Montaigne - Da Experiencia - tradução

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 Montaigne – Da experiência, três parágrafos  Não existe desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. Nós tentamos todos os meios que podemos aí adotar. Quando a razão nos falta, nós aí adotamos a experiência, nos aí adotamos a experiência, ‘Per vários usus artem experientia fecit: exemplo mostrante viam’, que é um meio mais fraco e menos digno; mas a verdade é coisa tão grande, que nós não devemos desdenhar nenhum entremeio que nos conduza aí. A razão tem tantas formas, que não sabemos a qual tomar; a experiência não o tem menos. A conseqüência que queremos tirar da semelhança dos acontecimentos é insegura, na medida em que estes são sempre dessemelhantes: não existe nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade e variedade. E os Gregos, e os Latinos, e nós, para o mais expresso exemplo de similitude, nos servimos daquele dos ovos. Todavia se encontraram homens, e notadamente um em Delfos, que reconhecia as marcas de diferença entre os ovos, tanto que ele jamais tomava um pelo outro; e tendo aí diversas galinhas, sabia julgar de qual era o ovo. A dissimilitude interfere por si mesma em nossas obras; nenhuma arte pode atingir a similitude. Nem Perrozet nem outro pode  polir e branquear tão cuidadosamente o verso de suas cartas que outros jogadores não as distingam, apenas vendo-as correr pelas mãos de um outro. A semelhança não faz tanto um como a diferença faz outro. A natureza é obrigada a nada fazer que não seja dessemelhante. Todavia a opinião daquele não me apraz em nada, que (o qual) pensava pela multidão ds leis frear a autoridade dos juízes, em lhes cortando as medidas (em lhes estabelecendo seus limites): ele não sentia que existe tanto de liberdade e de extensão da interpretação das leis quanto à sua maneira. E aqueles debocham, que pensam (ao pensar) diminuir 

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Montaigne – Da experiência, três parágrafos

 Não existe desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. Nós tentamos todos os

meios que podemos aí adotar. Quando a razão nos falta, nós aí adotamos a experiência,

nos aí adotamos a experiência, ‘Per vários usus artem experientia fecit: exemplo

mostrante viam’, que é um meio mais fraco e menos digno; mas a verdade é coisa tão

grande, que nós não devemos desdenhar nenhum entremeio que nos conduza aí. A razão

tem tantas formas, que não sabemos a qual tomar; a experiência não o tem menos. A

conseqüência que queremos tirar da semelhança dos acontecimentos é insegura, na

medida em que estes são sempre dessemelhantes: não existe nenhuma qualidade tão

universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade e variedade. E os Gregos, e os

Latinos, e nós, para o mais expresso exemplo de similitude, nos servimos daquele dos

ovos. Todavia se encontraram homens, e notadamente um em Delfos, que reconhecia as

marcas de diferença entre os ovos, tanto que ele jamais tomava um pelo outro; e tendo aí

diversas galinhas, sabia julgar de qual era o ovo. A dissimilitude interfere por si mesma

em nossas obras; nenhuma arte pode atingir a similitude. Nem Perrozet nem outro pode

 polir e branquear tão cuidadosamente o verso de suas cartas que outros jogadores não as

distingam, apenas vendo-as correr pelas mãos de um outro. A semelhança não faz tanto

um como a diferença faz outro. A natureza é obrigada a nada fazer que não seja

dessemelhante.

Todavia a opinião daquele não me apraz em nada, que (o qual) pensava pela multidão ds

leis frear a autoridade dos juízes, em lhes cortando as medidas (em lhes estabelecendo

seus limites): ele não sentia que existe tanto de liberdade e de extensão da interpretação

das leis quanto à sua maneira. E aqueles debocham, que pensam (ao pensar) diminuir 

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nossos debates e os interromper em nos convocando à expressa palavra da Bíblia. Ainda

mais que nosso espírito não encontra o campo menos especioso a controlar o senso de

outro quanto a representar o seu, e como se houvessem tantos meios de animosidade e

aspereza a imitar quanto a inventar. Nós vemos o quanto ele se engana.

Pois nós temos na França mais leis do que o resto do mundo inteiro, e mais que seria

necessário para reger todos os mundos de Epicuro, ut olim flagitiis, sic nunc legibus

laboramus; e tanto é deixado a opinar e decidir a nossos juízes, que esta nunca teve

liberdade tão posssante e licenciosa. O que ganharam nossos legisladores ao escolher cem

mil espécies e fatos particulares, e aí vincular cem mil leis? Este número não tem

nenhuma proporção com a infinita diversidade das ações humanas. A multiplicação de

nossas invenções não atingirá a variação dos exemplos. Ajusteis aí (estes) em cem vezes

ainda: não advirá todavia que, nos acontecimentos futuros, se encontre algum que, em

todo esse grande número de milhares de acontecimentos escolhidos e registrados, se

encontre um ao qual se possa juntar e emparelhar tão exatamente, que não reste aí

qualquer circunstância e diversidade que requeira diversa consideração do julgamento.

Existem poucas relações de nossas ações, que estão em perpétua mutação, com as leis

fixas e imóveis. As mais desejáveis, estas são as mais raras, mis simples e gerais; e creio

ainda que valeria mais a pena não ter nenhuma do que as ter em tal número como nós as

temos.

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