Monografia Boi Roubado
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIENCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA BAHIA
FERNANDA MANUELA DE OLIVEIRA VITORINO
O BOI ROUBADO DE RIACHÃO DO JACUÍPE
FEIRA DE SANTANA
SETEMBRO DE 2012
FERNANDA MANUELA DE OLIVEIRA VITORINO
O BOI ROUBADO DE RIACHÃO DO JACUÍPE
Monografia apresentada no Departamento
de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Estadual de Feira de
Santana como pré-requisito para obtenção
do título de Especialista Em História da
Bahia.
Orientadora: Prof. Drª. Sharyse Amaral
FEIRA DE SANTANA
SETEMBRO-2012
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIENCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA BAHIA
FERNANDA MANUELA DE OLIVEIRA VITORINO
O BOI ROUBADO DE RIACHÃO DO JACUÍPE
_________________________________________________________________________
Professor Drº Aldo José Morais Silva
UEFS
_________________________________________________________________________
Professor Drª Maria Aparecida Prazeres Sanches
UEFS
_________________________________________________________________________
Professor Drª Sharyse Amaral
UEFS- Orientadora
FEIRA DE SANTANA
SETEMBRO- 2012
Para vó Luzia (in memoriam) com muito amor e carinho.
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas tiveram grande importância para a realização deste estudo, dessa
maneira nada mais justo que reservar este espaço do meu trabalho para demonstrar minha
gratidão a todos que de uma maneira ou de outra contribuíram para a sua concretização.
Primeiramente agradeço a Deus por ter me dado força pra chegar até o final e
sabedoria para superar os momentos mais difíceis, foram várias as vezes que pensei em
desistir. Agradeço também a vó Luzia, pessoa maravilhosa a quem dedico este trabalho.
Sei que ela estava sempre do meu lado sussurrando suas histórias e enxugando minhas
lágrimas nos momentos de desespero.
Aqui na terra agradeço a minha mãe, mulher guerreira e batalhadora que nunca
deixou o desânimo tomar conta de mim, e com sua fé na Virgem Maria me incentivou o
tempo todo a nunca desistir.
Agradeço de coração a minha anja da guarda, Emília Maria por estar sempre me
orientando e lendo meus escritos, sempre me colocando pra cima e me fazendo acreditar
que ainda era possível, esta pessoa sempre acreditou em mim de uma maneira que nem eu
acreditava obrigada Emília.
Sou grata a minha prima Leide por sempre me receber na sua casa durante esses
quase dois anos em que cursei essa especialização e apesar da bagunça que eu fazia pela
sua casa, nunca reclamou, VALEU mesmo prima, sou eternamente grata a você.
As minhas companheiras da pós, aquele super Salve! Karina, Daniele, Milena,
Michelle e Leize, obrigada por estarem comigo nessa caminhada. Sou eternamente grata a
vocês. Selminha e Diana, muito obrigada pelas palavras de carinho que sempre me
dedicaram.
Sou grata à professora Sharyse Amaral pela sinceridade e pelas correções do meu
trabalho, lamento muito não ter tido mais tempo para um estudo mais apurado.
Sou muito grata as minhas amigas Tatiane, Karine, Mira, Grazi, Ely, Mida,
Danielle e aos amigos Luiz, Jorge, Quinho pelo companheirismo, sei que me afastei muito
de vocês nesse período, agradeço muito pela amizade e paciência.
A todos vocês meu muito obrigada, foi o incentivo e a força que vocês me deram
que possibilitou o termino desse trabalho tão importante pra mim e pra história da minha
família.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo dar visibilidade as manifestações do Boi Roubado da
cidade de Riachão do Jacuípe, para tal utilizamos como metodologia a produção de fontes
por meio da História Oral. A partir dos relatos e das histórias de vida de cinco
entrevistados procuramos analisar como acontecia o Boi Roubado, prática de solidariedade
entre os companheiros do samba, seja numa bata de feijão ou de milho, que é
intrinsecamente ligado à história do Samba do Bagaço. Os relatos dessas pessoas nos
possibilitaram analisar o Boi Roubado como um espaço de trabalho e divertimento,
demonstrando que nessas relações era possível perceber as redes de sociabilidade que
promoviam interação e identidade de grupo.
Palavras- chave: Samba de roda; Boi Roubado; Solidariedade de grupo.
ABSTRACT
The present work aims to increase the visibility of the manifestations of the Boi Roubado
from city of Riachão do Jacuípe, for such was used as font production methodology by
means of Oral History. From the reports and life stories of five respondents seek to analyze
as the Boi Roubado, practice of solidarity among the companions of the samba, is a blend
of beans or maize, which is intrinsically linked to the history of Samba do Bagaço. The
reports of these people allowed us to analyze the Boi Roubado as a work space and fun,
demonstrating that these relations was possible to realize networks of sociability that
promoted interaction and group identity.
Keywords: Samba de roda; Boi Roubado; Group solidarity.
SUMÁRIO
PALAVRAS INICIAIS........................................................................................................9
CAPÍTULO 1 REPRESSÃO AOS BATUQUES...............................................................15
1.1- Entre tambores e temores..............................................................................................15
1.2- Samba de roda da Bahia: Patrimônio Imaterial da Humanidade..................................24
CAPÍTULO 2 O LUGAR DA PESQUISA........................................................................28
2.1- A cidade de Riachão do Jacuípe...................................................................................28
2.2- Universo popular jacuipense: os espaços do samba de roda........................................29
2.3- Manifestações do samba de roda: as ocasiões do samba..............................................35
2.4- Como os sambas acontecem: o passo a passo do Bagaço............................................37
CAPÍTULO 3 O BOI ROUBADO DE RIACHÃO DO JACUÍPE....................................41
3.1- Como minha avó dizia: o Boi Roubado nos olhares de dona Luzia.............................42
3.2- O passo a passo do Boi Roubado..................................................................................48
3.3- O feminino nas manifestações do Boi Roubado: “ O homem é pra cantar e a mulher é
pra dançar”..........................................................................................................................52
3.4- “A moça branca”: regando a alegria do Boi Roubado..................................................58
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................63
LISTA DE FONTES............................................................................................................64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................66
9
PALAVRAS INICIAIS
Muitos autores já dedicaram esforços com o intuito de evidenciar o campo
dos estudos culturais. A utilização de novas fontes históricas e a ampliação das
possibilidades de estudo deram impulso às pesquisas de caráter cultural e identitárias,
como a História das Mulheres e História dos negros entre outros. Nesse novo cenário
historiográfico os estudos dos festejos populares ganham destaque, visando evidenciar as
identidades de grupo, as tradições e os conflitos envolvidos nessas relações.
Nesse contexto, o trabalho aqui proposto tem como objetivo analisar as
mudanças ocorridas nas manifestações do Boi Roubado no período de 1982 a 2007, dessa
maneira, pretendemos estudar os vinte e cinco anos de história do Samba do Bagaço de
Riachão do Jacuípe, além de perceber como acontecia o Boi Roubado e analisar o porquê
do seu constante desaparecimento.
O Boi Roubado por sua vez, consiste numa manifestação de roça que faz
parte da história do Samba do Bagaço da cidade de Riachão do Jacuípe. Vale ressaltar que
a história desse grupo de samba de roda já foi analisada por mim através dos relatos orais
de seus componentes na monografia de conclusão de curso da graduação nessa mesma
instituição.
Neste estudo temos a pretensão de dar continuidade ao trabalho e analisar
essa tradição de roça inserida num contexto maior de mudanças, advindo de uma sociedade
em constantes transformações, nas quais as manifestações também são atingidas
diretamente. Acreditamos que o cultural não é algo estático e imóvel, o entendemos como
algo dinâmico e em constante movimento, muitas vezes sendo reinventados de acordo com
as conjunturas a que é pertencente.
Em consonância com esse pensamento, concordamos com Josias Pires Neto
ao afirmar que é opção dos românticos folcloristas acreditarem no tradicional como algo
imutável e fiel ao passado, isso condicionaria o cultural como incapaz de dialogar com as
sociedades modernas1.
1 PIRES NETO, Josias. Bahia Singular e Plural: registro áudio-visual de folguedos, festas e rituais
populares. Salvador: Secretaria de Cultura e turismo, Fundação Cultural, 2005, p. 51.
10
Ainda de acordo com este autor, é necessário entender o cultural de acordo
com sua inserção no interior das sociedades. Ele cita Stuart Hall2 ao defender a ideia da
existência da luta cultural. Segundo Hall a formação do capitalismo agrário e industrial,
propiciou o surgimento de uma nova ordem social que pregava a “reeducação” do povo e
de suas tradições. Assim Hall entende como falsa a ideia de que a cultura popular seja
conservadora. “A cultura popular seria, então, o próprio terreno sobre o qual as
transformações são operadas. A dinâmica da cultura popular só pode ser entendida, assim,
situando-a no campo das relações sociais.” 3
Essas mudanças discutidas por Hall podem ser relacionadas ao Boi Roubado
jacuipense, principalmente se analisarmos as transformações provocadas pela inserção dos
componentes num mercado de trabalho caracteristicamente urbano, que impulsionou
mudanças nas suas manifestações, que passam a ser analisadas de acordo com a sociedade
que está inserida.
Nós percebemos, a partir das entrevistas que apesar do constante
desaparecimento das manifestações do Boi Roubado no município, ainda se preserva a
solidariedade entre esses amigos. Isso fica claro nos adjutórios urbanos, seja pra levantar
um muro de uma casa ou bater uma laje. O certo é que as relações sociais sofrem
mudanças ou readaptações.
O significado de um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao
qual está incorporado, pelas práticas as quais se articula e é chamado a ressoar. O
que importa não são os objetos culturais intrínseca ou historicamente
determinados, mas o estado que o jogo das relações culturais: cruamente falando
de uma forma bem simplificada, o que conta é a luta de classes na cultura ou em
torno dela.4
Durante as entrevistas e encontros com os componentes ficou claro nos
registros que todos lembravam saudosos do tempo em que viviam na zona rural e de como
eram bonitas as manifestações de ajuda mútua que aconteciam entre eles. Era o encontro
do lazer com o trabalho, contudo, percebem também que a vinda deles pra cidade, não de
tudo ruim, pois acabou favorecendo-os de alguma maneira, como por exemplo, na
educação dos filhos.
Os sujeitos de nossa pesquisa são pessoas simples e de pouca condição
social e passaram boa parte de suas vidas na zona rural da cidade de Riachão do Jacuípe ou
2 HALL Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira
Lopes Lour - 11ª Ed. Rio de Janeiro, 2006. 3 PIRES Neto. Op Cit. 4 Idem, p. 56.
11
de localidades vizinhas, atualmente moram em bairros periféricos da cidade e vivem de
forma humilde. Eles encontraram no grupo Samba do Bagaço o divertimento da roda,
divertimento esse que era visto como momento de lazer diante da dura rotina de trabalho,
primeiramente nas roças e posteriormente, quando vieram pra sede5, nas casas de famílias
ou máquinas de sisal.
Inicialmente, o desejo de estudar o grupo de samba de roda Samba do
Bagaço veio do contato que sempre tive com essa manifestação desde a minha infância.
Uma das entrevistadas, a fonte de inspiração para a realização deste trabalho - dona Luzia
Araújo de Oliveira - é minha avó materna, e foi o seu amor pelo samba que fez nascer em
mim a vontade de dar visibilidade a um dos festejos culturais mais importantes da minha
cidade, além de ressaltar o cenário cultural de Riachão do Jacuípe.
Desde pequena via os sambas que aconteciam na casa de minha avó e
percebia como aquele momento era importante nas vidas daquelas pessoas, era como se
todos os problemas ficassem para trás, era a confraternização dos amigos, a interrupção da
correria diária de trabalho.
Logo após a conclusão do trabalho de graduação sobre o grupo tive a
oportunidade de dar continuidade a pesquisa, agora dando visibilidade às manifestações do
Boi Roubado, intrinsecamente ligada a história do grupo Samba do Bagaço, pois foi num
Boi Roubado que o grupo nasceu. Este trabalho tem sua relevância por ressaltar uma das
manifestações culturais jacuipenses que vem desaparecendo, dai a importância de ficar
registrada sua história.
Para a realização deste trabalho utilizamos a História Oral como
metodologia de pesquisa, esta por sua vez consiste numa metodologia de pesquisa e de
constituição de fontes para o estudo da História Contemporânea surgida em meados do
século XX. O ano de 1948 é considerado como marco de início da História Oral
“moderna”, foi o mesmo ano em que o gravador foi inventado.6
Para Verena Alberti alguns anos se passaram até que as potencialidades do
novo método fossem aceitas e incorporadas às práticas acadêmicas. Só em meados da
década de 1970 que a História Oral chegou ao Brasil, e em 1980 ela consegue se
consolidar como uma metodologia possível para a história.
5 Referente à área urbana da cidade. 6 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: Fontes Históricas/ Carla Bassanezi Pinski.
(organizadora). - São Paulo: Contexto, 2005.
12
A disseminação da História Oral no Brasil e no mundo é atualmente
inegável, e isso foi de grande importância para que os trabalhos com base nas fontes orais
fossem vistos com menos desconfiança que antes. Isso contribuiu para o crescimento das
possibilidades de novos campos da historiografia, como a História do Tempo Presente.
Com esse novo campo, os historiadores passaram a analisar novos objetos. (Alberti, 2005:
162)
De acordo com Philippe Joutard7 essa desconfiança com os trabalhos com a
História Oral tem se tornado menos frequente, uma vez que a academia vem
progressivamente aceitando trabalhos com essa metodologia. De acordo com esse autor,
essa aceitação esta intimamente ligada a influência da escola francesa dos Annales, assim
como destacou também a História das Mulheres, da vida cotidiana, do trabalho, da
memória, entre outros temas.
Joutard acredita que a História Oral não deve ser utilizada como alternativa.
O medo da sua utilização não se justifica, pois os desafios para a elaboração de um
trabalho com fontes orais são os mesmos ou mais complicados, do que com outra
metodologia.
Para Paul Thompson8 a história sobrevive quando ganha sentido na vida das
pessoas, tornando as pesquisas históricas mais próximas e concretas e facilitando a
compreensão pelas gerações futuras. Dessa maneira destacamos as riquezas de
informações que as entrevistas nos dão, uma vez que quem nos fala são as pessoas que
vivenciaram o que estão relatando, é o próprio sentido que cada um tem da sua história e
isso nos é possibilitado pela utilização da metodologia da História Oral.
É corrente que o trabalho baseado em fontes orais a confiança mútua entre
pesquisador e entrevistado seja um dos pontos principais. Cabe ao estudioso registrar e
armazenar o máximo possível do ambiente e do gestual como sorrisos, pausas, silêncios e
lembranças. As entrevistas são novos documentos produzidos pelo historiador.
Conquistamos este ambiente de confiança e resolvemos estabelecer alguns
critérios para a escolha dos entrevistados. Identificamos e escolhemos cinco componentes
com mais de 50 anos e que efetivamente participavam do samba, como um dos fundadores
do grupo e algumas sambadeiras do Bagaço.
7 JOUTARD, Philippe. “História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos”. In:
Ferreira, Marieta Moraes e AMADO, Janaina (org). In: Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2006, pp. 43-62. 8 THOMPSOM, Paul. A voz do passado: história oral: tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
13
Inicialmente não foi pensado um roteiro de entrevista específico a seguir,
tivemos um contato informal com os entrevistados e decidimos adotar a história de vida
como metodologia. Assim, a partir das entrevistas conseguimos analisar o que foi o Boi
Roubado, como ele acontecia e quais os prováveis fatores que estão levando ao constante
desaparecimento dessa manifestação cultural.
Dessa maneira, a partir das histórias de vida de dona Luzia Araújo de
Oliveira Santos, de 75 anos (Atualmente falecida), dona Maria Lopes da Silva, de 56 anos,
seu Valdemar Demétrio de Almeida, de 70 anos, dona Edelzuíta Almeida de Souza, de 62
anos e dona Francisca Egídia dos Santos Oliveira, de 57 anos (esposa de seu Luiz, que
juntamente com seu Valdemar, fundaram o grupo). Esse trabalho se desenvolveu a partir
dos depoimentos coletados e de relatos das nossas observações procuramos analisar as
manifestações do Boi Roubado na cidade de Riachão do Jacuípe e as mudanças ocorridas
nesse brinquedo de roça.
Vale ressaltar, que não tivemos a oportunidade de participar de uma das
manifestações do Boi Roubado. O presente trabalho foi possibilitado devido diretamente os
relatos dos entrevistados, o que não aconteceu com o nosso trabalho sobre o Samba do
Bagaço, no qual tivemos a oportunidade de participar de alguns encontros de samba de
roda.
Dessa maneira os indícios, evidências, registros que serão recolhidos a partir
das entrevistas com pessoas que vivenciaram o que estão relatando, a observação dos
silêncios, das reações diante das questões colocadas, é o sentido que cada uma tem da sua
própria história, é assim que se cria a possibilidade da história sobreviver, quando ela
ganha sentido, isso torna o estudo da história mais concreto e próximo9.
No primeiro capítulo procuramos fazer uma breve revisão bibliográfica
sobre a história do samba no Brasil, evidenciando a perseguição feita contra os batuques no
período colonial e no Brasil Império. No período republicano discutiremos como esse
ritmo foi incorporado ao projeto de construção de uma identidade nacional. Ainda neste
capítulo discutimos a transformação do samba de roda da Bahia, matriz de todos os
sambas, em Patrimônio da Humanidade, analisando os caminhos percorridos até a
patrimonialização dessa manifestação.
Na segunda parte do trabalho foi feita uma discussão sobre o lugar da
pesquisa, evidenciando dessa maneira a história da cidade de Riachão do Jacuípe,
9 THOMPSON, Paul. Op Cit.
14
procurando localizá-la geograficamente, como também, discutir sobre outras manifestações
que fazem parte do universo cultural da cidade. Ainda neste capítulo procuramos
evidenciar as ocasiões em que os sambas aconteciam e o passo a passo da manifestação.
Já no terceiro e último capítulo discutimos mais profundamente o nosso
objeto de pesquisa, o Boi Roubado de Riachão do Jacuípe. No primeiro momento
procuramos evidenciar o que é essa manifestação do Boi Roubado e como ela acontecia,
analisando ainda o seu caráter rural. No segundo momento, avaliamos mais profundamente
a entrevista realizada com Dona Luzia Araújo de Oliveira, minha avó materna, na qual a
partir da sua história de vida procuramos perceber como aconteciam as manifestações do
Boi Roubado, além de dar visibilidade a uma das anfitriãs do Samba do Bagaço, e fonte
inspiradora dessa pesquisa.
Ainda nesta terceira parte analisamos o passo a passo do Boi Roubado,
como ele era realizado, quando acontecia, as pessoas envolvidas nessa rede de
sociabilidade, como também evidenciamos as diferenciações de gênero nessas
manifestações. A partir das entrevistas podemos perceber que o masculino e o feminino
tinham suas tarefas muito bem divididas, dessa maneira, uma análise sobre os espaços
reservados, principalmente ao feminino, nos pareceu relevante.
Na última parte do capítulo falamos sobre a cachaça e a sua importância nas
mais diversas manifestações populares espalhadas pelo País. Analisamos sua presença no
Boi Roubado, como também no Samba do Bagaço, e percebemos que essa bebida acaba
ganhando um caráter indispensável nessas manifestações, afinal é a “moça branca” que
rega a alegria desses encontros.
Convido o leitor a cair no universo da roda de samba do Bagaço e a viajar
nas lembranças dos nossos entrevistados sobre o Boi Roubado. Juntos vamos entender
como eram essas manifestações e a importância das redes de solidariedades para esses
sujeitos que construíram sua história com muito trabalho e samba no pé.
15
CAPITULO 1 - REPRESSÃO AOS BATUQUES
1.1 - Entre Tambores e Temores
O século XIX foi palco de grande repressão aos batuques de matrizes
africanas no Brasil, esses ajuntamentos majoritariamente negros, eram vistos como espaços
de desordem e contra todos os preceitos de civilização almejada pela elite oitocentista.
Entretanto, apesar da perseguição e repressão os negros quase sempre conseguiam burlar a
fiscalização e dar continuidade as redes de sociabilidades identitárias que os uniam.
Com o advento da República percebemos que esse ritmo tão perseguido e
criticado acabou ganhando moldes de ritmo nacional, e passou a ser compreendido como
música e dança negra símbolo de brasilidade. Assim, apresentar as discussões em tornos
dos processos que levaram a essa mudança é um dos objetivos desse capítulo. Analisamos
ainda os caminhos que levaram o samba de roda da Bahia a tornar-se Patrimônio da
Humanidade. A partir das discussões elencadas por alguns autores, procuramos entender
como o samba foi reinventado e adaptado aos interesses nacionais.
De acordo com Rita Gama Silva10
no período colonial brasileiro, os batuques
eram vistos por cronistas e viajantes que aqui estiveram como uma diversão desonesta,
diferente, por exemplo, de outras manifestações negras sincretizada com a religião católica,
a exemplo da congada e do maracatu, apoiada pela elite branca.
Era proibido qualquer ajuntamento negro que pudesse perturbar a ordem
social, contudo, a permissão era algo a se pensar, uma vez que, eram nessas manifestações
que os negros escravizados tinham a oportunidade de extravasar as tensões provocadas
pelo trabalho forçado voltando à rotina com mais boa vontade.
Para Luzia Gomes Ferreira11
o Brasil viveu na segunda metade do século
XIX e em meados do século XX uma série de transformações sociais, políticas,
econômicas e mesmo culturais, que acarretaram também numa série de conflitos cotidianos
envolvendo diversos segmentos da população.
10 SILVA, Rita Gama. De jongos e caxambus: ancestralidade, poder da palavra e novas demandas. Textos
escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.3, n.1, p. 137-153, 2006. 11 FERREIRA, Luzia Gomes. O Samba de Roda nas Festividades de Nossa Senhora da Boa Morte em
Cachoeira. Bahia, 2004. Disponível em htpp//www.cult.ufba.br/enecul2005/LuziaGomesFerreira.pdf.
Acesso 13/03/2010.
16
A hierarquização do saber científico, a racionalidade acadêmica, a moralidade
cristã, o trabalho disciplinado ao capitalismo, o discurso médico-sanitário do
higienismo, o discurso jurídico positivista da “lei e ordem” eram as principais
preocupações das classes dirigentes do país na época. 12
De acordo com essas mudanças de que nos fala Ferreira a elite tentaria
normatizar e disciplinar o comportamento dos negros em busca do progresso e da
civilidade, entretanto essas determinações encontrariam resistências.
“Esse “povo” lutou pelo direito ao lazer, pelo direito ao gozo, pelo direito de
preservar suas tradições culturais-religiosas, enfim, brigou-se para compartilhar
suas expressões culturais e alcançar sua merecida dignidade.” 13
Wellington Barbosa da Silva14
ao analisar o Recife do século XIX percebeu
que apesar da repressão e da vigilância que eram impostas aos negros, estes nunca
deixavam de recriar suas práticas e redes de sociabilidades, ainda que fossem através de
procedimentos minúsculos. Assim como outros autores já discutiram, Silva também
acredita que em alguns momentos essa repressão era repensada, como fica claro na citação:
Contudo, se havia certa condescendência com os batuques realizados em dias
santos, ou seja, consagrados a santos católicos o mesmo não se verificava com os
batuques de todo santo dia. Para muitos, os tambores traziam temores. Por isso,
eram vistos com desconfiança pelas autoridades, que costumavam divergir sobre o
que fazer: tolerar ou reprimir? No entanto, a divergência dizia respeito apenas ao
caminho a ser seguido, pois, o objetivo final da caminhada era comum a uns e outros: o controle da população escrava. 15
De acordo com a citação fica evidenciado o caráter das festas negras que
geralmente eram permitidas, ou seja, aquelas que de alguma maneira agradassem as classes
dominantes, contudo, mesmo assim ainda eram vistas com desconfiança. Ainda que alguns
da elite branca acreditasse que esse momento de festa tivesse o poder de fazer o escravo
esquecer por um momento sua real situação, diminuindo as tensões sociais, era necessário
vigiar essas manifestações negras.
Silva acredita que esse momento de permissão concedido às manifestações
negras, nada mais era que uma estratégia para diminuir a possibilidade de rebeliões e
apaziguar os ímpetos de rebeldia.
12 FERREIRA, Luzia Gomes. Op Cit, p.2. 13 Idem, p. 4. 14 SILVA, Wellington Barbosa. Burlando a vigilância: repressão policial e resistência negra no Recife do
século XIX (1830-1850). Saeculum (UFPB), v. 1, p. 1-14, 2008. 15 Idem, p. 4.
17
Entretanto, o autor lembra que nem todos eram favoráveis a essa permissão
dos batuques, tinham aqueles que não viam essas festas como a válvula de escape dos
escravos e sim como locais nos quais as rebeliões poderiam ser planejadas, e cita João José
Reis16
.
Ao congregarem indivíduos que viviam as agruras de um mesmo calvário, contra
argumentavam os defensores da necessidade de repressão, estas festas contribuíam
para a criação de espaços aonde se forjava, pouco a pouco, a noção de
pertencimento a um grupo étnico-social. E, consequentemente, a partilha de
sentimentos coletivos e a tessitura de redes de solidariedades, propiciados por tais
espaços, acabavam produzindo o ambiente oportuno para os ensaios de levantes
contra os brancos. Logo, as festas dos negros serviriam para acender o estopim das
revoltas. E não para apagá-lo, como alegavam os defensores da proposta contrária.
Sem contar que para as elites ilustradas, desejosas de enquadrar a população
citadina aos imperativos do progresso, os festejos da escravaria se constituíam em
um obstáculo à europeização dos costumes, que era o corolário de um projeto civilizacional tão almejado quanto difícil de ser implantado em sua inteireza.17
De qualquer forma, sabe-se que historicamente os batuques e as danças
características do povo negro foram, por muito tempo, estigmatizadas e perseguidas.
Contudo, independente da aceitação ou não dessas manifestações, percebemos que os
negros nunca deixaram de realizar seus cânticos e danças.
Joice de Souza Soares18
analisa a criminalização dos batuques e a ação
repressora da polícia contra esses festejos, ação que era legitimada pela promulgação do
código do processo criminal de 1832. Dessa maneira a polícia seria o instrumento do
Estado e das classes dominantes para a manutenção da ordem e repressão dos batuques.
Garantir a ordem, dessa maneira, seria não permitir ajuntamentos ou manifestações
das ditas “classes perigosas”; fazer dos representantes da força policial – nesse
momento ainda não completamente estruturada, mas já dando seus passos iniciais
– os responsáveis pela vigilância e controle constantes.19
Ainda conforme Soares, o medo de uma possível revolta popular, acabou
sendo um dos principais motivos dessa repressão. Era grande o medo de uma revolta negra
como aquela vista na Bahia em 1835, afirma a autora.
16 REIS, João José. Tambores e Temores: A festa Negra na Bahia na Primeira Metade do Século XIX. In:
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. (org). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de historia social da
cultura. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, CECULT, 2002, pp. 101-155. 17 Idem, p. 102. 18 SOARES, Joice de Souza. Conflitos sociais, identidades “perigosas” e repressão na Corte Imperial: o
papel da Secretaria de Polícia (1833-1841). Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro, 2010. Disponível
em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276621875_ARQUIVO_Trabalho-
ANPUH_10_.pdf. Acesso em 11/08/2012. 19 SOARES, Joice de Souza. Op Cit, p.2.
18
Para Martha Abreu20
, os batuques eram espaços de solidariedade social,
contudo a autora acredita que esses espaços não eram frequentados apenas pelos negros
escravizados. Percebia-se também a presença de homens livres, mulheres e até a presença
de famílias inteiras.
Esses encontros, ainda de acordo com Abreu, costumavam envolver as
umbigadas acompanhadas de muitas palmas e ao som dos atabaques e tambores. Segundo
os viajantes analisados por ela, os batuques foram a maior expressão da dança negra em
todo o século XIX.
Os viajantes que Martha Abreu analisa, demonstram grande insatisfação
pela presença dessas danças negras, “grotescas” e “indecentes”, que inclusive aconteciam
em dias de santo, mas isso não era uma regra.
Os batuques aconteciam desde junho, época de início de um importante ciclo de
festas católicas no Rio de Janeiro, que começavam com as comemorações do
Divino Espírito Santo, passava pelos populares santos católicos, Santo Antônio,
São João e São Pedro, e terminava para Santana, exatamente quando os batuques
haviam ficado mais intensos.21
Abreu percebe a incorporação de símbolos católicos, como a adoração dos
santos, como uma das estratégias utilizadas pelos negros escravizados para manter suas
redes de sociabilidades culturais, pois dessa maneira, essas manifestações eram mais bem
vistas pela sociedade oitocentista. A autora ainda ressalta que essas estratégias:
Desencorajavam os intolerantes, burlavam a repressão, ampliavam a cadeia de
solidariedades, diminuíam as agruras da escravidão e, ao mesmo tempo,
afirmavam a existência de uma determinada herança, não só musical, em termos
de ritmo e dança, mas também religiosa, na cidade do Rio de Janeiro.22
Contudo, apesar das proibições e das perseguições que os batuques e sambas
sofreram historicamente, o que percebemos é uma constante luta dos negros pela aceitação
e respeito dos valores que identificam seu povo e sua história.
João José Reis23
registra no início do século XIX a presença dessas festas
negras em Salvador, estas por sua vez eram vistas de maneira negativa, pois os brancos
acreditavam que estas celebrações de valores culturais trazidos pelos africanos e outros
20 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999. 239-319. 21 Idem, p. 291. 22 ABREU, Martha. Op Cit, p. 293. 23 REIS, João José. Op Cit.
19
aqui criados ou recriados, poderiam servir como ponto de partida para incentivar o descaso
pelo trabalho e até mesmo para planejar revoltas contra os senhores.
Nesse sentido, as festas negras promoviam medo, além de tornar-se um
obstáculo à europeização dos costumes tão sonhada pela elite branca. Entretanto, para os
negros “A festa os reunia e lhes fortalecia o espírito, ajudando-os a não sucumbir
moralmente diante da tragédia da escravidão e de quem os escravizava”24
. Mas para os
escravocratas, as festas eram um motivo a mais para que os escravos abandonassem o
trabalho pelo batuque.
Ainda conforme João José Reis a década de 1850, vive a campanha
civilizatória que passa a reprimir duramente as manifestações negras nas ruas da cidade de
Salvador, inclusive em festas religiosas. Apesar do cerco estar sendo fechado a essas
manifestações, o autor ressalta que elas resistiam e ganhavam terreno.
Uma história da festa negra durante o resto do século XIX irá revelar a continuidade dessa tensão entre os homens da elite: tolerar ou reprimir. Diante de
uma sociedade e de poderes assim dispostos, a festa negra permaneceria ativa,
crescendo, ganhando novos partidários e até fazendo sobre as camadas sociais
livres incursões mais profundas, facilitadas pela desafricanização demográfica que
se seguiu até o tráfico em 1850. Festas que eram negras e até exclusivamente
africanas passariam, aos poucos, a ser mais propriamente populares, envolvendo
vários setores da sociedade, embora mantendo maioria negro-mestiça entre seus
adeptos e assegurando a hegemonia de ritmos de raiz africana.25
Para Jocélio Teles dos Santos26
os batuques eram vistos como
“divertimentos estrondosos”, que identificavam o som dos atabaques africanos, diferente
do que a elite baiana considerava como modelo musical.
O autor ressalta que os baianos participantes dos sambas nos oitocentos nem
sempre eram africanos, é mais certo que muitos daqueles estariam circunscritos a uma
exclusão social maior, entre eles crioulos, mestiços, brancos pobres, prostitutas.
Os espaços da cidade onde aconteciam esses sambas eram considerados
como refúgio das “piores pessoas”, “espaços de nenhum pertencimento” longe da moral,
da decência e da lei. Contudo, apesar das proibições, os sambas não deixavam de acontecer
por toda cidade, “(...) eram acompanhadas (...) de atabaques, violas, pandeiros, chocalhos,
24 REIS, João José. Op Cit, p. 104. 25 Idem, p. 142-143. 26 SANTOS, Jocélio Teles dos. Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX, In Lívio
Sansone e Jocélio T. dos Santos. (orgs.), Ritmos em Trânsito: socioantropologia da musica baiana. São
Paulo: Dynamis Editorial; Salvador: Projeto A Cor da Bahia, 1997, pp. 15-38.
20
e cantorias pelo que Gilberto Freyre dizia ser nosso” aperitivo patriarcal “- a cachaça2728
”
que era vista como um elemento essencial para a diversão ser completa.
Alessandra Carvalho da Cruz29
em sua pesquisa sobre samba e cultura
popular em Salvador entre os anos de 1937 a 1954, discute os encaminhamentos que se
deram devido aos diversos debates ocorridos no país no início da década de 1930 em
relação ao samba. Especificamente em Salvador, a autora identifica a insatisfação da elite
com os costumes da população negra, e como o samba. De acordo com Cruz, essa elite
resolveu elaborar leis e códigos de comportamento que reprimissem o ruído dos atabaques.
A imprensa era a principal veiculadora dessas insatisfações da elite baiana,
representando os interesses da mesma. Nessa busca por civilizar-se, Salvador, como em
outras cidades brasileiras, via no modelo europeu “branco” a verdadeira civilização,
contrapondo ao “negro e seus costumes grosseiros”.
No plano formal, tais elites não tinham o poder jurídico de punir
discriminadoramente, porque perante a lei todos eram iguais, mas se utilizavam
desse mesmo argumento – o da cidadania e da igualdade entre todos os brasileiros
– para reprimir os costumes negros. Pois se todos eram iguais, como poderiam
negros se expressar de forma diferente, sambando, batucando, jogando capoeira e
tocando candomblé? Os costumes que deveriam ser cultivados eram os da
civilização e da modernidade, as belas letras e artes.30
Costumes como dançar, batucar e adorar orixás continuavam como lá no
início do século XIX, como bem explicitou João José Reis, como práticas de desordem,
ainda perseguidos. Conforme Cruz, após a República, como não havia uma proibição
jurídica num regime que se dizia democrático e igualitário, criou-se a acusação de que os
costumes dos negros eram bárbaros e contra a moral e bons costumes, justificando assim, a
repressão contra as rodas de samba que aconteciam na cidade de Salvador.
O samba nesse contexto ganha estereótipos negativos como “infernal”,
“pornográfico”, “violento”, adjetivos que desqualificavam as rodas de samba. Por isso
chamava-se a ação da polícia para enquadrá-las nos limites da marginalidade.
De fato, esses sambas incomodavam e não só por sua sonoridade, que
ameaçava os limites estabelecidos, que não admitia samba a qualquer
hora e em qualquer lugar. Pior é que o barulho era com certeza a
27 SANTOS, Jocélio Teles. Op Cit, p. 27. 28A importância da cachaça nos festejos populares será abordada no terceiro capítulo dessa monografia. 29 CRUZ, Alessandra Carvalho. O Samba na Roda: Samba e Cultura popular em Salvador 1937- 1954.
Programa de Mestrado em Historia. UFBA, 2006 30 Idem, p. 36.
21
formação da roda, os seus gestos “pornográficos” e as encenações de
violência que bem poderiam ser o jogo da capoeira.31
.
Ainda segundo Cruz, essas eram as mesmas queixas referentes ao
Candomblé, que neste período era tão perseguido como os batuques, na verdade, alguns
batuques aconteciam dentro dos terreiros. Tais queixas acabaram tendo ressonância num
projeto de lei do ano de 1943, no qual declarava que não mais seriam permitidos “gritos”,
“algazarras” ou qualquer outro barulho que perturbassem a tranquilidade pública.
Em linhas gerais o decreto afirmava que o excesso de energia gasto em festas e em diversões era a principal causa do “depauperamento”, do
enfraquecimento e da pobreza da população, que em vez de estar
repousando, ou melhor, repondo suas energias para mais um dia de
trabalho, estava desperdiçando-as e produzindo “barulhos” que
perturbavam toda a cidade.32
Sodré aponta que o samba brasileiro nada mais é do que um processo de
adaptação e reelaboração de formas musicais da cultura negra no Brasil, cultura que já
havia sido tão reprimida e perseguida, agora, o samba que já havia sido tão reprimido,
começa tons de ritmo nacional.
Por este prisma é de fundamental importância a discussão elencada por
Carlos Sandroni33
ao analisar o processo de transformação do samba rural baiano,
pertencente às camadas populares e signo de atraso, em ritmo que ganhou espaço no
subúrbio do Rio de Janeiro, mais tarde tornando-se ritmo nacional.
No Rio de Janeiro, Emília Biancardi34
assinala que o samba foi ali
divulgado por algumas mulheres negras baianas, que se transferiram para aquela cidade
fixando-se em morros e favelas. Dentre essas mulheres destacam-se os nomes de Hilária
Batista de Almeida (tia Ciata), Ester Maria da Cruz, Prisciliana de Santo Amaro e Amélia
dos Santos, mãe de Donga.
As casas dessas mulheres passaram a reunir multidões, e foi ali que
surgiram os pioneiros do samba carioca como Pixinguinha, Sinhô e Ernesto dos Santos, o
Donga. De qualquer maneira, esses lugares eram vistos como recanto do divertimento não
só dos negros, como também das classes menos favorecidas.
31 CRUZ, Alessandra Carvalho da. Op Cit, p.38. 32 Idem, p.42. 33 SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Ed.
UFRJ, 2001. 34 BIANCARDI, Emília. O samba tradicional da Bahia (samba de roda) e o samba do Rio de Janeiro.
Revista de cultura da Bahia, n 23, Salvador, 2006.
22
De acordo com Moniz Sodré35
essas mulheres abriam as portas de suas
casas para a realização de bailes, de sambas de partido alto, batucadas. Assim o samba
passa a ser também um instrumento de luta e afirmação negra, além expressar socialmente
a história de um grupo marginalizado. “casa de Tia Ciata “[...] centro de continuidade da
Bahia negra, logo de parte da diáspora africana no Rio.”36
Ney Lopes37
ressalta que o samba foi moldado no ambiente urbano do Rio
de Janeiro e sofreu com o passar do tempo, modificações que se processam até hoje, ao
contrário do samba rural que são mais tradicionais e sofrem variações que ocorrem de
acordo com a localidade onde acontecem. De acordo com Biancardi só na Bahia, o samba
de roda apresenta diversas interpretações, o samba de roda corrido, samba de roda chulado,
samba de lata, o samba de garrafa entre outros.
Conforme Moniz Sodré o samba desenvolveu-se no Rio a partir de redutos
negros em bairros como: Saúde e Praça Onze, onde tocava-se e dançava-se o samba para o
divertimento dos presentes. Com o tempo “[...] a música negra, que tinha preservado as
suas matrizes rítmicas através de um longo processo de continuidade e resistências
culturais, passou a ser considerada fonte geradora de significações nacionalistas”38
Acrescenta que a comercialização do samba e a profissionalização do
músico negro fazia a música popular perder algumas características iniciais como, por
exemplo, o improviso das músicas. Quanto ao aspecto de resistência do samba, o autor diz
que é impossível negar, “[...] basta saber “ler” ou escutar a história da música negra. [...] o
samba é ao mesmo tempo um movimento de continuidade e afirmação de valores culturais
negros.”39
Ainda de acordo com Muniz Sodré, o samba, antigo batuque, ganha um tom
de permanência de uma cultura negra, um instrumento de luta e afirmação, além expressar
socialmente a história de um grupo marginalizado, que com o tempo vai ganhar tons de
ritmo nacional.
Hermano Vianna40
ao analisar o processo histórico- antropológico da”
invenção da tradição" ou da fabricação de uma identidade brasileira, percebe a
incorporação do samba, antes tão perseguido, como ritmo que identifica a nação brasileira.
35 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 36 Idem, p. 16. 37 LOPES, Nei, 1942: Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Ilustrações de Cássio Loredano-Rio
de Janeiro: Casa da palavra: folha seca, 2003. 38 SODRÉ, Muniz. Op Cit. 48. 39 Idem, p. 56. 40 VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. - 6. Ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.ed. UFRJ, 2007.
23
De acordo com Vianna o advento da República traz consigo a busca e
produção de símbolos que identifiquem a nação. Nesse contexto o autor percebe o processo
de regionalização dos outros ritmos nacionais, e uma “colonização do samba”.
Durante as primeiras décadas do século XX, o centro dos debates sobre
identidade nacional se direcionou cada vez mais para os mulatos e o homem urbano,
sobretudo no campo da música, onde o samba tornou-se símbolo nacional. A valorização
dessa manifestação negra e da cultura brasileira foi o centro dos debates intelectuais da
Semana de Arte Moderna, em 1922.
Uma vez que o samba tornara-se ritmo nacional, artístas como Donga,
Pinxiguinha, Almirante entre outros, passaram a difundir o samba. Segundo Thiago de
Melo Gomes41
esses artistas redefiniram inteiramente o conceito musical do termo
“samba”, uma vez que a partir deles o ritmo ganhou mais balanço e ginga o que levou a
uma ampla aceitação do ritmo até então reprimido.
Gomes acredita que o samba “malandro”, termo que utiliza para identificar
a “gente do samba”, surge em um momento que se buscava nas classes populares uma
nova maneira de se pensar a nacionalidade.
Neste contexto Getúlio Vargas aparece como um personagem de destaque
na história do samba, às vezes contra, às vezes a favor da nacionalização do ritmo. De
acordo com Cruz ele procurava expor publicamente a sua ligação com a cultura popular,
ora com ações repressivas, ora com ações controladoras, entretanto, os sambistas
conseguiam driblar essa perseguição.
Na mesma linha de raciocínio, Vianna explica que o samba deixou de ser
elemento de repressão e resistência nos morros e favelas carioca para tornar-se símbolo de
identidade nacional, principalmente depois que passou a fazer parte dos carnavais e de
programações de rádios ganhando destaque nacional.
Alem disso, o próprio Vianna destaca que a união da elite brasileira com as
camadas populares acabou disseminando e fortalecendo o projeto do samba como
identidade nacional, através de processos de miscigenação nos quais o que antes parecia
ser um empecilho no desenvolvimento do país, agora passou a ser considerado como
elemento fundamental na construção da conjuntura política e social.
41 GOMES, Tiago de Melo. Gente do samba: malandragem e identidade nacional no final da primeira
República. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi09/topoi9a7.pdf. Acesso em
12/07/2010.
24
1.2 - Samba de roda da Bahia: Patrimônio Imaterial da Humanidade
De acordo com Carlos Sandroni42
, antes de falar do samba de roda da Bahia,
é necessário diferenciá-lo do samba carioca. Essas diferenças ficam mais bem explicadas
nesse trecho no qual o autor relata:
O primeiro (samba carioca) é a organização da dança, na qual a posição
circular não é circunstancial, como nas “rodas de samba” comuns em
muitas capitais brasileiras, mas intrínseca à definição do gênero: samba de roda. O segundo é o tipo de canto, que adere melhor ao modelo
“responsorial” de canto coletivo, tantas vezes associado à música
tradicional africana e afrodiaspórica. Os praticantes de samba de roda são
chamados de “sambadores” e “sambadeiras”, e não “sambistas” como nas
demais localidades do país.43
Argumenta que um dos motivos que levaram o Brasil a entrar no processo
de transformação do samba de roda em Patrimônio da Humanidade, foi antes de mais nada,
o desejo dos próprios sambadores de transmitir esse aprendizado às novas gerações. Dessa
maneira, muitos deles, apoiados pelo IPHAN44
, começaram a ensinar a tocar instrumentos,
cantar de improviso, tudo isso registrado em vídeo.
Conforme esse autor, entre os anos de 2004 e 2005 o samba de roda da
Bahia ainda era pouco conhecido fora dos limites do Recôncavo baiano e do Estado da
Bahia, para ele, algumas pessoas o viam ainda como um ancestral do samba carioca, mas
não como uma manifestação viva e identitária.
Com o financiamento do IPHAN foram realizadas algumas publicações de
livretos e cds sobre o samba de roda, posteriormente distribuídos por bibliotecas de todo o
Brasil, que de acordo com Sandroni, contribuiu muito para que o resto do País tivesse
conhecimento dessa manifestação.
Entretanto o autor ressalta que alguns trabalhos já evidenciaram essas
manifestações, como por exemplo, os de caráter folcloristas de Edison Carneiro, escritores
como Jorge Amado e músicos como Dorival Caymmi, contudo, essas publicações ainda
não eram suficientes para a candidatura do Brasil na UNESCO.
42 SANDRONI, Carlos. Samba de roda, Patrimônio Imaterial da Humanidade. Estudos avançados 24
(69), 2010. Disponível em: http://200.144.183.67/ojs/index.php/eav/article/view/10531/12273. Acesso em 7
de agosto de 2012. 43 Idem, p. 373. 44 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Órgão do Ministério da Cultura que tem a missão de
preservar o patrimônio cultural.
25
Foi necessário adquirir solidez, mobilizar os sambadores e seus parceiros
para a produção do dossiê. Dessa maneira Sandroni afirma que:
[...] a patrimonialização do samba de roda não é pequena: inclui instituições e
agentes dos poderes públicos nos níveis federal, estadual e municipal,
pesquisadores oriundos de diferentes universidades, técnicos de gravação de som
e imagem, e, por último na ordem, mas não na importância, os que devemos
poder chamar de “donos” da tradição do samba de roda.45
De acordo com Vianna e Teixeira46
Patrimônio Imaterial refere-se a
celebrações, saberes, formas de expressão e lugares expressivos das diferentes identidades
conformadoras da diversidade cultural do país. E cria instrumentos de identificação,
proteção e salvaguarda desse patrimônio imaterial.
Nesse contexto, muitos cientistas sociais ganharam a incumbência de
pesquisar e documentar esses saberes e manifestações a fim de criar políticas públicas
capazes de protegê-las e de alguma maneira preservá-las para a posteridade.
O samba do Recôncavo baiano, conhecido como samba de roda é
considerado como uma das principais matrizes do samba carioca, popularmente
reconhecido como ritmo que identifica o povo brasileiro. Atualmente o samba de roda da
Bahia é considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO na categoria de expressões
orais e imateriais47
. Um dos objetivos dessa ação foi sensibilizar a opinião pública para o
reconhecimento do valor do seu patrimônio.
Segundo Raiana Alves Maciel do Carmo48
foi a partir das recomendações
da UNESCO e de interesses comuns de alguns representantes de diversos setores ligados à
cultura no Brasil veio desenvolvendo-se um conjunto de leis e políticas relacionadas com o
Patrimônio Imaterial. Dessa forma passou-se a valorizar as manifestações culturais bem
como a elaboração e aplicação de políticas de reconhecimento das mesmas.
Nascido no Recôncavo Baiano, o samba de roda é um estilo musical afro-
brasileiro tocado por um conjunto de pandeiro, cavaquinho, enxada e viola acompanhado
45 SANDRONI, Carlos. Op Cit, p. 386. 46TEIXEIRA, VIANNA. João Gabriel L. C. e Letícia C. R. Patrimônio imaterial, performance e
identidade. concinnitas ano 9, volume 1, número 12, julho 2008 47 Entende-se expressões orais e imateriais como um conjunto de saberes e conhecimentos enraizados no
cotidiano de comunidades, sejam eles rituais e as festas religiosas que marcam a vivência coletiva, as práticas
culturais de convívio social, as manifestações literárias, musicais, cênicas, entre outras expressões vivas das
comunidades através dos tempos. 48 CARMO, Raiana Alves Maciel Leal do. O Plano de Salvaguarda do samba de roda do Recôncavo
Baiano. 2008. Disponível em:
http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2008/comunicas/COM474%20-%20Carmo.pdf.
Acesso em 04/07/2010
26
por cantos e palmas e que muitas vezes está associado a datas festivas do Candomblé. Seus
primeiros registros datam dos anos de 1870.49
Para Emília Biancardi o samba de roda inicialmente parecia uma dança rural
que se realizava nos engenhos e fazendas do Recôncavo Baiano, mas que há muitos anos
está em processo de urbanização. Segundo essa museóloga o samba que hoje é considerado
música e dança característica do povo brasileiro, constitui uma manifestação artística de
origem africana, provavelmente de Angola e do Congo, território de onde foram trazidos
grandes contingentes de africanos que foram escravizados no Brasil. Esses povos legaram
para os brasileiros o Batuque, que segundo a autora pode ser considerado como a origem
maior do nosso samba.
Finalmente, o samba propriamente dito é manifestação artística, como disse
oriunda do semba africano, mas recriado e readaptado na Bahia, onde ganhou
colorido e poético-musical, nova interpretação rítmica, disseminou-se em
variedades incontáveis, que vão de passos simples e formas mais apuradas. Para
alguns estudiosos, o samba tradicional baiano é influenciado pelo lundu e pelo maxixe, com letras simples, balanço rápido e ritmo repetitivo. Esse samba
tradicional é conhecido como samba de roda. 50
Ney Lopes (2003) destaca que historicamente o samba de roda surge em
meio a práticas que faziam parte das festas realizadas por escravos e que simbolizavam
momentos de diversão em meio de uma pesada rotina de trabalho nas lavouras de cana de
açúcar ou de café. Ainda de acordo com este mesmo autor, foi a partir do grande grupo de
escravizados banto formado principalmente por grupos de angolanos e congoleses que
certamente legaram a música brasileira às bases do samba.
Atualmente os sambas de roda acontecem em ambientes familiares, entre
amigos de trabalho, notadamente entre populares da capital e em cidades do interior da
Bahia. Para Ordep Serra51
o samba de roda é hoje bem menos comum do que a anos atrás,
ele acredita que o ritmo perdeu espaço para danças que tiveram origem em seu repertório.
Entretanto, acredita que resiste sempre em espaços como o Recôncavo Baiano e em
cidades do interior.
Afirma Serra que o samba de roda mais comum é o que reúne homens e
mulheres no mesmo círculo, entretanto existem rodas de samba exclusivamente femininas,
49 BIANCARDE, Emilia. Op Cit. 50 Idem, p. 25. 51 SERRA, Ordep. Rumores de Festa: O sagrado e o Profano na Bahia. Salvador: EDUFBA, 1999.
27
algumas delas admitem que os homens toquem, mas que não dancem e outras ainda que
eles assistam, mas que não entrem na brincadeira.
Alguns desses aspectos do samba de roda e outras manifestações
relacionadas a ele serão discutidos nos próximos capítulos dessa monografia,
especialmente no terceiro capítulo, no qual analisamos o Boi Roubado, prática de
solidariedade rural, intimamente ligada ao samba de roda baiano.
28
CAPITULO 2- O LUGAR DA PESQUISA
2.1 - A cidade de Riachão do Jacuípe
A cidade de Riachão do Jacuípe foi fundada nas terras de uma fazenda de
criação de gado com o nome de Riachão pertencente a João dos Santos Cruz. No começo
da sua povoação foi levantada uma capela denominada Nossa Senhora da Conceição. A
cidade foi elevada a categoria de freguesia pela lei provincial número 276, de maio de
1847, com o nome de Nossa Senhora da Conceição do Riachão do Jacuípe. Com a lei
provincial número 1 823, de 1º de agosto de 1878, foi elevada a categoria de vila e pela lei
estadual de número 2 14ª 0, de 14 de agosto de 1928 a vila de Riachão do Jacuípe foi
elevada a categoria de cidade.52
Geograficamente o município encontra-se a 183 km de Salvador e está à
margem esquerda do rio Jacuípe. Regionalmente está a 73 km da cidade de Feira de
Santana e pertence à região do semiárido. O município possui aproximadamente 30.456
habitantes e administrativamente está incluído na microrregião de Serrinha, com área
territorial de 1.203,7 km, localizando-se na região sisaleira.53
Na Bahia, a cultura do sisal concentrou-se em 27 municípios, formando uma
configuração espacial denominada oficialmente como região sisaleira, com destaque para
seis principais municípios produtores: Conceição do Coité, Riachão do Jacuípe,
Retirolândia, Valente, Santa Luz e Queimadas.54
Gladston Silva discute sobre as potencialidades econômicas da cidade de
Riachão do Jacuípe e de como elas deveriam ser mais bem exploradas. O autor chama a
atenção para a localização privilegiada do município, uma vez que este é cortado pela BR
324, o que facilitaria um maior aproveitamento do potencial comercial da cidade, o que na
realidade não acontece.
Economicamente o município tem na agricultura e na pecuária suas
principais fontes de renda, que para Gladston Silva também deveriam ser exploradas de
uma maneira que levaria a uma maior rentabilidade. Segundo ele as safras obtidas na
52 SILVA, Gladston. Op Cit. 53 BENEVIDES, Nete. A Louvação das prostitutas de Riachão do Jacuípe ao Glorioso São Roque.
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB, 2006. 54 ALMEIDA, Suzana Souza Moreira de. Memória e Trabalho no Sertão: a peleja de pequenos agricultores
no sisal. 2006. Disponível em: http://www.cadernosnpga.ufba.br/viewarticle. php?id=110. Acesso em
12/07/2010.
29
agricultura são geralmente consumidas pelas próprias famílias de lavradores, são muito
poucas as unidades produtivas que aproveitam de fato os recursos tecnológicos para uma
maior produção.
Atualmente a economia do município gira mais em torno do comércio de
lojistas, entretanto para Silva, a falta de desenvolvimento da cidade que tem uma
localização privilegiada para o comércio, o que torna as potencialidades de Riachão
indevidamente exploradas.
.
2.2 - Universo popular jacuipense: Os espaços do Samba de Roda
Nascido no Recôncavo Baiano, o samba de roda é um estilo musical afro-
brasileiro tocado por um conjunto de pandeiro, cavaquinho, enxada e viola, acompanhado
por cantos e palmas e que muitas vezes está associado a datas festivas do candomblé. Seus
primeiros registros datam dos anos de 1870.55
Enxada Pandeiro
55 BIANCARDI, Emilia. Op Cit.
30
Cavaquinho Cúia56
Ainda segundo Biancardi, o samba de roda inicialmente parecia uma dança
rural que se realizava nos engenhos e fazendas do Recôncavo Baiano, mas que há muitos
anos está em processo de urbanização. Segundo essa museóloga, o samba, hoje
considerado música e dança características do povo brasileiro, constitui uma manifestação
artística de origem africana, provavelmente de Angola e do Congo, território de onde
foram trazidos grandes contingentes de africanos que foram escravizados no Brasil.
Esses povos legaram para os brasileiros o Batuque, que segundo a autora
pode ser considerado como a origem maior do nosso samba:
.
Finalmente, o samba propriamente dito é manifestação artística, como
disse oriunda do semba africano, mas recriado e readaptado na Bahia,
onde ganhou colorido e poético-musical, nova interpretação rítmica,
disseminou-se em variedades incontáveis, que vão de passos simples e
formas mais apuradas. Para alguns estudiosos, o samba tradicional baiano
é influenciado pelo lundu e pelo maxixe, com letras simples, balanço rápido e ritmo repetitivo. Esse samba tradicional é conhecido como samba
de roda.57
Ney Lopes58
destaca que, historicamente, o samba de roda surgiu em meio a
práticas que faziam parte das festas realizadas por escravos e que simbolizavam momentos
de diversão em meio de uma pesada rotina de trabalho nas lavouras de cana de açúcar ou
de café.
Ainda segundo este mesmo autor, foi a partir do grande grupo de
escravizados banto formado principalmente por grupos de angolanos e congoleses, que
56 As fotografias foram de uma roda de samba do grupo Samba do Bagaço que aconteceu na casa de dona
Luzia Araújo de Oliveira. 57 BIANCARDI, Emilia. Op Cit, p. 25. 58 LOPES, Ney. Op Cit.
31
fizeram parte das primeiras levas de africanos trazidos para o Brasil, que certamente
legaram à música brasileira as bases do samba.
Atualmente, os sambas acontecem em ambientes familiares, entre amigos de
trabalho, notadamente entre populares da capital e em cidades do interior da Bahia, é o que
percebemos ao analisar o Samba do Bagaço.
De acordo com Ordep Serra59
o samba é hoje bem menos comum do que a
anos atrás, ele acredita que o ritmo perdeu espaço para danças que tiveram origem em seu
repertório. Entretanto, ele acredita que resiste sempre em espaços como o Recôncavo
baiano e em bairros de gente pobre de Salvador, “(...) onde ocorre em pequenas festas, em
ajuntamentos domingueiros, em “roças” e de candomblé.”60
Serra ressalta ainda que o samba de roda mais comum é o que reúne homens
e mulheres no mesmo círculo, entretanto existem rodas de samba exclusivamente
femininas, algumas delas admitem que os homens toquem, mas que não dancem, enquanto
permitem que eles assistam, mas que não entrem na brincadeira.
Carolina Tibiriçá61
observa que os batuques herdados da tradição africana
têm, por todo território brasileiro, uma variedade de ritmos, de coreografias, de
instrumentos, de significados que se constituem como práticas culturais em várias
manifestações populares.
É o que ocorre em Riachão do Jacuípe. Esta é uma cidade do interior da
Bahia que ainda preserva muitas das práticas populares que identificam seu povo. Lembrar
datas comemorativas, representações artísticas, entre outros, faz parte do cotidiano dos
jacuipenses.
Dentre estas manifestações destaca-se o samba de roda, um importante
componente desse cenário cultural. Nesse contexto é importante ressaltar o Projeto
Cultural Jacuipense, desenvolvido no ano de 1992 por iniciativa do radialista Evandro
Matos. O objetivo do projeto era resgatar a cultura da comunidade através da reunião de
nomes esquecidos, assim organizou-se Semana Cultural de Riachão do Jacuípe.
Segundo o jornalista Gladston Silva62
, a Semana Cultural tornou-se um
evento singular e agregador das artes e manifestações culturais, como o Samba de Roda, o
59 SERRA, Ordep. Op Cit. 60 Idem, p. 100. 61 TIBIRICÁ, Carolina. O samba de roda cachoeirano na modernidade. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/enecul2005/CarolinaTibiricaArgolo.pdf. Acesso em 10 de junho de 2010. 62 SILVA, Gladston. Op Cit.
32
Boi Roubado, a Cantiga de Roda e o Reisado, além das discussões que vão desde a bata do
feijão63
a mesas redondas sobre temas da cultura sertaneja.
Atualmente existem dois grupos de samba de roda na cidade, dos que
sobreviveram ao tempo e mantiveram a tradição da roda, destacam-se dois: o Samba do
Bagaço e o Sufoco da Fumaça, que no passado formavam um só grupo, contudo, devido a
alguns desentendimentos acabaram se dividindo.
Nesse trabalho procuramos evidenciar as manifestações do samba de roda,
tomando como ponto de partida a história do grupo Samba do Bagaço, que já foi
pesquisado por mim na monografia de graduação. Naquele momento tínhamos como
objetivo dar visibilidade a história do grupo por meio das histórias de vida de seus
componentes.
Dando continuidade a pesquisa anterior, teremos como objetivo agora
focalizar os estudos nas práticas culturais do Boi Roubado, este por sua vez consiste num
mutirão de roça realizado na zona rural da cidade de Riachão do Jacuípe. O Boi Roubado é
feito de surpresa, quase sempre em roças onde o dono geralmente é muito respeitado na
comunidade, podendo no caso está doente ou se encontrar em dificuldades financeiras.
Essa prática que promove o encontro do trabalho com o lazer, geralmente era sigilosa e
acontecia nas madrugadas, para que fosse uma surpresa ao companheiro que seria
“roubado”.
O cotidiano da agricultura jacuipense revela várias práticas, entre elas as
solidariedade de grupo, evidenciadas pelas famílias trabalhadoras. Essas relações tornam-
se visíveis na tessitura de redes de sociabilidades identitárias, embasadas na confiança e
reciprocidadee.
Contudo, outros festejos populares também fazem parte do universo cultural
da cidade, e consideramos relevante uma discussão. O trabalho estudado por Nete
Benevides. A louvação das Prostitutas de Riachão do Jacuípe ao Glorioso São Roque64
,
descreve a importância de um dos festejos populares de grande destaque da cidade, a
lavagem de São Roque, protagonizado principalmente pelas prostitutas da Rua do Fogo,
um dos bairros periféricos da cidade.
63 Reunião de lavradores rurais que cantam batuques em forma de pareias enquanto tiram a palha batendo
com um pedaço de madeira no monte de feijão colocado no centro do terreiro. 64 Santo Cátólico protetor contra a peste e padroeiro dos inválidos e cirurgiões. Sua festa é celebrada no dia
16 de agosto. Em Riachão do Jacuípe o santo é o segundo Padroeiro da cidade. Todos os anos no dia que
antecede a festa as prostitutas da cidade fazem uma homenagem ao Padroeiro, que de acordo com elas é o seu
santo protetor.
33
A autora traça a história de vida de algumas dessas mulheres e analisa a
importância dessa festividade popular que acolhe o sagrado e o profano, o que acontece
muito em várias manifestações religiosas espalhadas pelo país.
Por meio da História Oral, Benevides traça o perfil das prostitutas através de
suas danças e indumentárias, estas que fazem da festa de São Roque um dos eventos
culturais mais expressivos da cidade. Entretanto, Benevides salienta que na construção da
ordem moral, as prostitutas eram vistas como mulheres pervertidas, desregradas e
pecadoras, e que deveriam manter distância das “moças de família”. Eram vistas como
tipos sociais degenerados.65
Benevides evidencia ainda, que essas manifestações, assim como os
batuques, inicialmente eram proibidas. Danças, e tumultos suspeitos eram repreendidos até
mesmo com a prisão. Essas prostitutas foram muitas vezes proibidas até mesmo de sair dos
limites da rua onde residiam, uma vez que não era permitido pelo aparato policial.
Na lavagem ao Glorioso São Roque, que essas mulheres socialmente
excluídas, construíram sua identidade coletiva e ultrapassaram os limites impostos, mesmo
que provisoriamente, ali no momento da festa.
Sofrendo restrições ao calendário de rituais religiosos da Igreja Católica, as raparigas do meretrício organizaram-se coletivamente em procissão festiva, que
partia da Rua do Fogo, atual Barão do Rio Branco, em direção às principais ruas
da cidade, com o objetivo de louvar São Roque e recriar, embora
provisoriamente, uma realidade própria merecedora de respeito e dignidade.66
Dessa maneira, Benevides evidencia a história de uma das maiores festas
populares da cidade, uma representação artística e cultural alimentada pela fé e esperança
depositada no padroeiro São Roque.
Ainda ressaltando o cenário cultural e religioso da cidade, Renatha Thaís
Menezes Santos67
, também retrata as manifestações referentes ao culto a São Roque pelas
prostitutas jacuipenses, evidenciando as festas, os conflitos e a devoção das prostitutas.
Segundo esta autora a festa em louvor ao Santo que cura as pestes, ultrapassa
os limites da celebração devocional evidenciando os conflitos gerados em torno dela. Um
desses conflitos era a não aceitação da Igreja às manifestações populares, ainda mais por
essas manifestações promoverem o encontro do catolicismo com a crença no candomblé.
65 BENEVIDES, Nete. Op Cit, p. 83. 66 Idem, p. 97. 67 SANTOS, Renatha Thais Menezes. Mulheres de “Roque”: vivência e devoção das prostitutas de Riachão
do Jacuípe e o culto a São Roque. 1940-1900. (Monografia) UEFS, 2012.
34
[...] Lavagem da Rua do Fogo que também era dedicado a Obaluaê, organizado
pelas prostitutas e demais residentes da Rua do Fogo, revelavam o lado profano da festa. O cortejo da Lavagem da Rua do Fogo era discriminado por parte da
Igreja e da elite da cidade, visto que seus integrantes eram pessoas de camadas
populares além de desviadas do verdadeiro significado da celebração cristã.68
Dessa maneira, a aproximação dos cultos africanos acaba sendo também, um
dos motivos da Igreja Católica não permitir a participação desses populares, afinal, o lado
profano da festa acabava descaracterizando o verdadeiro significado da celebração ao santo
de acordo com a instituição.
As lavagens em homenagem a São Roque de que trata Benevides e Santos,
tornam-se importantes por tratarem de uma das manifestações que retratam o cenário
cultural e dá visibilidade a cidade de Riachão do Jacuípe, além de evidenciar um dos
espaços nos quais o popular ganha destaque, assim como nas manifestações do samba de
roda.
Discutindo os espaços reservados ao samba de roda, o trabalho de Donizete
Nunes da Silva69
é de grande relevância, uma vez que trata do universo dos sambadores e
das sambadeiras jacuipenses, enfocando principalmente o grupo do Sufoco da Fumaça.
Silva elenca os lugares e saberes do samba de roda da cidade, tomando como
partida os depoimentos orais, ele descreve o samba a partir das memórias dos componentes
e da observação participante.
Para Silva esses lugares do samba representavam um lócus de difusão e
permanência dos batuques da cultura africana, pois mesmo com o passar dos anos e com o
advento da globalização continuam sendo realizados mesmo que isso não aconteça com a
mesma frequência de antes.
Os sujeitos analisados por Donizete Nunes da Silva fazem parte do universo
rural jacuipense, que tiram da terra e das colheitas, o sustento para si e de suas famílias,
configurando uma agricultura de subsistência, sendo que, a depender do tempo e da safra,
eles acabam vendendo parte do que é produzido.
É o que percebemos ao analisar a história do Samba do Bagaço, que mesmo
com o passar do tempo, ainda conseguem manter muito daquilo que aprenderam com seus
pais e avós. Ao analisar o trabalho de Donizete Nunes, percebemos muito do que vimos no
Samba do Bagaço.
68 SANTOS, Renatha Thais Menezes. Op Cit, p. 19. 69 SILVA, Donizete Nunes da. Lugares e Saberes da Roda de Samba na cidade de Riachão do Jacuípe.
(Monografia) UEFS, 2010.
35
O passo a passo do samba e do Boi Roubado parece ser o mesmo. O processo
consiste em surpreender o proprietário com uma festança que acontece noite adentro e se
inicia com a cantiga de reis, um ritual em que estas pessoas cantam este ritmo em oferenda
ao rei com o aval do santo São José, pedindo licença ao dono da casa para entrarem e
continuarem o samba.70
É nesse sentido que, como explica Luzia Gomes Ferreira71
, o samba de roda é
um espaço no qual homens e mulheres falam e expressam valores como a solidariedade,
cooperação, fraternidade, um espaço que muitas vezes o pouco conhecimento da escrita
não limita a sabedoria, pois eles conseguem expressar uma identidade própria de cultura e
sentimentos.
2.3 - Manifestações do Samba do Bagaço: as ocasiões do samba
O Samba do Bagaço é um grupo de samba de roda de Riachão do Jacuípe,
criado no ano de 1982, entretanto, os componentes não souberam dizer o mês e o ano da
sua criação. Fica claro, entretanto, a partir das entrevistas, que o grupo nasceu de uma das
manifestações de maior importância para o samba de roda: o Boi Roubado.
Este por sua vez consiste numa manifestação rural que acontecia nas
madrugadas da zona rural, na qual um grupo de trabalhadores se reuniam para a plantação
ou colheita de algum amigo que não tinha como pagar, ou até mesmo, apenas pela curtição
de dançar um samba.
Em entrevista com dona Maria Lopes da Silva, ela se propôs a fazer um
repente contando a história de como teria iniciado o grupo do Samba do Bagaço,
evidenciando em alguns momentos a relação intrínseca que ele tem com a cultura de
trabalho, e ficou assim:
Seu Luíz com a enxada.
Seu Valdemar com o cavaquinho.
Seu Loro Preto foi chegando olha o pandeirinho aqui. Foi chamando dona Gatinha, venha me ajudar a ralhar72
Vai chegando dona Luzia, eu também sei ralhar.
Foi chegando dona Bita e Maria Candeá, eu também sei ralhar.
Foi chegando seu Pedro com a cuia73, eu também sei bater cuia.74
70 SILVA, Donizete Nunes. Op Cit, p. 26. 71 FERREIRA, Luzia Gomes. O Samba de Roda nas Festividades de Nossa Senhora da Boa Morte em
Cachoeira. Bahia, 2004. Disponível em htpp//www.cult.ufba.br/enecul2005/LuziaGomesFerreira.pdf.
Acesso 13/03/2010. 72 No samba de roda ralhar significa dançar.
36
Segundo os depoimentos, o Samba do Bagaço era o divertimento que essas
pessoas tinham depois de um cansativo dia de trabalho na roça, uma vez que a grande
maioria dos componentes do grupo eram trabalhadores rurais.
Criado em um ambiente de trabalho rural, de lida na roça, da bata de milho e
feijão, o Samba do Bagaço era o divertimento nos momentos de descanso entre uma tarefa
e outra. Foi nesse contexto que um grupo de amigos resolveu “inventar” um espaço para
que pudessem “desanuviar” os esforços diários do trabalho, e por influência de seus pais,
avós ou até mesmo de vizinhos resolveram criar um grupo de samba de roda.
Uma vez criado o grupo era necessário colocar um nome. Este foi escolhido a
partir das experiências de trabalho dessas pessoas. Foi numa bata de feijão que o grupo
recebeu o nome de Bagaço, segundo seu Valdemar a escolha veio da seguinte forma:
Olha, é Samba do Bagaço sabe por quê? Por que o povo rapaz vamos botar o nome do samba de Samba do Bagaço que a gente é trabalhador, a gente ta
limpando terra, ta juntando o bagaço, ta queimando alguma coisa e outro falando
joga o bagaço pra lá, ta batendo um feijão, ta fazendo uma bata de feijão e
jogando os bagaço pra cima, ai botemo o nome do samba de Samba do Bagaço,
numa bata de feijão na casa de Luíz e Chica. Batemo o feijão, cantemo a tarde
toda e quando entremo pra sambar, o samba agora é Samba do Bagaço (risos).
(Entrevista realizada com seu Valdemar Demétrio de Almeida, dia 20 de maio de
2010).
A partir das entrevistas observei que essas pessoas passaram grande parte de
suas vidas na zona rural da cidade de Riachão do Jacuípe ou de cidade vizinhas, e desde
muito cedo tiveram contato não só com o trabalho da roça, mas também com práticas
culturais de seus pais e avós. Hoje em dia essas pessoas residem na zona urbana da cidade,
moram em bairros populares e em casas simples, aconchegantes e cheias de histórias pra
contar, onde o samba de roda não pode faltar.
No Samba do Bagaço não existe uma data certa para que aconteça um samba
de roda, isso depende muito das pessoas requererem uma apresentação em suas casas ou
em eventos culturais e até mesmo em outras cidades. Nesse trecho da entrevista com dona
Luzia fica claro como eram essas viagens. “[...] nois fomos pra tudo quanto foi lugar, mais
brinquei demais, Ave Maria! eu brincava, a gente perdia a noite, eu ia e a gente só
brincava era longe. Ai a gente ensaiava de dia, toda aqui a cidade a gente ensaiava
73 Cuia que é um instrumento musical feito de cabaça e utilizado por alguns grupos de samba de roda no
interior da Bahia. 74 Repente criado por dona Maria Lopes da Silva de 54 anos, na entrevista realizada no dia 09 de junho de
2009.
37
todinha”. (Entrevista realizada com dona Luzia Araújo de Oliveira no dia 19 de maio de
2010).
Como vimos os sambas não tinham dia certo para acontecer, inicialmente era
um divertimento que acontecia depois dos dias de lida na roça, posteriormente, quando a
grande maioria dessas pessoas vieram para a sede75
e começaram a trabalhar nas batedeiras
de sisal76
ou nas casas de famílias, os sambas aconteciam em encontros esporádicos, por
meio de um pedinte, um aniversário, ou seja, não tinha uma data específica.
Apesar de não ter uma ocasião certa para que acontecesse um samba, este era
considerado como um evento para os componentes: era o momento de sociabilidade e de
encontro, até mesmo para colocar a conversa em dia.
2.4 - Como os sambas acontecem: O passo a passo do Bagaço
Uma vez requerida à presença do grupo, o samba segue da seguinte maneira:
primeiro canta-se o Reis antes de entrar na casa, este por sua vez consiste numa espécie de
benção para que tudo ocorra bem durante o samba. Nesse momento o dono fica dentro de
casa enquanto os componentes e as pessoas presentes ficam do lado de fora, conforme seu
Valdemar o samba que começa sem o Reis não tem carreira, nem vai pra frente. Já para
dona Chica é como dormir sem rezar, um samba sem o Reis é um samba incompleto.
Do lado de fora da casa os componentes enfileirados começam a cantar o
Reis, liderado por seu Valdemar, “Oh de casa ou de fora, Oh de casa ou de fora, Maria
vem ver que é, Maria vem ver que é, Somos cantador de reis, Somos cantador de reis,
Quem mandou foi São José, Quem mandou foi São José”. (Entrevista realizada com seu
Valdemar Demétrio de Almeida no dia 20 de maio de 2010). Neste momento os outros
componentes do grupo respondem em coro, “Ô de casa ô de fora, Maria vá vê quem é,
Maria vá vê quem é ô” e assim segue.
Enquanto isso o dono da casa fica dentro de casa de porta fechada esperando
a cantoria do Reis até o final. Quando o Reis termina as pessoas entram na casa ainda
enfileirados e começam a formar uma roda grande, “aí agora a gente canta o batuque (...)
E aí pronto! Aí todo mundo se anima e vamos sambar até de manhã”. (Entrevista realizada
com seu Valdemar Demétrio de Almeida no dia 20 de maio de 2010).
75 Referente à área urbana da cidade. 76 Refere-se à Cresal, indústria de sisal da cidade de Riachão do Jacuípe, atualmente a indústria já não existe.
38
Uma vez que o Reis já foi cantando, é hora de entrar e começar o batuque.
De acordo com seu Valdemar um bom samba começa na escolha dos instrumentos de
qualidade, um bom cavaquinho, dois pandeiros, uma cuia e uma enxada são suficientes
para fazer um bom som. Caso haja alguém que saiba tocar a cuíca é de bom proveito, fora
isso o complemento com as palmas, se quiser colocar mais um instrumento para
aperfeiçoar ainda mais a batucada, a sanfona é uma boa alternativa. Instrumentos
preparados e o grupo reunido o samba começa e só termina quando o dia amanhece.
O samba nesse contexto, é uma manifestação que rompe com o cotidiano de
trabalho dessas pessoas, é o momento de festa e solidariedade de grupo, nessa perspectiva,
o trabalho de Norberto Luiz Guarinello77
faz uma importante contribuição. Para este autor
a festa não é vista como uma interrupção do cotidiano, prática evidenciada nos nossos
relatos, segundo ele a festa é uma parte integrante do dia a dia.
Segundo Guarinello (2001) existem vários sentidos para a palavra festa,
muitas vezes esses conceitos soam vagos e derivados do senso comum. A exemplo, disso o
autor ressalta que o seria festa para alguns, poderia não ser para outros.
Historicamente as festas eram vistas como espaços de bagunças, alienação,
chegando até mesmo a receberem denominações pejorativas, principalmente quando essas
festas eram de negros, como as manifestações de samba no Brasil Colônia, por exemplo.
Seguindo a discussão de Guarinello as festas poderiam ter diversos
significados, entretanto seria necessário percebê-las enquanto uma estrutura do cotidiano
de todas as sociedades humanas, um produto necessário para a própria manutenção da
ordem.
Dessa maneira, os espaços das festas também seriam espaços de criação de
uma identidade coletiva entre seus participantes, assim, a festa seria sempre:
[...] uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se da num tempo
e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e
emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo
produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera
de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das
ações sociais, cujo fim é a própria reunião ativa dos participantes.78
Contudo, Guarinello ressalva que pensar em festa enquanto espaços de
criação de identidade não é o mesmo que pensar numa homogeneidade de ideias e
77 GUARINELLO Luiz Norberto. Festa, trabalho e cotidiano. In: Festa: Cultura e sociabilidade na América
Portuguesa, Volume II/ István Jacson, Íris Kantor (orgs). São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São
Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. 969- 976. 78 Idem, p. 972.
39
pensamentos. Sendo um produto social, a festa também é palco de negociações,
divergências, tensões sociais. Assim, “a festa unifica, mas também diferencia”.
Para Edilece Couto79
, a festa seria sim uma interrupção do cotidiano, pois
tem o poder de quebrar o ritmo regular deste. Para ela, são a partir desses espaços de
sociabilidades que são criados os sentimentos de pertencimento e consequentemente,
formação de identidades para um determinado grupo social.
Refletindo a cerca Samba do Bagaço, isso se torna visível, pois é no espaço
do samba de roda que essas pessoas se sentem no coletivo e se consideram como um
grupo, relações que possibilitam uma sociabilidade e formação de identidade.
Ainda no campo dos estudos sobre festas, Carmélia Aparecida da Silva
Miranda80
ao analisar a comunidade de Tijuaçú, distrito localizado na cidade de Senhor do
Bonfim, ressalta as vivências cotidianas, as relações familiares, como também discussões
sobre identidade cultural e lazer.
Tijuaçú é uma comunidade muito pobre e socialmente desfavorecida, mesmo
assim, apesar das diversas dificuldades, a comunidade faz questão de homenagear seu
santo padroeiro e intercessor das horas difíceis.
Apesar das dificuldades, a festa faz parte do cotidiano da comunidade de
Tijuacú, e é vista pela autora como um momento de descontração, que acontecia nas
representações do samba de lata. Esse nome foi dado pelo fato dos sambadores não
utilizarem os instrumentos tradicionais do samba de roda, como o próprio nome diz,
utilizavam latas de zinco para produzir o som, realidade resultante também da falta de
condições do grupo para comprarem instrumentos.
Visto como principal expressão cultural da comunidade, o samba de lata é
visto como um momento de sociabilidade, comemoração, mas também pode estar ligado a
ritos de colheita, como é o caso do Boi Roubado, ciclos de passagem, dia de padroeiro e
outras ocasiões. Assim como o samba do Bagaço não tem dias específicos para que ocorra.
Nesses dias em geral as pessoas param suas atividades cotidianas para
comemorar e participar das festividades; é uma ruptura da vida diária, um
79 COUTO, Edilece. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista Brasileira de História das
Religiões- Ano I, nº1- Dossiê Identidades Religiosas e História. Disponível em:
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/01%20edilece%20Souza%20Couto.pdf Acesso em 28 de setembro de
2011. 80 MIRANDA, Carmélia Aparecida da Silva. Vestígios Recuperados: experiências da comunidade rural
negra de Tijuaçú-Ba. Tese de Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. São
Paulo, 2006.
40
intervalo da ordem estabelecida, momento de renovação das forças
desgastadas pela rotina de trabalho e pelo respeito às regras permitindo
que as tarefas habituais posteriores sejam retomadas com vigor.81
Para Miranda, manifestações culturais como esta representam as marcas de
um viver rural e uma herança africana expressada através das danças e dos ritmos
presentes. Ali em Tijuaçú, como também no Samba do Bagaço e no Boi Roubado,
percebe-se que o samba tem a função de mesclar divertimento e sustento.
Ao relacionar o samba de lata de Tijuaçú com o Samba do Bagaço de Riachão
do Jacuípe é possível perceber algumas semelhanças, principalmente, se entendermos o
samba como um espaço que rompe com o tempo do trabalho, uma vez que era nesse
ambiente de lida na roça, que tudo começou.
81 MIRANDA, Carmélia Aparecida da Silva. Op Cit, p. 123.
41
CAPITULO 3 - O BOI ROUBADO DE RIACHÃO DO JACUÍPE
É objetivo desse capítulo evidenciar o Boi Roubado de Riachão do Jacuípe,
analisando a partir dos relatos orais como acontecia o passo a passo dessa manifestação
rural, além verificar as relações de gênero e espaços reservados ao feminino.
De acordo com Suzana Souza Moreira de Almeida82
o cotidiano da
agricultura camponesa em Riachão do Jacuípe revela diversificadas práticas que articulam
experiências, saberes e trocas sociais de solidariedades. Nesse contexto destacamos a
presença do Boi Roubado, manifestação de ajuda mútua que acontece entre os
companheiros do Samba do Bagaço.
Práticas de agricultura rural como plantações de milho, mandioca e feijão,
como também a criação de animais de pequeno porte, faziam parte do cotidiano desses
trabalhadores rurais. Muitas vezes encontravam na solidariedade dos amigos a única
maneira de plantar e colher suas plantações, uma vez que faziam parte de um círculo social
humilde e sem renda para pagar trabalhadores do campo.
Ainda de acordo com Almeida, houve algumas transformações que mudaram
as relações existentes entre campo-cidade, contribuindo para o fortalecimento do êxodo
rural nas intermediações da cidade, em especial, nos distritos em que nossos informantes
passaram boa parte de suas vidas.
De acordo com a autora essa mudança foi percebida de maneira mais
consistente principalmente na década de 60, uma baliza temporal importante, pois
ocorreram transformações tanto no cenário econômico como no político do País.83
Sabendo que tem um companheiro com a roça pronta para capinar ou para
colher, os componentes do grupo chegam de “surpresa” com os instrumentos necessários e
ajudam na lida, no final do trabalho eles se reúnem para dançar o bom e velho samba de
roda, acompanhado de comida farta e muita bebida.
Era a condição de surpresa e de sigilo que determinava o caráter do trabalho e
dava a alegria e o entusiasmo para a realização da tarefa, recompensada ao
amanhecer do dia com a comida e a bebida disponível na ocasião. Para realizar a
82 ALMEIDA, Suzana Souza Moreira de. Memórias e Imagens do Sertão: trabalho, cotidiano e
solidariedades em Riachão do Jacuípe, Bahia, 1960-1970. Disponível em:
http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_III/suzana_souza.pdf. Acesso em 14/07/2010 83 Idem.
42
tarefa sem serem notados, os camponeses trabalhavam na roça do vizinho à
noite, de preferência, durante a lua cheia que facilitava a visualização.84
Em outros locais manifestações semelhantes com o Boi Roubado já foram
analisadas, por exemplo, Andréia Santos Teixeira Silva discute essas práticas de
solidariedade entre trabalhadores nas casas de farinha de Feira de Santana, ali existia a
ajuda mútua entre esses trabalhadores com o intuito de poupar esforços e reduzir a jornada
de trabalho. A autora discute a prática do chamado “dia trocado”. “Este acordo tinha como
finalidade colaborar com determinada família na realização de uma tarefa específica, neste
caso, a produção de farinha, visando o mesmo auxílio em momento oportuno. [...]”85
Ocasiões como a bata do feijão, o “sobaco”, o “corte” e o “boi roubado”
fizeram parte de uma rede de prevenções tecida no cotidiano rural de
busca pela manutenção familiar. O recurso a estas formas de ajuda se
fazia presente no dia-a-dia da maior parte das famílias locais, ainda que fossem compostas por um bom número de pessoas habilitadas para o
desempenho das tarefas. Além disso, tais formas de ajuda mútua também
demarcaram espaços de sociabilidade e de lazer, pois, muitas vezes, eram
acompanhadas de samba de roda, versos e bebida; de acordo com as
posses de cada um.86
Em casos como estes relações de solidariedade eram imprescindíveis, pois
esses trabalhadores dificilmente teriam como pagar a mão de obra necessária para o cultivo
ou colheita. Em troca dessa solidariedade, as pessoas recebiam, além da gratidão do dono
da terra a ajuda quando necessária num momento vindouro, assim também percebemos
características muito semelhantes do que acontecia no Boi Roubado jacuipense.
De acordo com as entrevistas realizadas com os componentes do grupo
Samba do Bagaço, o Boi Roubado, apesar da sua importância cultural e também solidária,
não é mais algo constante nos dias de hoje, muitos chegam a afirmar que ele nem existe
mais nos moldes da roça. Atualmente o que se percebe é uma espécie de adjutório urbano,
mas o Boi de Roça tradicional já não é algo percebível.
3.1 - Como minha avó dizia: o Boi Roubado nos olhares de dona Luzia
Natural da cidade de Santo Antônio de Jesus, dona Luzia 74 anos já morou
em Ipirá, na zona rural de Pé de Serra e depois veio para Riachão do Jacuípe. Mãe de
84 SILVA, Andréia Santos Teixeira. Trabalhando na roça e na casa de farinha: Relações Camponesas em
Feira de Santana, Bahia (1948- 1960). Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index. php/historia
social/article/view/30/24. Acesso em 06/04/2010. 85 Idem, p. 145. 86 Ibdem, p. 245-246.
43
catorze filhos resultantes de quatro relacionamentos, nossa entrevistada foi abandonada
pelo seu último companheiro, o único com o qual casara conforme a lei, e ainda com a
maioria de seus filhos pequenos.
Seu último marido saiu de casa com a desculpa que iria visitar sua mãe
adoentada e que ao completar quinze dias voltaria. Dona Luzia acabou entregando as
poucas economias que tinha para seu marido, a fim de ajudar sua sogra nesse momento de
dificuldade. Passaram-se os quinze dias e seu esposo ainda não tinha voltado e nem dava
notícia, assim, com o tempo, dona Luzia perceberia que tinha sido abandonada pelo pai da
maioria de seus filhos.
Aí desse menino vêi continuando ter menino sozinha, tendo menino sozinha, aí
voltei da Ciência87 voltei aqui pra Riachão do Jacuípe, tornei me casar o marido
me largou tornei me casar, aí tive mais filhos e criei. Fui trabalhar no sisal,
deixava os meninos sozinhos dentro de casa, passava o dia todo no mato estendendo fibra, cortando palha, aí agora voltava vinha dar de comer aos
meninos e mama e tornava voltar pro trabalho. E foi com essa luta toda que
graças a Deus, Deus criou meus filhos e eu olhei. Por que quem cria os filhos da
gente é Jesus e eu olhei. E aí até agora. (Entrevista com dona Luzia Araújo de
Oliveira, 74 anos, cedida a autora no dia 19 de maio de 2010).
Devido à condição social precária, agravada pelo abandono do marido, dona
Luzia viu-se obrigada a entregar três de seus filhos para serem criados por vizinhos e
amigos. Contudo, nossa entrevistada sempre fez questão de manter contato com seus filhos
e fez mais questão ainda de registrar todos. As pessoas a quem dona Luzia entregou seus
filhos tornaram-se seus compadres e comadres, relação de confiança que de acordo com
nossa entrevistada amenizava a dor de abrir mão dos filhos.
Dona Luzia afirmou nas entrevistas que só entregou seus filhos por que não
teve opção, pois mais doloroso que entregar seus filhos a outra pessoa, era vê-los passando
por necessidade. Ela lembra que foram muitas as vezes que viu os filhos que ficaram com
ela passando fome, situação que era amenizada pela solidariedade dos vizinhos.
Trabalhadora firme, mulher valente e batalhadora, dona Luzia nunca negou
trabalho, fosse nas plantações de mandioca, fibra de sisal ou em casa de família. Quando
veio morar na sede do município começou a trabalhar na Cresal e posteriormente em casas
de família exercendo a função de cozinheira.
Diferente da maioria dos componentes do Bagaço que fizeram parte do
grupo desde o início, dona Luzia começou a participar quando o grupo já estava formado,
87 Povoado localizado na zona rural de Pé de Serra- Bahia.
44
somente depois dos filhos crescidos e criados que dona Luzia começou a participar do
Samba do Bagaço. Convidada por seu Valdemar para ir brincar um samba, ela aderiu a
esse divertimento que segundo ela, tinha o poder de fazê-la esquecer dos problemas do dia
a dia.
Vista como uma das grandes anfitriãs do samba, a história de vida de dona
Luzia merece destaque e tem relevância por se tratar de uma mulher batalhadora que
enfrentou com muito trabalho as dificuldades que a vida lhe impôs, além de ser uma
mulher respeitada pela comunidade e exemplo de superação e força de vontade.
Difícil mesmo é falar de samba de roda e Samba do Bagaço sem que alguém
lembre seu nome e os sambas que aconteciam na sua casa. Embora não participe mais
ativamente do grupo devido a problema de saúde, dona Luzia nos revela que apesar das
recomendações médicas acaba caindo no samba quando tem a oportunidade, e confessa
que sempre amanhece o dia juntamente com seus companheiros do Bagaço.
45
Dona Luzia Araújo de Oliveira na roda de samba que aconteceu na sua casa.
Fotografia de Fernanda Vitorino, em 12/07/2010.
Apesar das restrições médicas, os sambas que aconteciam na casa de dona
Luzia nunca deixaram de acontecer, ou ela requeria um samba ou os seus companheiros de
grupo faziam um “samba roubado”, um samba surpresa. Para nossa entrevistada não existia
divertimento melhor que o samba, como deixa claro nesse trecho da entrevista: “Eu gosto
de brinquedo, eu não gosto de São João é bonito, não tem forro lindo. Mais eu gosto muito
mais do samba do que do forro, por que eu gosto mesmo de samba. Eu amo três, quatro
dia numa festa, num samba a gente brincando”. (Entrevista com Luzia Araújo de Oliveira,
cedida à autora no dia 19 de maio de 2010.
Os sambas que aconteciam na casa de dona Luzia acabavam chamando
atenção de toda a comunidade, a Rua Oito de Dezembro onde nossa anfitriã residia,
literalmente parava, observamos a presença de familiares, vizinhos, amigos mais próximos,
46
como também das pessoas que iam passando e acabavam sendo puxadas pelo som da
batucada. Era uma grande concentração de pessoas, crianças, adultos, ninguém ficava fora
da festa.
De acordo com essa anfitriã do Samba do Bagaço, o Boi Roubado consiste
numa reunião de amigos, que ao saber da necessidade de algum companheiro para capinar
ou colher a plantação, recorre aos amigos do samba que lhe ajudem na lida, ou como é
mais frequente, são “roubados” por eles num Boi de Roça. Essa afirmação fica mais clara
nesse trecho da entrevista:
Como é que acontece? Você ajunta um pessoal, tem você ta chovendo, o
dono da roça limpa, bota, paga pra limpar a terra todinha de trator, ara a terra. Ai eu li convido, Fernanda vamo fazer um Boi Roubado? Vamo
roubar aquele homem ali? Vamos. Quando é de noite a gente compra
bebida e compre foguete e vai pra debaixo do pé de pau três horas da
manhã. Ai quando chega lá três horas da manhã, o dono ta dormindo sem
saber de nada, ele não sabe de nada. Ai quando o dono acorda, acorda
com os foguetes e o canta loro. As cantigas ali, os foguetes subindo, daí o
povo cantando e o povo cavando cova de feijão, cavando milho, aquela
bagaceira toda e quando o dia amanhece já tem meio mundo de cova
cavada de milho de feijão. Ai a gente vai na porta chega lá vai buscar o
milho, quando chega lá o dono da casa já esta matando carneiro, porco,
galinha, não mata um boi por que é mais caro. Ai junta todo mundo vai pra roça catar o feijão, a outra fica dentro de casa cozinhando ajudando a
fazer tudo, cozinhando, tratando carne, tratando fato fazendo as coisas,
oh! Tempo bonito Ave Maria! Oh Fernanda se tu ver, oh! coisa bonita, se
tu visse ai ai. (Entrevista com Luzia Araújo de Oliveira, cedida a autora
no dia 19 de maio de 2010.
Como vimos no trecho acima, o companheirismo e a amizade que existia
entre os componentes do grupo era de grande importância para que o trabalho ocorresse de
maneira satisfatória, entretanto, apesar da relevância tanto cultural, como social que o Boi
Roubado exercia sobre essas pessoas, Dona Luzia acredita que ele já não seja mais o
mesmo. De acordo com seus relatos essa “brincadeira” já não é algo tão presente como
antes, e um dos motivos que certamente contribuíram para o desaparecimento dessa
manifestação, de acordo com nossa entrevistada, foram processos como a falta de chuva,
realidade que assola o sertão brasileiro.
É... agora nunca mais teve por que os tempo ficou escasso e é quando chove né?
E nunca mais choveu assim, pra dizer assim: tem roça mesmo pra mode os
fazendeiros fazer assim uma destampa de milho pra tratar, às vezes sai e ara uma
terra duas ou três tarefa, mais a chuva é escassa, o povo fica com medo de
roubarem e ter prejuízo. (Entrevista com Luzia Araújo de Oliveira, cedida a
autora em 19 de maio de 2010)
47
Além dos motivos elencados pela entrevistada, lembramos que os movimentos
migratórios, inclusive os provocados pelas secas, foram um dos fatores mais relevantes
para a quase extinção dessa manifestação, que era caracteristicamente presente na vida
rural. Com o passar do tempo, algumas dessas pessoas acabaram migrando do campo para
a cidade, enquanto outras foram obrigadas mudar de suas roças onde a produção era de
subsistência, para trabalhar em outro mundo rural, como, por exemplo, nas plantações de
sisal.
Planta de origem mexicana, o sisal é encontrado em abundância em lugares
quentes e se adaptou muito bem ao nordeste brasileiro. A fibra foi trazida ao Brasil no
início dos anos 60. De acordo com Cristian Barreto Miranda88
as décadas de 1970 e 1980
marcaram o período de maior vigor econômico do sisal, este por sua vez era conhecido
popularmente como ouro verde ou ouro branco do sertão, devido a grande concentração de
riqueza que gerou para os produtores e exportadores.
Em Riachão do Jacuípe esse período áureo do sisal ocasionou uma ampliação
das terras produtivas e a criação de inúmeras indústrias na região voltadas para os
manufaturados do sisal, como a Cresal, indústria que empregou muita gente na cidade,
inclusive grande parte das nossas entrevistadas, entre elas dona Luzia.
Contudo, apesar dos lucros que o sisal tinha nesse momento, de acordo com
Miranda isso não influenciou na diminuição das desigualdades sociais existentes nas
regiões produtoras, uma vez que os salários desses trabalhadores não condiziam com a
riqueza produzida com a fibra.
Devido à realidade de vida desses componentes, dona Luzia, assim como a
maioria do grupo não tiveram a oportunidade de frequentar a escola, pois tiveram que
trabalhar na roça desde cedo, dessa maneira, poucos aprenderam a ler e escrever. Nunca
tiveram tempo para estudar, para eles, estudar é um luxo que nunca tiveram. Os
componentes que atualmente foram alfabetizados começaram a estudar depois dos filhos
criados.
Dona Luzia sempre valorizou a educação, apesar de seus filhos terem
ingressando muito cedo no mercado de trabalho para ajudar no sustento da casa, ela
sempre fez questão que todos estivessem matriculados. A maior prova dessa valorização é
o fato de todos os seus filhos serem alfabetizados, se não deram continuidade aos estudos
não foi por falta de incentivo da mãe.
88 MIRANDA, Cristian Barreto. Igreja, relações de poder e conflito no território do sisal. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011
48
Dona Luzia faleceu no dia 27 de setembro de 2010 deixando 11 filhos e
vários netos e bisnetos. Para o Samba do Bagaço dona Luzia tornou-se um ícone de
fortaleza e força de vontade e nada mais merecido que esse espaço no nosso trabalho para
homenagear essa grande mulher.
3.2 - O passo a passo do Boi Roubado
Acorda vaqueiro acorda,
Quando os passarinhos canta, Meu gado se alevanta,
Levanta meu vaqueiro sai a fora,
Sai a fora meu vaqueiro, Que já deu foi cinco hora,
Boi, ôôôô boi89
O trecho acima relata como acontecem os Bois Roubados, que geralmente são
iniciados nas madrugadas, isso para que seja uma surpresa para o dono da casa que vai ser
“roubado”. No trecho percebemos também a alusão ao universo rural dessa manifestação,
fala-se do gado, do vaqueiro, ou seja, elementos que referem-se a vida compartilhada por
todos.
89 Autor desconhecido. Música cantada no Boi Roubado, Fonte: Documentário sobre o Boi Roubado de Serra
Preta-Ba, produzido por Ricardo Sena.
49
Fotografia retirada do documentário produzido em Serra Preta- Bahia, por Ricardo Sena lançado no dia 08 de
julho de 2011, feito a partir das histórias contadas por moradores da cidade.
Na fotografia acima percebemos como aconteciam as manifestações do Boi
Roubado. As mulheres na frente estão levando as bandeiras e os homens carregando os
instrumentos rurais para a lida na roça, como enxadas e facões.
O Boi Roubado começa um batalhão na roça, capinação de roça, os homem
capinando e cantando. Quando termina aquela tarefa vai pra dentro de casa
sambar, é o Boi Roubado. Quer dizer que eu tenho esse sitio aqui, não posso
pagar, ajunto uns companheiro pra capinar, ai eles vão capinando e cantando,
capinando e cantando, quando terminar a capina entra pra dentro de casa pra
sambar, beber e comer (risos) e ai é só alegria! (Entrevista com seu Valdemar
Demétrio de Almeida, cedida a autora em 20 de maio de 2010).
O costume de trabalhar cantando acaba ditando um ritmo de trabalho muito
mais proveitoso, é uma prática de trabalho coletivo herdado dos escravos africanos e que
acabava tendo um caráter de amenizar o trabalho pesado, uma vez que ao cantar e se
divertir os escravos sentiam o dia passar mais rápido.
De acordo com Alceu Mainart Araújo90
, o Aboio de Roça, manifestação
semelhante ao Boi Roubado, consiste num mutirão de ajuda vicinal que acontece com mais
frequência na região Nordeste do País. Segundo este autor essa é um dos momentos onde
reinam a camaradagem e a alegria, uma atividade congraçadora e que tem todos os
elementos participantes do “batalhão”.91
Ainda de acordo com este mesmo autor, o dono da roça, ou seja, a pessoa que
vai ser “roubada” fica responsável pelo café da manhã reforçado, que o autor chama de
“café do meio dia”, pois é mais ou menos nesse horário que os trabalhadores estão de volta
da roça.
Vem para comer na casa, sentam-se em esteira e a refeição é alegre: um alguidar
comum onde todos metem a mão, antes porem, tomam um trago de cachaça num
copo comum. Alguns preferem a “limpa” isto é a cachaça pura. Outros preferem a “misturada”.92
Ao analisar o Boi Roubado jacuipense percebemos que muitas dessas práticas
são observadas, principalmente a relação que essas manifestações culturais têm com a
cachaça, elemento indispensável para a realização desse encontro de amigos.
90 ARAÚJO, Alceu Mainart. Folclore Nacional: dança, recreação e música. 2ª Ed. Edições Melhoramentos. 91 Idem, p. 293. 92 Ibdem, p. 394.
50
(...) mutirão se desdobrava numa festa, manifestação maior do sucesso do
trabalho coletivo. O caráter festivo desta prática criava um ambiente todo
propício ao repertório de cantorias, desafios e causos que noite adentro animava
todos, principalmente crianças e velhos que também se empenhavam nas
atividades. Os jacuipenses ao realizarem as batas e bois-roubados, celebravam o
sucesso do trabalho empreendido nos roçados “cantando”, “tomando uma
cachacinha”, “brincando”, pois a solidariedade é uma festa, residindo aí a sua
peculiaridade em relação às demais práticas de trabalho: articular trabalho e
divertimento (...).93
As músicas de trabalho alegravam a rotina pesada desses trabalhadores rurais e
faziam o dia passar mais rápido, de acordo com Araújo o trabalho na roça se desenvolvia
melhor quando era acrescido dos cantos de trabalho.
O “tirador” é o que canta primeiro, uma outra pessoa responde, é o respondente.
Este em geral canta atenorado. Canta o tirador, responde o respondente, a seguir
canta o tirador, responde o respondente e no final de dois versos cantados em
duetos, os dois cantam “oi, oi, ai, olá, oi”. Um em voz natural, outro falseteando
uma oitava acima.94
No Boi Roubado jacuipense também percebemos os personagens do tirador e
do respondente. O primeiro na maioria das vezes é assumido por seu Valdemar Demétrio
de Almeida, que desempenha esse papel por ser o líder do grupo e um dos fundadores do
Samba do Bagaço, já o respondente pode ser qualquer um que tenha boa imaginação para
responder a tirada, que geralmente é de improviso. É uma espécie de “desafio” até chegar
naquele que não vai conseguir responder ao tirador. De acordo com Araújo a finalidade
desse desafio é justamente excitar para uma maior produtividade no trabalho.
É mais de improviso e é mais difícil viu? Não é todo sambador que faz. Pode ser
assim de dar uma entrevista assim de ver você assim sentada, você com essa
menina ai e fazer um batuque e fazer uma quadra com você, lhe louvar a situação
que você ta. Você ta com esse caderno ai fazendo uma entrevista, essa menina é
sambadeira e eu vou fazer uma entrevista com ela, ai faz aquele poema e aqueles
outro tudo responde né? Mais tem que ter um sentido muito bom pra não perder
aquela letra que ta fazendo com você, com você... com aquela televisão, com
aquele som. (Entrevista com seu Valdemar Demétrio de Almeida, cedida à
autora no dia 20 de maio de 2010).
O primeiro passo para a realização de um Boi Roubado é justamente descobrir
o amigo que está com a roça pronta para plantar ou colher, daí reúnem-se os componentes
do grupo para combinar o horário, e analisar algumas questões, como, por exemplo, se esse
companheiro, vai ter como alimentar todo o grupo. Quando era constatado que um
determinado companheiro não teria como oferecer essa a comida e bebida, os componentes
93 SILVA, Andréia Santos Teixeira. Op Cit, p. 06. 94 ARAUJO, Alceu Mainart. Op Cit, p, 393.
51
se união e providenciavam. O que é um dos indicativos de que o fator “surpresa” era
importante na concretização do Boi roubado.
Outro indicativo é o fato da manifestação do Boi Roubado que ora analisamos
geralmente acontecer nas madrugadas justamente para ser uma surpresa para o
companheiro que seria ajudado. Uma vez que o dono da casa descobria que havia sido
roubado, era a hora da correria, pois tinha que correr contra o tempo e preparar a comida
necessária para que o evento ocorresse da melhor maneira, afinal, a hora da comida e da
bebida seria o momento de agradecimento pelo trabalho exercido pelos amigos.
É o Boi Roubado. Ai a gente vai pra roça, rouba um boi, aquela cultura canta o
dia todo ali, arando uma terra, destocando um pasto, limpando um tanque,
qualquer trabalho da agricultura né? E ai de noite vem e canta uma bandeira na
porta bem bonito e esse trabalho é o boi de roça. Que muitas vez a gente canta
até de manhã. (Entrevista com seu Valdemar Demétrio de Almeida, cedida a
autora no dia 20 de maio de 2010).
Enquanto os homens estavam na roça, no plantio ou na colheita, as mulheres
ficavam na companhia da dona da casa na preparação das comidas e das bandeiras, para no
fim da tarde irem encontrar seus maridos na roça e darem início a parte do divertimento da
manifestação, o samba de roda.
Segundo dona Maria Lopes da Silva, as mulheres produziam duas bandeiras,
uma na cor branca e outra vermelha. De acordo com nossa entrevistada as bandeiras
significam o término do trabalho na roça e anunciam o início da festa. Depois de prontas
uma das bandeiras fica com os homens e outra com as mulheres. Quando eles se encontram
no final do dia o samba de roda “comia no centro” como expressou a entrevistada.
No meu tempo a gente enfeitava a bandeira até de dinheiro, mais hoje em dia ninguém enfeita mais, acho que com medo de roubar, do povo roubar. Ai a
vermelha quando der de tarde a bandeira vermelha vai pra roça pra quando eles
vim cantando o Boi Roubado a gente vai se aproximando com uma garrafa de
cachaça, um copo, um jarro de flor na mão e do modo que a pessoa queira se
enfeitar. Ai vai aquela turma de mulher com a panela na mão e vai encontrar os
homem no terreiro, ai eles vão louvar a nossa bandeira, ai a branca passa pra eles
e a vermelha passa pra gente, e ai nois vai sambar a noite toda. (Entrevista com
Maria Lopes da Silva, cedida a autora no dia 09 de junho de 2009).
Para dona Edelzuita Almeida da Silva, mais conhecida como dona Gatinha, o
Boi Roubado consiste numa reunião de roça entre amigos, que vendo a necessidade de um
plantio ou colheita, recorrem aos companheiros de samba, sabendo que numa necessidade
será recompensado.
52
Bem... O Boi Roubado é assim: tem um amigo da gente ali que tem uma roça pra
limpar então a gente diz: vamos ajuntar um grupo e vamo roubar cumpadre. Aí a
gente se prepara todo mundo e quando é e madrugada o dono da roça tá
dormindo e a gente cantando na roça. Os homens tudo de foice, de enxada, de
facão e vamo trabalhar que a gente tá na roça cantando. Aí vai um arengueiro
falar com o dono da roça: Tú foi roubado! Tá cheio de gente na tua roça. Aí o
cara se preocupa cá, vai matar carneiro ou frango pra dar de comer aquele povo e
finalmente é uma festança. (Entrevista com dona Gatinha, cedida a autora no dia
20 de maio de 2010).
De acordo com a entrevista com dona Gatinha, percebemos que apesar do
nome Boi Roubado, lavradores mais pobres nem sempre tinham como sacrificar um boi
para oferecer aos amigos, mas colocavam a disposição animais de pequeno porte como
galinha ou carneiro. De qualquer maneira, tudo acabava na festa regada pela cachaça e o
samba de roda.
3.3 - O feminino nas manifestações do Boi Roubado: “O homem é pra cantar e a
mulher é pra dançar”
Muitos autores já debruçaram esforços para o estudo das diferenciações entre
homens e mulheres nas manifestações populares no Brasil, para a realização dessas
pesquisas muitos utilizaram a memória e os relatos orais como recursos metodológicos a
fim de estabelecer às relações sociais que davam significado a vida dos sujeitos envolvidos
nas festas.
Nesse contexto, Marise Vicente de Paula e Alex Ratts95
procuraram
demonstrar a presença feminina nas festas populares de Catalão (GO), a partir da Congada
da Festa do Rosário da cidade, que representava uma das maiores manifestações populares
do congado no Brasil.
Os autores evidenciam ainda, a invisibilidade da mulher nos momentos rituais
da festa, tendo seu espaço reservado muito mais ao privado, nas preparações das roupas,
enfeites e alimentos.
Sendo assim, o estudo da memória irá representar um recurso metodológico
importante, visto que este estabelece interpretações sociais que permitem lidar
com a dimensão subjetiva do vivido e com as significações que configuram a
vida dos sujeitos envolvidos na pesquisa.96
95 PAULA, Marise Vicente de, RATTS, Alex. Relações de gênero na Congada de Catalão. Espaço em
revista. Volume 11, número 1, 2009. 96 Idem, p. 118.
53
Segundo esses autores, a história da mulher no Brasil é marcada pela
invisibilidade, e não foi diferente com o Congado de Catalão. Apesar da importância do
feminino na realização da festa, a mulher parece ter um espaço secundário. E justamente
por este não aparecimento da figura feminina, que os autores propõem evidenciar as
relações de gênero nas Festas do Rosário de Catalão.
Dessa maneira, Paula e Ratts procuram analisar quais são os espaços
reservados aos homens e as mulheres na Congada do Catalão, considerando as relações de
gênero como fatores de ocupação e construção dos espaços sociais nos espaços públicos e
privados, a fim de delinear os lugares femininos na festa.97
Nas manifestações por elas analisadas fica evidente a forte hierarquia espacial
existente entre homens e mulheres na festa, haja vista que quando as mulheres resolvem
participar mais ativamente da festa, dançando ou batendo caixa, abrindo mão do espaço
privado em detrimento do público, são vistas pela sociedade como subversivas a tradição.
Já Paula Faustino Sampaio98
ao evidenciar as sociabilidades femininas nas
festas de Cabaceiras (PB) observa como homens e mulheres se preparavam para participar
das mais variadas festas que aconteciam na cidade. Festas de padroeiros, festas natalinas,
de Reis, carnaval, festejos juninos, dentre outras. Mas era justamente o espaço reservado
aos homens e mulheres nessas festas e o comportamento esperado das mulheres que
chamou a atenção da autora.
A partir do uso da História Oral e da memória, Sampaio apoiou-se nas
experiências de vida dessas mulheres e suas relações e vivências sociais, construindo
memórias da infância, adolescência e vida adulta das mesmas.
Para a autora, a ampliação temática e documental que se percebeu nos últimos
anos, foi primordial para a renovação da disciplina História. Novos temas e enfoques,
como as sociabilidades femininas passaram a ter visibilidade historiográfica, enfocando
entre outras coisas, as relações entre homens e mulheres e a vida cotidiana feminina.
Essa ampliação temática trouxe também a possibilidade da ampliação das
fontes na produção dessa nova história, como, por exemplo, pelo uso de “[...]
autobiografias, cartas, cartões postais, fotografias, fontes orais, jornais, processos
criminais, revistas, entre outros materiais, que foram alçadas ao status de fonte histórica.”99
97PAULA, Marise Vicente de, RATTS, Alex. Op Cit, p. 122. 98 SAMPAIO, Paula Faustino. “Das festas há muitas coisas”: uma história das sociabilidades femininas nas
festas em Cabaceiras- PB (1930-1949). Anais do VII Seminário Fazendo Gênero, 2006. 99 Idem, p. 2.
54
Nas memórias das mulheres entrevistadas é possível perceber como elas
participavam da festa e quais as suas impressões. Essas festividades mexiam com a vida
dessas mulheres e de toda a cidade de Cabaceiras, era realmente uma interrupção da rotina
normal na vida dos moradores daquela cidade.
Nesse contexto, regras para o comportamento feminino eram evidenciadas,
fundamentadas num ideal de pureza, recato, contenção e discrição. A presença das
mulheres nesses espaços era extremamente vigiada, quando não pelos pais e irmãos, pelos
amigos e vizinhos. Realidade que não impediu que muitas cabaceirenses transgredissem as
regras.
Sem a permissão do pai e do irmão mais velho Inácio, ela saiu nas cincos ruas da
cidade atrás dos tocadores de pífanos dançando, namorando e bebendo, provavelmente, às outras jovens. Mesmo correndo o risco de ser delatada e
castigada Lourdes não deixou de se divertir sob os olhares vigilantes,
enamorados, curiosos dos cabaceirenses.100
Dessa maneira, observamos que essas mulheres, apesar dos olhares
repreensivos, não deixavam a diversão de lado, nem que para isso levassem uma boa surra
de seus pais, ou até mesmo, ficassem faladas na cidade. Elas vivenciavam esse momento
de prazer dentro de uma sociedade machista, conservadora, repressora e que não aceitava a
liberdade feminina.
Lady Selma Ferreira Albernaz101
trata da participação feminina na festa do
bumba meu boi do Maranhão, fazendo um cruzamento entre gênero, raça e classe e
enfocando as desigualdades daí decorrentes. Para tal a autora lançou mão de entrevistas,
fontes documentais e de uma bibliografia específica sobre a temática.
Anteriormente visto como uma cultura de homens pretos e pobres, o bumba
meu boi do Maranhão é considerado atualmente como uma manifestação popular muito
valorizada e recebe grande investimento público devido ao turismo e os processos de
reconhecimento de identidade, fatores que, segundo Albernaz, propiciou o aumento de
mulheres e seu acesso ao poder nos folguedos.
Dentre os personagens do bumba meu boi, podemos destacar a não
participação feminina. Segundo Albernaz apenas Catirina, uma das personagens dessa
manifestação, seria representada por uma figura feminina, mas que ainda assim, era
100 SAMPAIO, Paula Faustino. Op Cit, p. 3. 101 ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. Mulheres e cultura popular: gênero, raça, classe e geração no
bumba meu boi do Maranhão. 26ª Reunião brasileira de antropologia, GT 32 Articulações entre gênero,
sexualidade, raça e classe na antropologia. Universidade Federal de Pernambuco.
55
geralmente um homem travestido. Só atualmente se percebe a presença de mulheres nesse
papel.
Igualmente aos festejos do Congado do Catalão, antes de 1970, às mulheres
eram apenas reservados os espaços privados das produções dos folguedos, tais como,
confecção, guarda e preservação das indumentárias e na produção de alimentos para a
festa, ou seja, também são colocadas como secundárias e subsidiárias aos homens.
Quando as mulheres aparecem dentro do festejo é na posição de mutuca, que
segundo a autora enaltece sua posição de acompanhante do homem, lugar condizente com
as representações de gênero vigentes.
A autora percebe também, que os ideais burgueses, que reservam às mulheres
o espaço privado, é algo muito pouco perceptível às mulheres das classes mais baixas, que
sempre trabalharam e transitavam no espaço público maranhense.
As reflexões sobre as relações de gênero em outras manifestações de cultura
popular, como na congada de Goiás, no bumba meu boi do Maranhão, nas festas de
Cabaceiras são importantes para nos auxiliar a pensar sobre as relações no contexto aqui
analisado.
No Boi Roubado de Riachão do Jacuípe não é possível perceber essa falta de
liberdade feminina nas manifestações, contudo, fica evidente a distinção dos espaços
reservados aos homens e às mulheres, e, apesar de muitas vezes esses limites serem
transgredidos, de acordo com os relatos essa separação era importante para que tudo
ocorresse da melhor maneira.
Dessa forma, acreditamos que a inserção das mulheres no espaço público,
como também nas festas populares brasileiras, constitui-se em uma luta constante. A partir
dessa luta feminina os espaços antes reservados aos homens vão sendo ressignificados e
passam a ser incluídos no universo feminino. Transgredindo ou não as “tradições” as
mulheres vão assumindo os espaços vencidos, com muita luta, por igualdade de espaços e
direitos na sociedade brasileira.
De acordo com dona Maria Lopes da Silva os papéis femininos e masculinos
são claramente distintos nas manifestações do Boi Roubado ressaltando assim o caráter de
gênero na nossa discussão. Diante dessa constatação da nossa entrevistada, faz-se
necessária uma análise sobre os lugares do feminino no Boi Roubado, destacando os
conflitos resultantes dessas diferenciações.
Uma vez começado o Boi Roubado, homens e mulheres passam a exercer
papéis diferenciados. Enquanto os homens vão para a roça, capinar, plantar ou colher, as
56
mulheres ficam em casa ajudando nos preparos das comidas e das bandeiras juntamente
com a dona da residência.
Apesar das diferenciações de gênero, as narrativas dessas pessoas evidenciam
práticas que as identificam como um grupo, que tem identidade própria. São homens e
mulheres negras que passaram boa parte de suas vidas na zona rural, no trabalho na roça e
vivenciaram relações de trabalho onde a solidariedade de grupo sempre foi peça chave para
o sucesso da lida. Desde muito cedo tiveram que trabalhar e procurar o sustento, contudo
nunca deixaram de perceber um espaço onde pudessem se divertir e aliviar os esforços
cotidianos, de forma coletiva e com práticas comunitárias.
Outro momento em que as relações de gênero são percebidas é justamente
quando acaba o trabalho na roça e começa o tradicional samba de roda. Assim como nas
divisões de tarefas no Boi Roubado, a roda de samba também é palco de diferenciações
entre homens e mulheres.
Segundo dona Maria Lopes da Silva, ela sempre foi muito ousada, pois muitas
vezes chegava a tocar enxada102
melhor que muitos homens, fato que incomodava muitos
de seus companheiros de samba, inclusive as mulheres. Na fotografia abaixo, dona Maria
demonstra sua habilidade ao tocar o instrumento e ao mesmo tempo dar um show de samba
na roda.
Entretanto, o que é percebido, apesar dessa transgressão de dona Maria, é que
em alguns momentos os homens acabavam invadindo o espaço reservado as mulheres, a
roda de samba. Assim também acontece no Boi Roubado, no qual nem sempre as mulheres
ficavam em casa, muitas vezes elas iam pra roça juntamente com seus maridos ajudar na
lida. É bom ressaltar que essas mulheres passaram boa parte de suas vidas trabalhando na
roça, sendo assim, o trabalho pesado não era novidade na vida delas.
102 Instrumento de capinar ou revolver a terra. O uso desse equipamento do trabalho rural como um
instrumento de musicalidade do samba de roda, evidencia a relação existente entre o divertimento e o
trabalho nesses espaços.
57
Dona Maria Lopes da Silva na roda de samba na casa de Dona Luzia Araujo de Oliveira Fotografia de Fernanda Vitorino dia 12/07/2010.
Segundo seu Valdemar Demétrio da Silva, nem sempre os homens respeitavam
os espaços reservados para as mulheres, o som do samba de roda era mais forte que eles,
assim não dava pra resistir. Desse modo, fica evidente que, apesar dos espaços serem bem
delimitados, ainda era perceptível uma transgressão tanto das mulheres, como dos homens,
fato este que não tirava o brilho do samba de roda.
Quando perguntado se era permitido que os homens entrassem na roda de
samba seu Valdemar respondeu:
Pode, assim ele queira. Ele pode entrar, sapatear e cair fora, quarquer hora.
Depende aquele grupo ter aquela mentalidade né? Por que no da gente mesmo
brinca todo mundo, o cara não indo bagunçar entra todo mundo, agora se o cara
entra pra bagunçar a gente não aceita, mais que vai fazer a festa a gente vai.
58
(Entrevista com Valdemar Demétrio de Almeida, cedida a autora no dia 20 de
maio de 2010)
Algumas dessas insatisfações podemos perceber nos relatos de dona Gatinha,
“os tocadores não aceita ta tocando pra homem sambando, eles quer ver mulher fazer
roda no samba”. Diferente do que pensa dona Gatinha, seu Valdemar acredita que não é
nada demais o homem entrar na roda de samba, mas também não discorda totalmente da
companheira, para ele só não é aceitável que uma vez dentro da roda o homem queira
bagunçar ou desrespeitar as mulheres. De qualquer maneira, o que percebemos é que esta
regra é mais presente nos relatos do que na execução das manifestações.
3.4 - “A Moça Branca”: regando a alegria do Boi Roubado
Meu amo, meu camarada.
Agora vou lhe dizer.
Carro não anda sem boi.
Nem eu canto sem beber.103
De acordo com José Calazans, as manifestações populares brasileiras sempre
foram simpatizantes das bebidas alcoólicas, em especial da cachaça. A “moça branca”, a
“caninha”, “branquinha”, “pinga”, “água de cana”, “sumo de cana”, “meladinha”, são
alguns dos nomes dados à velha e boa cachacinha.
Para Elisabeth Gonçalves Moreira104
a cachaça aparece nessas manifestações
sociais como motivadora das festas e do trabalho, ainda que apareça de forma disfarçada,
sempre está presente.
Já para Calazans a bebida inspira os poetas populares e melhora a voz dos
cantadores, “a cantiga popular brasileira muito deve á aguardente de cana”105
Ainda de
acordo com este autor, os adeptos da boa e velha cachacinha nunca a abandonam, pois o
vício da embriaguez não faz ingratos, e os amigos da pinga dedicam-lhe sincera estima.
Como já falamos anteriormente, a bebida fazia parte de todo o ritual dentro do
Boi Roubado, como também do samba de roda. Depois do trabalho na roça a sua presença
era indispensável para regar a alegria e descansar o corpo cansado da lida pesada do
trabalho na roça.
103 CALAZANS, Jose. Cachaça, moça branca: um estudo de folclore. Secretaria de Educação e Cultura.
Salvador, 1951, p. 11. 104 MOREIRA, Elisabeth Gonçalves. Patrimônio imaterial, performance e identidade Letícia C. R.Vianna
e João Gabriel L. C. Teixeira. concinnitas ano 9, volume 1, número 12, julho 2008. 105 CALAZANS, José. Op Cit, p. 13.
59
Contudo o que o autor percebe é a desvalorização da cachaça diante de outras
bebidas alcoólicas, principalmente por ser ligada inicialmente aos negros africanos. Ele
ressalta, nesse contexto, a tentativa de embranquecer a cachaça e torná-la uma bebida de
boa origem social, isso é percebido até mesmo nos apelidos que ela ganha como, por
exemplo, branquinha, moça branca, moça loira, dona branca entre outros.
Dessa maneira, para Calazans houve uma “luta surda” entre o senhor branco e
africano escravizado. O branco a querer beber escondido, cheio de preconceitos contra a
bebida da senzala. O negro ironizando a situação. Percebe-se assim, que a bebida acabava
tendo um caráter de diferenciador social.
Todo branco quando morre
Jesus Cristo que levou
Mas negro quando morre
Foi cachaça que matou Quando branco vai na venda
Logo dizi ta squentaro
Nosso preto vai na venda
Acha copo, ta viraro106
106CALAZANS, José. Op Cit, p. 36.
60
Roda de samba na casa de dona Luzia Araújo de Oliveira
Fotografia de Fernanda Vitorino, dia 12/07/2010.
Na fotografia acima, percebemos a presença da cachaça em um dos encontros do
Samba do Bagaço na casa de dona Luzia. Era necessário no mínimo 15 litros de cachaça
para que o samba chegasse até o dia amanhecer. A cada parada do samba uma rodada da
branquinha. De acordo com Dona Luzia, não adiantava fazer samba sem bebida, por que
ninguém ficava.
Ao analisar a presença da cachaça nas manifestações do Boi Roubado
jacuipense, percebemos que apesar da presença da cachaça ser indispensável, é uma
preocupação dos componentes que não haja excessos, pois o samba tem que acontecer na
paz. Afinal, a bebida e a comida eram vistas como a recompensa pelo trabalho e quem
ousasse estragar esse momento era repreendido pelo grupo.
De acordo com dona Luzia, os sambas em sua casa sempre ocorreram na paz,
mas de vez em quando algumas pessoas que não sabem beber acabam tentando estragar a
festa. Isso fica claro no trecho da entrevista que ela relata um desses desentendimentos.
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Todo samba que eu vou nunca teve uma briga. Só teve uma vez, eu
comprei um fato de carneiro, parece, foi. Comprei dois fatos de carneiro e
fiz duas paneladas, uma de carneiro e outra de boi, ai tinha a panelada, ai
aquele Mané Grande ali de Maria, um grandão que tem ali no Alto do
Cruzeiro, queria a cabeça e Loro queria também, ai pegaram e quis brigar.
Oxe menina! Antonio Preto pegou Mane Grande botou nos braços e foi
botar la fora (risos) e deixou a cabeça pra Loro e esse ai já sorriu (risos).
(Entrevista com Luzia Araújo de Oliveira, cedida a autora no dia 19 de
maio de 2010).
Dona Luzia ainda salienta que apesar dos desentendimentos existirem, eles não
conseguem tirar o brilho da festa, que acontece até o dia amanhecer. E para aguentar o
“tranco” é necessário que além da bebida a comida também seja farta e de sustância. Nos
sambas em sua casa todo mundo saia satisfeito segundo nossa entrevistada:
. É fato de boi, mocotó, carne de boi, o que você tiver, mais o povo gosta muito de
carne, fato de carneiro. Hoje que a gente não vai achar mais isso por que depois
que essas carne passou pra Feira a gente não achar fato mais pra fazer. Ai
compra carne, galinha, pra fazer o cozido, mandar comprar galinha pra fazer tira
gosto a noite toda e bolacha, pra dar a noite toda pra gente merendar quando dar fome. (Entrevista com Luzia Araújo de Oliveira, cedida a autora em 19 de maio
de 2010).
Para dona Francisca Egídia Santos Oliveira, o samba que começa com confusão
não acaba bem. As pessoas estão ali para se divertir e a cachaça e comida farta são
indispensáveis, mas tudo tem que acontecer na paz. Isso fica evidenciado no seu relato:
Olha, o melhor do samba é não ter confusão ta entendendo? Por que se a gente
fizer um samba e ele ser tão bom e tiver uma confusão o samba não presta, o
samba só é bom quando não tem confusão. Graças a Deus todo samba que a
gente, que eu já fui e já fiz aqui em minha casa, tanto aqui como na casa do zoto
nunca deu confusão, a gente samba ate umas hora. E pra gente fazer um
sambinha não precisa de muita coisa, a gente compra... quem bebe vinho bebe
vinhi, quem bebe cachaça bebe cachaça, quem não bebe cachaça a gente compre
refrigerante e da, e tem que ter um cafezinho que muitos toma café, e se for a
noite toda de manha tem que ter uma farofinha ne? Ou de galinha, ou de carne,
ou de fato, seja la o que for pro povo não partir com o estomago puro (risos) já sambou a noite toda, e tem que ter de manha uma farofa pra recuperar as energia
(risos). (Entrevista com Francisca Egídia dos Santos Oliveira, cedida a autora no
dia 28 de junho de 2010).
Já para Dona Gatinha a cachaça é necessária para que as pessoas aguentem a
pegada do samba e fiquem até o dia amanhecer, mas nada se exageros.
Por que a gente gosta. Se a gente tomar um golinho de uma bebida a gente fica mais esperto ainda, e as amizade das pessoas, tudo faz com que a gente
amanheça o dia todo mundo em grupo, graças a Deus até o momento nunca teve
uma diferença, não tem briga não tem nada, então a gente gosta e é assim.
(Entrevista com dona Gatinha, cedida a autora no dia 20 de maio de 2010).
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Seu Valdemar acredita que a bebida, seja ela uma cervejinha ou a própria
cachaça pura, é indispensável para que o samba amanheça o dia.
A gente tira da cabeça, caiu lá dentro pronto! Pegou na viola e entrou? De hora
em hora toma uma cervejinha, quem quiser toma uma cachacinha e quanto mais hora passa mais a gente vai ficando com gosto daquilo e se tiver bom, Ave
Maria! Ninguém vê nem o dia nascer e no outro dia ainda fica com saudade,
rapaz nois podia fazer mais um sambinha hoje não era? (risos) que a vida é assim
mesmo e se não for assim não vai. Mais não tem distância não, nois samba hoje,
samba amanhã, samba depois, depende de onde tem cultura e gosta, tendo a
turma tanto pertinho, Ave Maria! Não tem nada melhor. (Entrevista com seu
Valdemar Demétrio de Almeida, cedida a autora no dia 20 de maio de 2010).
Em casos como esses as relações de solidariedade eram imprescindíveis, pois
esses trabalhadores dificilmente teriam como pagar a mão de obra necessária para o cultivo
ou colheita. Em troca dessa gentileza, a bebida e a comida desempenhavam importantes
papeis na brincadeira, pois além de demonstrar a gratidão da pessoa que foi roubada,
funcionavam como um incentivo a mais a aqueles que se dispunha a ajudar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos evidenciar, por meio da História Oral as manifestações do Boi
Roubado na cidade de Riachão do Jacuípe. Discutimos sobre o seu passo a passo e como
eles aconteciam, ressaltando seu caráter rural e a sua ligação com a história do Samba do
Bagaço.
Analisamos também a perseguição e repressão sofrida pelos batuques nos
períodos do Brasil Colônia e Império e de como o samba foi reinterpretado com o advento
da República tornando-se ritmo que identifica a nação brasileira. Discutimos ainda o
processo de patrimonialização do samba de roda da Bahia.
Acreditamos que nosso trabalho conseguiu alcançar os objetivos propostos,
como por exemplo, destacar os possíveis motivos que levaram ao processo de
desaparecimento desse festejo, como as secas que assolavam o sertão da Bahia e os
movimentos migratórios.
Consideramos que esta pesquisa tem relevância por se tratar de uma
manifestação cultural que vem perdendo sua representatividade diante das transformações
que levaram a uma maior valorização da vida e costumes urbanos, além de ser mais uma
contribuição para a historiografia baiana de estudos culturais.
Destacamos também o nosso estudo por se tratar de uma análise do samba de
roda do sertão da Bahia, demonstrando que essas manifestações transcendem os limites
geográficos do Recôncavo do Estado.
As entrevistas com os componentes do Samba do Bagaço possibilitaram a análise
do Boi Roubado como um espaço de trabalho e divertimento, a exemplo das batas de feijão
e de milho, prática de trabalho coletivo, onde reinam redes de solidariedade que
identificam o grupo.
Ao investigar essas práticas culturais evidenciadas pelo Boi Roubado, entendidas
aqui como relações de solidariedade que se reinventam, procuramos dar visibilidade a esse
festejo popular, uma vez que percebemos nele um espaço no qual os laços de amizade são
reforçados, promovendo a interação do grupo e intensificando seus vínculos identitários.
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LISTA DE FONTES
Fontes Orais:
Entrevista com dona Luzia Araújo de Oliveira, 74 anos, concedida a autora em 19
de maio de 2010, na residência da autora, na cidade de Riachão do Jacuípe, sobre a
sua história de Vida e a relação desta com a história do Samba do Bagaço.
Atualmente dona Luzia não participa ativamente do grupo por problemas de saúde,
mas é uma pessoa sempre lembrada pelo grupo, principalmente em relação aos
sambas realizados em sua casa.
Entrevista com seu Valdemar Demétrio de Almeida, 69 anos, concedida a autora
em 20 de maio de 2010, em sua residência, na cidade de Riachão do Jacuípe, sobre
a sua história de vida e a origem do Samba do Bagaço. Seu Valdemar juntamente
com seu Luíz foi o fundador do grupo no ano de 1982. Atualmente ele lidera o
grupo, uma vez que seu Luíz se afastou devido problemas de saúde.
Entrevista com dona Maria Lopes da Silva, a dona Bita, 56 anos, concedida a
autora em 09 de junho de 2009, em sua residência, na cidade de Riachão do
Jacuípe. Esta entrevista foi de grande importância, pois norteou as questões
discutidas no trabalho e ajudou na escolha dos nomes que seriam elencados para a
realização das entrevistas que seriam utilizadas.
Entrevista com dona Edelzuíta de Almeida da Silva, a dona Gatinha, 62 anos,
concedida a autora em 20 de maio de 2010, em sua residência na cidade de Riachão
do Jacuípe, sobre a sua história de vida e a sua relação com o Samba do Bagaço e
seus componentes. Dona Gatinha está presente no grupo desde sua formação, ela e
dona Chica foram as primeiras sambadeiras do grupo.
Entrevista com dona Francisca Egídia dos Santos Oliveira, a dona Chica, 57 anos,
concedida a autora em 28 de junho de 2010, em sua residência na cidade de
Riachão do Jacuípe, sobre a sua história de vida, a origem do Samba do Bagaço e a
relação do grupo com seu Luíz. A entrevistada é casada a 30 anos com seu Luíz,
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fundador do grupo juntamente com seu Valdemar, essa entrevista foi de grande
importância para perceber a relação do Samba do Bagaço com os componentes que
tiveram que se afastar das suas representações, além de ajudar a entender um pouco
da história de seu Luíz no grupo, uma vez que ele já não consegue mais lembrar das
coisas com clareza
Fontes Iconográficas:
Fotografias de Fernanda Vitorino;
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