevitar de ser fiel. Minha relao sexual comigo mesmo, noutraspalavras, um estudo sobre a monogamia.

    61

    s vezes mais fcil conseguir que outras pessoasfaam o que gostaramos de fazer do que faz-lo ns mesmos.Assim, acontece com freqncia de ser a pessoa no casal queno est tendo um caso quem gostaria de ter e aquela que esttendo ser quem amargamente infeliz.

    Delegamos mais funes em nossa vida ertica do queem qualquer outra rea. Algum tem que se encarregar doservio sujo.

  • 62Em nossa vida ertica o trabalho, o esforo no

    funcionam. Isso motivo de alvio e de terror. Trabalhar, seesforar por um relacionamento no mais possvel do que teruma ereo por desej-la, ou predispor-se para ter tal ou qualsonho. Na verdade, o simples fato de estar trabalhando pelorelacionamento nos torna cientes de que ele desandou, de quej est lhe faltando algo. Em nossa vida ertica, noutraspalavras, tentar sempre tentar com um empenho alm docabvel; precisamos voltar a ser preguiosos no que diz respeitoao esforo, porque as coisas boas s vm quando ele cessa oafeto, a curiosidade, o desejo, a ateno despreocupada.

    Os relacionamentos sexuais so para aqueles que noesto preocupados com trabalhar. No envolvem trabalho.Apenas nos do menos ou mais prazer, menos ou maisesperana.

    63Precisamos descobrir um meio de pensar nas coisas que

    no seja simplesmente um meio de pensar nas alternativas paraelas. Precisamos descobrir o parceiro perfeito.

    64 sempre lisonjeiro quando uma pessoa casada quer ter

    um caso com a gente; embora no haja como deixar de ficarpensando no que exatamente vai ser comparado com o qu. Naverdade, a gente se torna meramente uma comparao, nadamais que uma imitao boa ou m.

    Ofender-se com isso seria o mesmo que acreditar quealgum dia se poderia ser outra coisa.

  • 65Ningum tem o relacionamento que merece. Para uns,

    isso causa de um ressentimento sem fim, para outros fontede um desejo sem fim. E para certas pessoas o mais importante terem descoberto alguma coisa que no tem fim.

    66Monogamia e infidelidade: dois ritos de infertilidade,

    duas formas tradicionais de contracepo nas quais nuncadepositamos uma confiana que fosse total.

    67O melhor esconderijo o mais aconchegante

    aquele em que conseguimos esquecer do que que estamos nosescondendo; ou esquecer de que estamos nos escondendo, purae simplesmente. do segredo que o casal precisa guardar mais freqentemente um do outro , dele que ambos estose escondendo, e ele que esto escondendo. A crena queprecisam conservar de que seus medos so os mesmos.

    Temos casais porque impossvel esconder (-se) sozinho.

    68Precisamos substituir a idia do relacionamento

    autntico pela idia do relacionamento prazeroso.Mas como ento iremos julgar os promscuos, a no ser

    pretendendo que eles no esto autenticamente tendo prazer?

  • 69H sempre algum que me amaria mais, me

    compreenderia melhor, me levaria a sentir-me sexualmentemais desperto (a). Essa a melhor justificativa que temos paraa monogamia e para a infidelidade.

    70O mongamo compulsivo como o libertino

    compulsivo. Para ambos h algo que consideram extravagantedemais. Para ambos h uma catstrofe a ser desviada. Osmongamos se aterrorizam com seus desejos promscuos, oslibertinos com sua dependncia. E tudo uma questo de qualcatstrofe cada um prefere.

    71No que diz respeito ao prazer somos todos msticos.

    Todos nos apavoramos com a perspectiva de sofrer por umexcesso dele. Para algumas pessoas, a melhor soluo para isso a infidelidade; para outras, a monogamia. Cada um escolhe oascetismo que deseja.

    72Por promover uma recomposio do mundo, a vida

    ertica poltica. Toda forma de vida ertica repercute nomundo. Nossas monogamias, ou infidelidades, nossapromiscuidade se passam num mundo de outras pessoas, e noh como evitar que introduzam uma diferena nas maneirascomo elas organizam sua vida. Toda infidelidade cria anecessidade de uma eleio; toda ciso divide o partido.

  • E, no entanto, jamais nos passa pela cabea que tipo depensamentos polticos os monogamistas possam ter; ou comoaqueles chegados a uma infidelidade ou prtica departilhar parceiros gostariam de se organizar como umgrupo. Como que os promscuos tendem a votar? Quandoentramos no captulo da sexualidade parecemos nos esquecerde que a privacidade, nesse domnio, s pode ser exercida empblico.

    73A infidelidade torna fundamental uma vida de absoluta

    monogamia.

    74Mais se tem escrito sobre como os relacionamentos no

    funcionam do que sobre o contrrio. Temos praticamenteapenas a linguagem da banalidade para descrever o casal quefoi feliz, junto um do outro, por muito tempo. Gostaramos queeles tivessem um segredo, gostaramos que tivessem algo quepudessem passar para ns. Ou que pudssemos passar algo paraeles que no fosse a nossa suspeita.

    No sei de nada mais aterrorizante do que a possibilidadede no haver nada de escondido, no caso. Nada maisescandaloso do que um casamento feliz!

    75Os bebs no nos dizem nada sobre a infncia porque

    no sabem falar. E de nosso comeo, claro, como de todos oscomeos, no temos como deduzir nada que seria inevitvel oupredizvel a propsito do nosso meio ou do nosso fim. Amonogamia como nosso ponto de partida e nosso ponto de

  • chegada uma imagem de encomenda, por demais arrumada esimtrica para a baguna em que consiste propriamente a vidade algum.

    Partindo da monogamia, o primeiro conhecimento quenos chega da infidelidade; o conhecimento apenas disso.Temporariamente a me pode ser tudo para um filho, mas ofilho no tem como poder ser tudo para a me. Ele no podealiment-la ou satisfaz-la sexualmente, ou ter conversasadultas com ela. Do ponto de vista que comea a se formar nofilho a me como o pai em breve passar a ser ummodelo de promiscuidade. Ela tem mil coisas para fazer. Elaconhece outras pessoas.

    Os filhos muito pequenos, maneira dos maridos que soescravos de suas mulheres, constituem parceiros de umadevoo extrema a seus pais (gostam de ir com eles aobanheiro). Pai e me, entretanto, libertinos ainda que s notocante a suas responsabilidades, tm outros compromissos. Osfilhos muito pequenos compreendem a monogamia. Os adultosse sentem intimidados por ela, na qual vem at mesmo algoque est alm de sua capacidade de entendimento.

    76Por que a antropologia pelo menos para a maioria

    das pessoas essencialmente o estudo das diferenas noscostumes sexuais de povos diversos? Porque desejamos nossentir convencidos de que o sexo s pode ser feito de mododiverso em contextos diferentes do nosso.

    77Um relacionamento sexual como aprender um script

    sem que nenhum dos dois parceiros o tenha lido. Mas s dpara a pessoa perceber isso quando um dos dois esquece suas

  • falas. E ento, em pnico, a pessoa tenta desesperadamentelembrar algo que na verdade no esqueceu. A pessoa esperaque o parceiro lhe sopre as dicas. Comea a ouvir vozes defora. E traz para a cena um outro personagem.

    78Com relao monogamia, gostaramos de pensar que

    os sexos so diferentes. Que um dos sexos mais moralista,mais convencional, que um dos sexos mais ousado, ou que mais voltado para dentro, ou que mais lascivo, e assim pordiante. Gostaramos de uma diviso de trabalho bem definida,um pouco de fundamentao biolgica que pudesse nosconvencer, um pouco de religio capaz de ensinar melindres erefreamentos; at mesmo, quem sabe, um pouco de psicologiacapaz de seduzir, de nos ofuscar as idias. Qualquer coisa,contanto que tirasse de ns a iniciativa.

    79Os realistas adoram contemporizar, especialmente os

    realistas da vida ertica. a maneira que eles tm de conseguirum pouco de sacrifcio com seu prazer. Ou melhor: deconseguir outro tipo de prazer com seu prazer.

    80Se pudssemos encontrar uma cura para os cimes

    sexuais talvez um produto farmacutico , imaginem s doque no seramos capazes!

    Certamente teramos que repensar nossas idias sobre oprogresso. Ou, pelo menos, nossas idias sobre o progresso nasartes.

  • 81A pessoa pode ser ocasionalmente infiel, mas no pode

    ser ocasionalmente mongama. No h como ser mongama einfiel ao mesmo tempo; no h como no ser uma coisa ououtra. uma vida dupla, de qualquer das duas maneiras. Sevoc escolhe uma, escolhe a possibilidade de ambas. Isso que compromisso!

    82Cada um de nossos relacionamentos diferente, e ns

    somos diferentes em cada um deles. E o que torna amonogamia to perversamente interessante.

    89H pessoas, como sabemos, que s conseguem ser

    despertadas sexualmente com a presena de um determinadoobjeto: um sapato, uma pea de vesturio, um sorriso especialso as condies prvias de seu desejo.

    Claro, preferimos pensar que a pessoa que nos excita;que no estamos obrigados a obedecer a esses pr-requisitosabsurdos. Que seguimos nosso desejo, ou nosso senso moral,ou nossas intuies, quando somos atrados por algum. E, noentanto, o fetiche de que a maioria das pessoas mais necessita s vezes simplesmente o nome do relacionamento, seu ttulooficial. O problema ou, na verdade, o prazer de umcasamento que ele nunca pode ser chamado de um caso. Se apalavra no encaixa, os genitais tampouco.

  • 84 A tarefa mais difcil para todo casal acertar na dose

    adequada de desentendimento. Quando a dose insuficiente, agente descansa na pretenso de conhecer bem um ao outro.Quando excessiva, comea a surgir a crena de que deveexistir alguma outra pessoa, em algum outro lugar, que, estasim, compreende a gente.

    Temos casos cada vez que nos enganamos nessaspropores.

    85Podemos ser moralmente satisfeitos por algum que nos

    perdoa, mas o ser perdoados nos faz sexualmente satisfeitos?Um dos riscos da monogamia consiste em que ela incorpore ascaractersticas de crena religiosa, e que a partir da no maisconsigamos ver a diferena entre uma satisfao e outra.

    86Comeamos a nos sentir seguros um pouquinho

    constrangidos, talvez, mas seguros quando umrelacionamento novo comea a se transformar num tipo a quej estamos habituados. Quando entramos na nossa rotina,quando todas as notas destoantes e pequenos mal-entendidospassam a fazer parte de uma compreenso mais ampla a quedamos o nome de nossa vida juntos. No precisamos pensarsobre isso ou pensar sobre isso assim , simplesmentedesfrutamos a companhia um do outro. No conseguimos nosimaginar um sem o outro. E quando no conseguimos nosimaginar um sem o outro sinal de que j no estamos juntos.

  • 87Assim como h apenas dois tipos de relacionamento

    o oficial e o no oficial , s h duas maneiras de ser a gentemesma: a antiga e a nova. A culpa nos d chance de perceber asdiferenas entre essas duas maneiras, mas nenhuma delasexiste por tempo suficiente para que possamos separar comfacilidade uma da outra.

    88S valorizamos realmente uma relao quando ela

    sobrevive a nossos melhores esforos para destru-la. Comotodo sadomasoquista bem sabe, nada pode ser mais sedutor doque a capacidade de resilincia, de resistncia ao choque. onico afrodisaco que continua a funcionar quanto mais apessoa se serve dele. Assim sendo, a nica maneira detestarmos nossa infidelidade por meio da monogamia. Muitaconfuso nasce de nossa crena em que o teste s seja aplicvelno sentido contrrio.

    89Nossos filhos so as pessoas com quem temos, por

    assim dizer, relaes monogmicas. So tratados por ns comoamantes e parceiros, como o proibido e o costumeiro, como aspessoas que jamais abandonaremos, e como as pessoas quetero de nos abandonar. As pessoas que desejamos, e a quemtemos de ser para sempre infiis. As pessoas que s podemosamar bem frustrando-as.

    No que os filhos estraguem seu relacionamento comos pais, mas eles o confundem. Eles obscurecem nossascategorias, por isso os pais se mostram to mandes. Que mais

  • podemos fazer com pessoas cuja maneira de nos assinalar asregras consiste sempre em romp-las, cujo meio de estarsempre desmascarando nossos preconceitos consiste em nosfazer demonstr-los?

    90Tudo o que dizemos tem um carter experimental

    porque nunca podemos ter certeza de como as pessoas reagiro,ou de como ns mesmos reagiremos. Por isso que as pessoascostumavam noivar antes do casamento.

    91Desde a segunda metade do sculo XIX muitas pessoas

    comearam a se mostrar agnsticas em relao monogamia.Elas no esto realmente convencidas de que seja algo queexista, ou no esto sabendo como vai acabar tudo isso sedeixarmos de acreditar na monogamia. Se Deus est morto,tudo permitido mas e se a monogamia est morta, queprecisa ser feito?

    Os ateus da religio podiam ao menos acreditar que Deushavia morrido, mas em que podem acreditar os ateus doerotismo?

    92O perigo provoca bem-estar. Essa uma verdade que o

    monogamista teme, e de que infiel raramente se apercebe.Ningum nunca se cura de coisa nenhuma, as

    preocupaes de uma pessoa simplesmente mudam. Certospensamentos simplesmente desaparecem sem nos avisar. Damesma forma, a pessoa s verdadeiramente mongama

  • quando a monogamia j no o que interessa: ou seja, quandoa pessoa est amando.

    Apaixonar-se, estar amando a soluo para o problemada monogamia, na medida em que o toma irrelevante. Oumelhor, soluciona o problema da nossa prpria monogamia.Quando eu estou amando, somente a outra pessoa quepoderia ser infiel. Mesmo que eu cometa um ato deinfidelidade que, curiosamente, eu me acho agora mais livrepara cometer ser inocente, inofensivo, sem inteno.Torno-me, por fim, o monogamista absoluto. O curso erradioque meu desejo assumia antes agora inconcebvel.

    Com o prazer mais absoluto com convico, noutraspalavras declaro meu amor e o outro claramente acredita emmim. No entanto, falta-me a fora de persuaso suficiente parame convencer a mim mesmo de que o outro fiel. Amonogamia, acabo descobrindo, uma religio de um s.

    94 A vida em casal uma resistncia permanente intruso

    de terceiros. O casal precisa alimentar a existncia de terceirosa fim de prosseguir na resistncia a eles. Os fiis nodesprendem seus olhos dos inimigos, num fascnio constante.Afinal de contas, que fariam juntos se no houvesse algummais ali com eles? Como saberiam o que fazer?

    Dois formam um par. Para um casal preciso trs.

    95Todos os profetas da vida ertica so falsos profetas,

    porque cada casal tem que inventar o sexo que serve para siprprio. Mais freqente-mente que fazendo amor os parceirosesto fazendo as pazes. Em nossa vida ertica o encanto est naincerteza, nossa falta de jeito significa paixo.

  • O ctico o nico que conhece o futuro, porque j viutudo de antemo. Para o onisciente o sexo sempre umproblema.

    96Uma das coisas mais impressionantes quando se lem

    histrias para crianas pequenas observar a promiscuidadeimplacvel de sua ateno. Num momento esto inteiramenteabsorvidas na performance virtuosstica do adulto, no instanteseguinte s passar pela janela um pombo voando e elas jsaem correndo atrs dele. Nesse instante como se nohouvesse histria nenhuma, como se no houvesse nenhumaligao especial ou exclusiva do ouvinte com o leitor. Este sesentir impaciente, ofendido ou consternado, ou mesmoexplorado; noutras palavras: abandonado.

    Dois minutos depois a criana estar de volta como senada houvesse acontecido, ou arrastando com ela um outrolivro que prender ou no sua ateno. A mobilidade dointeresse de uma criana complica nossas idias a respeito doque significa ser interessante. As crianas pequenas passamsem pestanejar e sem titubear de um divertimento a outro. Masa arte primitiva de perder interesse nas coisas ou nas pessoas algo que, por sua vez, no demora a ser perdido. As boasmaneiras so a melhor forma de fingir que no h a nenhumproblema, que somos capazes de fazer durar nossossentimentos, que nossa ateno confivel.

    As crianas se desinteressam dos adultos muito mais doque os adultos se desinteressam das crianas. No que ascrianas no tenham, como se diz, aprendido a se concentrar,ou que lhes falte a capacidade de engajamento; o que acontece que a curiosidade no monogmica. Ela passeia. Mas o fatode terem uma ateno deambulatria logo se torna arriscadopara as crianas. Qualquer coisa que seja instigante demais,

  • qualquer coisa que as faa sentir-se vivas demais, provoca umconflito de lealdades. O melhor que se pode aprender com ascrianas como perder o interesse. O pior que elas podemaprender com os adultos como forar sua ateno.

    97Queremos continuar sendo os mesmos que somos, e

    estamos sempre mudando. Temos que nos enganar melhor doque a qualquer outra pessoa porque a infidelidade que maistememos a mudana. Vamos indo adiante de ns mesmoscom os olhos cerrados; como se a morte estivesse l esperandopara nos decepcionar.

    Quando nos comprometemos, portanto, com quem querque seja, estamos sendo prepotentes com o tempo, possessivosde um modo absurdo para com ele. Para se comportar assim apessoa precisa estar convencida de algo.

    98O contrrio da monogamia no simplesmente a

    promiscuidade, mas a ausncia ou a impossibilidade do prpriorelacionamento. Na verdade, uma das razes pelas quais amonogamia se mostra to importante para ns o fato de nosaterrorizarmos tanto com o que imaginamos serem asalternativas para ela. A outra pessoa que mais tememos aquela que no cr no universal carter sagrado da vida emcasal (habitualmente heterossexuais). Mais uma vez ouvimos amesma ladainha que nos repetem a homofobia, a xenofobia,todas as fobias: se no escolhermos a monogamia, nossodestino ser o isolamento ou o caos da impersonalidade. Umaameaa, bem entendido, no uma promessa.

    O abandono e a excluso, ou ficar envolvido demais comou por outras pessoas. Circulando sem garantias, expostos,

  • desgarrados. Noutras palavras, no sabemos se queremos amonogamia, mas sabemos sem sombra de dvida que tememoso excesso: um excesso de solido ou um excesso decompanhia. No somos, claro, naturalmente mongamos.Somos os animais para quem h algo que demasiado.

    99Sempre uma tentao ver o quanto se pode ser mau, mas

    s para descobrir o quanto se pode ser bom... em ser mau. DonJuan podia ser o que fosse, mas era sobretudo consciencioso.

    100Nossa sobrevivncia depende de percebermos a

    diferena entre o nico e os Muitos. Podemos comear nossavida sendo alimentados por uma nica pessoa, mas logo vamosnotar que muitas pessoas podem fazer isso para ns e, naverdade, que ns mesmos podemos cuidar disso. Adaptao apalavra polida para promiscuidade. Precisamos de uma certaversatilidade no tocante ao apetite. Precisamos ser capazes deutilizar o que aparece; de transformar em aventura romntica ocatar restos e descartados.

    No que uma nica pessoa seja incapaz de satisfazertodas as nossas necessidades, mas com cada pessoa nscriamos um novo conjunto de necessidades. Esse um critriopara ficarmos sabendo que encontramos uma pessoa nova. Avida em casal um juntar de apetites; essa a sua vocao.Cada pessoa nova nos mostra que h algo mais a desejar, masem geral sob o disfarce de que h algum mais a desejar.Seduo, feliz inveno da necessidade.

  • 101 A masturbao tradicionalmente um tabu, no porque

    faa mal sade trata-se no apenas de um sexo segurocomo de um incesto seguro ou porque seja contrria lei,mas porque tememos que possa ser a verdade sobre o sexo: queo sexo seja algo que fazemos sem precisar da ajuda de ningummais. Que nossos amantes sejam apenas um pretexto ou umasugesto para nos lembrar de nosso prprio delrio ertico, aspessoas que nos pem em ligao com algum outro lugar.Pessoas, quero dizer, que so deuses e deusas sem saber;porque, como pessoas, nossos amantes so complicados demaispara nos excitar. O ertico uma simplificao.

    Por que ento, pelo menos aparentemente, fazemos sexocom outras pessoas, por que precisaramos inclu-las? Se amasturbao significa ter isso da maneira como queremos,ento o sexo com outras pessoas significa t-lo da maneiracomo no sabamos que queramos. Com as outras pessoastem-se algo diferente. A virtude da monogamia est nafacilidade com que ela pode transformar o sexo emmasturbao; o vcio da monogamia consiste em que nooferece nada diferente. Se, com dois, um pode ser demais, comum passa-se o mesmo.

    Quando nos masturbamos e isto to bvio estamos sempre fazendo sexo conosco mesmos. No hnenhuma sugesto de infidelidade, a no ser, num certo sentido,com relao a nosso parceiro. Ainda que a masturbao seja omodo de descobrirmos uma intensa excitao ertica, nossasfantasias masturbatrias so impressionantemente repetitivas edesprovidas de inventividade. Sentimo-nos embaraados emcont-las para outras pessoas na mesma medida em que estassentem o maior tdio ao se prestarem a ouvi-las. Amasturbao, como a monogamia, no costuma dar boashistrias. S que a monogamia bem-vista, a masturbao no.

  • Nosso maior ou menor engajamento na monogamiadepende do nosso maior ou menor apetite por boas histrias. Edo apetite que sentimos por ter apetite. O nico relacionamentoverdadeiramente monogmico aquele que temos conoscomesmos.

    102O clmax da monogamia a separao. O clmax da

    infidelidade a monogamia. E sempre o pr um fim queatrapalha o curso das coisas. Os clmax so a pior forma deinterrupo.

    Mas se no fosse pela interrupo no saberamos o queestava acontecendo. O hbito cerra nossos olhos. Na vidaertica importante, acima de tudo, no confundir nossosobjetivos com nossos fins.

    103Se se promulgasse uma lei dizendo que no seria

    permitido a ningum ser mongamo por mais de trs semanas,as pessoas se sentiriam terrivelmente pressionadas. Maspressionadas a fazer o que exatamente? Por que estariamsofrendo? De que se sentiriam privadas? Que escreveriam nassuas faixas de protesto quando sassem s ruas?

    104Nem tudo se transforma em seu contrrio porque nem

    tudo tem um contrrio. A contradio um artifcio prelibadorque serve para estimular os lgicos. Assim sendo, se ainfidelidade e a monogamia no conduzem uma outra, paraonde mais podem ir?

  • Preferiramos que nossas alternativas fossem sempreconstitudas por opostos. Eles estreitam o campo depossibilidades, ao oferecer um caminho j traado.

    105O fato de que o cime alimenta o desejo ou pelo

    menos o atia nos d bem uma idia de quo precrio odesejo . Precisamos encontrar no s um parceiro mas umrival tambm. E no apenas precisamos lhes dar tratamentosdiversos como precisamos mant-los em departamentosdiversos. Precisamos de nossos rivais para nos revelar quemso nossos parceiros. Precisamos de nossos parceiros para nosajudar a descobrir rivais.

    Precisamos de tantas pessoas para levar o desejo afuncionar, para torn-lo desejvel! No toa que estamossempre tentando abaixar esses nmeros.

    106As questes que se levantam para o casal so: eles

    desejam usar um ao outro para alimentar seu desejo, ou paraacabar com ele? E o seu desejo mais importante que o desejode um pelo outro? O drama dessas questes de amplo espectrogeralmente se reduz ao melodrama de uma questo maisestreita: ser que o sexo to importante? Com essa questo to mais abstrata e mais tranqilizadora o casal pode sereintegrar ao mundo consolador das pesquisas e dosquestionrios. Ao mundo de todas aquelas respostas.

  • 107A maioria das pessoas nunca teria se engajado na

    monogamia se nunca tivesse ouvido falar na monogamia.

    108 um segredo mal guardado e certamente no algo

    que se possa gostar de testemunhar que entre os casais osparceiros vivem em extrema competio um com o outro. Masseduzir um rival bem mais difcil envolve, por assim dizer,um desafio maior do que seduzir um aliado. O rival sempreresiste. Quem sabe, talvez, s se consiga seduzir um rival?Talvez a seduo no passe de uma cura para a competio?

    109Que acontece quando o casal redescobre um ao outro

    uma das poucas, ainda que modestas, redenes que podemocorrer com o tempo? Ser como um caso curto com algumaoutra pessoa, prazeroso porque ambos esto sabendo que h deacabar? Ou um ato de desafio ao domnio exercido pelo tempo,como uma revoluo nos costumes? Ou o secular ato demisericrdia que alimenta nossa crena na frustrao?

    Essas renovaes imotivadas so uma prova, se houvessenecessidade de prov-lo, de que s permitimos s pessoas serdiferentes em pequenas doses. De que queremos conhecer tudocom o nico propsito de sairmos convencidos de queestvamos errados.

  • 110As coisas que nos levam a nos apaixonar pelas pessoas

    so muitas vezes as coisas que acabam nos deixando furiosos.Seja porque no somos capazes de suportar a intensidade denosso amor, seja porque na verdade, para comeo de conversa,essas no eram coisas de que gostvamos realmente eramapenas os ingredientes requeridos por uma certa alquimiapsquica a fim de tornar possvel algo muito outro. E essealgo muito outro que de fato nos fascina, e nos mantm juntos.

    isso que leva os relacionamentos a resistir: a desiluso,chave dos romances que duram uma vida inteira.

    111A familiaridade pode aumentar nosso afeto, nosso

    respeito, at mesmo o tempo que tenhamos para dar a outraspessoas, mas raramente aumenta nosso desejo por elas (naverdade, o esforo para levar o afeto a prevalecer sobre odesejo um dos bons um dos subestimados objetivos damonogamia). A continuidade nos tranqiliza, mas tambm nosassexualiza, o que pode ser, em parte, a razo por que nos atrai.A estranheza excitante, mas ameaa nos perturbar; a rotina confortvel, mas corre o risco de nos adormecer. Nada nosconvence tanto de nossa capacidade de fazer escolhas nadaalimenta de tal modo nossa iluso de liberdade como o fatode conseguirmos regularizar nosso comportamento. E nada mais capaz de destruir nosso interesse pelas coisas que fazemose nosso gosto em faz-las!

    Se o predizvel nos estupidifica e o impredizvel nosaterroriza, que deveramos fazer ento ? Se nos achamossempre acuados entre o risco e a resignao, entre a seguranae a catsfrofe, como decidir qual deve ser o passo seguinte?Talvez fosse o caso de termos presente lembrana, antes de

  • nos deixar arrebatar por idias grandiosas sobre a naturezahumana ou, pior ainda, sobre a condio humana , queexiste uma diferena entre ter algo porque a pessoa o quer, equerer algo porque a pessoa o tem.

    112Mais que tudo nos custa renunciar ao nosso hbito de

    fazer coisas a que tivemos de ceder. Falamos de ceder a umatentao como se tivssemos nos submetido a algo e no comose tivssemos feito algo a que nos submeter. Falamos de terdeixado algo a critrio de outra pessoa, mas no de terescolhido a pessoa cujo critrio estamos dispostos a acatar.Temos que estar continuamente nos lembrando de que nossosvcios so nossas invenes tanto quanto nossas virtudes. Deque nunca perdemos o controle, simplesmente s vezesdesrespeitamos as regras. De que no somos de todo infiis,somos apenas fiis a alguma outra coisa.

    Estamos mais interessados na regra que desrespeitamosno que na regra que seguimos quando desrespeitamos aquela.Enquanto ficarmos ligados no castigo e na culpa, e no nasalternativas, jamais perceberemos a histria completa. S avelha histria.

    113Ser deixado de fora pode ser um purgatrio, mas e o

    inferno que ser deixado dentro ? Como sabido de todas ascrianas que viram seus pais se beijarem ou que chegarammesmo a sofrer a traio consumada de presenci-los dormirjuntos , quando a pessoa excluda ainda pode fazer algumacoisa (pode imaginar como se sentiria se no o houvesse sido).Mas se eles o convidassem a entrar, por onde que voc

  • comearia? Como poderia participar? Evitar que os filhos sesintam deixados de fora pode envolver uma frustrao terrvelpara os adultos; mas igualmente terrvel fingir ser possvelproteg-los de se sentirem deixados de fora. No pode existirvida sem violncia porque toda violncia a violncia daexcluso.

    Pelo fato de que todo mundo j teve a experincia de serdeixado de fora todo mundo, noutras palavras, algum dia foicriana , todos temos uma imaginao (uma provocao tambm um convite). A pessoa imagina como fazer para entrar,ou imagina que outra coisa estaria a seu alcance. Pelo fato desermos redundantes, temos que descobrir alguma outra coisaque fazer; ou fazer alguma coisa com a experincia de sermosdeixados de fora, como, por exemplo, descobrir algum emquem possamos causar inveja. Ficamos assim pregados nomesmo lugar, estarrecidos, diante de duas pessoas se beijandoporque aquilo vale por uma revelao de nossa irrelevncia(isso sem falar na necessidade que elas tm de levar uma outrapessoa a se sentir invisvel). O caminho que seguiremos navida o caminho que seguiremos a partir dali. Nossa vida sero que pudermos fazer com o sentimento de ser deixado de fora.Essa experincia, que assume tantas formas, a matria-prima.

    Imaginao , digamos assim, a palavra confortadorapara cime sexual; ambio, a palavra um pouquinho menosconfortadora; e obsesso...? Obsesso significa o triunfo docasal que nos exclui, nossa decidida ou desamparada pobrezaem face de nossa excluso. A obsesso um meio de dissiparalternativas, uma revogao da escolha, uma cura para ainsistncia em pensar. Se, por um lado, de certo modo, nos falade nossa falta de vontade de sair de casa, nossa primeira enecessria obsesso, nos fala tambm de nosso medo liberdade. Que em parte, naturalmente, nossa liberdade deexcluir as outras pessoas.

  • 114Como podemos ser inaceitveis para ns mesmos? Para

    certas pessoas, evidentemente, a questo : que outra coisapodemos ser? Na verdade, a simples formulao da questo jsignifica para a pessoa estar condenada, nem que seja apenas auma empedernida ingenuidade. Nada poderia ser mais bvio doque o fato de que no somos to bons quanto deveramos ser.Mas isso do ponto de vista de quem?

    A questo fica ligeiramente menos ridcula a partir domomento em que nos damos onta de que temos que aprendera ser inaceitveis para ns mesmos. E no fcil. Os bebs noroubam, eles simplesmente agarram as coisas que lhesinteressam. Eles no esto mijando em suas mes, estomijando, pura e simplesmente. Aprendemos a nos sentirculpados e envergonhados vivendo em ou com um casal. Noscasais que formam e acompanham o incio de nossa vida[beginning couples] acham-se pessoas que, entre outras coisas,precisam dizer no. Levam-nos a nos sentir melhores levando-nos a nos sentir ruins.

    Esse o enigma da vida em casal que recebemos do casalem que nos encontramos em crianas, enigma que levamospara os casais que formamos como adultos: podemos serprotegidos sem que haja uma mfia para nos proteger?

    115Uma forma de amar as pessoas admitir que elas tm

    desejos que nos excluem; que possvel amar e desejar mais deuma pessoa ao mesmo tempo. Todo mundo sabe que isso verdade, e, no entanto, no queremos que as pessoas por nsamadas comecem a acreditar que tal se aplique a elas prprias.

    Reservamos nosso mais generoso, nosso maisenobrecedor amor para ns mesmos. Afinal, as outras pessoas

  • poderiam fazer mau uso dele. Sou livre para deixar as pessoasque amo, mas elas no podem me deixar nunca, a menos queessa seja a minha vontade. Tenho direito a ser infiel, mas elastm a obrigao de no o ser. Amo as pessoas que sintovontade de amar, mas ningum que eu ame tem minhapermisso para proceder assim.

    Infelizmente, tenho tanto trabalho vigiando as pessoasque amo que no me sobra tempo para ser livre. Ou seja, creioem minha liberdade, mas no pareo desej-la.

    116Todo mundo, pode-se dizer, excludo de ser uma outra

    pessoa. Mas isso no consola ningum. A vida em casal omais perto a que se pode chegar.

    117Uma das solues mais comuns para o to disseminado

    problema de nossa inveja que pode servir como nossamelhor e mais aflitiva indicao do que estamos querendo nos tornar invejveis. Isso significa que o casal que precisa serinvejvel, em vez de simplesmente desfrutar-se um ao outro,no quer nunca um ao outro, porque um e outro jamais sabem oque querem. Se a audincia alimenta o casal, resta ao casal serfiel audincia.

    118De tempos em tempos, todo casal acredita ou que so

    bons demais um para o outro, ou que no so bons o suficiente.O problema no est em saber se isso verdade, mas em como

  • se poderia algum dia chegar a uma deciso a respeito. Quemestaria na posio de julgar?

    E aqui que os terceiros podem ser de tanta ajuda: comorbitros. S que podem apenas representar esse papel,naturalmente, porque jamais so imparciais.

    119Numa sociedade sem bodes expiatrios haveria mais

    conflito. As pessoas se sentem vulnerveis demais no tendooutra pessoa a quem possam culpar e punir. Assim tambm,uma sociedade sem infidelidade sexual ou sem ospromscuos levando sua vida irresponsvel poderia serperigosa. Por quem nos sentiramos fascinados, quem iramosperseguir?

    Afinal, num casal sem um terceiro os parceiros se achamradicalmente desprotegidos um do outro. E quando as pessoasse acham desprotegidas uma da outra os resultados soimprevisveis.

    120Nunca somos mal compreendidos: s vezes somos, isto

    sim, compreendidos de maneiras que no gostamos. Nuncasomos infiis, somos s vezes fiis de maneiras que nogostamos.

    121Monogamia e infidelidade: a diferena entre fazer uma

    promessa e ser promissor.