Monsenhor Vittorio Peri - avemaria.com.br · à questão, ao dizer: “A principal tarefa que Deus...

26
Monsenhor Vittorio Peri

Transcript of Monsenhor Vittorio Peri - avemaria.com.br · à questão, ao dizer: “A principal tarefa que Deus...

Monsenhor Vittorio Peri

7

Homilia, desafio para

os padres de hoje

Vivemos uma época de verdadeira espiritualidade da Palavra. Cada vez mais cristãos querem tirar bom proveito do encontro com a Palavra de Deus; muitas pessoas criaram o hábi-to de meditarem as leituras da Liturgia da Palavra todos os dias.

Atualmente, muitos leigos assumem a fé por convicção. Não são meros espectadores”, não são plateia ou assembleia que sustenta sua profissão de fé somente com as palavras do padre nas homilias. São leigos que estudam, leem, meditam, pesquisam. Uma revolução!

O livro que a editora Ave-Maria apresenta é uma reflexão séria sobre a homilia, que não deve ser palavras lan-çadas ao vento. A Igreja reafirma sua fé pela interpretação da Palavra e atualiza para os nossos dias, o caminho da vivencia da Palavra feita carne em nós pelo nosso agir.

Por isso a importância da homilia...

Essa nova geração de leigos tornou-se protagonista da nova evangelização, pois está convencida da fé que abraçou. São católicos por convicção, não por tradição.

Ao notarem essa tendência, alguns sacerdotes ficam alertas ou até mesmo incomodados, pois a homilia terá de

8

Homilia: não lançar palavras ao vento!

ser bem preparada e meditada pelo padre antes de anunciada, afinal, entre os fiéis certamente estarão pessoas que já fize-ram sua reflexão sobre o evangelho do dia.

Por isso, o sacerdote tem uma responsabilidade pela frente, não apologética ou de convencimento, mas de cativar a assembleia pela sinceridade da vivência enquanto fala.

Na homilia, já não há mais espaço para falar sobre quermesse, sobre a festa da padroeira, sobre historinhas de improviso. A homilia tem um caráter sagrado de continuação da Palavra, agora não proclamada, mas aclarada, testemunha-da. O maior testemunho de amor à vocação que um sacerdote pode dar é encantar a assembleia com a coerência entre sua vida e as palavras ditas.

Certa vez, uma senhora me disse que frequentava a missa de um determinado padre, já idoso, não tanto por suas palavras, mas pelo que ele transmitia – santidade!

Não é necessário ser um grande exegeta, um poeta ou um exímio comunicador para preparar uma grande homilia. Basta transmitir verdade, sintonia entre o que sente e o que é proclamado. Eis o desafio!

Pe. Luís Erlin, cmf

Editor

9

Introdução

O verdadeiro milagre da Igreja é conseguir sobreviver a cada domingo,

apesar dos milhões de péssimas homilias.

Cardeal J. Ratzinger

O termo homilia, do grego omilein, significa ‘conversar familiarmente’ e aparece com esse significado pela primeira vez na Bíblia em Atos dos Apóstolos 20,11. Tem sido alvo de chacotas e de numerosos sarcasmos, resultando numa séria reflexão pastoral, como podemos constatar a seguir:

s “Apesar dos trinta mil sermões que ocorrem cada domingo, há ainda fé na França” (Yves Congar).

s “Na missa, a Igreja pôs o Credo depois da homilia para nos convidar a crer apesar das coisas que ouvi-mos” (Cardeal Thomás Spidlik).

s “Nenhum outro lugar existe onde os rostos parecem tão apáticos como na igreja, durante os sermões” (François Mauriac).

s “O sermão é útil porque submete à dura prova a fé dos ouvintes” (Julien Green).

s “O abade pensava que o único modo de converter o mundo fosse por meio da postura do silêncio até

10

Homilia: não lançar palavras ao vento!

que as velhas palavras sagradas tivessem tempo de adquirir uma nova modulação. E entendia que o melhor sermão que os padres poderiam fazer era não fazer sermão algum” (Bruce Marshall).

s “A homilia é o tormento dos fiéis” (Carlos Bo).

s “É o momento em que com mais frequência eles olham o relógio” (um anônimo).

E seria possível ir além com essas severas críticas. Porém, ainda que elas sejam exageradas, o fato é que, junta-mente com leituras superficiais dos textos bíblicos, a homilia é, sem dúvida, o “calcanhar de Aquiles” das nossas liturgias.

Entretanto, na visão do episcopado, a homilia é na ver-dade o momento de “reunir a maior parte dos conteúdos que constituem o Ministério da Palavra”1. Para inúmeros cristãos, aliás, ela é o único ponto de encontro com a Escritura.

Sua importância na vida da Igreja é indiscutível se pensarmos que milhares de homilias são pronunciadas aos domingos e em dias de festa e são ouvidas semanalmente por milhões de fiéis.

Indiscutível, porém, e com igual relevância, está a dificuldade de apresentá-la corretamente. Como escreveu o Cardeal Martini, trata-se de “um modo sui generis difícil, talvez o mais difícil, de a Igreja lidar com a Escritura”. Se a homilia não funciona, a luz da Palavra não chega e a casa permanece na escuridão.

Desde 1971, os bispos vêm afirmando que “por não responder adequadamente ao seu objetivo, será importante

1 CEI (Conferência Episcopal Italiana). O sacerdócio ministerial. 22 jul.1971. n. 26.

11

Introdução

propô-la como ponto de uma nova reflexão”2, encontrando apoio na confiança inspiradora do perspicaz aforismo de Erasmo de Rotterdam: “Se os elefantes aprendem a dançar e os leões a brincar, os pregadores podem muito bem aprender a pregar”.

Este é, assim, o propósito destas poucas páginas, estru-turadas nos moldes do tradicional esquema jornalístico: o que, quem, como, onde, quando e por quê. Tudo com o intuito de colaborar para que a homilia venha a se tornar o que realmente é: um instrumento eficaz de evangelização.

Se for verdade que a comunicação se apresenta para a sociedade como o espaço no qual acontecem todas as proba-bilidades de encontro com as pessoas, isso valerá igualmente para a Igreja.

Inevitável, portanto, repensar sem temor as várias for-mas da comunicação eclesial. Esta reflexão tem relevância, sobretudo, para a homilia, que, entre elas, ocupa um lugar “eminente”3.

2 CEI (Conferência Episcopal Italiana), n. 26.3 CIC (Código de Direito Canônico), cânon 767, parte 1.

13

1

O quê

O que não é

A homilia não é aquilo que de costume... somos obrigados a ouvir.

Como por meio de antíteses também é possível escla-

recer uma tese, eis uma série de “opostos” que fornece uma

correta reflexão sobre a homilia. Poderíamos dizer que esta-

mos na pars destruens – ‘parte destruidora’ – deste primeiro

capítulo. Tarefa difícil, pois, como escreve o liturgista Tomás

Federici, “estamos acostumados a não proferir homilias, mas,

sim, a fazer discursos para enfeitar a missa”.

Eis, então, um longo elenco daquilo que a homilia não

é – nem poderia ser:

Não é uma dissertação de índole sociopolítica ou

cultural (homilia sociológica). Claro é que quem fala deve

ter, como recomendava Karl Barth, “a Bíblia na mão e o

jornal no bolso” (vale acrescentar, até mesmo ficar de olho

no relógio). Tempo e lugar para uma educação sociopolítica

são outros.

14

Homilia: não lançar palavras ao vento!

Não é um manifesto para propagar soluções político-ad-ministrativas (homilia - comício). “Ao edificar a comunidade cristã, os presbíteros não devem nunca pôr-se a serviço de uma ideologia ou facção humana”4. As ocorrências sociais é que devem ser iluminadas pela celebração, não o contrário. “Não é tolerável”, escrevia Basílio de Cesareia “que alguém se considere mais sábio do que a Escritura, colocando aí opiniões pessoais arbitrárias.” O pregador deve mostrar a verdade da Palavra, evitando atribuir à Palavra a sua verdade pessoal.

Não é um discurso em defesa de pessoas ou institui-ções eclesiais (homilia apologética), pois, pelo testemunho dos fiéis, mais do que por meio dos discursos, é que se protege e defende o bom nome da comunidade cristã, como dizia Ovídio, “uma causa que não é boa torna-se pior quando se quer defendê-la”5.

Não é a rememoração de aniversário, de fatos importan-tes ocorridos em determinada data etc. (homilia – rememorativa), pois (seja dito entre parênteses) a quantidade de dinheiro em-pregado para comemorações é tão grande que, escrevia Ennio Flaiano, “se tivesse sido empregado naquela época em benefício da comunidade, talvez até o curso da história teria sido outro”6.

Não é uma exortação moralista (homilia para desper-

tar o fervor) com os costumeiros lugares-comuns do jargão moral repleto de obrigações, proibições e receitas genéricas ditadas pelo senso comum. “A verdade para os homens não advém da razão, mas da palavra de Deus”, escrevia Santo Hilário de Poitiers.

4 Decreto conciliar Presbyterorum ordinis, n. 6.5 “Causa patrocínio non bona peíor erit” in Tristitia, I, 1, 26. 6 Corriere della Sera. 13 mar. 1969. Elzeviro: Sombras cinzentas.

15

O quê

Não é elogio de algum personagem ilustre (homilia pane-gírico) com as eventuais mentiras de conveniência tão frequentes nas exéquias, a merecerem aquela expressão irônica de um escritor francês: “nada menos verdadeiro do que um discurso fúnebre: diz exatamente aquilo que o defunto deveria ter sido”.

Não é exaltação de um santo (homilia – elogiosa), cuja memória, embora importante, não deixa de ser um reflexo da pessoa e do evangelho de Cristo.

Não é aquela costumeira invectiva contra os ausentes ou contra os males do tempo (homilia de trovões e relâmpagos) que aborrece os presentes sem vantagem alguma para os ausentes.

Não é um modo de entediar os eventuais ouvintes com divagações genéricas (homilia – talk show) que preten-de agradar a todos, mas habitualmente não serve para nada. Como podemos notar pelo texto a seguir:

As homilias genéricas e abstratas devem ser evitadas, pois elas ocultam a simplicidade da palavra de Deus, assim como também divagações inúteis, que correm

o risco de atrair a atenção para o pregador, fazendo o coração esquecer a mensagem evangélica.

Há de ficar claro aos fiéis que o pregador está preocupado em mostrar a figura de Cristo, que deve

ocupar o centro de toda homilia.7

Já em uma oração ao bispo mártir Oscar Romero, o bispo Tonino Bello escrevia: “Não se permite que em nossos lábios a palavra de Deus se contamine com os detritos das ideologias”. Tomás de Aquino também não ficou indiferente à questão, ao dizer: “A principal tarefa que Deus consignou

7 Bento XVI. Exortação apostólica Verbum Domini, 30 set. 2010. n. 59.

16

Homilia: não lançar palavras ao vento!

para a minha vida é esta: cada palavra minha e cada pensa-mento falem dele”. O texto não pode se tornar uma palestra impregnada de arroubos verbais.

Não é um pretexto para exibir elucubrações erudi-tas (homilia autocelebrativa), na qual, mais que a mensagem, exalta-se o mensageiro. Não é um simpósio para colocar na vitrine um saber sem sabor. Escrevia São João Crisóstomo: “Meu objetivo é ensinar, não ostentar eloquência”. Um eru-dito pode cativar o auditório, mas a palavra de Deus requer um coração que fale ao coração.

Não é arenga para apresentar defesa ou recriminações pessoais (homilia como autodefesa).

Não é exposição histórica e crítica (homilia exegéti-ca) do texto bíblico proclamado. Embora seja necessário – aliás, muito necessário – entender a Escritura para poder vivê-la, a homilia não pode se transformar em uma lição de exegese bíblica (como essa, por sua vez, não pode jamais se tornar uma homilia). De fato, “a explicação dos textos bíblicos, durante a homilia, não pode entrar em muitos detalhes”8, os quais, porém, são necessários em uma expo-sição doutrinal. O objetivo da homilia não é explicar, mas atualizar a Escritura.

Não é resenha ou síntese de cada uma das leituras (homilia – instrução), correndo o risco de fazer três homilias distintas, embora seja necessário pôr em evidência sua unida-de temática: a unidade dos dois Testamentos e a continuidade histórica da história da salvação, que se realiza em definitivo na pessoa de Jesus. Porque a primeira leitura é escolhida em

8 Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja. 21 set. 1993. n. 3.

17

O quê

função da terceira (o Evangelho), o ponto de encontro entre as duas será o tema fundamental da homilia.

Não é ilustração sistemática da verdade da fé ou de qualquer aspecto do rito que se celebra (homilia – cateque-

se). A homilia expõe os mistérios da fé e as normas da vida cristã “seguindo o curso do ano litúrgico”9, tendo como base o texto sagrado proclamado; não caminha por itinerários ca-tequéticos prévios que teriam plena legitimidade em outras instâncias nem se estrutura a partir “das solicitações pasto-rais ou de motivos de natureza contingente”10.

Não é ocasião para dialogar com a assembleia (homilia

– dialógica). “Os fiéis, de fato, são convidados a não intervir com observações e diálogos”11, a menos que a homilia seja destinada a crianças ou jovens12. Ela “estabelece um diálogo divino entre o Esposo e a Esposa, no Espírito Santo”, escre-via Tomás Federici. O diálogo entre as pessoas acontece em outros tempos e lugares, como nos encontros preparatórios dos grupos de liturgia.

Não é, afinal, uma lista de avisos ou de informações sobre as atividades paroquiais (homilia – manifesto). “Há de se distin-guir da homilia os eventuais e breves avisos ao povo; o lugar deles é depois da oração que segue a comunhão.”13 Oportuno sempre lembrar que devem ser dados fora do púlpito.

9 Congregação para a Evangelização dos Povos. Guia Pastoral para as Igrejas Jovens. 1º out. 1989. n. 7.

10 Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino. Ordo Lectionum Missæ (Guia para as leituras na Missa). 21 jan. 1981. n. 68.

11 Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino. Liturgicae instaura-tiones – Regras litúrgicas. 5 set. 1970. n. 2.

12 CEI. Comissão Episcopal Italiana – Lezionario por la messa dei fanciulli – Leituras para a missa das crianças. 5 dez. 1976. n. 8.

13 Ordo Lectionum Missæ (OLM). n. 27.

18

Homilia: não lançar palavras ao vento!

18

O que é

É uma parte da própria ação litúrgica.

Como “parte da própria ação litúrgica”14, a homilia é:

s uma parcela do Cristo total: de Cristo e da Igreja, da cabeça e dos membros, para que a fé que a assembleia confessa pelo coração e nos lábios seja testemunhada pela vida e nos costumes;

s um “lugar” espiritual que favorece o encontro pes-soal com Jesus que se faz presente na partilha da Palavra e na partilha do Pão; e

s o momento mais elevado da mistogogia (do grego mistogagia: iniciação aos mistérios) porque “apresen-ta, a partir dos textos sagrados, os mistérios da fé e as normas da vida cristã”15.

Por isso, a homilia tem uma natureza sacramental que por motivo algum pode ser comprometida. Perante qualquer outra forma de comunicação eclesial, tem absoluta originali-dade, uma vez que é de sua competência transmitir a riqueza espiritual das leituras às quais deve necessariamente se refe-rir. “Na liturgia, rito e palavra estão intimamente conexos.”16

As leituras são como “veículos” com os quais a von-tade salvífica de Deus se faz conhecer, é doada, anunciada e presenciada.

14 Constituição conciliar Sacrossanctum Concilium, n. 5215 Ibid., n. 32.16 Constituição conciliar Sacrossanctum Concilium, n. 35

19

A mesma celebração litúrgica, que se embasa fundamentalmente na palavra de Deus e dela recebe

toda a sua nervura, torna-se um novo acontecimento e enriquece a própria Palavra com

nova interpretação e eficácia inesperada.17

O bispo Mario Russotto escreve que “na liturgia, a Palavra escrita torna-se acontecimento. Não é apenas relato, é história; não só diz, mas cria; não só recorda, mas atua”. Os textos proclamados são sacramentais antes mesmo de ser nor-mativos – sob a influência do Espírito, eles criam o que relatam.

Deus mesmo declara que a palavra que sai da sua boca nunca a Ele retorna “sem surtir efeito”, sem ter operado aquilo que Ele deseja (cf. Is 55,11). É uma palavra que modela a vida de um jeito novo. Portanto, mais do que informativa, ela é efetiva.

As leituras bíblicas realizam uma presença do Cristo não menos verdadeira do que a eucaristia, e a ele é que a homilia dirige a mente e o coração dos fiéis. “A Escritura toda é um único livro, e este livro é Jesus” – segundo Hugo de São Vitor. “Fechai os ouvidos quando alguém vos fala de algo que não é Jesus Cristo”, escrevia Inácio de Antioquia. E se isso acontece na homilia, será necessário convidar quem fala a calar-se. “Que a palavra do Senhor contida nas Escrituras se torne um acontecimento, ressoe na história, suscite a transformação do coração”, escreveram os bispos italianos18. Em resumo: é preciso transformar a escuta da Palavra em um encontro pessoal com o Cristo ressuscitado e vivo.

Os verbos das leituras bíblicas poderiam, então, ser co-locados no tempo presente, pois as pessoas com as quais Jesus

17 Ordo Lectionum Missæ (OLM) n. 3.18 CEI, Comunicar o Evangelho em um mundo em mudança (29 de junho 2001), n. 32.

O quê

20

Homilia: não lançar palavras ao vento!

falava há dois mil anos são as da assembleia que agora celebram; as mãos que tocavam os enfermos continuam a curar; as pala-vras que Ele pronunciava são as mesmas que a assembleia ouve.

As Escrituras são cumpridas no rito que se celebra aqui e agora. Ao comentar o Êxodo, Talmud já escrevia que “cada um, de geração em geração, deve sentir-se pessoalmente sain-do do Egito”. Não é fantasia, mas realidade, como ensina o próprio Concílio: “Cristo está presente em sua Palavra, eis que é Ele quem fala quando na Igreja é lida a Sagrada Escritura”19.

Na liturgia armênia, o povo responde ao diácono que proclama o Evangelho: “É Deus que fala”. E é verdade, pois Deus sempre fala: “único, sem interrupção e sem fim é o seu falar”20. Com sua silenciosa presença, o Logos fala até o fim do mundo (cf. Mt 28,20).

Na celebração, a Palavra torna-se, pois, um novo evento, faz existir o que anuncia. E a homilia evidencia a sua atualidade como se fosse uma leitura sequencial; não um discurso sobre Deus, mas uma mensagem que Deus envia a seu povo aqui e agora.

A Palavra é uma graça dinâmica – a fala divina cresce com o leitor, escrevia Gregório Magno21 –, e a homilia reativa a sua perene atualidade de modo que “o ouvinte tenha fé e, ao crer, adquira a esperança; e, esperando, passe a amar”, segundo dizia Santo Agostinho.

Por todos esses motivos, a homilia “sobressai entre to-das as formas de pregação e, em certo sentido, as reassume”22 como fonte e ápice.

19 SC, n.7.20 São Bernardo abade, Discursos, Disc. 5 sobre vários temas, 1 – 4.21 Congregação para os Bispos, Apostolorum successores (22 de fevereiro de 2004), n. 119.22 Questões sobre o Pentateuco, 2, 73.

21

O quê

Os episódios evangélicos que mais iluminam a natu-reza e a finalidade da homilia parecem ser dois:

s o primeiro (Lc 14,16ss) apresenta Jesus na Sinagoga de Nazaré atualizando um texto do profeta Isaías: “Hoje se cumpriu aquela Escritura que ouvistes” (v. 21). Naquele momento e naquele lugar, ele era o cumpri-mento da antiga profecia.

s o segundo episódio (Lc24,13ss) apresenta Jesus durante a caminhada para Emaús atualizando as Escrituras e, na hospedaria, revelando a própria identidade: “Então se abriram os seus olhos e o re-conheceram” (vs. 31).

Em ambos os casos, Jesus atualiza a Escritura e suscita a fé dos ouvintes. Realiza, poderíamos dizer, uma perfeita homilia: “põe em foco” a mensagem dos textos ouvidos e evidencia a continuidade da salvação anunciada no Antigo Testamento e realizada no Novo: duas partes que o imagi-nativo Santo Agostinho comparava a duas pedras de fogo que, ao serem esfregadas, soltam centelhas e luz. “No Antigo Testamento”, acrescentava, “oculta-se o Novo, e, no Novo, desvela-se o Antigo.”23

A homilia faz referência aos textos bíblicos visando à reprodução deles na vida de quem participa da ação li-túrgica e faz experimentar, pelo poder do Espírito Santo, a presença do Senhor que se une a cada um para aquecer o coração e iluminar a mente. Ele, de fato, “está sempre presente na sua palavra”24. O evento salvador se atualiza no momento em que a Palavra é proclamada; a homilia tem

23 Questões sobre o Pentateuco, 2, 73.24 Ordo Lectionum Missæ (OLM). n. 4.

22

Homilia: não lançar palavras ao vento!

função de explicitá-la e de facilitar a sua compreensão por toda assembleia que concelebra.

Iluminar e aquecer: eis os dois verbos que qualificam a homilia. Se ela ilumina a mente, mas não aquece o coração, é porque fala de outra pessoa, não de Jesus Cristo; porque transmite palavras, não a Palavra; porque está impregnada de sentimentos humanos, não do Espírito Santo.

A assembleia é, portanto, segundo a expressão dos padres da Igreja, o lugar onde floresce o Espírito25.

Para a tradição hebraica, na qual há uma assembleia de pelo menos dez pessoas que ouvem a Torah, a shekinah – presença de Deus –, o Senhor está no meio deles. Para Jesus, como sabemos, bastam dois ou três (Mt 18,20)!

Palavra, celebração e assembleia: eis as três referên-cias evidentes da homilia que deve apresentar clara unidade temática, “de modo tal que os fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no cotidiano da própria vida”26.

Mas, se tudo isso é verdade:

s Por que o povo de Deus deve com tanta frequên-cia suportar leituras insossas da Palavra em vez de ouvir proclamações dignas e confiadas a leitores adultos (não a crianças) preparados (não ao primei-ro que apareça) e capazes de fazer com que todos a entendam – pois eles próprios já a assimilaram?

s Por que, também, não realizar a leitura por meio de uma adequada técnica de comunicação, que respei-te a pronúncia correta e a articulação das palavras, as pausas, o fraseado, os destaques etc?

25 Santo Hipólito de Roma, Traditio apostólica, 35.26 Bento XVI, Exortação apostólica Dei Verbum. 30 set.2010. n. 59.

23

O quê

s Por que, ainda, não há o costume de ter leitores que usem sempre e somente os lecionários oficiais sem lançar mão de outros livros ou, pior, de folhetos avulsos?

s Quanto tempo devemos esperar para que todos se convençam de que o uso inadequado de am-plificadores transforma a Palavra em um barulho enfadonho e priva a assembleia do sagrado direito de entender o que Deus quer lhe comunicar?

s Quando nos tornaremos realmente conscientes de que justamente “na escuta da Palavra de Deus é que a Igreja se edifica e cresce”27?

s Como não pensar que, para alguns, a escuta poderá ser a primeira e a última?

27 Ordo Lectionum Missæ (OLM). n. 7.

25

2

Quem

Poeta, a pessoa já nasce. O orador se forma.

Quem preside à celebração desenvolve uma tarefa que lhe é própria e exerce o ministério da Palavra de Deus também quando faz a homilia. Com ela,

efetivamente, ele guia os irmãos para entender e saborear a sagrada Escritura e abre o coração dos fiéis para dar graças pelos fatos admiráveis

realizados por Deus; alimenta a fé dos presentes pela palavra que, na celebração, sob a ação do

Espírito Santo, torna-se sacramento; prepara-os, enfim, para uma frutuosa comunhão e os exorta a

assumir os compromissos da vida cristã.28

Duas diretrizes para quem cabe a tarefa de proferir a homilia: preparar-se e dar testemunho daquilo que diz.

28 Ibid., n. 41.

26

Homilia: não lançar palavras ao vento!

Preparação

Quem não se prepara, começa sem saber o que vai dizer e termina sem saber o que disse.

Para falar de modo eficaz, é necessário preparar-se. Quem não se prepara, costuma falar e vai falando até encontrar algo a dizer. A improvisação – a qual, segundo Quintiliano, é “a faculdade de falar aleatoriamente”– deturpa a homilia com palavras impróprias e conteúdos confusos. Já ensinava Cícero: “tenha domínio do pensamento, e as palavras fluirão”.

Preparar-se, antes de tudo, ouvindo a voz de Deus. “Escuta e vê. Antes, escuta aquilo que não vês; depois conse-guirás ver aquilo em que acreditaste.”29

Na Bíblia, infinitas vezes, Deus renova o seu desejo de ser ouvido: “Ouve, meu povo, eu quero falar” (Sl 50[51],7). “Israel, se me escutares [...].” “Abra a boca, quero enchê-la” (Sl 81[82], 9.11). Deus, não o homem, é o primeiro orador. Dele advém a fundamental oração do Shema Israel – Ouve, Israel (Dt 6,4).

Ouve: verbo que se repete quase oitenta vezes só no Deuteronômio, para, assim, nos fazer compreender que nun-ca acontecerá nada decisivo, que não aquele provocado por Deus. A ordem dada por São Bento aos seus monges para que “nada se sobreponha à obra divina”30 pode ser do mesmo modo aplicada à palavra de Deus.

Para chegar ao coração de quem ouve, a Palavra deve realizar a longa viagem que tem início no coração de quem a pronuncia. Portanto, cumpre ouvir os textos bíblicos litúrgicos:

29 Santo Agostinho. Comentário sobre os salmos. Sl 47[48],7.30 Regra, 43,3.

27

Quem

s para descobrir o que está escondido e entender o que se encontra para além dele;

s com a avidez do profeta Jeremias, que diz: “Quando recebi as tuas palavras, eu as devorava avidamente; a tua palavra era festa e alegria para o meu coração” (Jr 15,16); e

s para evitar o risco de falar de Deus sem falar com Deus (e até mesmo de esquecê-lo em nome das coisas que se fazem por Ele). Confidenciava Santa Catarina de Siena ao seu diretor espiritual, frei Raimundo: “Considerai como certíssima esta verdade: nada do que diz res-peito ao caminho da salvação foi ensinado a mim por um homem, ou uma mulher, mas precisamente por meu próprio Senhor e mestre, dulcíssimo esposo de minha alma”31. Com base nessa experiência, Pio II, ao canonizar a sua maior ilustre concidadã, Catarina de Siena, pôde declarar: “Nunca ninguém se aproximou dela sem se tornar mais douto e mais santo. A sua ci-ência não foi adquirida, mas infundida. Ela se tornou mestra antes de ser discípula”32.

A fé depende de ouvir a pregação, escrevia Paulo na carta aos romanos, mas essa escuta só é possível se quem a prega é Cristo (cf. Rm 10,17). Poderíamos acrescentar: se o pregador anuncia aquilo que aprendeu do Senhor, mais do que sobre o Senhor, porque ele faz crescer as verdades que são suas. Ele não é aquilo que dizemos dele, mas aquilo que somos por sua graça.

O ouvir, por sua vez, é uma viagem para o infinito.

Santo Agostinho escrevia: Orator sit orator, antequam dic-tor! – o orador deve orar antes de falar –, jogando com o duplo

31 Raimundo de Capua, Legenda maior. n. 84.32 Pio II, Bula Misericordias Domini. 29 jun. 1461 In Magnum Bullarium Romanum, tomo V.

28

Homilia: não lançar palavras ao vento!

sentido de orator, aquele que fala, e orator, aquele que ora. E acrescentava: “Sem dúvida, é infrutífero quem prega a palavra de Deus só exteriormente, sem ouvi-la em seu íntimo”33.

É preciso, então, preparar-se, ouvindo as palavras e os silêncios, os problemas e as expectativas da assembleia a qual o pregador é chamado a presidir. “Muitas coisas da Sagrada Escritura, que sozinho não fui capaz de entender, eu as entendi colocando-me diante dos irmãos”, escrevia São Gregório Magno. “Por vós, aprendo o que ensino porque ouço convosco o que vos digo.”34

Não basta preparar o que se vai dizer. Deve-se também pensar a quem vai ser dito, dado que toda a comunicação se desenvolve entre dois sujeitos. Daí a necessidade de pre-parar a homilia, imaginando os rostos dos ouvintes, os seus interesses, as suas necessidades, as várias vicissitudes da fé, a realidade social35.

Os destinatários não são um apêndice da homilia. Quem quer se fazer ouvir deve adaptar-se ao auditório sob a pena de proferir um discurso inútil. Daí vem a importância de conhecer os destinatários, decorrendo disso o fato de que a homilia não deve ser repetitiva, pois, escrevem os bispos:

A homilia deve dar espaço também para as situações concretas da vida [...]. Cumpre levar em consideração no auditório sua mentalidade difusa,

profundamente marcada pelas mensagens da mídia, no intuito de uniformizar, do melhor modo possível,

linguagem, ritmo e entonação.36

33 Sermão 179, 1: PL 38, 966.34 Homilia sobre Ezequiel.35 CEI, Comunhão e comunidade missionária. 29 jun. 1986. n. 47.36 CEI, Comunhão e missão. 18 jun. 2004. n. 63.

29

Quem

Preparar-se, afinal, ouvindo as exigências e a história da própria Igreja local. A pregação, assim como a espirituali-dade cristã, só podem ser eclesiais, isto é, enraizadas na Igreja da qual somos parte. Do contrário, o discurso descamba para um vago espiritualismo que não gera uma comunidade de comunhão, e, sim, uma mescla de sujeitos individuais.

Tal situação foi caracterizada com muita propriedade recorrendo à metáfora dos “veículos”: a charrete leva os que vão ao batismo; a limusine conduz os nubentes; o carro fúne-bre transporta para a última morada. Assim, os fiéis não são Igreja, mas só comparecem ao batizado, ao casamento e aos ritos fúnebres.

O necessário horizonte para o qual a homilia deve orientar os fiéis é a espiritualidade que João Paulo II qualifica-va com os adjetivos cristocêntrica e eclesial37, isto é, diocesana. Pois, na diocese, como ensina a Lumen Gentium, é que se realiza plenamente a experiência cristã.

Testemunho

Somente nos convencemos quando os fatos nos falam.

Qualidade primária daqueles que pronunciam a ho-milia é estar “repletos do Espírito Santo”, como Jesus na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,18); como os apóstolos no dia de Pentecostes (At2,4); como o protomártir Estevão no momen-to da lapidação (At 7,55).

37 Cfr. Exortação Apostólica Pastores dabo vobis. n. 16.

30

Homilia: não lançar palavras ao vento!

A palavra é eficaz quando falam as obras. Quem abunda em palavras, porém, e é vazio em obras merece a advertência do Evangelho dirigida aos hipócritas: “Dizem, mas não fazem” (Mt 21,28-31).

Quando a consciência trava a língua, o ensinamento esvazia-se de credibilidade. Por isso,

é eminentemente recomendável a santidade da vida que dá crédito a quem fala muito mais do que a

eloquência do discurso. De Jesus foi escrito que ele ensinava como alguém munido de autoridade, à

diferença dos escribas (cf. Mt 7,29)38.

sss

Que as tuas ações não te criem embaraço com relação às coisas que deverás dizer. Não aconteça que, ouvindo o teu discurso, na Igreja, alguém te diga no seu íntimo: muito bem, mas por que não praticas o que dizes? É muito cômodo para o mestre pregar o jejum com a barriga cheia.39

sss

Prega antes de tudo com a vida e a santidade para que não aconteça que a tua conduta contrarie o teu discurso e percas toda credibilidade40.

Os outros podem duvidar das coisas que dizemos, mas acreditam nas coisas que fazemos; não acolhem o que sabemos, mas o que testemunhamos, como escrevia São Gregório Magno:

38 São Gregório Magno, Comentário ao livro de Jó, livro 23, n. 23-2439 São Carlos Borromeu, Discurso no último sínodo.40 São Jerônimo. Carta a Nepociano, 52,8.

31

Quem

Quem, por dever de ofício, deve ensinar coisas sublimes é obrigado a testemunhá-las. A palavra penetra mais facilmente na alma de quem ouve quando é confirmada pela vida de quem fala41.

A palavra, para mudar o mundo, deve antes mudar quem a profere. Se os lábios não proclamam aquilo que o coração acredita, a mensagem fica sufocada. Nossas palavras revelam o que somos, porque as palavras, como os fatos, são a morada do ser.

O Vaticano II ensina que “a santidade dos presbíte-ros contribui muitíssimo para o cumprimento eficaz do seu ministério” e que “Deus prefere manifestar a sua grandeza através daqueles que, tornando-se mais dóceis aos impulsos e à ação do Espírito Santo, podem dizer com o Apóstolo, em virtude da própria união íntima com Cristo e da santidade da sua vida: ‘Eu vivo, mas já não sou mais eu, é Cristo que vive em mim’” (Gl 2,20)42.

A eficácia da homilia não decorre da sabedoria de quem a profere, mas do poder de Deus, só ele é capaz de abrir os corações mais fechados. “Eu acreditei, por isso falei” é o que rezamos com as palavras do Salmo 115[116],10.

A palavra de Deus chega à assembleia litúrgica me-diante pessoas que a ouviram e a viveram, que conheceram Deus por experiência pessoal; não, como fizera Jó, “por ouvir dizer” (cf. Jó 42,5).

A pregação da Palavra não é questão de palavras, mas de testemunho; não é comunhão de doutrina, mas de

41 Carta Sinódica.42 Decreto conciliar Presbyterorum ordinis. n. 12.

32

Homilia: não lançar palavras ao vento!

experiência. O melhor comentário ao Evangelho não está em uma página escrita, mas em uma pessoa digna de fé.

Francisco, o pregador do Evangelho, quando pregava para pessoas simples, usava expressões comuns e

concretas, bem sabendo que mais necessárias são as virtudes do que as palavras.43

Reservada aos ministros ordenados

Na celebração eucarística, a homilia “é reservada ao sacerdote e ao diácono”44, uma regra da qual nem o bispo diocesano pode dispensar45, pois se trata de lei que não é disciplinar, mas integra as funções de magistério e da san-tificação. E ela deve ser proferida, por norma, “por quem preside”46 o rito sagrado. Esse pode delegá-la a outro sacer-dote cocelebrante ou a um diácono.

Em casos particulares pode pronunciá-la também um sacerdote não celebrante47, desde que evite a tentação... de ir embora logo depois. Em caso algum, porém, podem proferi-la ministros demitidos do estado clerical, ou que abandonaram o exercício do ministério, nem também simples estudantes de teologia. E, ainda, a homilia não pode ser reduzida a uma espécie de treinamento para o futuro ministério48.

43 Tomás de Celano, Vita secunda. cap. 73. n. 107.44 Código de Direito Canônico (CDC). cânon 767 § 1.45 Pontifícia comissão para a autêntica interpretação do Código de Direito Canônico.

26 maio 1987.46 OLM, n. 24.47 Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos. Princípios e nor-

mas para o uso do missal romano. 20 abril 2000. n. 66.48 Congregação para o clero, Instrução: a colaboração dos leigos ao ministério do

sacerdote. 15 ago.1977. n. 3.

33

Os leigos podem, porém, pregar nas igrejas e oratórios por motivo de necessidade ou utilidade, conforme as dispo-sições das Conferências Episcopais49. A Comissão Italiana prevê que isso possa vir a acontecer quando os leigos:

Apresentarem, como requisitos necessários: ortodoxia na fé, preparação teológica e espiritual,

vida exemplar na esfera pessoal e comunitária, capacidade de comunicação e tenham recebido

mandato do bispo diocesano50.

sss

Em celebrações dominicais, na ausência do presbítero, ao leigo, que eventualmente dirige

a comunidade, é permitida “alguma explicação das leituras” ou “a leitura da homilia que lhe foi

transmitida pelo pároco”51.

49 cf. CDC, can. 766.50 CEI, Deliberação 22. 18 abr.1985.51 Congregação para o culto divino, Celebração dominical na ausência do presbítero.

2 jun. 1988. n. 43.

Quem