Monografia - Fundamentos da distribuição progressiva da carga tributária
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GERSON DE FREITAS JÚNIOR
FUNDAMENTOS DA DISTRIBUIÇÃO PROGRESSIVA DA CARGA TRIBUTÁRIA.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO
BELO HORIZONTE 2011
2
GERSON DE FREITAS JÚNIOR
FUNDAMENTOS DA DISTRIBUIÇÃO PROGRESSIVA DA CARGA TRIBUTÁRIA.
Monografia de final de curso apresentada pelo graduando Gerson de Freitas Júnior, sob orientação da Professora Dra. Misabel Abreu Machado Derzi, ao colegiado de graduação da Faculdade de Direito da UFMG como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO
BELO HORIZONTE 2011
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FUNDAMENTOS DA DISTRIBUIÇÃO PROGRESSIVA DA CARGA TRIBUTÁRIA.
Monografia de final de curso apresentada pelo graduando Gerson de Freitas Júnior, sob orientação da Professora Dra. Misabel Abreu Machado Derzi, ao colegiado de graduação da Faculdade de Direito da UFMG como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.
Belo Horizonte, ___ de _________________ de 2011.
___________________________________________________________________ PROFESSORA DRA. MISABEL ABREU MACHADO DERZI (Orientadora). UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ___________________________________________________________________ PROFESSOR DR. WERTHER BOTELHO SPAGNOL UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ___________________________________________________________________ PROFESSOR MS. VALTER DE SOUZA LOBATO FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
4
RESUMO
De par com as ações estatais diretas inclusivas, a progressividade tributária inclui-se entre os
principais meios de que o Estado pode se valer para reduzir os desníveis sociais. Neste
trabalho serão apurados os fundamentos jurídicos, políticos e econômicos justificantes do
modelo progressivo de tributação, como a capacidade contributiva e a utilidade marginal
decrescente da riqueza, sempre com a ressalva de que os efeitos do modelo aqui defendido
serão inócuos se as despesas estatais se apresentarem regressivas. Serão analisadas, adiante, as
formas de insurgência mais comuns contra a progressividade tributária, sublinhando-se que
não raro decorrem mais de razões ideológicas que jurídicas ou econômicas, assim como
atribuem ao modelo defeitos encontráveis em sistemas regressivos ou proporcionais. Fixada a
imperatividade da tributação progressiva, tematiza-se a dificuldade em obrigar o legislador a
efetivá-la, reconduzindo-se a discussão ao âmbito do dever de legislar.
5
SUMÁRIO
1 - APRESENTAÇÃO.............................................................................................................. 6
1.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................6
1.2 – OBJETO DE ESTUDO DESTE TRABALHO: O MODELO PROGRESSIVO DE
DISTRIBUIÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA, SUBTRAÍDAS AS DESPESAS ESTATAIS. SOBRE O CARÁTER ILUSÓRIO DA PROGRESSIVIDADE EM SENTIDO
ESTRITO. ...............................................................................................................................8
2 – O MODELO DE DISTRIBUIÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA CO MO UM DOS ELEMENTOS DETERMINANTES DA OBSCENA DESIGUALDADE SOC IAL NO BRASIL ................................................................................................................................... 12
3 – FUNDAMENTOS DA DISTRIBUIÇÃO PROGRESSIVA DA CARG A TRIBUTÁRIA......................................................................................................................... 15
3.1 – PRESSUPOSTO NECESSÁRIO: A POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO
ESTATAL NO PLANO SOCIOECONÔMICO MEDIANTE NORMAS TRIBUTÁRIAS, DESIGNADAMENTE EM BUSCA DA JUSTIÇA SOCIAL..............................................15
3.2 – DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS FUNDANTES DA PROGRESSIVIDADE TRIBUTÁRIA ......................................................................................................................18
3.3 – PRINCÍPIO DA IGUALDADE....................................................................................20
3.4 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ..................................................23
3.4.1 – Considerações introdutórias. Dimensões relativa e absoluta .......................................................... 23 3.4.2 – Eficácia e alcance do princípio ........................................................................................................ 26 3.4.3 – Mínimo existencial, não-confisco e capacidade contributiva. ......................................................... 30 3.4.4 – Possíveis conteúdos econômicos, políticos e filosóficos do princípio .............................................. 32 3.4.4.1 – Princípio do benefício ou da equivalência ............................................................................... 33 3.4.4.2 – Capacidade contributiva segundo o talento pessoal ................................................................ 36 3.4.4.3 – Teoria do sacrifício................................................................................................................... 37 3.4.4.4 – Balanço sobre os possíveis conteúdos do princípio da capacidade contributiva sob o enfoque da progressividade tributária....................................................................................................................... 39
4 – INVECTIVAS COMUNS CONTRA A PROGRESSIVIDADE TRIB UTÁRIA. POSSÍVEIS RESPOSTAS..................................................................................................... 41
5 – PROGRESSIVIDADE E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR ..... ............................. 46
6 – CONCLUSÃO................................................................................................................... 49
7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 52
6
1 – APRESENTAÇÃO
1.1 – Considerações iniciais.
O sistema tributário brasileiro, nitidamente regressivo e pautado pela tributação
sobre o consumo, entrava o desenvolvimento econômico do país e a distribuição de renda,
ambos elementos necessários para o implemento da justiça social mirada pelos art. 3º, I e 170,
caput, da Constituição da República de 1988. A distribuição progressiva1 da carga tributária,
diretriz que deve orientar a atuação política das casas parlamentares na formulação de um
modelo de tributação justo, comparece como um dos mais importantes canais para a
distribuição de renda e para a atenuação do sacrifício econômico suportado pelas classes
sociais pobres no custeio do Estado e dos serviços públicos por ele prestados.
Algumas correntes econômicas sustentam que a distribuição de renda está
inextricavelmente ligada ao desenvolvimento econômico de uma sociedade, embora pairem,
desde os clássicos, extensas controvérsias sobre o tema (FONSECA, 2004, p. 269). Em todo
caso, o certo é que, deixadas de lado considerações de ordem econômica, não há
desenvolvimento constitucionalmente adequado desacompanhado da distribuição de renda.
Dela dependem a igualdade de oportunidades e o incremento do patamar material de vida da
população, objetivos constitucionais que não podem ser negligenciados à vista de dificuldades
econômicas, políticas ou operacionais. Apenas com a canalização de todos os esforços
possíveis para a repartição das riquezas é que se alcançará a sociedade livre, justa e solidária
aspirada pela Constituição, pondo-se fim à miséria que assalta expressivos contingentes da
população brasileira. Se a distribuição equitativa da carga tributária é um dos instrumentos
mais efetivos para a redistribuição da renda, ao menos dentro de um consenso mínimo
formado entre a maior parcela dos economistas e tributaristas, sua efetivação não pode
continuar a ser negligenciada pelos órgãos de produção do direito.
A despeito do evidente caráter humanitário e dos inegáveis avanços no campo
da justiça social promovidos pela distribuição progressiva da carga tributária, no limite é
necessário reconhecer que a medida esbarra em obstáculos incontornáveis para equalizar a
1 É necessário bem vincar que, salvo referência em contrário, neste trabalho o vocábulo progressividade será empregado em uma acepção lata, isto é, no sentido de sistema tributário que tributa com mais vivacidade as maiores manifestações de riqueza, sem nos limitarmos aos casos mais restritos em que a literatura tributária costuma empregar a expressão, equivale dizer, nos casos em que a alíquota é majorada conforme o incremento da base de cálculo. Nessa linha, ruma para a construção de um sistema tributário progressivo, e.g, a não incidência sobre os bens cuja aquisição se destina à preservação do mínimo existencial. A professora Misabel
7
sociedade. A redistribuição de riquezas, mesmo que plena, não pode pretender igualar os
homens em todos os aspectos da vida, nem mesmo no campo econômico, ao menos dentro de
uma ordem econômica capitalista e pautada pela livre iniciativa. Mesmo porque, como David
Hume constatou, o grau de riqueza é apenas uma das notas distintivas entre os homens,
existindo outros campos em que estes se desigualam: “por mais igual que se torne a
distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens
quebrariam imediatamente essa igualdade2”.
Não se pode desconhecer, sob outro aspecto, que a conclusão de que um
determinado nível de progressividade da carga tributária é ao mesmo passo desejável e
compatível com os objetivos constitucionais não soluciona os problemas macroeconômicos
daí implicados. A busca por uma taxa ideal de progressividade, e, bem assim, a análise da
repercussão das modificações legislativas introduzidas nesse campo sobre os índices de
investimento, emprego, distribuição de renda, fuga de capitais, estímulo à inovação e
empreendedorismo dificilmente pode ser levada a efeito sob um ponto de vista
exclusivamente jurídico. Se, por exemplo, existir norma a determinar que três quartos de toda
a renda auferida após um patamar prefixado devem ser revertidos ao Estado, o resultado
econômico indesejado dessa medida pode ser a cessação de investimentos e o estímulo ao
ócio3. Alcides Jorge Costa indiretamente corrobora essa ordem de preocupações quando, em
comentários prefaciais à prodigiosa obra do professor Luís Eduardo Schoueri “Normas
Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica”, aduz que:
“a indução a certo comportamento pode não ter sido desejada pelo legislador ou
sequer prevista por ele. É o que ocorre quando um determinado ente tributante
institui impostos excessivos, o que leva empreendimentos novos a se dirigirem para
o território de outros entes tributantes. Exemplo concreto foi o deslocamento das
empresas de ‘leasing’ do Município de São Paulo para Municípios Vizinhos onde o
Imposto sobre Serviços sobre essa atividade era sensivelmente menor
(SCHOUERI, 2005, p. X)”
Abreu Machado Derzi chancela a possibilidade de uso do vocábulo no contexto aqui proposto (BALEEIRO, 2010, p. 1161). 2 HUME, David. “Enquiries concerning human understanding and concerning the principes of morals, 3ª ed., Oxford, 1982, p. 194. Apud (SILVA, 2003, p. 250). 3 Consoante sustentaremos à frente, os argumentos de cunho econômico que são levantados contra a distribuição progressiva da carga tributária se confundem em grau acentuado com os problemas decorrentes da tributação demasiadamente elevada. Nessa razão, as teses objetadas à progressividade não raro atacam o aspecto quantitativo do problema, isto é, dizem de perto com a determinação de um índice adequado de progressividade, não atacando o modelo tributário em si.
8
Embora tenhamos antecipado a conclusão de que a distribuição progressiva da
carga tributária é necessária para a busca do objetivo constitucional de equalização da
sociedade, importa, na verdade, para este trabalho, discutir, sem prejuízo da análise do direito
positivo, a filosofia social e política que se esconde por trás dessa constatação. É certo que os
princípios da capacidade contributiva, igualdade, não-confisco e seletividade, todos
constitucionalmente previstos, não desempenharam com sucesso o papel central na ordem
jurídica que se lhes atribuiu. Faltam em nosso ordenamento medidas aptas a torná-los
plenamente operantes, a ponto de se poder afirmar que, atualmente, não se divisa no horizonte
qualquer solução para o problema da regressividade tributária que não passe pelo
convencimento dos membros das casas parlamentares. O Direito posto, pelo modo como tem
sido interpretado (condicionando a operabilidade dos noticiados princípios ao adensamento
promovido por atos normativos infraconstitucionais), não conseguiu efetivar minimamente a
justiça tributária, daí a importância de, além do exame do conteúdo vinculante dos sobreditos
princípios, abordarmos as teorias políticas atinentes à temática.
A importância da investigação aqui proposta se justifica pelo fato de que com
grande nitidez se pode enxergar que é principalmente no exercício do poder tributário que o
Estado põe ou deixa de colocar em prática o discurso constitucional da igualdade. A justiça
fiscal é tema de tamanha delicadeza que serviu como pano de fundo para insurgências e
revoluções em países os mais diversos, como Inglaterra, França, Estados Unidos e Brasil,
circunstância reveladora de que a matéria ocupa a pauta de preocupações mais instantes da
sociedade e influiu diretamente na história da civilização ocidental.
1.2 – Objeto de estudo deste trabalho: o modelo progressivo de distribuição da carga
tributária, subtraídas as despesas estatais. Sobre o caráter ilusório da progressividade
em sentido estrito.
Consignamos na primeira nota deste trabalho que o vocábulo
“progressividade” se presta a designar duas realidades específicas, embora conexas. Na
verdade, as palavras são simples rótulos que os homens apõem às coisas, não havendo
problemas no uso de um único signo linguístico para a descrição de diferentes objetos,
contanto que se explicite o contexto em que dito signo for empregado. Em sentido amplo,
qualificamos como progressivas todas as formas de tributação que incidem com mais
vivacidade sobre as maiores manifestações de riqueza. De outra parte, em um sentido restrito
9
– mais técnico – progressividade designa a majoração das alíquotas conforme o aumento da
base imponível.
O objeto de estudo deste trabalho cinge-se à análise dos fundamentos jurídicos,
econômicos e políticos correntemente invocados para suportar a progressividade em sentido
amplo - subtraídas as despesas estatais. O corte epistemológico aqui proposto tem uma razão
de ser: interessa-nos a justiça distributiva sob o ponto de vista do Direito Tributário.
O modelo tributário regressivo, no qual a carga tributária é amainada à medida
dos acréscimos de riqueza experimentados pelos sujeitos passivos, é infenso à justiça
distributiva constitucionalmente aspirada. A rigor, na hora atual, poucos chegam ao extremo
de sustentá-lo abertamente, porque retira das famílias mais carentes, em benefício de restrito
grupo de privilegiados, os recursos dos quais necessitam para viver com dignidade.
À sua vez, o modelo tributário proporcional é censuravelmente neutro4. Por
carrear ao Estado uma proporção fixa e idêntica sobre as riquezas manifestadas por todos os
pagantes de tributos, atribui o mesmo tratamento a classes sociais diferentes, desconsiderando
as singularidades da condição econômica de cada uma delas. A tributação proporcional não se
ajusta ao atual estágio evolutivo do princípio da igualdade, impositivo de discriminações
positivas em favor dos desfavorecidos.
Vê-se que ambos os modelos – proporcional e regressivo – não promovem a
redistribuição dos bens da vida produzidos na existência em comunidade, antes aumentam ou
conservam a desigualdade social. Daí a razão de não estarem inseridos no tema mais amplo da
justiça distributiva, conciliável apenas com o modelo progressivo de tributação.
No campo da progressividade, como já repisamos, tencionamos restringir o
foco do trabalho para a progressividade em sentido amplo. Isso porque a progressividade em
sentido estrito apenas inclui-se entre os meios pelos quais o Estado deve perseguir a justiça
social via imposição tributária. A progressividade das alíquotas, por si só considerada, não
raro apresenta um efeito ilusório e persuasivo sobre a população, que não atenta para pontos
mais intrincados da legislação tributária, como a dedutibilidade de despesas no imposto de
renda. Assim é que, segundo aponta relatório publicado pelo Conselho Fiscal da França em
maio de 20115, ainda que o Estado institua Imposto sobre a Renda graduado por alíquotas
4 Ressalve-se que, por vezes, atingido determinado nível de riqueza, a tributação proporcional deve ser empregada como forma de impedir a imposição tributária confiscatória (como, por exemplo, a instituição de uma alíquota no percentual de 99% sobre a riqueza auferida pelo sujeito passivo). 5 Conseil Des Prélèvements Obligatoires. Prélèvements obligatoires sur les ménages: progressivité et effets redistributifs – mai 2011 -, p. 27. Disponível em http://www.ccomptes.fr/fr/CPO/Accueil.html (acesso em 24.11.2011).
10
progressivas, o efeito redistributivo promovido por esta medida será anulado se ao mesmo
tempo conceder-se redução de base de cálculo sobre lucros tributáveis. Da mesma forma, se
uma percepção intuitiva inicial sinaliza que os dispêndios com a educação merecem receber
dedutibilidade ilimitada, essa medida, analisada com vagar, igualmente poderia anular os
efeitos benéficos decorrentes da graduação das alíquotas, na consideração de que os muito
ricos tendem a manter despesas anômalas nesse campo, e.g, enviar seus filhos para estudar em
escolas caras no exterior. Ao mesmo tempo em que obtêm muitas riquezas, as classes
abastadas usualmente promovem grandes despesas.
Disso segue-se a conclusão de que o foco na progressividade das alíquotas
como providência de justiça fiscal corresponde a uma visão parcelar da realidade. Mais
profícua é uma análise macroscópica, sistêmica ou panorâmica sobre o esquema tributário em
vigor, a considerar os múltiplos fatores que, implicados em uma relação dinâmica, compõem
o resultado final: um sistema tributário regressivo, proporcional ou progressivo.
Ainda assim, visto o modelo tributário macroscopicamente, jamais seria
possível exaurir o tema da justiça social distributiva. “O valor que orienta a política fiscal
não pode ser a justiça tributária, mas sim a justiça social (MURPHY E NAGEL, 2005, p.
238)”. Portanto, há outras ações estatais não diretamente relacionadas ao poder de tributar
que, somadas com este, integram o gênero mais amplo da justiça social. Nesse aspecto, pode-
se até mesmo falar em despesas estatais progressivas ou regressivas. Em consonância com o
já noticiado relatório publicado pelo Conselho Fiscal da França em maio de 20116, ações
diretas do Estado no terreno educacional e outras formas de assistência social tendem a ser
progressivas, na medida em que devolvem aos pobres na forma de serviços o peso da carga
tributária por eles suportada. Se o valor dos serviços prestados aos despossuídos superar
aquilo que estes destinam aos cofres estatais, estaremos diante de um Estado que se orienta
pela progressividade nos gastos públicos. Mas há, também, despesas públicas nitidamente
regressivas, como, por exemplo, a ampliação de salas de embarque dos aeroportos. O
cômputo geral resultante da ponderação entre despesas progressivas e regressivas
naturalmente influi nos resultados socioeconômicos resultantes do modelo tributário vigente,
pois gastos regressivos anulam imposições tributárias progressivas. Não há avanços em tema
de justiça distributiva se os ricos pagarem mais tributos e, em contrapartida, receberem em
maior grau os préstimos promovidos pelas ações diretas do Estado.
6 Conseil Des Prélèvements Obligatoires. Prélèvements obligatoires sur les ménages: progressivité et effets redistributifs – mai 2011 -, p. 37. Disponível em http://www.ccomptes.fr/fr/CPO/Accueil.html (acesso em 24.11.2011).
11
A subtração das despesas estatais do âmbito de investigação deste estudo
monográfico deriva tão-somente de uma razão metodológica. Se a pesquisa é desenvolvida na
província do Direito Tributário, é natural que os princípios norteadores da despesa pública
socialmente adequada sejam omitidos na exposição.
Este estudo guarda o objetivo de analisar o sistema tributário brasileiro sob a
ótica da distribuição progressiva da carga tributária. Inicialmente, no capítulo 2, serão feitas
algumas pontuações relativas a dados importantes que demonstram a negligência do Estado
brasileiro com o importantíssimo tema da justiça fiscal. Em seguida, no capítulo 3,
analisaremos a base normativa da progressividade tributária, dispensando especial atenção aos
princípios da igualdade e da capacidade contributiva. No capítulo 4, retorquiremos as críticas
mais comuns dirigidas ao modelo progressivo de tributação, no intento de evidenciar que boa
parte delas descende de razões ideológicas ou é despida de fundamentos sólidos. Por
derradeiro, no capítulo 5, abordaremos o tema do dever do legislador de instaurar um sistema
tributário progressivo.
12
2 - O MODELO DE DISTRIBUIÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA CO MO UM DOS
ELEMENTOS DETERMINANTES DA OBSCENA DESIGUALDADE SOC IAL NO
BRASIL.
O papel central jogado pela tributação no campo das políticas públicas voltadas
para a atenuação das desigualdades sociais tem sido negligenciado desde sempre pelos
administradores públicos e congressistas brasileiros. Por essas paragens, a carga tributária
recai sobre a população predominantemente sob as vestes de tributação indireta7, de modo a
incidir, como regra, sobre todos os elos do ciclo econômico, repercutindo economicamente
sobre os contribuintes de fato (consumidores). Ademais, a tributação indireta atua
veladamente8 na formação dos preços cobrados do consumidor final, cuja capacidade
contributiva é, desse modo, simplesmente desconsiderada. Nesse panorama, ricos e pobres
destinam os mesmos valores às burras estatais no momento em que adquirem um quilo de
feijão. A seletividade tributária, princípio constitucional que em sede de IPI e ICMS
determina a diminuição das alíquotas segundo a essencialidade dos bens comercializados, é,
com frequência, apenas uma fórmula vazia inobservada pelo legislador. Isso porque as
Fazendas Públicas simplesmente não o observam ou, quando muito, na medida em que
predomina o entendimento de que bens essenciais são apenas aqueles necessários à
subsistência. Por ser incompatível com a justiça social, o professor alemão Klaus Tipke se
opõe frontalmente ao esquema tributário vigente neste país:
“Um princípio que subtrai o mesmo montante tanto de ricos como de pobres
também não é conciliável como o princípio do Estado Social. Aliás, as
necessidades financeiras de um Estado não são sequer atendidas se os ricos não
devem pagar mais do que aquilo que os pobres podem contribuir, ou se
sobrecarregaria completamente as classes mais pobres. Mas também dos pobres
pode-se retirar apenas aquilo que eles têm (TIPKE e YAMASHITA, 2002, p. 28)”.
Não pretendemos, com isso, significar que a distribuição injusta da carga
tributária representa mais uma jabuticaba nascente apenas nas terras brasileiras, já que o
7 Hugo de Brito Machado Segundo anota que há quem sustente a erronia da distinção entre tributos diretos e indiretos, sob o fundamento de que o discrímen utilizado é mais econômico que jurídico, não científico, ou simplesmente equivocado (SEGUNDO, 2011). De outra parte, os defensores dessa tipologia sustentam que a repercussão tributária envolvida na distinção entre tributos diretos e indiretos é exclusivamente jurídica. 8 O comando inscrito no 150¸§5º, da Constituição, segundo o qual “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços” é solenemente
13
debate tem sido levantado até mesmo nos Estados Unidos da América, centro do liberalismo
econômico, sobretudo após a declaração9 proferida pelo multibilionário investidor Warren
Buffett ao jornal The New York Times no sentido de que os mega-ricos norte-americanos
deveriam pagar mais tributos.
Acontece que o problema brasileiro cresce de ponto comparativamente a outros
países quando se verifica que, aqui, “o décimo mais pobre sofre uma carga total equivalente a
32,8% da sua renda, enquanto o décimo mais rico, apenas 22,7” (POCHMANN, 2008, p. 3).
Esse cenário é inaceitável em uma sociedade que ostenta um dos mais vergonhosos
Coeficientes de Gini (índice internacional mensurador da desigualdade social) do planeta,
despontando na rabeira de países como Moçambique, Zâmbia e Zimbabwe. O Brasil é, na
quadra atual, o décimo10 país mais desigual do mundo, circunstância reveladora de que suas
políticas públicas não costumam tomar em alta conta o objetivo constitucional de erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III).
De parte isso, a intributabilidade do mínimo vital ainda está longe de ser uma
regra levada a sério, contemplando-se no atual sistema tributário nacional uma gama de
figuras impositivas a se abater sobre os recursos essenciais para o sustento de uma vida
familiar digna. Basta notar que, segundo o Dieese11, o salário mínimo necessário em agosto
de 2011 para sustento do trabalhador e sua família deveria ser fixado em R$2.278,77, ao
passo que, no mesmo período, a isenção de imposto de renda não ultrapassou o teto de
R$1.499,15. Não bastasse, ainda no âmbito do imposto de renda, a tabela para o cálculo do
imposto incidente sobre a pessoa física ainda não contempla o número necessário de faixas de
renda para torná-lo efetivamente progressivo (como determina o art. 153, §4º, I da
Constituição de 1988), em que pesem os recentes e tímidos esforços para ampliá-las ao todo
para quatro. Vê-se que, no Brasil, mesmo os impostos diretos portam consigo o laivo da
injustiça fiscal, e tudo isso à sombra larga dos pretensos representantes políticos da maioria.
Sugestivamente a instituição do Imposto Sobre Grandes Fortunas – IGF –,
previsto no art. 153, VII, além de não ter sido levada a cabo, fora condicionada à edição de
Lei Complementar, e não apenas para definir seus elementos estruturantes, como o faz o
Código Tributário Nacional em relação a outros impostos. Tudo isso vem indicar que o
ignorado pelos legisladores, que ainda agravam a situação ao adotar técnicas obscuras de arrecadação tributária, a exemplo da base de cálculo por dentro do ICMS. 9 A íntegra do artigo se encontra disponível no endereço: http://www.nytimes.com/2011/08/15/opinion/stop-coddling-the-super-rich.html?_r=1&scp=1&sq=buffett%20op-ed&st=cse (acesso em 05.09.2011). 10 Informação disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2172rank.html (acesso em 05.09.2011).
14
Constituinte Originário foi pródigo ao estabelecer fórmulas abstratas e generalíssimas
predicantes da igualdade social (por exemplo, o objetivo republicano previsto no art. 3º, I),
enquanto que na elaboração de normas concretas e particulares de fácil aplicação [não] o fez
comedidamente.
11 Informação disponível em: http://www.dieese.org.br/rel/rac/salminMenu09-05.xml (acesso em 05.09.2011).
15
3 – FUNDAMENTOS DA DISTRIBUIÇÃO PROGRESSIVA DA CARG A
TRIBUTÁRIA.
3.1 – Pressuposto necessário: a possibilidade de intervenção estatal no plano
socioeconômico mediante normas tributárias, designadamente em busca da justiça
social.
A Constituição de 1988 consagrou a ordem econômica capitalista12, embora o
tenha feito de forma acentuadamente diversa comparativamente aos textos constitucionais do
século XIX, documentos inspirados pelo ideário do liberalismo econômico individualista.
Assim, se de um lado o leitor da Constituição da República confronta a livre iniciativa como
fundamento da ordem econômica (art. 170, caput) e com a propriedade privada e a livre
concorrência como princípios dessa mesma ordem (art. 170, II e IV), por outro, topa com
diversos outros dispositivos determinantes da busca pela justiça social. Eros Roberto Grau
traça em breve apanhado as mais relevantes disposições constitucionais pertinentes à
Constituição econômica:
“ - a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do
Brasil (art. 1º, III) e como fim da ordem econômica (mundo do ser) (art. 170,
caput);
-os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 3º, I);
- o garantir o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil (art. 3º, II);
- a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades
sociais e regionais como um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil (art. 3º, I) – a redução das desigualdades regionais e sociais também
como princípio da ordem econômica (art. 170, VII);
- a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º);
- a garantia do direito de greve (art. 9º);
- a sujeição da ordem econômica (mundo do ser) aos ditames da justiça social (art.
170, caput);
12 EROS ROBERTO GRAU realiza um balanço sobre a diversidade de opiniões emitidas acerca do sentido da ordem constitucional econômica, registrando as opiniões dos juristas Geraldo Vidigal, Miguel Reale, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Raul Machado Horta, José Afonso da Silva, Washington Peluso Albino de Souza e Tércio Sampaio Ferraz Júnior (GRAU, 2010, pp. 180-193).
16
- a soberania nacional, a propriedade e a função social da propriedade, a livre
concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das
desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte,
todos princípios constitucionais nos termos do art. 170;
- a integração do mercado interno ao patrimônio nacional (art. 219) (GRAU,
2010, p. 195)”.
A Constituição se expressa mediante um texto dialético, veiculador de
orientações ideológicas que à primeira vista são conflitantes. O documento constitucional
corporifica, nos dizeres do constitucionalista português Joaquim Gomes Canotilho, o estatuto
jurídico do político (CANOTILHO, 1996, p. 36), de modo que por isso sua interpretação
exige naturalmente a ponderação de valores políticos. Ao lado de valores liberalizantes, o
texto constitucional decididamente impõe ao Estado o implemento de medidas tendentes à
redução dos desníveis sociais, inclusive mediante intervenções efetivas na ordem econômica.
Todavia, na medida em que a Constituição está sujeita a interpretações ideologicamente
enviesadas, não raro os dispositivos constitucionais são analisados de forma
descontextualizada, sendo mobilizados para a defesa de concepções de ordem econômica
idealizadas por restritos grupos de interessados13. Eros Roberto Grau exemplifica:
“Para um Diretor de Relações Públicas de empresa multinacional (Isto É-Senhor,
23.11.88, p. 71),’a atual Constituição Federal do Brasil representa significativa
evolução do Direito Econômico do País em direção do liberalismo. Pela primeira
vez eleva-se o princípio da livre iniciativa a fundamento do Estado (art. 1º, IV); Os
temores de uma estatização ou socialização da economia brasileira estão
afastados, ab initio. O Estado está limitado a estabelecer como funções normativas
e reguladoras somente a fiscalização, o incentivo e o planejamento’ (art. 174)
(GRAU, 2010, pp. 190-191)”.
A linha de raciocínio exibida acima parte do equivocado suposto de que a
intervenção no domínio econômico se contrapõe à ordem capitalista e ao seu correlato
princípio da livre iniciativa. Diferentemente do que aponta o diretor de empresa
multinacional, nosso sistema de produção – o capitalismo - não é capaz de operar sem grandes
13 Ressalve-se que não se deseja, no ponto, incorrer em uma pretensão de imparcialidade, na medida em que a interpretação do texto constitucional também pode ser e é toldada pela visão política do seu intérprete. Acontece que a Constituição nos legou numerosos indícios de que se encontra no ponto médio entre as extremidades do espectro político.
17
doses de atuação direta do Estado, tanto no campo de correção das distorções mercadológicas
como no exercício da função redistributiva de riquezas. Faltante o Estado no domínio
econômico, a livre concorrência cede lugar aos conluios de todo gênero e à força dos agentes
econômicos capitalizados. Por outro lado, sob uma perspectiva bastante utilitarista, sem a
transferência de riquezas para os pobres e miseráveis não se pode formar um mercado
consumidor extenso o suficiente para proporcionar vazão à produção massificada de bens e
serviços. O capitalismo não rechaça a atuação estatal na ordem econômica, antes é dela
dependente, sob risco de ver ruir o seu pilar mais importante, a liberdade econômica de
empreender e consumir.
A ordem jurídica compõe uma unidade objetiva, arranjada e unida pela
totalidade, devendo, por isso, ser rechaçado o insulamento de normas constitucionais
específicas para daí extrair-se o afastamento do Estado da economia. Vista a Constituição
Econômica sistematicamente, fica muito clara a possibilidade de intervenção do Estado para a
correção das distorções decorrentes das desigualdades naturais, sociais e econômicas. Os
vetores constitucionais da livre iniciativa, propriedade privada e livre concorrência, no
momento em que compulsados com o objetivo republicano de erradicação da pobreza e
redução das desigualdades sociais e regionais, não podem mais suportar o argumento de
neutralidade do Direito Tributário no campo da distribuição de riquezas.
Nem por isso se deve partir de uma concepção de Estado monopolista da
solidariedade social, como se este fosse o único ente incumbido da persecução de uma
sociedade livre, justa e solidária. Não é este o papel que a Constituição lhe reserva.
Inversamente, o texto constitucional adota uma lógica pluralista ao conclamar a sociedade
para efetivar os direitos sociais, culturais e econômicos. Assim é, por exemplo, com a abertura
dos segmentos da saúde e educação para a exploração empresarial e privada. É sem o peso da
dúvida, no entanto, que se pode reconhecer que o Estado ocupa posição central na busca pela
redistribuição de riquezas, sendo a política tributária um dos instrumentos mais efetivos de
que se pode dispor para o implemento dessa meta. Nesse ponto, Luís Eduardo Schoueri
assinala que: “sobre a relação entre tributação e Ordem Econômica, deve-se ponderar que a
primeira não é um corpo estranho na última, mas parte dela e por isso deve estar em
coerência com a Ordem Econômica, submetendo-se a ela” (SCHOUERI, 2005, p. 87).
É aqui chegada a altura de reconhecer que, por mais que se tente pensar por
outra forma, a aplicação dos dispositivos integrantes do título “Da Tributação e do
Orçamento” não explica satisfatoriamente a interpenetração do Direito Tributário com a
18
justiça social distributiva. Dispositivos inseridos em outros títulos do texto constitucional,
como “Dos Princípios Fundamentais” e “Da Ordem Econômica e Financeira”, sempre
desempenharão, nesse campo, um papel destacado. Mesmo que se assumam concepções
extremamente ampliativas acerca do alcance dos princípios da capacidade contributiva e
igualdade tributária, a matéria sempre estará impregnada de extrafiscalidade14.
Particularmente no modelo brasileiro, inevitavelmente ganhará tônica no debate a pretensão
constitucional de reduzir as disparidades intersubjetivas, a evidenciar que o tema não se
encontra circunscrito ao domínio do Direito Tributário, mas, antes de tudo, envolve o embate
político entre múltiplos grupos de interesse e a própria efetividade dos objetivos previstos no
texto constitucional.
3.2 – Dispositivos constitucionais fundantes da progressividade tributária.
A Constituição da República Federativa do Brasil não tematiza expressamente
o dever estatal de instauração de um sistema tributário progressivo (em sentido lato), senão
apenas menciona, nos art. 153, §2º, I, art. 153, §4º, I, e art. 156, §1º, I, a possibilidade ou
obrigatoriedade, atendidos pressupostos específicos, da previsão de alíquotas progressivas nas
leis instituidoras de três impostos, dois deles reservados à competência da União Federal –
imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e imposto territorial rural -, e o último
sob a alçada dos Municípios – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana.
Não é pela circunstância de a Constituição emudecer-se a propósito da
progressividade em sentido lato, no entanto, que a conclusão pelo seu caráter mandatório deve
ser rechaçada15. Nesse ponto, reproduzimos, a breve trecho, quase integralmente o apanhado
elaborado por Henrique Napoleão Alves continente dos dispositivos constitucionais que
sustentam a distribuição progressiva da carga tributária (ALVES, 2011, pp. 64-66).
Logo no preâmbulo – trecho que funciona como vetor hermenêutico para a
compreensão do articulado que lhe sucede -, a Constituição trata da justiça social,
conclamando o Estado e a sociedade civil à persecução da igualdade, fraternidade e do
respeito aos direitos sociais. Mais adiante, eleva a dignidade da pessoa humana à condição de
14 Adota-se, aqui, uma acepção ampliativa do vocábulo “extrafiscalidade”, no sentido de abranger toda e qualquer imposição tributária que não objetive em primeiro lugar carrear recursos aos cofres estatais. Os partidários da concepção restritiva entendem a palavra como abrangente apenas das imposições tributárias que visam a estimular ou inibir comportamentos específicos dos sujeitos passivos. 15 A investigação acerca das inter-relações entre a progressividade tributária e a vinculação do legislador será objeto do capítulo 5.
19
fundamento do Estado (art. 1º, III), e relaciona a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, a erradicação da miséria, pobreza e marginalização, assim como a redução das
desigualdades sociais e regionais como objetivos fundamentais da República federativa do
Brasil (art. 3º, incisos I e III). O direito fundamental à propriedade, segundo o art. 5º, XXIII,
não é intangível ou absoluto, estando, na verdade, funcionalizado ao bem comum e às
necessidades sociais.
No art. 23, X – e esse dispositivo isoladamente seria capaz de fundamentar a
imperatividade do sistema tributário progressivo -, a Constituição afirma ser da competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios o combate às causas da
pobreza e aos fatores de marginalização, tarefa a ser executada com o objetivo de promover a
integração social dos setores desfavorecidos. Além disso, como já referimos no tópico
precedente, a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observando, dentre outros princípios, a redução das desigualdades
sociais e regionais (art. 170, caput e inciso VII). No art. 226, a Constituição brasileira refere
que a o Estado deve dispensar especial proteção à família, base da sociedade. Parece-nos que
dita proteção deve se estender inclusive ao âmbito do Direito Tributário, de forma a
determinar a diminuição da carga tributária incidente sobre indivíduos que, inseridos em um
núcleo familiar, destinam seus ganhos ao sustento de dependentes16.
Além de consagrar a igualdade como direito fundamental (art. 5, caput e inciso
I), o texto constitucional particularizou a sua aplicação no âmbito do Direito Tributário, ao
interditar, no art. 150, II, o tratamento desigual aos contribuintes em situações equivalentes
(proibição do arbítrio), e bem assim ao estabelecer a capacidade contributiva como critério
objetivo de distribuição da carga tributária. Por derradeiro, a previsão do princípio do não-
confisco (art. 150, IV) também se encaminha à busca da progressividade, por vedar a
imposição tributária sobre a riqueza necessária para a manutenção de uma vida individual e
familiar digna (intributabilidade do mínimo existencial).
A despeito da vasta gama de dispositivos constitucionais que em alguma
medida amparam a distribuição progressiva da carga tributária, a análise procedida nos
16 Diversas são as tentativas de adequar a tributação sobre a família com o modelo progressivo. No Brasil, em sede de Imposto sobre a Renda, adota-se o sistema de tributação independente, pelo qual se mantém uma neutralidade com respeito ao estado civil dos contribuintes, desconsiderando-se a família como uma unidade autônoma de ganhos e consumo. Em contrapartida são concedidas deduções relativas aos valores gastos no sustento dos dependentes. Outros países adotam a técnica do splitting, que pode ser conjugal ou global. Em resumo, por essa técnica, deduzem-se os ingressos afetados à atividade de aquisição de renda e divide-se essa renda pelo número de cônjuges ou de membros da família, de modo a obter-se uma renda média, sujeita a
20
tópicos subsequentes recairá sobre os princípios que, por assumirem posição de relevo no
campo da justiça fiscal, dizem mais de perto com o objeto desse trabalho, isto é, os princípios
da igualdade, capacidade contributiva e não-confisco.
3.3 – Princípio da igualdade
Um excurso sobre a evolução histórica do princípio da igualdade revela que
gradualmente cai em descrédito a concepção de que sua eficácia está restrita ao âmbito da
aplicação do direito. Já não satisfaz apenas o nivelamento dos cidadãos diante do texto legal,
pois o postulado da igualdade figura como parâmetro para a aferição da constitucionalidade
do próprio conteúdo dos atos normativos, atando o legislador de modo a vedar-lhe a prática de
quaisquer discriminações arbitrárias. Assim, criação e aplicação do direito são operações do
mesmo modo abertas ao influxo do princípio da igualdade, situação correspondente, na
literatura constitucional, à eficácia bifronte do princípio - igualdade na lei e igualdade perante
a lei.
Mais que decorrência da superação do Estado Liberal pelo Estado Democrático
de Direito e das pretensões socializantes da Constituição de 1988, a vinculação do legislador
ao princípio da igualdade assenta na própria conformação hierárquica (piramidal) do
ordenamento jurídico. Consoante posição sustentada por Kelsen17 na obra “Teoria Pura do
Direito”, a criação do direito envolve, no mesmo passo, a aplicação de normas posicionadas
em escalão superior àquelas que resultam do processo criativo. Como no Brasil, país de
Constituição rígida, a disciplina do processo legislativo determina a conformidade material e
formal de todos os atos normativos com a Constituição, disso resulta que a criação do direito
necessariamente deve primar pela observância dos princípios nela inscritos, dentre os quais
figura, evidentemente, a igualdade. Criação e aplicação do direito se entrecruzam (toda
criação normativa envolve a aplicação de ato normativo superior) a ponto de tornar o
discernimento entre as duas vertentes de concretização do princípio da igualdade algo que
beira o truísmo.
Por ser uma obviedade, nem assim significa que a dogmática constitucional
peca ao despender tinta para abordar o tema. Considerando que na época atual ainda
alíquotas mais baixas que aquela que incidiria sobre a renda global familiar caso o modelo tributário fosse indiferente ao estado civil e ao número de dependentes. 17 A temática é desenvolvida no Cap. VIII da Teoria Pura do Direito. Naturalmente, a criação do direito não é ato inteiramente vinculado, restando sempre, em termos kelsenianos, um grau de indeterminação quanto ao conteúdo do ato normativo a ser preenchido pelo órgão criador.
21
convivemos com violações à isonomia e que ponderável parcela dos aplicadores do direito foi
sujeita a um ensino jurídico com ranços legalistas, nunca é demais rememorar que os
princípios constitucionais, por serem fundamentos de validade do sistema normativo, são de
acatamento obrigatório e, por isso, capazes de limitar o espaço deliberativo em que se pode
mover o legislador.
Dessa forma, de par com o tratamento igualitário dispensado pelo aplicador do
direito a cidadãos posicionados em idênticas situações fáticas ou jurídicas, a igualdade na lei
(princípio da isonomia), vincula inclusive a atividade criativa desempenhada pelo legislador.
O administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua monografia “Conteúdo Jurídico
do Princípio da Igualdade”, elenca as formas de discriminação pelas quais se pode incorrer
na ofensa ao preceito constitucional da isonomia:
“I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e determinada. II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator ‘tempo’ – que não descansa no objeto – como critério diferencial. III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados. IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente; V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita” (MELLO, 2009, pp. 47-48).
Às observações alinhadas acima acrescentamos a vedação, originada da
concepção aristotélica de justiça, de atribuição de tratamento igualitário aos desiguais, regra
cuja aplicabilidade depende, a rigor, da determinação de quem são esses desiguais e o porquê
de merecerem regime especial, sem o que não passa de especulação cerebrina e isenta de
significado prático. Canotilho ilustra essa posição com exemplo ligado ao tema da
distribuição da carga tributária:
“Isto não significa que o princípio da igualdade formal não seja relevante nem seja correcto. Realça-se apenas o seu carácter tendencialmente tautológico, «uma vez que o cerne do problema permanece irresol-vido, qual seja, saber quem são os iguais e quem são os desiguais». Assim, por exemplo, uma lei fiscal impositiva da mesma taxa de imposto para todos os cidadãos seria formalmente igual, mas seria profundamente desigual quanto ao seu conteúdo, pois equiparava todos os cidadãos, independentemente dos seus rendimentos, dos seus encargos e da sua situação familiar” (CANOTILHO, 1996, p. 564).
22
Apesar de a legislação tributária vigente no Brasil ser formalmente igualitária,
pois se aplica igualmente a todos os cidadãos (igualdade perante a lei), suas consequências
nas esferas individuais são profundamente díspares. Ao exigir dos desapossados o mesmo que
exige de classes abastadas, o Estado impõe-lhes sacrifícios pessoais severamente mais
elevados. Disso se segue que, ao instaurar um sistema tributário que proporcionalmente
subtrai mais riquezas dos mais pobres, o legislador brasileiro estabeleceu um discrímen
ilógico e desarrazoado, incidindo na ofensa à isonomia relatada no item “III” constante da
lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, equivale dizer, atribuiu “tratamentos jurídicos
diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de
pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados”. Sem prejuízo, ainda, de ter
conspirado contra o princípio da capacidade contributiva por não dimensionar as
manifestações de riqueza dos contribuintes, ponto que será objeto de pontuações registradas
mais adiante.
Jorge Pereira da Silva aponta que o enunciado clássico do princípio da
igualdade, surgido com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo o qual
“ todos os homens são iguais (...) perante a lei”, foi adaptado continuamente às evoluções da
sociedade a ponto de se desprender, em grande medida, do seu significado linguístico original
(SILVA, 2003, p. 67). Dita evolução histórica pode ser desdobrada em três fases: a) o
primeiro período se confunde com a exigência de generalidade na formulação e aplicação da
lei, conduzindo a um entendimento formal do princípio, aqui limitado à igualdade perante a
lei, aplicada mecânica, uniforme e imparcialmente; b) no segundo período o princípio passa a
ser oposto ao arbítrio dos Poderes Públicos, vedando discriminações materialmente
infundadas, retomando-se a máxima aristotélica segundo um critério comparativo (acepção
explorada por Celso Antônio Bandeira de Melo na magistral obra “Conteúdo jurídico do
princípio da igualdade” de forma exauriente); c) no terceiro período, finalmente, redescobre-
se uma intencionalidade material do princípio radicada na ideia de justiça, compreensiva da
justiça social.
É o terceiro momento da evolução histórica do princípio da igualdade que
mais importa para o tema da progressividade tributária, porque insere na lei um elemento
axiológico a que esta é chamada a realizar. Em seu atual patamar evolutivo, o princípio da
igualdade passa a permitir e determinar a prática de discriminações positivas em benefício dos
desfavorecidos, de forma a assegurar-lhes igualdade de oportunidades e condições
existenciais mínimas.
23
3.4 – Princípio da capacidade contributiva.
3.4.1 – Considerações introdutórias. Dimensões relativa e absoluta.
O princípio da capacidade contributiva fora expressamente positivado na
ordem jurídica brasileira desde a Constituição de 1946, cujo art. 202 dispunha: “Os tributos
terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a
capacidade econômica do contribuinte”.
A Emenda Constitucional nº 18/1965 suprimiu o princípio em referência do
direito Positivo brasileiro, lacuna que perdurou nas vigências da Constituição de 1967 e da
Emenda à Constituição nº 01/1969. Apenas com a promulgação da Constituição da República
de 1988 a capacidade contributiva tornou expressamente a derivar do texto constitucional,
muito embora se tenha sustentado que o princípio sempre se revestira da natureza de princípio
constitucional implícito. Atualmente, a capacidade contributiva se acha prevista no art. 145,
§1º da CFRB/1988, com alteração redacional em relação ao dispositivo da Constituição de
1946:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão
instituir os seguintes tributos:
(...)
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração
tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar,
respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Conforme anota a professora Misabel Abreu Machado Derzi (BALEEIRO,
2010, pp. 1090-1091), o princípio em pauta compõe o núcleo da Constituição encouraçado
pelo limite material ao poder de reforma, tendo sido “preconizado pelo economista alemão
VON IUSTI e difundido por ADAM SMITH”. Na ordem constitucional de 1988, a capacidade
contributiva põe-se como elemento voltado à concretização dos direitos fundamentais da
igualdade, propriedade e vedação do confisco, devendo ser interpretada à luz de uma
concepção de Estado que suplanta o absenteísmo liberal.
Superada a teoria de Griziotti, autor que entrevia na capacidade contributiva
um elemento causal para o nascimento da obrigação tributária, desde Giardina o princípio
24
passou a ser oposto à plena liberdade legislativa, vedando a instituição de imposições
confiscatórias e a tributação sobre o mínimo vital, bem como levando à graduação progressiva
do sistema tributário (BALEEIRO, 2010, p. 1092). Nessa linha, a Constituição de 1988, por
ter utilizado a expressão “capacidade econômica” em lugar da locução “capacidade
contributiva”, objetivou tolher quaisquer construções que não tomem em consideração a
realidade econômica manifestada pelos contribuintes.
Regina Helena Costa assinala que o princípio em pauta é compreensivo de dois
sentidos. A capacidade contributiva absoluta ou objetiva se atém aos fatos, eventos ou
atividades indicativos de riqueza eleitos pelo legislador e sobre os quais deve recair a
tributação, ao passo que a capacidade contributiva relativa ou subjetiva expressa a aptidão de
um sujeito especial para concorrer ao peso da carga tributária (COSTA, 2003, p. 27).
Na ordem constitucional brasileira há de prevalecer, sem margem para dúvidas,
a aplicação do princípio em sua formulação subjetiva. A Constituição já descreve as hipóteses
de incidência de quase todas as espécies tributárias, restando pequeno espaço de liberdade
para o legislador ou intérprete eleger novos fatos-signos presuntivos de riqueza (ressalvados a
competência residual da União e o Imposto Extraordinário de Guerra), do que resulta o
esvaziamento da vertente objetiva ou absoluta. Por outro lado, apenas o aspecto subjetivo
permite a mensuração da real e concreta capacidade individual de contribuição ao custeio do
Estado, por considerar a existência de circunstâncias econômicas especiais ou despesas
pessoais diminutivas da aptidão econômica do indivíduo. A capacidade contributiva em sua
formulação subjetiva admite, por isso, e.g, tributar parcimoniosamente por imposto de renda o
cidadão incumbido de sustentar diversos dependentes18. Nessa razão, para Marciano Seabra
de Godoi, a capacidade contributiva relativa encarna a virtude de integrar em seu conceito as
noções de garantia do mínimo vital e limite contra o confisco (GODOI, 1999, p. 199).
Sem embargo, há posições discordantes da aplicação do princípio da
capacidade contributiva em sua vertente subjetiva, como a sustentada pelo professor Roque
Carrazza:
“A capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que o legislador
ordinário deverá levar em conta, ao criar impostos, é objetiva, ou seja, refere-se às
manifestações objetivas de riqueza do contribuinte (ter imóvel luxuoso, possuir
automóvel do ano, ser proprietário de jóias ou obras de arte valiosas, etc.). Assim,
18 Quanto aos tributos indiretos, a professora Misabel Derzi preleciona que seria muito difícil, senão impossível, graduar a exação segundo a capacidade pessoal do adquirente do produto. Daí porque a questão resolve-se com a seletividade de alíquotas e isenção de gêneros de primeira necessidade (BALEEIRO, 2010, p. 1097).
25
atenderá ao princípio em exame, a lei que, ao criar o imposto, colocar em sua
hipótese de incidência fatos deste tipo, que Becker denomina ‘fatos signos
presuntivos de riqueza’. Pouco importa, no caso, se algum contribuinte, que
praticar o fato imponível do imposto, não tiver condições subjetivas de suportar a
carga tributária. Aliás, nos impostos sobre a propriedade (v.g. o IPTU), a
capacidade contributiva revela-se com o próprio bem19”.
Marciano Seabra de Godoi, partidário da existência do sentido subjetivo do
princípio, contemporiza o dissenso entre as correntes, sustentando que, no tocante ao IPTU,
efetivamente o Poder Judiciário não poderia afastar a exigência do imposto em atenção a uma
condição econômica frágil do proprietário do imóvel20. No entanto, para o autor, no caso
figurado, a capacidade contributiva subjetiva se manifestaria de outra forma:
“(...) bastando que o contribuinte aceite a realidade de sua real situação
econômica e adquira um imóvel mais compatível com suas condições, supondo, é
claro, que o valor do IPTU não se mostre de per se confiscatório, e o imóvel não
seja de tal maneira simplório que exigir que o contribuinte se mude para outro
mais acanhado implique em ferir sua dignidade ou impor-lhe ingentes sacrifícios”
(GODOI, 1999, p. 200).
O autor encerra sua linha de raciocínio ao fixar a diferença entre a hipótese
ilustrada, dependente da vontade individual (adquirir um bem imóvel caro), com aquela em
que o ferimento à capacidade contributiva subjetiva repousa na própria lei, como, por
exemplo, costuma acontecer nas limitações artificiosas de deduções estabelecidas pela
legislação regente do imposto de renda. Nessa última hipótese, o Poder Judiciário deve atuar
para suprimir as limitações atentatórias ao princípio da capacidade contributiva.
Realmente, nas hipóteses em que a lei, por si só e hipoteticamente, não incorrer
em afronta ao princípio, tendo elegido um indício de riqueza razoável e constitucionalmente
adequado, aspectos particulares à situação econômica de um contribuinte não autorizam o
19CARRAZZA, Curso de Direito Constitucional Tributário. 5. Ed. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 57-57. Apud (GODOI, 1999, p. 199). 20 O problema não é desconhecido para Hugo de Brito Machado, para quem “interessante questão consiste em saber como se deve medir a capacidade contributiva. À primeira vista pode parecer que esta deve ser dimensionada pela renda pessoal do contribuinte, mas a questão não é tão simples como pode parecer. Também o patrimônio constitui excelente índice de capacidade contributiva, embora em certos casos se conteste tal afirmação, especialmente como exemplos de pessoas que possuem patrimônio considerável mas não dispõem de renda. O consumo, finalmente, também tem sido apontado, com razão, como índice de capacidade contributiva”. Machado, Hugo de Brito. Princípios Constitucionais Tributários. In Cadernos de Pesquisas Tributárias. 18. Ed. São Paulo: Editora Resenha Tributária e Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1993. Apud (CONTI, 1996, p. 42).
26
magistrado a afastar a incidência de um determinado imposto. Isso porque a atribuição de um
benefício a tal ou qual contribuinte sob o pretexto de atender a sua peculiar condição de vida
significaria a instituição de um privilégio odioso. Assim, por exemplo, o Judiciário não
poderia afastar a incidência do IPTU sobre imóvel localizado no bairro mais nobre da cidade
apenas porque o bem fora adquirido por contribuinte sem forças econômicas para mantê-lo.
Por outro lado, é possível sustentar, a despeito da existência de vozes em contrário, que o
raciocínio encontra limites, não podendo ser estendido a situações em que sua aplicação
importa redução do indivíduo a condição existencial degradante ou desumana, como, por
exemplo, nos casos em que a exigência tributária resulte na perda de moradia modesta. No
caso aventado (aquisição de imóvel situado em bairro nobre), todavia, certamente o Judiciário
não poderia afastar a exação tributária, mesmo porque o alto valor do imóvel é um indício
claro de capacidade contributiva, indício esse eleito pelo legislador, prevalecendo, com isso, o
conteúdo objetivo do princípio.
3.4.2 –Eficácia e alcance do princípio.
Assentadas as considerações introdutórias a propósito do princípio da
capacidade contributiva, com realce para as duas dimensões nele implicadas (relativa e
absoluta), importa investigar o seu âmbito de incidência e os efeitos jurídicos resultantes de
sua aplicação.
O princípio da capacidade contributiva representa uma espécie de limitação
ao poder de tributar, voltando-se, em sua face reversa, para a defesa dos direitos subjetivos
dos cidadãos na seara fiscal. Embora o princípio se manifeste também como direito subjetivo
oponível ao exercício desenfreado do poder de tributar, como regra a análise sobre o
atendimento de uma imposição tributária à capacidade contributiva deve ser desempenhada
abstrata e objetivamente. Isso significa que, para verificar se a lei impositiva desequilibra a
correspondência entre o encargo exigido e a aptidão econômica do contribuinte, é necessário
responder se o tributo exaure ou subtrai desproporcionalmente as riquezas possuídas por um
grupo de sujeitos passivos. Em outras palavras, o escrutínio há de ser genérico e recair sobre a
adequação do indício de riqueza eleito, assim como sobre a proporcionalidade da parcela
dessa riqueza que o Estado acalenta extrair dos particulares. O direito subjetivo, assim,
manifesta-se como direito individual a um sistema tributário justo e encerrado nos quadrantes
da capacidade contributiva dos sujeitos passivos, e não como modo de consecução de
27
privilégios odiosos, concedidos a contribuintes específicos. Dessa forma, a lei deve
estabelecer uma imposição tributária flexível às circunstâncias de vida do sujeito passivo, e.g,
permitindo, no imposto de renda, a dedutibilidade dos recursos imprescindíveis ao sustento de
dependentes.
Registre-se ser inviável uma decisão judicial que diminua a alíquota de uma
dada exigência tributária pretextando, em benefício de um único contribuinte, afronta à
capacidade contributiva. A declaração de inconstitucionalidade parcial da norma tributária
não pode resultar na fixação pelo julgador de uma alíquota compatível com o princípio, pois
do contrário o Poder Judiciário se arvoraria à condição de legislador, exorbitando dos seus
limites e atuando positivamente em prejuízo da separação de poderes. A solução adequada em
caso de violação à capacidade contributiva, a nosso aviso, exige o cancelamento integral da
cobrança. Nem por isso desconhecemos que, em situações limite, a função jurisdicional deve
exercer atividade legislativa-supletiva em nome de bens e valores fundamentais para a
sociedade, como, aliás, costuma ocorrer em hipóteses peculiares no âmbito do controle de
constitucionalidade. Contudo, no caso sob análise, dito poder legislativo-supletivo esbarraria
no princípio da legalidade, exigente de que a fixação de alíquota, por ser esta um elemento
estrutural da obrigação tributária, seja realizada por lei em sentido estrito, editada apenas pelo
parlamento.
Diferente seria o caso em que houvesse lei tributária fixando alíquota em
patamares aceitáveis e justos, sendo que, posteriormente, fosse editada nova lei determinando
a sua majoração. Nessa última hipótese, o Poder Judiciário estaria habilitado para declarar a
inconstitucionalidade da lei adventícia, restabelecendo, nesse passo, a alíquota alterada.
Com referência à possibilidade de estender a aplicação do princípio da
capacidade contributiva para todas as espécies tributárias, pende algum dissídio entre os
especialistas, embora predomine a tese de que apenas os impostos são compatíveis com o seu
conteúdo. O enunciado do art. 145, §1º, faz menção somente aos impostos, pelo que a
interpretação literal e a contrario sensu do aludido dispositivo subtrai as demais espécies
tributárias de seu âmbito de incidência. Para Regina Helena Costa (COSTA, 2003, p. 52),
autora que, nesse aspecto, acompanha o entendimento da professora Misabel Abreu Machado
Derzi (BALEEIRO, 2010, p. 1099), a exclusão não é despropositada. Somente os impostos
são tributos não-vinculados (independentes de atuação estatal), razão pela qual apenas essa
espécie tributária pode ser governada pelo princípio da capacidade contributiva, inconfundível
com os princípios da solidariedade e equivalência (regentes dos tributos vinculados).
28
Nessa linha, a conformação da hipótese de incidência dos tributos vinculados,
por ser indiferente à riqueza manifestada pelos contribuintes, motiva o entendimento de que a
capacidade contributiva encaminha-se a reger apenas os impostos. No entanto, em sentido
contrário se manifestam outros tributaristas, como Sampaio Dória e José Marcos Domingues
de Oliveira, sendo que, para o último dos mencionados autores:
“O princípio da capacidade contributiva, enquanto pressuposto e critério de
graduação e limite do tributo, aplica-se não só ao imposto mas também às demais
espécies tributárias, pois em todas elas trata-se de retirar recursos econômicos dos
particulares para transferi-los ao setor público. É a sua força antieconômica que
dirá da possibilidade do seu concurso para a manutenção do Estado. Por outro
lado, sendo o princípio expressão tributária da igualdade, evidentemente que não
se poderá admitir que as taxas e as contribuições de melhoria discriminem os
contribuintes independentemente das suas diversas riquezas que estejam
relacionadas com a atividade estatal ensejadora da instituição desses tributos21”.
Como se sabe, a Constituição da República concedeu a gratuidade da prestação
jurisdicional, do registro civil e da certidão de óbito para os reconhecidamente pobres. Nesse
aspecto, certamente considerações extrafiscais ligadas com a igualdade entraram na pauta de
considerações do Poder Constituinte Originário. A saída para negar a influência do princípio
da capacidade contributiva nessas hipóteses, então, poderia repousar no princípio da
igualdade e na extrafiscalidade. Há, no entanto, que se reconhecer que, em Direito Tributário,
com frequência tanto os valores extrafiscais como o princípio da igualdade se vinculam com a
capacidade contributiva. No exemplo exposto (imunidade concedida aos reconhecidamente
pobres na exigência de determinadas taxas), a previsão constitucional das medidas
exonerativas levou em consideração exatamente a ausência de aptidão econômica (a
incapacidade contributiva, nos precisos dizeres de Sacha Calmon22) dos beneficiários.
Assim, se de fato são os princípios da solidariedade e da equivalência que
presidem os tributos vinculados, nada obsta – pensamos - a que excepcionalmente a
capacidade contributiva compareça em formas concretas de realização da justiça fiscal, ao
menos para sinalizar a sua ausência – a incapacidade contributiva. Mesmo nos tributos
vinculados, a capacidade contributiva incide com um mínimo grau de operatividade, vedando
21 Oliveira, José Marcos Domingues. Capacidade contributiva – Conteúdo e eficácia do princípio. São Paulo: Renovar, 1998. Apud (CONTI, 1996, p. 61). 22 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Saraiva, 1999, p. 405. Apud (GODOI, 1999, pp. 205/206).
29
o confisco e a tributação sobre o mínimo vital. José Maurício Conti parece ter chegado a
conclusão idêntica, ao registrar que no âmbito dos tributos vinculados o princípio da
capacidade contributiva “(...) é aplicável restritivamente, devendo ser respeitados os limites
que lhe dão os contornos inferior e superior, vedando a tributação do mínimo vital e a
imposição tributária que tenha efeitos confiscatórios” (CONTI, 1996, p. 65).
Raciocínio semelhante pode ser estendido para interpretar o sentido da
expressão “sempre que possível”, presente na redação do art. 145, §2º, da Constituição. Os
estudiosos da matéria assinalam que a locução adotada pelo texto constitucional indica que
nem sempre a aplicação do princípio da capacidade contributiva é possível, estando, na
verdade, confinada ao âmbito dos impostos diretos. Isso porque nos impostos indiretos, isto é,
nos impostos que repercutem juridicamente sobre os outros elos da cadeia de circulação
(impostos sobre importação, produção e circulação), o sujeito passivo recolhe o tributo aos
cofres públicos e transfere o encargo econômico que sofreu para o adquirente final. Seria,
assim, muito difícil ou mesmo impossível graduar a capacidade econômica pessoal do
consumidor presente na última etapa da cadeia de circulação, uma vez que este não mantém
uma relação jurídico-tributária direta com o Estado. A justiça fiscal, no caso, deveria se
manifestar por intermédio de medidas exonerativas e da seletividade, vale dizer, com a
isenção sobre gêneros de primeira necessidade e com a graduação das alíquotas segundo a
essencialidade do bem comercializado.
Realmente, a nosso aviso, a Constituição foi precisa ao empregar o vocábulo
seletividade para abordar o problema da justiça fiscal no âmbito dos denominados tributos
indiretos. A pessoalidade que permite a graduação do encargo tributário segundo a capacidade
econômica do contribuinte é mesmo inconciliável com o fenômeno da repercussão tributária.
Contudo, a seletividade se apresenta como uma derivação da igualdade e da própria
capacidade contributiva, pelo que é apenas parcialmente verdadeira a asserção de que os
tributos indiretos são com ela incompatíveis. Douglas Yamashita, forte nas lições de Klaus
Tipke, atentou para o problema, dedicando um tópico do estudo monográfico que elaborou
em coautoria com o professor alemão para abordar a proibição do confisco como produto de
uma eficácia mínima do princípio da capacidade contributiva sobre todos os tributos de
finalidade fiscal (TIPKE E YAMASHITA, 2002, p 67).
Com efeito, se capacidade contributiva e seletividade são princípios que em
certa medida impedem a tributação sobre o mínimo vital, é necessário reconhecer que ambos
30
estão implicados e têm mais em comum do que se costuma imaginar23. A capacidade
contributiva opera marginalmente mesmo sobre os tributos indiretos, na forma de garantia do
mínimo existencial e vedação ao confisco. Daí o motivo por que Marciano Buffon lavrou a
seguinte lição:
“ todos os impostos, ainda que não permitam uma aferição direta da capacidade
contributiva, podem sujeitar-se ao princípio. Mesmo a imposição de tributos sem
caráter pessoal, entre os quais incluem-se os que atingem a renda consumida, é
dotada de mecanismos – como a seletividade por exemplo – que tornam possível
gravar mais pesadamente os indivíduos que exteriorizam uma capacidade
econômica mais elevada” (BUFFON, 2003, p. 46)
Embora a eficácia marginal do princípio da capacidade contributiva sobre os
tributos vinculados e indiretos indique à primeira vista que o princípio é capaz de operar em
todas as modalidades de imposição tributária, deve ser reconhecida a existência de um reduto
inexpugnável para a sua atuação. Em casos episódicos, o legislador pode afastar o critério da
capacidade contributiva para estimular setores estratégicos da economia do país ou
simplesmente privilegiar o mérito dos cidadãos. Esses os casos em que, movido por objetivos
extrafiscais, o legislador afasta os critérios da igualdade e da capacidade contributiva para
obter resultados econômicos desejáveis. Apesar do afastamento do princípio da capacidade
contributiva nesses casos especiais, o Poder Judiciário deve controlar os benefícios fiscais
concedidos sob o enfoque dos princípios da proporcionalidade e igualdade, visando a coibir a
concessão de privilégios odiosos.
3.4.3 –Mínimo existencial, não-confisco e capacidade contributiva.
A capacidade contributiva implica necessariamente o respeito ao mínimo vital,
na medida em que o cidadão só está habilitado a concorrer para o custeio da vida em
comunidade após assegurar os recursos necessários para uma existência individual e familiar
digna. Em outras palavras, a capacidade contributiva só inicia quando a expressão econômica
23 Mesmo Regina Helena Costa, partidária da tese de que a capacidade contributiva não se aplica aos tributos indiretos, implicitamente, ou, talvez, contraditoriamente, reconhece a eficácia mínima do princípio sobre todos os tributos de cunho fiscal. Nas páginas 69/70 de sua obra dedicada ao tema, escreve: “Por certo que artigos de primeira necessidade são consumidos por pessoas de toda classe econômica; contudo, ignorar-se o princípio [da capacidade contributiva] neste particular seria afastar uma exigência de justiça tributária, já que em tais impostos a hipótese de incidência não guarda relação com o grau de riqueza do consumidor. Portanto, a melhor solução é a de isentar os mencionados bens dessa imposição, como forma de atender ao princípio”.
31
manifestada pelo contribuinte ultrapassa o necessário para o mínimo existencial. Esse patamar
mínimo de riqueza destinado a prover o indivíduo e sua família dos bens básicos para uma
vida compatível com a dignidade da pessoa humana erige-se em imunidade constitucional,
determinando ao Estado a prática de políticas fiscais tendentes a exonerar as operações de
circulação de gêneros de primeira necessidade e a aquisição da renda necessária para a fruição
dos direitos contemplados no art. 7º, IV, do texto constitucional (moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social).
Com efeito, se o Estado está compromissado a assegurar a dignidade da pessoa
humana e os direitos fundamentais constitucionalmente previstos, não faria sentido subtrair a
riqueza mínima para o exercício desses mesmos direitos para, depois, devolvê-la na forma de
préstimos estatais. Conclusão em contrário seria ilógica e antieconômica. Tanto melhor
quando o cidadão possui forças próprias para assegurar a sua dignidade individual e familiar,
evitando, com isso, a intermediação do Estado na distribuição dos bens da vida necessários.
Ademais, sem a intermediação do Estado, evitam-se os naturais custos envolvidos na
manutenção da burocracia e na execução de políticas públicas, inibindo-se o desperdício
injustificado de recursos econômicos:
“O princípio da capacidade contributiva protege o mínimo existencial. Enquanto a
renda não ultrapassar o mínimo existencial não há capacidade contributiva. O
mesmo resulta da dignidade humana e do princípio do Estado Social. O princípio
da capacidade contributiva atende a ambos os princípios. Num Estado Liberal não
é permitido que o mínimo existencial seja subtraído pela tributação, parcial ou
totalmente, e uma compensação seja dada em benefícios previdenciários. O Estado
não pode, como Estado Tributário, subtrair o que, como Estado Social, deve
devolver. Não apenas para o imposto de renda, mas para todos os impostos, o
mínimo existencial é um tabu. O princípio da ‘unidade do ordenamento jurídico’
determina que o mínimo existencial fiscal não fique abaixo do mínimo existencial
do direito da seguridade social” (TIPKE E YAMASHITA, 2002, p. 34).
Relativamente às pessoas jurídicas, a capacidade contributiva impõe a dedução
dos gastos essenciais para a manutenção das atividades econômicas por elas desenvolvidas.
Essa espécie de mínimo vital para as pessoas jurídicas é sumariamente tratorada pelas
Fazendas Públicas componentes da federação brasileira. No imposto de renda, por exemplo, o
art. 13 da lei nº 9.249/1995 estabelece restrições ilegítimas à dedutibilidade das despesas
necessárias, o que, a rigor, não é apenas um malferimento ao mínimo vital, mas também à
própria regra-matriz daquele imposto.
32
Sob outro aspecto, apenas de passagem, importa registrar que a capacidade
contributiva se presta a defender a propriedade privada e a livre iniciativa. Nesse ponto, o
princípio suporta a vedação de tributos com efeitos confiscatórios - não apenas com referência
ao mínimo vital -, impedindo que a tributação exija para além das forças econômicas havidas
pelo cidadão-contribuinte. Apesar da imensurável relevância dessa vertente do princípio, o
objeto das investigações aqui desenvolvidas não comporta um aprofundamento sobre o tema.
3.4.4 – Possíveis conteúdos econômicos, políticos e filosóficos do princípio.
A funcionalização dos tributos à busca de objetivos extrafiscais, mais
especificamente para paliar as desigualdades entre os homens, quando não rechaçada, é
sustentada por teorias da justiça dos mais variados matizes. Aqui, também, como em outros
campos da política, da filosofia e do direito, a discussão se reconduz aos embates entre as
escolas que se colocam, em pontos diversos, no caminho entre o completo abstencionismo e a
intensa intervenção estatal na vida econômica. A própria noção de justiça tributária se
apresenta extremamente vaga e indeterminada, estando permeável a diferentes concepções
políticas, econômicas e ideológicas. Isso não impede, entretanto, a desconstrução de teorias
francamente conflitantes com a ordem constitucional de 1988.
A distribuição da carga tributária não deve apenas ser economicamente
eficiente, mas também justa e igualitária. Mesmo nos Estados Unidos, país sob forte
inspiração do liberalismo econômico, Liam Murphy e Thomas Nagel escrevem que “além da
eficiência econômica, o valor social a que tradicionalmente se dá peso na formulação de um
sistema tributário é a justiça; a tarefa daquele que formula o sistema é a de inventar um
esquema que seja ao mesmo tempo eficiente e justo” (MURPHY E NAGEL, 2005, p 16).
Dizer que o sistema tributário deve ser justo não passa de lugar-comum. O
problema repousa na indeterminação do vocábulo justiça e no fato de que pairam
controvérsias não somente em relação aos meios dos quais o Estado deve se valer para
efetivar a justiça tributária, mas também em relação ao conteúdo desta expressão e às
finalidades que a sociedade deve buscar. Infindáveis são as discrepâncias a propósito dos bens
ou serviços que devem ser fornecidos à coletividade pelo Estado e também acerca da
possibilidade de intervenção estatal sobre o modelo distributivo vigente no sistema de livre
mercado. Assim, “as discordâncias sobre o âmbito legítimo dos benefícios e
constrangimentos governamentais, e sobre a relação entre esse âmbito e os direitos
33
individuais, estão geralmente por trás das divergências sobre a tributação, mesmo quando
aquelas questões não se explicitam” (MURPHY E NAGEL, 2005, p. 9).
Ganham corpo no debate público, em contraposição ao esquema progressivo,
as concepções que naturalizam o modelo distributivo vigente no regime de livre mercado e as
concepções que contestam a capacidade do Estado em promover a justiça social. Nesse último
ponto, releva notar que a temática da distribuição equitativa da carga tributária é indissociável
do problema dos gastos públicos, sobretudo porque é frequentemente posta em dúvida a
capacidade do Estado, com todos os males que este porta consigo24, promover eficazmente a
distribuição da riqueza arrecadada com a tributação.
Como os gastos governamentais, apesar de serem essenciais para a realização
da justiça distributiva, não compõem o objeto investigado por este estudo monográfico,
passaremos em breve revista apenas das teorias econômicas, filosóficas e políticas que
intentam justificar e determinar o conteúdo de sua face oposta: a arrecadação tributária. A
análise será feita particularmente tendo em vista o critério constitucionalmente estabelecido
para o Estado extrair riqueza dos particulares mediante impostos, qual seja, o princípio da
capacidade contributiva.
3.4.4.1 – Princípio do benefício ou da equivalência.
Segundo os caudatários do princípio do benefício, teóricos inspirados pelo
ideário do liberalismo econômico clássico, os contribuintes devem ser tributados à medida
dos benefícios governamentais que recebem, isto é, devem pagar por cada serviço
governamental que lhes forem prestados. A tese deriva da fundamentação da necessidade da
existência do Estado exposta por Adam Smith, conforme nos dá conta Marciano Seabra de
Godoi ao citar trechos da obra do economista e filósofo escocês (GODOI, 1999, p. 189):
“Onde quer que haja grande propriedade, há grande desigualdade. Para cada
pessoa muito rica deve haver no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos
supõe a indigência de muitos. A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres,
que muitas vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir as
posses daqueles. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário dessa
propriedade valiosa – adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas
gerações sucessivas – pode dormir à noite com segurança (...) É, pois, a aquisição
34
de propriedade valiosa e extensa que exige o estabelecimento de um governo civil.
Onde não há propriedade, ou, ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de
dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário. (...) Os ricos,
em particular, necessariamente se interessam em manter essa ordem de coisas, já
que ela é capaz de assegurar-lhes a posse de suas próprias vantagens, (...) O
governo civil, na medida em que instituído para garantir a propriedade, de fato é
para defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade
contra os que não possuem propriedade alguma. (...) As despesas de governo, em
relação aos indivíduos de uma grande nação, são como as despesas de
administração em relação aos rendeiros associados de uma grande propriedade,
os quais são obrigados a contribuir em proporção aos respectivos interesses que
têm na propriedade25”.
O pensamento de Smith pode ser oposto àqueles que sustentam que o princípio
do benefício poderia servir como fundamento apenas dos tributos de cunho
contraprestacional, devidos sobre a satisfação de necessidades públicas divisíveis. Na
verdade, tendo sido sustentado como modelo global de distribuição da carga tributária, o
princípio do benefício pode ser abrangente de todas as espécies tributárias, inclusive dos
impostos.
Sem prejuízo de deficiências de ordem jurídica e política, a aplicabilidade do
princípio do benefício esbarra com um empecilho de cunho pragmático: é tormentosa, para
não dizer impossível, a tarefa de realizar o dimensionamento dos serviços e utilidades
proporcionados pelo Estado a cada um dos seus cidadãos. Se tomarmos como parâmetro a
diferença entre o nível de bem-estar antes da transmissão dos benefícios governamentais e o
nível de bem-estar posterior aos préstimos estatais, teríamos de imaginar como seria a vida
sem o Estado. Nesse caso, em pleno estado de natureza, certamente o padrão de vida de todos
seria baixíssimo e aproximadamente igual, pois as diferenças de capacidade, personalidade e
riqueza herdada entre os indivíduos não produziriam os mesmos efeitos que produzem em
uma sociedade de mercado regulada por uma entidade estatal.
Se, por outro lado, a métrica do patamar de vida corrente - considerada a
existência do Estado - for a renda auferida por cada um dos cidadãos, então a seguinte regra
seria dedutível: as pessoas devem pagar impostos na proporção das respectivas rendas. Nesta
24 A afirmação de que o Estado tem sido ineficiente na distribuição de riquezas e na efetivação dos direitos sociais não implica a constatação de que a iniciativa privada estaria mais habilitada para fazê-lo ou de que seria mais adequado deixar a resolução do problema ao sabor do livre mercado. 25 SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1988, pp. 16/19. Apud (GODOI, 1999, p. 188/189).
35
altura, esbarraríamos em outro obstáculo de ordem prática: determinar com precisão o índice
da utilidade marginal da riqueza, isto é, o grau de utilidade que a riqueza apresenta conforme
o seu aumento. Isso porque, acaso fosse instituída uma alíquota fixa para a tributação, de
modo a privar-se os indivíduos de proporção igualitária de suas respectivas rendas, não se
implementaria a rigor o princípio do benefício, pois o declínio da utilidade marginal dos
recursos econômicos seria simplesmente desconsiderado. Quando os indivíduos muito ricos
auferem uma pequena quantidade de riqueza, pouco são beneficiados pelo incremento
patrimonial. Essa pequena soma, no entanto, pode ser capaz de proporcionar um expressivo
aumento na qualidade de vida de famílias paupérrimas.
No limite, a adoção do princípio do benefício segundo o critério renda
aconselharia até mesmo a instituição de um modelo regressivo de tributação, considerando o
fato de que o índice de aumento no nível de bem-estar proporcionado pela renda decresce
conforme a ampliação desta. Em outras palavras, como a partir de determinado patamar a
elevação da renda não promove acréscimos significativos nas condições existenciais do
indivíduo, esse fato indicativo de riqueza, segundo o princípio do benefício, deveria ser
amenamente tributado.
O princípio do benefício ainda não consegue vencer um problema de caráter
jurídico-político: as classes mais pobres dependem profusamente das ações diretas do Estado,
pelo que a aplicação do princípio do benefício exige que justamente as classes despossuídas
paguem mais tributos, formando-se, com isso, um ciclo de pobreza nefasto. A constatação
provém de Stuart Mill, economista que, no século XIX, mesmo que limitadamente (pois era
contrário à progressividade tributária), intuiu a vocação dos tributos para a busca da justiça
social (BUFFON, 2003, p. 72):
“se houvesse alguma justiça, na teoria da justiça que estamos analisando, os
menos capazes de se ajudarem e defenderem a si próprios, por serem aqueles para
os quais a proteção do governo é a mais indispensável, teriam de pagar a cota
maior do preço dessa proteção – o que é o inverso do verdadeiro conceito de
justiça distributiva, que consiste não em imitar, mas em corrigir as desigualdades e
os erros da natureza26”.
Não se desconhece que há teorias da justiça libertárias que rejeitam qualquer
espécie de apoio estatal aos pobres, como se a distribuição de bens e utilidades promovida
26 MILL, John Stuart. Princípios de economia política. Trad. Luiz João Baraúna. Coleção “Os economistas”, São Paulo: Nova Cultural, v. II, 1986, p. 291. Apud (BUFFON, 2003, p. 72).
36
pelo mercado fosse a princípio justa e qualquer interferência do governo nessa forma de
distribuição devesse ser rechaçada. Caso essa concepção política vigorasse em nossa ordem
jurídica, talvez o princípio do benefício encontraria o substrato necessário para sua
aplicabilidade. Não é esta, contudo, a concepção de Estado adotada pela ordem constitucional
de 1988, fortemente orientada para a equalização da sociedade.
3.4.4.2 – Capacidade contributiva segundo o talento pessoal.
O princípio da capacidade contributiva, de extração constitucional em países
como Alemanha, Itália e Espanha, historicamente rendeu ensejo a interpretações destoantes
quanto ao modo de precisar o seu conteúdo. Uma das divergências reside em saber se o
princípio determina que os sujeitos passivos devem pagar tributos segundo sua capacidade
econômica atual, ou, diferentemente, se devem pagá-los conforme sua capacidade econômica
potencial.
A concepção de que a tributação pode recair sobre a riqueza que as pessoas
poderiam obter caso tivessem tomado determinadas decisões, equivale dizer, a capacidade
contributiva segundo o talento pessoal, nunca foi efetivamente implementada, sobretudo pela
dificuldade da aferição das potencialidades individuais para a aquisição de riqueza
(MURPHY E NAGEL, 2005, p. 28). Não faltam, contudo, economistas a sustentar que a
adoção do modelo aqui versado seria ideal, não fossem os obstáculos de ordem prática.
Além do capital material, os indivíduos fruem de uma espécie de capital
humano, isto é, um plexo de habilidades (conhecimento, relacionamentos, personalidade, etc.)
que lhes permite criar e obter riquezas no âmbito da sociedade de mercado. Assim, se um
indivíduo dotado de capacidades que lhe permitiram galgar o posto de executivo de uma
grande multinacional resolve abandonar a sua consolidada carreira para se dedicar à musica,
segundo o critério da capacidade contributiva potencial o Estado deve continuar a lhe exigir
tributos na proporção de sua renda anterior.
Essa teoria apresenta a virtude de alocar de maneira perfeita o capital humano
existente na sociedade, de modo a deixar a economia em estado de pleno emprego. Nesse
cenário, estimula-se o trabalho em sua potência máxima, do que resulta uma ingente produção
de riquezas.
O talento pessoal como forma de definição do conteúdo da capacidade
contributiva não passa de uma espécie de utilitarismo social, a recomendar que as condutas
37
individuais devem sempre mirar o bem-estar da coletividade. A teoria encarna um viés
autoritário, pois anula as liberdades individuais, sobretudo a liberdade de escolha profissional,
em nome de uma concepção comunitarista de bem comum. A rigor, não visa à realização da
justiça, mas antes do que é simplesmente mais útil para a coletividade, em detrimento dos
direitos individuais.
3.4.4.3 – Teoria do sacrifício.
A teoria do sacrifício, cujo desenvolvimento é creditado ao utilitarista John
Stuart Mill, em sua formulação original predica que, no custeio do Estado, cada contribuinte
deve sacrificar uma quantidade idêntica de “utilidades” - termo cunhado para representar a
medida de realização dos desejos, o denominador comum dos objetos da vontade humana.
Nessa acepção, pela teoria do sacrifício os mais ricos devem concorrer mais intensamente (em
termos quantitativos) às despesas do Estado, de modo que comparativamente os indivíduos
suportem a mesma perda real de bem-estar em virtude da tributação. A teoria repele a
instituição de impostos fixos ou de capitação, medida pela qual se impõe aos mais ricos um
sacrifício real muito inferior àquele suportado pelos mais pobres. A tese toma por suposto a
utilidade marginal da riqueza:
“A teoria do sacrifício parte do princípio de que os recursos econômicos se
agregam segundo uma utilidade marginal decrescente. Assim supondo a
comparatividade intersubjetiva da utilidade (ordinal e cardinal) tem-se que um
indivíduo com renda de R$10.000,00 mensais, ao tirar de tal renda R$1.000,00
para pagamento de um tributo, estará se privando de uma quantidade ‘x’ de
utilidades. Um indivíduo com renda de R$2.000,00 mensais, se tirar de sua renda
os mesmos R$1.000,00 da situação anterior estará privando-se de um número
muito maior que ‘x’ utilidades” (GODOI, 1999, p. 190).
A despeito da relativa aceitação da teoria do sacrifício como medida de justiça
fiscal, da formulação sustentada por Stuart Mill nasceram duas novas correntes que visaram a
conferir significados diversos à expressão sacrifício igualitário. Atualmente, as teorias do
sacrifício conhecidas se distribuem por três vertentes: a) igual sacrifício absoluto; b) igual
sacrifício proporcional e; c) igual sacrifício marginal.
A teoria do sacrifício absoluto ou equivalente sustenta que a perda real de bem-
estar ou utilidades como decorrência da tributação deve ser igual para todos os indivíduos
38
(ricos e pobres deveriam sofrer, por exemplo, igualmente, a perda de dez unidades de
utilidades). Caracteriza-se como uma teoria libertária da justiça fiscal, por partir da premissa
de que o Estado não deve influir na distribuição de bem-estar promovida pelo mercado.
Baseia-se em uma noção que privilegia a forma vigente de reparto dos bens e utilidades
produzidos, enfocando, dessa forma, a liberdade econômica e a crença no merecimento
individual sobre os frutos do trabalho. Por exigir em termos absolutos dos ricos e dos
desapossados a mesma perda de utilidades, sendo que o os últimos quase não as têm, a teoria
do sacrifício absoluto desnivela-os ainda mais, contribuindo para aumentar o fosso que aparta
os extremos da pirâmide social. A tese é problemática e não se harmoniza com a igualdade
substancial aspirada pela sociedade brasileira desde a Constituição de 1988, tendo em vista
que o Poder Público está incumbido de combater as causas da pobreza e da marginalização
(art. 23, X), e não de fomentá-las.
A igualdade de sacrifícios proporcionais, diferentemente, propõe que a
tributação deve subtrair de cada indivíduo uma proporção idêntica de utilidades (ricos e
pobres devem destinar, por exemplo, trinta por cento das respectivas utilidades para o
Estado). Essa interpretação acerca do conteúdo da capacidade contributiva ganha destaque
entre os estudiosos do princípio, e parte da premissa de que a tributação deve exigir mais, em
termos reais e quantitativos, dos mais abastados. Na medida em que a curva da utilidade
marginal da renda costuma ser decrescente, a igualdade de sacrifícios proporcionais induz
alguma progressividade na carga tributária (a teoria sustenta a tributação proporcional sobre
as utilidades, e não sobre a renda). Figure-se um exemplo: o cidadão X aufere 100 utilidades
mensalmente, ao passo que Y obtém apenas 10. Pode-se concluir, de logo, que a proporção
entre ambas as rendas está fixada em 10 para 1. Prosseguindo no exemplo, suponha-se, agora,
que o Fisco exige-lhes 10% de imposto sobre as respectivas utilidades. O cidadão X
permanecerá com 90 utilidades, enquanto que Y, ao cabo, possuirá 9 utilidades, daí resultando
que a proporção entre ambas as medidas de bem-estar continuará fixada em 10 para 1. Vê-se
que a igualdade de sacrifícios proporcionais é inconciliável com o dever do Estado de
combater os desníveis sociais. A distribuição da carga tributária deve ser equitativa, mas
equitatividade não se confunde com neutralidade. A igualdade dos sacrifícios proporcionais
não é algo diverso do que uma forma de dotar a distribuição de riqueza produzida pelo
mercado de um significado moral intrínseco e intangível (MURPHY E NAGEL, 2005, p. 42).
A última das teorias do sacrifício – teoria do sacrifício marginal – determina
que os indivíduos arquem com uma perda idêntica na utilidade das correspondentes riquezas.
39
Determina, como resultado, que nenhum tributo deve ser pago por contribuintes pobres
enquanto existirem contribuintes relativamente mais ricos, na medida em que o tributo pago
pelo mais pobre presumivelmente acarretará uma perda maior de bem-estar ou de utilidades.
Trata-se, em grau elevado, de uma teoria utilitarista que tende a igualar absolutamente a
distribuição da riqueza entre os indivíduos. Dessa forma, embora se credencie a alterar o
nefasto quadro de desigualdade social vivenciado pela sociedade brasileira, peca por ser
demasiadamente ortodoxa, não levando em conta a vedação ao confisco (cidadãos muito ricos
destinariam quase a integralidade das riquezas que auferem ao Estado) e a liberdade de
exercício de atividades econômicas lucrativas. Por isso, a teoria do sacrifício marginal é mais
uma tese utilitarista que propriamente um modelo de justiça fiscal (MURPHY E NAGEL,
2005, p. 40). Em contraponto, segundo José Maurício Conti, “a teoria do sacrifício marginal
(ou mínimo sacrifício) é, de todas as teorias do sacrifício, a que mais considera o aspecto
redistributivo” (CONTI, 1996, p. 83).
3.4.4.4 – Balanço sobre os possíveis conteúdos da capacidade contributiva sob o enfoque
da progressividade tributária.
Como demonstramos acima, problemas incontornáveis assaltam todas as
propostas examinadas que intentam precisar o conteúdo do princípio da capacidade
contributiva. A teoria do sacrifício, no entanto, principalmente nas suas vertentes proporcional
e marginal,tem sido com freqüência explorada pela literatura tributária, que a considera sólida
o bastante para preencher o conteúdo do princípio enfocado. Acreditamos que a solução passa
por levar em conta a utilidade marginal das riquezas, em abono à teoria do sacrifício
marginal, embora a uma maneira mais flexível.
O critério da utilidade marginal efetivamente pode servir para preencher o
conteúdo do princípio da capacidade contributiva, contanto que seja aplicado com moderação,
diversamente do que prega a teoria do sacrifício marginal, demasiadamente ortodoxa. Com
efeito, há outros valores e princípios caros à ordem constitucional que limitam o alcance da
teoria do sacrifício marginal, como o não-confisco, a livre iniciativa e a propriedade privada.
Para o bem e para o mal, tendo consagrado o modo de produção capitalista, a Constituição
pretendeu reduzir as desigualdades econômicas, e não aboli-las.
A dificuldade, portanto, está em encontrar um índice de progressividade do
sistema tributário que, inspirado pelo critério da utilidade marginal da renda, ao mesmo tempo
40
seja praticável e conciliável com a ordem econômica prevista pelo texto constitucional. Caso
superada essa dificuldade, teremos o conteúdo ideal do princípio da capacidade contributiva.
Além de a progressividade tributária assentar-se nos princípios da igualdade e
da capacidade contributiva (segundo o critério da utilidade marginal das riquezas), é também
movida pelo objetivo constitucional de promoção da justiça redistributiva. Assim, como já
consignamos no tópico 3.1 deste trabalho, por mais que nos valhamos dos princípios da
igualdade tributária e da capacidade contributiva para amparar a progressividade tributária, a
matéria sempre se encontrará circundada pelo tema da extrafiscalidade.
41
4 – INVECTIVAS COMUNS CONTRA A PROGRESSIVIDADE TRIB UTÁRIA.
POSSÍVEIS RESPOSTAS.
As teorias do sacrifício absoluto e proporcional, acima examinadas, não se
conciliam com o conteúdo que se deve dispensar ao princípio da capacidade contributiva no
atual patamar evolutivo do Estado brasileiro, que está a impor aos aplicadores da lei e aos
órgãos de produção do direito a busca incansável da justiça fiscal. A solução está em exigir
tributos em proporções cada vez mais altas à medida que cresce a riqueza manifestada pelo
contribuinte. A progressividade tributária constitui uma das formas mais efetivas de repartição
dos encargos tributários, havendo mesmo quem a tome por mandatória ou como uma
derivação lógica do princípio da capacidade contributiva. Nem por isso o ponto deixa de ser
objeto de profundos dissensos na literatura especializada, na medida em que há, em
contrapartida, autores que sustentam que a progressividade tributária acarreta efeitos nefastos
para a justiça fiscal e para a economia.
José Maurício Conti elaborou um interessantíssimo apanhado de argumentos
exibidos por autores de relevo na literatura tributária contrários à progressividade (CONTI,
1996, pp. 76-78). Embora os argumentos tenham sido levantados contra a progressividade em
sentido estrito, nada impede que sejam utilizados para combater a progressividade em sentido
amplo. Passemos a examiná-los.
João de Adhemar Barros acredita que todo imposto representa um ato de
espoliação, sendo que a progressividade permite que a maioria espolie a minoria mais rica
pretextando a realização da justiça social. Além disso, a progressividade: a) penaliza os mais
eficientes, que, em vista de suas capacidades, conseguiram auferir mais renda; b) desestimula
o esforço e a criatividade, fatores que proporcionam a riqueza, e, por fim; c) tributa
justamente quem menos demanda a prestação de serviços públicos27. Impressiona a
veemência com que Roberto Campos, autor que corrobora as idéias alinhadas acima,
manifesta-se sobre o tema:
“A progressividade é uma coisa charmosa, principalmente quando ela é aplicada à
custa do bolso alheio. No fundo, entretanto, a progressividade é uma iniqüidade.
Significa não só obrigar os que ganham mais a pagar mais, mas também punir
mais que proporcionalmente os ousados e criadores. O charme da progressividade
advém de duas falsas premissas. Uma é que quanto mais bem sucedido o
27 A progressividade tributária. Artigo no Jornal “O Estado de São Paulo”, em 13.3.88, p. 57. Apud (CONTI, 1996, pp. 76/77)
42
contribuinte mais deve ser punido. Outra é que o governo gasta melhor que o
particular. Presume-se que o governo gastaria para prestar serviços; na realidade,
gasta para pagar funcionários. Essa é a verdade, não só dos impostos, mas
também das tarifas28.
Ives Gandra da Silva Martins segue na linha de defesa dos efeitos
antieconômicos e antimeritocráticos da imposição tributária progressiva, sustentando que “a
pior das desigualdades é acreditar que os desiguais devam ser tratados desigualmente29”.
Os argumentos exibidos acima estão profundamente arraigados em uma
concepção política libertária, infensa a quaisquer intervenções estatais redistributivas de
riqueza na ordem econômica vigente. Nem é preciso lembrar que, bem por isso, conflitam
frontalmente com o ideário assumido pela Constituição de 1988, que dedicou diversos
dispositivos ao tema da ingerência do Estado na economia para a promoção da justiça social.
De particular interesse, nesse ponto, é a leitura do artigo que Marjorie E.
Kornhauser publicou com a finalidade de desconstruir cada um dos argumentos levantados
pelas correntes políticas contrárias à progressividade nos Estados Unidos da América. A
autora norte-americana sumariza as principais invectivas contra a progressividade,
desdobrando-as nos argumentos analisados doravante (KORNHAUSER, 1987).
O primeiro deles aponta a inobservância ao critério da simplicidade que, desde
os escritos de Adam Smith, deve informar o sistema tributário. A esse argumento se agrega,
ainda, a alegação de que os critérios justificantes da progressividade são demasiadamente
vagos para serem efetivamente aplicáveis.
O certo é que ambos os argumentos deslocam o debate para um âmbito que
nada diz com o modelo justo de distribuição da carga tributária. A complexidade na forma de
dimensionar e recolher o tributo devido pode existir tanto em esquemas progressivos como
em modelos proporcionais ou regressivos. Ademais, a relativa indeterminação dos critérios de
reparto da carga tributária em um esquema progressivo (por exemplo, a dificuldade em
estabelecer um índice acurado da utilidade marginal da riqueza) não fundamenta a sua
invalidade, na medida em que é melhor acertar aproximadamente que errar com precisão. A
incapacidade de determinar a exata curva de utilidade marginal da riqueza não torna a
tributação regressiva ou meramente proporcional mais justa que a progressiva.
28 As tentações de São João Batista. Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, em 04.03.90, p. 2. Apud (CONTI, 1996, p. 77).
43
Em segundo lugar, reponta o argumento de que a progressividade deságua
necessariamente em irresponsabilidade política. Isso porque fatalmente implica a opressão da
minoria pela maioria (a espoliação, nos dizeres de João de Adhemar Barros), assim como é
sempre desnaturada com a concessão de créditos e reduções de base de cálculo para os mais
ricos. Não passa, nessa razão, de um modelo virtual.
A verdade, no entanto, é que os despossuídos são os verdadeiros espoliados e
oprimidos em um esquema tributário proporcional ou regressivo, pois são obrigados a
destinar aos cofres estatais aquilo que não possuem sequer para o mínimo vital. Além disso, o
argumento naturaliza e dota de um significado moral intrínseco a distribuição de riquezas
promovida pelo mercado, rechaçando ortodoxamente a intervenção estatal via imposição
tributária no campo da justiça social.
Quanto ao argumento de que a progressividade tributária penaliza o mérito e o
esforço individual, é imune a dúvidas que ditos elementos devam ser fatores valorizados, mas
também é evidente que ambos são condicionados pelos atributos herdados e pelas
circunstâncias existenciais de cada indivíduo. Tanto assim que crianças nascidas e criadas em
famílias pobres tendem a acalentar expectativas profissionais modestas. Apenas em grau
limitado a origem das desigualdades sociais pode ser creditada ao mérito e empenho dos
indivíduos na busca de um lugar proeminente na sociedade de livre mercado. Qualidades
naturais valorizadas pela sociedade capitalista muitas vezes são advindas da carga genética
individual recebida dos ascendentes, e bem ainda o nível de educação e acesso a bens
materiais são correlacionados com a posição social em que cada indivíduo foi inserido quando
do nascimento. John Rawls, em sua teoria ético-política, ciente da injustiça daí resultante,
trata essa fonte de disparidade social fortuita sob a rubrica de “loteria da natureza” (RAWLS,
2000, p. 78). O Estado deve corrigi-las no máximo grau de suas possibilidades, porque
ninguém deve estar fadado a um destino de insucesso à conta da distribuição casual de dotes e
habilidades e das contingências sociais. O encarecimento do mérito como fator justificante
das diferenças entre os homens é o esmalte utilizado pelo liberalismo econômico para
agrilhoar o Estado no campo da justiça social. Esse fator realmente é de ser tomado em conta
na distribuição de riquezas entre os homens, mas todo o esforço possível empreendido por um
indivíduo ainda é incapaz de explicar a convivência no mesmo país de indigentes e
bilionários.
29 Martins, Ives Gandra da Silva. Capacidade econômica e capacidade contributiva. In “Caderno de Pesquisas Tributárias 14”. Ed. Resenha Tributária e Centro de Estudos de Extensão Universitária. São Paulo, 1989. Apud (CONTI, 1996, p. 78).
44
De outra parte, a tese de que o modelo tributário progressivo é sempre
desnaturado por benefícios fiscais concedidos aos mais ricos parte do suposto de que a
progressividade, quando adotada, necessita tornar-se um modelo puro. No entanto, assim
como o regime democrático e outros valores caros à civilização ocidental, a progressividade
deve ser tida como um modelo ideal a ser alcançado, de modo que eventuais deturpações na
vida real definitivamente não se credenciam a deslegitimá-la. O modelo progressivo não pode
ser refutado porque na vida real pode incorporar elementos de sistemas tributários
regressivos. Estes últimos é que estão viciados e merecem ser combatidos.
Com referência ao argumento de que a progressividade tributária induz
ineficiência econômica, o debate se torna árido e espinhoso. Como dissemos na apresentação
deste estudo, os efeitos decorrentes da instauração de modelos progressivos de tributação
naturalmente devem ser analisados sob uma ótica que extrapola o campo da investigação
jurídica. Em todo caso, não parece válido afirmar que a progressividade acarreta ineficiência e
desestimula o esforço e a criatividade. Tudo isso depende do modo de construção do modelo
progressivo, na medida em que os mesmos efeitos podem ser acarretados por sistemas
regressivos demasiadamente complexos ou que instituam cargas tributárias severamente
elevadas para todos os cidadãos. Apesar disso, o argumento da ineficiência econômica,
levantado por nomes de peso na literatura tributária nacional, muitas vezes serve de bandeira
contra a progressividade. Nos Estados Unidos da América, o ex-presidente Ronald Reagan
promoveu no ano de 1986 reformas no sistema tributário contrárias à progressividade sob o
pretexto de desonerar o trabalho duro e o esforço individual, elemento que, segundo ele,
sempre constituiu o dínamo da economia daquela sociedade. No entanto, o argumento não é
convincente, dado que qualquer forma de tributação excessiva pode desestimular a economia,
não consistindo esse efeito uma nota distintiva do modelo progressivo (KORNHAUSER,
1987, p. 477). Os efeitos típicos de um sistema tributário demasiadamente complexo ou
impositivo de cobranças escorchantes não podem ser atribuídos aprioristicamente à
progressividade.
Da mesma forma, é despropositado afirmar que a progressividade implica
distorções de mercado, a ponto de alterar em muitos casos o destino dos investimentos
promovidos pelos agentes econômicos. O seu impacto nessa seara é relativamente pequeno,
dado que o remédio mais efetivo para as distorções de mercado promovidas pela tributação
reside no alargamento da base de cálculo a fim de conferir-se tratamento igualitário a todas as
manifestações de riqueza. Além disso, decisões como volume de investimentos e destinação
45
de recursos a poupanças dependem muito mais de fatores sociais e da intensidade da carga
tributária que do modelo progressivo em si. Assim é que, por exemplo, no Japão,
independentemente da política tributária em vigor, a população tende, comparativamente a
outras sociedades, a economizar mais do que consumir ou investir (KORNHAUSER, 1987, p.
478). As críticas de cunho econômico endereçadas à progressividade costumam a ela creditar
problemas que na verdade são multifatoriais, assim como lhe vincular indevidamente os
problemas decorrentes da instauração de uma carga tributária muito exasperada.
Nada obsta, portanto, a que progressividade e tributação razoável, dentro dos
lindes da capacidade contributiva e do não-confisco, convivam harmoniosamente.
46
5 – PROGRESSIVIDADE E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR.
Nesta altura, depois de expostos os fundamentos da progressividade tributária e
as respostas às críticas que lhe são dirigidas, acreditamos estar demonstrada não apenas a
possibilidade de instituição de um sistema tributário progressivo, como também a sua
imperatividade e o caráter ideológico das invectivas contra o modelo. Na linha do que
relatado nos tópicos inaugurais deste trabalho, não são poucos os estudos a sinalizar que o
sistema tributário brasileiro é profundamente injusto e constitui uma das principais causas
para a manutenção da desigualdade social reinante na sociedade em patamares olímpicos. Por
isso, parece fora de dúvidas que algo precisa ser feito para mudar esse quadro, tocando ao
legislador a tarefa de sintonizar a normatividade tributária ao objetivo constitucional de
reduzir as desigualdades sociais.
Apesar do caráter progressivo do sistema tributário ser de acatamento
obrigatório pelo legislador, é acentuadamente espinhosa a delimitação da margem política
para a modulação dessa progressividade. Os enunciados constitucionais afetos ao tema são
dotados de ampla abstração, reservando ao legislador um extenso espaço de modelagem para,
por intermédio do debate democrático, precisar os respectivos conteúdos. Nem poderia ser
diferente. O entendimento de que a tributação progressiva é vinculativa do legislador pouco
ou nada repercute, de um ponto de vista pragmático, sobre a efetivação da justiça
redistributiva. Faltam em nossa ordem jurídica – e esse não é um problema exclusivamente
brasileiro – medidas judiciais credenciadas a impor ao Poder Legislativo o cumprimento dos
grandes objetivos constitucionais, sendo que o problema aqui versado em muito se assemelha
ao das chamadas normas constitucionais programáticas. As análises sobre o problema do erro
do legislador e o seu dever de correção fatalmente avocam a questão do controle jurisdicional
por ação e das omissões legislativas, assim como o modelo de relacionamento entre os
Poderes envolvidos – Judiciário e Legislativo.
De par com a dificuldade vislumbrada pelos formuladores da lei na
determinação do índice ideal de progressividade, baseados em discriminações positivas e no
critério da utilidade marginal dos recursos econômicos, o Poder Judiciário, sob pena de
imiscuir-se indevidamente nas competências legislativas, não conserva o poder de determinar
o caminho a ser trilhado para a consecução do modelo progressivo constitucionalmente
adequado. Isso porque existem diversos instrumentos para a materialização da justiça fiscal,
como a tributação mais acentuada sobre heranças e doações, a progressividade em sentido
47
estrito, isenções sobre gêneros de primeira necessidade, reduções de base de cálculo,
seletividade e quejandos. O mosaico de medidas tendentes à progressividade apenas pode ser
construído pelo legislador a partir da ponderação de elementos que, em cada circunstância
concreta, deponham a favor de soluções cujos resultados práticos sejam mais desejáveis.
Ademais, a aferição da progressividade tributária subordina-se a uma análise
sistêmica ou macroscópica, isto é, somente pode ser procedida mediante a análise do sistema
tributário em sua globalidade, sob uma visão distanciada. Nesse aspecto, torna-se ainda mais
clara a inapetência das medidas judiciais existentes em nosso ordenamento para controlar a
constitucionalidade das imposições tributárias no tocante à progressividade, na medida em
que estas somente permitem a análise de ações ou atos normativos bem individuados, e não o
produto do ordenamento jurídico. Soaria absurdo se o Supremo Tribunal Federal decidisse
declarar a inconstitucionalidade de todo o sistema tributário nacional à conta de sua
regressividade. Dita medida privaria quase absolutamente o Estado de recursos econômicos,
circunstância que, em último grau, implicaria o seu desmantelamento. Por isso, apenas
situações provocadoras de berrantes ofensas à capacidade contributiva e ao não-confisco,
como a tributação sobre o mínimo vital, poderiam sofrer a reprimenda do Poder Judiciário,
com a paralisação da eficácia do ato normativo contestado.
Por outro lado, no tocante ao controle das omissões legislativas, a retificação
do sistema normativo com respeito à progressividade não é menos problemática. A essa
altura, avulta de importância o que Jorge Pereira da Silva chama de “dever de correcção de
leis vigentes”, que constitui “uma modalidade particular do dever de protecção de direitos
fundamentais” (SILVA, 2003, p. 58). Esse dever exprime a necessidade de correção,
adequação ou aperfeiçoamento das leis vigentes, pondo sob a incumbência do legislador a
tarefa de alcançar um regime normativo compatível com o que a ordem constitucional
determina. Cuida-se de hipótese peculiar inserida na temática da inconstitucionalidade por
omissão, porque, nesse caso, o descumprimento do dever de legislar não resulta da ausência
de trato normativo a respeito de um direito constitucionalmente assegurado, mas, antes, da
inexistência de um regime jurídico constitucionalmente adequado. No âmbito do Direito
Tributário, ao menos no modelo brasileiro, o controle jurisdicional de omissões legislativas e
a fiscalização do dever de correção das leis vigentes são possibilidades absolutamente
esvaziadas. Historicamente, as medidas judiciais voltadas à impugnação das inércias
inconstitucionais se limitam a obter, como resultado, a declaração de omissão legislativa
violadora do texto constitucional. Assim, o Judiciário costuma assinar um prazo para o
48
Legislativo preencher a lacuna normativa, sob pena de colocá-lo em mora. Apenas em tempos
recentes, por ocasião do julgamento do paradigmático caso da greve dos servidores públicos,
o Supremo Tribunal Federal interveio diretamente na regulamentação da matéria omitida,
fixando um regime jurídico supletivo enquanto perdurar a inércia do legislador. Todavia, no
campo do Direito Tributário, em tema de inconstitucionalidade por omissão, o Judiciário nada
mais faz senão declarar a mora legislativa, sem prover efeitos concretos à sua decisão, em
face da inafastável incidência do princípio da legalidade (reserva legal) na criação de
obrigações tributárias principais.
Daqui se retira que o papel do Poder Judiciário na pressão por reformas que
levem o sistema tributário nacional à progressividade é severamente limitado, sendo esta
matéria quase inteiramente reservada ao debate político. Conforme lembra Henrique
Napoleão Alves, forte em Norberto Bobbio, nesse âmbito as sanções aplicáveis ao legislador
pelo descumprimento do dever que lhe toca não são jurídicas ou institucionalizadas, mas antes
de tudo correspondem a sanções sociais, resultantes do poder de mobilização popular:
“A resposta a esse problema reside no enfrentamento político, na capacidade das
pessoas de se organizarem, de se empoderarem, e de, juntas, fazer frente aos
poderes interessados na concentração da riqueza e reverter a batalha pelo Estado
Social.
É como um retorno às normas sociais como sanções não-institucionalizadas para
dar eficácia às normas jurídicas que foram desrespeitadas: o povo organizado
funciona como poder capaz de pressionar o Estado a fazer cumprir determinadas
normas como a que comanda os dirigentes a instituir um sistema tributário que
distribua riqueza. A pressão política é traduzida como uma proposição que
prescreve ao Estado determinadas condutas – efetivar os ditames da justiça social,
por exemplo – sob pena de sofrer as sanções sociais concernentes (ALVES, 2011,
p.98)”.
Isso não significa, conforme já assinalado, que medidas concretas que
impliquem ofensas evidentes ao objetivo constitucional de instaurar um modelo tributário
justo, como, por exemplo, violações ao mínimo existencial, não possam sofrer reparos
mediante decisões judiciais.
49
6 – CONCLUSÃO.
O objetivo central mirado pela exposição desenvolvida no curso deste trabalho
foi o de passar a mensagem de que a redistribuição do produto social em benefício dos
segmentos despossuídos da população, providência necessária para o país entrar na rota do
desenvolvimento humano, não pode vir desacompanhada de uma política tributária aberta ao
objetivo constitucional de combater as causas da pobreza e os fatores da marginalização. A
distribuição desigual da carga tributária entre ricos e pobres não é apenas ética e
juridicamente condenável, mas também antieconômica, na medida em que, assim procedendo,
o Estado apropria-se da parca riqueza em mãos das classes desfavorecidas para depois
devolvê-la na forma de serviços públicos e medidas assistenciais (não raro deficientes),
dissipando ponderável parcela dessa riqueza no custeio da burocracia.
Após termos passado em revista os princípios veiculadores da igualdade no
domínio do Direito Tributário, ficou assentado que estes não apenas toleram a distribuição
progressiva da carga tributária, mas antes, inspirados por desígnios extrafiscais, tendem a
exigi-la. Realmente, se o princípio da igualdade, em seu terceiro estágio evolutivo, possibilita
ou mesmo determina ao Estado a prática de discriminações positivas, não subsistem motivos
nele fundados para objeções contra a pretensão de tributar exasperadamente as maiores
manifestações de riqueza e moderadamente as manifestações comedidas, contanto que sejam
respeitados os princípios constitucionais da propriedade e não-confisco.
Por outro lado, com respeito ao princípio da capacidade contributiva, as teses
usualmente aceitas como explicativas do seu conteúdo, vinculadas à teoria do sacrifício, não
se ajustam suficientemente bem ao texto constitucional. O sacrifício equivalente aumenta os
desníveis de riqueza entre os cidadãos, enquanto que o sacrifício proporcional os mantêm
incólumes e o sacrifício marginal tributa apenas os ricos, de modo a igualar os indivíduos no
âmbito econômico. Por isso, a solução parece residir em uma fórmula híbrida e dúctil à
extrafiscalidade, localizada entre as teorias do sacrifício proporcional e marginal, pela qual a
tributação contribuiria para reduzir as desigualdades sociais, mas ao mesmo tempo respeitaria
o não-confisco e teria presente que a Constituição não pretendeu suprimir absolutamente as
diferenças econômicas, tendo protegido a liberdade de exercício de atividades lucrativas.
Quanto aos argumentos políticos e econômicos levantados contra a
progressividade, como acentuou agudamente o jurista Michel Miaille no desfecho de sua
famosa obra “Introdução crítica ao Direito”, aqui, também, “não há a concluir, porque nada
50
está acabado” (MIAILLE 2005, p. 325). Ao reproduzir e formular respostas aos argumentos
objetados contra o esquema tributário aqui defendido, desejei apenas apontar um rumo para o
debate, com a consciência de que um estudioso do Direito não poderia explorar com um
mínimo de profundidade as repercussões causadas pela progressividade na economia. Como
quer que seja, pareceu estar bem demonstrado que frequentemente os críticos imputam à
progressividade tributária a ocorrência de fenômenos na verdade multifatoriais, muitas vezes
também presentes em modelos proporcionais ou regressivos.
Tendo sido fixada, já nas primeiras linhas do trabalho, a correspondência
indissolúvel entre regressividade tributária e concentração de renda, à partida já se tornou
claro, desde a premissa de que a Constituição determina ao Estado o combate às causas da
pobreza e da marginalização, que pende sobre o Poder Legislativo o dever de formular um
modelo tributário justo e consentâneo com os objetivos constitucionais. Não havendo
propriamente em matéria tributária um vazio normativo, mas sim um regime jurídico injusto,
caberia ao legislador cumprir o dever de correção das leis vigentes. Ocorre que, sem embargo
da vigência de atos normativos, não cabe cogitar do modelo tradicional de controle de
constitucionalidade por ação, considerando que a progressividade somente pode ser
mensurada a partir de um exame macroscópico do sistema tributário e que há diversas formas
de implementá-la. Por isso, melhor quadraria falar em inconstitucionalidade por omissão
(descumprimento do dever de formular um esquema tributário constitucionalmente
adequado). No ponto, como bem assinalou Canotilho, “a análise da garantia judicial contra
as omissões normativas do legislador talvez insinue estar mais próxima da verdade a
conhecida caracterização de K. Wolff do direito constitucional como direito sem sanção (...)”
(CANOTILHO, 2001, p. 347). A dificuldade em colmatar as omissões inconstitucionais, que
nos dizeres de Canotilho aproxima o Direito Constitucional da figura esdrúxula do direito sem
sanção, comparece com mais destaque no Direito Tributário, ramo jurídico em que o Poder
Judiciário se vê completamente atado pelo princípio da legalidade, a impedir a formulação de
um regime jurídico supletivo adequado.
Apesar do enfoque dado no decorrer deste trabalho ao tema da justiça fiscal, é
necessário aliá-la ao gênero mais amplo da justiça social, pois a análise da forma mais justa
pela qual o Estado deve extrair riquezas dos seus cidadãos se resume a uma visão parcial da
realidade. Para nada adianta o Estado brasileiro efetivamente instituir um sistema tributário
progressivo, se, como contrapartida, malversar os recursos econômicos obtidos, desviando-os
para o ralo da corrupção. Da mesma forma, a desigualdade social não será reduzida se, ao
51
contrário de executar políticas públicas inclusivas, os governos destinarem os recursos
econômicos do Estado para a consecução de objetivos triviais, como o aformoseamento de
sedes administrativas e fachadas de edifícios pertencentes à Administração Pública. Por isso,
não é possível cindir a justiça fiscal do problema dos gastos públicos, a não ser em pesquisas
acadêmicas como esta, em que a análise sobre o objeto de estudo pode ser realizada sob a
ótica de princípios particulares ao ramo de conhecimento em que o investigador é
especializado.
52
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